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Duelo de Filantropia

Machado de Assis

Era um leilo de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura com os mveis, havia uma pobre criancinha abrindo os olhos espantados e ignorantes para todos. Todos foram atrados pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivduo que, mais curioso que compadecido, conjecturava meia voz o preo por que se venderia aquele semovente. Tratvamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube que eu manejava a enxadinha com que revolvo as terras do folhetim, deixou escapar dos lbios esta exclamao: - Ah! Estava longe de conhecer o que havia neste - ah! - to misterioso e to significativo. Minutos depois comeou o prego da pequena. O meu indivduo cobria os lances com incrvel desespero, a ponto de pr fora de combate todos os pretendentes, excepto um que lutou ainda por algum tempo, mas que afinal teve q ceder. O preo definitivo da desgraadinha era fabuloso. S amor humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo conhecimento; no perdi de vista o comprador, convencido de que iria disfaradamente ao leiloeiro dizer-lhe que a quantia lanada era aplicada liberdade da infeliz. Pus-me espreitada virtude. O comprador no me desiludiu, porque, apenas comeava a espreit-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som: - para a liberdade! O ltimo combate do leilo foi ao filantropo, apertou-lhe as mos e disse: - Eu tinha a mesa inteno. O filantropo voltou-se para mim e pronunciou baixinho as seguintes palavras acompanhadas de um sorriso: - No v agora dizer l na folha que eu pratiquei este ato de caridade. Satisfez religiosamente o dito de filantropo, mas nem assim me furtei honra de ver o caso publicado e comentado nos outros jornais. Deixo ao leitor a apreciao daquele airoso duelo de filantropia. Machado de Assis afrodescendente - escritos de caramujo [antologia]. Organizao, ensaio e notas: Eduardo de Assis Duarte. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Pallas/ Crislida, 2007 p. 27

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