Você está na página 1de 4

3.

O DESENVOLVIMENTO DA ESCOLÁSTICA

A. O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA Agostinho, a situação começa a mudar.


ESCOLÁSTICA Examinemos um pouco melhor esse contexto.

Santo Agostinho é considerado o último dos A unidade política e cultural mantida pelo Império
pensadores antigos, já que cronológica e Romano, embora já bastante precária em seus
tematicamente se situa ainda no contexto do últimos séculos, dissolve-se por completo com as
pensamento antigo1, e o primeiro dos medievais, sucessivas levas de invasões bárbaras. A
já que sua obra, de grande originalidade, situação da Europa ocidental nessa época é
influencia fortemente os rumos que tomará o bastante instável, com a fragmentação política,
pensamento medieval em seus primeiros séculos. econômica, linguística e cultural decorrentes
Porém, após sua morte e até os sécs. XI-XII é dessas invasões até a consolidação dos
extremamente reduzida a produção filosófica e primeiros reinos bárbaros na Europa ocidental, os
cultural em geral no mundo europeu ocidental2. visigodos na Península Ibérica, os burgúndios e
lombardos no sul da França e norte da Itália, os
Além de santo Agostinho devemos mencionar francos na atual França e no oeste da Alemanha,
também Boécio (470-525) como um pensador os saxões na Alemanha central e na Inglaterra.
fundamental para a mediação entre a filosofia Nesse contexto, e devido a esses fatores de
antiga e a filosofia cristã medieval. Boécio era instabilidade, é praticamente nula a produção
romano e cristão e foi um alto funcionário da filosófica e cultural de modo geral. Em 5293 são
corte de Teodorico, rei dos ostrogodos, que Bento fundou na Itália a ordem monástica
haviam então ocupado a Itália. Escreveu beneditina em cujos mosteiros foram preservadas
comentários à lógica de Aristóteles que tiveram algumas das mais importantes obras da
grande influência no período medieval, traduziu Antiguidade4. Embora já houvesse mosteiros na
autores gregos e escreveu um diálogo intitulado Europa, uma característica fundamental da
A consolação da filosofia – escrito na prisão após ordem beneditina – diferente das ordens
ter caído em desgraça –, que pode ser monásticas das igrejas orientais (egípcia, grega,
considerado uma das mais célebres obras de siríaca) – é que esta não era exclusivamente
espiritualidade. contemplativa, mas dedicava-se também ao
trabalho dos monges5. Um dos aspectos
Devido à fragmentação política, cultural e principais desse trabalho foi o dos monges
linguística do mundo europeu, não encontramos copistas que produziram cópias de manuscritos e
aí as condições mínimas de estabilidade social e obras antigas, permitindo que fossem
econômica que tornam possível o preservados e difundidos. Durante esse período,
desenvolvimento cultural. Temos assim um a Igreja foi a única instituição estável e a principal
interregno filosófico. No Império do Oriente, o e quase exclusiva responsável pela educação e
Império Bizantino – que após a tentativa pela cultura. Foi nas bibliotecas dos mosteiros
fracassada de reconquista do Ocidente por que se preservaram textos da Antiguidade
Justiniano (séc. VI) passa a ter pouco contato clássica greco-romana. É claro que de uma forma
com o Ocidente –, prevalece uma ortodoxia altamente seletiva, já que foram mantidos
religiosa e teológica que restringe o interesse essencialmente textos considerados compatíveis
pela filosofia. As culturas bárbaras que se com o cristianismo, bem como textos de
estabelecem na Europa ocidental não tinham pensadores dos primeiros séculos da era cristã.
nem conhecimento nem interesse pela filosofia.
Só progressivamente, a partir do séc. IX, cinco Progressivamente o mundo europeu ocidental
séculos portanto após a morte de santo começa a se reestruturar, e o primeiro momento
importante nesse sentido, de um ponto de vista
1
filosófico, é a formação no início do séc. IX do
Na verdade, nesse momento o cristianismo ainda não é Sacro Império Romano-Germânico. No Natal do
plenamente hegemônico nem como religião, nem como
filosofia. Os visigodos na Península Ibérica só se
3
converterão no séc. VI e os lombardos no norte da Itália É interessante notar a coincidência de datas entre a
apenas no séc. VII. Por outro lado, o grande filósofo pagão fundação da primeira grande ordem monástica do Ocidente
neoplatônico Praclo nasce em 412. e o fechamento das escolas pagãs de filosofia no Império
2
Há exceções, é claro, como santo Isidoro de Sevilha (560- do Oriente pelo imperador Justiniano.
4
633), autor das Etimologias, espécie de enciclopédia da Outra vertente, também importante do ponto de vista
época, e do tratado das Sentenças, uma espécie de síntese cultural, foi a irlandesa, a partir de mosteiros fundados por
teológica. Outro pensador que deve ser mencionado é o são Columbano (sécs. VI-VII) na Irlanda e que se difundiram
Venerável Seda (673-735), na Inglaterra, autor de um pela França e norte da Itália.
5
Tratado da natureza inspirado na Historia naturalis de O lema de são Bento era, precisamente, Ora et labora
Plínio, autor romano do séc. I. (“Reza e trabalha”).
ano 800, o papa Leão III convidou Carlos Magno, Sua importância consiste sobretudo na
rei dos francos, a ir a Roma. Lá chegando, Carlos revitalização da filosofia cristã, garantindo sua
Magno, segundo alguns para sua surpresa, foi permanência e abrindo o caminho para o seu
sagrado imperador pelo Papa. Isso foi entendido desenvolvimento. Conhecedor do grego, traduziu
como uma tentativa de submeter o poder obras de autores bizantinos como são Gregório
temporal do imperador à autoridade da Igreja; de Nissa (séc. IV) e o Pseudo-Dionísio
porém, na verdade, a constituição do Sacro Areopagita. Este último teve grande influência no
Império Romano-Germânico representa de fato a desenvolvimento do pensamento medieval.
primeira grande tentativa de se recuperar no Trata-se de um filósofo cristão neoplatônico,
mundo ocidental a unidade territorial e política do possivelmente do séc. V, cujo nome é
Império Romano. Temos com essa iniciativa a desconhecido e que foi inicialmente identificado
reunião de três características básicas que erroneamente com o grego Dionísio, convertido
simbolizam bem a nova realidade: 1) a por são Paulo em sua pregação no Areópago de
vinculação do novo império à tradição imperial Atenas. Suas obras Hierarquia celeste,
romana, com a qual na realidade não possuía Hierarquia eclesiástica e Os nomes de Deus
nenhum vínculo histórico ou cultural mais foram traduzidas e comentadas por Escoto
próximo, 2) a referência aos “germânicos”, isto é, Erígena, sendo este um dos primeiros contatos
aos povos bárbaros do norte que ocuparam entre a tradição grega bizantina e a latina.
aquela região e que agora se apresentavam
como herdeiros dessa tradição, e 3) a A Renascença carolíngia teve, no entanto, uma
denominação de “sacro” que indica a influência e duração relativamente curta. Após a morte de
o papel da Igreja nesse processo. Carlos Magno seu império foi dividido entre seu
filho e entre os sucessores deste, segundo a lei
É característico, portanto, que o império de dos francos, levando a uma nova fragmentação
Carlos Magno tenha buscado na Antiguidade política, gerando grandes conflitos até o Tratado
greco-romana a identidade cultural e política de Verdun (843), que estabeleceu a divisão do
necessária para a sua formação e consolidação, império. Esta divisão perdurará, significando a
vinculando pela primeira vez de forma mais separação entre o território da França e o do
explícita a nova ordem política à antiga como Império que ressurge no final do séc. X com Oto
principal referência para a tão desejada I, incluindo parte da Alemanha, o norte da Itália e
constituição dessa identidade. E, sobretudo, é a Áustria.
particularmente significativo que tenha sido
criada nesse contexto a Academia Palatina, É, portanto, apenas em torno dos sécs. XI-XII
instituição que buscava reviver o saber clássico e que assistimos ao surgimento da assim chamada
visava o ensino e a formação de quadros “escolástica”, como ficou conhecida a filosofia
intelectuais que pudessem assumir funções medieval a partir de então. Esse termo designa,
administrativas, educacionais e culturais no novo de modo genérico, todos aqueles que pertencem
império. A filosofia, é claro, terá uma importância a uma escola ou que se vinculam a uma
fundamental nesse momento. Dois personagens determinada escola de pensamento e de ensino.
merecem destaque especial: o monge Alcuíno de Passou a significar também, por esse motivo, um
York (730- 804) e o filósofo e teólogo de origem pensamento filosófico que compartilha a
irlandesa João Escoto Erígena6 (810-870), que aceitação de certos princípios doutrinários
viveu na corte de Carlos, o Calvo, neto de Carlos comuns, os dogmas do cristianismo que não
Magno. Alcuíno foi o principal responsável pela deveriam ser objeto de discussão filosófica,
Academia Palatina e, embora não fosse um embora na prática essa discussão não tenha
filósofo, teve importância fundamental no ensino deixado de acontecer. Eis um dos pontos cruciais
das letras nesse contexto que ficou conhecido da famosa querela entre a razão e a fé que
como Renascença carolíngia e que tornou percorre toda a filosofia medieval desde esse
possível a continuidade entre a cultura greco- período. O desenvolvimento da filosofia torna-se
romana e a da Europa ocidental. possível devido à difusão e consolidação das
escolas nos mosteiros e catedrais dedicadas à
Escoto Erígena pode ser considerado o primeiro formação do clero e incluindo em seu currículo o
autor importante a elaborar um pensamento estudo dos padres da Igreja, de filósofos e
próprio na tradição medieval desde santo teólogos, principalmente santo Agostinho, bem
Agostinho, representando assim uma retomada como de gramática e de retórica. Em 1070 a
da filosofia agostiniana e do neoplatonismo, “reforma gregoriana”, decretada pelo papa
sobretudo em sua obra mais conhecida, o diálogo Gregório VII, estabeleceu que cada abadia e
De divisione naturae (As divisões da natureza). catedral tivesse uma escola onde se ensinavam
os elementos básicos da cultura da época, o
6
Seu nome Erígena, ou Eriúgena, significa “originário do trivium, ou três vias, consistindo de uma
Eire”, a Irlanda. introdução à gramática, lógica e retórica. e o
quadrivium, ou quatro vias, composto de música, Santo Anselmo formula esse argumento em seu
geometria, aritmética e física. pequeno tratado Proslogion (caps. I-IV) como
uma prova da existência de Deus, tentando
B. SANTO ANSELMO E O demonstrar que do conceito de Deus como um
DESENVOLVIMENTO DA ESCOLÁSTICA Ser Perfeito deriva-se a sua existência e que,
portanto, alguém que entenda esse conceito não
Santo Anselmo de Canterbury, ou Cantuária, é pode coerentemente duvidar da existência de
considerado o primeiro grande pensador da Deus. Daí lhe ter sido dada a denominação
escolástica, elaborando sua filosofia a partir de “argumento ontológico”, já que, segundo essa
uma preocupação em articular a fé e o interpretação, pretende fazer uma passagem do
entendimento, a razão e a revelação. Nasceu em campo lógico-semântico, a definição de Deus,
Aosta, no norte da Itália, em 1033, tornou-se para o campo ontológico, a existência do ser
monge no mosteiro beneditino de Bec na França, correspondente a esse conceito, demonstrando
posteriormente vivendo na Inglaterra, onde em que dado o entendimento desse conceito
1093 chegou a ser nomeado arcebispo de (elemento epistemológico), não se pode evitar a
Canterbury, falecendo em 1109 em conflito com o aceitação da existência desse ser.
rei da Inglaterra acerca da autoridade da Igreja e
do Papa. Sua carreira nos dá bem uma ideia do O argumento tem uma estrutura simples, embora
caráter transnacional da Igreja da época, que não suas implicações sejam bastante complexas.
conhecia fronteiras, e da mobilidade geográfica Santo Anselmo começa tomando como exemplo
típica da vida de um eclesiástico de seu tempo. uma passagem dos Salmos (14, 1), “Diz o
As ordens religiosas possuíam abadias e insensato em seu coração: Deus não existe”.
conventos nos diferentes territórios da Itália, Ora, o insensato, ou insipiente, compreende o
França, Alemanha, e os monges e clérigos termo “Deus” e seu significado, “o ser do qual
transitavam de um para o outro. O latim era a nada maior (ou mais perfeito) pode-se pensar”,
língua franca, conhecida e falada por todos que caso contrário não poderia negar a existência de
possuíam certo grau de instrução, o que facilitava Deus. Passa a discutir em seguida se Deus
a comunicação. Os abades e priores de existe apenas no intelecto como algo que pode
conventos eram na prática senhores feudais, ser pensado (esse in intellectu), ou na realidade
proprietários de terras, e desfrutavam de grande (esse in re) como algo de fato existente. No
autonomia e autoridade, não só espiritual, mas entanto, segundo o argumento, um ser do qual
também política. não se pode pensar nada maior não poderia
existir apenas no pensamento, caso contrário,
Santo Anselmo segue a tradição agostiniana, poder-se-ia pensar algo maior, que existisse
procurando a aproximação entre a filosofia e a também na realidade, e existir na realidade é
teologia, consagrando a fórmula credo ut mais do que existir apenas no pensamento.
intelligam, “creio para compreender”, e tendo Portanto o ser do qual não se pode pensar algo
como lema fides quaerens intellectum, “a fé maior deve existir não só no pensamento como
buscando a compreensão”. Autor de inúmeros na realidade. A conclusão de santo Anselmo é
tratados de filosofia e teologia, sua principal que não se pode pensar a inexistência de um ser
contribuição à filosofia, em que vamos nos do qual nada maior pode ser pensado sem
concentrar, consiste na formulação do famoso contradição; desse modo fica provada a
argumento (ou prova) ontológico (a), como existência de Deus.
ficou conhecido posteriormente (desde Kant)7.
Trata-se de um dos argumentos mais clássicos Essa prova segue a linha do objetivo de santo
da tradição filosófica, tendo sido questionado por Anselmo de conciliar razão e fé: aquilo que a fé
outros filósofos na Idade Média, dentre eles são nos ensina pode ser entendido pela razão, e a
Tomás de Aquino, defendido por Duns Escoto filosofia nos ajuda a argumentar em favor disso e
ainda nesse período, retomado por Descartes caracteriza bem o estilo da escolástica ao utilizar
nas Meditações metafísicas (III e V), criticado por a filosofia – sua forma de argumentar, seus
Kant na “Dialética Transcendental” da Crítica da conceitos básicos – em defesa de questões
razão pura (cap. III, seç. 4), objeto da admiração religiosas e teológicas.
de Hegel, discutido por Bertrand Russell já no
séc. XX e ainda despertando grande interesse na As implicações do argumento de santo Anselmo
filosofia contemporânea, uma vez que tem foram discutidas à exaustão. Já em sua época, o
múltiplas implicações, principalmente nos campos monge Gaunilo levantou objeções ao argumento
da lógica, da metafísica, da epistemologia e da em seu Livro em defesa de um insipiente.
teologia. Segundo ele, poderíamos pensar no caso da ilha
perdida, a ilha mais perfeita, e o simples pensar
7 nessa ilha acarretaria sua existência pelo mesmo
Os escolásticos o conheciam como ratio Anselmi,
tipo de raciocínio. Santo Anselmo respondeu que
argumento de Anselmo.
apenas Deus é o Ser Necessário e por isso é parafraseada como (D*) “Há tigres mansos”, e
diferente da ilha, ou de qualquer outra coisa; nesse caso fica claro que não se trata de um
nesse sentido, o argumento só seria aplicável a predicado. Outro exemplo que deixa isso
Deus. Introduz assim a noção de necessidade igualmente claro é a diferença entre (E) “Traga-
como central para o argumento. me uma cerveja gelada” e (F) “Traga-me uma
cerveja existente”, sendo óbvio que (F) é sem
Muitos dos que questionaram esse argumento o sentido.
fizeram com base em formulações um pouco
diferentes da do Proslogion, o que levou os O segundo problema importante diz respeito à
defensores de santo Anselmo a recusarem tais noção de necessidade. Se de fato pode-se
objeções. Na verdade parece haver dois argumentar que a existência não é um predicado,
aspectos do argumento que motivaram toda essa por outro lado parece legítimo sustentar que a
discussão. O primeiro diz respeito à noção de existência necessária é um predicado. É
existência. Os críticos de santo Anselmo, dentre contraditório afirmar que o ser necessário não
eles principalmente Kant, contra-argumentaram existe, por isso, segundo santo Anselmo, Deus é
que não é válida a passagem de (A) “Deus é o o ens realissimum (o ser mais real). No entanto, a
ser do qual não se pode pensar nada maior” para noção de necessidade é ela própria sujeita a
(B) “Deus existe”. Isto porque, embora “o ser do várias discussões. Podemos distinguir entre a
qual nada se pode pensar nada maior” e “existe” necessidade lógica ou analítica, que diz respeito
ocupem, respectivamente nas proposições (A) e a definições, e a necessidade ontológica, que diz
(B), o lugar do predicado, ou seja, algo que se respeito à existência real. Desse modo o
atribui a Deus, na verdade “existe” não é, de um problema novamente se coloca: como podemos
ponto de vista lógico, um predicado. A existência fazer a passagem do nível lógico para o
é uma condição para que algo tenha predicados ontológico?
e não, ela própria, um predicado. A diferença
talvez fique mais clara em exemplos como: (C) Nossa breve discussão acima teve por objetivo
“Tigres mansos rosnam” e (D) “Tigres mansos apenas mostrar a atualidade das questões
existem”. Posso dizer a propósito de (C) que levantadas por santo Anselmo para a filosofia,
“alguns tigres mansos rosnam, mas não todos”, revelando que essa questão tem muitos
mas o mesmo não pode ser dito de (D), porque desdobramentos e pode ser examinada por
“rosnar” é um predicado, algo que tigres fazem, diferentes ângulos, tocando em alguns dos
mas existir não é um predicado. (D) pode ser conceitos mais centrais da filosofia e estando
longe de se considerar resolvida.

QUADRO SINÓTICO
 Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109) é um dos iniciadores da escolástica e
formulador do célebre argumento ontológico, que ilustra o estilo medieval de filosofar e o
tratamento de questões aproximando a teologia da filosofia ao investigar racionalmente os
fundamentos da fé cristã.

QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO


1. Como se pode caracterizar a “escolástica”?
2. Por que a prova da existência de Deus de santo Anselmo é conhecida como “argumento
ontológico”?

Você também pode gostar