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01

edição
inaugural

O Conto de Maquena et al. Minhas impressões sobre a escrita


Poema Mulher-lua et al. AFRO HORROR
Perfil de Laurentino Gomes Série Anteros et al.
Prefácio, Prólogo, Epílogo, Posfácio Cartuns por Alpino
ESTA EDIÇÃO
Edição, Capa e Diagramação: EDITORIAL: A PRIMEIRA DE MUITAS!
Pablo Gomes
Anthoniele Carvalho
Literatura Errante. Literatura: uso estético da
Revisão: linguagem escrita, arte literária, conjunto de obras
Hellen Heveny literárias de reconhecido valor estético; Errante:
Tatiana Iegoroff que erra, erradio, errabundo, multívago, que segue
Pablo Gomes sem rumo ou direção definida. Logo, propomos a arte
José Gomes da literatura, livre e sem constrangimentos, amarras
ou prisões. O uso estético da escrita, seja em
Autores: versos, em prosas corridas ou em sua modalidade mais
Kananda Gomes gráfica, como em cartuns ou quadrinhos. Liberdade,
Lucas Eugênio por sua vez, pressupõe aceitação da diversidade:
Pablo Gomes eruditos e populares, caminhando juntos, sem
Guto Domingues exclusão; consagrados e iniciantes, de mãos dadas;
Luís Alladin pobres e ricos; mulheres, homens e todas as
Laís Correia identidades de gênero entre eles, à sua volta ou
Leandro Costa transversais; estrangeiros e nacionais; indígenas,
Natalya Dias negros, pardos, asiáticos, brancos… acima de
Daniel Cosme quaisquer diferenças entre os indivíduos, a
R. Lorry literatura, a arte, a experiência estética! Isso,
Natália de Oliveira Souza sim, é o que importa. Isso não nos exime da
responsabilidade: diferenças são bem-vindas, desi-
Douglas Noleto
gualdades, não! Nossa linha editorial prima pela
Wellington Duarte (Eros)
responsabilidade! E é nesse espírito que nós
convidamos você a folhear nossa revista, esta edição
ISSN: inicial, festiva e comemorativa. Esperamos que você
PENDENTE DE DEFINIÇÃO goste tanto quanto gostamos de fazê-la! Boas-vindas!
(após publicação da segunda
edição, conforme normas vi-
gentes, a numeração deverá Pablo Gomes
ser válida retroativamente às
primeiras edições registra-
das)

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Literatura Errante 3
SUMÁRIO
Contos:
O Conto de Maquena (Kananda Gomes)... 7
Dama das Dunas (Lucas Eugênio)....... 15
Despedida (Pablo Gomes).............. 21
Tráfico de Palavras (Luis Alladin)... 25

Poemas:
Mulher-lua (Laís Correia)............ 28
Falena (Leandro Costa)............... 29
Sobre Lonjura (Lis Tine)............. 30
Soneto Revelado (Daniel Cosme)....... 32
Verso Errante (Pablo Gomes).......... 32

Perfil:
Perfil Escritores: Laurentino Gomes (R. Lorry) 34

Teoria Literária:
Prefácio, Prólogo, Epílogo e Pósfácio (R. Lorry) 37

Opinião:
Minhas impressões sobre a escrita (Guto Domingues) 38

Notícia:
AFRO-HORROR: Antologia de contos finan-
ciada coletivamente será lançada..... 40

Folhetim:
SÉRIE ANTEROS - Caso Inicial......... 42
SÉRIE ANTEROS: Espectro Negro........ 44
A Aldeia dos Magos Escondidos I...... 48
A Aldeia dos Magos Escondidos II..... 52

Conto - Até que a Morte nos Separe - parte I 56


Conto - Até que a Morte nos Separe - parte II 60
Entrevista:
ENTREVISTA: Doug Noleto.............. 64

Cartum:
Trocas............................... 68
2020 cancelado....................... 68
Guru................................. 69

4 Literatura Errante
Literatura Errante 5
Conto

O Conto de Maquena
por Kananda Gomes

Maquena nunca viu. O verbo ver não fazia existência.


parte de sua vida, assim como para outros
alguns verbos não são aplicáveis e assim Desejos podem se tornar realidade? Sim,
como para qualquer um esse tal verbo claro que isso podia acontecer. Maquena
desconhecido é estranhamente desejado. acreditava que poderiam acontecer, que
Maquena não conseguia caber em si, achava sonhos eram coisas maravilhosas e nem um
até que era uma peça de jogo infantil, mal poderia se juntar ao mundo onírico.
movida por um bebê que ainda estava Maquena não contava com a estranheza da
aprendendo a arte de dominar a vida, que existem outras milhares de
coordenação motora. Ela se considerava coisas que acompanhavam a realização de
semelhante a um retângulo tentando ser seu sonho. Ela não fazia ideia do
encaixado em uma forma triangular, ela significado do tudo, porém desejava assim
achava que o bebê nunca aprenderia a mesmo. Pode-se dizer que ela se
colocá-la na forma certa. Todos que arrependeria de esquecer da palavra
realmente a conheciam, ou em partes consequência. Algo que não precisa ter o
significativas, amavam-na. Diziam que ela verbo ver presente, para saber que se faz
poderia fazer qualquer coisa, ser quem algo outra coisa é retribuída. Porém, ela
quisesse, mas Maquena só queria que o também não fazia questão de refletir.
verbo ver fizesse sentido e jus a sua Assim como qualquer outro animal e coisa,

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a palavra reflexão não faz sentido. E é te darei a chance de enxergar não só o que
aí que Maquena, eu e você nos perdemos. está ao seu redor, como também tudo que
ninguém conhece, tudo o que qualquer
Não há problemas em sonhar e tentar outro animal não viu, coisas julgadas
realizar seus sonhos, o problema está em boas e ruins, acontecimentos que só eu, a
como irá fazer isso. O caminho tem mais a terra e o céu podemos ver e ainda viver
oferecer do que o destino, e aí Maquena pensando no rumo tudo tomou. Mas, ao
errou de novo. O desejo dela foi ouvido, final de tudo, você pode escolher
atendido e realizado, ela viu o que enxergar para sempre ou não. Porém, caso
realmente significa tudo. Se ela ficou você queira ver o tudo pelo resto da sua
feliz? Não, mas nós nunca estamos vida, saiba que nunca esquecerá nada que
felizes. viu aqui, nem a sensação que teve ao ver
cada um dos acontecimentos. Tudo te
Antes de dormir Maquena desejou com mais atormentará tanto que você não aguentará
vontade do que qualquer outro dia, ela e poderá sucumbir. Terá pesadelos, culpa,
suplicava poder ver tudo, tudo, tudo. sentirá o peso do mundo em suas costas,
Depois de fazer seu pedido Maquena ouviu será como Atlas e ainda sentirá todas as
um assovio vindo do seu lado esquerdo. dores dos outros. Está avisada, Maquena.
Era o Bom Vento das Memórias, um ser de Agora, antes que vejamos, algo quero
origem desconhecida, de forma muito menos saber sua escolha.
sabida, que realizava os sonhos dos
curiosos, apesar de não fazer isso da Maquena pensou que não aguentaria não
forma mais segura e confiante, contudo, ver e pensou mais ainda até que chegou à
Maquena e os outros que esse ser "ajudou" conclusão: seu desespero para saber algo
não faziam a menor ideia das que realmente nem conhecia tomou conta de
consequências. Como eu disse antes, sua cabeça e de seu corpo, pois,
esquecemos da importância de refletir automaticamente, se esqueceu das
sobre essa palavra, não só sobre essa negatividades que o Bom Vento das
como sobre muitas outras, usamos palavras Memorias disse. Jogou seus pensamentos
como enfeites e armas. para outro lugar e falou que queria ver
absolutamente tudo e, no momento em que o
Bom Vento das Memórias contou a Maquena Bom Vento das Memória dava a visão para
que ele já viu tudo, que era ela, ele pegava sua alma. Soprando a face
absolutamente magnifico e sabia o quanto e dando-lhe a ilusão, enquanto
ela desejava ver tudo, ela perguntou se tempestades invadiam a mente de Maquena,
poderia saber onde poderia olhar tudo e o sem sua percepção, as brisas do mundo
Bom Vento das Memórias pegou em sua mão e pediam licença para estar em o Bom Vento
a levou. Maquena por um momento das Memórias.
questionou a si sobre a própria segurança
e não aguentando mais perguntou como Depois que Maquena aceitou a proposta,
poderia confiar no ser. Bom Vento das o Bom Vento das Memórias a levou para o
Memórias respondeu que ela não podia, que Túnel do Mundo, o lugar onde a memória da
não se confia no ver e muito menos no terra é guardada durante toda sua
tudo. existência e, estando lá, é capaz de ver
tudo, mas isso não significa ver o que
— Bom Maquena, eu levarei você para ver, realmente está ali ou ver o que quer, quem

8 Literatura Errante
entrar ali verá tudo puramente. morrendo, quando percebera o surgimento
de uma bola flamejante. Depois ouviu
O Bom Vento das Memorias perguntou se barulhos, tremores, a água do mar, que
Maquena estava pronta, e ela respondeu antes era calma, agora estava enfurecida,
que esperou por isso toda sua vida. Então e como quem tragicamente acaba de acordar
a luz se fez. do melhor sono, ela se revoltou e começou
a devorar tudo.
Maquena começou a sentir seus olhos
queimando e depois ficarem embaçados com Ouviu-se gritos, filhotes de di-
as lágrimas. Olhou-se no reflexo da água nossauros estavam nascendo foram
de um lago, apaixonou-se por si e disse engolidos pelas águas e pela terra,
que sabia agora o quanto era linda, deviam ter pensado que se a vida era assim
porém, se o Bom Vento das Memórias não preferiam não ter nascido. As plantas
tivesse a puxado, ela teria morrido morriam e folhas voavam sem nunca cair.
afogada na sua ilusão de beleza. Maquena sentia a agonia da folha, ela
entendia o que era voar e voar sem nunca
A partir dali tudo ficou muito rápido, saber quando iria cair, até não esperar
não como um piscar de olhos, contudo era mais e acabar caindo. Agora um tronco
agonizante estar dentro do Túnel do acertou alguns bebês dinossauros e tudo
Mundo. Era como estar no cérebro da ficou um breu, como se a Terra tivesse
Terra, vendo suas memórias. Podia ser sido engolida por um gigante monstruoso,
comparado a ler a mente alheia, mas as um das sinuosas cavernas escaldantes do
pessoas não são capazes de esconder Sudoeste, e assim virara banquete do
tantos segredos quanto a Terra. Esse ébano.
pensamento fez Maquena se sentir
privilegiada e única, como nunca havia se Maquena ficou aliviada em reconhecer o
sentido em sua vida. Não posso dizer que escuro, ela mal conseguia se aguentar em
no lugar dela eu não me sentiria assim, pé, um dinossauro bebê morreu ao seu
afinal ela estava vendo tudo. O Bom Vento lado. As plantas tão vívidas começaram a
das Memórias a puxou e seguiu o passeio sucumbir tão rapidamente e os olhos de
mais tortuoso ao qual Maquena já foi Maquena arderam. Ela não queria mais ver
obrigada a ir, ganhando de lavada do dia aquilo, porque tudo parecia muito ruim.
na casa da inconveniente tia Camélia e do Ela passou a cogitar uma fuga, porém
boçal tio Teixeira, de acordo com a sabia que não podia sair. Tinha feito um
disputa mental que ela fez ao longo do acordo e agora teria que ficar até o fim.
caminho, para se distrair enquanto estava Ela disse vacilante um “sim” quando o Bom
cansada de ver tudo. Estava decepcionada Vento das Memórias perguntou se ela já
com essa palavra e consigo. estava bem para prosseguir.

Ela viu a Terra vazia, de longe via Gaia Lá se foram.


e Urano em um beijo longo e
esplendidamente agoniante no que chamamos Viu pás cavando a terra tanto para o
de horizonte, mas Maquena não sabia o que nascimento quanto para a morte. Do lugar
era aquilo então parecia meio assustador, onde nascia o que se usava para
porém, tinha noção que não devia ter medo fortalecer, se enterrava e junto se
e tentou aproveitar a viagem. Foi aí que enfraquecia. Viu vestidos roçando em
viu os dinossauros nascendo, caçando e tapetes longos e vermelhos, ao mesmo

Literatura Errante 9
tempo em que via outros vestidos roçando natureza dizia para ser, quando sua falsa
em vômito e sangue, este de vermelho tão ilusão chegou caiu em si, arrependeu-se,
morto quanto o vívido tapete rubro. Viu o deu conta que era um animal selvagem
dourado do ouro banhando o rico, o descontrolado. Percebia sem acontecer que
dourado da areia banhando o pobre. O seu corpo se moldava a sua selvageria
dourado do ouro em barra sob a cabeça do renegada e se levantou, vestiu seu
pobre e o dourado da areia erguido sob a paletó, lavou suas mãos, comprou colares
cabeça do rico. Viu o lençol branco se de pérolas e injetou suas palavras nas
manchar do vermelho do morto e da veias da sua presa, fez com que ela
humilhada, isso durante toda a existência sentisse culpa, a presa fora da sua
do ser humano. cadeia alimentar agora chorava e pela
porta fora de seu habitat saia e seguia
— Animal terrível! — Praguejou o Bom seu nicho ecológico. Maquena ouvia mais
Vento das Memórias, enquanto Maquena gritos e via as expressões, sim ela quis
concordava. ver tudo, agora via além do que
aguentava. Viu pessoas fracas em filas,
Ouviu choros de bebês, uns nasciam com fracas em aparência, por dentro via
um grande teto pintado com anjos em um resistência.
palácio, outros nasciam na palha, uns
nasciam na choupana, outros no iglu, Alguns eram forçados a andar vestidos
alguns em ocas, outros na palafita, sob iguais, com o silêncio na voz e uma
madeira e blocos todos foram sustentados, tempestade na cabeça. Do lado, rostos
alguns na forma bruta, outros entalhados fardados com patentes gritavam num idioma
e banhados. Uns nasceram com os membros estridente, sentiam as armas nas mãos e
do corpo e da família, outros teria com vontade matavam essa gente. Viu
membros que faltavam. Embora no começo pessoas marchando porque queriam,
não percebessem, logo o futuro os precisavam e clamavam por igualdade,
cobraria. Outros nasciam na grama, no liberdade e fraternidade. Todo esse povo
berço, na lama, no paralelepípedo, ou nas em diversos lugares, idiomas, rostos e
calçadas, mas todos nasciam da terra. histórias, gritavam querendo coisas em
comum, tinham roupas diferentes e Maquena
—Ninguém jamais agradeceu a terra. — pensou que tudo ali era em épocas
Disse Bom Vento das Memórias. — Criaturas distintas. Entristeceu-se de ver que
ingratas. — Esbravejou ele. lutavam ainda pelas mesmas coisas.
Desejava explodir o mundo e começar
Maquena pensou que não se podia outro, ou talvez não começar nenhum,
agradecer quando não se sabe como ou a Maquena pensou que a segunda opção seria
quem. Chegou à conclusão que esperamos a melhor.
demais os sinais que queremos, mas
deixamos passar os que estão bem em nossa Ela viu velhos e novos barcos jogando
frente. seus iguais no chão como se fossem papel
ou um jarro, enquanto pratos eram
Maquena ouviu gritos, alguém foi quebrados, tiros eram dados e corpos
espancado. Em seu corpo havia todas as caiam. Maquena viu o silêncio, viu
cores, não sabia porque apanhava ou quem pessoas dançando na rua rindo e
batia, nem mais pensava, só agia como sua comemorando, viu crianças dando seus

10 Literatura Errante
primeiros passos na grama molhada, no festas, várias contagens e promessas para
piso polido, nas pedras de um prédio um ano novo. Lareiras esquentando quatro
destruído, no barco usado para fugir, na e fósforos esperançando quatrocentos. Viu
fila para entrar em outro país. Apenas as pessoas se formando, realizando e
crianças brincavam. Mães seguravam seus fracassando, tentando e desistindo,
bebês enquanto eles choravam, enquanto esquecendo e conseguindo. Ela estava
elas choravam, enquanto ganhavam um belo cogitando um novo acordo com o Bom Vento
presente de natal, enquanto reuniam a das Memórias, queria voltar a não ver
família, enquanto uma bomba atingia sua tudo e nem lembrar de ter visto tudo, mas
cidade, ainda seguravam seus bebês, com queria ao menos poder ver sua família.
cabeças e sem cabeças. Antes que ela dissesse isso em voz alta,
o Bom Vento das Memórias a puxou para uma
Maquena viu pessoas atirando com porta a esquerda e era ali que a terra
lasers, festim, plástico, palavras, guardava as memórias sobre a vida de
pedras, pipocas, comidas, confetes, Maquena.
pólvora, urânio, chumbo. Maquena viu a
natureza, viu lagos, cachoeiras, oceanos, — Posso saber o que você pensa Maquena
rios, geleiras, geadas, nevascas, e vou te mostrar como é o mundo a sua
enchentes, tsunamis viu a água de volta. Como não é diferente de muitos do
diversas maneiras, tanto cristalinas, que viu, afinal viu quase tudo.
quanto salobras, viu as claras sendo
usadas para lavar as mãos no jantar de Como Maquena não viu tudo? O Bom Vento
gala, e as escuras usadas na sopa para as das Memórias sabe a dimensão e o impacto
crianças lá de baixo comerem. Ela viu o do tudo, coisa que eu, você e Maquena nem
amor de diferentes maneiras. Viu as podemos mensurar, foge de nossa
pessoas sendo interpretes de suas vidas, capacidade. O Bom Vento das Memórias
mas sem conhecimento algum de como a sabia que devia mostrar as coisas mais
atuação estava prejudicando suas importantes, mentia com frequência, mas
carreiras como viventes. Viu pessoas era um bom ser, faz jus a seu nome. Alguns
agindo como donos dos que diziam amar, seres são nomeados de acordo com alguma
viu amores e amizades proibidas, viu característica marcante de sua
sempre a palavra matar. Viu assassinatos, personalidade, era o caso desse.
pessoas presas injustamente, viu outras
abusando do anel que conseguiram roubar, Maquena se viu, pela primeira vez viu a
viu gotas da pia caindo no chão, viu casa onde morava, viu-se bebê, viu seus
chaves encostadas nos cantos das mesas, pais fazendo sons para ajudá-la, viu-se
viu camas separadas, viu pessoas brincando com amigos e primos, viu-se
escrevendo histórias terríveis e belas. dando passos, viu-se sendo amada, sendo
Viu pessoas no alto e avante, viu humilhada por estranhos e descontando em
momentos de agonia constante, que quem a queria bem. Viu a pior briga que
pareciam filmes e às vezes eram. teve com a mãe, viu agora que a fez chorar
e se sentir incapaz, percebeu que fizera
Maquena viu criaturas que já foram com a mãe o que faziam com ela. Agora
extintas, pôr e nascer do sol, tapetes de Maquena pode ver que assim como ela sua
flores, lixos voadores, ícones da modas, mãe também não via, depois ela viu todo
jovens nas drogas, cabeças e punhos nas esforço que a mãe fez para cuidar dela e
paredes, antes e após fotos e fatos, como todos diziam que ela era incapaz,

Literatura Errante 11
Maquena já havia chamado a mãe de não queria ver mais nada, que tudo era
incapaz, não pelo mesmo motivo, mas muita coisa e preferia não lembrar disso.
jogara sal na ferida aberta daquela que Assim se fez, Maquena voltou para seu
mais a amava e a entendia. Como a mãe quarto com um resquício de visão, pode
deixou de dizer que não via tudo? O Bom ver o lugar onde dormia, a paisagem da sua
Vento das Memórias disse que a mãe tinha janela, quebrou o espelho no qual fingia
medo que Maquena sentisse vergonha dela, se ver, se deitou lembrando de tudo o que
já que desde pequena Maquena falava que tinha visto e disse que nunca mais
não conseguia ver tudo e por isso se desejaria isso. Chorou. Foi ver seus pais
sentia incapaz, dizia que odiava viver e deitou com eles, abraçou os dois.
consigo por não ver tudo. Nessa hora Desistiu de não se aceitar ficou
Maquena chorou muito, o Bom Vento das arrependida do que fez e, daquele dia em
Memórias colocou um espelho na frente diante, ela mudou.
dela, mandou que olhasse e disse que se
ela quisesse ver tudo bastava olhar para Fez isso porque percebeu o quanto tudo
si e enxergaria tudo que precisasse para pode ser impossível de ser visto, pode
sempre, porém veria e sentiria as ser cruel, pode ser mentira demais, pode
consequências e sensações. ser verdade demais, pode não existir,
pode ser uma ilusão, pode ser Fata Mor-
Sem olhar, Maquena devolveu o espelho gana.
para o Bom Vento das Memórias e disse que

Sobre a Autora:
Autora baiana, Kananda
Gomes começou a escrever
quando criança e não
parou mais. Além de
escritora também é
estudante de Museologia
na UFBA e criadora da
página no Instagram
@eu.e.minhas.ironias onde
compartilha diversos
textos com seus
seguidores leitores.

12 Literatura Errante
Literatura Errante 13
Conto

Dama das Dunas


por Lucas Eugênio

Ela era areia... Ela era o tempo, ela Todos os irmãos de Danúbia também a
era o vento. Uma deusa perdida em sua odiavam, com exceção de uma. A única que
humanidade, uma vagante do deserto. lhe amara fora a irmã bastarda, Anle. Mas
Lamentosa e entristecida era a sua a morte levara Anle de Danúbia, e assim
alma... Em seu misterioso rosto, via-se ela perdera a única criatura viva que se
uma expressão de profunda aflição. Ela importava consigo. Todos a viam como um
era um ser errante, sabia disso. Os monstro, porque nela havia a marca de um
outros a amaldiçoavam, os homens e os velho mal, um velho deus, o deus caído,
mais-que-homens, aos olhos daquele mundo sua marca era um símbolo negro que
ela seria sempre uma alma penada, significava “morte”. Desde o momento em
desgraçada e rejeitada aonde quer que que nascera, Danúbia possuíra este
fosse. Sua mãe a amara, mas seu pai a símbolo e ao longo de sua vida ele
odiara desde o momento de seu nascimento, crescera, tomando partes maiores de seu
porque a sua concepção havia tirado a rosto. Era uma sombra em sua testa, que
mulher que lhe dera à luz daquele mundo. descia através do nariz e se espalhava
Entre lágrimas e um sorriso cansado foi para os olhos, cujos orbes tratavam-se de
que a mãe se silenciou, e a fúria verdadeiras gemas douradas, uma coisa de
aquietada de seu homem, do pai, acendeu- beleza sobrenatural. Na soma de todos os
se ali detalhes, era Danúbia uma criatura

Literatura Errante 15
assustadora, mas incrivelmente bela. Com chorar mais. Acontecia que entendera de
o tempo, surgiram coisas em seu corpo, todo entendimento, muito bem, a miséria
riscos escuros e desenhos sem significado que vivia. Não havia amor em sua vida,
algum. Ela era uma filha do deus caído, apenas rancor e temor. Foi então, que
diziam os sacerdotes desde sua infância, tomada por grande angústia, Danúbia
e coisa boa isso não poderia ser. Decerto decidiu ir-se embora. Levantou-se numa
havia ruínas no sentido daquela vida. bela noite de sua cama, a lua cheia
brilhava no céu e as estrelas povoavam a
Certa vez, um de seus irmãos lhe imensidão azul sobre o deserto. Danúbia
dissera: caminhou para fora de seu quarto, depois
caminhou para fora de sua cidade e então,
— Você cheira a desgraça... continuou o seu caminho. Alguns
sacerdotes haviam observado sua fuga e
Danúbia chorou por conta disso e, na muito contentes deram graças aos deuses.
calada da noite, sua fúria galgou as Um deles disse:
escadas de sua mente. Ela desejou
vingança, sim. Sonhou com o irmão, no — Aí vai a filha da desgraça, que pereça
sonho ela era poderosa e controlava um nas sombras e não volte mais!
mar de serpentes. Danúbia fez com que as
serpentes cercassem o irmão, sufocando-o Danúbia sabia que eles haviam a
num amontoado de figuras obscuras. Pela observado e deduzira que haviam sentido
manhã, ela descobrira que uma serpente grande apreço pela sua partida. De fato,
negra havia assassinado seu irmão, ela sabia que estava certa.
enforcando-o. Danúbia não disse nada
sobre o sonho para ninguém, mas sabia que Caminhara pelo deserto por dias e por
havia sido ela a verdadeira assassina do noites. Sem se alimentar, sem beber nada.
irmão. Estava apenas caminhando para a morte,
esperando que ela a convidasse para
Nenhuma criança se aproximava dela, descansar o descanso eterno mais cedo ou
nenhum membro da família desejava sua mais tarde. Talvez encontrasse sua mãe...
presença. Antes, todos a odiavam, mas “Será que ela me odeia?”, se perguntou e
também temiam. Temiam que a misteriosa algo em si fez Danúbia ter uma certeza
manta de poder obscuro que envolvia a sobrenatural de que não, sua mãe não lhe
garota, pudesse destinar garras odiava.
traiçoeiras contra eles. Os anciões lhes
diziam para que não fizessem mal algum a Agora, Danúbia se encontrava no meio de
Danúbia, caso contrário, um grande uma tempestade de areia.
infortúnio poderia cair sobre o povo. Só
os deuses saberiam o que uma criatura Ela era uma das faces da morte, em seu
como ela poderia se tornar caso a morte rosto havia a insígnia do fim. Ela era a
lhe inspirasse grande revolta. Eles areia, ela era o vento, ela era o tempo.
temiam pelo pior e, como tementes, tudo E estava entre as dunas.
o que faziam era confinar Danúbia em sua
amarga solidão. A tempestade de areia era bela, Danúbia
pensava. Mesmo em tamanho caos havia
Quando se tornou uma moça passara a alguma poesia.

16 Literatura Errante
Ela encontrou uma caverna e então se
abrigou nela. sua alma, se apossou dele e fez os vivos
que ali haviam berrarem aos deuses
Sentou-se lá e apenas abaixou a cabeça pedindo por salvação. A vida fora tirada
em silêncio, a morte logo viria lhe deles assim como eles haviam tirado a
buscar. “Por que?” era a pergunta que se vida de Danúbia, que agora não era mais
fazia. Por que havia nascido, por que uma mulher, mas uma criatura. Uma coisa
havia sido amaldiçoada? Seria ela uma abominável.
existência maldita tal como era o deus
caído? Diziam todos que era ele o seu A fúria da criatura havia tomado quase
verdadeiro pai. Seria isso verdade? Perto todo o deserto e seu povo, restavam
de sua morte, Danúbia agora estava apenas alguns lugares em preservação. O
sentindo ódio. Um ódio que ela jamais pesadelo estava prestes a tocar a cidade
sentira, um ódio que havia se acumulado de Barnabá, mas então, algo o fez conter
durante anos. Ela berrava de fúria agora, seu movimento. Era uma sensação estranha
ela desejava ser uma desgraça verdadeira para a criatura, mas familiar para
agora, apenas para sangrar aquele mundo Danúbia. Ela sabia o que era aquilo...
maldito. uma coisa quente, mas não para queimar.
Uma coisa forte, mas não bruta. Uma coisa
Os olhos de Danúbia se enegreceram, bela, mas não vaidosa. Uma coisa grande,
conservando apenas as gemas douradas no mas não assustadora. Ao menos era como
centro. As marcas em seu corpo começaram Danúbia sentia a coisa...
a ganhar vida, ligando-se umas às outras
e então, Danúbia foi inteiramente coberta Isso era, isso era...
pelo escuro e apenas seus olhos brilhavam
amarelos. Isso era amor?

A criatura se levantou, caminhando de Ela podia sentir, vinha de Barnabá.


volta para a tormenta de areia. Abriu os Então, encontrando os restos de sua
braços e se misturou. De seu corpo consciência, ela viu-se guiada até um
começaram a sair areias negras, estas se lar. Ali vivia uma família, todos estavam
misturavam a areia comum. Então a areia juntos, dizendo palavras para o deus
negra apossou-se da areia comum, e logo Marza, um deus diferente dos outros
nascera uma colossal nuvem obscura, que deuses. Ele era oriundo de uma terra
se fundira na tempestade de areia, distante, Danúbia o conhecera por conta
transformando-a em uma tormenta sombria. de Anle. Por alguma razão, aquela oração
Era o caos negro, uma montanha das trevas havia chegado até o coração de Danúbia.
em furiosa corrida. Foi então que ela viu uma garota entre os
braços do homem e da mulher, nela havia
A criatura que antes fora Danúbia, a marca do deus caído.
desabrochou no meio da monstruosidade,
tornando-se uma com a tempestade. Dois E Danúbia podia ver... sua irmã
pequenos sóis dourados surgiram em meio bastarda. Anle estava atrás da família,
a escuridão, eram os olhos dela. Então, abraçando-os. Eles não sabiam disso, mas
a desgraça tomou o deserto, devorando a ela estava ali. Havia também outras duas
vida nele. A montanha negra, a tempestade pessoas, uma mulher sorridente e um homem
obscura, tomou a direção do antigo lar de de cabelos vermelhos. Eles também não

Literatura Errante 17
eram vistos pela família, mas Danúbia garota dizer para ela:
podia enxerga-los. A mulher era sua mãe,
de alguma maneira Danúbia sabia. E o — Vai ficar tudo bem... querida.
homem, ele era Marza, Danúbia estava em
lágrimas, porque havia entendido o E Danúbia aceitou sua rendição.
recado. Não havia desafeto entre aquela
família, mesmo que a criança carregasse A criatura, a desgraça obscura, morreu
a marca do deus caído, eles claramente a naquele instante. A tempestade de areia
amavam. Danúbia pôs os olhos na negra se dispersou, transfigurando-se em
criança... uma borboleta fantasma cruzou um mar de borboletas brancas. Aos que
seu caminho. olhavam de Barnabá, a visão mostrava uma
montanha branca em constante movimento.
A borboleta era branca, feita de luz.
Ela pousou no peito de Danúbia e ali Era belo.
ficou. Então, Danúbia ouviu a mãe da

Sobre o Autor:

Lucas Henrique da
Silva Paiva, que
assina
artisticamente como
Lucas Eugênio em
homenagem ao avô, é
apaixonado por
fantasia e ama criar
estórias!

18 Literatura Errante
Literatura Errante 19
20 Literatura Errante
Conto

Despedida
por Pablo Gomes

Ele desligou o carro, retirou a chave da Fez a volta no carro e abriu o


ignição e, após uma breve pausa, a colo- compartimento traseiro. Já estava cheio,
cou de volta. Saiu. Não precisava mais se mas, era preciso achar mais espaço.
preocupar que alguém levasse o carro. Quem Lembrou-se da esposa, mais cedo,
o faria? Olhou em volta e apreciou a lamentando ter um carro popular, pequeno.
beleza da desolada paisagem. A escuridão E da sua resposta, lembrando que pelo
da noite se aproximava aos poucos, entre menos possuíam um carro. Muitos tiveram
os prédios no horizonte oriental, mas, que partir com o que conseguissem carregar
diferente de todos os dias, as luzes das em mochilas e nas mãos.
janelas não acendiam.
Mas, a quem queria enganar? Aonde iriam?
Nas ruas, nenhuma viv'alma. Nos Ninguém sabia! Logo, o tanque cheio de
estacionamentos um carro ou outro sobrava combustível estaria vazio, e não havia
perdido. Os demais seguiram com seus mais onde abastecer. O que fariam?
respectivos donos. Naturalmente, pegariam o que coubesse nas
mochilas e nas mãos, como todo mundo.
Era difícil de entender como se chegou
àquele ponto. O que houve? O que poderia Entrou em casa.
ter sido feito para evitar. Não sabia.

Literatura Errante 21
Tantas memórias, tantos objetos a muito
custo comprados… tudo ficaria para trás. aquele atropelar de acontecimentos,
Não caberiam no carro, nem nas mochilas, aquela difusão de pessoas partindo em
nem nas mãos. Ficaria tudo para trás. desordem e caos. Havia sido como um
Suas medalhas, conquistadas na juventude, melancólico fim de festa, quando ninguém
as lembrancinhas feitas por seus filhos mais vê sentido em ficar. Todos sabiam
na escola, no dia dos pais… permaneceria que era insustentável. Inclusive ele! Por
tudo exposto em sua casa, como num museu que ele resistira tanto a partir?
sem visitantes.
Matutava essas e outras questões,
Era preciso pegar alimentos. Foi para a incapaz de encontrar respostas. Parecia
cozinha. A dispensa não tinha muitas agora óbvio que o desfecho seria aquele.
alternativas, então pegou o que lá havia. Tudo parecia muito natural, naquele
Não havia mais mercado para abastecer. momento. Mas, não antes. Um dia antes,
ele parecia encontrar esperanças de que
Tentava recapitular o que acontecera. tudo se resolveria. Três dias antes, ele
Foi tudo muito rápido. Não teve aquele não apostaria que as pessoas deixariam
desespero de fim de mundo. Não houve tudo para trás. Uma semana antes, ele

22 Literatura Errante
jamais acreditaria se dissessem que algo Recolheu os alimentos, novamente. Levou
assim um dia aconteceria. para o carro, e reorganizou tudo o que
estava lá dentro. Não caberia mais uma
Olhou para o violão, e largou todos os lâmina de barbear dentro do veículo, sem
alimentos de lado. Tinha que levar o provocar um transbordamento. E ainda
violão. Talvez, aquele objeto fosse tinha de caber sua esposa e os dois
aquela coisinha capaz de livrá-lo da filhos, de algum modo espremidos lá
loucura. Mas, por quanto tempo? As cordas dentro. Será que os encontraria?
velhas, que ele tanto postergara trocar,
não durariam muito. E não. Ele não O céu estava escuro, agora. Nada fora
conseguia encaixar o violão e o alimento do normal com a iluminação pública. Um
no carro. Que sandice! Precisava voltar poste com problemas, piscando; outro ali
a si. Largou o violão. e mais um acolá com a lâmpada queimada.
Mas, nenhuma casa ostentava lâmpadas
O que justificaria as grandes acesas. Só a sua.
metrópoles virarem verdadeiras cidades
fantasma? Ninguém nas ruas outrora tão
movimentadas.

Desolador.

Solitário.

Tomado de uma angústia profunda, entrou


no carro, girou a chave, acendeu os
faróis e deu partida. É agora ou nunca!

Como a todos ocorrera, também seu tempo


ali já era. Partiu.

Sobre o Autor:
Pernambucano nas-
cido em Caruaru e
radicado no Recife,
o poeta, contista,
cronista, romancista
e aventureiro Pablo
Gomes é também ator,
além de criador e
editor do Literatura
Errante.

Literatura Errante 23
Conto

Tráfico de Palavras
por Luis Alladin

A manchete no jornal dizia assim: “Na filho dentro de casa usando papel. Aí é
mão uma arma. Com o tambor do revólver aquele negócio, usam a primeira vez,
lotado de munição, doido pra disparar e acham legal e, depois da segunda meu
para encher a cabeça de alguém com seus amigo, não param mais! Começam a
contos. Seus olhos estavam regalados, frequentar saraus, a se reunir em praças,
pelo jeito estava sob o efeito de vão passando palavras um pro outro. Isso
entorpecentes, devia ter cheirado João não tem cura! Não há clinica de
Cabral, bebido Manoel bandeira, ou até reabilitação que resolva, é disso para
mesmo o pior, injetado nas veias Machado pior!
de Assis.”
Entrar nesse mundo é perder a vida, vê
— Vai lá saber! Esse mundo de o filho da Tereza! O menino educado, só
literatura é assim mesmo! Os traficantes vivia na igreja. Conheceu um tal de
ficam ali rondando as praças, como se não Sérgio Vaz e perdeu-se nesse mundo, faz
quisesse nada e aí soltam à primeira bem um mês que ninguém vê falar mais dele,
poesia. O garoto vê aquilo, começa já dizem por aí que ele publicou um livro.
achando estranho, nisso o poeta vai se Deve estar em alguma esquina dessas
chegando, mostrando outra poesia e, vendendo e cheirando poesia. Mas é bom
quando você nem imagina, está lá seu ele longe mesmo, Deus que me livre! Se ele

Literatura Errante 25
aparecer por aqui eu chamo a polícia, não casa. Olha fico me tremendo todo só de
vou arriscar ter ele por aqui não! Vai ouvir isso! Que crueldade é essa minha
que ele leva um filho meu pra essa vida gente! Você mesmo induzir o seu filho a
de crime. Se for preciso eu mato, enfio se drogar. Desse tipo de gente quero é
a faca! Viro o cão! Mas filho meu não! distancia, distância de mim e do meu
Ele não vai entrar nessa de ser poeta filho! Nem quero ver esse tipo de gente
não! na minha porta, quer usar use, mas não na
frente dos filhos dos outros. Mas deixa!
Esse aí, que passou no jornal, graças a A vida é deles, estraguem como quiserem!
Deus foi preso. Tenho certeza ele não ia Só não venham querer influenciar meus
fazer o bem não! Imagina ele entrando nas filhos, que se isso acontecer aí o bicho
escolas, disparando contos por todo lado, vai pegar pro lado desse povo.
esfaqueando versos, envenenando verbos na
merenda da escola, induzindo a metáforas Gosto nem de pensar em um filho meu
nas portas do colégio. Vige nossa metido nessa coisa de poesia e, se tiver,
senhora! Ainda bem que esse aí não vai eu expulso de casa! Quero nem ver essas
fazer mal pra ninguém mais não! coisas lá em casa, de saber que tem gente
batendo na porta pedindo um pouco mais de
Eu só tenho é pena da mãe dele, com um palavras. Lá em casa não! Lá não é
filho viciado desse, mas pode ser que até biblioteca, lá dentro não vai ser centro
ela seja uma viciada. Eu vi uma notícia pra traficante vender suas métricas! Lá
falando que, 60% dos casos de viciados em é casa de gente honesta, trabalhadora,
literatura, se viciam por causa dos pais, não é lugar pra essa besteira de poesia.
diziam que até bibliotecas eles tinham em

Sobre o Autor:
Pernambucano, ator, pro-
dutor cultural e escritor.
Escreve versos desde a in-
fância, mas entrou de ca-
beça na literatura quando
começou a frequentar os
saraus. Hoje ele se dedica a
escrever seus textos e a
produzir eventos culturais
na região, preservando
espaços de cultura de
resistência.

26 Literatura Errante
Poesia

Mulher-lua
por Laís Correia

Sou noturna, mulher-lua, filha do oriente


Nasci em outubro, ao findar de um poente
Fiz na areia o meu sanctum celestial,
Cristal violeta posto num pedestal
Sou praia à noite, luz azul, lua cheia
Sou praia à tarde, céu lilás e lua vermelha
Às vezes cigana, às vezes índia, uma vez sereia
Carrego raízes de mulheres fortes
Um sussurro me diz sobre o amanhã
Não temo tempestades, sou moça e anciã
Notívaga, vagante pela madrugada
Meus olhos-esmeraldas são janelas
Que se abrem para a estrada
Sou noturna, mulher-lua, filha do oriente
Sou praia à noite, luz azul, lua cheia
Sou um corpo no mundo
Uma estrela que nasce
Uma aurora
Um grão de areia
28 Literatura Errante
Poesia

Falena
por Leandro Costa

Sim ela vem!


Vem sobre o trovão,
Ela vem!
Na aljava traz seus raios, Seu canto altivo ouvi
Ela vem! Porque canta dentro de mim
As dores amargas da bílis
Seu vestido de viúva: Nas cordas de uma guitarra
é de nuvens.
Seus adornos e seus brincos: O seu caminhar inaudível
telúricos. Com um não passar se parece
Vem chorar sua tristeza E a dura demora que imprime
sobre mim. O faz pela mão do devir

Procela de lágrimas acres, Quem me vê com ela a cismar


Do fado do vale é a voz Dirá que padeço, nas trevas,
Que varre da vida o viço De uma minguante doença
Qual silencioso algoz Que me desfigura o rosto.

Nem deusa, nem anjo o é Aguardo, porém outra forma,


De Eva é filha que chora Um outro, de mim, nascerá
Comigo uma grande saudade, No Reino do Sol que trará,
Do Éden de onde saiu. As chaves de outros jardins.

Então ela irá para sempre,


Com a velha forma de outrora,
Morar no sem fim do sem fim.

Literatura Errante 29
Poesia

Sobre Lonjura
por Lis Tine

Sobre esse tema Desse dia até atualmente


É fácil um poema Completaram-se quase dez anos
Após tanta carência Mas, se anima mentalmente
É mestre em tal ciência Por acreditar que o destino faz planos

Conviveu com a tortura Guarda as fotos dele virtual


Ficou presa no embaraço Para suprir seu lado apaixonado
Aprendeu que lonjura Sabendo que não é real
Não é medida pelo espaço Suplica por contato

Foi ainda ridicularizada Seja por tato


Pensou que entender a razão seria bacana Seja por voz
Do que levava alguém a rir de uma linda carta Tudo está planejado
E dispensar sua autora ardendo em chama Para estarem a sós

30 Literatura Errante
Neurótica fica só de imaginar E que nunca hesitou
Em vê-lo despido Nem mesmo em se mudar
Caótica tende a estar O que de fato a impediu
Ao recordá-lo tão exibido Foi a ambos respeitar

Não se contenta mais Por mais que tinha loucura


Com curtida ou visualização Havia cuidado e espera
Seu ‘eu’ clama demais Isso foi comprovado na doçura
Por investida e aproximação De uma confissão dura e sincera

Ausência e desejo Onde há verdade, há oportunidade


Não combinam Onde há paciência, esperança
Carência e desprezo Onde há respeito, bonança
Apenas judiam Onde há desprezo, segredo

Se ela contasse Observe o dia a dia


O quanto se arrepende Compreenda a efemeridade
Se ela confessasse Acabe com essa agonia
Tudo que não a preenche Mata de vez essa saudade!

Literatura Errante 31
Poesia

Verso Errante
por Pablo Gomes

Escrevo meu verso


Em tributo à arte

Soneto Revelado
por Daniel Cosme
Escrevo meu verso
Tributário ao amor
Escrevo meu verso
Minha nação, minha flama real, Pensando em política
Com seus eixos de sangue alegre, Escrevo meu verso
A esconder-se entre todo o mal Pensando em alguém
Deste reino de estranhas preces, Escrevo meu verso
No transbordar de um sentimento
Diga-me que medo poderia erguer,
Em favor da fuga, o meu coração, Escrevo cada verso
Que bate aqui por puro bater Esperando que o leiam
E pulsar é toda a sua conclusão? Escrevo cada verso
Crendo que não o lerá
Em algum canto dentro de mim, A pessoa em que busquei inspiração
Como um fio d’água passa a ferir
A longa terra, em curto tempo:
Escrevo o verso
Uma voz responde: “Não Innisfree Se não gosto, reescrevo
E nem Pasárgada te falam, em ti; Escrevo o meu verso
Tu questionas teu próprio medo.” Se não gostar...
Não importa!
Publico-o porque é verso!
Publico-o porque é arte!
Goste ou não, é arte
E arte pede público
Por isso, publico
O meu Verso Errante!

32 Literatura Errante
Poetas Errantes
Laís Correia (Mulher Lua):
Natural de João Pessoa -
PB, Laís Correia é Graduada
em Letras Clássicas pela
UFPB. Apaixonou-se pelas
palavras desde a infância,
publicou contos e poemas em Daniel Cosme (Soneto Revela-
revistas e antologias do):
literárias, e teve seus Daniel Cosme é graduando
trabalhos sele-cionados em em Letras - Português, na
diversos concursos literá- UFPE, desde 2018. Vem
rios do país. escrevendo po-esia há não
mais que três anos, com
variados interesses
Lendro Costa (Falena): estéticos, e envolvido com
Poeta e contista da Terra temáticas relacionados ao
dos Verdes Abutres da encontro e desencontro,
Colina: Santana do Acaraú, medo e esperança. Crê que a
no Ceará, terra de onde tira poesia é um espaço livre de
inspiração para a pecados.
escrita.Seus versos e contos
são marcados por metáforas, Sobre o Autor:
simbolismos, memórias e Pernambucano nascido em
descrição psicológica de Caruaru e radicado no
seus personagens. Recife, o poeta, contista,
cronista, romancista e
aventureiro Pablo Gomes é
Lis Tine (Sobre Lonjura): também ator, além de
Natália Dias é Técnica em criador e editor do
Informática para Internet e Literatura Errante.
Contabilidade. Bacharel em
Administração e estudante de
Especialização em Peda-gogia
Universitária na
Universidade Federal do
Triângulo Mineiro. Ama e
escreve poesias e outros
gêneros desde a infância.

Literatura Errante 33
Perfil
Perfil Escritores: Laurentino Gomes
por R. Lorry

José Laurentino Gomes (Maringá, 17 de corte portuguesa ao Brasil. Em 2008, o


fevereiro de 1956) é um jornalista e livro recebeu o prêmio de melhor ensaio
escritor brasileiro. Formou-se em da Academia Brasileira de Letras e da 53ª
Jornalismo pela Universidade Federal do edição do Prêmio Jabuti de Literatura na
Paraná (UFPR). Possui pós-graduação em categoria de livro-reportagem e de
Administração de Empresas pela "Livro do Ano" da categoria de não-
Universidade de São Paulo (USP) e fez ficção.
cursos na Universidade de Cambridge,
Inglaterra, e na Universidade de Em 2008, a Revista Época elegeu
Vanderbilt, Estados Unidos. Trabalhou Laurentino uma das 100 pessoas mais
como repórter e editor para vários órgãos influentes do ano, pelo mérito de
de comunicação do Brasil, incluindo o conseguir vender mais de meio milhão de
jornal O Estado de S. Paulo e a revista exemplares de um livro de História do
VEJA. Brasil.

Tornou-se famoso como escritor graças Em 7 de setembro de 2010, faz na Bolsa


à sua autoria do best-seller "1808 - Como Oficial de Café, na cidade de Santos, o
uma rainha louca, um príncipe medroso e lançamento nacional da obra 1822. Data
uma corte corrupta enganaram Napoleão e que marca também o aniversário de 88 anos
mudaram a História de Portugal e do do edifício da Bolsa.
Brasil", livro que narra a chegada da

34 Literatura Errante
Ao fim de março de 2012, a Globo
Livros anunciou a assinatura de
contrato para o lançamento do
próximo livro de Laurentino 1889,
livro que chegou ao mercado no
segundo semestre de 2013. A tiragem
inicial foi de 200 mil exemplares.
Sobre a obra, Laurentino diz: “'No
terceiro e último volume da série,
explico porque o país permaneceu
como a única monarquia das Américas,
por mais de 67 anos e mostro como
foi a Proclamação da República, em
1889".

Em maio de 2015, anunciou uma nova


trilogia, que abordará a escravidão
no Brasil. O primeiro dos três
livros foi lançado em 2019, e o
último está com lançamento previsto
para 2022.

Sobre o Autor:
R. Lorry, luso-
brasileiro, vive no
Rio de Janeiro e
escreve contos e
histórias do gênero
Terror/Suspense/Thri
ller. Publica também
na plataforma
Wattpad.

Literatura Errante 35
36 Literatura Errante
Teoria Literária
Prefácio, Prólogo, Epílogo e Posfácio
por R. Lorry

Nos livros que nós lemos, sem precisar conta-los no meio da


frequentemente o começo e o fim têm um história ou vice e versa).
nome diferente (prólogo, epígrafe,
prefácio, posfácio), e isso muitas vezes EPÍLOGO:
confunde as pessoas, não só os leitores
como até alguns autores. Para sanar tais No caso de finalizar, de vez, sua
dificuldades, trazemos uma breve, embora história, o Epílogo é usado para narrar
eficaz explicação: um fato depois do fim.

PREFÁCIO: POSFÁCIO:

Deve ser inserido no início do livro e Como o próprio nome já diz, é quase o
vem antes do Prólogo. mesmo que Prefácio, porém, vem ao final
do livro, onde o escritor ou outra pessoa
Pode ser escrito pelo próprio escritor diz o que achou da obra, uma explicação
ou por outra pessoa que leu o seu de seu próprio ponto de vista.
livro/original. É um texto onde você ou
Sobre o Autor:
outra pessoa dão sua opinião sobre a
obra. R. Lorry, luso-
brasileiro, vive no
PRÓLOGO: Rio de Janeiro e
escreve contos e
Se encontra no começo do livro. histórias do gênero
Terror/Suspense/Thri
Pode escrever uma cena que antecede sua ller. Publica também
história ou uma cena que ainda ocorrerá na plataforma
(descrevendo ela em detalhes no Prólogo Wattpad.

Literatura Errante 37
Opinião

Minhas impressões sobre a escrita


por Guto Domingues
Minha Primeira Regra (talvez única): Grosso modo a escrita é só o registro. O
não desconsidere sua experiência. Sua livro é só um suporte, uma tecnologia.
vida, suas histórias. Tudo é repertório, Antes de aprofundar conceitos, pense em um
tudo é jornada, tudo é uma eterna busca passado remoto onde tudo era transmitido
de respostas. Qualquer conselho, que oralmente. Não deixa de ser literatura,
escritores, desde o mais simples até o essa, é em si a arte da palavra. Por
mais sofisticado possam lhe dar, é definição, a transmissão oral é literatura.
perpassado por empirismo, vida e Mas sem registro informações se perdem.
experiências pessoais. Ninguém pode falar Pense no pastor que risca uma vara ao fim
de algo que não experimentou (digo em do dia para conferir se todas voltaram ao
percepções sensoriais). Já pensou em cercado. Talvez a escrita tenha surgido
descrever como é o gosto de uma maçã? Ou pela necessidade de transmitir ou guardar
o prazer de sentir a água gelada de um informações.
rio ou o afago de uma brisa leve em seu
rosto? Como definir emoções, sentimentos, Bom. Acho que estabeleci os pontos que
lembranças? Então, não desvalorize a sua vamos refletir: Experiências, vivências,
própria experiência. Mas junto a essa observação e registro.
regra, aprenda com a experiência do
outro. Observe. Um bom escritor não é aquele que apenas
domina as técnicas de registro; linguagem,

38 Literatura Errante
gramática, semântica, etc. Antes de tudo, ele deve
ser um grande observador, um coletor de histórias,
um pesquisador do humano e, com isso, de seus
sentimentos, ações, escolhas, filosofias, etc. A
leitura provoca no leitor respostas físicas. A
leitura cria uma empatia, nos colocamos no lugar do
outro, nos imaginamos na pele do herói ou do vilão.
Choramos, rimos, ficamos com raiva, nojo,
indignação. Há necessidade de uma experiência
leitora, óbvio. Vivemos a vida do outro. Quando isso
não acontece esquecemo-nos do livro, da história, do
nome dos personagens. E partirmos para um próximo
que nos preencha.

Piegas? Não. Isso já foi testado. Há estudos sobre


essas respostas. E isso prova que o principal de uma
boa história é a profundidade emocional dos
personagens. Não é só uma questão de perfis físicos,
cor de pele, cabelo, altura, peso. Mas o que importa
é você ser capaz de prever as reações dos
personagens, entender como ele pensa e ou como
reagiria frente a essa ou aquela situação. Claro.
Isso não é regra. Nada é regra. Falo regra como a
receita absoluta que vai resolver tudo. A panaceia
divina. Não há remédio que cure tudo. Mas há
conversas que dão alento.

Aceitei o convite de escrever para esta plataforma


em função de um aspecto que acho fundamental. Em um
blog há a possibilidade de conversar, comentar,
interagir. Esse foi um texto de apresentação, de
entrada nesse mundo imenso. Espero continuar em
breve.

Que a fogueira não se apague e nossa conversa gere


ideias, inspirações, respostas.

Até mais.
Sobre o Autor:
Violonista, escritor,
cinéfilo, leitor
compulsivo, fã de
Quadrinhos, Conan, Star
Wars, etc. Escreve desde
pequeno além de ter
passado os últimos 35 anos
com um violão no colo.

Literatura Errante 39
Notícia

Afro-Horror: Antologia de contos


viabilizada por meio de financiamento
coletivo será lançada em breve.
por Pablo Gomes

Fundos foram arrecadados com sucesso em se você for negro, e estiver no lugar
site de financiamento coletivo, para errado e na hora errada, o mal virá não
realizar a publicação da antologia de como um fantasma, não como um lobisomem,
contos AFRO-HORROR. O projeto, encampado e sim como uma mente perversa e racista,
pela Cartola Editora, ambiciona explorar sedenta por seu sangue, faminta por sua
o medo e o horror para além do lugar- dor.", explicam os realizadores.
comum, do usual e, especialmente, para
além do sobrenatural. Um terror ainda AfroHorror – Medos ancestrais é uma coletânea
mais assustador: o terror vivido na vida de contos escritos por autores negros.
real. Através de 17 histórias variadas, 12
escritores se aventuraram pelo medo, a
"O mundo é um lugar que dá medo. Cada mais primitiva e racional de nossas
virada de esquina, cada beco escuro, ou emoções, que existe para nos manter
até mesmo uma estrada deserta, esconde um vivos, mas também tem o potencial de nos
perigo, um mal que pode, de uma hora para levar para a perdição.
outra, ceifar nossas vidas ou, nos piores
casos, conduzir-nos para uma espiral de Mais do que relatos sobre assassinos,
loucura e horrores. E não precisa sequer monstros, loucura e misticismo, cada
ser um monstro saído das páginas do história carrega a intenção de debates
Necronomicon, ou haver lua cheia, pois, mais profundos, sobre racismo, identidade

40 Literatura Errante
e pertencimento. Cada um dos autores
contemporâneos teve total liberdade na
abordagem do medo, contudo a cada um foi
pedido para se inspirar em produções
recentes do cinema de afrohorror, a
exemplo de Corra! (2017) e Nós (2019),
ambos dirigidos pelo cineasta Jordan
Peele, além de referências culturais
variadas. O resultado são narrativas que
recontam clássicos da literatura mundial
ou lendas típicas do Sul ao Norte do
Brasil.

Sobre o Autor:
Os motes dos contos podem tanto nos Pernambucano nas-
remeter a um terror fantástico como a cido em Caruaru e
algo real e possível. Isso não é mera radicado no Recife,
coincidência. "O horror proposto aqui é o poeta, contista,
um horror que pode ser tanto imaginário cronista, romancista
quanto real, e a linha tênue entre e aventureiro Pablo
fantasia e realidade é tão fina que sonho Gomes é também ator,
e pesadelo se confundem.", explicam os além de criador e
realizadores. editor do Literatura
Errante.

Literatura Errante 41
Folhetim

Caso Inicial
por Gabriel Soares

A comemoração se fazia no pátio da à beira do rio, mas sem sucesso.


delegacia, a nova delegada era
Ao retornarem, foram abordados por um
apresentada. Os policiais reverenciavam
dos investigadores.
a velha amiga de escola, que jamais
imaginariam ver na posição atual. — A Carla desapareceu.
Ao sentar-se na cadeira do gabinete, — Como assim? Ela estava aqui hoje?
recebeu o primeiro presente. A caixa
— Até o momento da posse, sim.
artesanalmente decorada não trazia
remetente. Abriu com olhos atentos e, ao — Já revistaram todo o prédio?
levantar a tampa, avistou o absorvente
manchado. — O Freitas ainda está procurando, mas
já rodamos o prédio todo.
Ficou calada enquanto Danilo, o
estagiário que lhe entregara a encomenda, — Olharam as câmeras?
lhe observava. Levantou-se rapidamente e — Que câmeras? Está achando que isso
correu à rua, tentando avistar o aqui é capital?
entregador. O estagiário a seguia,
descendo pela rua lateral da delegacia, — Fala direito comigo. E eu não estou

42 Literatura Errante
achando nada, quero todo mundo atrás Pereira, com a viatura, chegou e levou
dessa investigadora agora. Tavares, ligue o jovem à delegacia. Elisa logo indagou
para a casa dela. o ra-paz.

O investigador desceu as escadas e — Quem é você e por que entregou essa


entrou na viatura. A delegada e o caixa aqui?
estagiário foram direto ao telefone.
— Tenho nada a ver com isso não dona.
— Bom dia, dona Celma, aqui é a delegada
— Perguntei quem é você e que diabos
Lucena. Estamos querendo saber se
está querendo.
aconteceu alguma emergência na família ou
algo para que a investigadora Carla — Eu é que pergunto, dona...
saísse daqui sem aviso.
— Delegada.
A resposta negativa ascendeu-lhe uma
— Já chegou atirando nos outros.
preocupação.
— Primeiro, deixa de ser mole que a bala
— Danilo, você lembra do rosto de quem
mal te arranhou. Segundo, quando um po-
entregou aquela caixa?
licial te mandar parar, pare. Agora fala
— Se eu vir eu reconheço. que caixa era aquela.

— Vamos procurá-lo agora. — Não sei não, senhora. Só faço o que


me mandam.
Foram na direção dos poucos motoboys da
rodoviária, perguntando aos que encon- — Então aproveita essa sina de pau
traram pelo rapaz procurado. Sem mandado e me responde. Quem mandou?
respostas, continuaram na direção do
— Está curiosa, dona?
Mercado Municipal. Os feirantes, em
polvorosa, anunciavam seus produtos com — Já disse que é delegada.
gritos ritmados. Em meio à balburdia da
— Se essa caixa já deixou a dona desse
xepa, Elisa e Danilo procuravam avistar
jeito...
um sujeito tão comum e desconhecido que
até desacreditavam da própria propensão — Você está me achando com cara de que?
de encontrá-lo.
— Pode responder?
Andavam atentos ao canto do Mercado,
quando avistaram o dono de um dos quios- — Está achando que isso aqui é
ques noturnos entregando uma sacola a um brincadeira? Então vou te mandar pro
jovem. nosso brin-quedo. Pereira, pode levar.
Vai passar o sábado na cela.
— Acho que é aquele. — Apontou o
estagiário. — E que direito de me prender a dona
tem?
Saíram correndo em direção ao jovem
que, ao ver a movimentação, partiu pela Elisa levantou-se e exibiu seu
rua lateral do Mercado. Elisa gritou-lhe, distintivo.
ordenando que parasse. Continuaram pela — Com o direito de delegada civil de
rua dos Operários até que a delegada lhe Ecoporanga.
desferiu um tiro.
Ia saindo da sala quando o jovem, já
A bala, apenas de raspão na perna, e a sendo levado pelo investigador, disse:
pedra irregular do calçamento, fizeram o
jovem tropeçar e cair. Foi rendido pela — Problema não, amanhã eu saio. Quem
delegada. está achando que é brincadeira é a
senhora. Nem imagina o tamanho do
— Tavares, ligue para o Pereira e mande esquema.
ele passar aqui agora.

Literatura Errante 43
Folhetim

Espectro Negro
por Gabriel Soares

Um dia após a prisão do jovem — É disso que eu estou querendo falar,


entregador, Elisa ainda pensava na última Elisa. Você está chegando aqui querendo
frase que ouvira do rapaz, quando seu que todos te vejam como uma autoridade
devaneio foi interrompido pelo estagiário que...
trazendo um advogado.
— Que eu sou. Saulo, não ache que estou
— Doutora, o doutor Saulo quer falar sendo arrogante, mas eu não estou aqui só
com a senhora. como uma menina da cidade e por mais que
seja difícil me verem assim, eu sou uma
— Obrigada, Tavares.
autoridade aqui. Se eu ficar deixando
O advogado entrou e cumprimentou com um vocês me tratarem de qualquer jeito, não
aperto de mãos a delegada. vai dar certo.
— Elisa, eu vou direto ao ponto com — Se você for você mesma, vai ser
você. melhor. Não tem que tentar se impor pelo
distintivo.
— Primeiro, deixa eu te lembrar que
aqui eu sou delegada, não sua colega de — Tá. Mas não foi disso que você veio
escola. falar.

44 Literatura Errante
— Não exatamente, mas tem a ver. Eu vim — Elisa, eu só vim avisar. A gente se
como advogado do Vander, o rapaz em quem conhece desde a escola e eu torço mesmo
você atirou ontem e prendeu sem motivos. pra que você dê certo aqui. Deixa esse
rapaz de lado. Tanta coisa pra resolver
— Ele entregou uma caixa com um
aqui na cidade…
absorvente manchado pra mim, fugiu da
polícia e não obedeceu a ordem de parada. — Tem. Tem mesmo, Saulo. Eu, mais do que
ninguém, sei o que precisa ser resolvido
— Ah, então só por causa de uma
nessa cidade. E vou começar querendo
brincadeira dessas você atira no rapaz?
saber por que você está protegendo esse
—Foi de raspão na perna, só pra ele cara. Está em algum esquema com ele?
parar. E isso não é brincadeira, Saulo.
— Está achando o que? Não estou aqui pra
Isso foi um aviso. Algum bandido desses
interrogatório não, e posso entrar em
cantos está querendo me desafiar.
contato com a corregedoria se você
— Você tem alguma prova ou um indício começar a falar desse jeito comigo.
que seja do que está falando? Elisa, presta atenção, deixa de paranoia
que aqui não é Serra e aqueles lados que
Elisa suspirou, tentando fugir da você trabalhava não. Aqui é interior,
resposta inevitável. noroeste, cidade pacata. Crime aqui é
— Ainda não. — Respondeu, por fim. roubo de galinha, muro comendo terreno
vizinho, briga de esquina.
— Então. Vai com calma, no primeiro dia
atirando na perna de um rapaz, e negro — Até parece que você não é advogado
ainda por cima, não vai te ajudar em aqui. Você sabe que aqui acontece tudo
nada. quanto é tipo de crime, igual em qualquer
lugar. E eu não estou aqui pra focar só
— Quem te contratou? numa parte.
— O que? — Titubeou o advogado. — Só vim conversar, espero que pense no
— Esse rapaz não tem cara de ter que eu disse. Tenha um bom dia, qualquer
condições de pagar advogado, além do coisa sabe onde é meu escritório.
mais, ele vai ser solto daqui a pouco. Saulo saiu, enquanto Danilo entrava
— A família dele me procurou e eu fiz trazendo um café.
um preço acessível pra ajudar. — E aí, o que ele veio fazer?
— Por causa de uma noite na cadeia? — Não acha que está muito curioso pra
— Elisa, você atirou num rapaz negro, um estagiário não?
no meio da rua, que não estava fazendo — Desculpe, doutora.
nada de mais, a questão é muito mais que
uma noite na cela. Eles querem te Elisa pegou a xícara e deu uma golada
processar. no café, já frio pela falta de
conservação da garrafa e a demora de
— Como assim? Danilo ao tentar ouvir a conversa parado
— Você sabe que o que fez pode ser na porta.
encaixado como racismo. — Esse aí só me deixou mais
— Sabe o que ele me disse quando fiz desconfiada.
umas perguntas a ele? Que eu não sabia o — Como assim?
tamanho do esquema.
— Tavares, você acha que o Saulo ia
— Isso é papo pra se fazer de machão. fazer desconto pra ajudar alguém?
— Você sabe que ele já é fichado, né? — Ele está numa fase boa, reforma de
escritório e da casa, carro novo...

Literatura Errante 45
— Ali eu conheço, nunca foi flor que se — Não... É que... Eu vou lá... —
cheire. Gaguejou.
— A senhora não está dizendo isso por — Não disfarça que aparece mais.
que ele te enganou não, né? Desculpa falar desse jeito, é que a
cabeça está longe. Essa visitinha do
— Está me achando com cara de que,
Saulo só levantou minha suspeita.
Tavares? Acha que eu não sei separar as
coisas não? Problema dessa cidade é que Nesse momento, Pereira e Freitas
todo mundo sabe da vida dos outros. entraram na sala da delegada, que se
encontrava com a porta aberta.
— Desculpa, é que os boatos...
— Delegada, recebemos uma ligação
— É boato velho. Mania de todo mundo
anônima dizendo que viram uma
achar que mulher largada é mal amada.
movimentação estranha numa casa do Vale
Tanta coisa pra fazer da minha vida pra
Encantado. Parece que dois homens puxavam
eu ficar dando tempo pra homem.
uma mulher que parecia estar fardada.
— Eita, que a doutora não está boa hoje.
— Prepare a viatura. Vocês vão na
— Não estou boa com esse café frio e frente. Eu, o Gomes e o Saldanha vamos
ralo. Trata de fazer um café decente. atrás.
— Pode deixar, delegada. — Disse, Obedecendo ao comando de Elisa, Pereira
deixando escapar uma rasa ironia ao e Freitas chegaram primeiro à rua próxima
fundo. à indicada na ligação e foram recebidos
por estampidos ao curvar a esquina com a
— O que é? Achou que delegada ia ser
viatura.
mais mansa?

Sobre o Autor:
Capixaba natural de
Ecoporanga, e radicado
em Feira de Santana-BA;
estudante de Pedagogia
apaixonado por café,
criança, história, arte
e cultura brasileira,
escreve desde criança. O
gênero policial vem
sendo seu novo foco na
escrita.

46 Literatura Errante
Literatura Errante 47
Folhetim

Capítulo I
por Guto Domingues

Em um tempo antigo que não foi A única maneira de vencer os Orcs seria
registrado em livros de história, houve dominar as técnicas de Guerra, o combate
uma guerra. Orcs, Humanos e Elfos lutavam direto era impossível, a força bruta dos
entre si, alguns nem se lembravam da Orcs era imensa. Então, deveriam aprender
razão. Para poucos sábios magos humanos, a fabricar e usar armas, forjar
aqueles que viveram o início da guerra, armaduras, afiar as lâminas das espadas.
o motivo era vergonhoso. Por outro lado, vencer os elfos era
também difícil. Como sobrepujar a magia
Eles sabiam que a Vaidade e a Inveja dos com espadas? Como derrotar Elfos
Homens provocou a Guerra das Três Raças. arqueiros com suas Flechas Flamejantes,
Congelantes e que nunca erravam o alvo?
Os Homens se achavam mais belos e Apenas aprendendo Magia a luta seria
inteligentes que os fortes e poderosos justa.
Orcs; invejavam o Poder Mágico e a Beleza
pura e celestial dos Elfos. E se viam Assim, Homens nefastos e sem remorsos,
ameaçados. aprenderam a construir armas, escudos,

48 Literatura Errante
caçadores de magos não poderiam chegar.
imbuir pedras mágicas nas armaduras, Eram treinadas para fingir, esconder e
envenenaram flechas, espadas, adagas. nunca usar seus dons. Sempre que eram
Encontraram livros de magia, aprenderam levadas para longe, para lugares onde
feitiços brancos e negros. Aprenderam ninguém poderia encontrá-las, havia um
técnicas de batalhas. Eles se prepararam mentor, um mago antigo oculto, vivendo
para a Ofensiva em duas frentes. junto aos habitantes do lugarejo, para
Atacariam Elfos e Orcs ao mesmo tempo. acolher e treinar as crianças nessa arte
de dissimulação, de camuflagem.
Enfim, a Guerra acabou! Entre os
mortos, milhares de Humanos, Orcs e Existia uma aldeia. Muito distante.
Elfos. Não há vencedores em qualquer
guerra. Só perdas, e muitas... Um Essa aldeia era um porto seguro para
Conselho foi reunido, com os líderes de magos por ela atraídos. Sim. Ir ao lugar
cada raça, e decidiram unanimemente não era uma escolha consciente. Era um
proibir a magia dos humanos, pois eles chamado. Ao chegarem próximos, uma
usaram-na de forma errada. Entretanto, a sensação de segurança e paz tomava
Magia não escolhe quem a usa; e, ao longo aqueles que antes eram perseguidos. E
das batalhas, estudiosos descobriram que assim se estabeleciam. Sempre em
poucos humanos eram sensitivos à magia e disfarces. Ao criar raízes no lugar, um
podiam canalizá-la sem as palavras usadas se tornava o ferreiro, outro o padeiro,
para invocá-la. Estes magos de nascença muitos arrendavam terras para plantar.
foram mortos um a um. Matança que obrigou Sempre escolhiam atividades onde força
os poucos sobreviventes a fugir, a se bruta era essencial ou que não
esconder. Fingir que eram pessoas sem necessitasse de amplos conhecimentos.
esse dom, que para alguns era uma Estudo e saber também eram ligados à
maldição. Cada um desenvolvia um tipo de magia. Parece-me que conhecimento em
poder. Todos extremamente fortes em suas todas as eras é considerado perigoso.
habilidades, mas se não treinadas e sem Então, dessa forma, tornavam-se úteis às
estudar os modos corretos de desenvolvê- pessoas do vilarejo e espantavam
las, ficavam inertes, adormecidas. suspeitas com demonstrações de saberes
passíveis de despertarem olhares e
E a vida seguiu... pensamentos curiosos.

Aos poucos as histórias foram sendo Após a vida se nivelar a uma


esquecidas, memórias antigas acabam linearidade tal um lago onde a água não
distorcidas, misturadas às invenções, é acarinhada pelo vento. A paz primordial
lendas, mitos. Mas uma coisa nunca mudou: que sentiam transformava-se em novo
a Magia era proibida. Nem sabiam mais o chamado. Claro que os magos reconheciam
motivo da proibição. outros magos. A magia era sentida. Mas
faziam de tudo para anular essa força.
Entretanto não havia como impedir que Tentavam a todo custo serem invisíveis.
crianças continuassem a nascer. E entre Mas eles sabiam quem era quem. De todo
elas, nasciam aquelas que tinham a força modo era inevitável, assim desenvolveram
em si. Quando o poder mágico despertava, códigos de comunicação. Em um futuro
eram escondidas, separadas de seus ataque poderiam ter que unir forças para
familiares, levadas para lugares onde os defesa.

Literatura
Literatura Errante
Errante 4949
depender o mínimo possível de qualquer
E a vida seguia. ajuda de seus vizinhos. Ajudava,
trabalhava, mas mantinha uma distância,
Um dia um forasteiro apareceu. era até um pouco frio. Prestativo, ao
dispor de quem precisasse, mas sem
Nesses momentos, quando há um evento grandes gestos de amizade, sorrisos,
novo que altera o cotidiano, o curso da abraços, conversas.
vida prende a respiração.
Quem observou a conversa que
No instante em que ele surgiu, não inesperadamente aconteceu se espantou. O
houve apreensões ou perguntas sobre seu ferreiro se aproximou do forasteiro e
passado ou interesses, mas quando ele logo, sem tentar qualquer rodeio, disse:
começou a fazer perguntas, um alerta de
perigo tomou conta de alguns mais — Quem é você e o que quer aqui?
desconfiados.
— Sabe quem sou.
O Forasteiro não era diferente de
alguns viajantes que cruzavam as estradas — Não afirme nada. Não me interessa
que rasgavam o vilarejo. Era o típico quem é. Seu lugar não é aqui.
peregrino que buscava trabalho em outras
paragens ou estava apenas de passagem em — Sabe que não oferece risco para
busca de outros destinos. Normalmente ninguém. Que pode fazer um velho viajante
esses tipos ficavam um dia ou dois na em busca de morada e trabalho.
estalagem que beirava a estrada principal
e logo seguiam seu rumo. Ali ninguém — Não me venha com essa falácia. Sabe
ficava. Não havia trabalho que sobrasse que os que vivem aqui querem paz.
vagas ou destinos religiosos ou coisa que
despertasse o interesse de ficar. Um — Essa paz não será duradoura, meu
lugar para dormir, comer e seguir seu amigo. Dê-me chance para conversar. Deixe
rumo se resumia a isso; e ninguém que que fale o que acontece nos sombrios
morava ali, realmente criava as condições corações dos homens belicosos. Não se
para que um desconhecido quisesse ficar. omita. Quando a escuridão aportar aqui,
não haverá muito tempo para aprontar uma
Havia um interesse diferente nesse defesa ou revide.
homem de fora.
Houve uma silenciosa troca de olhares,
Ele fazia perguntas, olhava os um media e lia a face do outro. Pareciam
moradores com curiosidade. Andava se comunicar mentalmente. Não era
calmamente observando cada detalhe do possível ver movimentos, gestos que
lugar. Tentava ganhar a confiança dos pudessem ser lidos. A leitura era da alma
moradores nativos ou oriundos de outros de cada um através de seus olhos fixados,
lugares como ele. Demonstrava uma vontade vidrados de cada um.
de estabelecer morada. Alguns não se
incomodaram, ao contrário de um ferreiro. Viraram-se e sem palavras pronunciadas
foram cada qual para seu caminho. Quem
Esse ferreiro não era de se aproximar assistiu ao embate de palavras, não
das pessoas em busca de amizade. Tentava entendeu nada. Talvez a menina que era

50 Literatura Errante
olhar interessado da filha, falou quase
filha da antiga dona do armazém onde os solenemente:
dois se encontraram. Talvez um ou outro
que passava por ali naquele momento. Mas — Não imaginava que teria que voltar a
os dois não deram conta de nenhuma dessas usar isso, mas não temos mais opções.
possibilidades. Pelo que me contou se essa conversa se
provar verdadeira, é melhor estarmos
A filha da dona do armazém, contou o que preparadas.
viu e ouviu para sua mãe assim que chegou
à sua casa. Sua mãe não esboçou reação. O Ferreiro voltava inquieto para sua
Olhou a filha, para um lugar qualquer na casa. Não imaginava que isso poderia
direção da estante de livros e foi para acontecer: “Tantos anos escondidos e
a dispensa da casa. Retirou um objeto justo agora, quando tudo estava
embrulhado em um pedaço de couro de esquecido, esse infeliz aparece. Quem ou
serpente e após alguns segundos desfez o o que o trouxe aqui?” Mesmo desejando que
nó. A garota olhou por cima dos ombros da o Forasteiro desaparecesse o mais rápido
mãe para ver o que ela olhava tão quieta possível da aldeia. Essas perguntas
e concentrada. Uma varinha era o destino precisavam de respostas.
dos olhos de ambas. A mãe, ao perceber o

Literatura
Literatura Errante
Errante 5151
Folhetim

Capítulo II
por Guto Domingues

Quem presenciou a conversa entre os O Ferreiro não saiu incólume da


homens não entendeu o que se passava. conversa. Tampouco o Forasteiro.
Perguntas sem respostas. Afirmações
estranhas. Frases sem sentido. Houve quem Devido ao embate, o Ferreiro, se
dissesse que a conversa se deu retirou da Aldeia durante alguns dias.
mentalmente, que a disputa mental fora Quando precisava de algum insumo pedia
incrivelmente devastadora para ambos. para alguém lhe levar.
Talvez por isso o debate tenha sido tão
rápido. Os comentários se limitaram a O Forasteiro também se recolheu à
isso. estalagem próxima à Taverna do Urso
Albino. Só saia do quarto alugado para ir
Quem entendia o que ocorrera, preferiu à Taverna comer e beber. Um dia, quando
se omitir. Não alimentou conjecturas, ou achou que o atendente lhe conferia mais
não deu ouvidos às conversas posteriores confiança, resolveu puxar conversa:
sobre a disputa. Queria mesmo que o
episódio fosse esquecido. — Aqui não existem ursos. Qual a razão

52 Literatura Errante
do nome? deve ter lhe mostrado.

— O antigo dono era albino, gordo e — Sim. Mas não tenho ressentimentos.
peludo. Urso era seu apelido. E ficou Isso que aconteceu é justificável. Não se
assim. Não tenho coragem de mudar o nome. preocupe.

— Era seu amigo? — Então aproveite a sua refeição. Vou


deixar que tenhas a paz que deseja. Meu
— Sim. Na verdade, era quase como um pai nome é Antônio.
para mim. – disse o homem, enquanto
cuidava de limpar a prateleira com copos — O administrador. — completou o
de cerâmica e algumas canecas de madeira. Forasteiro adicionando um epíteto ao nome
— Chamo-me Érico. Um prazer conhecê-lo.
— Ele sempre morou aqui? — o Forasteiro
queria fazer daquela conversa um simples — O administrador... — responde
passatempo, apenas para ter companhia pensativo Antônio, analisando o apelido
enquanto comia. Mas parecia um — Mais ou menos isso. Até mais. O prazer
interrogatório. Percebendo que o é meu. Fiques em paz.
atendente ficara desconfortável com a
última pergunta, deu graças quando outro Antônio afastasse para esperar a
homem entrou e pediu um pouco de guisado refeição e senta-se próximo a outra mesa
de porco com batatas e vinho para encostada à esquerda da porta de entrada.
acompanhar. Érico, que estava de costas para a porta,
não podia ver onde Antônio estava. Não
O dono da taverna saiu para preparar a podia ver que os olhos curiosos do
refeição e o Forasteiro baixou os olhos, Administrador não desviavam um segundo
focando-os em seu prato, desviando dos sequer dele.
olhos curiosos do recém-chegado. A
indiferença fingida não durou muito. O Érico termina a refeição, deixa uma
homem perguntou: moeda como forma de pagamento sobre o
balcão de madeira e retira-se da Taverna.
— Não lhe faço mau julgamento. A mim não Ao passar por Antônio despede-se e diz
interessa suas intenções. — disse de que seria um bom momento para uma
forma cortês. caminhada. O administrador concorda ao
mesmo tempo em que é servido pelo
— Não ofereço mal algum a ninguém. atendente. Uma refeição é colocada sobre
Apenas quero viver em um bom lugar. — a mesa, o suficiente para alimentar umas
disse o Forasteiro e após beber um pouco três pessoas. Não lhe negava motivos à
do conteúdo da caneca, fala com dimensão da barriga saliente, aquela
sinceridade — Viver em paz. comida toda era um exagero. Será costume
cometer o pecado da gula? Será uma regra
— Sou uma espécie de administrador para ser político? Perguntava-se o
daqui. Não estamos próximos o suficiente Forasteiro. Entre pensamentos sem
da capital do reino para obedecer-lhes as importância resolve explorar mais um
regras. Não fazemos questão de que nos pouco a aldeia. Embora esse passeio
notem. Por isso a desconfiança. Como a exploratório tivesse intenções
atitude demonstrada pelo nosso Ferreiro específicas.

Literatura
Literatura Errante
Errante 5353
— Quem me julgou primeiro foi você. Não
Nem se esforçou muito para descobrir quero fazer disso uma disputa. Deixe-me
onde ficava a forja. Não disse a ninguém falar o porquê de estar aqui.
que pretendia procurar o Ferreiro, sabia
que se procurasse a oficina para algum — Seja breve. Não posso deixar esse
serviço, as suspeitas seriam amenizadas. metal esfriar. — disse olhando para a
adaga.
Andou breves momentos, mesmo caminhando
de maneira mais para apressada que lenta — Prometo que serei, mas antes me deixe
não imaginava que estava tão próximo da lhe dar um presente. – o Forasteiro
forja. O que lhe deu certa insegurança. retira uma placa de metal extremamente
Se realmente fosse lá, a morada do bem cortada nas beiradas, com algumas
Ferreiro que procurava, deveria sentir a inscrições nas laterais e apesar de
emanação da poderosa magia que ele fosca, sem nenhum brilho, com uma beleza
possuía e que há poucos dias sentira. tal qual pedras preciosas. Os olhos do
Ampliou seus sentidos e destravou suas Ferreiro fixamente olharam para o metal.
defesas psíquicas. Fosse quem fosse o Sua cabeça se inclinou para trás, em uma
homem da forja, ele deveria estar atitude de quem entendia o que aquilo
preparado. representava. Seus lábios apertaram-se.
Suas mãos, de tanta força que faziam para
Chegando ao lugar. Sentiu uma vibração segurar as ferramentas, ficaram brancas,
no tecido da realidade, como se alguma com as juntas dos dedos nodosos saltando.
força fosse represada, camuflada. Em Diante da reação prevista o Forasteiro
frações de tempo, onde olhos destreinados disse cauteloso:
não seriam capazes de notar, fez gestos
com as mãos para que em seu entorno se — Sei que conhece o que tenho. E por
criasse um manto de energia protetora. saber do que se trata quero lhe oferece.
Continuou aproximando-se e ouviu a voz já
conhecida em sua mente. — Ninguém oferece algo valioso sem
querer nada em troca. Não aceito sua
“Não creio que fez esse feitiço de oferta.
proteção.” “Sou tão perigoso assim?”.
— Não lhe propus nada. Ainda...
“Não é!” Respondeu mentalmente. Mas sem
desfazer o feitiço. — Sim. Isso eu tenho certeza. Ainda. —
repetiu a última palavra tentando imitar
“Então por qual motivo fez um escudo? a maneira que o Forasteiro a disse.
Estou de costas. É você quem está se
aproximando. Sorrateiro. Desconfiado.” — Sinto que conseguiu nublar a mente a
ponto de evitar minhas leituras. Você é
“Não imaginava que seu poder fosse tão tão ou mais possuidor de surpresas que um
grande.” “Repele a magia. Esconde a sua caminho desconhecido. Mesmo que não
verdade.”. queria vou lhe falar.

— Não me julgue. — disse o Ferreiro. — Então seja breve.


Virando-se com uma adaga incandescente em
uma mão e um martelo na outra. — Não vim aqui para pedir algo para mim.

54 Literatura Errante
Quero propor algo que valha a pena para enganar os Elfos, como se fosse uma
todos os usuários de magia. guerra civil, um levante contra o Reino
de humanos insatisfeitos com a Trégua.
— A magia é proibida. Mas na verdade a intenção é acumular
poder e usar as almas dos mortos em uma
— Isso é uma falácia dos poderosos. Em guerra etérea.
sombrios aposentos palacianos a magia é
usada para o mal. Preciso de sua ajuda — Não me venha com profecias religiosas
para impedir que nos cacem. antigas. Isso é apenas discurso para
assustar crianças. Não há mais
— Já estamos bem escondidos aqui. necromantes entre nós. Não há quem possa
rasgar o tecido.
— Não se vanglorie de pequenas
vantagens. A sombra chegará a todos os — Não é bem assim. Bento encontrou os
lugares. Tomos Santos de Interon. Agora é questão
de tempo.
— Essa conversa cheia de enigmas não me
interessa. Fale logo. Impedir que você O Ferreiro silenciou. Sentiu um ardor
leia a minha mente também me impede de no peito. O ar entrava frio em suas
ler a sua. narinas. Como se a simples pronúncia do
nome dos livros santos lhe causasse
O mago sorriu. Notava que a guarda reações físicas e espirituais. A magia
estava baixando. Não sentia que a antiga fora escrita em tempos imemoriais.
confiança do Ferreiro aumentava, embora Era poderosa. Era traiçoeira.
isso pudesse ser interpretado conforme a
conversa se desenvolvia. O que o — Como posso te ajudar. – disse o
Forasteiro imaginava era que a Ferreiro, sem encontrar outras opções.
curiosidade do Ferreiro frente à
procedência real do metal era o motivo da — Forjando uma espada de aço arcano
recente mudança de atitude do Ferreiro. imbuída com magia antiga.

— Já sabe meu nome. Desse a você em


nosso primeiro encontro e sabe também que
procuro usuários de magia. O motivo de
minha busca é alertar primeiramente e
deixar defesas preparadas para
inevitáveis ataques de soldados de elite Sobre o Autor:
do Reino. Em breve todas as aldeias e Violonista,
vilarejos, tão longínquos quanto esse, escritor, cinéfilo,
serão dizimados pelas forças de Bento II. leitor compulsivo,
Ele já se aliou aos Orcs. Quer usar de fã de Quadrinhos,
tudo para atacar os elfos. Conan, Star Wars,
etc. Escreve desde
— Como? E a Trégua? pequeno além de ter
passado os últimos
— Bento deseja matar magos ou 35 anos com um
sensitivos da magia. Assim planeja violão no colo.

Literatura
Literatura Errante
Errante 5555
Até que a Morte Nos Separe - I
por Doug Noleto

Barnald Cornwell apoiou a lenha na Isso era, de longe, a tarefa mais


ponta da árvore decepada e, com força e fácil. O problema era que eles não tinham
precisão calculada, desceu com o machado mais nenhuma. Até uns cinco ou seis anos
no centro, partindo a lenha em duas. atrás, não seria nenhuma preocupação, já
Jogou ambos os pedaços para a pequena que uma carroça vinha da cidade carregada
pilha que se formava ao lado e colocou de animais todos os meses. Agora, com os
outro pedaço no tronco. O suor começava últimos problemas —ou como diria Kirk
a escorrer pela face, embora estivesse no Tosier, A Bagunça dos Cus de Ouro —, o
trabalho já havia algumas horas. O que envio de mantimentos para o vilarejo
ajudava era o vento, que até aquele estava escasso. Barnald tinha esperanças
momento, estava ameno e fresco, quase de que as coisas voltassem ao normal
gelado. Ele olhou para cima, ajeitando o assim que ficasse decidido quem iria
cinto em volta da cintura e calculando o sentar o cu no trono. Mas a esperança era
tempo em que finalizaria tudo aquilo. um tipo de sentimento inútil naqueles
Ainda faltava ir até o poço e bombear dias, tanto quanto esperar que uma
cinco latas de água. Depois colher um decisão sensata viesse daqueles homens.
pouco de tabaco, já que a saca da outra
semana estava no fim. — Mesquinhos filhos da puta — disse
Barnald, enquanto jogava os pedaços de
E por fim, arrancar a cabeça de uma lenha devidamente cortados nas costas do
galinha para a janta. burro. Deu um tapa nas costas do animal
e foi caminhando, sendo seguido de perto

56 Literatura Errante
por ele.
Barnald correu até a Árvore e colheu
Chegou ao poço alguns minutos depois. O algumas folhas baixas. Todos diziam que
silêncio na região já era uma entidade as altas é que eram as boas, pois era lá
sólida, levando em conta as primeiras que apareciam as flores. Mas Barnald não
estrelas que surgiam no céu vermelho. Só se importava. Ele gostava mesmo era de
um filhote de berwolg teria coragem de sentir a fumaça enchendo e escapando do
perambular pela floresta durante a noite, peito. O resto era conversa.
em especial agora que a guarda dourada
havia sido afastada. Barnald precisava Encheu um dos saquinhos que carregava
agilizar. Se o que diziam era verdade ou no cinto, depois outro e depois o outro.
mentira, pouco importava, no entanto. Pronto e resolvido. Deu as costas para a
árvore e correu até o burro, que esperava
Ele estava é com saudades de Lessane. ansioso na saída da clareira. Ele puxou
a corda, e dessa vez, não retomou a
Começou a bombear a água, vendo o caminhada, mas, sim, continuou em ritmo
belíssimo líquido marrom cair em bons de corrida. A galinha teria que esperar
jorros no balde de aço. Encheu o primeiro para o outro dia. A Noite se aproximava
e pegou o segundo. Ao finalizar o e ele tinha pressa.
processo, teve que se render à sede e
beber um gole. A água desceu espessa pela Correr deu a ele a sensação de
garganta, caindo dura na barriga. O gosto liberdade. Não havia nada pior que ser
já fora melhor, mas ele não podia obrigado a caminhar quando algo estava
reclamar. “Quando beber a Água do bem atrás. Barnald conhecia bem a
Cristal, terá horror do sabor que essa floresta, e enquanto corria, desviando de
possui”, dizia o velho Garloff, enquanto árvores, entrando e saindo de trilhas,
agitava aquele cajado na cara de Barnald, subindo e descendo barrancos, já podia
tentando convencê-lo de que a água boa ouvir ao longe o som do vilarejo. Foi só
não podia ter sabor e muito menos cheiro quando sentiu a terra batida sob os pés
ou cor. que se permitiu caminhar. Ele havia
chegado.
— Minhas bolas — disse Barnald em uma
risada disfarçada, enquanto amarrava as Algumas pessoas ainda andavam pelas
cordas pelas alças dos baldes. Jogou-os ruas. Carroças de frutas, legumes e
nas costas do burro. — Já está acabando, verduras carregadas por cavalos magrelos
meu rapaz. geravam o famoso “croc, croc” que tanto
incomodava Lessane durante as manhãs.
Certo. Agora o fumo e a galinha. Barnald se embrenhou em uma viela e saiu
em outra. O vilarejo não era grande, na
Para a sorte de Barnald, a árvore não realidade, era bem pequeno, tendo no
ficava muito longe dali. Saiu em máximo duzentas pessoas, contando as
caminhada, puxando o burro pela corda e crianças como habitantes. Mas, ainda
apertando o passo. Em pouco tempo, o céu assim, Barnald conhecia cada rua e beco
vermelho assumiu tons mais escuros, algo como a palma da mão. Era o tipo de homem
próximo do roxo. E quando a Grande Árvore que odiava perder tempo em trajetos, e o
surgiu no meio da clareira central da conhecimento das ruas o fazia economizá-
floresta, a lua também havia se revelado, lo, nem que fossem alguns minutos.
emitindo um brilho fraco e amarelado.

Literatura
LiteraturaErrante
Errante 57
57
— Some da minha frente, seu peste.
E foi graças a isso que, quando
irrompeu na rua principal, viu Kirk Barnald saiu em caminhada. A Noite
Tosier entrando em casa. Estava quase havia chegado e agora o céu estava tão
fechando a porta quando gritou para ele. negro quanto o olho de um Pesadelo. O
caminhar o incomodou. Ele virou-se para
— Ah, seu maldito, achei que não o burro e deu mais um tapinha nas costas
chegaria a tempo. dele.

— Sempre chego a tempo — disse Barnald, — Aguenta mais uma corridinha,


jogando um dos sacos de fumo para Tosier. camarada?

— Como está a Lessane? — disse o velho, O burro o olhou como se dissesse “só se
enquanto apertava o saquinho com as mãos for para o inferno”.
enrugadas, quebrando os galhos e folhas
lá dentro. Correram até a última cabana, que era
onde Barnald morava. Ele abriu a porta da
— Está ótima. Ela mandou um abraço e um cerca e amarrou o burro na estaca. Tirou
beijo. os baldes de água do lombo do animal e os
colocou no chão, assim como fez com os
— Um abraço e um beijo pra ela também. pedaços de lenha. Ele jogou um pouco das
Adeus, seu merda — Tosier já estava iscas em frente do burro, acariciando as
fechando a porta quando Barnald o chamou costas dele e esperando que comesse.
novamente. O velho se virou para ele. —
Que foi, porra? — É o que tem pra hoje. Se eu fosse
você, não reclamaria.
— Não quero incomodar. Mas será que tem
como arrumar um pouco de isca pra janta? O burro não reclamou. Barnald também
Pensei em ir até a cidade pegar algumas não. Ele carregou os baldes até a cabana.
galinhas, mas já está tarde e tenho Quando abriu a porta, Lessane estava do
pressa. outro lado. Tão linda como sempre.

O homem bufou e entrou na casinha. — Oi, amor, que bom que chegou.
Barnald ficou do lado de fora, ao lado do
burro e batendo o pé contra o chão. — É sempre bom estar em casa.
Alguns minutos se passaram até que Tosier
voltou para fora com uma sacola de iscas. Sobre o Autor:
Jogou para Barnald. Douglas Noleto,
nascido e criado em
— Fica me devendo essa. E no seu lugar, Iguape, SP, é autor
de romances e contos
eu não teria pressa. Se ficar velho, vai
de suspense e terror
saber do que estou falando. psicológico.
Atualmente mora em
— Conte com isso — disse enquanto Curitiba e escreve,
amarrava a sacola no cinto. — Um abraço quinzenalmente, para
a Revista Perpétua,
e um beijo para a Menris e a Venris.
sua casa literária.

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Literatura Errante 59
Até que a Morte Nos Separe - II
por Doug Noleto

Jantaram as iscas com batatas e tomate. delicioso. O sorriso de Lessane era a o


Ao contrário do que Barnald esperava, flutuar da alma pelos bosques infinitos
Lessane não reclamou pela ausência do do paraíso. O brilho de seus olhos era a
frango. Ela é melhor do que o melhor dos chama que aquecia seus dias e guiava os
meus sonhos, pensou ele, enquanto a caminhos. Barnald estava ali, com uma
observava comendo. A lenha estalava atrás batata a meio caminho da boca, quando ela
dele, jogando calor e um brilho vermelho o olhou. Sorrindo, claro.
nos olhos da mulher. O rosto dela era
perfeito. O cabelo caia em ondas — O que foi, querido, algum problema?
irregulares sobre os ombros, dando a ela
a completude e a beleza que só os Antigos A voz daquela mulher, se é que tal
Anjos deveriam ter. A sua boca, lisa e palavra poderia ser direcionada à tamanha
linda, era um poço de hipnose, que perfeição, soava como música aos ouvidos.
roubava os pensamentos e a atenção de Ora melancólica, ora feliz, a voz de
Barnald a qualquer segundo. A não ser, é Lessane preenchia os espaços vazios
claro, quando ela sorria. Ah, aquele dentro de Barnald.
sorriso. Quão injusta a vida poderia ser
por dar a ela a maior dádiva da terra? — Nenhum problema, meu amor. Nenhum
Será mesmo que um desequilíbrio tão problema. Seu pai mandou um abraço e um
grande poderia acontecer sem a menor das beijo.
punições? Inebriante, poderoso, leve e

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para ser exato —, nada é novidade.
— Que saudades dele! Tenho que ir até
lá qualquer dia desses. Como está minha E esse era só um dos detalhes que
mãe e Venris? Barnald amava em Lessane. Pois embora
conhecesse-a bem, encantava-se com cada
— Não as vi, mas devem estar bem. uma de suas nuances que ela lhe dava o
prazer de admirar.
— Que ótimo. Por que não vamos até lá
na semana que vem? Quando o cachimbo apagou, até pensou em
acendê-lo novamente, mas a vontade de
— O que quiser, querida. estar com ela gritava enlouquecida dentro
de si. Foi até o burro e deu boa noite
Assim que terminaram a refeição, para o velho camarada, entrando em casa
Barnald foi para fora e se sentou em sua logo depois. Bateu a porta de madeira e
cadeira velha de madeira. O burro já passou o pau que a trancava bem atrás.
estava dormindo e a lua alta iluminava a Estava pronto para se virar, quando
copa de algumas árvores. A cabana deles, sentiu as mãos de Lessane em suas costas.
embora estivesse no vilarejo, ficava um Quando a olhou, teve a visão do corpo nu
pouco afastada das demais. Atrás da de sua amada. Foram para o quarto e
pequena construção de madeira havia tiveram uma de suas noites de fantasia e
apenas árvores. Uma das muitas entradas sonhos. O corpo quente de Lessane
da floresta. Contudo, Barnald, quando afastava o frio que chegava àquelas
precisava buscar lenha ou qualquer outra terras. Difícil dizer quem adormeceu
coisa, preferia a rota convencional, que primeiro. Quando se vive o amor, estar
partia da trilha pela saída da vila. Era acordado é como pisar nas nuvens da
mais segura e sempre havia outras pessoas irrealidade.
com quem conversar. Não que ele fosse o
homem mais comunicativo naquelas terras, Contudo, aquela foi a última noite em
mas era bom ter a presença de semelhantes que dormiram juntos. Em companhia do sol
por perto. Nunca se sabe o que pode estar que nasceria no próximo dia, sobreveio o
espreitando entre os troncos velhos e inferno.
enegrecidos das matas.
A vida muda de repente.
Barnald tirou um pouco de fumo
previamente torrado e triturado de um
saco que levava consigo, do resto que
sobrara da colheita anterior, e enfiou em Sobre o Autor:
um cachimbo que havia ganhado de Tosier Douglas Noleto,
quando se casara com Lessane. Acendeu-o nascido e criado em
e baforou um pouco da perfumada fumaça Iguape, SP, é autor
de romances e contos
das folhas da Grande Árvore. Ah, isso é
de suspense e terror
que era vida! Do lado de dentro da casa, psicológico.
ele podia ouvir a movimentação de Atualmente mora em
Lessane. Devia estar preparando algum chá Curitiba e escreve,
de ervas para dormir. Ele não precisava quinzenalmente, para
a Revista Perpétua,
ver para saber. Quando se está há muito
sua casa literária.
tempo com alguma pessoa — vinte anos,

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Entrevista

Entrevista com Doug Noleto


por Pablo Gomes

Literatura Errante - O conto "Até que a morte próximas, pensei: "ué, por que não fazer
nos separe", cujos primeiros capítulos mais coisas por esses lados? Isso me
estamos publicando nesta edição, se passa parece bom"
num contexto medieval e com elementos de No momento estou escrevendo um romance
fantasia, não é? Ele faz parte de algum que se passa nesse mesmo universo, claro
universo maior, sobre o qual você ou que estou tratando de expandi-lo em todos
outro escritor escreve? Onde poderíamos os aspectos (os alienígenas entram aqui),
ler mais? Ou o texto está sozinho, pelo mas também é algo que vai levar algum
menos por enquanto? tempo. A primeira versão está prevista
DOUG NOLETO - Sim, se passa em um mundo até o fim desse ano.
medieval "clássico", digamos. Algo até LE - Inserir Alienígenas em uma estória
meio padrão para o gênero. Quando eu o medieval é uma inovação ousada e, no
escrevi, o intuito era de ser apenas uma mínimo curiosa. De onde surgiu essa
história isolada. Um mundo para uma ideia?
história única. Porém, assim que
finalizei e mostrei para algumas pessoas DN - Eu gosto de pensar que tudo,

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absolutamente tudo, por mais insano que forma de escrita.
possa parecer, quando bem estruturado,
pode acabar fazendo algum sentido em Também sou um fã de games, e muitas das
qualquer história. histórias que consumi através deles,
desde a época do Snes (estou pensando em
Alienígenas em um mundo medieval me Chrono Trigger e Final Fantasy), acabaram
pareceu tão absurdo (e até cômico) que eu influenciando na minha forma de ver os
simplesmente NÃO RESISTI à ideia de limites que a ficção pode atingir. Acho
colocá-los lá. tudo fantástico.
Sem entregar muito, posso dizer que
esses "seres" terão um papel semelhante
ao de Noé e sua arca durante o dilúvio
bíblico.

Algo meio "entrem nessa nave! Seu


planeta irá explodir e a única esperança
da sua raça é vir conosco"

Claro que não se trata de uma nave e nem


de uma explosão, mas é algo nessa linha.

LE - Ficamos bastante curiosos, com


certeza! Certamente, o público também
ficará. Não esqueça de nos comunicar
quando o livro for publicado. Ficaremos
felizes em divulgá-lo.

Reparamos que no conto "Até que a morte


nos separe" que estamos publicando você
tem referências bem claras a Tolkien, e
um outro texto que avaliamos fazia
homenagem a Lovecraft. Visivelmente, você
cultiva o hábito da leitura. Além desses
autores, quais outros você sente que
compõem o seu arsenal de influências e
referências?

DN - Fui influenciado por um número sem


fim de autores. Quando mais novo, lia
tudo que aparecia na minha frente. Tudo
MESMO. não é à toa que, caso pergunte, eu
não conseguiria listar nem 10% dos
autores e livros que li durante essa
época. Essas foram influências
inconscientes. Influências que vieram sem
eu perceber de forma racional, já que
LE - Suas referências são bem ricas e
acabamos absorvendo um pouco de tudo que
diversificadas, mesmo! Uma excelente
consumimos.
fonte para a criatividade! E por falar em
Agora, para dizer alguns, posso dizer fantástico, irei citar um escritor do
que Poe, Lovecraft, King, Mary Shelley, gênero nessa pergunta; George Martin
Cesar Bravo, Agatha Christie, Isaac gosta de classificar escritores entre
Asimov até mesmo Dan Brown e Nicholas arquitetos e jardineiros, diferenciando-
Sparks, foram autores que me identifiquei os por os primeiros planejarem
muito, seja pela criatividade ou pela minuciosamente sua estória antes de

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escrevê-la, já sabendo tudo o que naturalmente, como pontos em uma costura.
acontecerá antes de a redigir, enquanto Não gosto de forçar as coisas para dentro
os seguintes podem até ter uma ideia do de uma estrutura pré-programada. Prefiro
que vem adiante, mas, vão descobrindo a deixar a história e os personagens o mais
estória enquanto a desenvolvem. Você crê livres possíveis até que eles cheguem a
que poderia se encaixar alguma das duas algum lugar.
formas de trabalho? Qual seria? Ao
Acredito que a primeira versão de uma
desenvolver seus textos, você utiliza
história deva ser escrita com o coração,
alguma técnica?
e as outras, com a mente. Um planejamento
DN - Eu amo esse assunto, e sempre que extremamente racional e detalhado de uma
penso nisso acabo aprendendo alguma coisa história serve, pelo menos pra mim, como
nova. uma rocha de gelo substituindo o coração.
Não funciono dessa forma.
Eu, particularmente, não costumo
planejar nada com antecedência. LE - Totalmente jardineiro, então.
Absolutamente nada. Pra você ter uma
E com esse método tão minimalista para
noção, quando comecei a escrever o Até
escrever, o que você acha que é
que a Morte nos Separe, eu não fazia a
imprescindível para o trabalho de
menor ideia do que a história se trataria
escritor?
(o que foi um desafio, já que eu tinha um
limite de palavras e não teria tanto DN - Acho que qualquer pessoa que tenha o
espaço para divagações e rodeios). Só interesse em ser escritora deve ser uma
sabia que seria de fantasia e que teria espécie de esponja humana. Absorver todo
alguma relação com amor. Só isso. Com o o mundo ao seu redor. Ter olhos atentos
desenrolar da narrativa é que eu acabei para as coisas que a cercam e usá-las
chegando em alguma coisa, e o resultado como fonte de inspiração. Às vezes,
foi esse. detalhes simples podem ser tesouros
O máximo que faço é pensar em algum
conceito. Esse é o meu ponto de "start".
Tenho um conto publicado no Wattpad em
que a ideia inicial era: "o que
aconteceria se alguém começasse a ter uma
profunda conversa com uma porta?"

A resposta seria: "nada, ora, o máximo


que aconteceria seria esse alguém acabar
aliviado emocionalmente por ter
desabafado com essa porta"

E depois pensei: "ok, mas e se essa


porta respondesse?"

E então saiu o conto.

LE - Então, basta a premissa. Como no


Cinema Novo, "uma ideia na cabeça e uma
câmera na mão". Aqui, parafraseando,
seria "uma ideia na cabeça e um teclado
na mão" (assumindo que se escreva em
computador)?

DN - Exatamente isso, cara. Tendo a


premissa na cabeça, o resto vem

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escondidos, tesouros que podem esconder sob a maldição do planejamento, como uma
ideias e, quem sabe, boas histórias. máquina do que uma máquina, sob a bênção
das emoções, escrever como um ser humano.
E sobre o ato de escrever, propriamente
dito, acredito que a melhor forma de LE - Então, partindo de sua resposta,
aprimorá-lo e torná-lo natural é através podemos deduzir que estou entrevistando,
da prática e leitura constante. Ler muito de fato, um humano. O que podemos falar
e escrever muito não é uma receita 100% do humano Douglas, por trás do autor Doug
infalível (Deus bem sabe que há muita Noleto?
gente escrevendo pra cacete mas sem o
DN - Não sei se fui programado pra
mínimo de noção do que faz), mas pode
responder que sim, mas, se não estou
acreditar que é um início maravilhoso.
enganado, acho que sou um ser humano em
LE - Curioso você mencionar o caráter sua mais simples definição (risadas).
humano do escritor. Recentemente,
Por trás do Douglas Noleto dos textos,
computadores com inteligência artificial
há o mesmo Douglas Noleto, só que falando
já têm sido capazes, sem precisar de
bem mais merda e com um português ainda
qualquer preparo prévio (como montagem de
mais chulo. Mas ainda é o mesmo. Sou um
modelos ou estruturas previamente
cara sonhador e apaixonado, talvez um
definidas), de escrever notícias. Você
pouco vaidoso (qual escritor não é?) e
acha que essas inteligências artificiais
repleto de sentimentos. Não conseguiria
serão capazes de construir estórias boas
me definir de uma maneira que não fosse
e atrativas? Se conseguirem, poderão ser
assim: cheio de sonhos.
considerados escritores?
Não é a toa que escrevo, afinal, a noite
DN - Cara, se entrarmos nessa, só vamos
não é o suficiente pra sonhar tudo que há
sair na semana que vem.
dentro de mim. Preciso sonhar dentro das
Mas, por favor, vamos falar disso! minhas páginas, porque é lá que encontro
a liberdade que o mundo real, muitas
A princípio, escritor é quem escreve,
vezes, não pode me dar. Se alguém estiver
logo, uma máquina que possui essa
disposto a sonhar comigo, será muito bem
capacidade pode, sim, ser considerada
vindo nesse mundo de sonhos.
escritora. Porém (com muita ênfase), acho
que existe algo no ser humano que é A literatura (humana, de preferência) é
intransferível e irreplicável, mesmo sob exatamente isso: um mundo de sonhos, e
qualquer tecnologia, e esse "algo" é o ela é livre para todos.
sentimento.
LE - Doug, foi um prazer conversar
Imagine uma mãe que perdeu o filho em contigo! Estamos felizes de publicar seu
um ataque de um cachorro raivoso. Agora conto, e esperamos que venham mais, no
imagine essa mãe escrevendo um livro futuro!
sobre cães raivosos.
Muito obrigado por esta conversa
Cara, uma máquina não reproduziria o agradável que ousaremos chamar de
ódio que essa mãe pode estar sentindo e entrevista! É outra experiência que
transmitindo para o papel. De forma esperamos poder repetir em breve!
alguma.
Forte abraço!
Claro que estou sendo parcial aqui
DN - Eu que agradeço a oportunidade, é
(afinal, não quero perder lugar para uma
uma honra estar aqui. Sempre que quiserem
máquina no futuro), e também acho que
conversar um pouquinho, seja sobre
talvez essas máquinas possam um dia
máquinas ou sobre fantasia com
reproduzir esses mesmos sentimentos, mas
alienígenas, estarei à disposição.
ainda assim, nunca seria perfeito.
Um abraço e até a próxima!
Acho mais fácil um ser humano escrever,

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Cartum

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Sobre o Autor:

Alberto Alpino, cartunista


do portal Yahoo!Brasil,
Folha de São Paulo, Playboy
e autor da tira Samanta,
publicada em vários jornais
brasileiros.

Prêmio HQMix Humor


Gráfico, 2013.

Instagram: @cartuns.alpino

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