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SUMÁRIO

Anterrosto
Folha de rosto
Sumário
Assistais a uma peça: Shakespeare e o metateatro
Prefácio do tradutor

A MEGERA DOMADA

Personagens

Prólogo

ATO I

1.1 Pádua, um local público. A troupe inicia a peça


1.2 Pádua, em frente à casa de Hortênsio

ATO II

2.1 Uma sala na casa do senhor Batista

ATO III

3.1 Casa do signor Batista


3.2 Em frente à casa de Batista
3.3 Ainda em frente à casa de Batista
ATO IV

4.1 Casa de campo de Petrúquio fora de Verona. Tempo frio


4.2 Em frente à casa de Batista
4.3 Uma sala na casa de Petrúquio em Verona
4.4 Em frente à casa do senhor Batista
4.5 Em frente à casa do senhor Batista
4.6 Na estrada de Verona para Pádua

ATO V

5.1 Em frente à casa onde Lucêncio está alojado em Pádua


5.2 Um banquete na casa de Lucêncio, após o matrimônio

Passagens adicionais
Sobre o tradutor
Página de direitos autorais
ASSISTAIS A UMA PEÇA: SHAKESPEARE E O
METATEATRO
IGOR ALEXANDRE CAPELATTO*

Os atores de vossa excelência, sabendo da


Melhora, estão vindo encenar uma alegre comédia,
Pois vossos médicos acham muito adequado,
Que tristeza demais espessou vosso sangue,
E a melancolia alimenta o delírio.
Portanto, acharam bom que assistais a uma peça
E enquadreis vossa mente em riso e diversão,
Que evitam mil danos e alongam a vida.

(Mensageiro, em A Megera Domada, 2021)

Excepcionalmente, abrindo esta comédia com um prólogo,1


Shakespeare reconfigurou a estrutura convencional do teatro elisabetano, de
cinco atos, para um texto em que um sexto ato — na verdade, no início da
peça — é inserido como um recurso metalinguístico. Prólogo, do latim
prologos — o que se diz antes — indica oficialmente uma passagem de
uma história que ocorreu anteriormente ao tempo presente da narrativa.
Estamos diante de uma peça de teatro, e o bardo magistralmente nos incube
de reafirmar que se trata de uma peça, reforça as circunstâncias de sua
performance: é uma peça de teatro e portanto, não há Batista, Catarina,
Bianca, Petrúquio e os demais indivíduos de Pádua, Pisa ou Verona. São
todos atores. Existe uma atriz que interpreta Catarina, existe um ator que
interpreta Petrúquio. Sly, Bartolomeu, o Taberneiro e o Lorde nos
asseguram disso. Tecnicamente elas são personagens de A Megera Domada;
na prática, são pessoas que, como a plateia, assistem e comentam sobre a
peça. Até que o Ato I inicie, A Megera Domada ainda não começou — um
paradoxo linguístico, teatral: a encenação está transcorrendo, todavia o
intertexto nos diz que a peça até então, não principiou — e, tudo que ocorre
é uma situação externa à dramaturgia, como se Sly e os demais que estão
com ele na taberna, estivessem lá, para assistir à peça, junto à plateia (antes
da primeira frase do prólogo, de antemão, vemos a listagem das
personagens, dividida em dois grupos: “Personagens: no prólogo” e “na
peça dentro da peça”).
“Na peça dentro da peça” é o antagonismo teatral mais denso que se
tem informação sobre o teatro elisabetano. E, talvez tenha funcionado
convenientemente na época (mais precisamente uns cinco ou seis anos após
a escrita da peça, quando o palco shakespeariano já estava em
funcionamento) devido a estrutura arquitetônica do Globe Theatre, que
permitia aos atores, no palco principal, estarem em constante interação com
a plateia. No texto da peça, talvez seja o jogo de leitura mais intrínseco da
metalinguagem: é metaliteratura (de modo que o prólogo nos dá uma
sensação de que as personagens estão relatando suas experiencias como
plateia de uma peça intitulada A Megera Domada, que será descrita logo a
seguir) e metateatro (pois refere-se ao teatro dentro do teatro). As rubricas
indicativas e algumas falas são indispensáveis para essas indicações do
dentro e fora da peça; portanto, a escolha de Shakespeare das palavras,
neste caso, são precisas para assinalar tais denotações. Assim, traduzir The
Taming of the Shrew não é um trabalho apenas de escolher as palavras mais
próximas do original, que melhor soam na língua a ser traduzida, dentro da
métrica e rítmica shakespeariana, mas de proporcionar esta orientação do
dentro e fora da peça, não somente pelas indicações como “Sly e outros
sentam para assistir à peça”, ou “entram os atores”, mas por diálogos como
o de Hortênsio no Ato IV, Cena II: “Mistake no more. I am not Litio, nor a
musician as I seem to be, but one that scorn to live in this disguise for such
a one as leaves a gentleman and makes a god of such a cullion. Know, sir,
that I am called Hortensio”, traduzido de maneira singular por Gentil
Saraiva Jr.: “sem mais engano, eu não sou Lício, nem músico como pareço
ser, mas alguém que se nega a viver neste disfarce, por uma tal que deixa
um cavalheiro e faz de um escroto tal um deus. Saiba, senhor, que me
chamam de Hortênsio”.

A dinâmica desta peça é a dos diálogos (diferente de Romeu e Julieta,


Macbeth ou Titus Andrônicus, por exemplo, cujas ações intensificam a
maior parte das cenas) mas, diálogos entre personagens (e não monólogos
ou solilóquios como Hamlet ou Ricardo III). É como uma longa conversa
sobre a vida matrimonial, se passando nos momentos pré-nupciais de
Petrúquio e Catarina. Na dinâmica das conversas entre as personagens, no
meio dos humores atribuídos, encontramos uma crítica ao casamento social,
arranjado por interesses políticos e sociais, em contrapartida ao amor, no
caso, proibido. Uma trama que é reforçada a posteriori em Romeu e Julieta.
É um tema comum no discernimento shakespeariano. Mas essa é só uma
das camadas desta comédia. As comédias de Shakespeare costumam
terminar com a cena do casamento: mas, essa talvez não termine. Porque o
casamento em questão é uma encenação, uma farsa. Apesar da cerimônia de
casamento ocorrer no palco, ela é mais um signo deste metateatro, portanto
a Trupe de Atores (apresentada no prólogo) está encenando este casório.
Encenação que cai em uma outra camada metalinguística quando somos
levados a suposição de que tudo não se passa de um sonho do funileiro Sly.
A peça termina (passagens adicionais) com Sly sendo acordado pelo
taberneiro:

SLY
Ela vai? Agora eu sei como domar uma megera.
Eu sonhei com isso toda essa noite até agora,
E tu me acordaste do melhor sonho
Que eu já tive na vida. Mas eu irei pra minha
Esposa agora e a domarei também,
Se ela me enfurecer.

TABERNEIRO
Não, espere, Sly, pois eu irei pra casa contigo
E ouvirei o resto do que sonhaste esta noite.
Se considerarmos que “o sonho é uma realização do desejo2”
(FREUD, 2001 [1899]), e que o desejo é a busca de um objeto para suprir
uma falta, podemos considerar que talvez o discurso sobre a definição do
amor e o casamento como uma união entre duas pessoas que se amam, no
sentido de se desejarem, refira-se ao desejo de Sly, sua busca por preencher
aquilo que lhe falta, e que lhe causa angústia — “E tu me acordaste do
melhor sonho que eu já tive na vida”. Toda reflexão sobre a personagem
Catarina, a mulher ingênua, domada ou a potência feminina domadora, e o
desejo perverso de Petrúquio, talvez sejam revérberos de quem é Sly. Ainda
que Sly esteja de fora do núcleo central da peça dentro da peça, é dele que,
ao que tudo indica, se concentra A Megera Domada. Talvez, numa pegada
de Hamlet, ou Ricardo III, ou ainda Macbeth, esta comédia aborde as
imagens da consciência de uma personagem: o que ela deseja, sua memória,
o que está recalcado, seus medos, angústias e perversões.
Para Lacan “o desejo de dormir é, de fato, o maior enigma”.3 Não no
sentido fundamental de nossa necessidade biológica, mas na condição do
desejo de dormir. É nessa condição que nascem os sonhos de angústia (em
busca de preencher aquilo que falta no sujeito, uma perda, resolver uma
inquietação, lidar com um trauma). Quando o sonho refere-se a uma
angústia, o despertar do sujeito que sonha, o coloca numa condição de
despertar para “continuar sonhando” (ibid.). É como nossa consciência
recalca o real, por não estarmos em condições psíquicas de revelar a sua
verdade a nós mesmos. Sly dorme. A Megera Domada inicia. Seria então a
peça encenada pela Trupe de Atores, o recalque das angústias, do desejo de
Sly? Nas palavras dele: “Eu sou um lorde, e tenho uma dama assim? Ou eu
sonho? Ou tenho sonhado até agora?” (Ato I, Cena II). Nas passagens
adicionais (uma impressão que não está no fólio, mas possivelmente
baseada na encenação do original shakespeariano), a peça termina com o
Taberneiro dizendo: “e ouvirei o resto do que sonhaste esta noite”. E finda o
último ato, sem que possamos ouvir (ler) o final do sonho, que talvez não
tenha sido contado justamente como uma alegoria ao recalque: Sly talvez
não queira saber o que sucedeu, talvez não possa saber (não está
mentalmente hábil a compreender tais imagens), talvez nós, espectadores,
não possamos saber. O joguete, nestas passagens adicionais, e muito
interessantes quando incluídas na encenação, é justamente essa de nos
deixar curiosos, com um diálogo que sugere que algo mais intrigante possa
ter ocorrido. Incluir estas passagens no texto que se segue nesta edição, é
uma escolha do tradutor que só nos enriquece, diante da escolha
shakespeariana de discursos anfibológicos.
Assim, observamos que a tradução de A Megera Domada concentra
uma atenção acentuada: as palavras são sorrateiras, algumas vezes
ambíguas; outras vezes são sutis, quase como uma poeira esmaecendo no
vento. Há uma fala de Petrúquio, por exemplo, para Catarina que é atribuída
a metáfora da consciência: “Pois é a mente que torna o corpo rico, e como o
sol rompe as nuvens mais escuras, assim a honra espia pelo traje mais
humilde” (Ato IV, Cena 3). O trabalho de Gentil Saraiva Jr., é denso e suave
ao mesmo tempo, tem essa energia sorrateira, tem o discurso iletrado (de
personagens que são quase que jerks), o discurso popular e o erudito. Ao
buscar não concentrar em apenas uma versão da peça (do primeiro fólio,
por exemplo), acaba por trazer alguns trechos de discursos que nos auxiliam
na leitura desta metalinguagem ou mesmo na construção psicológica de
determinadas personagens. O prazer que, creio eu, o leitor terá, ao
contemplar essa tradução de The Taming of the Shrew, é o de ouvir as
personagens — a escolha das palavras, dos arranjos das frases, nos faz
ouvir timbres e entonações. Escutamos a doce voz de Catarina e a
rouquidão brusca de Petrúquio. Não é um trabalho fácil, pois esta é uma das
peças shakespearianas com maior número de verbetes ou frases em latim,
muitas delas, com intenso caráter jurídico. Ainda, há as citações
mitológicas, que, no caso são feitas diretamente de Metamorfoses de Ovídio
— e, ao que se sabe, Shakespeare teria tido acesso, não a um fólio de
Metamorfoses, mas a duas ou três versões — e, algumas vezes, o bardo
mantinha a versão em latim do próprio Ovídio; e ainda, temos palavras em
italiano, principalmente com referências ao dialeto de Pádua, Pisa ou
Veneza, diferenciando a região da qual a personagem é oriunda. Uma peça,
costumo dizer, escrita em quatro idiomas: o inglês britânico da era
elisabetana, o inglês britânico recriado por William Shakespeare (o que
inclui alterar a grafia de algumas palavras com intuito de mudar a
sonoridade diante da métrica poética usada na obra shakespeariana, criar
palavras e recriar outras), o latim e o italiano (da época). Traduzir esta peça
é um trabalho poliglota, um trabalho de escavação e de muito estudo.
Encontrar palavras que, diante deste poliglótico texto, consiga conceber
uma unidade, uma constância na leitura, sem quebras, sem fugas, além
disso, manter a dinâmica metalinguística — e, mais, solucionar o fato de
que, originalmente a peça foi escrita para a interpretação dramatúrgica, no
palco — escrita para atores — e não para a literatura e que, hoje, uma obra
de Shakespeare não é direcionada apenas ao corpo cênico, mas a leitura,
como se lê um romance.
Ademais, costumo dizer ao leitor que leia esta peça imaginando que as
personagens são da Trupe de Atores, portanto estão encenando, e que as
figuras que estes constroem, em determinados momentos da peça são
‘desmascarados’, sendo colocados como os atores que os interpretam, ou o
contrário, tal qual, por exemplo, Trânio que entra trajado como Lucêncio,
ou Hortênsio que em parte de sua entrada cênica, o faz encenando Lício —
e, portanto, arriscarem o jogo dramatúrgico de imaginar cada uma destas
figuras com duas entonações vocais distintas (uma para o Ator da Trupe,
outra para a personagem encenada na peça dentro da peça). Ou ainda, num
joguete mais intrínseco, ler a peça como se Sly estivesse contando-a,
interpretando-a em sua mente.

[Soam trombetas para anunciar o início da peça.]


Sente-se com Sly, Taberneiro, Lorde e Bartolomeu e tenha um bom
espetáculo!

* Mestre e Doutor em Multimeios pela Unicamp, Psicanalista Clínico e Professor. Colaborador


do Instituto Shakespeare do Brasil. Pesquisador de Shakespeare e Pesquisador do Instituto de
Linguagem da Unicamp. Tradudor e revisor de Shakespeare pela Marin Claret.
1 Ainda que tenha usado o recurso do prólogo em outras peças, é em A Megera Domada que o
prólogo adquire o caráter metateatral, não somente da quebra da quarta parede, mas de retirar os
próprios atores de dentro do palco e os inserir fora da dimensão do proscênio, junto à plateia, na
condição de plateia.
2 In: FREUD, S.; SALOMÃO, J. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001,
capítulo 3.
3 In: LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992. 398 p.
PREFÁCIO DO TRADUTOR

Explicando A Megera Domada: este é o título consagrado em


português ao longo do tempo. Acontece que o título original é The Taming
Of The Shrew: A Doma da Megera, que teve sua primeira publicação no
Folio de 1623, sendo este texto considerado o oficial para esta peça; este é o
texto fonte para esta tradução, recomendado por estudiosos e pelas edições
consultadas, especialmente a da Oxford, da obra completa de Shakespeare1
e a de The Arden Shakespeare (2003), por ser provavelmente originado dos
papéis do autor, e não de um ponto de teatro (prompter) ou rascunho (foul
copy). Para poder situar a peça em seu contexto histórico e teatral/literário e
esmiuçar o significado das palavras que compõem o título, será usada neste
prefácio a tradução literal dele, sem prejuízo para a forma já clássica em
português, muito pelo contrário, iluminando-a, já que existe outra peça com
título semelhante, abordada já no próximo parágrafo.
É preciso, então, estar atento para não confundir esta peça com outra,
parecida, com título parecido: The Taming Of A Shrew, literalmente, A
Doma de Uma Megera (1594) que, segundo Brian Morris,2 é uma
reconstrução imperfeita, de memória, do enredo da peça de Shakespeare,
por alguém (um ator ou um grupo de atores) que misturou subenredos,
agregou trechos de peças de outros autores, como de Christopher Marlowe
(1564-1593), já que foram encontrados muitos pontos de convergência com
obras desse autor, especialmente Doctor Faustus (1601) e Tamburlaine
(1590), e criou uma obra diferente, com nomes diferentes de personagens e
com três pretendentes para três filhas, sem rivalidade de pretendentes por
uma delas apenas (embora seja preciso lembrar que no final da peça de
Shakespeare há três casais, pois um dos pretendentes dispensados,
Hortênsio, se casa com uma viúva, e assim é possível a cena da aposta
sobre a esposa mais obediente). Apesar do ano de publicação da obra de
Shakespeare ser bem posterior ao da outra obra, já existiam cópias
manuscritas dessas peças bem antes dessas datas (há registro de encenação
desta peça antes de 1592), tanto em posse dos autores como de atores e
funcionários dos teatros (por isso foi possível a publicação do Folio em
1623, sete anos após o falecimento de Shakespeare).
Outra diferença entre as peças é que, embora ambas tenham um
Prólogo com duas cenas, no qual é contada a história de um mendigo
bêbado que cai no sono ao lado de uma taberna e sofre o embuste de um
lorde que o convence, ao acordar em sua fina casa, que é na verdade um
nobre esquecido de sua vida de luxo, e que recebe em sua mansão uma
trupe de atores que encena a peça A Doma da Megera, apenas em A Doma
de Uma Megera existe o Epílogo após a peça, no qual o lorde manda
colocarem o mendigo bêbado adormecido de volta ao lado da taberna, onde
ele acorda e fica pensando no sonho maluco que teve e o conta ao
taberneiro (neste caso, trata-se de um taberneiro mesmo; no Prólogo, é uma
hospedeira/cervejeira), enquanto se prepara para voltar para casa e para a
esposa. Segundo Brian Morris e outros estudiosos, isto não é prova
suficiente para dizer que a peça de Shakespeare não seja a que inspirou a
criação da outra, já que muitas peças da época tinham prólogo, mas não
epílogo, apesar de alguns prólogos serem estórias completas em si e não
precisarem de complementação. Neste caso, há esse mistério, já que em A
Doma de Uma Megera há quatro interlúdios com falas do mendigo Sly, e
em A Doma da Megera só existe um. Outra explicação aventada é de que
haveria falta de atores, e os poucos disponíveis precisariam fazer vários
papeis na peça, e ao final estariam todos no palco e não haveria como
saírem e voltarem para encenarem o epílogo, o que ocasionaria esta falha no
texto. Para completar, exatamente nos anos de 1592 a 1594, houve a peste
bubônica em Londres, e que foi necessário o fechamento de locais públicos,
só reabertos totalmente em 1594, e as poucas apresentações eram com
elenco reduzido. E há o relato de que uma companhia que tinha dois atores
famosos na época (Eduard Alleyin e James Burbage, ator, construtor e dono
de teatros, pai de Richard Burbage, um dos maiores atores da época, que
participou depois das companhias de Shakespeare, Lord Chamberlain’s
Men e The King’s Men, e foi o primeiro a fazer o papel de Romeu e
Hamlet) foi dividida por causa de conflito entre eles, sendo que um desses
dois novos grupos formados não tinha o texto, e os atores tiveram que
reconstruir várias peças de memória para poderem fazer apresentações fora
de Londres por causa da peste.
Outro detalhe importante sobre A Doma da Megera é que todos os
registros indicam que esta é a primeira (ou mais antiga) comédia de
Shakespeare (ou até mesmo a peça mais antiga, considerando o tratamento
dedicado às personagens femininas, mais conservador do que na Comédia
dos Erros e em outras), com base em fontes cômicas nativas da Inglaterra e
de outros países (o tema tinha amplo apelo popular) e em uma tradução em
inglês de Gli Suppositi (The Supposes/Os Supostos, feita por George
Gascoine em 1566 e encenada no mesmo ano, e publicada em 1573), do
poeta italiano Ludovico Ariosto (1474-1533, cuja obra mais famosa é o
romance épico em versos Orlando Furioso). O Bardo conhecia a literatura
dramática romana e a tradição da commedia dell’ arte, heranças que
aparecem nos nomes e descrições de personagens e locais, dando uma
forma mais clássica e socialmente aceitável a uma arte de teatro popular
local. Com tudo isso, não podemos esquecer que o tratamento do tema e dos
subenredos de uma forma mais criativa é uma invenção de Shakespeare,
especialmente a atuação de Petrúquio. A maneira como ele executa a “doma
da megera” é a contribuição nova de Shakespeare para esta tradição teatral,
na qual Petrúquio derrota Catarina em seu próprio modo de atuação, com
seu próprio modo de humor.
Desde o título, esta peça já se anunciaria como uma contribuição ao
debate sobre o status das esposas e os direitos e deveres do matrimônio
(MORRIS, p. 111), embora carregue também no peso desumano da “doma”
de uma pessoa, já que o verbo domar (to tame) indica uma conotação de
domesticação animal, de domínio, jugo, controle, em suma, de tornar a
pessoa objeto dessa ação (shrew, uma mulher de temperamento e discurso
violentos, que gosta de repreender, reprochar, desaprovar raivosamente os
outros) obediente ao seu dono, proprietário, o que já leva ao segundo item
do debate, que é o arranjo de casamentos baseado em contratos e trocas
comerciais. Fica muito claro que o casamento é uma oportunidade de
negócio para todas as partes: é o momento de assegurar a sobrevivência
através de dotes e garantias de herança.
Entretanto, Shakespeare nunca apresenta personagens planas ou
simples; ao mesmo tempo em que se desenvolve a “doma da megera”, a
irmã mais nova, Bianca, segue o caminho oposto; de dócil e obediente filha,
ela vai aos poucos se mostrando dona de si, dominante em seu caminho
para se tornar uma mulher e esposa não submissa ao marido/masculino, o
que culmina no contraste final da peça, quando ocorre a aposta entre os três
maridos para saber qual esposa é a mais obediente, que é quando os papéis
se invertem: Catarina se torna a fiel, obediente e dedicada esposa, enquanto
Bianca assume a antiga atitude de megera da irmã mais velha,
desobedecendo ao marido quando chamada e se colocando dona da
situação, seguida nisso pela antiga viúva, que não se submete ao papel de
esposa subjugada ao marido. Esse contraste tanto social quanto dramático
no desenvolvimento da personalidade dessas personagens é um espaço
deixado em aberto por Shakespeare, pois a transformação de uma mostra o
efeito oposto na outra, e o que era para ser o final de uma trama se torna o
começo de outra: quando uma mulher percorre o caminho da rebeldia para
submissão, duas outras se rebelam. Em termos de abertura, os personagens
masculinos também demonstram sua capacidade: Petrúquio, que em teoria
seria apenas um homem direto, sincero, um negociante, um homem prático,
se revela com grande habilidade e sutileza para avaliar o que poderia
funcionar para a mudança de Catarina (já que, no fundo, o que ele deseja é
uma vida de amor, paz e alegria com Catarina), e o jovem e apaixonado
Lucêncio aparece cheio de expedientes (os “supostos”, disfarces, trocas de
identidades, mal-entendidos ou situações inventadas, do título da peça
italiana) e manobras para realizar seu intento de conquistar Bianca, por
quem se apaixonara à primeira vista. Muito embora esta não seja uma
crítica da peça em detalhes, é importante ressaltar que essa mescla de
enredo principal com subenredos, além das duas cenas iniciais do prólogo e
a cena adicional do epílogo (que foi traduzido e está incluso nesta edição,
tanto para curiosos quanto para quem desejar encenar a peça com esta
possibilidade), tudo isso torna esta peça memorável e sem paralelo no
drama elisabetano (MORRIS, 2003, p. 115). Para culminar, ainda há a
questão do solilóquio final de Catarina, personagem com discurso mais
longo entre todos e que centraliza o objetivo do enredo, que é demonstrar a
transformação de uma megera numa esposa obediente. A colocação desse
monólogo no fim expõe duas possíveis transgressões aos padrões sociais e
religiosos da época operadas por Shakespeare em suas personagens:
primeiro, não existe a cena do matrimônio entre Catarina e Petrúquio,
apenas a narração do episódio por Grêmio (Ato 3, Cena 2), significando que
não houve a encenação do ritual do sacramento do matrimônio e não houve
o sermão do sacerdote, realçando as virtudes e os deveres de cada cônjuge
nesse sacramento; segundo, quem vai assumir esse enunciado é Catarina, na
festa de casamento da irmã (cujo casamento, aliás, é clandestino; só o
perdão dos pais dos noivos os livra de alguma pena legal/contratual).
Assim, o sermão é enunciado por uma personagem feminina, apesar de na
época os papéis femininos serem feitos por rapazes. Mesmo com tudo isso,
Shakespeare conseguiu dar essa torção nas convenções do seu tempo.
Contudo, ainda há um toque final na peça, uma última transgressão,
literalmente, nas últimas falas, que mostra a maestria de Shakespeare e sua
visão de liberdade e proposição de abertura a novas interpretações, que
resolve o problema proposto pelo enredo e faz um fechamento da trama,
mas um fechamento ao contrário, uma torção final que, em vez de fechar,
abre, sugere, provoca. Naturalmente, isso fica como incitação à curiosidade
dos leitores; só quem for até o final vai saber do que se trata, pois só assim
poderá ler a nota que aborda essa questão. Adianto somente que vale muito
a pena!
Já a questão do prólogo e do epílogo, com uma trupe de atores
encenando uma peça dentro da peça para o mendigo bêbado vestido de
nobre em uma mansão (a peça pregada a ele por um lorde real, com seus
caçadores e criados), traz a seguinte ideia que deixa todos os espectadores e
leitores perplexos: afinal, qual peça é mais importante, ou, qual peça
realmente está dentro da outra? Esse questionamento entra em paralelo com
a pergunta de Sly, se ele é um mendigo sonhando ser um lorde, ou um lorde
que sonha ser um mendigo, assim como Catarina finge acreditar no que
Petrúquio diz, para não contradizê-lo, que é semelhante ao Pajem, quando
faz o papel de esposa submissa do mendigo-enquanto-lorde. De fato, há
muitas camadas interpretativas numa peça cujo tema é aparentemente banal
e de domínio popular, que apenas mostraria o método de “domesticação” de
uma esposa colérica por um marido grosso, mas que na realidade traz
discussões entre o que é aparência e realidade, entre o que é fato e o que é
ficção, entre real e sonhado, ou concretude e ilusão, o que nos leva de novo
ao título original da peça italiana, os “supostos”, os mal-entendidos, as
trocas, o mundo (ou jogo) do faz de conta, de fingimento, de suposição e
também de mudanças e metamorfoses (MORRIS, 2003, p. 118), aspectos
que estão presentes até hoje em nossa sociedade, em nosso dia a dia de
redes sociais e mídias tradicionais, por exemplo, em que é tão difícil
diferenciar o que é real do que é falso ou fingido, contudo, um mundo que,
além de reeditar aspectos sociais de séculos passados, também está sempre
reencenando peças de Shakespeare.
Podemos postular ao menos duas críticas ao texto de Shakespeare: a
primeira, ao uso do termo “doma” aplicado a um ser humano (ou quando
algum personagem é abordado ou insultado pelo nome de um animal),
caracterizando uma negação da humanidade da personagem.3 A segunda, ao
machismo mercantilista da época, provável causa inclusive do
comportamento de Catarina, já que sua família é composta de um pai e duas
filhas, sem presença ou referência da mãe; já o caso de Bianca é uma
extrapolação do de Catarina, pois chega a acontecer um leilão feito pelo pai
entre os pretendentes, e que isso é um retrato fiel do que acontecia na
Inglaterra da época de Shakespeare, em que amor, casamento e dinheiro
estavam intimamente entrelaçados, exatamente como retratados nessa peça,
sem esquecer a religiosa obediência da esposa ao marido; entretanto, neste
caso, a representação do machismo é contraditada pela rebeldia e audácia
operadas pelas personagens Bianca e Viúva em sua inversão de atitude
diante de um mundo dominado por homens, demonstrando que o espírito
humano não pode ser objeto de domesticação, no geral e, no particular, o
feminino não pode ficar sob o jugo do masculino.
Naturalmente, o dramaturgo se encontra numa posição difícil, pois ele
não tem como explicar o motivo de suas escolhas para um enredo assim, e o
que nos resta é lançar hipóteses, embora também não possamos nos furtar a
tomar uma posição; neste caso, de ressaltar os aspectos negativos do
comportamento dos personagens e o de ataque à sua humanidade. Inclusive
por isso muitos textos alternativos foram surgindo ao longo dos últimos
quatrocentos anos, especialmente no sentido de criar interpretações,
adaptações ou cenas alternativas para o final da peça. Diretores e atores
trabalharam para modificar o papel de esposa submissa de Catarina a
Petrúquio, principalmente nos últimos dois séculos. Houve também
recriações da peça de muitas maneiras, tanto no teatro quanto no cinema,
com variações impossíveis de serem listadas aqui, mas sempre no intuito de
buscar soluções para essa situação complexa. Por isso recomendo a leitura
da edição The Arden Shakespeare, tanto a segunda série quanto a terceira,4
cujas introduções fazem um histórico detalhado desses acontecimentos
desde as primeiras encenações de A Doma da Megera.
Esclarecendo mais um pouco o título: na época de Shakespeare, o
termo shrew claramente indicava a figura de uma mulher intratável, dada a
críticas e repreensões (MORRIS, 2003, p. 120). Todavia, como acontece
com muitas palavras e expressões usadas por Shakespeare, anteriormente
shrew teve outros significados, inclusive um masculino; inicialmente, por
volta do ano 725 D.C., designava um tipo de animal mamífero de pequeno
porte (2,5 a 10 cm), o musaranho, semelhante a um camundongo, da família
Soricidae, que quando atacado libera um odor como o dos gambás e cujas
glândulas salivares produzem um veneno como o das serpentes, além de
algumas espécies possuírem eco-localização, como os morcegos, e dentes
permanentes. Estes pequenos bichinhos, no entanto, possuem um
metabolismo acelerado e podem ingerir alimentos equivalentes a seu peso
de três em três horas. Seus principais predadores são o gavião e a coruja. Já
no século XIII D.C., o termo era aplicado a um homem maligno, malvado,
maldoso; e, ao final do século XIV, indicava o próprio demônio. O primeiro
registro dessa palavra aplicada a uma mulher no sentido mencionado no
início do parágrafo é no epílogo a The Merchant’s Tale (O Conto do
Mercador), que é parte de The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer
(1340-1400; Os Contos da Cantuária é uma coleção de 24 estórias, sendo
que a maioria em verso, escritas a partir do ano 1387), e se tornou o sentido
predominante no final do século XVI, época de Shakespeare. Mesmo assim,
shrew tinha atrás de si esse rastro de significado maldito, maligno e até
satânico (MORRIS, 2003, p. 120). A partir disso, pode-se dizer que um dos
sentidos dos atos de Petrúquio em relação à Catarina seria de exorcizar esse
demônio que se expressaria pela língua dela. Por outro lado, para poder
fazer isso, ele teria que ter em si um conhecimento prévio desse fenômeno,
pois, do contrário, não poderia operar essa transformação. Isto é, ele teria
que ter passado pelo mesmo processo para ganhar essa experiência, e assim
os termos também se aplicariam a ele. Como é dito, ele derrota a megera
em seu próprio modo de atuação. No entanto, o objetivo desta nota
introdutória é de somente realçar a ampla variedade de interpretações que
os textos do Bardo permitem, indicando alguns caminhos, sem maiores
ramificações. Essa tarefa de explorar essas filigranas fica para os críticos.
Destarte, seguem alguns detalhes sobre o processo de tradução ou
recriação do texto em português. Em geral, Shakespeare utiliza pentâmetros
iâmbicos em suas composições. Apenas em pequenos trechos são utilizados
outros tipos de versos, equivalentes em português a versos de cinco ou sete
sílabas e variações. Quanto aos iambos, são pés (de verso) de duas sílabas
métricas, na ordem átona/tônica, que no grego eram compostos com sílabas
breves/longas, devido à diferença linguística. Cincos pés compõem um
pentâmetro com esse tipo de pé.
Na versificação em língua portuguesa, o ritmo é marcado pela
acentuação, ou seja, a variação entre as sílabas tônicas e átonas, e o nome
do verso é dado pelo seu número de sílabas (métricas, não o número
normal, isto é, contadas até a última tônica). Assim, um pentâmetro iâmbico
se tornaria, em tese, um decassílabo em nossa língua.
Como o português é uma língua mais analítica, ao contrário do inglês,
que é mais sintético, tendemos a ter mais palavras para expressar o mesmo
significado em português do que no inglês; deste modo, é extremamente
difícil traduzir pentâmetros em decassílabos. Isso realmente poderia
acontecer, mas muitos ajustes linguísticos, sintáticos ou semânticos, seriam
necessários. Nos demais casos, isto é, na maior parte da peça, o objetivo foi
traduzir utilizando quatorze sílabas métricas como limite máximo (o
chamado alexandrino arcaico; nos permitimos tanto a contagem tradicional
do Brasil, que vai até a última sílaba tônica do verso, quanto a europeia, que
vai até a última átona, que é o alexandrino espanhol) e o decassílabo como
limite mínimo. Talvez um ou outro verso tenha oito ou nove sílabas
métricas devido ao puro acaso.
Dentro desse parâmetro, foram utilizados decassílabos com
acentuações na terceira, sexta e décima sílabas, e na quarta, oitava e
décima, bem como alexandrinos clássicos (ou franceses), com dois
hemistíquios de seis sílabas métricas, com acentuações na terceira, sexta,
nona e décima segunda sílabas e os brasileiros, na quarta, oitava e décima
segunda. Como é impossível manter essa regularidade, até porque nem o
próprio Shakespeare faz isso, pois seu pentâmetro não é absolutamente
rígido quanto ao número de sílabas, também foram usados versos de onze e
treze sílabas (o alexandrino espanhol, com uma sílaba átona após a sexta,
separando o primeiro do segundo hemistíquio), com acentuações marcadas
na terceira, sexta, nona e na última, e quarta, oitava, décima e/ou décima
primeira e/ou décima terceira (e variações, já que às vezes o sentido não
permite a troca de um termo por um similar, tendo em vista a precisão
vocabular de Shakespeare).
Outro recurso utilizado em algumas passagens foi o enjambement (ou
cavalgamento, encadeamento ou quebra de verso), para evitar que os versos
tivessem mais que quatorze sílabas métricas, pois em muitos casos havia
versos com menos sílabas logo depois de um mais longo e assim foi
possível transferir termos para o verso seguinte sem perder o ritmo ou a
meta global máxima estabelecida.
Exemplo disso numa fala na cena 2 do Prólogo:

MESSENGER
Your Honor’s players, hearing your amendment,
Are come to play a pleasant comedy,

MENSAGEIRO
“Os atores de vossa excelência, sabendo da
Melhora, estão vindo encenar uma alegre comédia,”

Outro exemplo, este do Ato IV, cena 4 (neste caso, para ter dois versos
alexandrinos em português):

MERCHANT
I warrant you. But, sir, here comes your boy.
’Twere good he were schooled.

MERCADOR
Eu lhe prometo. Mas, senhor, aí vem seu
Rapaz. Seria bom se ele fosse instruído.

Outro aspecto a ser bastante considerado foi o uso da segunda pessoa


do discurso, tanto singular quanto plural (tu, vós, você e pronomes de
tratamento), sendo que no original há uma variação de uso, especialmente
na segunda pessoa do singular entre os termos You e Thou (este seria uma
antiga forma de Tu no inglês). A partir das pesquisas feitas na preparação
para a tradução, há uma distinção nos textos das peças entre You e Thou (no
singular), pois várias vezes há alternância entre os dois termos nas falas e às
vezes inclusive dentro de uma mesma fala dirigida a uma mesma
personagem. Sendo assim, o uso de cada pronome foi feito dentro da
relação de cada personagem com os demais. Ou seja, a variação do uso dos
pronomes está de acordo com o texto da peça, não é um uso aleatório nem
errôneo. Em várias passagens, há notas de rodapé indicando essa mudança
no uso dos pronomes.
1 William Shakespeare, The Complete Works, Compact Edition, Clarendon Press — Oxford,
1988.
2 The Taming of the Shrew, ed. Brian Morris, The Arden Shakespeare second series, Londres,
2003.
3 Para um estudo mais elaborado deste tema, ver: Hingo Weber, The Primordial Book. Porto
Alegre, Floruit, 2019. Parte III, pg. 161 em diante.
4 The Arden Shakespeare — Third Series, The Taming of the Shrew, ed. Barbara Hodgdon,
London, 2019.
A MEGERA DOMADA
PERSONAGENS

NO PRÓLOGO
CHRISTOPHER SLY, mendigo/funileiro
HOSPEDEIRA, taberneira/cervejeira
LORDE
BARTOLOMEU, seu pajem
CAÇADORES
CRIADOS
TRUPE DE ATORES

NA PEÇA DENTRO DA PEÇA


BATISTA Minola, um rico cidadão de Pádua
CATARINA, sua filha mais velha
BIANCA, sua filha mais nova
PETRÚQUIO, um cavalheiro de Verona, pretendente de Catarina
GRÚMIO, seu criado pessoal
CURTIS, seu criado principal na casa de campo
GRÊMIO, um velho cidadão rico de Pádua, pretendente de Bianca
HORTÊNSIO, outro pretendente de Bianca, amigo de Petrúquio, que se
disfarça como Lício, um professor
LUCÊNCIO, cavalheiro de Pisa, pretendente de Bianca, que se disfarça
como Câmbio, um professor
TRÂNIO / BIONDELLO, criados de Lucêncio
VINCÊNCIO, rico cidadão de Pisa, pai de Lucêncio
MERCADOR, de Mântua
VIÚVA, esposa de Hortênsio
ALFAIATE
CHAPELEIRO, camiseiro, comerciante de itens de vestuário, incluindo
chapéus
GUARDA
NATANIEL, FILIPE, JOSÉ, NICOLAU, PEDRO, criados de Petrúquio
PRÓLOGO

1.1 DIANTE DE UMA CERVEJARIA EM UMA CHARNECA


Entram Christopher Sly, o mendigo, e a Hospedeira.

SLY Vou lhe espancar, de verdade.

HOSPEDEIRA Vai pro tronco, seu canalha.

SLY Você é uma descarada. Os Slys não são canalhas. Olha nas
Crônicas; nós chegamos com Ricardo1 Conquistador, portanto, paucas
pallabris, deixa o mundo andar. Sessa!2

HOSPEDEIRA Não vai pagar pelos copos que quebrou?

SLY Não, nem um centavo. Vai, São Jerônimo,3 vai pra tua cama fria
te esquentar.

HOSPEDEIRA Eu sei o meu remédio, devo ir buscar o guarda da


paróquia.4
Sai

SLY Da paróquia, do distrito, do condado, responderei a ele no


tribunal. Não me moverei uma polegada do lugar, rapaz. Que ele venha,
amavelmente.

Ele deita-se no chão e cai no sono.


Trompas soam. Entra um Lorde, vindo da caçada, com seu
séquito de Caçadores e Criados

LORDE
Caçador, te encarrego, trata bem meus cães.
Descansa Merriman — o pobre cão está exausto —
E junte Clowder com a cadela de latido intenso.
Não viste, rapaz, como Silver pegou bem o cheiro
No canto da sebe, onde estava mais fraco?
Não perderia esse cão nem por vinte libras.

PRIMEIRO CAÇADOR
Ora, Belman é tão bom quanto ele, meu lorde.
Ele latiu alto à perda total do cheiro,
E duas vezes farejou o cheiro mais fraco.
Confia em mim, eu o acho o melhor cão.

LORDE
Tu és um tolo. Se Eco fosse tão rápido,
Eu o estimaria em doze vezes mais.
Mas alimenta-os bem, e cuida a todos.
Amanhã pretendo caçar de novo.

PRIMEIRO CAÇADOR Eu o farei, meu senhor.

LORDE (notando Sly)


Que é isso? Um morto, ou bêbado? Vê, ele respira?

SEGUNDO CAÇADOR
Respira, meu senhor. Não fosse o calor da cerveja,
Isso seria uma cama fria prum sono tão profundo.

LORDE
Oh fera monstruosa! Ele jaz como um porco!
Soturna morte, imunda e horrenda é tua imagem.
Senhores, pregarei uma peça neste bêbado.
O que acham: se ele fosse levado a um leito,
Trajado em roupas perfumadas, com anéis em seus dedos,
Manjares e quitutes gostosos ao pé da cama,
E finos assistentes ao seu lado ao despertar —
O mendigo então não se esqueceria de si mesmo?

PRIMEIRO CAÇADOR
Creia-me, senhor, acho que ele não teria escolha.

SEGUNDO CAÇADOR
Pareceria estranho a ele quando acordasse.

LORDE
Como um sonho agradável ou fantasia indigna.
Então o levem pra cima e manejem bem a burla.
Gentilmente o carreguem pra meu melhor quarto,
E enfeitem-no com todos os meus quadros ardentes.
Banhem sua imunda cabeça com morna água de cheiro
E queimem zimbro5 pra deixar o quarto perfumado.
Tenham música pronta quando ele acordar,
Pra produzir um som doce e celeste.
E se ocorrer dele falar, estejam prontos logo
E com uma profunda reverência submissa
Digam, “O que ordena vossa excelência?”.
Que um o sirva com uma bacia de prata
Cheia de água de rosas ornada de flores;
Outro carrega uma jarra d’água, o terceiro uma toalha,
E digam, “Vossa senhoria quer refrescar as mãos,
Por favor?”. Alguém fique pronto com um terno caro,
E lhe pergunte que traje ele vai usar.
Que um outro lhe conte de seus cães e cavalos,
E que sua senhora lamenta seu transtorno.
Convençam-no de que ele esteve delirando,
E quando ele disser que está, digam que sonha,
Pois ele é nada além de um senhor poderoso.
Façam isso, e ajam naturalmente, nobres senhores,
Será um passatempo estupendo,
Se for gerenciado com moderação.

PRIMEIRO CAÇADOR
Garanto, meu senhor, que faremos nosso papel
Tal que ele pensará por nosso genuíno esmero
Que ele é não menos do que digamos que seja.

LORDE
Levem-no, gentilmente, e ponham-no na cama;
E cada um no seu posto quando ele acordar.
Criados carregam Sly para fora. Soam trombetas
Rapaz, vai ver que trombeta é essa que ressoa.
Sai um Criado
Talvez seja algum nobre cavalheiro que,
Em meio à sua jornada, queira repousar aqui.
Reentra um criado
E então? Quem é?

CRIADO Se agrada vossa excelência, atores


Que oferecem serviço a vossa senhoria.

LORDE
Peça-os para entrar.
Entram Atores
Meus caros, sejam bem-vindos.6
ATORES Agradecemos a vossa excelência.

LORDE
Vocês pretendem ficar esta noite aqui?

UM ATOR
Se vossa senhoria aceitar nosso trabalho.

LORDE
Com todo o coração. Eu lembro este rapaz
Desde que fez o filho mais velho de um fazendeiro —
Em que cortejou muito bem uma dama.
Eu esqueci seu nome, mas seguro que o papel
Foi muito apropriado e naturalmente encenado.

OUTRO ATOR
Acho que vossa excelência fala de Soto.

LORDE
É verdade. Tua atuação foi excelente.
Bem, vocês vieram a mim na hora certa,
Mais ainda porque planejo uma diversão
Na qual sua habilidade pode ajudar muito.
Um nobre assistirá à peça esta noite;
Mas me preocupo com o controle de vocês,
Caso, mirando seu comportamento estranho —
Porque sua excelência nunca viu uma peça antes —
Vocês irrompam numa crise hilariante,
E assim o ofendam; por isso aviso, senhores,
Se sorrirem, ele ficará furioso.

UM ATOR
Não tema, meu senhor, podemos nos conter,
Mesmo que fosse ele o bufão mais bizarro do mundo.

LORDE (para um Criado)


Vá, rapaz, leve-os para a copa
E receba a cada um com simpatia.
Que não lhes falte nada que minha casa supra.
Sai um Criado com os Atores
(A um Criado) Rapaz, vá até o Bartolomeu, meu pajem,
E o faça se vestir como uma dama em todas as formas.7
Isto feito, conduza-o ao quarto do bêbado
E o chame de “Senhora”, com todo o respeito.
Diga-lhe que ele ganhará o meu amor
Se ele se comportar de modo honrado,
Como ele já notou nas nobres damas
Desempenhando junto a seus senhores.
Que ele preste esta reverência ao bêbado
Com suave voz baixa e humilde cortesia,
E diga “O que vossa excelência mandará
Pra que vossa senhora e vossa humilde esposa
Possa mostrar seu dever e demonstrar seu amor?”.
E então, com gentis abraços, e beijos tentadores,
E com a cabeça declinando em seu peito,
Peça-lhe para verter lágrimas, em regozijo
Por ver seu nobre lorde com a saúde restaurada,
Que por esses sete anos tinha se pensado
Não melhor do que um pobre e asqueroso mendigo.
E se o rapaz não tiver o dom feminino
De derramar uma chuva de fingidas lágrimas,
Uma cebola servirá pra tal engano,
A qual, num guardanapo, em segredo, levada,
Produzirá, de qualquer modo, um olho lacrimoso.
Despache isto com toda a pressa que puderes.
Em breve te darei mais instruções.
Sai um Criado
Eu sei que o garoto assumirá bem o charme,
A voz, jeito de andar e gestos de uma madame.
Quero ouvi-lo chamar o bebum de marido,
E como evitarão os meus homens o riso
Quando homenagearem este humilde campônio.
Eu entrarei pra aconselhá-los. Talvez minha presença
Possa bem reduzir o impulso de risada
Que de outra forma ficaria exagerada.
Saem
1.2 UM APOSENTO NA CASA DO LORDE
Entra Sly, o bêbado, acima do palco,8 com três Criados, com trajes,
bacia, cântaro e outros acessórios e, em seguida, entra o Lorde, vestido
como um criado

SLY Pelo amor de Deus, uma caneca de cerveja barata!9

PRIMEIRO CRIADO
Vossa senhoria tomaria uma taça de vinho branco?

SEGUNDO CRIADO
Vossa excelência provaria estas frutas cristalizadas?

TERCEIRO CRIADO
Qual traje vossa excelência vai usar hoje?

SLY Eu sou Christophero Sly. Não me chamem de “excelência” nem


de “senhoria”. Eu nunca tomei vinho branco na vida, e se querem me dar
alguma conserva, me deem carne em conserva. Nunca me perguntem que
traje eu usarei, pois não tenho mais jaquetas do que costas, nem mais meias
do que pernas, nem mais sapatos do que pés — não, às vezes, mais pés do
que sapatos, ou sapatos tais que meus dedos espiam pelos buracos do couro.
LORDE
Que o céu finde esse tolo capricho em vossa excelência!
Oh que um homem poderoso de tal estirpe,
De tais posses e de tão alta estima,
Ficasse possuído de um tão vil espírito.

SLY O quê? Vocês me deixariam louco? Eu não sou Christopher Sly


— filho do velho Sly de Burton Heath, mascate por nascimento, fabricante
de carda10 por educação, um tratador de ursos por transmutação, e agora
pela profissão atual um funileiro? Perguntem a Marian Hacket, a gorda
cervejeira de Wincot, se ela não me conhece. Se ela disser que não estou
devendo quatorze tostões só de cerveja, marquem-me como o pilantra mais
mentiroso da cristandade. O que, eu não estou transtornado; aqui está11 —
[Ele bebe]

TERCEIRO CRIADO
Oh, isto é o que faz sua senhora lamentar.

SEGUNDO CRIADO
Oh, isto é o que deixa seus criados aflitos.

LORDE
Daí vem que sua família evita sua casa,
Como se expulsos daí por sua estranha loucura.
Oh nobre senhor, lembra de teu12 nascimento.
Traz de volta do exílio tua antiga sanidade,
E expulsa daí esses imundos sonhos baixos.
Vê como teus criados servem a ti,
Cada um em seu posto, pronto ao teu chamado.
Ouvirias música? Ouve, Apolo toca,
Música
E vinte rouxinóis engaiolados cantam.
Querias dormir? Levar-te-emos a um sofá
Mais macio e suave que a cama luxuriosa
Intencionalmente arrumada pra Semíramis.13
Diz que irás caminhar, cobriremos o chão.
Ou que irás cavalgar, teus cavalos serão selados,
Seus arreios cravados todos de ouro e pérolas.
Amas falcoaria? Teus falcões subirão
Bem mais que a matinal cotovia. Ou se irás caçar,
Teus cães farão o céu lhes responder
E buscarão agudos ecos da oca terra.

PRIMEIRO CRIADO
Diz que irás caçar lebres, teus galgos são tão velozes
Quanto cervos sadios, e mais ágeis que a corça.

SEGUNDO CRIADO
Amas pinturas? Logo te traremos
Adônis pintado rente a um riacho,
E Citereia14 toda oculta em juncos,
Que parecem mover-se e ondular ao seu hausto
Como os trêmulos juncos oscilam com o vento.

LORDE
Mostrar-te-emos Io quando moça,
E como foi iludida e surpreendida,
Numa pintura tão vívida como o ato feito.

TERCEIRO CRIADO
Ou Dafne15 vagando por um bosque espinhoso,
Arranhando suas pernas que alguém jurará que sangra,
E a essa vista o triste Apolo irá chorar,
Tão habilmente sangue e lágrimas são desenhados.

LORDE
Tu és um lorde, e nada mais que um lorde.
Tu tens uma senhora bem mais bela
Do que qualquer mulher nesta era decadente.

PRIMEIRO CRIADO
Antes que as lágrimas que ela verteu por ti
Como enchentes malignas cobrissem seu lindo rosto,
Ela era a criatura mais bela do mundo —
E ainda a ninguém é inferior.

SLY
Eu sou um lorde, e tenho uma dama assim?
Ou eu sonho? Ou tenho sonhado até agora?
Eu não durmo. Eu vejo, eu ouço, eu falo.
Cheiro doces odores, e sinto coisas macias.
Por minha vida, eu sou mesmo um lorde,
E não um funileiro, nem Christopher Sly.
Bem, tragam nossa dama aqui à nossa vista,16
E de novo uma caneca da cerveja mais barata.17

SEGUNDO CRIADO
Vossa grandeza lavaria, por favor, as mãos?
Oh, que alegria ver vosso juízo restaurado!
Oh que mais uma vez vós soubésseis quem sois!
Estes quinze anos estivestes em um sonho,
Ou quando acordastes, foi como se dormísseis.

SLY
Esses quinze anos — de fato, uma longa soneca.
Mas nunca falei em todo esse tempo?

PRIMEIRO CRIADO
Oh sim, meu senhor, mas palavras frívolas,
Pois embora jazêsseis neste belo quarto,
Dizíeis que éreis posto para fora,
E injuriáveis a senhora da taberna,
E dizíeis que a levaríeis a juízo por –18
Que ela trouxe bilhas de pedra e não litros lacrados.
Às vezes, chamáveis por Cicely Hacket.

SLY Sim, a criada da taberneira.

TERCEIRO CRIADO
Senhor, não conheceis taberna alguma, nem criada,
Nem tais homens como os que enumerastes,
Como Stephen Sly e o velho John Naps de Greet,
E Peter Turf e Henry Pimpernel,19
E mais uns vinte nomes e homens como esses,
Que nunca existiram, nem nenhum homem viu.

SLY
Então, graças a Deus por minha pronta melhora.

TODOS Amém.
Entra Bartolomeu, o Pajem, como Dama, com Serviçais
[Um deles entrega a Sly uma caneca de cerveja]

SLY Eu te agradeço. Não te arrependerás disso.

BARTOLOMEU
Como vai, meu nobre senhor?

SLY Vige, bebendo bem,


Que aqui tem comes e bebes. Onde está minha esposa?

BARTOLOMEU
Aqui, nobre senhor. O que desejas com ela?

SLY
É minha esposa, e não vai me chamar de marido?
Meus homens chamam-me senhor. Eu sou seu chefe.

BARTOLOMEU
Meu marido e senhor, meu senhor e marido;
Eu sou sua esposa em toda obediência.

SLY
Eu sei bem. (Ao Lorde) — De que devo chamá-la?

LORDE Senhora.

SLY Alice Senhora ou Joana Senhora?

LORDE
Senhora, e nada mais. Assim senhores chamam as damas.

SLY
Senhora esposa, dizem que sonhei,
E dormi uns quinze anos ou mais.

BARTOLOMEU
Sim, e esse tempo parece trinta pra mim,
E todo esse tempo banida de sua cama.

SLY
É muito. Criados, deixem-nos a sós.
Saem Lorde e Serviçais
Senhora, dispa-se e venha pra cama agora.

BARTOLOMEU
Senhor triplamente nobre, eu vos imploro
Para me perdoar ainda por uma noite ou duas,
Ou se não for assim, até que o sol se ponha,
Pois vossos médicos recomendaram expressamente,
Sob risco de incorrer em vossa antiga enfermidade,
Que eu ainda ficasse ausente de vosso leito.
Espero que isso se eleve como dispensa.

SLY Sim, está elevado, que eu mal consigo me conter por mais tempo.
Mas eu odiaria cair em meus sonhos de novo. Eu irei, portanto, me conter, a
despeito do que sentem a carne e o sangue.
Entra um Mensageiro

MENSAGEIRO
Os atores de vossa excelência, sabendo da
Melhora, estão vindo encenar uma alegre comédia,
Pois vossos médicos acham muito adequado,
Que tristeza demais espessou vosso sangue,
E a melancolia alimenta o delírio.
Portanto, acharam bom que assistais a uma peça
E enquadreis vossa mente em riso e diversão,
Que evitam mil danos e alongam a vida.

SLY
Pela virgem, que encenem. Não é uma comódia20
Um folguedo de natal ou acrobacias?

BARTOLOMEU
Não, meu bom senhor, é um material mais agradável.

SLY Que material, mobília?

BARTOLOMEU É um tipo de história.


SLY
Bem, veremos. Vem, senhora esposa, senta ao meu lado.
Deixa o mundo deslizar. Nunca seremos mais jovens.
[Sly e os outros sentam-se para assistir à peça. Soam trombetas para
anunciar o início da peça]21
Bartolomeu senta-se

1 Em sua fingida erudição de bêbado, cheia de provérbios, ele confunde Ricardo Coração de
Leão (1157-1199) com Guilherme I, o Conquistador, primeiro rei da Inglaterra (descendente de
invasores vikings, duque da Normandia desde 1035), que governou de 1066 até 1087, ano de sua
morte. Sly é referido como mendigo e funileiro, de modo alternado, na peça, porque, na época, um
funileiro era uma pessoa que vivia de modo itinerante, geralmente um cigano, consertando peças de
metal para ganhar a subsistência, e era discriminado a tal ponto que era chamado de mendigo.
2 “Paucas pallabris” seria uma expressão em espanhol para terminar a conversa (pocas palabras,
poucas palavras, isso é tudo), e “Sessa” seria cessar, parar, talvez proveniente do espanhol também,
ou italiano e até francês; pode ficar nessa forma porque tem o mesmo som em português do verbo
cessar.
3 Saint Jeronimy: nome cuja origem remonta a Hieronimo, uma personagem da peça A Tragédia
Espanhola (The Spanish Tragedy), no estilo peça de vingança, de Thomas Kyd (1558-1594). Sly
confunde esse nome com [Eusebius Sophronius] Hieronymus (347-420), um doutor da igreja católica
que se tornou São Jerônimo (Saint Jerome, em inglês). Importante lembrar que esta é a única peça de
Shakespeare em que ele usa um prólogo (em inglês, induction, que, além do sentido de indução,
também era um termo arcaico para prefácio), embora este artifício fosse comum por volta de 1590,
como na peça citada acima nesta nota.
4 Headborough = thirdborough: um oficial, com expediente de meio turno, não remunerado,
encarregado de manter a paz numa paróquia eclesiástica, no século XVI, que se tornou uma paróquia
civil, a menor unidade administrativa da Inglaterra, menor que um distrito e um condado, que assim
recupera o trocadilho com third, fourth and fifth borough (outra opção seria: terceiro, quarto ou
quinto oficial).
5 Sweet wood: madeira aromática, em geral, zimbro, ou junípero, usado na produção de bebidas,
aromatizantes e perfumes.
6 Este trecho evoca e antecipa a calorosa recepção de Hamlet aos atores em Elsinore, onde
encenam a peça dentro da peça, como nesta, com muito carinho e lembrança da atuação de um deles.
Além disso, esta pode ser uma referência histórica, já que no período 1592-4, quando a peste forçou o
fechamento dos teatros em Londres, as companhias de teatro tiveram que se apresentar nas
províncias.
7 O lorde se posiciona neste monólogo de forma a antecipar Petrúquio, em como deve um senhor
se conduzir, e a delinear o comportamento de uma esposa.
8 Poderia ser numa galeria, numa sacada ao estilo da época ou numa plataforma.
9 Small ale: a cerveja mais fraca (baixo teor alcoólico) e mais barata.
10 Pente de metal para desembaraçar e limpar lã antes da fiação de forma manual (a máquina
para cardação se chama cardadeira ou cardadora, que faz a cardação de fibras para o fabrico de fios).
11 Ele fornece alguma prova de sua identidade ou pode se dar conta que não a tem; ou pode ser
interrompido pelo terceiro criado.
12 Há essa mudança de tratamento no original: de your nos primeiros versos desta fala para thy e
thou a partir deste ponto até o final da fala. Aliás, essa variação em toda a peça segue o original.
13 Rainha mitológica que reinou sobre a Assíria, Pérsia, Arábia, Egito e Ásia por mais de 42
anos (811 A.C. em diante), sendo a fundadora da Babilônia e dos jardins suspensos; tinha fama de ser
voluptuosa.
14 Apelido da Vênus romana, deusa do amor e da beleza, por ter passado pela ilha grega de
Citera após seu nascimento, equivalente da grega Afrodite, cuja paixão era o belo Adônis, do verso
anterior. Na fala seguinte, é citada Io, uma sacerdotisa de Hera que vira alvo da paixão de Zeus (mito
contado por Ésquilo em Prometeu Acorrentado). Estes mitos e outros citados na peça provavelmente
foram inspirados pelas descrições da obra Metamorfoses, de Públio Ovídio Naso (43 a.C.-17/18
d.C.), e não por pinturas reais deles.
15 Uma ninfa das águas que foi alvo do amor de Apolo, atingido por uma flecha de Eros; mas a
ninfa recebeu uma flechada de chumbo e rejeitou Apolo; cansada de fugir, pediu para ser libertada
dessa situação e foi transformada em loureiro por seu pai, Peneu, e passou então a ser a árvore de
Apolo, que sempre carrega um ramo de louros.
16 Sly está incorporando a veia aristocrática, e começa a se referir a si mesmo no plural, o
famoso plural majestático. Ele também começou a falar em versos, embora ainda derrape na cerveja
barata.
17 Alguns editores atendem ao pedido de Sly por cerveja, desta vez a mais fraca e mais barata
(smallest ale) e acrescentam uma rubrica após esta linha: Sai um Criado.
18 Because: porque, separado aqui por hífen para que ambos os versos possam ter quatorze
sílabas métricas.
19 Há evidências históricas de que essas eram pessoas reais, especialmente aquelas com
sobrenome Sly, inclusive atores (William Slye e John Slye em Londres) e um Stephen Sly em
Stratford, terra de Shakespeare, além dos Slys de Warwickshire, condado próximo de Stratford-upon-
Avon. Embora alguns editores achem que Greet seja originado de Greece (Grécia), isso não é um
fato, apenas uma (má) interpretação, pois há uma vila chamada Greet próxima de Stratford.
20 Malapropismo (uso de uma palavra incorreta no lugar de uma com som semelhante) para
comédia ou commodity (uma coisa que é objeto de troca ou venda); os termos variam conforme o
humor do personagem.
21 Pode ser de um camarote, do local da orquestra ou numa bela cama; na verdade, não há essa
rubrica no original, são sugestões de editores ao longo do tempo. Caso não seja encenado o Epílogo,
esta é a última vez que os espectadores veem estes atores encarnando estes personagens.
ATO I

1.1 PÁDUA, UM LOCAL PÚBLICO. A TROUPE INICIA A PEÇA


Entram Lucêncio, um jovem aristocrata, e seu criado, Trânio

LUCÊNCIO
Trânio, devido ao grande desejo que eu tinha
De conhecer a bela Pádua,1 berçário das artes,
Eu cheguei à fecunda Lombardia,
O agradável jardim da grande Itália,
E armado por amor e concordância de meu pai,
Com sua boa vontade e tua boa companhia,
Meu leal criado, confiável em tudo,
Aqui vamos pausar, e talvez instaurar
Uma via de aprendizagem e estudos refinados.
Pisa, famosa por seus sérios cidadãos,
Deu-me minha vida, e a de meu pai antes de mim —
Um mercador de grande negócio no mundo,
Vincêncio, descendente dos Bentivolii.2
O filho de Vincêncio, criado em Florença,
Serei digno em cumprir grandes expectativas
Pra adornar sua fortuna com meus feitos virtuosos.
E, portanto, Trânio, no presente eu estudo
A virtude, e essa parte da filosofia
Eu buscarei, que trata de felicidade
Por virtude, que só assim é alcançada.3
Diz o que pensas disso, pois parti de Pisa
E vim pra Pádua como aquele que abandona
Uma poça rasa pra mergulhar fundo,
E com fartura busca saciar sua sede.

TRÂNIO
Mi perdonato,4 nobre senhor meu.
Estou disposto em tudo como você mesmo,
Contente que assim continue sua decisão
De sugar as doçuras da doce filosofia.
Apenas, bom patrão, enquanto veneramos
Esta virtude e esta disciplina moral,
Não sejamos estoicos nem estultos, rogo,
Ou tão devotos às restrições de Aristóteles
Que Ovídio seja um pária muito rejeitado.
Discuta lógica com os seus conhecidos,
E pratique retórica em conversa diária.
Música e poesia pra avivar seus sentidos;
A matemática e a metafísica,
Consuma-as quando sua disposição pedir.
Nenhum lucro medra onde não se tem prazer.
Em resumo, senhor, estude o que mais gosta.

LUCÊNCIO
Gramercies, Trânio, tu aconselhas bem.
Se Biondello tivesse desembarcado,5
Poderíamos sem demora aprontar-nos
E encontrar hospedagem apta a receber
Os amigos que faremos em Pádua.
Entra Batista com suas duas filhas, Catarina (a mais velha) e
Bianca (a mais jovem); Grêmio, um velho pantalão;6 Hortênsio, mais
jovem, pretendente de Bianca. Lucêncio e Trânio ficam de lado7
Mas espere um momento, quem é esse grupo?

TRÂNIO
Patrão, alguma encenação pra nos recepcionar.

BATISTA
Cavalheiros, não me importunem mais,
Pois sabem o quanto estou firmemente decidido:
Isto é, não conceder a minha filha mais jovem
Antes de arranjar um marido pra mais velha.
Se algum de vocês ama Catarina,
Porque eu os conheço bem e bem os amo,
Terão licença pra cortejá-la à vontade.

GRÊMIO
Açoitá-la,8 em vez disso. Ela é grossa demais pra mim.
E você, Hortênsio, quer uma esposa?

CATARINA (a Batista)
Eu vos rogo, senhor, é a vossa vontade
Tornar-me uma chacota entre esses camaradas?9

HORTÊNSIO
“Camaradas”, dama? O que é isso? Não vai ter marido,
A menos que tivesse um humor mais brando, mais polido.

CATARINA
De verdade, senhor, jamais precisará temer.
Certo que isso não está em meu coração,
Mas se estivesse, meu único cuidado seria
Partir seu crânio com uma banqueta de três pernas,
Ensanguentar seu rosto e tratá-lo como um tolo.

HORTÊNSIO
Que o bom Senhor nos livre de todos esses demônios.
GRÊMIO E a mim também, bom Senhor!

TRÂNIO (à parte a Lucêncio)


Silêncio, patrão, que um passatempo se apresenta.
Essa moça é doida varrida ou notável birrenta.

LUCÊNCIO (à parte a Trânio)


Mas nota o silêncio da outra, eu vejo nela
Conduta branda e sobriedade de donzela.
Quieto, Trânio.

TRÂNIO (à parte a Lucêncio)


Bem dito, patrão. Cale-se, e mire bastante.

BATISTA
Cavalheiros, que em breve eu possa realizar
O que eu disse — Bianca, vá pra dentro.
E que isto não te desagrade, boa Bianca,
Pois nunca te amarei menos, minha menina.

CATARINA Uma bela garotinha mimada! Se pudesse,


Enfiaria o dedo no olho pra chorar. [Lágrimas de vítima]

BIANCA
Irmã, contente-se com meu desgosto.
(A Batista) Senhor, à sua vontade humildemente me submeto.
Meus livros e instrumentos serão meus acompanhantes,
Com eles vou estudar e praticar sozinha.

LUCÊNCIO (à parte a Trânio)


Escuta, Trânio, podes ouvir Minerva10 falando.

HORTÊNSIO
Signor11 Batista, ficará assim tão alheio?
Sinto muito que nosso bem estar produza
A aflição de Bianca.

GRÊMIO Por que confiná-la,


Signor Batista, por este monstro maligno,
Fazendo-a pagar pela língua da outra?

BATISTA
Cavalheiros, contentem-se. Estou resolvido.
Vá pra dentro, Bianca.
Bianca sai
E como eu sei que ela tem o maior prazer
Em música, instrumentos e poesia,
Manterei professores dentro de minha casa
Aptos para instruir sua juventude. Se vocês,
Hortênsio ou Signor Grêmio, conhecerem algum,
Indiquem-no aqui; pois pagarei bem a
Homens letrados, e serei bem generoso
Com a boa educação de minhas filhas.
E assim adeus. — Catarina, pode ficar,
Pois tenho mais a conversar com a Bianca.
Sai

CATARINA Ora, e eu confio que eu possa ir também, não posso? O


que, deverei ter as horas apontadas, como se talvez eu não soubesse quando
ficar e quando sair? Ha!
Sai

GRÊMIO (como que falando com Catarina) Você pode ir pra mãe do
demônio. Seus dons são tão bons que aqui ninguém vai querê-la. O amor
delas não é tão grande, Hortênsio, que não possamos passar esse tempo
juntos, e esperar pacientemente. Nosso bolo azedou totalmente. Adeus.
Entretanto, pelo amor que tenho pela minha doce Bianca, se eu por
qualquer meio encontrar um homem apto a ensinar as coisas que ela
aprecia, eu o recomendarei a seu pai.

HORTÊNSIO Eu também, Signor Grêmio. Mas uma palavra, imploro.


Embora a natureza de nossa competição nunca tenha permitido
negociações, saiba agora, sob ponderação, que nos toca a ambos — para
que possamos de novo ter acesso à nossa bela donzela e sermos felizes
rivais ao amor de Bianca — nos esforçarmos para executar uma coisa em
especial.

GRÊMIO O que é, eu rogo?

HORTÊNSIO Pela virgem, senhor, conseguir um marido pra irmã


dela.

GRÊMIO Um marido? Um demônio!

HORTÊNSIO Eu digo um marido.

GRÊMIO Eu digo um demônio. Pensas tu, Hortênsio, embora seu pai


seja muito rico, que algum homem seja um tolo tão completo pra se casar
com o inferno?

HORTÊNSIO Ah, Grêmio. Embora esteja além da sua paciência e da


minha suportar os clamores dela, ora, homem, há bons camaradas no
mundo, se alguém pudesse encontrá-los, eles a tomariam com todas as suas
falhas, e dinheiro o bastante.

GRÊMIO Não sei o que dizer, mas eu alegremente aceitaria receber o


dote dela com esta condição: ser chicoteado numa cruz alta no centro da
cidade toda manhã.
HORTÊNSIO É verdade, como você diz, há pouca escolha entre
maçãs podres. Mas venha, já que este obstáculo legal12 nos torna amigos,
será assim mantido amigavelmente até que, ajudando a filha mais velha de
Batista a conseguir um marido, consigamos libertar a filha mais nova para o
casamento, e aí seremos rivais de novo. Doce Bianca! Feliz é o homem que
tiver essa fortuna. Aquele que correr mais rápido pega o anel. O que me diz,
Signor Grêmio?

GRÊMIO Eu concordo, e eu daria o melhor cavalo em Pádua para


aquele que começasse a corte que conseguisse totalmente cortejá-la,
desposá-la, levá-la pra cama e livrar a casa da presença dela. Vamos.
Saem Hortênsio e Grêmio. Trânio e Lucêncio permanecem

TRÂNIO
Eu rogo, senhor, me diga: é possível
Que o amor subitamente nos tome?

LUCÊNCIO
Oh Trânio, até que eu o descobri ser verdadeiro,
Nunca o pensei possível ou provável.
Mas vê, enquanto no ócio eu observei,
Encontrei o efeito do amor-perfeito,13
E agora francamente te confesso,
Que és para mim tão íntimo e querido
Quanto Anna14 foi para a Rainha de Cartago,
Trânio, eu ardo, anseio, pereço, Trânio,
Se esta jovem modesta moça eu não ganhar.
Aconselha-me, Trânio, pois eu sei que podes.
Socorre-me, Trânio, pois sei que o farás.

TRÂNIO
Patrão, não é hora de reprová-lo agora,
A afeição não é reprochada pelo coração.
Se o amor tocou-lhe, nada permanece igual:
Redime te captum quam queas minimo.15

LUCÊNCIO
Gramercies, rapaz. Vai em frente, isto me agrada.
O resto aliviará, pois teu conselho é sensato.

TRÂNIO
Patrão, você olhou tanto a donzela,
Talvez não tenha notado o ponto central.

LUCÊNCIO
Oh sim, eu vi doce beleza em seu rosto,
Tal como tinha a filha de Agenor,16
Que fez o grande Jove se humilhar pra cortejá-la
Quando com seus joelhos beijou a praia de Creta.

TRÂNIO
Não viu mais? Não percebeu como a irmã
Começou a ralhá-la e criar tal tormenta
Que ouvidos mortais mal aguentariam o ruído?

LUCÊNCIO
Trânio, eu vi seus lábios de coral mover,
E com seu sopro ela perfumou mesmo o ar.
Tudo que nela vi foi santo e doce.

TRÂNIO (à parte)
Então é hora de tirá-lo de seu transe.
(Para Lucêncio) — Eu rogo, desperta, senhor. Se ama a jovem,
Junte ideias e argúcia pra ganhá-la. Assim está:
A irmã mais velha é tão ranzinza e arguta
Que até que seu pai livre-se dela, patrão,
Seu amor deve viver como uma donzela em casa,
E, por isso, ele a confinou em segurança,
Pra que não seja enfadada por pretendentes.

LUCÊNCIO
Ah, Trânio, que pai cruel ele é!
Mas não percebes que ele já tomou medidas
Pra arranjar hábeis professores pra instruí-la?

TRÂNIO
Sim, pela virgem, sim, senhor — e agora tenho um plano.

LUCÊNCIO
Eu tenho também, Trânio.

TRÂNIO Patrão, eu aposto,


Ambos nossos esquemas se encontram e concordam.

LUCÊNCIO
Conta-me o teu primeiro.

TRÂNIO Você será professor


E se encarregará do ensinamento da donzela.
Será seu expediente.

LUCÊNCIO Sim. Pode ser feito?

TRÃNIO
Não é possível; pois quem fará seu papel
E será em Pádua o filho de Vincêncio,
Pra estudar e entreter visitas e amigos,
Visitar os compatriotas e os banquetear?
LUCÊNCIO
Basta,17 acalma-te, pois tenho tudo ajustado.
Nós não fomos ainda vistos em nenhuma casa,
Nem podemos por nossos rostos ser notados
Como servo e patrão. Então segue-se assim:
Tu serás o patrão, Trânio, em meu lugar;
Mantém casa, e postura, e criados, como eu.
Eu serei algum outro, um florentino,
Um napolitano, ou um pisano mais humilde.
Eis o plano, e será assim. Trânio, agora,
Despe-te. Pega meu chapéu colorido18 e minha capa.
Eles trocam as roupas
Quando Biondello vier, serve a ti,
Mas eu o encantarei primeiro a ficar quieto.

TRÂNIO Siga sua necessidade.


Em resumo, senhor, já que este é seu desejo,
E eu devo ser obediente —
Que assim seu pai me encarregou quando partimos,
“Seja devotado a meu filho”, disse ele,
Embora ache que tenha sido em outro sentido —
Estou disposto a ser Lucêncio,
Porque muito eu amo Lucêncio.

LUCÊNCIO
Trânio, seja assim, porque Lucêncio ama,
E que eu seja escravo pra ganhar essa jovem,
Cuja brusca visão cativou meu olho ferido.
Entra Biondello [o outro criado de Lucêncio]
Aí vem o canalha. Rapaz, onde você esteve?

BIONDELLO Onde eu estive? Não, como assim, onde está você?


Patrão, o meu colega Trânio roubou suas roupas, ou você roubou as dele, ou
ambos? Por favor, qual é a novidade?

LUCÊNCIO
Rapaz, venha aqui. Não é hora pra brincar,
Portanto, adapte suas maneiras ao momento.
Seu colega Trânio aqui, pra salvar minha vida,
Vestiu meus trajes e minha aparência,
E eu para escapar vesti os dele,
Pois numa briga, quando vim em terra,
Eu matei um homem, e temo ter sido visto.
Eu o encarrego de servi-lo, como deve,
Enquanto escapo daqui pra salvar minha vida.
Você me entende?

BIONDELLO Eu, senhor? (à parte) Nem uma palavra.

LUCÊNCIO
E nem uma sílaba de “Trânio” em sua boca.
Trânio está transformado em Lucêncio.

BIONDELLO
Melhor pra ele. Eu queria isso também.

TRÂNIO
Menino, eu também, mais outro desejo — Que Lucêncio
Tivesse a filha mais jovem de Batista.
Mas rapaz, não por mim, mas por seu patrão, aconselho
Que tenha modos discretos em qualquer companhia.
Quando eu estou sozinho, aí então sou Trânio,
Mas em todos os outros locais, seu patrão, Lucêncio.

LUCÊNCIO Trânio, vamos.


Resta uma coisa mais pra que executes,
Que sejas mais um entre os pretendentes. Se perguntas
Por que, minhas razões são boas e importantes.
Saem
Os apresentadores acima do palco falam19 [Saem todos os
atores, ficando apenas Sly e os Criados que estavam assistindo à
peça]

PRIMEIRO CRIADO
Meu senhor, cochilais. Não assistis à peça.

SLY Sim, por Santa Ana,20 sim. Um bom assunto, certamente.


Vai vir algo mais disso?

BARTOLOMEU Meu senhor, recém começou.

SLY É um trabalho muito excelente, senhora dama.


Queria que tivesse acabado.
Eles sentam-se e assistem à peça21

1.2 PÁDUA, EM FRENTE À CASA DE HORTÊNSIO


Entram Petrúquio e seu criado Grúmio

PETRÚQUIO
Verona, por um instante peço permissão,
Pra ver em Pádua meus amigos; mas de todos
Meu mais amado e confiado amigo
Hortênsio, e estou certo que esta é sua casa.
Aqui, Grúmio, rapaz, bata, eu digo.

GRÚMIO Bater, senhor? Em quem eu deveria bater? Há algum


homem que desmaltratou22 vossa reverência?
PETRÚQUIO Vilão, eu digo, me bata aqui bem forte.

GRÚMIO Bater aí, senhor? Por que, senhor, quem sou eu, senhor, que
eu devia vos bater aqui, senhor?

PETRÚQUIO
Vilão, eu digo, me bata aqui nesse portão,
E me golpeie bem ou baterei no seu crânio de velhaco.

GRÚMIO Meu patrão ficou briguento. Se eu vos bater primeiro,


Eu sei quem fica na pior depois.

PETRÚQUIO Não vai fazer nada?


Rapaz, se não bater, por certo, tocarei a aldrava.
Verei como você pode solfejar e cantá-la.
Ele torce as orelhas de Grúmio [Grúmio se ajoelha gritando]

GRÚMIO Socorro, patrões, socorro! Meu patrão está louco.

PETRÚQUIO Agora bata quando eu mandar, seu vilão.


Entra Hortênsio

HORTÊNSIO O que foi, qual é o problema? Meu velho amigo


Grúmio e meu bom amigo Petrúquio? Como estão todos em Verona?

PETRÚQUIO
Signor Hortênsio, veio separar a briga?
Con tutto il cuore ben trovato,23 posso dizer.

HORTÊNSIO Alla nostra casa ben venuto, molto honorato signor mio
Petruccio.24
Erga-se, Grúmio, erga-se. Acalmaremos essa rixa
Grúmio se levanta
GRÚMIO Não, não importa, senhor, o que ele alega em latim.25 Se
esta não for uma razão legal para eu deixar seu serviço — olha, senhor. Ele
me pede para bater nele e golpeá-lo bem forte, senhor. Bem, seria adequado
para um criado injuriar seu patrão assim, tendo ele talvez, por tudo que eu
sei, uns trinta e dois, por aí?26
Por Deus, eu queria ter batido bem primeiro,
Então Grúmio não teria levado a pior.

PETRÚQUIO
Um canalha insensato. Bom Hortênsio,
Eu mandei o patife bater no seu portão,
E nem por minha vida o convenci a fazer isso.

GRÚMIO Bater no portão? Oh céus, não falastes estas simples


palavras? “Rapaz, me bata aqui, me golpeie aqui, me bata bem e me bata
bem forte?” E vem falar agora em bater no portão?

PETRÚQUIO
Rapaz, se mande, ou nada fale, eu o aconselho.

HORTÊNSIO
Petrúquio, paciência. Eu sou o avalista de Grúmio.
Ora, esta é uma triste situação entre ele e você,
Seu antigo, leal, afável, servo Grúmio.
Diga-me agora, caro amigo, que feliz vento
O sopra aqui a Pádua da velha Verona?

PETRÚQUIO
O vento que sopra jovens pelo mundo
A buscar fortunas longe de casa,
Onde pouca experiência cresce. Em resumo,
Signor Hortênsio, assim a coisa está comigo:
Antonio, meu pai, está falecido,
E eu me joguei nesse labirinto,
Talvez27 para casar e prosperar como eu puder.
Coroas tenho em minha bolsa, e bens em casa,
E assim eu vim pra longe ver o mundo.

HORTÊNSIO
Petrúquio, posso então falar-te francamente,
E sugerir-te uma esposa arguta e repulsiva?28
Tu me agradecerias pouco pelo conselho,
Porém, eu te prometo que ela será rica,
E muito rica. Mas tu és muito meu amigo,
E não te recomendarei a ela.

PETRÚQUIO
Signor Hortênsio, entre amigos como nós
Poucas palavras bastam; logo, se conheces
Uma rica o bastante pra ser mulher de Petrúquio —
Como a riqueza é o tom da minha dança galante —
Seja ela tão mocreia quanto a amada de Florêncio,29
Velha como a Sibila, e ranzinza e sagaz
Como a Xântipe de Sócrates, ou pior,
Ela não me comove — ou não remove ao menos
O ardor da afeição em mim — se ela fosse tão áspera
Como os túmidos mares adriáticos.
Eu vim pra casar ricamente em Pádua;
Se ricamente, então felizmente em Pádua.

GRÚMIO (para Hortênsio) Não, olha aqui, senhor, ele conta-lhe


francamente qual é sua intenção. Ora, dê-lhe ouro suficiente e o case com
um fantoche ou uma bonequinha, ou uma velha bruaca sem um dente na
boca, embora ela tenha tantas doenças quanto cinquenta e dois cavalos. Ora,
nada dá errado, desde que venha dinheiro junto.
HORTÊNSIO
Petrúquio, já que avançamos até aqui,
Continuarei o que abordei como gracejo.
Petrúquio, eu posso encontrar-te uma esposa
Com muita riqueza, e jovem e bonita,
Criada como se deve uma dama.
Sua única falta — e isso é falta o bastante —
É que ela é nefandamente ranzinza,
E arguta e birrenta tão sem medida
Que, fosse minha fortuna bem pior do que é,
Nem por uma mina de ouro casaria com ela.

PETRÚQUIO
Hortênsio, calma. Não sabes o efeito do ouro.
Conta-me o nome do pai dela e isso é o bastante,
Pois eu a abordarei mesmo que ela ralhe tão alto
Como trovão quando no outono estrondam as nuvens.

HORTÊNSIO
O pai dela é Batista Minola,
Um cavalheiro afável e cortês.
Seu nome é Catarina Minola,
Famosa em Pádua por sua língua austera.

PETRÚQUIO
Eu conheço o pai dela, embora não a conheça,
E ele bem conhecia meu falecido pai.
Eu não dormirei, Hortênsio, até vê-la,
E que eu possa ser assim tão audaz
De deixá-lo tendo recém lhe encontrado —
A menos que me acompanhe até lá.
GRÚMIO [a Hortênsio] Eu imploro, senhor, deixe-o ir enquanto dura
esse impulso. Dou minha palavra, se ela o conhecesse tão bem quanto eu,
ela acharia que repreensão teria pouco efeito sobre ele. Ela pode talvez
chamá-lo de velhaco umas dez vezes. Ora, isso é nada; uma vez que ele
começa, ele vai abusar de sua retórica bombástica. Eu vou lhe contar,
senhor, se ela aguentá-lo só um pouco, ele vai lançar uma figura de estilo na
cara dela, e assim desfigurá-la tanto que ela não terá mais olhos pra ver do
que um gato. Você não o conhece, senhor.

HORTÊNSIO
Espera, Petrúquio, eu devo ir contigo,
Pois sob a guarda de Batista está meu tesouro.
Ele segura a joia de minha vida,
A filha mais jovem, a bela Bianca,
E a oculta de mim e de outros mais,
Pretendentes a ela e meus rivais no amor,
Supondo isso algo impossível,
Por aqueles defeitos que antes mencionei,
Que jamais Catarina será cortejada.
Por isso esta ordem Batista deu:
Que ninguém terá acesso à Bianca
Até que Catarina a maldita tenha um marido.

GRÚMIO Catarina, a maldita —


De todos, o pior título para uma moça.

HORTÊNSIO
Meu amigo Petrúquio agora me fará um favor,
Me oferecendo disfarçado em trajes sóbrios
Ao velho Batista como um professor
Bem versado em música, pra instruir Bianca,
Que eu possa assim por esse truque ao menos
Ter licença e prazer de buscar sua afeição,
E sem suspeitas cortejá-la a sós.
Entram Grêmio, o pretendente velho de Bianca, com um papel, e
Lucêncio, disfarçado como Câmbio, professor de língua30

GRÚMIO Aqui não tem velhacaria. Vejam, para enganar a gente


velha, como os jovens põem suas cabeças pra trabalhar juntas. Patrão,
patrão, abra bem os olhos. Quem vem lá, hein?

HORTÊNSIO
Calma, Grúmio, é o rival do meu amor.
Petrúquio, ponha-se de lado por um instante.

GRÚMIO Um jovem atraente e um apaixonado!31


Petrúquio, Hortênsio e Grúmio ficam à parte e ouvem a conversa
de Grêmio e Lucêncio, que estão discutindo uma lista de livros para
instrução de Bianca

GRÊMIO (a Lucêncio)
Oh, muito bem — eu revisei a lista.
Ouça, senhor, serão lindamente encadernados —
Todos livros de amor, veja isso a qualquer custo —
E não lhe dê nenhuma outra lição.
Você me entende. Acima e além da
Liberalidade do Signor Batista,
Darei um bônus. Leve sua lista também,
E que os livros fiquem bem perfumados,
Que ela, a quem eles vão, é mais doce que o próprio
Perfume. O que você vai ler pra ela?

LUCÊNCIO
O que eu ler pra ela, lhe alegarei
Como meu benfeitor, fique tão certo disso,
Como se firmemente estivesse presente,
Sim, e talvez com palavras mais bem sucedidas
Que as suas, salvo se erudito fosse, senhor.

GRÊMIO
Oh, essa educação, que coisa linda é!

GRÚMIO (à parte) Oh, esse palerma, que tolo ele é!

PETRÚQUIO Calma, rapaz.

HORTÊNSIO
Grúmio, silêncio. (Avançando) — Deus lhe salve, Signor Grêmio.

GRÊMIO
Meus cumprimentos a você, Signor Hortênsio.
Imagina onde estou indo? A Batista Minola.
Eu prometi indagar atentamente
Por um professor pra bela Bianca,
E por sorte eu encontrei casualmente
Este jovem, com saber e comportamento
Adequados a ela, bem letrado em poesia
E outros livros — bons livros, eu garanto.

HORTÊNSIO
Que bom, e eu encontrei um cavalheiro
Que prometeu me apresentar a outro,
Um músico fino, pra instruir nossa dama.
Assim não ficarei para trás no dever
Com a bela Bianca, tão amada minha.

GRÊMIO
Amada minha, e isso minhas ações irão provar.
GRÚMIO (à parte) E isso seus sacos de dinheiro irão provar.

HORTÊNSIO
Grêmio, não é hora agora de expressar amor.
Me escute, e se você me falar gentilmente,
Contar-lhe-ei notícias igualmente boas pra ambos.
[Apresentando Petrúquio]
Este é um cavalheiro que encontrei por acaso,
Se concordarmos com seus termos, ele assume
Cortejar a maldita Catarina,
Sim, e casar com ela, se o dote agradar.

GRÊMIO Assim dito, assim feito, está bem.


Hortênsio, lhe contou todas as faltas dela?

PETRÚQUIO
Eu sei que ela é uma chata brigona irritante.
Se isso é tudo, senhores, não há mal algum.

GRÊMIO
Não, é o que diz, amigo? De onde você é?

PETRÚQUIO
Nascido em Verona, filho do velho Antonio,
Meu pai morto, sua fortuna vive pra mim,
E eu espero de fato bons dias e vida longa.

GRÊMIO Senhor, seria estranho tal vida com tal esposa.


Porém, se tem estômago, em nome de Deus, vá em frente.
Você terá o meu auxílio em tudo. Mas
Cortejará esse gato montês?

PETRÚQUIO Viverei?
GRÚMIO (à parte) Ele a cortejará? Sim, ou eu a enforcarei.32

PETRÚQUIO
Por que eu vim aqui, senão com essa intenção?
Acha que um pouco de ruído assombra meus ouvidos?
Eu não ouvi na minha época leões rugirem?
Eu não ouvi o mar, com ventos furiosos,
Zangar-se como um irado javali transudado?
Eu não ouvi grandes canhões no campo de batalha,
E a artilharia celeste estrondando nos céus?
Não ouvi numa batalha campal altos alarmes,
Relinchantes corcéis e clangor de trombetas?
E vem me falar da língua de uma mulher,
Que dá uma explosão que não é metade
Da que faz uma castanha em fogueira no campo?
Ora, ora, assuste meninos com fantasmas.

GRÚMIO (à parte) Pois ele nada teme.

GRÊMIO Hortênsio, escute.


Este cavalheiro chegou na hora certa,
Penso, pelo seu próprio bem e nosso.33

HORTÊNSIO
Prometi que seríamos contribuidores,
E arcaríamos com o custo da corte no todo.

GRÊMIO
E assim faremos, desde que a conquiste.

GRÚMIO (à parte)
Eu queria estar certo assim de um bom jantar.
Entram Trânio, finamente trajado como Lucêncio, e Biondello
TRÂNIO Cavalheiros, Deus vos salve. Se me permitem o atrevimento,
digam-me, eu imploro, qual é o caminho mais rápido para a casa do Signor
Batista Minola?

BIONDELLO Aquele que tem duas belas filhas — é ele que você
deseja?

TRÂNIO Ele mesmo, Biondello.

GRÊMIO
Escute, senhor, você não quer dizer a que —

TRÂNIO
Talvez ele e ela, senhor. O que você tem a ver?

PETRÚQUIO
Não a que censura, senhor, de qualquer forma, eu rogo.

TRÂNIO
Não adoro censoras, senhor. Vamos, Biondello.

LUCÊNCIO (à parte para Trânio)


Bom início, Trânio.

HORTÊNSIO Senhor, me diz uma coisa.


Você é um pretendente à jovem citada — sim ou não?

TRÂNIO
E se eu for, senhor, é alguma ofensa?

GRÊMIO
Não, se sem mais palavras você partir daqui.
TRÂNIO
Ora, senhor, imploro, as ruas não são tão livres
Para mim quanto são pra você?

GRÊMIO Mas ela não.

TRÂNIO
Por qual razão, eu imploro?

GRÊMIO
Por esta razão, se você quer saber:
Que ela é o amor escolhido do Signor Grêmio.

HORTÊNSIO
Que ela é a escolhida do Signor Hortênsio.

TRÂNIO
Calma, meus senhores. Se forem cavalheiros,
Façam-me este favor, me escutem com paciência.
Batista é um nobre cavalheiro
A quem meu pai não é totalmente desconhecido,
E se sua filha for mais bela do que é,
Mais pretendentes ela pode ter, e eu um deles.
A filha34 da bela Leda tinha mil pretendentes;
Bem, então, um a mais pode a bela Bianca ter,
E assim será. Lucêncio será um competidor,
Mesmo se Páris fosse o único vencedor.

GRÊMIO
O que, este cavalheiro nos excederá a todos!

LUCÊNCIO
Senhor, dê rédea, eu sei que ele é um pangaré.
PETRÚQUIO
Hortênsio, pra que são todas essas palavras?

HORTÊNSIO (a Trânio)
Senhor, permita a audácia de lhe perguntar,
Você já viu a filha de Batista?

TRÂNIO
Não, senhor, mas ouvi que ele tem duas,
A que é famosa pela língua repressora
Tanto quanto a outra é pela bela modéstia.

PETRÚQUIO
Senhor, senhor, a primeira é pra mim. Deixe-a em paz.

GRÊMIO
Sim, deixem esse trabalho pro grande Hércules,
Que já será maior que os outros doze.35

PETRÚQUIO
Senhor, entenda isso de mim de verdade,
A filha mais jovem por quem vocês buscam,
O pai a mantém fora do acesso de pretendentes,
E não vai prometê-la a nenhum homem
Até que a irmã mais velha primeiro se case.
A mais jovem estará então livre, e não antes.

TRÂNIO
Se assim for, senhor, então você é o homem
Que deve ajudar todos nós, e a mim também,
E se quebrar o gelo e produzir esse feito,
Conquistar a mais velha, liberar a mais jovem
A nosso acesso, aquele cuja sorte for tê-la
Não será tão grosseiro a ponto de ser ingrato.

HORTÊNSIO
Senhor, você diz bem, e bem você concebe,
E já que bem professa ser um pretendente,
Como nós, deve compensar o cavalheiro,
Com quem nós todos igualmente temos dívida.

TRÂNIO
Senhor, eu não serei desleixado. De fato,
Por favor, nós podemos passar a tarde juntos,
E fazer muitos brindes para nossa amada,
E como adversários nos tribunais fazem–
Competir forte, mas comer e beber como amigos.

GRÚMIO e BIONDELLO
Oh, moção excelente! Vamos, companheiros.

HORTÊNSIO
Que assim seja, a moção é boa mesmo.
Venha, Petrúquio, que eu serei seu ben venuto.36
Saem

1 Pádua, famosa por sua universidade, fundada em 1228, e um centro de Aristotelianismo, nunca
se localizou na Lombardia, embora esteja na região vizinha de Vêneto, onde também se encontram
Veneza e Verona. Estudantes ingleses frequentavam Pádua e Bolonha (capital da região contígua da
Emília-Romanha) desde essa época até o século XVI.
2 Historicamente, os Bentivolii/Bentivogli foram uma das famílias mais poderosas de Bolonha,
não de Pisa (da vizinha Toscana), de grande força política. A cartografia na Era Elisabetana não era
muito precisa. Em Romeu e Julieta, Shakeaspeare abrevia o nome para Benvolio.
3 Essa ideia de que só o viver virtuoso traz felicidade está na Ética de Aristóteles (livros 1 e 2).
4 Perdoe-me, desculpa; não é italiano perfeito, mas é suficiente. Há outras expressões assim neste
ato. As edições Folger, Arden second e third series trazem essa expressão assim; apenas a Oxford,
dentre as edições originais consultadas, traz Mi perdonate.
5 Embora pareça estranho que Shakespeare pensasse que Pádua fosse um porto, naquela época
todo o norte da Itália estava interconectado por canais e hidrovias, e assim qualquer um podia pegar
um barco em um canal atrás da universidade e ir para Veneza, por exemplo.
6 Pantaloon: pantalão, palhaço, bufão; um personagem da comedia dell’arte italiana,
caracterizado como um velho comerciante tolo, vestindo calças apertadas, frequentemente enganado
nas intrigas de amantes.
7 Algumas edições colocam esta indicação cênica após a fala de Trânio, abaixo. Acima,
gramercies: do francês, muito obrigado.
8 Cart (charivari): costume elisabetano de punir/humilhar uma mulher que tivesse cometido
algum crime (prostituição, por ex.) ou que repreendesse o marido, levando-a amarrada a uma carroça
pela cidade, enquanto ela era chicoteada e as pessoas batiam panelas e outros utensílios. Um
trocadilho com “cortejá-la” (court) no verso anterior.
9 To make a stale of me amongst these mates: há vários níveis de significado neste verso e no
seguinte no tocante às palavras usadas; stale: isca, engodo, prostituta, chacota, troça, empate no jogo
de xadrez; velho, duro, gasto ou ressecado, quando se trata de alimento; mate: um xeque-mate no
xadrez, companheiro, camarada, colega, cônjuge, pretendente, marido. Minha escolha acima, focando
os fonemas M e D, reflete o jogo sonoro do original com M e T, bem como o sentido mais
dominante, embora outras combinações sejam possíveis com os termos listados.
10 Deusa romana da sabedoria e das artes (equivalente de Atena na Grécia).
11 As edições Oxford, Arden second e third series trazem esta grafia do que seria ‘senhor’ em
italiano; todas têm o texto da peça em inglês moderno; a Folger e o texto em inglês antigo trazem a
grafia “signior”. De qualquer forma, esta é uma variante daquela; foi mantida no original para manter
a estranheza, como em inglês.
12 A decisão de Batista de só permitir a corte à filha mais nova após o casamento da mais velha
não é necessariamente um impedimento legal.
13 Love-in-idleness/heartsease: Lucêncio enuncia a ideia proverbial de que o amor é encontrado
no ócio (idleness), e que essa flor produziria essa sensação por causa de seus poderes afrodisíacos.
14 Irmã de Dido, a quem ela confessa seu amor por Enéas.
15 Liberte-se do cativeiro com o mínimo resgate (frase de uma Gramática Latina de Lily, 1542,
usada em escolas elisabetanas).
16 Na mitologia grega, foi um rei de Tiro, cidade fenícia, que teve quatro filhos com Teléfassa:
Europa, raptada por Zeus (Júpiter/Jove na mitologia romana), disfarçado de touro, e levada para
Creta; Cadmo, que fundou a cidade de Tebas, quando saiu à procura da irmã; Fênix e Cílix, herói da
Cilícia.
17 Está assim no original.
18 Um cavalheiro elisabetano usava roupas variadamente coloridas, enquanto um criado usava
uniforme, geralmente azul.
19 Presenters, colocados acima do palco, apresentam ou comentam a peça no drama elisabetano.
Neste caso, o Lorde também seria um apresentador.
20 Mãe da Virgem Maria, embora não seja mencionada na Bíblia. O culto a ela foi muito atacado
por Lutero e os Reformadores.
21 Isso implica que eles ficam até o final, mas não falam de novo no texto do Folio; serão
adicionadas passagens extras de A Doma de Uma Megera, outra peça da época, citada no prefácio do
tradutor, para complementar este texto, ao final.
22 Rebused, no lugar de abused: malapropismo para maltratar.
23 Tradução: Cumprimentos de todo o coração. O original está registrado na forma que aparece
na peça em todas as fontes consultadas, edições Oxford, Arden second e third series e Folger, cujos
textos estão em inglês moderno; o texto em inglês antigo traz a citação assim: Contutti le core bene
trobatto.
24 Tradução: À nossa casa seja bem-vindo, meu muito honrado senhor Petrúquio.
25 Grúmio acha que os cumprimentos foram em latim, não em italiano.
26 Dependendo da interpretação, ele pode estar insinuando que seu patrão está velho (demais pra
apanhar do criado), ou bêbado, ou passou dos limites, ou enlouqueceu, com referência ao jogo de
cartas trinta-e-um, com o trinta e dois excedendo o jogo.
27 Haply; o Folio contém happily (termos intercambiáveis na época), com, sorte, felizmente,
talvez.
28 Ill-favoured: normalmente, em Shakespeare, significa feia, não atraente e repulsiva; mas ele
diz adiante que ela é jovem e bonita; o sentido deve ser figurado, indicando a personalidade, não a
aparência.
29 Florêncio (Florentius) é um cavaleiro na obra Confessio Amantis, de John Gower (1330-
1408), que mantém sua promessa de casar com uma mulher horrorosa porque ela tinha dado a ele a
resposta a uma pergunta da qual dependia sua vida (“O que é que toda mulher deseja?), que foi “Que
toda mulher viva feliz/Soberana do amor do homem”. Na noite do casamento, ela se transformou
numa bela jovem. A moral da história é ilustrar o pecado mortal da “desobediência” (MORRIS,
2003, p.187). A Sibila de Cumas (a mais importante das dez conhecidas), profetisa de Apolo, foi
consultada por Enéas antes de descer ao mundo inferior, Hades. Ela recebeu de Apolo o dom de viver
o número de anos contados por um punhado de grãos de areia; reza a lenda que foram nove vidas de
110 anos.
30 Na Oxford e Arden third series, esta rubrica está neste ponto; na Folger, está no meio da fala
de Grúmio, abaixo, antes de “Patrão, patrão…”.
31 Referindo-se a Grêmio, sarcasticamente, como jovem, e o apaixonado pode ser qualquer um
deles.
32 Alguns provérbios da época são fonte para esta fala: many a good hanging prevents a bad
marriage/bons enforcamentos evitam maus casamentos; better well hung than poorly wed/melhor ser
bem enforcado do que mal casado, etc.
33 Ours; algumas edições trazem yours (seu), que traz o efeito dramático da tentativa de Grêmio
repassar as despesas todas para Hortênsio, que responde em seguida mantendo a divisão dos custos.
34 Helena, esposa do rei Menelau, de Esparta, filha da união de Leda com Zeus, que se
transformou em cisne para seduzi-la. Helena depois conhece Páris, que foi visitar Esparta, e ambos
fogem para Troia, dando o motivo inicial para a guerra que vai destruir essa cidade.
35 Alcides’ twelve: os outros doze trabalhos de Alcides, outro nome para Hércules, por causa de
Alceu, seu avô paterno (pai de seu pai Anfitrião, mas apenas formalmente, pois o pai real de Hércules
foi Zeus).
36 Literalmente, “bem-vindo”; Hortênsio está oferecendo sua hospitalidade a Petrúquio e
sinalizando que será seu cicerone, para garantir que ele seja bem recebido por Batista Minola.
ATO II

2.1 UMA SALA NA CASA DO SENHOR BATISTA


Entram Catarina e Bianca (com as mãos atadas)

BIANCA
Boa irmã, não me ofenda, nem se ofenda,
Transformando-me numa serva1 e escrava.
Isso eu desdenho. Mas quanto a esses adornos,
Desamarre minhas mãos, eu os tirarei eu mesma,
Sim, todos os meus trajes, até a minha saia,
Ou o que você mandar, que eu farei,
Tão bem conheço meu dever com os mais velhos.

CATARINA
Dos teus pretendentes ordeno que aqui contes
Quem tu amas mais. Cuida pra não me enganares.

BIANCA
Crê-me, irmã, de todos os homens vivos,
Eu nunca contemplei o rosto especial
Que eu poderia amar mais do que qualquer outro.

CATARINA
Indecente, tu mentes. Não é Hortênsio?

BIANCA
Se você aspira a ele, irmã, eu juro,
Apelarei eu mesma por você para que o tenha.

CATARINA
Oh, então, pelo jeito ama mais as riquezas.
Grêmio você terá para mantê-la linda.

BIANCA
Por ele é que você me inveja2 assim?
Não, então, você zomba, e agora eu bem percebo que
Você só tem zombado de mim todo o tempo.
Eu imploro, irmã Kate, desate minhas mãos.

CATARINA (batendo nela)


Se isso é zombaria, todo o resto era isso então.
Entra Batista [e vê o gesto]

BATISTA (a Catarina)
Ora, como assim, dama, de onde vem essa insolência?
Afasta-te, Bianca. Pobre moça, ela chora. [Ele solta as mãos dela]
Vai cuidar tuas costuras, não te metas com ela.
(Para Catarina) Que vergonha, infeliz de espírito maligno,
Por que a ofendes se ela nunca te ofendeu?
Quando ela te enfadou com uma palavra amarga?

CATARINA
Seu silêncio me insulta, e eu serei vingada.
Ela corre atrás de Bianca

BATISTA
O que, na minha frente? Bianca, vai pra dentro.
Sai Bianca

CATARINA
O que, não vai me tolerar? Não, vejo agora
Que ela é seu tesouro, ela deve ter um marido.
Eu devo dançar descalça em seu casamento,3
E por seu amor a ela levar macacos ao inferno.4
Não fale comigo. Eu vou sentar e chorar
Até encontrar uma chance de vingança.
Sai Catarina

BATISTA
Já houve um cavalheiro tão maltratado como eu?
Mas quem vem aqui?
Entram três duplas de visitantes para o Signor Batista: o velho
pretendente Grêmio e Lucêncio, como o professor de língua, Câmbio,
humildemente trajado; Petrúquio, com Hortênsio disfarçado como o
professor de música, Lício (por isso não é reconhecido pelos amigos
de Pádua); e os dois criados de Lucêncio: Trânio, fingindo ser
Lucêncio, e Biondello, carregando um alaúde e livros.

GRÊMIO Bom dia, vizinho Batista.

BATISTA Bom dia, vizinho Grêmio. Meus cumprimentos,


cavalheiros.

PETRÚQUIO
E a você, bom senhor. Por favor, não tem você uma
Filha chamada Catarina, bela e virtuosa?

BATISTA
Tenho uma filha, senhor, chamada Catarina.

GRÊMIO (a Petrúquio)
Você é brusco demais. Faça do modo certo.
PETRÚQUIO
Você me ofende, Signor Grêmio. Dê-me espaço.
(A Batista) — Eu sou um cavalheiro de Verona, senhor,
Que, ouvindo da beleza e argúcia dela,
Sua afabilidade e pudica modéstia,
Suas raras qualidades e branda conduta,
Ouso mostrar-me como ardente convidado
Em sua casa pra fazer de meu olho testemunha
Da descrição que tenho ouvido com frequência,
E, como prêmio por essa recepção,
Eu apresento um criado meu
(apresentando Hortênsio, disfarçado como Lício, professor de
música),
Perito em música e matemática
Para instruí-la totalmente nessas áreas,
Das quais eu sei que ela não é ignorante.
Aceite-o, ou então me sentirei ofendido.
Seu nome é Lício, e foi nascido em Mântua.

BATISTA
Seja bem-vindo, senhor, e ele também, por sua causa.
Mas quanto à minha filha, Catarina, isto eu sei:
Ela não é mulher pra você, e maior é minha dor.

PETRÚQUIO
Vejo que não deseja se separar dela,
Ou então não gosta de minha companhia.

BATISTA
Não me compreenda mal, só falo do que vejo.
Donde é você, senhor? Como é seu nome?

PETRÚQUIO
Petrúquio é meu nome, filho de Antonio.
Um homem muito conhecido em toda a Itália.

BATISTA
Eu o conheço bem. Por ele, você é bem vindo.

GRÊMIO
Com todo respeito, Petrúquio, eu rogo,
Deixe os pobres postulantes falarmos também.
Baccare,5 você está muito insistente.

PETRÚQUIO
Oh, me perdoe, Signor Grêmio, estou muito ansioso.

GRÊMIO
Eu não duvido, senhor. Mas você vai amaldiçoar sua corte. (Para
Batista) Vizinho, esse presente6 do Petrúquio é muito apreciável, tenho
certeza disso. Para expressar uma bondade semelhante eu mesmo, que lhe
devo mais do que ninguém, dou-lhe liberalmente de presente este jovem
erudito (apresenta Lucêncio, disfarçado como Câmbio), que tem estado
estudando por longo tempo em Reims, e é tão habilidoso em grego, latim e
outras línguas como o outro é em música e matemática. Seu nome é
Câmbio. Por favor, aceite seus serviços.

BATISTA Mil agradecimentos, Signor Grêmio. Bem-vindo, bom


Câmbio. (A Trânio) Mas, caro senhor, você me parece um pouco retraído.
Posso ter a audácia de saber a causa de sua vinda?

TRÂNIO
Perdoe-me, senhor, a audácia é toda minha,
Pois, sendo um estranho aqui nesta cidade,
Faço-me mesmo um pretendente à sua filha,
À Bianca, bela e virtuosa.
Sua firme decisão é conhecida minha
Na preferência à sua filha mais velha.
Esta liberdade é tudo que exijo:
Que ao saber de minha ascendência
Possa eu ser recebido entre os cortejadores,
E tenha acesso livre e permissão como os demais.
E pela educação de suas filhas
Aqui concedo um simples instrumento,
E estes poucos livros de grego e latim.
Se aceitá-los, então seu valor será grande.

BATISTA
Lucêncio é o seu nome7 — de onde, eu rogo?

TRÂNIO
De Pisa, senhor, filho de Vincêncio.

BATISTA
Um poderoso homem de Pisa. De reputação
Eu o conheço bem. Muito bem-vindo, senhor.
(A Hortênsio) Você pega o alaúde, (a Lucêncio) e você traz os livros.
Irão ver suas alunas imediatamente.
Olá, aí dentro!
Entra um Criado
Rapaz, leve estes cavalheiros
A minhas filhas, e diga a ambas
Que estes são seus tutores. Diga pra tratá-los bem.
Sai Criado com Lucêncio e Hortênsio [Biondello segue atrás
deles]
(A Petrúquio) Vamos caminhar um pouco no pomar,
Depois pro almoço.8 Vocês são muito bem vindos —
E assim eu peço a todos que se sintam em casa.
PETRÚQUIO
Signor Batista, meu negócio exige pressa,
E não posso vir todo dia pra cortejar.
Você conheceu bem meu pai, e eu por ele,
Deixado único herdeiro de seus bens e terras,
Que eu aumentei em vez de reduzir.
Diga-me então, se eu conseguir o amor de sua filha,
Que dote terei eu com ela por esposa?

BATISTA
Após a minha morte, metade de minhas terras,
E com o matrimônio vinte mil coroas.

PETRÚQUIO
E com esse dote asseguro sua viuvez,
Caso ela viva mais do que eu,
Com minhas terras e riquezas todas.
Que os acordos sejam, assim, redigidos,
Que cópias dos contratos sejam mantidas por ambos.

BATISTA
Sim, quando a coisa especial for bem obtida —
Ou seja, seu amor, pois isso é tudo.

PETRÚQUIO
Ora, isso é nada, pois lhe digo, sogro,
Eu sou tão resoluto quanto ela é orgulhosa,
E onde dois fogos furiosos se encontram,
Eles consomem mesmo o que nutre sua fúria.
Embora um foguinho cresça muito com pouco vento,
Rajadas extremas apagarão um incêndio.
Assim eu sou pra ela, e assim cede ela a mim,
Pois eu sou grosso e não cortejo infantilmente.
BATISTA
Que possa cortejá-la bem, e boa sorte.
Mas fique pronto pra algumas duras palavras.

PETRÚQUIO
Sim, eu resisto, como as montanhas aos ventos,
Que não chacoalham, embora soprem sem parar.
Entra Hortênsio [como Lício] com sua cabeça ferida9

BATISTA
O que foi, meu amigo, por que estás tão pálido?

HORTÊNSIO
De medo, eu garanto, se pareço tão pálido.

BATISTA
Achas que minha filha será boa em música?

HORTÊNSIO
Acho que ela será melhor soldado.
O ferro aguenta ela, mas nunca alaúdes.

BATISTA
Então, não podes adestrá-la no alaúde?

HORTÊNSIO
Não, porque ela quebrou o alaúde em mim.
Eu só lhe disse que ela errou os trastes,
E dobrei sua mão para ensinar dedilhado,
Quando, com o mais impaciente espírito maligno,
Disse ela, “Chama esses de trastes?”, “São trastes sim”,
E dito isso ela acertou-me na cabeça,
E pelo instrumento passou minha moleira,
E lá fiquei pasmo por um momento,
Como num pelourinho, olhando pelo alaúde,
Enquanto ela chamava-me de biltre, frívolo,10
E patife estridente, mais uns vinte termos vis,
Como se ela tivesse estudado pra me ultrajar.

PETRÚQUIO
Agora, juro, que garota vigorosa!
Eu a amo dez vezes mais do que jamais amei.
Oh, como eu desejo ter um papo com ela!

BATISTA (a Hortênsio, como Lício)


Bem, venha comigo, e não fique tão frustrado.
Prossiga a prática com minha filha mais nova.
Ela está apta a aprender, e grata por favores.
Signor Petrúquio, você vem junto conosco,
Ou eu devo enviar-lhe a minha filha Kate?

PETRÚQUIO
Eu rogo que o faça. Saem todos, exceto Petrúquio
A aguardarei aqui,
E a cortejarei com ânimo quando vier.
Se ela gritar, então dir-lhe-ei simplesmente
Que seu canto é tão doce como o de um rouxinol.
Se ela franzir a testa, eu direi que é tão pura
Quanto rosas matinais recém-banhadas de orvalho.
Se ela ficar muda e não disser uma palavra,
Então exaltarei sua fluência,
E direi que ela expressa tocante eloquência.
Se me mandar embora, eu darei graças
Como se me mandasse estar com ela uma semana.
Se recusar a casar, pedirei o dia
Quando farei o anúncio e o casamento.
Mas aí vem ela, e agora, Petrúquio, fala!
Entra Catarina
Bom dia, Kate, que ouvi que este é seu nome.

CATARINA
Você ouviu bem, pra alguém ruim de ouvido.
Os que falam de mim Catarina me chamam.

PETRÚQUIO
Você mente, de fato, que a chamam só Kate.
E forte Kate, e às vezes a maldita Kate,
Mas Kate, a mais bela Kate na cristandade,
Kate da Mansão Kate, minha super-delicada Kate —
Pois quitutes são deleites, requintes como “Kate” —
Ouça isso de mim, Kate minha consolação:
Ouvindo tua brandura louvada nas cidades,
Tuas virtudes faladas, e beleza aclamada —
Porém, não tão alto quanto mereces —
Vim comovido cortejá-la por esposa.

CATARINA
Comovido? Depressa, quem o moveu pra cá
Que o remova daqui. Percebi desde o início
Que você era móvel.

PETRÚQUIO Ora, o que é um móvel?

CATARINA
Uma banqueta.

PETRÚQUIO Acertaste. Vem sentar em mim.

CATARINA
Asnos são feitos pra carregar, e você também.

PETRÚQUIO
Mulheres são feitas pra gerar, e você também.

CATARINA
Não um pangaré como você, se pensou isso.

PETRÚQUIO
Ai de mim, Kate, não te sobrecarregarei,
Por saber que és bem jovem e frágil.

CATARINA
Ágil demais prum jeca como você pegar,
Porém, tão pesada como devo ser.

PETRÚQUIO
Deve ser? — Com esse buchicho?

CATARINA Pegou bem, urubu.

PETRÚQUIO
Oh pombinha lenta, um urubu vai te pegar?

CATARINA
Sim, vem, que ela te pega feito um besouro.11

PETRÚQUIO
Vamos, vamos, sua vespa, você é bem raivosa mesmo.

CATARINA
Se sou zangada, melhor cuidar meu ferrão.
PETRÚQUIO
Meu remédio é então arrancá-lo.

CATARINA
Sim, se o tolo conseguir encontrá-lo.

PETRÚQUIO
Quem não sabe onde uma vespa tem seu ferrão?
Em seu rabo.

CATARINA Em sua língua.

PETRÚQUIO A língua de quem?

CATARINA
A sua, se você é alcoviteiro, e assim adeus.

PETRÚQUIO
Que, vai me deixar com a última palavra?12 Não, volte,
Boa Kate, sou um cavalheiro.

CATARINA Isso eu testarei.


Ela bate nele

PETRÚQUIO
Juro que lhe bato se me atacar de novo.

CATARINA Assim você pode perder suas armas.


Se você me bater, você não é um cavalheiro,
Se não é cavalheiro, então, não tem brasão.13

PETRÚQUIO
É da heráldica, Kate? Oh, me põe no seu caderno.
CATARINA Qual é o seu símbolo, um penacho — um chapéu de
bobo?14

PETRÚQUIO
Um galo sem crista, assim Kate será minha galinha.

CATARINA
Não tenho galo. Você canta como um frango.

PETRÚQUIO
Vamos, Kate, vamos. Não pareça tão azeda.

CATARINA
É o meu jeito quando vejo uma maçã ácida.

PETRÚQUIO
Ora, não há maçã aqui, logo não fique azeda.

CATARINA Há sim, há sim.

PETRÚQUIO Então me mostre.

CATARINA Se eu tivesse um espelho eu mostraria.

PETRÚQUIO
Que, fala do meu rosto?

CATARINA Que esperto, pra alguém tão jovem.

PETRÚQUIO
Ah, por São Jorge, eu sou forte15 demais pra você.

CATARINA
Porém, está murcho.

PETRÚQUIO De preocupação.

CATARINA Não me preocupo.

PETRÚQUIO
Não, ouça, Kate. De verdade, você não escapa assim.

CATARINA
Eu vou lhe provocar16 se eu ficar. Deixe-me.

PETRÚQUIO
Não, nem um pouco. Acho-lhe muito gentil.
Me contaram que era grossa, e esquiva, e sombria,
E vejo agora que essa fama é mentirosa,
Pois és alegre, brincalhona, bem cortês,
Não és mordaz, mas doce como as primeiras flores.
Tu não franzes a testa. Não olhas com desdém,
Nem mordes os lábios, como fazem as moças bravas,
Nem tens prazer numa fala perversa,
Mas com brandura divertes teus pretendentes,
Com gentil conversa, suave e afável.
Por que o mundo informa que Kate manca?
Oh mundo detrator! Kate, como a verga da aveleira,
É lisa e esbelta, e tão morena em cor
Quanto as avelãs, e mais doce que as sementes.
Oh deixa-me ver-te andar. Tu não mancas.

CATARINA
Vai, tolo, vai comandar teus criados.

PETRÚQUIO
Diana alguma vez ornou um bosque
Como Kate a esta sala com seu modo altivo?
Oh, sejas tu Diana, e ela Kate,
E que Kate seja casta e Diana ardente.

CATARINA
Onde decorou todo esse fino discurso?

PETRÚQUIO
É improvisado, uma argúcia congênita.

CATARINA
Uma mãe arguta, mas um filho tolo.

PETRÚQUIO
Eu não sou sábio?

CATARINA É, sim, só em se manter quente.

PETRÚQUIO
Pela Virgem, é o que quero, doce Kate, em tua cama.
E por isso, deixando de lado esse papo todo,
Assim em termos simples: seu pai consentiu
Que você minha esposa será, com arranjado dote,
E, queira ou não, me casarei consigo.
Agora, Kate, eu sou um marido pra você,
E nesta luz, pela qual vejo tua beleza —
Tua beleza que me faz gostar bem de ti —
Tu deves desposar nenhum outro homem, exceto eu,
Pois sou aquele que nasceu pra te domar, Kate,
Trazer-te de uma Kate selvagem a uma Kate
Submissa como outras Kates domésticas.
Entram Batista, Grêmio e Trânio como Lucêncio
Aí vem o seu pai. Não negue nada.
Eu devo e terei Catarina como minha esposa.

BATISTA Agora, Signor Petrúquio, como vai com minha filha?

PETRÚQUIO Tudo indo bem, senhor, tudo indo bem?


Seria impossível eu ir mal.

BATISTA
Ora, como está, filha Catarina–deprimida?

CATARINA
Me chama de filha? Agora eu garanto
Que você mostrou uma terna estima paterna
Pra me desejar casada com esse meio lunático,
Um malfeitor afoito e patife profano,
Que pensa resolver a questão com blasfêmias.

PETRÚQUIO
Senhor, é assim: você e todo mundo
Que falaram dela falaram errado dela.
Se ela for maldita, é por estratégia,
Que ela não é perversa, mas branda como uma pomba.
Ela não é ardente, mas amena como a aurora.
Será ela uma segunda Griselda em paciência,
E a romana Lucrécia17 em castidade.
E pra encerrar, nos demos tão bem juntos
Que no domingo será o casamento.

CATARINA
Ver-te-ei enforcado primeiro no domingo.

GRÊMIO Ouve, Petrúquio, ela diz que te verá enforcado antes.


TRÂNIO
Esse é o seu sucesso? Então, adeus ao nosso plano.

PETRÚQUIO
Paciência, cavalheiros. Escolho-a pra mim.
Se eu e ela estamos contentes, o que lhes toca?
Foi acordado entre nós dois, enquanto sós,
Que ela continuará ranzinza em público.
Eu lhes digo, é difícil acreditar
O quanto ela me ama. Oh, a Kate mais amável!
Me agarrou pelo pescoço, e de beijo em beijo
Que ela empilhou tão rápido, e juras sobre juras,
Que num lampejo ela ganhou-me em seu amor.
Oh, vocês são novatos. É digno de ver
Quão mansa, quando homens e mulheres ficam sós,
Fica a megera mais ranzinza com um pobre covarde.
— Dá-me tua mão, Kate. Eu irei pra Veneza
Comprar vestimentas pro casamento.
— Prepare a festa, sogro, e chame os convidados.
Prometo que minha Catarina estará vistosa.

BATISTA
Não sei o que dizer, mas me deem suas mãos.
Deus lhe dê alegria, Petrúquio! Está arranjado.18

GRÊMIO e TRÂNIO
Amém, dizemos nós. Seremos testemunhas.

PETRÚQUIO
Sogro, e esposa, e cavalheiros, adieu.
Eu irei pra Veneza. Domingo já vem.
Teremos anéis, e coisas, e fino arranjo;
E beije-me, Kate. Domingo estaremos casados.
Saem Petrúquio e Catarina, separadamente

GRÊMIO
Já viram um casamento arranjado com tanta pressa?

BATISTA
Verdade, senhores, agora encarno o mercador,
E me arrisco insanamente num acordo perigoso.

TRÂNIO
Foi uma mercadoria que foi se desgastando.
Vai lhe trazer ganho, ou perecer no oceano.

BATISTA
O ganho que busco é calma no arranjo.

GRÊMIO
Sem dúvida ele arranjou uma presa calma.19
Mas agora, Batista, à sua filha mais nova.
Hoje é o dia que há muito estamos aguardando.
Sou seu vizinho, e fui pretendente primeiro.

TRÂNIO
E eu sou aquele que ama Bianca mais que palavras
Podem testemunhar, ou supor seus pensamentos.

GRÊMIO
Novato, teu amor não é tão caro quanto o meu.

TRÂNIO
Ancião, teu amor congela.

GRÊMIO E o teu frita.


Pirralho, afasta-te. É a idade que sustenta.

TRÂNIO
Mas juventude é o que floresce aos olhos das damas.

BATISTA
Calma, senhores. Quitarei esta disputa.
Os bens20 devem ganhar o prêmio, e aquele de vocês
Que puder garantir o maior dote à minha filha
Terá o amor de minha Bianca.
Diga, Signor Grêmio, o que pode garantir-lhe?

GRÊMIO
Primeiro, como sabe, minha casa na cidade
É ricamente ornada de ouro e prata,
Bacias e jarras pra lavar suas meigas mãos;
Meus drapeados todos de tapeçaria de Tiro.
Em arcas de marfim guardei minhas coroas,
Em baús de cipreste minhas colchas de Arrás,21
Vestimentas caras, dosséis e pálios,
Linho fino, almofadas turcas ornadas com pérolas,
Debruns bordados com fios dourados de Veneza,
Estanho e bronze e tudo que pertence
À casa ou manutenção do lar. Então
Em minha fazenda eu tenho cem vacas leiteiras,
Seis vintenas de bois gordos em meus estábulos,
E todas as coisas próprias à propriedade.
Eu mesmo sou entrado em anos, eu confesso,
E se eu morrer amanhã isso é dela,
Se enquanto eu viver ela for unicamente minha.

TRÂNIO
“Unicamente” ficou bem. Senhor, me escute.
Eu sou o herdeiro do meu pai e filho único.
Se eu puder ter sua filha como minha esposa,
Eu lhe darei três ou quatro casas tão boas,
Dentro dos ricos muros de Pisa, quanto as
Que o velho Signor Grêmio tenha em Pádua,
Além de dois mil ducados ao ano
Da fértil terra, tudo isso será seu espólio.
— O que, lhe dei uma pressionada, Signor Grêmio?

GRÊMIO
Dois mil ducados ao ano da terra?
[À parte] Minha terra toda não equivale a tudo isso.
[Em voz alta] Isso ela terá; além de um navio mercante
Que agora está ancorado no porto em Marselha.
[A Trânio] O que, lhe sufoquei com um navio mercante?

TRÂNIO
Grêmio, é sabido que meu pai tem nada menos
Que três grandes navios mercantes, e duas galeaças
E doze galeras à prova d’água. Eu lhe asseguro,
E duas vezes mais do que tu ofereceres.

GRÊMIO
Não, eu ofereci tudo. Nada mais tenho,
E ela não pode ter mais que tudo que tenho.
[A Batista] Se me aprecia, ela terá a mim e o que possuo.

TRÂNIO
Ora, então, a donzela é toda minha contra todos.
Por sua firme promessa, Grêmio está vencido.

BATISTA
Eu devo confessar que sua oferta é a melhor,
E se seu pai fizer a garantia,
Ela é toda sua. Outra coisa, me perdoe,
Se você morrer antes dele, como fica o dote?

TRÂNIO
Isso é só uma minúcia. Ele é velho, eu, jovem.

GRÊMIO
Não podem os jovens morrer tanto quanto os velhos?

BATISTA Bem, cavalheiros, estou


Assim acertado. Sabem que domingo próximo
Minha filha Catarina deve se casar.
(A Trânio) Agora, no domingo seguinte, Bianca
Será sua noiva, se você der garantia;
Se não, pro Signor Grêmio.
E assim eu me despeço, e obrigado a ambos.

GRÊMIO
Adieu, bom vizinho.
Sai Batista
(A Trânio) Agora eu não te temo.
Rapaz, jogador jovem, seu pai seria um tolo
De dar-te tudo, e numa idade declinante
Viver de tua caridade. Que bobagem,
Uma velha raposa italiana não é tão amável.
Sai Grêmio
TRÂNIO
Uma maldição em sua ladina pele murcha!
Porém, encarei isso com um truque na manga.
Eu penso em fazer bem ao meu patrão.
Só há uma solução, o pretenso Lucêncio
Deve arrumar um pai, o pretenso Vincêncio —
E isso é um assombro; pais comumente
Geram seus filhos, mas nesse caso de cortejar,
Um filho gera um pai, se minha astúcia não falhar.
Ele sai

1 Bondmaid: tecnicamente, uma escrava; para não repetir essa palavra, serva indica uma pessoa
que presta serviços sem salário. Shakespeare não usa bondmaid em nenhum outro texto e,
provavelmente, deve tê-la visto na Bíblia, em Levítico, 19:20.
2 Envy: invejar, mas também com o sentido de odiar.
3 Dance barefoot: ideias tradicionais da época diziam que uma irmã solteira mais velha devia
dançar descalça no dia do casamento da irmã para evitar má sorte e arranjar um marido; assim a frase
se tornou proverbial para quem permanecia solteira. Há registro de que esse costume durou até o
século XIX em algumas partes da Inglaterra.
4 Old maids lead apes in hell: outro provérbio sobre mulheres solteiras mais velhas, que levariam
macacos ao inferno por não terem filhos para levá-las ao céu.
5 Outra forma comum é backare. Este uso seria uma alusão a um homem ignorante que finge
saber latim, um malapropismo para back off/stand back, para trás, porque Petrúquio está muito “pra
frente”, querendo casar logo. Na linha anterior, “pobres pretendentes” é uma forma educada de corte,
pois ambos são homens ricos.
6 Hortênsio, disfarçado como Lício, professor de música.
7 Batista ainda não sabia o nome de Lucêncio; ele pode ser informado de várias maneiras: pode
abrir um dos livros e ver o nome nele ou terem se cumprimentado antes.
8 Dinner: era a principal refeição do dia, servida entre as 11h da manhã e o meio dia.
9 Arranhada ou cortada, sangrando, não necessariamente com o alaúde enfiado na cabeça.
10 Fiddler: violinista; mas, no sentido desta cena, um violador de castidade, leviano, patife
(conferir cena 3.1.1).
11 Buzzard: no original, esta palavra está aqui e na linha anterior, significando urubu/ave de
rapina; mas aqui é num sentido secundário do termo, besouro, ecoando esse fonema B nesse trecho
do diálogo [buchicho/urubu/pombinha/besouro], combinado com o sentido duplo dos verbos, que
inclui o jogo de referência sexual.
12 With my tongue in your tail: com minha língua em seu rabo, no sentido literal.
13 Arms: a mesma palavra para armas, braços e brasão; esse trocadilho era bem comum na
época. Ele perderia as armas ao soltá-las para bater nela.
14 What is your crest, a coxcomb?; crest: figura ou símbolo num brasão, penacho ou crista de
galo; coxcomb: crista, chapéu de bobo ou pessoa vaidosa, janota, dândi. O diálogo joga com duplo
sentido em todas as falas.
15 Young: embora esta palavra signifique jovem, o sentido aqui, segundo Arden second e third
series é de forte, uma característica do jovem, como está registrado inclusive no OED, “tendo o
frescor e vigor da juventude”.
16 Chafe: também no sentido de excitar, inflamar, vexar, roçar, irritar.
17 Grissel/Griselda: figura bem conhecida do folclore medieval pela paciência e devoção;
Lucrece/Lucrécia: virtuosa senhora da nobreza de Roma do século V A.C., que cometeu suicídio
após sofrer estupro por Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo, rei de Roma. Este episódio foi o motivo
inicial da revolta que derrubou a monarquia e iniciou a república em Roma.
18 Literalmente, Batista dá a mão da filha em casamento a Petrúquio, sendo esta breve cerimônia
praticamente um pré-contrato nupcial. Comum na era elisabetana, o juramento de intenção de casar
requeria a presença e o consentimento verbal dos interessados, que não poderiam se casar com outras
pessoas. Acontece que Catarina fica em silêncio, o que tornaria o contrato nulo.
19 Naturalmente, isso é uma ironia.
20 Deeds: documentos ou instrumentos que garantem o título de bens e propriedades, provas da
riqueza do pretendente, que assegurarão o futuro da noiva, caso o marido faleça antes. O dote, neste
caso, em que a futura noiva tem muito valor, é dado pelo pretendente; no caso de Catarina, há o dote
do pai. O uso de “bens” nesse verso foi por uma questão métrica.
21 Cypress: madeira extremamente dura do cipreste mediterrâneo; arras counterpoints: colchas
produzidas pela famosa indústria têxtil da cidade de Arrás, na França.
ATO III

3.1 CASA DO SIGNOR BATISTA


Entram Lucêncio, com livros, como o professor de línguas, Câmbio,
Hortênsio, com um alaúde, como o professor de música, Lício, e Bianca

LUCÊNCIO
Pare, frívolo. É muito atrevimento seu, senhor.1
Já esqueceu a recepção
Que sua irmã Catarina lhe deu?

HORTÊNSIO
Mas, quizilento professor, esta Bianca é
A padroeira da harmonia celestial.
Então permita-me ter a prerrogativa,
E quando passarmos uma hora com música,
Sua lição também terá licença pra tanto.

LUCÊNCIO
Seu imbecil prepóstero, que nunca leu o bastante
Pra saber por que a música foi instituída!
Não foi pra refrescar a mente do homem
Após estudos ou trabalho manual?
Então me dê licença pra ler filosofia
E, quando eu descansar, sirva sua harmonia.

HORTÊNSIO
Rapaz, eu não tolerarei tuas bravatas.
BIANCA
Cavalheiros, vocês me fazem dupla ofensa
Ao batalhar por algo que é de minha escolha.
Não sou uma aluna desobediente em aula.
Não estarei presa a horários nem tabelas,
Mas tomarei minhas lições ao meu prazer;2
E pra findar todo conflito, aqui sentemos.
(A Hortênsio) Pegue o seu instrumento, toque um pouco.
A lição dele acabará antes que o afine.

HORTÊNSIO
Você deixará a aula quando estiver afinado?

LUCÊNCIO
Isso nunca será. Afine seu instrumento.
Hortênsio vai [para o lado] afinar seu alaúde. Lucêncio abre um
livro

BIANCA Onde paramos da última vez?3

LUCÊNCIO Aqui, senhora.


(Lê um trecho do poeta Ovídio)
Hic ibat Simois, hic est Sigeia tellus,
Hic steterat Priami regia celsa senis.4

BIANCA Traduza isso.

LUCÊNCIO Hic ibat, como eu lhe disse antes; Simois, eu sou


Lucêncio; hic est, filho de Vincêncio de Pisa; Sigeia tellus, disfarçado assim
para conquistar seu amor; Hic steterat, e aquele outro Lucêncio que vem lhe
cortejar; Priami, é meu criado Trânio; regia, trajado como eu; celsa senis,
para que possamos enganar o velho tolo [Grêmio].
HORTÊNSIO Senhora, meu instrumento está afinado.

BIANCA Vamos ouvir. (Hortênsio toca) Oh não, o agudo está


desafinado.

LUCÊNCIO Cuspa na cravelha,5 homem, e afine de novo.


Hortênsio afina seu alaúde de novo

BIANCA Agora deixe-me ver se consigo traduzir isso. Hic ibat


Simois, eu não lhe conheço; hic est Sigeia tellus, eu não confio em você;
Hic steterat Priami, assegure-se que ele não nos ouve; regia, não presuma;
celsa senis, não se desespere.

HORTÊNSIO
Senhora, agora está afinado.

LUCÊNCIO Exceto o grave.

HORTÊNSIO
O grave está correto, é o biltre baixo que destoa.
(À parte) Quão ardente e atrevido é nosso professor!
Agora, eu juro, o biltre corteja minha amada mesmo.
Que professorzinho, vou vigiá-lo mais ainda.

BIANCA (a Lucêncio)
Mais tarde eu acreditarei; ainda não confio.

LUCÊNCIO (para Bianca)


Não desconfie disso, [em voz alta] é certo que o Eácida
Era Ajax, chamado assim por causa do avô.6

BIANCA
Eu devo acreditar em meu mestre, ou então, eu juro,
Eu ainda estaria discutindo essa afirmação.
Mas deixe assim. Agora, Lício, é sua vez.
Caros mestres, não levem a mal, eu rogo,
Que eu tenha sido brincalhona com ambos.

HORTÊNSIO (a Lucêncio)
Pode ir caminhar e nos deixar em paz.
Minhas lições não são pra música em três partes.7

LUCÊNCIO
Por que tão detalhista, senhor? Bem, devo aguardar.
(À parte) E vigiar também, pois, a menos que eu esteja errado,
Nosso fino músico ficou romântico. [Ele fica de lado]

HORTÊNSIO
Senhora, antes de tocar o instrumento
Para aprender o básico do meu dedilhado,
Devo iniciar com rudimentos de arte,
Para ensinar-lhe a escala de modo mais breve,
Mais agradável, rápido e efetivo
Do que é ensinado por qualquer um em minha área;
Aí está por escrito, bem estruturado.
Ele repassa um papel

BIANCA
Ora, eu já passei da escala faz tempo.

HORTÊNSIO
Contudo, leia a escala de Hortênsio.

BIANCA (lê a escala que ele passou)


“Escala de dó eu sou, a base de todo acorde:8
A–ré, pra pleitear a paixão de Hortênsio;
B–mi, Bianca, toma-o por teu senhor,
C–fá–dó, que ama com toda afeição;
D–sol, ré, uma letra, duas notas eu possuo;
E–lá, mi, demonstre piedade, ou eu morro.”
Chama isso de escala? Não, não gostei.
A moda antiga agrada-me mais. Não sou tão tola
Pra trocar regras certas por estranhas invenções.
Entra um Mensageiro9

MENSAGEIRO
Senhora, seu pai roga que deixe seus livros
E ajude a decorar o quarto de sua irmã.
Sabe que amanhã é o dia do casamento.

BIANCA
Até logo a vocês, caros mestres. Devo ir.

LUCÊNCIO
Pois é, senhora, então não tenho por que ficar.
Saem Bianca, Mensageiro e Lucêncio

HORTÊNSIO
Mas eu tenho razão pra espiar este professor.
Acho que ele parece estar apaixonado.
Mas, se teus pensamentos, Bianca, forem tão baixos
Que lanças teus vagantes olhos em todo engodo,10
Agarra quem te queira. Se eu te vir errante,
Hortênsio retribuirá sendo inconstante.
Sai

3.2 EM FRENTE À CASA DE BATISTA


Entram Batista, Grêmio, Trânio como Lucêncio, Catarina, Bianca,
Criados e outros.

BATISTA (a Trânio)
Signor Lucêncio, hoje é o dia combinado
Do casamento de Petrúquio e Catarina,
Porém, não temos notícias de nosso genro.
O que será dito, que escárnio haverá,
Sobre a falta do noivo quando o pároco chegar
Pra celebrar os rituais do matrimônio?
O que Lucêncio diz sobre nossa vergonha?

CATARINA
A vergonha é só minha. Eu devo ser forçada
De fato a dar minha mão contra o meu coração
Pra um bruto insano cheio de capricho,
Que cortejou com pressa e quer casar com calma.
Eu lhes disse, eu sabia que ele era um tolo desvairado,
Ocultando as amargas burlas em conduta tosca,
E pra ser notado como engraçado
Ele vai cortejar mil, marcar o casamento,
Fará amizades, os convidará, fará os anúncios,
Mas jamais casará com quem ele cortejou.
Agora o mundo aponta à pobre Catarina
E diz, “Vejam, lá está a esposa do louco Petrúquio,
Se o agradasse ir lá casar com ela”.

TRÂNIO
Paciência, boa Catarina, e Batista também.
Juro por minha vida, Petrúquio só quer o bem;
Não importa o que evite cumprir sua palavra,
Embora seja tosco, eu sei que é muito sábio;
Embora seja cômico, é bastante honesto.11
CATARINA
Que Catarina então nunca o tivesse visto.
Sai chorando [seguida de Bianca e Criados]

BATISTA
Vai, filha, não posso culpar-te agora pelo choro.
Pois tal injúria vexaria até um santo,
Muito mais uma megera de ânimo agitado.
Entra Biondello, o outro criado de Lucêncio

BIONDELLO Patrão, patrão, notícias — velhas noticiais, e notícias


tais das quais nunca ouviu falar.

BATISTA São novas e velhas também? Como isso pode ser?

BIONDELLO Ora, não é notícia saber da vinda de Petrúquio?

BATISTA Ele veio?

BIONDELLO Ora, não, senhor.

BATISTA O que, então?

BIONDELLO Ele está vindo.

BATISTA Quando ele estará aqui?

BIONDELLO Quando ele estiver onde estou e vê-lo aí.

TRÂNIO Mas diz, qual é a tua velha notícia?

BIONDELLO Ora, Petrúquio está vindo de chapéu novo e jaqueta


velha, um par de calças velhas viradas três vezes do avesso, um par de botas
que foram suportes de velas, uma afivelada, a outra atada, uma velha espada
enferrujada tirada do arsenal da cidade, com o punho quebrado, e sem a
ponta da bainha, com duas alças quebradas, seu cavalo tem uma anca
deslocada, com uma velha sela comida de traça e estribos que não
combinam, além disso, tem a doença infecciosa lamparão, e provavelmente
com os sintomas piorando, perturbado com um inchaço no palato, infectado
com mormo cutâneo, cheio de tumores nas pernas, arruinado com inchaço
nas juntas, manchado de icterícia, sem cura para o garrotilho,
completamente devastado com o cambaleio, roído por vermes, com uma
depressão nas costas e um ombro deslocado, suas pernas da frente estão
cambetas, seu bocal está estragado e o cabresto é feito de couro de ovelha
que, sendo puxado para evitar que ele tropece, já quebrou com frequência e
tem que ser reparado com nós, uma cilha emendada seis vezes, e o rabicho
revestido de veludo que tem as duas iniciais de uma mulher, razoavelmente
colocadas com rebite, e está remendado com cordões em vários pontos.

BATISTA Quem vem com ele?

BIONDELLO Oh senhor, seu lacaio, eu juro por tudo que ele está
trajado como o cavalo, com uma meia de linho em uma perna e um forro de
lã grossa na outra, mantidos com tiras azul e vermelha como ligas; um
velho chapéu com um monte de fitas fixadas nele como penas — um
monstro, trajado mesmo como um monstro, e não como um bom pajem
cristão ou um lacaio de um cavalheiro.

TRÂNIO
É algum capricho estranho que o urge a tal moda;
Com frequência ele anda bem mal trajado.

BATISTA
Estou feliz que ele venha, não importa o modo.

BIONDELLO Ora, senhor, ele não vem.


BATISTA Tu não disseste que ele vem?

BIONDELLO Quem? Que Petrúquio veio?

BATISTA Sim, que Petrúquio veio.

BIONDELLO Não, senhor. Eu digo que seu cavalo vem com ele no
lombo.

BATISTA Ora, é tudo a mesma coisa.

BIONDELLO Não, Por São Tiago,12


Aposto um tostão,
Que um cavalo e um homem
São mais do que um,
Mas muitos não são.
Entram Petrúquio e Grúmio, seu criado, fantasticamente
trajados

PETRÚQUIO Vamos, onde estão esses cavalheiros? Quem está em


casa?

BATISTA Seja bem-vindo, senhor.

PETRÚQUIO No entanto, não ando bem.13

BATISTA No entanto, não manca.

TRÂNIO
Não tão bem trajado como eu gostaria.

PETRÚQUIO
Não seria melhor eu entrar assim mesmo?
Mas onde está Kate? Onde está minha linda noiva?
Como vai meu sogro? Ilustres, estão franzindo a testa.
E por que todos os amigos miram como
Se vissem um notável presságio,14
Algum cometa ou augúrio incomum?

BATISTA
Ora, senhor, você sabe que hoje é o seu casamento.
Antes, ficamos tristes, temendo que não viesse;
Agora mais tristes, pois vem tão inadequado.
Nossa, dispa esse traje, é uma vergonha pro seu posto,
Uma ofensa ao nosso festim solene.

TRÂNIO
E diga-nos que ocasião tão importante
Deteve-o tanto tempo longe de sua esposa
E o mandou aqui tão diverso de si mesmo?

PETRÚQUIO
Tedioso seria contar, e duro ouvir.
É o bastante dizer que eu vim manter minha palavra,
Embora em parte forçado a um desvio,
O qual com mais tempo eu explicarei
Até que vocês fiquem satisfeitos.
Mas onde está Kate? Fiquei demais longe dela.
A manhã passa, é hora de estarmos na igreja.

TRÂNIO
Não veja a noiva em tão desrespeitosas vestes.
Vá pra meus aposentos, vista roupas minhas.

PETRÚQUIO
Nem pensar, creia-me. Eu a verei assim.
BATISTA
Mas, penso, assim, você não casará com ela.

PETRÚQUIO
Pois sim, bem assim. Por isso, chega de palavras.
Comigo ela se casa, não com minhas roupas.
Pudesse eu consertar o que ela vai usar em mim
Como eu posso trocar esses pobres andrajos,
Seria bom pra Kate e melhor pra mim mesmo.
Mas que tolo sou eu palrando com vocês
Quando eu devia dar bom dia pra minha noiva,
E selar o acordo com um terno beijo!
Sai [com Grúmio]

TRÂNIO
Deve ter seu motivo pra esse traje louco.
Nós o convenceremos,15 se possível for,
A vestir algo melhor antes de ir pra igreja.
[Sai com Grêmio]

BATISTA
Eu vou segui-lo, pra ver o desfecho disso.
Saem Batista, Biondello e Criados

3.3 AINDA EM FRENTE À CASA DE BATISTA


Entram Lucêncio como Câmbio e Trânio como Lucêncio, que agora
falam livremente como eles mesmos.

TRÂNIO
Mas, senhor, ao amor, interessa somar
O gosto do pai dela, que pra acontecer,
Como eu expliquei antes pra sua reverência,
Preciso conseguir um homem — quem ele seja
Não importa muito, servirá ao nosso fim —
E ele será Vincêncio de Pisa,
E fará garantias aqui em Pádua
De valores maiores do que prometi.
Assim fruirá você seu desejo com calma,
E desposará a doce Bianca com anuência.

LUCÊNCIO
Se não fosse pelo outro professor
Vigiar os passos de Bianca tão de perto,
Seria bom, me parece, casar em segredo,
Pois, uma vez feito, que diga não todo o mundo,
Ela será só minha, malgrado o mundo inteiro.

TRÂNIO
Vamos perscrutar isso passo a passo,
E mirar nossa chance no negócio.
Vamos enrolar o barba branca Grêmio,
O super vigilante pai Minola,
O músico ladino, o apaixonado Lício,
Tudo pelo bem do meu patrão, Lucêncio.
Entra Grêmio
Signor Grêmio, você veio da igreja?

GRÊMIO
Com a mesma ânsia com que sempre vim da escola.

TRÂNIO
E a noiva e o noivo estão vindo pra casa?

GRÊMIO
Um noivo, você diz? Está mais prum criado —
Um servo resmungão, e a moça notará.

TRÂNIO
Mais briguento que ela? Ora, isso é impossível.

GRÊMIO
Ora, ele é um demônio, um demônio, um monstro mesmo.

TRÂNIO
Ora, ela é um demônio, um demônio, a mãe do demo.

GRÊMIO
Tsc tsc, ela é um cordeiro, uma pomba, uma boba perto dele.
Vou lhe contar, Nobre Lucêncio: quando o pároco
Foi perguntar se Catarina seria sua esposa,
“Sim, pelas chagas de Cristo”, disse, e jurou tão alto
Que o pasmo pároco deixou cair o livro,
E quando se abaixou pra pegá-lo de novo,
Esse noivo insano deu-lhe tal palmada
Que vieram abaixo pároco e livro, e livro e pároco.
“Agora os ergam”, disse ele, “se alguém quiser”.

TRÂNIO
O que disse Kate16 quando ele se ergueu de novo?

GRÊMIO
Tremia e agitava, pois Petrúquio pateava
E xingava como se o vigário fosse enganá-lo.
Mas após o final da cerimônia,
Pede vinho. “Um brinde”, ele disse, como se
Estivesse a bordo, farreando com marujos
Após uma tempestade; sorveu o moscatel17
E jogou fatias de bolo de vinho na cara
Do sacristão, sem nenhuma outra razão
Do que ter barba rala e mirrada que lhe
Parecia pedir bolos de vinho ao beber.
Isto feito, agarrou a noiva no pescoço
E beijou seus lábios com tal estalo
Que na saída ecoou pela igreja inteira,
E ao ver isso saí de lá só por vergonha,
E atrás de mim, eu sei, a multidão está vindo.
Nunca houve um casamento assim tão louco.
Música toca
Escutem, escutem, eu ouço os menestréis tocando.
Entram Petrúquio, Catarina, Bianca, Batista, Hortênsio como
Lício, Grúmio, Criados e outros.

PETRÚQUIO
Cavalheiros e amigos, sou grato pelo esforço.
Eu sei que esperam cear comigo hoje,
E há um grande estoque de comes e bebes,
Mas o problema é que minha pressa me pressiona
E por isso aqui peço licença a vocês.

BATISTA
É possível que vá estar fora esta noite?

PETRÚQUIO
Eu devo ir hoje, antes que a noite chegue.
Não se espantem. Se conhecessem meu negócio,
Vocês me rogariam ir em vez de ficar.
E, honrados convidados, agradeço a todos
Que contemplaram eu me entregar ao matrimônio
Com a mais paciente, amável e virtuosa esposa.
Ceiem com meu sogro, bebam um brinde a mim,
Pois eu devo ir; e até logo a todos.
TRÂNIO
Imploramos que fique até após a ceia.

PETRÚQUIO
Não pode ser.

GRÊMIO Permita-me implorar.

PETRÚQUIO
Não tem como ser.

CATARINA Permita-me implorar.

PETRÚQUIO
Eu estou contente.

CATARINA Está contente em ficar?

PETRÚQUIO
Estou contente que vai implorar que eu fique,
Mas não posso ficar, por mais que implore.

CATARINA
Agora, se me ama, fique.

PETRÚQUIO Grúmio, meus cavalos.

GRÚMIO Sim, senhor, estão prontos: a aveia engoliu os cavalos.18

CATARINA
Não, então, faça o que quiser, não irei hoje,
Não, nem amanhã — não até estar satisfeita.
A porta está aberta, senhor, aí está seu caminho.
Pode ir andando enquanto as botas estão novas.
Por mim, não partirei enquanto não quiser.
Parece que será um noivo bem grosseiro,
Que decide tudo logo tão rudemente.

PETRÚQUIO
Oh Kate, te acalma. Rogo, não fiques com raiva.

CATARINA
Eu ficarei com raiva. O que tens a ver com isso?
— Pai, fique tranquilo. Ele aguardará minha hora.

GRÊMIO
Certo que sim, senhor. Agora a coisa ferve.

CATARINA
Cavalheiros, prossigam pra ceia de casamento.
Vejo que uma mulher pode ser feita de tola
Se ela não tiver ânimo pra resistir.

PETRÚQUIO
Eles prosseguirão, Kate, bem ao teu comando.
— Obedeçam à noiva, vocês que a servem.
Vão pro banquete, festejem e farreiem,
Bebam bastante à virgindade dela.
Sejam loucos e alegres, ou vão se enforcar.
Mas quanto à minha linda Kate, ela deve ir comigo.
Não, não se gabem, nem batam os pés, nem encarem,
Nem se vexem.19 Eu serei o patrão do que é meu.
Ela é minha mercadoria, minha posse. Minha casa,
Minha mobília, meu campo, meu estábulo,
Meu cavalo, meu boi, meu asno, qualquer coisa,
E aqui ela está, toque-a quem for audaz.
Tomarei providências contra o homem que
Impedir meu caminho a Pádua. Grúmio,
Saca tua arma, estamos rodeados de ladrões.
Resgata tua senhora se és homem.
Não temas, doce moça. Eles não te tocarão, Kate.
Eu te defenderei contra um milhão.
Saem Petrúquio, Catarina e Grúmio

BATISTA
Não, deixem-nos ir — um casal tão tranquilo!

GRÊMIO
Se não saíssem rápido eu morreria de rir.

TRÂNIO
Nunca houve um casamento tão insano como esse.

LUCÊNCIO
Senhora, qual sua opinião sobre sua irmã?

BIANCA
Que sendo insana, está insanamente casada.

GRÊMIO
Eu lhe asseguro que Petrúquio está Kateado.20

BATISTA
Vizinhos e amigos, embora noiva e noivo estejam
Ausentes de seus lugares à mesa,
Sabem que não faltam quitutes no banquete.
Lucêncio, você tomará o lugar do noivo,
E que Bianca tome o lugar de sua irmã.
TRÂNIO
A doce Bianca fará o papel de noiva?

BATISTA
Fará, Lucêncio. Venham, cavalheiros, vamos!
Saem

1 Editores sugerem que esta cena pode começar com Hortênsio segurando a mão de Bianca para
ensinar o dedilhado, o que provocaria a reação de Lucêncio.
2 Bianca tem o mesmo comportamento da irmã Catarina, que se recusa a ter horários
determinados pelos homens (ver Ato I, cena I).
3 Por esta fala e outra abaixo de Lucêncio (“como eu lhe disse antes”), deve ter havido ao menos
uma lição antes. Isto significa que Lucêncio está em vantagem com relação a Hortênsio.
4 “Here ran the river Simois; here is the Sigeian land [i.e. the plain of Troy]; / here stood old
Priam’s lofty palace”, ou seja: “Aqui corria o rio Simois; aqui é a terra Sigeia [a planície de Troia]; /
aqui ficava o alto palácio do velho Príamo”. Trecho tirado de Heroides ou Heroidas, i. 33-4, de
Ovídio. Shakespeare conhecia essa obra; estes versos são da Epístola na qual Penélope é descrita
como escrevendo a Ulisses, rodeada por pretendentes. (MORRIS, 2003, p.219) Naturalmente, a
tradução de Lucêncio nada tem a ver com o original, e nem a de Bianca, mas o trecho citado evoca
uma cena romântica.
5 Spit in the hole: o alaúde era um instrumento de difícil afinação; a sugestão é umedecer a
cravelha para a madeira inchar e grudar mais e assim manter a afinação da corda. Pode ser uma
referência ao hábito de cuspir nas mãos para segurar algo com mais firmeza.
6 Aeacides: Eácidas são chamados os descendentes de Éaco, avô de Ajax, que também era avô de
Aquiles, por isso Bianca poderia discutir essa questão na fala seguinte, que está no verso seguinte de
Heroidas. Já Lucêncio fala em voz alta pra distrair Hortênsio da conversa dele com Bianca.
7 Algumas canções eram compostas em três melodias e alguns livros de música continham as
três partes na mesma página para facilitar para os cantores; o trocadilho de Hortênsio é para dizer que
neste caso três é demais.
8 Gamut: esta palavra junta Gamma, a terceira letra do alfabeto grego (C, daí vem o uso moderno
de letras para as notas C D E F G A B), com Ut, primeira letra do primeiro verso do hino abaixo, de
onde foram tiradas as sílabas para as notas musicais, que na época compunham o hexacorde, uma
série de seis notas musicais (ut–re–mi–fa–sol–la), que foi o método descrito pelo teorista musical
Guido d’Arezzo (991-1033), na Idade Média, sendo Ut o dó (o Si foi acrescentado somente no século
18, assim como o dó substituiu o ut). As seis notas são as sílabas iniciais de cada meio verso de um
hino em latim, na tradição gregoriana, para João Baptista: Ut queant laxis, / Resonare fibris, / Mira
gestorum, / Famuli tuorum, / Solve polluti, / Labii reatum. / Sancte Ioannes. Uma tradução simples
seria: “Para que os teus servos possam, com vozes soltas, ressoar as maravilhas dos teus feitos,
limpar a culpa dos nossos lábios manchados, ó São João”. Tudo isso é apenas para sinalizar que
Hortênsio usa a escala musical para passar sua mensagem a Bianca, da mesma forma que Lucêncio
usou versos em latim.
9 Nas edições Arden Shakespeare third series e Folger, entra um criado; de qualquer forma, um
mensageiro do pai dela é necessariamente um criado da casa.
10 Stale (lure, decoy): engodo, isca, ave artificial usada para treinar um falcão; esta imagem é
usada para descrever o que um flerte de Bianca causaria em Hortênsio.
11 Esta fala soa estranha em Trânio, que não é amigo de Petrúquio e o conhece pouco. As outras
falas de Trânio nesta cena também; elas seriam mais apropriadas se ditas por Hortênsio, amado
amigo de Petrúquio. Se Shakespeare operou uma troca aqui, isso permanecerá como mistério.
12 Saint James, em inglês; também Santiago Maior, um dos apóstolos de Jesus Cristo, padroeiro
da Espanha e centro da peregrinação do Caminho de Santiago. James/Jaime e Tiago derivam do
nome latino Iacobus, que vem do hebraico Ya’akov, que se transformou em Jacó em português.
13 And yet I come not well: a tradução mantém o trocadilho original com ando (caminhar e
estar), que provoca a resposta de Batista sobre não mancar e ainda a de Trânio sobre as roupas. Outra
opção seria: “… não chego bem”, com triplo sentido: não sou bem vindo, não estou bem, não
caminho bem.
14 Monument: o sentido aqui é de portent, ou seja; augúrio, aviso, sinal; augúrio, no próximo
verso, no original é prodigy, que também não está sendo usado no sentido comum, mas no de omen,
um sinal profético, de futura alegria ou desastre (segundo as edições Arden second e third series e o
volume Shakespeare’s Words, originalmente publicado pela Penguim Books em 2002 e depois em
site por Professor D Crystal e Mrs. H Crystal).
15 Como dito em nota anterior, estudiosos sugerem que estas falas de Trânio podem ter sido
escritas originalmente para Hortênsio, amigo próximo de Petrúquio, que poderia convencê-lo a
mudar de ideia. Na edição da Oxford, um dos textos usados como fonte para esta tradução (usamos
também The Arden Shakespeare second series e third series), esta cena é terminada na próxima fala e
há uma cena 3, que começa com Lucêncio e Trânio (que não vai falar com Petrúquio, como ele diz,
mas retoma uma conversa com Lucêncio; nas edições Arden Shakespeare, não há indicação de cena
3, simplesmente Trânio e Lucêncio, que entraram no início da cena 2, permanecem no palco, e
retomam alguma conversa anterior). Embora possa parecer um pouco confuso em texto, no palco
quase não se nota esse problema, pois a peça prossegue com sua dinâmica, independente da solução
adotada.
16 A edição da Oxford traz vicar (vigário) e Folger e Arden Shakespeare second e third series,
wench (girl; moça, garota); a fala seguinte serve para qualquer opção.
17 Muscatel/muscadel: vinho doce forte feito dessa uva. Era costume também na época servir
fatias de bolo (ou bolinhos, sops) encharcados/embebidos em vinho ao final da cerimônia.
18 The oats have eaten the horses: possíveis interpretações incluem inversão deliberada para
causar sem sentido e os cavalos comeram demais e estão inchados de tanta aveia.
19 Esta fala é dirigida aos convidados (mas também faz sentido se dirigida à Catarina ou a
todos), embora ninguém esteja fazendo isso, exceto Catarina, que ele finge não notar, tanto que ele
poderia falar isso segurando-a, e complementar com as linhas seguintes sobre tê-la legalmente como
propriedade, e protegê-la dos que a cobiçam, legal ou fisicamente.
20 Kated: imitando uma doença com o nome dela, como gripado.
ATO IV

4.1 CASA DE CAMPO DE PETRÚQUIO FORA DE VERONA.


TEMPO FRIO
Entra Grúmio, que foi enviado na frente para preparar a chegada do
casal1

GRÚMIO Malditos, malditos todos os pangarés cansados, todos os


patrões malucos, todas as estradas sujas. Algum homem foi tão espancado?
Algum homem ficou tão enlameado? Algum homem ficou tão cansado? Eu
sou enviado antes para preparar o fogo, e eles estão vindo depois para se
aquecerem. Agora se eu não fosse uma panelinha fácil de esquentar, meus
próprios lábios congelariam em meus dentes, minha língua no céu de minha
boca, meu coração em minha barriga antes que eu encontrasse um fogo para
me descongelar. Mas eu com o soprar o fogo me aquecerei, pois,
considerando o clima, um homem mais alto que eu ficaria gelado. Ôuh! Ei!2
Curtis!
Entra Curtis, o chefe dos empregados da casa

CURTIS Quem é que chama tão gelidamente?3

GRÚMIO Um pedaço de gelo. Se duvidares disso, tu podes escorregar


do meu ombro ao meu calcanhar sem maior corrida do que minha cabeça e
pescoço. Um fogo, bom Curtis!

CURTIS O meu patrão está vindo com a esposa, Grúmio?


GRÚMIO Oh sim, Curtis, sim, e, portanto, fogo, fogo! Não jogues
água.

CURTIS Ela é uma megera tão esquentada quanto dizem?

GRÚMIO Ela era, bom Curtis, antes desta geada; mas tu sabes, o
inverno doma homem, mulher e fera, pois ele domou meu velho patrão, e
minha nova senhora, e eu mesmo, colega Curtis.

CURTIS Fora, seu tolo de três polegadas.4 Não sou nenhuma fera.

GRÚMIO Eu só tenho três polegadas de altura? Ora, teu chifre tem


trinta centímetros, e eu tenho o mesmo comprimento, no mínimo. Mas farás
o fogo ou eu terei que reclamar de ti para a senhora, cuja mão — ela
estando agora à mão — tu logo sentirás como tua fria recompensa por seres
lerdo em teu quente ofício?

CURTIS Eu te rogo, bom Grúmio, conta-me, como vai o mundo?


Ele atiça um fogo

GRÚMIO Um mundo frio, Curtis, em todo ofício, exceto o teu. E, daí,


fogo; faz teu dever e recebe o que é devido, pois meu patrão e minha
senhora estão quase congelando até a morte.

CURTIS O fogo está pronto, e, portanto, bom Grúmio, as notícias.

GRÚMIO Ora, “Jack, bebê, oh bebê!”,5 é toda a notícia que terás.

CURTIS Vamos, você é tão cheio de pegadinhas.

GRÚMIO Ora, por isso, fogo, pois eu peguei mesmo foi um resfriado
extremo. Onde está o cozinheiro? A ceia está pronta, a casa arrumada, o
chão coberto de juncos,6 as teias de aranha varridas, os serviçais em seus
trajes novos, as meias brancas, e todo serviçal antigo com suas roupas
formais? As jarras grandes de couro estão cheias e as jarras pequenas de
metal polidas, as toalhas de mesa estendidas, e tudo em ordem?

CURTIS Tudo pronto, e por isso, eu te imploro, notícias.

GRÚMIO Primeiro, saibas que meu cavalo está cansado, e meu patrão
e senhora caíram.

CURTIS Como?

GRÚMIO Da sela para a poeira, e assim há uma longa estória.

CURTIS Vamos ouvi-la, bom Grúmio.

GRÚMIO Empresta teu ouvido.

CURTIS Aqui.

GRÚMIO (batendo nele) Toma.

CURTIS Isso é sentir uma estória, não ouvir uma estória.

GRÚMIO E por isso que é chamada uma estória sensível,7 e esse tapa
foi só pra bater no seu ouvido e exigir audição. Agora eu começo.
Imprimis,8 estávamos descendo uma colina enlameada, meu patrão
cavalgando atrás de minha senhora.

CURTIS Ambos no mesmo cavalo?

GRÚMIO O que te parece?

CURTIS Ora, um cavalo.


GRÚMIO Conta tu a estória. Mas se não tivesses me interrompido,
terias ouvido como o cavalo dela caiu e ela sob seu cavalo; terias ouvido
como o lugar era pantanoso, como ela ficou coberta de lama, como ele a
deixou com o cavalo sobre ela, como ele me bateu porque o cavalo dela
tropeçou, como ela atravessou a lama para puxar ele de cima de mim, como
ele xingou, como ela rezou, que nunca tinha rezado antes, como eu gritei,
como os cavalos fugiram, como a rédea dela quebrou, como eu perdi o meu
rabicho, com muitas coisas dignas de memória que agora morrerão no
esquecimento, e tu retornarás ignorante ao teu túmulo.

CURTIS Por esse relato, ele é mais bronco do que ela.

GRÚMIO Sim, e isso é o que tu e os mais orgulhosos de vocês


descobrirão quando ele vier para casa. Mas por que eu falo disso? Chamem
Nataniel, José, Nicolau, Filipe, Walter, Pãodoce9 e os demais. Que seus
cabelos estejam penteados bem alisadamente, seus uniformes azuis
escovados, e suas meias combinando. Que façam a reverência dobrando a
perna esquerda à frente, e nem pensem em tocar em um fio do rabo do
cavalo do meu patrão até que tenham beijado suas próprias mãos.10 Estão
todos prontos?

CURTIS Eles estão.

GRÚMIO Tragam-nos.

CURTIS (chamando) Vocês estão ouvindo, hein? Vocês devem


cumprimentar meu patrão para dar as caras à minha senhora.

GRÚMIO Ora, ela tem cara própria.

CURTIS Quem não sabe disso?


GRÚMIO Tu, parece, já que precisas de companhia para dar as caras a
ela.

CURTIS Eu os chamo para prestar homenagem a ela.

GRÚMIO Ora, ela não vem emprestar nada deles.


Entram quatro ou cinco Criados

NATANIEL Seja bem-vindo, Grúmio!

FILIPE Como vai, Grúmio?

JOSÉ Como está, Grúmio?

NÍCOLAS Companheiro Grúmio!

NATANIEL Como vai, velho amigo?

GRÚMIO Seja bem-vindo você, como vai você, como está você,
companheiro você, e isso é tudo para cumprimentos. Agora, meus
paramentados companheiros, está tudo pronto e todas as coisa organizada?

NATANIEL As coisas tá tudo pronta.11 Nosso patrão já está


chegando?

GRÚMIO Está bem pertinho, desmontando agora, e por isso não


fiquem — Pela paixão de Cristo, silêncio! Eu ouço meu patrão.
Entram Petrúquio e Catarina

PETRÚQUIO
Onde estão os velhacos? Que, sem ninguém na porta
Pra segurar meu estribo ou pegar meu cavalo?
Onde estão Nataniel, Gregório, Filipe?
TODOS OS CRIADOS Aqui, aqui, senhor, aqui, senhor!

PETRÚQUIO
Aqui, senhor, aqui, senhor, aqui, senhor, senhor!
Seus palermas, suas criaturas toscas,
Quê! Sem auxílio! Sem estima! Sem dever!
Onde está o tolo velhaco que mandei antes?

GRÚMIO
Aqui, senhor, tão tolo quanto antes.

PETRÚQUIO
Servo inculto, filho da puta, burro de moinho,
Eu não te mandei me encontrar no parque
E trazer contigo esses patifes velhacos?

GRÚMIO
A capa de Nataniel, senhor, não estava pronta,
E os sapatos de Gabriel não estavam ornados.
Não havia piche pra tingir o chapéu de Pedro,
E a adaga de Walter estava sem bainha.
Ninguém estava elegante, exceto Adão, Ralph e Gregório.
E os demais, rotos, miseráveis, velhos.
Porém, como estão, vieram aqui lhe encontrar.

PETRÚQUIO
Vão, patifes, vão e tragam minha ceia.
Saem os Criados
(Canta) Onde está a vida que eu levava ultimamente?12
Onde estão aqueles —
Senta, Kate, bem-vinda. [Cantarolando] Comer, comer, comer,
comer.13
Entram Criados com ceia
Ora, quando, eu digo? — Não, boa doce Kate, fique alegre.
— Tirem minhas botas, seus canalhas, vilões. Quando?
(Canta) Era o frei de hábito cinzento,
Que prosseguia em seu caminho.14
Fora, canalha, você puxa meu pé torto.
(Chutando um criado) Toma isso, e conserta o serviço do outro.
Fique alegre, Kate. (Chamando) Um pouco d’água, aqui. O que há!
Entra um Criado com água
Cadê meu perdigueiro Troilus?15 Rapaz, sai daqui,
E traga-me meu primo Ferdinando — 16
Kate, você deve conhecê-lo e dar-lhe um beijo.
(Chamando) Onde estão meus chinelos? Alguém traz um pouco
d’água?
Venha, Kate, lave as mãos, e seja muito bem-vinda.
[Um criado derrama água]
Seu vilão filho da puta, vai deixar cair? [Ele bate no criado]

CATARINA
Paciência, eu rogo, foi uma falha involuntária.

PETRÚQUIO
Um bastardo imbecil, um velhaco orelhudo.
Venha, Kate, sente-se, sei que está com apetite.
Você faz a oração, doce Kate, ou eu faço?
— O que é isso — carne de carneiro?

PRIMEIRO CRIADO Sim.

PETRÚQUIO Quem
trouxe?

PEDRO Eu.
PETRÚQUIO
Está queimada, e todas as carnes também.
Que biltres fizeram isso? Onde está o traste do assador?
Como ousam, vilões, trazerem isso da cozinha
E servir assim pra mim que odeio isso?
Aí, levem de volta, pratos, copos, tudo!
[Atira a carne e os copos pelo palco]
Seus parvos desleixados e escravos sem modos.
O que, estão resmungando? Vou lhes mostrar logo.
Ele afugenta os Criados

CATARINA
Eu lhe rogo, esposo, não se perturbe tanto.
A carne estava boa, se estivesse mais disposto.

PETRÚQUIO
Digo-te, Kate, estava queimada e ressecada,
E estou expressamente proibido de tocá-la,
Pois ela gera cólera, estimula raiva,
E seria melhor que ambos jejuássemos,
Já que, por natureza, nós somos coléricos,
Do que nos nutrirmos com carne queimada.
Seja paciente, amanhã será resolvido,
E esta noite jejuaremos juntos.
Venha, eu te levarei à câmara nupcial.
Saem
Reentram Criados um por um, separadamente

NATANIEL Pedro, já viste algo assim antes?

PEDRO Ele a supera em seu próprio temperamento.


Entra Curtis
GRÚMIO Onde está ele?

CURTIS No aposento dela,


Dando-lhe um sermão sobre autocontrole,
E arenga, e xinga, e ralha, que ela, pobre alma,
Não sabe pra que lado olhar, ficar, falar,
E senta-se como alguém recém-desperto de um sonho.
Saiam, saiam, porque ele está vindo pra cá.
Saem
Reentra Petrúquio, sozinho, falando alto consigo mesmo

PETRÚQUIO
Assim eu sagazmente iniciei meu reinado,17
E é minha esperança findar com êxito.
Meu falcão está faminto agora e bem vazio,
E até que ela mergulhe, não deve nutrir-se,
Assim ela nunca vê sua isca.18
Outra forma de amansar minha águia selvagem
É fazê-la vir ao chamado do treinador —
Mantendo-a desperta, como é feito com milhafres,
Que vibram e batem asas e não são obedientes.
Ela não comeu carne hoje, e nem comerá.
Noite passada não dormiu, nem vai esta noite.
Assim como com a carne, alguma falha injusta
Encontrarei sobre a preparação da cama,
Lanço aqui o travesseiro, ali a almofada,
Por aqui a colcha, por ali os lençóis,
Sim, e no meio desta balbúrdia eu fingirei
Que tudo é feito em seu reverente cuidado,
E assim ela estará desperta toda a noite,
E se ela cochilar arengarei e brigarei
E com o clamor a manterei sempre acordada.
Desse jeito se mata uma esposa com bondade,19
E assim eu conterei seu humor insano e ranzinza.
Quem melhor sabe como uma megera domar,
Que fale agora. É caridade demonstrar.
Sai

4.2 EM FRENTE À CASA DE BATISTA


Entram Trânio, como Lucêncio, e Hortênsio, como Lício

TRÂNIO
Caro Lício, é possível que a senhora Bianca
Goste de algum outro exceto Lucêncio?
Eu lhe digo, senhor, ela me engana bem.

HORTÊNSIO
Senhor, pra lhe convencer do que eu disse,
Fique de lado, e note seu modo de ensino.
Eles ficam à parte
Entram Bianca e Lucêncio como Câmbio

LUCÊNCIO
Então, senhora, houve proveito em sua leitura?

BIANCA
Qual sua leitura, mestre? Primeiro, me conte isso.

LUCÊNCIO
Eu leio o que professo, A Arte de Amar.20

BIANCA
E que possa provar-se, senhor, mestre de sua arte.

LUCÊNCIO
E você, doce amada, dona do meu coração.
Eles ficam à parte

HORTÊNSIO
Avanços rápidos, pela virgem! Agora, diga,
Você jurou de fato que sua senhora Bianca
Não amava a ninguém no mundo mais que a Lucêncio.

TRÂNIO
Oh amor cruel, feminino inconstante!
Eu te digo, Lício, isto é inacreditável.

HORTÊNSIO
Sem mais engano, eu não sou Lício,
Nem músico como pareço ser,
Mas alguém que se nega a viver neste disfarce
Por uma tal que deixa um cavalheiro
E faz de um escroto21 tal um deus.
Saiba, senhor, que me chamam de Hortênsio.

TRÂNIO
Signor Hortênsio, tenho ouvido com frequência
De sua sincera afeição à Bianca, e já que meus
Olhos são testemunhas da inconstância dela,
Estarei com você, se não se importa,
Em desistir de Bianca e seu amor pra sempre.

HORTÊNSIO
Veja como se beijam e cortejam. Signor Lucêncio,
Eis minha mão, e aqui eu firmemente juro
Nunca mais cortejá-la, e de fato a recuso,
Como indigna de todos os prévios louvores
Com os quais eu, tolamente, a exaltei.
TRÂNIO
E aqui eu faço o mesmo franco juramento
De nunca desposá-la, mesmo que implorasse.
Vergonha, veja como ela é brutal no flerte.

HORTÊNSIO
Que todo mundo exceto ele a recusasse.22
Quanto a mim, pra que eu possa manter minha promessa,
Desposarei uma rica viúva
Em menos de três dias, que tem me amado o tempo
Que eu amei essa águia orgulhosa e altiva.
E assim adeus, Signor Lucêncio.
Bondade nas mulheres, não belos semblantes,
Ganhará meu amor; e assim peço licença,
De modo resoluto como eu jurei antes.
[Sai Hortênsio. Lucêncio e Bianca vêm pra frente de novo]

TRÂNIO
Senhora Bianca, Deus lhe abençoe com as graças
Que merece uma pessoa amada.
Não, eu peguei-lhe desatenta, caro amor,
E Hortênsio e eu renunciamos a você.

BIANCA
Está brincando, Trânio. Ambos renunciaram a mim?

TRÂNIO
Sim, senhora.

LUCÊNCIO Então nos livramos do Lício.

TRÂNIO
De fato, ele terá agora uma viçosa viúva,
Que será cortejada e esposada em um dia.

BIANCA Que Deus lhe dê alegria.

TRÂNIO Sim, e ele a domará.

BIANCA Ele diz isso, Trânio.23

TRÂNIO
De fato, ele foi pra escola de doma.

BIANCA
Escola de doma — oh, existe esse lugar?

TRÂNIO
Sim, senhora, e Petrúquio é o mestre,24
Que ensina truques como exatamente
Domar uma megera e controlar sua língua.
Entra Biondello, que se dirige a Trânio como seu patrão

BIONDELLO
Oh, patrão, patrão, eu vigiei tanto
Que estou exausto, mas vislumbrei finalmente
Um velho anjo descendo a colina
Que servirá ao propósito.

TRÂNIO Quem é ele, Biondello?

BIONDELLO
Patrão, um mercatante25 ou professor,
Não sei qual, mas formal na vestimenta,
Pelo andar e semblante certamente um pai.
LUCÊNCIO O que você quer com ele, Trânio?

TRÂNIO
Se ele for crédulo e confiar em minha estória,
Eu o deixarei feliz em fingir ser Vincêncio
E garantir a Batista Minola
De que ele seria o verdadeiro Vincêncio.
Entre com o seu amor e deixe isso comigo.
Saem Lucêncio e Bianca
Entra um Mercador26

MERCADOR
Deus lhe salve, senhor.

TRÂNIO E a você, senhor. Bem-vindo.


Vai viajar adiante, ou aqui é o mais longe?

MERCADOR
Senhor, aqui é o máximo por uma semana ou duas,
E então mais longe e até Roma,
E depois Trípoli, se Deus me emprestar vida.

TRÂNIO
De onde o senhor vem, posso perguntar?

MERCADOR De Mântua.

TRÂNIO
De Mântua, senhor? Virgem Santa, Credo!
E vem a Pádua sem cuidado por sua vida!

MERCADOR
Minha vida, senhor? Como, eu rogo? Isso é sério.
TRÂNIO
É a morte pra qualquer um em Mântua
Vir a Pádua. Você não sabe a causa?
Navios de Mântua estão retidos em Veneza, e o Duque,
Por uma briga privada entre o nosso duque e o seu duque,
Publicou e proclamou isso abertamente.
É estranho, mas é que você recém chegou,
Ou teria ouvido isso proclamado por aí.

MERCADOR
Ai de mim, senhor, é muito pior pra mim,
Pois tenho notas promissórias de Florença
Pra trocar por dinheiro aqui.

TRÂNIO
Bem, senhor, para lhe fazer um favor,
Eu farei isto, e lhe aconselharei.
Primeiro, diga-me, você já esteve em Pisa?

MERCADOR
Sim, senhor, tenho estado com frequência em Pisa,
Pisa, famosa por seus sérios cidadãos.

TRÂNIO
Entre eles, conhece algum Vincêncio?

MERCADOR
Eu não o conheço, mas ouvi falar nele,
Comerciante de riqueza incomparável.

TRÂNIO
Ele é meu pai, senhor, e é bem verdade,
Em aparência lembra um pouco você mesmo.
BIONDELLO (à parte) Tanto quanto uma maçã lembra uma ostra,
iguaizinhos.

TRÂNIO
Para salvar sua vida desse risco extremo,
Eu lhe farei um favor pelo bem dele,
Não pense que é a pior de suas fortunas
Que seja parecido com o Senhor Vincêncio.
Seu nome e posição assumirá,
E em minha casa será bem acomodado.
Só cuide de fazer seu papel bem.
Entende-me, senhor? Você assim ficará
Até o fim do seu negócio na cidade.
Se este favor lhe agrada, senhor, que o aceite.

MERCADOR
Oh, senhor, eu aceito, e sempre o estimarei
O benfeitor de minha vida e liberdade.

TRÂNIO
Então, venha comigo executar o plano.
Isto eu lhe explico no caminho:
Meu pai é esperado aqui todos os dias
Pra garantir um dote para o casamento
Entre mim e a filha de um Batista.
Em todos os detalhes eu lhe instruirei.
Venha comigo se trajar do modo certo.
Saem

4.3 UMA SALA NA CASA DE PETRÚQUIO EM VERONA


Entram Catarina e Grúmio em meio a uma conversa
GRÚMIO
Não, não, de verdade. Eu não ouso, por minha vida.

CATARINA
Quanto maior minha injustiça, maior sua maldade.
Que, ele casou comigo pra me matar de fome?
Mendigos que aparecem à porta do meu pai
Recebem esmolas logo quando pedem,
Se não, são recebidos alhures com caridade.
Mas eu, que nunca soube como pedir,
Nem nunca precisei pedir,
Estou sem alimento, tonta de não dormir,
Desperta por injúria e nutrida por briga,
E aquele que me irrita mais que todas as faltas,
Ele o faz em nome do amor perfeito,
Como a dizer, se eu fosse dormir ou comer,
Isso seria mortal doença, ou morte rápida.
Eu rogo, vá e traga-me algum repasto.
Não me importa o que, desde que seja comida.

GRÚMIO O que me diz de um pé de boi?

CATARINA
É muito bom. Eu rogo, deixe-me comê-lo.

GRÚMIO
Temo que seja uma carne por demais colérica.
O que me diz de uma gorda buchada bem grelhada?

CATARINA
Eu gosto muito. Meu bom Grúmio, traga-me.

GRÚMIO
Não sei dizer, receio que seja colérica.
O que me diz de um bife com mostarda?

CATARINA
Um prato que eu adoro degustar.

GRÚMIO
Mas a mostarda é um pouco picante demais.

CATARINA
Ora, então, o bife, e sem a mostarda.

GRÚMIO
Não, assim não trarei. Você terá a mostarda,
Ou então não ganha bife de Grúmio.

CATARINA
Então ambos, ou um, ou qualquer coisa que queiras.

GRÚMIO
Ora, então, a mostarda sem o bife.

CATARINA
Vai, te manda daqui, falso escravo embusteiro, (Batendo nele)
Que me alimenta apenas com o nome da carne.
Desgraça sobre ti e todo o grupo teu,
Que triunfam assim sobre a minha miséria.
Vai, te manda daqui, eu digo.
Entram Petrúquio e Hortênsio, com carne

PETRÚQUIO
Como vai minha Kate? O que, querida, exasperada?
HORTÊNSIO
Senhora, como vai?

CATARINA Mais fria impossível.

PETRÚQUIO
Cria coragem, mostra-me um sorriso.
Aqui, amor, vê o quão sou diligente,
Pra preparar tua carne eu mesmo e te trazer.
Por certo, doce Kate, essa bondade vale graças.
O que, nem uma palavra? Então, não gostas disso,
E todo o meu trabalho vira nada.
Aqui, leva este prato.

CATARINA Eu rogo, deixe-o aqui.

PETRÚQUIO
O pior serviço merece graças,
E assim o meu antes que toque a carne.

CATARINA Eu lhe agradeço, senhor.

HORTÊNSIO
Signor Petrúquio, que vergonha, você é o culpado.
Venha, Senhora Kate, far-lhe-ei companhia.

PETRÚQUIO (à parte)
Come tudo, Hortênsio, se tu me estimas.
(Para Catarina) — Muito bem isso faz ao teu suave coração.
Kate, come rápido; e agora, doce amor,
Iremos retornar à casa do teu pai,
E curtiremos finamente como os melhores,
Com casacos de seda e chapéus e anéis de ouro,
Com altas golas, pulseiras, crinolinas, coisas,
Com cachecóis e leques e adereços duplos,
Com braceletes de âmbar, contas e todos os folhos.
O que, já ceaste? O alfaiate está no aguardo
Para adornar teu corpo com finos babados.
Entra Alfaiate com um vestido
Venha, alfaiate, vamos ver os ornamentos.
Mostre-nos o vestido.
Entra Chapeleiro27 com um chapéu
O que nos traz, senhor?

CHAPELEIRO
Eis o chapéu que sua excelência pediu.

PETRÚQUIO
Ora, isso foi moldado numa tigela —
Um prato de veludo. Que vergonha, é ruim e barato.
Ora, é uma concha ou uma casca de noz,
Uma bugiganga, um embuste, um truque, um boné de bebê.
Fora com isso! Vamos, traga-me um maior.

CATARINA
Não quero um maior. Isto está mesmo na moda,
E madames usam chapéus como este.

PETRÚQUIO
Quando virar uma dama, você terá um também,
E não até então.

HORTÊNSIO (à parte) Isso não será logo.

CATARINA
Bem, senhor, espero ter licença pra falar,
E eu falarei. Não sou criança, nem bebê.
Homens melhores suportaram minha expressão,
E se você não pode, melhor tapar os ouvidos.
Minha língua dirá a raiva do meu coração,
Ou meu coração a ocultando quebrará,
Mas em vez disso eu serei livre
Ao máximo, como eu quiser, em palavras.

PETRÚQUIO
Ora, tu dizes a verdade. É um chapéu péssimo,
Uma crosta de torta, uma ninharia, uma torta de seda.
Eu te amo mais por não gostares dele.

CATARINA
Me ame ou não me ame, eu gosto do chapéu,
E eu o terei, ou não terei nada disso.
[Sai o Chapeleiro]

PETRÚQUIO
Teu vestido? Ora, sim. Venha, alfaiate, vamos vê-lo.
Oh Deus, perdoe, que mascarada é essa?
Que é isso — uma manga? É como o cano de um canhão.
O que, todo entalhado como uma torta de maçã?
Eis recorte, e pico, e corte, e golpe e talho,
Parece tesoura28 numa barbearia.
Pelo diabo, alfaiate, como chamas isto?

HORTÊNSIO (à parte)
Acho que nem chapéu nem vestido ela terá.

ALFAIATE
Você mandou fazer com muito esmero,
De acordo com a moda e o momento.
PETRÚQUIO
Pela Virgem, mandei, mas se você lembrar,
Eu não mandei você arruiná-lo para sempre.
Vá pulando as valetas para casa,
Pois pulará sem um centavo meu, senhor.
Não quero nada disso. Vá, faça o que quiser dele.

CATARINA
Eu nunca vi um vestido mais bem modelado,
Mais lindo, mais vistoso, nem mais admirável.
Talvez você me queira fazer de fantoche.

PETRÚQUIO
Ora, é mesmo, ele quer fazer de ti um fantoche.

ALFAIATE Ela diz que sua excelência quer torná-la um fantoche.

PETRÚQUIO
Oh monstruosa arrogância! Tu mentes, fio, dedal,
Tu, jarda, três quartos, meia jarda, um quarto, três dedos,29
Tu, pulga, lêndea, tu, grilo de inverno.
Confrontado em minha própria casa por um carretel!
Fora, tu, trapo, fragmento, sobra,
Ou eu te regrarei com tua própria régua
Pra nunca mais esqueceres de tua tagarelice.
Eu te digo, tu arruinaste o vestido dela.

ALFAIATE
Sua excelência está enganado.30 O vestido foi feito
Exatamente como meu patrão foi instruído.
Grúmio deu ordem de como devia ser feito.

GRÚMIO
Eu não lhe dei ordem. Eu dei o material.

ALFAIATE
Mas como desejava que ele fosse feito?

GRÚMIO Pela Virgem, senhor, com agulha e linha.

ALFAIATE
Mas você não pediu pra que fosse cortado?

GRÚMIO Tu tens enfeitado muitas coisas.

ALFAIATE Tenho.

GRÚMIO Não me enfrentes. Tu tens trajado muitos homens. Não me


ultrajes. Eu não serei nem enfrentado nem ultrajado. Eu digo a ti que
mandei teu patrão recortar o vestido, mas eu não mandei cortar em pedaços.
Logo, tu mentes.

ALFAIATE (mostrando um papel) Ora, aqui está a nota do pedido pra


provar.

PETRÚQUIO Leia-a.

GRÚMIO A nota mente até a garganta dele se ele disser que eu disse
isso.

ALFAIATE (lê) “Imprimis, um vestido folgado.”

GRÚMIO Patrão, se alguma vez eu disse vestido folgado, costure-me


nas barras dele e bata-me até a morte com um rolo de linha marrom. Eu
disse um vestido.
PETRÚQUIO (ao Alfaiate) Prossiga.

ALFAIATE (lê) “Com uma pequena capa rodada.”

GRÚMIO Eu confesso a capa.

ALFAIATE (lê) “Com uma manga bufante.”

GRÚMIO Eu confesso duas mangas.

ALFAIATE (lê) “As mangas requintadamente recortadas.”

PETRÚQUIO Ah, aí está a vilania.

GRÚMIO Erro na fatura, senhor, erro na fatura. Eu ordenei que as


mangas fossem recortadas e costuradas de novo, e isso eu provarei num
duelo, embora teu dedinho esteja armado com um dedal.

ALFAIATE É verdade o que eu digo. E se estivéssemos em local


apropriado, eu lutaria contigo.

GRÚMIO Estou pronto pra ti agora mesmo. Pega tua lança,31 me dá


tua régua, e não me facilites.

HORTÊNSIO (rindo) Que Deus tenha piedade, Grúmio, assim não


sobrará nada pra ele.

PETRÚQUIO
Bem, senhor, em resumo, o vestido não é pra mim.

GRÚMIO Você está certo, senhor. É pra minha senhora.

PETRÚQUIO (ao Alfaiate)


Vai, leva pra teu patrão usar como quiser.

GRÚMIO (ao Alfaiate) Vilão, nem por tua vida. Levantar32 o vestido
de minha senhora pra teu patrão usar como quiser!

PETRÚQUIO Ora, senhor, o que está insinuando com isso?

GRÚMIO Oh, senhor, a insinuação é mais profunda do que você


imagina. “Levantar o vestido de minha senhora pra teu patrão usar como
quiser” — Oh, vergonha, vergonha, vergonha!

PETRÚQUIO (à parte)
Hortênsio, diz que tu pagarás o alfaiate.
(Ao Alfaiate) Vai, leva daqui. Vai embora, e não digas mais nada.

HORTÊNSIO (à parte ao Alfaiate)


Alfaiate, amanhã te pagarei pelo vestido.
Não leves a mal suas palavras raivosas.
Vai, eu te digo. Lembranças ao teu patrão.
Sai o Alfaiate

PETRÚQUIO
Bem, venha, minha Kate. Vamos à casa de teu pai,
Mesmo nestes decentes, mas humildes, trajes.
Nossas bolsas são ricas, nossas vestes pobres,
Pois é a mente que torna o corpo rico,
E como o sol rompe as nuvens mais escuras,
Assim a honra espia pelo traje mais humilde.
Ora, o gaio é mais precioso que a cotovia,
Já que suas penas são mais belas?
Ou a cobra é melhor do que a enguia,
Já que sua pele colorida agrada ao olho?
Oh, não, boa Kate, nem tu és pior
Por teu pobre indumento e humilde vestuário.
Se consideras isso uma vergonha, culpa a mim,
E, portanto, te alegra; iremos em seguida
Festejar e nos entreter na casa de teu pai.
[A Grúmio] Vai, chama meus criados, e vamos lá direto,
E traz nossos cavalos ao fim da Alameda.33
Lá montaremos, e pra lá vamos a pé.
Vamos ver, acho que são umas sete horas agora,
E bem podemos chegar lá na hora do almoço.

CATARINA
Ouso lhe assegurar, senhor, são quase duas da tarde,
E será hora da ceia antes de chegar lá.

PETRÚQUIO
Serão sete antes que eu chegue ao cavalo.
O que quer que eu fale, ou faça, ou pense fazer,
Você está sempre contrariando. Senhores,
Deixem pra lá. Não irei hoje, e antes que eu vá,
Será na hora que eu disser que é.

HORTÊNSIO (à parte)
Ora, este fino cavalheiro vai mandar no sol.
Saem

4.4 EM FRENTE À CASA DO SENHOR BATISTA


Entram Trânio, como Lucêncio, e o Mercador, trajado como
Vincêncio, usando botas e sem chapéu

TRÂNIO
Senhor, esta é a casa. Gostaria que eu batesse?
MERCADOR
Sim, claro. E a menos que eu esteja enganado,
Signor Batista poderá se recordar de mim
Quase vinte anos atrás em Gênova —
Onde nós fomos hóspedes na Pégaso —34

TRÂNIO
Está bem, e mantenha seu papel de qualquer modo,
Com tal austeridade como cabe a um pai.
Entra Biondello

MERCADOR
Eu lhe prometo. Mas, senhor, aí vem seu
Rapaz. Seria bom se ele fosse instruído.

TRÂNIO
Não o tema. [Para Biondello] Biondello, rapaz,
Agora faça todo o seu dever, eu o aconselho.
Imagine que fosse o verdadeiro Vincêncio.

BIONDELLO Oh, não me receie.

TRÂNIO
Mas deste o teu recado ao Batista?

BIONDELLO
Eu lhe disse que seu pai estava em Veneza
E que você o esperava hoje em Pádua.

TRÂNIO (dando dinheiro a Biondello)


Tu és um cara bom. Toma isso pra uma bebida.
[Ao Mercador] Aí vem Batista. Entre no personagem, senhor.
Entram Batista e Lucêncio, como o professor Câmbio
TRÂNIO
Signor Batista, que sorte encontrá-lo.
(Ao Mercador) — Senhor, este é o cavalheiro que mencionei.
Rogo que seja um bom pai para mim agora.
E me deixe Bianca como herança.

MERCADOR
Calma, filho. (A Batista) — Senhor, licença, tendo vindo a Pádua
Cobrar algumas dívidas, meu filho Lucêncio
Deu-me conhecimento de um assunto sério
De amor entre sua filha e ele,
E pelas coisas boas que ouvi de você,
E pelo amor que ele tem por sua filha,
E ela por ele, e, pra não atrasá-lo demais,
Eu estou contente como um bom pai
De vê-lo unido, e se você aprova isso
Não menos do que eu, e se chegarmos a um acordo,
Você me verá pronto e desejoso
Em mútuo consenso de vê-la assim concedida,
Pois com você não serei implicante,
Signor Batista, de quem falam a mim tão bem.

BATISTA
Senhor, me perdoe no que eu tenho a dizer.
Sua modéstia e franqueza me agradam bastante.
É bem verdade que este seu filho Lucêncio
De fato ama minha filha, e ela o ama,
Ou ambos dissimulam totalmente seus afetos.
Portanto, se não tem nada mais a dizer,
Que como pai você cuidará dele
E dará à minha filha um dote suficiente,
O arranjo está feito, e tudo está pronto.
Seu filho permissão terá pra ter minha filha.
TRÂNIO
Agradeço, senhor. Onde sugere que façamos
O noivado, e tenhamos garantias
Que bancaremos as partes do acordo?

BATISTA
Não em minha casa, Lucêncio, pois você sabe
Que as jarras têm orelhas, e eu tenho muitos criados.
Além disso, o velho Grêmio está sempre à espreita,
E talvez possamos ser interrompidos.

TRÂNIO
No meu aposento então, se preferir.
Meu pai está ficando lá, e esta noite
Conduziremos o negócio a sós e bem.
Mande esse seu criado35 aqui buscar sua filha.
Meu servo logo buscará o tabelião.
Isso é o pior, fazendo tudo sem aviso,
Você provavelmente terá um banquete exíguo.

BATISTA
Isto me convém. Câmbio, vá depressa em casa
E peça à Bianca que se apronte logo,
E se puder, diga o que aconteceu:
O pai de Lucêncio chegou em Pádua,
E como em breve ela será a esposa de Lucêncio.
[Sai Lucêncio]

BIONDELLO
De todo coração, eu rogo aos deuses que ela possa.

TRÂNIO
Não te atrases com os deuses, te manda daqui.
[Sai Biondello]
— Signor Batista, posso mostrar o caminho?
Bem-vindo. Uma refeição é tudo que terá por hora.
Venha, senhor, melhoraremos isso em Pisa.

BATISTA Eu o sigo.
Saem

4.5 EM FRENTE À CASA DO SENHOR BATISTA36


Entram Lucêncio, como Câmbio, e Biondello

BIONDELLO Câmbio.

LUCÊNCIO O que há, Biondello?

BIONDELLO Você viu meu patrão37 piscar e rir de você?

LUCÊNCIO E daí, Biondello?

BIONDELLO De fato, nada, mas ele me deixou aqui pra trás para
explanar o sentido, ou moral, de seus sinais e símbolos.

LUCÊNCIO Eu te rogo, explica-os.

BIONDELLO Então assim: Batista está seguramente afastado, falando


com o pai falso de um suposto filho.

LUCÊNCIO E qual é a questão com ele?

BIONDELLO A filha dele é pra ser levada por você para a ceia.

LUCÊNCIO E então?
BIONDELLO O velho sacerdote da igreja de São Lucas está às suas
ordens a qualquer momento.

LUCÊNCIO E o que quer dizer com tudo isso?

BIONDELLO Eu não posso contar, exceto que eles estão ocupados


com um contrato falsificado. Você deve fazer uma reivindicação legal sobre
ela cum privilegio ad imprimendum solum38 — para a igreja leve o
sacerdote, um funcionário e algumas sérias e prósperas testemunhas.
Se isso não for o que você busca, não tenho mais nada a dizer, exceto
dizer adeus à Bianca para sempre.
[Começa a sair]

LUCÊNCIO Escuta, Biondello?

BIONDELLO Eu não posso me delongar, eu conheci uma vez uma


moça que se casou numa tarde enquanto ia para o jardim buscar salsinha
para rechear um coelho, e assim você pode fazer também, senhor, e assim
adieu, senhor. Meu patrão ordenou que eu fosse para a igreja de São Lucas
mandar o sacerdote ficar pronto para lhe atender assim que você chegasse
com seu adendo.39
Sai

LUCÊNCIO
Eu posso e vou, se ela estiver assim disposta.
Ela estará contente, então por que eu duvidaria?
Ocorra o que ocorrer, vou perguntar-lhe logo.
Será um azar se Câmbio for sem ela.
Sai

4.6 NA ESTRADA DE VERONA PARA PÁDUA


Entram Petrúquio, Catarina, Hortênsio, Grúmio e Criados a caminho
da casa do Signor Batista

PETRÚQUIO
Vamos, por Deus. De novo pra casa do sogro.
Bom Senhor, como brilha a lua clara e bela!

CATARINA
A lua? O sol! Não tem luar agora.

PETRÚQUIO
Eu digo que é a lua que brilha tanto.

CATARINA
Eu sei que é o sol que brilha tanto.

PETRÚQUIO
Agora, pelo filho de minha mãe — que sou eu —
Será a lua, ou estrela, ou o que eu quiser
Antes de viajar pra casa de seu pai.
[A Grúmio] Vá, e mande os cavalos de volta pra casa.
Sempre contestado e contestado, só contestado.

HORTÊNSIO (para Catarina)


Diga como ele diz, ou nunca iremos.

CATARINA
Adiante, eu imploro, já que aqui estamos,
E que seja lua ou sol ou o que queira,
E se lhe apraz chamá-lo de vela de sebo,
Daqui pra frente eu juro que assim será pra mim.

PETRÚQUIO
Eu digo que é a lua.

CATARINA
Eu sei que é a lua.

PETRÚQUIO
Não, então você mente, é o sol abençoado.

CATARINA
Então Deus seja abençoado, é o sol abençoado,
Mas sol não é, quando você diz que não é,
E a lua muda bem como a sua mente.40
O nome que der, isso assim será,
E assim isso será pra Catarina.

HORTÊNSIO
Petrúquio, faça como quiser. Você venceu.

PETRÚQUIO
Avante, avante. É assim que rola a bola de
Boliche, não é ao contrário da curva.
Mas calma, que alguém está vindo aqui.
Entra o velho Vincêncio, o verdadeiro pai de Lucêncio
(A Vincêncio) Bom dia, gentil senhora, aonde vai?
— Diz-me, doce Kate, e diz-me de verdade,
Já contemplaste uma madame mais formosa,
Tal contraste entre branco e rubro em suas faces?
Que estrelas adornam o céu com tal beleza
Como ornam esses dois olhos esse rosto divino?
— Bela donzela, uma vez mais, bom dia pra ti.
— Doce Kate, abraça-a por sua beleza.
HORTÊNSIO (à parte) Ele o deixará louco, tratando-o como
mulher.41

CATARINA
Jovem virgem em flor, formosa e bela e doce,
Aonde vais, ou onde é tua morada?
Felizes os pais de tão bela filha,
Mais feliz o homem a quem estrelas propícias
Concedem-te como sua linda companheira.

PETRÚQUIO
Como assim, Kate, espero que não estejas louca.
É um homem, velho, murcho, enrugado, encolhido,
E não uma donzela, como dizes que é.

CATARINA
Perdoe, velho pai,42 meus olhos enganados,
Que foram tão turvados pelo sol
Que tudo que eu olho parece verde.43
Agora noto que és um venerável pai.
Perdão, suplico, por meu erro louco.

PETRÚQUIO
Perdoe-a, bom ancião, e, por favor, nos diz
Que direção tu segues. Se na mesma nossa,
Ficaremos alegres com tua companhia.

VINCÊNCIO
Justo senhor, e você, minha alegre senhora,
Que com esse estranho jeito muito me espantaram,
Meu nome é Vincêncio, e resido em Pisa,
E estou indo pra Pádua, pra visitar lá
Um filho meu que há tempos eu não vejo.
PETRÚQUIO
Qual é o nome dele?

VINCÊNCIO Lucêncio, caro senhor.

PETRÚQUIO
Feliz em conhecer-te, e mais feliz pelo teu filho.
Por lei agora, e pela idade venerável,
Também eu posso te chamar de terno pai.
A irmã de minha esposa, esta madame,
Teu filho desposou agora.44 Não te espantes,
Nem fiques aflito. Ela é de boa estima,
Seu dote é rico, e é de nascimento digno,
Além disso, tem tais qualidades que serviria
De esposa a qualquer nobre cavalheiro.
Deixe-me abraçar com o velho Vincêncio,
E nos movamos para ver teu honesto filho,
Que ficará com tua chegada todo alegre.
Ele abraça Vincêncio

VINCÊNCIO
Mas é verdade isso, ou é o seu prazer,
Como jocosos viajantes, pregar peças
No companheiro que viaja junto?

HORTÊNSIO
Eu te asseguro, pai, que é assim mesmo.

PETRÚQUIO
Vamos, venha conosco, e veja assim a verdade,
Nossa primeira diversão deixou-te cauteloso.
Saem todos, exceto Hortênsio
HORTÊNSIO
Bem, Petrúquio, isto me deu coragem.
Agora à minha viúva, e se ela for ingovernável,
Então tu ensinaste Hortênsio a ser abominável.
Sai

1 Ajudaria a cena se o ator que fizer o papel de Grúmio for de baixa estatura, como na época de
Shakespeare, e pela reclamação do personagem.
2 Holla, hoa, ho: expressões originadas da caça, são gritos para chamar atenção, bem mais que
um “olá” como cumprimento apenas.
3 So coldly: tanto no sentido denotativo quanto conotativo: com frio, enregelado, ao mesmo
tempo que de maneira fria, insensível, gélida, antipática.
4 O jogo de trocadilhos começa com Grúmio dizendo que o inverno doma homem, mulher e fera,
e colocando-se na terceira posição, junto com o “colega” Curtis, que devolve a ofensa fazendo piada
com a altura de Grúmio, comparando-o com um prego de três polegadas (7,62 cm), que Grúmio
rebate chamando Curtis de corno, com um chifre de 30 cm (a foot: 30,48 cm), o mesmo comprimento
do seu órgão sexual, que seria o motivo do chifre.
5 Primeira linha de uma canção de ninar da época, que fala de um gato que caiu num poço, e cuja
morte foi anunciada pelo toque de sino funeral da cidade, e é só isso que Grúmio contará a Curtis.
6 Costume normal de preparar a casa para receber hóspedes.
7 Sensible: o termo, nesse contexto, comporta o sentido duplo de sensível e sensata, uma estória
pra ser sentida e que faz sentido.
8 Em primeiro lugar.
9 Sugarsop: como é um nome estranho na lista, sem menção em outro lugar na obra de
Shakespeare, fiz a tradução, pra soar estranho em português também (de fato, o termo se refere a
fatias de pão branco, adocicado, condimentado e imerso em vinho). Também é importante ressaltar
que Petrúquio tem 13 criados, um número bem grande, especialmente se comparado a Batista,
aspecto que precisa ser bem gerenciado numa produção.
10 Beijar as próprias mãos era sinal de respeito aos patrões (The Arden Shakespeare third series,
2019, p.245).
11 Tradução espelhando o original nesse trecho, com plural e singular (esta fala ecoando a
anterior).
12 Estes dois versos foram identificados como as linhas iniciais de uma velha balada sobre um
homem que perde a liberdade ao se casar. Por isso ele está cantando sobre sua recente perda de
liberdade.
13 Soud, soud, soud, soud: há edições com esses termos, outra com a palavra food repetida, e
outra apenas cantarolando mesmo: hmmm, hmm… Parece que qualquer uma pode ser usada, não
muda o contexto.
14 Início de outra balada, esta obscena, sobre um frei seduzindo uma freira. Nas linhas
anteriores, Petrúquio pergunta sarcasticamente quando eles vão servir a ceia.
15 Segundo The Arden Shakespeare third series, é irônico que o cão tenha esse nome, pois
Troilus é o nome do filho mais jovem do rei Príamo de Troia com sua esposa Hécuba; foi morto por
Aquiles; ele se apaixonou por Créssida, que também o amou, mas o deixou pelo grego Diomedes. A
estória de Troilo e Créssida é tema de uma tragédia de Shakespeare e de um poema épico de Geoffrey
Chaucer. Esse nome é usado aqui provavelmente por uma referência de fidelidade. Diz ainda essa
edição que há registro de encenações em que um cão aparece no palco, ou é ouvido latindo fora do
palco, sendo também chamado pelos criados.
16 Não há indicação na peça nem de saída de algum criado nem da chegada de Ferdinando, mas
a edição Folger adiciona uma rubrica neste ponto indicando a saída de um criado.
17 Este é o solilóquio central da peça, em que Petrúquio explica abertamente para a plateia seu
plano para dominar Catarina, utilizando a metáfora da falcoaria para domar e treinar essas aves
selvagens. O termo “sagazmente” tem politicly no original, com amplo sentido de astutamente,
perspicazmente, diplomaticamente, estrategicamente como um político.
18 Lure: objeto já citado numa cena com Bianca (stale, no final da cena 1 do ato 3), que é o
artifício usado para recuperar a ave; pode ser um pedaço de carne, ou uma imitação de pássaro ou
animal, feita de penas ou couro, com uma porção de carne dentro.
19 To kill a wife with kindness: como ele não está fazendo nenhuma bondade, ele está sendo
sarcástico, já que ele está estragando o clima com descuidos.
20 Obra do poeta e escritor romano Públio Ovídio Naso (43 a.C – 17 ou 18 d.C.). Lembrando
que na época de Shakespeare, o verbo to read significava ler, estudar e ensinar, destarte, a frase
também poderia ser: eu ensino o que pratico.
21 Cullion: patife, canalha; literalmente, testículo.
22 Para que ela tivesse somente um pretendente.
23 Esta fala também poderia ser uma pergunta.
24 Trânio está antecipando o que Hortênsio vai fazer na próxima cena, embora isso não tenha
sido mencionado na peça anteriormente.
25 Conforme original; marcantant; invenção de Biondelo para mercador/comerciante.
26 Pedant: embora o significado do termo seja de professor/tutor, a fala é de um comerciante,
conforme linhas seguintes; apesar de um professor também poder carregar notas
promissórias/cheques e fosse, na época, um estereótipo nesse tipo de situação em comédias e farsas.
O próprio Biondello fica em dúvida. A edição da Oxford traz pedant, mas The Arden Shakespeare
third series e Folger imprimem Merchant (comerciante/mercador), e assim foi mantido.
27 Haberdasher: tecnicamente, é um camiseiro, um dono de loja de armarinhos, mas que
também negocia acessórios de vestuário; neste caso, ele entra como chapeleiro.
28 O texto do Folio da Oxford mostra a palavra scissor (tesoura); o da Arden Shakespeare
second series tem censer (turíbulo, incensário); e o da Arden Shak. third series traz cithern (cistre ou
cítola, um tipo de alaúde, com a caixa de ressonância em forma de pera; não é a cítara/lira), um
instrumento com entalhamentos grotescos, comumente tocado em barbearias na época, e que
lembraria o trabalho do alfaiate. No entanto, tesoura é o que faz mais sentido, pelo excesso de cortes
e recortes.
29 Nail: medida de comprimento de tecido que equivale a um dezesseis avos de uma jarda,
exatamente 5,7 cm; também significa unha e prego. Esta série de insultos é dirigida ao tamanho, ou
altura, do alfaiate.
30 Lembrando que nestes casos o adjetivo concorda com o gênero da pessoa referida pelo
pronome de tratamento, que neste diálogo é Petrúquio (a mesma regra vale para vossa excelência).
31 Bill: trocadilho com o outro significado deste termo, nota, fatura.
32 Take it up: enquanto Petrúquio diz que é somente para levar o vestido para o patrão fazer o
que quiser com ele, Grúmio entende literalmente levantar o vestido.
33 Long-lane end: há diferentes interpretações para este local; pode ser apenas o fim/extremo de
uma pista ou alameda longa ou pode ser uma referência a um lugar chamado Long-lane, em Londres,
famoso pela venda de vestuário e acessórios, linho e estofamento, novos e de segunda mão
(HODGDON, 2019, p.271).
34 Pegasus: o cavalo alado, símbolo da imortalidade, da mitologia grega (era um nome popular
para pousadas). O texto do Folio traz esta linha na fala de Trânio, provavelmente por mau
alinhamento. Contudo, há editores que sugerem que Trânio estaria completando a invenção do
Mercador para seu papel.
35 Lucêncio, como o professor Câmbio, que foi apresentado a Batista como servidor; Trânio
pisca para ele, sinalizando a deixa.
36 Na edição da Oxford, há seis cenas no Ato IV; nas edições Folger e The Arden Shakespeare
second e third series, esta cena é uma continuidade da cena 4, sendo a cena 6 renomeada para cena 5.
Em termos de palco, não há alteração.
37 Embora sozinhos, ele ainda se refere a Trânio como patrão.
38 Frase impressa nas páginas de títulos dos livros da época, indicando o “privilégio do direito
exclusivo de impressão”. Um trocadilho sobre os direitos do noivo e da pressão para casar.
Naturalmente, o contrato entre Trânio e Batista, garantido pelo falso Vincêncio, não tem valor legal,
pela falsidade de Trânio e Vincêncio.
39 Appendix: apêndice, adendo, etc. Outro trocadilho com impressão, pela proximidade com
appendage, anexo, prolongamento, membro, adjunto, e por consequência, subordinado, dependente.
40 Ela compara a mente de Petrúquio com as fases mutantes da lua, que é uma forma sutil de
chamá-lo de lunático.
41 Alusão ao teatro da época, em que os papéis femininos eram feitos por rapazes. Neste caso,
Petrúquio está dando o papel feminino ao velho senhor na peça que está encenando na estrada.
42 Father: embora seja um termo de respeito a homens idosos em geral (o que inclui padrastos e
pais adotivos), ela não se dá conta que ele é seu pai por lei, isto é, seu sogro, pai de seu cunhado
Lucêncio.
43 Green: no sentido literal ou também no sentido figurado de jovem.
44 Petrúquio não tem como saber disso porque não aconteceu ainda, e Hortênsio ainda confirma
adiante, mesmo sabendo dos esquemas e tendo renunciado à corte de Bianca junto com Trânio-como-
Lucêncio. Na verdade, esses detalhes passam quase despercebidos no teatro (Shakespeare realmente
deixa algumas pontas soltas às vezes).
ATO V

5.1 EM FRENTE À CASA ONDE LUCÊNCIO ESTÁ ALOJADO


EM PÁDUA
Entram Biondello, Lucêncio e Bianca. Entra o velho pretendente
Grêmio antes e caminha para o lado1

BIONDELLO Com calma e rapidez, senhor, que o padre está pronto.

LUCÊNCIO Eu me apresso, Biondello; mas eles podem precisar de ti


em casa, portanto, deixa-nos.

BIONDELLO Não, de verdade, eu conduzirei vocês à igreja e então


voltarei para a casa do meu patrão logo que puder.
Saem Lucêncio, Bianca e Biondello;
Grêmio vem para a frente, sem perceber que Lucêncio e Câmbio são a
mesma pessoa

GRÊMIO
Estranho que Câmbio suma esse tempo todo.
Entram Petrúquio, Catarina, Vincêncio, Grúmio e Criados

PETRÚQUIO
Senhor, essa é a porta. Esta é a casa de Lucêncio.
A casa de meu sogro é mais próxima do mercado.
Para lá devo ir, e aqui deixo-o, senhor.

VINCÊNCIO
Você não irá sem antes tomar uma bebida.
Acho que insistirei que seja recebido aqui,
E é bem provável que haja alguns comes e bebes.
Ele bate

GRÊMIO Estão ocupados dentro. Melhor bater mais alto.


Vincêncio bate de novo. O Mercador, disfarçado de Vincêncio,
aparece na janela2

MERCADOR Quem bate como se fosse derrubar o portão?

VINCÊNCIO O Signor Lucêncio está aí dentro, senhor?

COMERCIANTE Ele está dentro, senhor, mas não pode falar.

VINCÊNCIO E se um homem lhe trouxer cem ou duzentas libras para


diverti-lo?

MERCADOR Fique com suas cem libras. Ele não precisará de nada
enquanto eu viver.

PETRÚQUIO (a Vincêncio) Não, eu lhe disse que seu filho era bem
amado em Pádua. (Ao Mercador) — Ouça-me, senhor, deixando de lado
assuntos triviais, imploro que diga ao Signor Lucêncio que o pai dele veio
de Pisa e está aqui na porta pra falar com ele.

MERCADOR Tu mentes. O pai dele veio de3 Pádua e está aqui


olhando pela janela.

VINCÊNCIO Tu és o pai dele?

MERCADOR Sim, senhor, assim diz a mãe dele, se eu puder acreditar


nela.
PETRÚQUIO (a Vincêncio) Ora, como assim, cavalheiro? Ora, isso é
absoluta velhacaria, pegar para você o nome de outro homem.

MERCADOR Peguem esse vilão. Creio que ele quer enganar alguém
nesta cidade fingindo ser eu.
Entra Biondello

BIONDELLO (à parte) Eu os vi na igreja juntos, que Deus lhes dê


bons ventos. Mas quem está aqui? Meu antigo patrão, Vincêncio! Agora
estamos arruinados e destruídos.

VINCÊNCIO (a Biondello) Venha aqui, quebra-forca.

BIONDELLO Espero ter escolha, senhor.

VINCÊNCIO Venha aqui, seu canalha. O que, você me esqueceu?

BIONDELLO Esquecê-lo? Não, senhor, eu não poderia esquecê-lo,


pois eu nunca o vi antes em toda a minha vida.

VINCÊNCIO O que, seu notório vilão, nunca viste o pai de teu patrão,
Vincêncio?

BIONDELLO O que, meu velho venerável amo? Sim, pela virgem,


senhor, veja onde ele aparece na janela.

VINCÊNCIO É isso mesmo de fato?


Ele bate em Biondello

BIONDELLO Socorro, socorro, socorro! Aqui tem um louco que vai


me matar.
Sai
MERCADOR Socorro, filho! Socorro, Signor Batista!
Ele sai da janela

PETRÚQUIO Por favor, Kate, vamos ficar de lado e ver o fim desta
controvérsia.
Eles ficam de lado
Entram Mercador com Criados, Batista e Trânio como Lucêncio

TRÂNIO (a Vincêncio) Senhor, quem é você que ousa bater no meu


criado?

VINCÊNCIO Quem sou eu, senhor? Não, quem é você, senhor? Oh,
deuses imortais, oh belo vilão, uma jaqueta de seda, meias de veludo, um
casaco escarlate e uma cartola!4 Oh, estou arruinado, estou arruinado!
Enquanto eu faço o papel de gerente poupador em casa, meu filho e meu
criado gastam todo o meu dinheiro na universidade.

TRÂNIO O que foi agora, qual é o problema?

BATISTA O que, o homem ficou lunático?

TRÂNIO Senhor, você parece ser um sóbrio cavalheiro ancião por sua
vestimenta, mas suas palavras o mostram como um louco. Ora, senhor, o
que lhe preocupa se eu uso pérola e ouro? Agradeço ao meu bom pai, posso
dispor disso.

VINCÊNCIO Teu pai! Oh, vilão, ele é um fabricante de velas náuticas


em Bérgamo.

BATISTA Você se engana, senhor, você se engana, senhor. Posso


perguntar qual nome você acha que ele tem?
VINCÊNCIO O nome dele? Como se eu não soubesse seu nome: eu o
criei desde que ele tinha três anos de idade, e seu nome é Trânio.

MERCADOR Afasta-te, afasta-te, louco estúpido. O nome dele é


Lucêncio, e ele é meu único filho, e herdeiro das terras que pertencem a
mim, Signor Vincêncio.

VINCÊNCIO Lucêncio? Oh, ele assassinou o patrão dele! Segurem-


no, eu o acuso, em nome do Duque. Oh, meu filho, meu filho! Diz-me,
vilão, onde está meu filho Lucêncio?

TRÂNIO Chamem um guarda.


Entra um Guarda
Leve este velhaco louco pra cadeia. Pai Batista, eu o encarrego de que
ele fique disponível para um tribunal.

VINCÊNCIO Levar-me para a cadeia?

GRÊMIO [achando que reconhece o Vincêncio verdadeiro] Espere,


guarda, ele não irá para a prisão.

BATISTA Não fale, Signor Grêmio. Eu digo que ele irá para a prisão.

GRÊMIO Seja cuidadoso, Signor Batista, senão você será burlado


nesse negócio. Eu ouso jurar que este é o Vincêncio correto.

MERCADOR Jura, se te atreves.

GRÊMIO Não, eu não ouso jurar.

TRÂNIO Então seria melhor dizeres que não sou Lucêncio.

GRÊMIO Sim, eu sei que és o Signor Lucêncio.


BATISTA Fora com esse caduco. Pra cadeia com o outro.

VINCÊNCIO Assim estranhos podem ser constrangidos e maltratados.


— Oh vilão monstruoso!
Entram Biondello, Lucêncio e Bianca

BIONDELLO [mostrando a Lucêncio a presença inesperada de seu


verdadeiro pai] Oh, estamos destruídos e — lá está ele. Neguem-no,
denunciem-no, ou então estamos todos arruinados.
Saem Biondello, Trânio e o Mercador o mais rápido que podem

LUCÊNCIO (a Vincêncio) Perdão, caro pai.


Lucêncio e Bianca se ajoelham

VINCÊNCIO Vive meu caro filho?

BIANCA (a Batista) Perdão, pai querido.

BATISTA Como ofendeste a alguém? Onde está Lucêncio?

LUCÊNCIO Aqui está Lucêncio, filho certo do pai certo,


Que por matrimônio tornou minha tua filha, enquanto
Supostos5 impostores turvaram teus olhos.

GRÊMIO Eis uma trama sem dúvida pra enganar a nós todos.

VINCÊNCIO
Onde está aquele maldito patife Trânio,
Que me enfrentou e ultrajou tanto nesse assunto?

BATISTA
Ora, me digam, este não é o meu Câmbio?
BIANCA
Câmbio se transformou em Lucêncio.

LUCÊNCIO
O Amor causou estes milagres. O amor de Bianca
Fez-me trocar de posição com Trânio,
Enquanto ele portava minha aparência na cidade,
E felizmente eu cheguei no final
Ao desejado abrigo do meu êxtase.
O que Trânio fez, eu mesmo o forcei a tal.
Então o perdoe, caro pai, pelo meu bem.

VINCÊNCIO Eu darei um talho6 no nariz do vilão que teria me


mandado pra cadeia.

BATISTA [a Lucêncio] Mas ouça-me, senhor, você se casou com


minha filha sem pedir minha bênção?

VINCÊNCIO Não tema, Batista. Nós o gratificaremos. Não se


preocupe, mas eu irei entrar pra me vingar desta vilania.
Sai

BATISTA E eu para ir ao fundo desta canalhice.


Sai

LUCÊNCIO Não fiques pálida, Bianca. Teu pai estará bem.


Saem Lucêncio e Bianca

GRÊMIO
Meu bolo azedou, mas entrarei com os demais,
Sem esperança de nada, só minha parte no banquete.
Sai
CATARINA (vindo à frente com Petrúquio) Marido, vamos seguir pra
ver o fim desse caso.

PETRÚQUIO Primeiro, beije-me, Kate, e iremos.

CATARINA O que, no meio da rua?

PETRÚQUIO O que, estás com vergonha de mim?

CATARINA Não, senhor, Deus me livre; é só vergonha de beijar.

PETRÚQUIO
Então, vamos pra casa de novo. [A Grúmio] Vamos, rapaz.

CATARINA
Não, eu darei-te um beijo. Agora, eu peço, amor, fica.
Eles beijam-se

PETRÚQUIO
Não é ótimo isso? Vem, minha doce Kate.
Melhor uma vez do que nunca, e nunca é tarde pro aceite.7
Saem

5.2 UM BANQUETE NA CASA DE LUCÊNCIO, APÓS O


MATRIMÔNIO
Entram Batista, Vincêncio, Grêmio, o Mercador, Lucêncio e Bianca,
Petrúquio e Catarina, Hortênsio com a noiva Viúva, Trânio, Biondello,
Grúmio e os Criados trazendo a parte final de um banquete [sobremesas,
frutas e vinho]

LUCÊNCIO
E, por fim, nossas notas discordes concordam,
E é hora, quando a guerra raivosa termina,
De rir de escapes e perigos dissipados.
Minha bela Bianca, dá boas vindas ao meu pai,
Enquanto eu com a mesma afeição dou ao teu.
Irmão Petrúquio, irmã Catarina,
E tu, Hortênsio, com tua amada viúva,
Festejem com o melhor e bem-vindos à minha casa.
Minha festa é pra fechar nossos estômagos
Após o grande e bom banquete. Por favor, sentem-se,
Pois agora sentamos pra conversar e comer.
Eles sentam-se

PETRÚQUIO
Nada além de sentar e sentar, e comer, comer.

BATISTA
Pádua provê esta bondade, filho Petrúquio.

PETRÚQUIO
Pádua não provê nada que não seja bom.

HORTÊNSIO
Pelo nosso bem, que isso seja verdadeiro.8

PETRÚQUIO
Agora, eu juro, Hortênsio teme sua viúva.

VIÚVA
Então nunca confie em mim se eu estiver com medo.

PETRÚQUIO
Você é muito sensata, mas não pegou meu sentido.
Quero dizer que Hortênsio tem medo de você.
VIÚVA
Quem está tonto acha que o mundo está girando.

PETRÚQUIO Redondamente retrucado.

CATARINA Senhora, o que você quer dizer com isso?

VIÚVA Assim eu o concebo.

PETRÚQUIO Concebe, de mim! O que acha disso, Hortênsio?

HORTÊNSIO
Minha viúva diz que ela concebe assim sua elocução.

PETRÚQUIO Bem emendado. Beije-o por isso, boa viúva.

CATARINA
“Quem está tonto acha que o mundo está girando.”
Imploro que me diga o que quer dizer com isso.

VIÚVA
Seu marido, atribulado com uma megera,
Mede a dor do meu marido por sua miséria.
E agora sabe qual o sentido do que digo.

CATARINA
Um sentido muito mesquinho.

VIÚVA Exato, porque é o seu.

CATARINA
E eu sou moderada9 mesmo, comparada a você.
PETRÚQUIO Pra cima dela, Kate!

HORTÊNSIO Pra cima dela, viúva!

PETRÚQUIO
Aposto cem marcos que Kate a domina.

HORTÊNSIO Esse é o meu ofício.

PETRÚQUIO
Falou como um oficial! Um brinde a ti, rapaz.
Ele bebe a Hortênsio

BATISTA
O que Grêmio acha dessa gente sagaz?

GRÊMIO
Creia-me, senhor, eles batem cabeça bem.

BIANCA
Batem cabeça? Uma pessoa perspicaz
Diria que seu bater cabeça é mais um bater chifre.

VINCÊNCIO
Ei, senhora noiva, isso lhe despertou?

BIANCA
Sim, mas não me assustou, assim vou dormir de novo.

PETRÚQUIO
Não, não vai. Já que você começou,
Vou lhe provocar com um gracejo arguto ou dois.
BIANCA
Eu sou seu pássaro? Pretendo trocar de arbusto,
Então me persiga enquanto puxa seu arco.
Vocês são todos bem-vindos.
Sai Bianca com Catarina e a Viúva

PETRÚQUIO
Ela me escapou aqui, Signor Trânio.
O pássaro que você mirou, mas não acertou.
Portanto, um brinde a todos que atiraram e erraram.

TRÂNIO
Oh, senhor, Lucêncio soltou-me como um galgo,
Que corre por si, mas busca pro seu amo.

PETRÚQUIO
Um bom e veloz símile, mas meio vira-lata.

TRÂNIO
Está bem, senhor, pois você caçou pra si mesmo.
Mas se diz que seu cervo10 o mantém acuado.

BATISTA
Oh, oh, Petrúquio, Trânio lhe atingiu agora.

LUCÊNCIO
Eu te agradeço por essa troça, bom Trânio.

HORTÊNSIO
Confesse, confesse, ele não o atingiu?

PETRÚQUIO
Ele machucou-me um pouco, eu confesso,
E como a burla ricocheteou em mim,
Aposto dez por um que feriu em cheio os dois.

BATISTA
Agora, seriamente, meu filho Petrúquio,
Acho que tens, de todas, a megera mais autêntica.

PETRÚQUIO
Bem, eu digo que não. E assim, pra ter certeza,11
Vamos cada um mandar buscar a esposa,
E aquele cuja esposa for mais obediente
Em vir primeiro, quando ele mandar buscar,
Ganhará a aposta que vamos propor.

HORTÊNSIO De acordo. Qual é a aposta?

LUCÊNCIO Vinte coroas.

PETRÚQUIO Vinte coroas!


Eu arriscaria isso em meu falcão ou cão,
Mas vinte vezes mais em minha esposa.

LUCÊNCIO Uma centena, então.

HORTÊNSIO De acordo.

PETRÚQUIO Combinado, está feito.

HORTÊNSIO Quem vai começar?

LUCÊNCIO Eu começo.
Vá, Biondello, mande sua senhora vir a mim.
BIONDELLO Eu vou.
Sai
BATISTA
[a Lucêncio] Filho, banco metade que Bianca vem antes.

LUCÊNCIO
Não vou dividir, bancarei tudo sozinho.
Reentra Biondello
E agora, qual a nova?

BIONDELLO Senhor, minha senhora manda


Dizer que está ocupada e ela não pode vir.

PETRÚQUIO
Quê? Está ocupada e não pode vir?
Isso é uma resposta?

GRÊMIO Sim, e uma gentil, também.


Ore a Deus, senhor, que a sua não lhe mande uma pior.

PETRÚQUIO
Eu creio numa melhor.

HORTÊNSIO Rapaz Biondello,


Vá e implore à minha esposa que venha sem demora.
Sai Biondello
PETRÚQUIO
Aham, “implore” a ela — não, então ela deve vir.

HORTÊNSIO
Eu receio, senhor, que faça o que puder,
Reentra Biondello
A sua nem se implorar. Agora, onde está minha esposa?
BIONDELLO
Ela diz que você deve ter algum truque.
Ela não virá. Ela o manda ir até ela.

PETRÚQUIO
Pior e pior! Ela não virá — Oh vil,
Intolerável, não é pra ser suportado!
Rapaz Grúmio, vá até sua senhora.
Diga que eu ordeno que ela venha até mim.
Sai Grúmio

HORTÊNSIO
Eu sei a resposta.

PETRÚQUIO Qual é?

HORTÊNSIO Ela não virá.

PETRÚQUIO A minha sorte é mais sórdida, e esse é o fim.


Entra Catarina

BATISTA
Agora, por tudo que é santo, aí vem Catarina.

CATARINA (a Petrúquio)
O que deseja, senhor, que mandou chamar-me?

PETRÚQUIO
Onde estão sua irmã e a esposa de Hortênsio?

CATARINA
Sentadas conversando ao lado da lareira.
PETRÚQUIO
Vá, traga-as aqui. Se elas se negarem a vir,
Açoite-as fortemente para seus maridos.
Vá, eu digo, e as traga aqui sem demora.
Sai Catarina
LUCÊNCIO
Eis aqui um milagre, se falam em milagres.

HORTÊNSIO
E assim é. Imagino o que isso pressagia.

PETRÚQUIO
Vixe,12 pressagia paz, e amor e vida calma;
E regra atroz e verdadeira supremacia,
E, em resumo, tudo que é doce e feliz.

BATISTA
Agora a fortuna te abraça, bom Petrúquio!
A aposta tu ganhaste, e eu somarei
Às perdas deles vinte mil coroas,
Um outro dote para uma outra filha,
Que ela está transformada numa outra pessoa.

PETRÚQUIO
Não, esta aposta eu ganharei melhor ainda,
E mostrarei outros sinais de sua obediência,
Sua recém-construída virtude e obediência.
Entram Catarina, Bianca e Viúva
Vejam como ela vem e traz suas birrentas esposas
Como cativas de sua persuasão feminina.
Catarina,13 esse seu chapéu não lhe cai bem.
Jogue fora esse lixo, pise em cima.
Catarina joga seu chapéu no chão
VIÚVA
Senhor, que eu nunca me rebaixe a ponto
De chegar numa situação tão tola.

BIANCA
Vergonha, como se chama esse dever tolo?

LUCÊNCIO
Eu gostaria que seu dever fosse tão tolo quanto.
A sensatez de seu dever, bela Bianca,
Custou-me cem coroas desde a ceia.

BIANCA
Mais tolo é você apostando em meu dever.

PETRÚQUIO
Catarina, eu te incumbo de dizer a essas teimosas
Que dever elas devem a seus senhores e maridos.

VIÚVA
Vamos, vamos, você está caçoando. Sem palestra.

PETRÚQUIO
Vamos, digo eu, e comece primeiro com ela.

VIÚVA Ela não fará isso.

PETRÚQUIO
Eu digo que sim: e comece primeiro com ela.

CATARINA
Que vergonha, desfaz essa temível fronte hostil,
E não dardejes teus olhares desdenhosos
Pra ferir teu senhor, teu rei, teu soberano.
Borrando tua beleza como o frio arruína os prados,
Destruindo tua fama como um tufão rompe brotos,
E que em nenhum sentido é adequado ou amável.
Uma mulher exaltada é como uma fonte perturbada,
Lodosa, repulsiva, opaca, sem beleza,
E enquanto está assim, ninguém ressecado ou sedento
Curvar-se-á pra sorver ou tocar uma gota dela.
Teu marido é teu senhor, tua vida, teu protetor,
Teu líder, governante, alguém que olha por ti,
E tua manutenção; ele engaja seu corpo
Em trabalho exaustivo no mar e na terra,
Vigiando de noite em tormenta, e de dia no frio,
Enquanto tu repousas quente em casa, sã e salva,
E ele não deseja outro tributo em tuas mãos
Que amor, encanto e verdadeira obediência —
Pagamento tão pequeno por dívida tão grande.
Dever como o que o súdito deve ao seu príncipe,
É o que uma mulher deve ao seu marido,
E quando ela é birrenta, queixosa, sombria, ácida,
E não obediente à sua digna vontade,
O que ela é senão uma vil rebelde belicosa,
E torpe14 traidora do seu terno senhor?
Estou constrangida que mulheres sejam tão tolas
Em fazer guerra onde deviam ajoelhar por paz,
Ou buscar por domínio, supremacia e jugo
Quando deviam servir, amar e obedecer.15
Por que são nossos corpos brandos, fracos e suaves,
Inaptos à labuta e problemas do mundo,
Senão que nossas brandas índoles e corações
Devessem combinar com nossos dotes externos?
Venham, venham, vermes birrentos e incapazes,
Minha mente era tão orgulhosa quanto as suas,
Meu coração tão grande, a razão talvez mais,
Pra rebater palavra por palavra e cenho a cenho;
Mas vejo agora que nossas lanças são só talos,
Nossa força tão fraca, nossa fraqueza sem par,
E fingindo ser muito o que menos somos de fato.16
Então suprimam seu orgulho, que ele é inútil,
E coloquem suas mãos sob o pé de seus maridos,
Em sinal de tal dever, se o apraz,
Minha mão está pronta, que possa confortá-lo.

PETRÚQUIO
Ora, essa é minha garota! Venha, e beije-me, Kate.
Eles se beijam

LUCÊNCIO
Bem, parabéns, meu velho, pois venceste.

VINCÊNCIO
É bom de ouvir quando as crianças são dispostas.

LUCÊNCIO
Mas duro de ouvir quando as mulheres são teimosas.

PETRÚQUIO Venha, Kate, vamos para o leito.


[Aos outros] Nós três estamos casados, mas vocês dois, vencidos.
[A Lucêncio] Eu que ganhei a aposta, mas você acertou o branco,17
E sendo o vencedor, que Deus lhe dê bom descanso.
Sai Petrúquio [com Catarina]

HORTÊNSIO
Agora, parabéns, domaste uma megera danada.18

LUCÊNCIO
É um espanto, a meu ver, que vá ficar tão domada.
Saem

FINIS

1 Enter Biondello, Lucentio, and Bianga. Gremio is out before. Não há explicação para que a
rubrica indicando a entrada de Grêmio apareça em segundo lugar, sendo que ele entra primeiro e
caminha para um lado, não percebendo a presença dos outros. As edições consultadas para esta
tradução sugerem ter sido uma indicação posterior à primeira versão de um texto já pronto. Há
também quem diga o contrário, primeiro foi registrada essa entrada de Grêmio e depois foi
acrescentada a outra parte, e acabaram ficando as duas.
2 Provavelmente, na galeria sobre o palco, usada na cena do prólogo.
3 Na verdade, a Pádua, já que a cena se passa em Pádua e ele veio de Mântua. Pode ser uma
confusão com os nomes das cidades italianas, mas pode ser uma piada com a confusão do
personagem, e também para esconder que ele é de Mântua.
4 Todo esse vestuário fino, caro, colorido, era privilégio da família real, nobres, oficiais civis e
cavaleiros.
5 Referência direta ao texto que inspirou a peça, a comédia Supposes, de Gascoigne, tradução da
peça italiana, como foi explicado no prefácio do tradutor.
6 Na época de Shakespeare, criminosos “ganhavam” um talho no nariz ou orelha, quando
estavam presos, para serem reconhecidos depois como condenados.
7 Petrúquio combina dois ditados, modificando-os: antes/melhor tarde do que nunca (Better late
than never), para better once than never; e nunca é tarde para se desculpar/se reconciliar (It is never
too late to mend), para: for never too late, rimando este com Kate.
8 A piada é porque a esposa dele e a de Petrúquio são de Pádua, e permite a resposta de
Petrúquio a seguir.
9 Mean: esta palavra carrega vários sentidos nesta troca entre Catarina e a Viúva, especialmente
porque são as últimas falas de Catarina antes do monólogo final, no qual expressa sua submissão; na
primeira, “a very mean meaning”, ela responde à Viúva, dizendo que a fala é indigna, baixa, vil,
ofensiva, medíocre, maldosa, mesquinha; a Viúva responde com o verbo “mean”; “exato, eu quero
dizer você”, ou seja, esse é o seu sentido; ao passo que Catarina responde dizendo que ela é, sim,
“mean”, quando comparada à Viúva. Embora seja usado de novo como adjetivo, o termo “mean”
aqui significaria moderada, bem comportada, como boa esposa agora, o que se confirmará no
monólogo. No entanto, não há uma certeza absoluta sobre essa interpretação, já que também ela
poderia estar puxando uma briga, dizendo-se também baixa e ofensiva, mas de modo sarcástico e/ou
ambíguo, para dizer, por exemplo, que ela estaria se rebaixando ao falar com tal pessoa. Mais um
enigma de Shakespeare. Foram utilizados os termos mesquinho e moderada para tentar criar essa
dubiedade na cena, já que ficou impossível usar o mesmo termo em português nas duas falas.
10 Deer, em trocadilho com dear, querida, indicando a ironia vingativa de Trânio, pois em geral
são os cães que mantêm um cervo acuado numa caçada.
11 For assurance; há também a possibilidade de ser Sir Assurance (Senhor Certeza), embora os
estudiosos modernos prefiram a primeira opção.
12 Marry: exclamação de surpresa, eufemismo para Virgin Mary (pela virgem/virgem santa);
vixe é variação de vige, originado de Virgem Maria.
13 Nesta fala e na seguinte de Petrúquio, ele modifica sua maneira de se dirigir a ela, usando o
nome dela como ela deseja, e não mais Kate.
14 Graceless: o termo abarca os sentidos de ingratidão e sem graça, mas também no aspecto
teológico de sem a graça divina, ímpia; torpe implica mácula e insulto aos bons costumes, a falta de
senso de conveniência de graceless.
15 Essas regras já estavam estabelecidas para o matrimônio, oficializadas em The Book of
Common Prayer (Livro de Oração Comum), 1552, livro de preces da Igreja Anglicana. Este discurso
de Catarina, o mais longo da peça, é carregado desses lugares comuns elisabetanos e bíblicos, como
os perigos do marido no trabalho e a segurança da esposa em casa, um catálogo de regras para as
esposas e deveres dos maridos, inclusive com rituais ultrapassados e proibidos, já na época de
Shakespeare, que deveriam ser cumpridos pelas noivas, como o de colocar a mão sob o pé do marido,
como é dito ao final. Ou seja, esta cena mostra que esses costumes já eram anacrônicos, obsoletos,
para a plateia do bardo, como bem demonstram as reações de Bianca e da Viúva.
16 That seeming to be most which we indeed least are: esta construção é estranha assim no
original também, com o sujeito (we/nós) da oração principal omitido. Além do mais, este verso tem
doze sílabas, ultrapassando as dez do pentâmetro iâmbico. Ainda por cima, ele traz essa afirmação da
personagem sobre as mulheres serem ao máximo o que menos são; há ao menos duas hipóteses: a
primeira, de que Catarina está dizendo que ela não é o que ela afirma ser, dentro do contexto de
mulher casada e submissa ao esposo; e a segunda, que na época o papel feminino era feito por
rapazes, e aí haveria um sentido direto para o ator. O texto fica em aberto para interpretações. No
entanto, ele está ligado ao final da peça, à indicação cênica da saída de Petrúquio, cujo texto original
do Folio trazia apenas Exit Petruchio (Sai Petrúquio), que foi corrigido em 1709 para Exeunt
Petruchio and Katherina (Saem Petrúquio e Catarina) (HODGDON, 2019, pp.306-8). É preciso
considerar que erros em indicações cênicas eram comuns, e que não seria do estilo de Shakespeare
deixar algo tão importante em aberto, e que poderia também ter sido uma falha ou descuido do
responsável que preparou a impressão do Folio, do compositor, no sentido de tipógrafo. De qualquer
forma, essa indicação original de que Petrúquio sai sozinho abre espaço para muitas interpretações, e
provocações, inclusive com a possibilidade de encenar a peça por inteiro (o que tem sido muitas
vezes evitado ao longo dos séculos, tanto no teatro quanto mais recentemente no cinema, em que
diretores querem escapar da pecha do machismo), com o discurso final de Catarina, mas com esse
final inesperado, em que o marido, símbolo do machismo, é deixado sozinho pela esposa em plena
lua de mel (Catarina esperaria e sairia junto com todos que ficaram no palco). Além disso tudo,
existem ainda as passagens adicionais, que trazem a solução para a peça pregada pelo Lorde em Sly,
com a cena final do mendigo bêbado sendo levado de volta à taberna e acordando do sonho de
nobreza, o que também colocaria em perspectiva a peça dentro da peça, mostrando ao público que
tudo aquilo foi uma encenação e que aquela visão de mundo sobre o papel das mulheres está
ultrapassada e é só uma lembrança do passado, como já era inclusive na época de Shakespeare em
relação a alguns costumes, como o da esposa colocar a mão sob o pé do marido, como está
comentado na nota anterior. Assim, haveria um fechamento para ambas as encenações, sem
necessidade de cortes no texto do bardo, até porque a própria fala final de Lucêncio deixa o tema em
aberto.
17 Hit the white: acertar o círculo branco ao redor do ponto preto no centro, que foi atingido por
Petrúquio; Lucêncio acerta o segundo melhor ponto, com um trocadilho com o nome Bianca; a
própria palavra “alvo” também poderia ser usada com o mesmo sentido (mas não rimaria com
descanso).
18 Now, go thy ways, thou hast tamed a curst shrow: embora Petrúquio já tenha saído, esta fala é
dirigida a ele; por outro lado, dada a grafia modificada de shrew para shrow (para rimar com so),
poderia se referir à Catarina também, por essa indefinição de gênero, como foi explicado no prefácio,
pois o termo variou no tempo em sua designação de homem e mulher. Mais um enigma em aberto.
PASSAGENS ADICIONAIS

A Doma de Uma Megera, impressa em 1594, que deve ter se originado


da peça de Shakespeare conforme foi encenada, contém episódios que
continuam e acentuam o entorno de Christopher Sly; essas passagens
podem ecoar trechos escritos por Shakespeare, mas não impressos no Folio.
Esses trechos estão apresentados abaixo (como citado na introdução, o
personagem da Taberna aqui é o Taberneiro, ao contrário do Prólogo, onde
há uma Hospedeira/Taberneira).

A. O seguinte trecho acontece num momento em que não há um


equivalente exato na peça de Shakespeare. Poderia vir no final de 2.1. O
“tolo” citado na primeira linha é Sander, o papel equivalente ao de Grúmio,
e “Sim” é uma abreviação de Simon, nome pelo qual o Lorde se apresentou
a Sly.

Então Sly fala

SLY Sim, quando o tolo virá de novo?

LORDE Ele virá de novo, meu senhor, em breve.

SLY Dá mais bebida aqui. Pelas chagas de Cristo, onde está o


taberneiro? Aqui, Sim, coma algumas dessas coisas.

LORDE Assim eu faço, meu senhor.

SLY Aqui, Sim, eu bebo a ti.


LORDE Meu senhor, aí vêm os atores de novo.

SLY Oh bravo, eis aí duas finas madames.

B. Esta passagem vem entre 4.5 e 4.6. Se ela se originou com


Shakespeare, isso implica que Grúmio acompanha Petrúquio até o início de
4.6.

SLY Sim, eles devem estar casados agora?

LORD Sim, meu senhor.


Entram Ferando e Kate e Sander

SLY Olha, Sim, o tolo veio de novo agora.

C. Sly interrompe a ação da peça dentro da peça. Isto está na cena 5.1,
linha 102 da peça (ele se nomeia Don Christo Vary para se dar o poder de
evitar a prisão dos personagens):
Phylotus e Valéria correm.
Então Sly fala

SLY Eu digo que não mandaremos ninguém pra prisão.

LORDE Meu senhor, isso é só a peça. Eles estão fazendo um gracejo.

SLY Eu te digo, Sim, não mandaremos ninguém pra prisão, isso é


simples. Ora, Sim, eu não sou Don Christo Vary? Portanto, eu digo que eles
não irão para a prisão.

LORDE Não mais eles irão, meu senhor. Eles vão fugir.

SLY Eles estão fugidos, Sim? Está bem. Então, me traga mais bebida,
e deixe-os continuarem a encenação.
LORDE Aqui, meu senhor.
Sly bebe e então cai no sono

D. Sly é carregado pra fora entre as cenas 5.1 e 5.2.


Saem todos
Sly dorme

LORDE
Quem está lá dentro? Venham, senhores, meu senhor está
Dormindo de novo. Vão, levem-no fácil pra cima
E ponham-no em sua própria vestimenta de novo,
E o deixem no local onde o encontramos,
Justamente ao lado da taberna abaixo.
Mas cuidem pra não acordá-lo de forma alguma.

MENINO
Será feito, senhor. Ajudem a levá-lo daqui.
Sai

E. A conclusão.
Então entram dois carregando Sly em sua própria vestimenta de
novo e o deixam onde o tinham encontrado e saem.
Então entra o Taberneiro

TABERNEIRO
Agora que a noite escura está atravessada
E a aurora aparece no céu cristal,
Agora devo sair. Mas devagar, quem é esse?
Que, Sly? Oh, estranho, ele ficou aqui a noite inteira?
Eu o despertarei. Eu acho que ele está com fome,
Mas sua barriga estava tão cheia de cerveja.
Opa, olá, Sly, acorda, que vergonha!
SLY Sim, me dê um pouco mais de vinho. O que, todos os atores já se
foram? Eu não sou um lorde?

TABERNEIRO
Um lorde com morrinha! Vamos, ainda estás bêbado?

SLY
Quem é esse? Taberneiro? Oh senhor, rapaz, eu tive
O sonho mais ousado esta noite que tu
Já ouviste em toda a tua vida.

TABERNEIRO
Sim, pela virgem, mas é melhor você ir pra casa,
Sua esposa vai lhe xingar por sonhar aqui esta noite.

SLY
Ela vai? Agora eu sei como domar uma megera.
Eu sonhei com isso toda essa noite até agora,
E tu me acordaste do melhor sonho
Que eu já tive na vida. Mas eu irei pra minha
Esposa agora e a domarei também,
Se ela me enfurecer.

TABERNEIRO
Não, espere, Sly, pois eu irei pra casa contigo
E ouvirei o resto do que sonhaste esta noite.
Saem todos
SOBRE O TRADUTOR

Gentil Saraiva Jr. é professor de inglês e português, tradutor, poeta,


escritor, editor e revisor. Tem graduação (Licenciatura Plena em Letras) e
mestrado e doutorado (tradução poética) pelo Programa de Pós-Graduação
do Instituto de Letras da UFRGS. Seu foco em tradução por 30 anos foi
Folhas de Relva, a obra poética de Walt Whitman, o maior poeta norte-
americano. Em 2017, finalizou a tradução da poesia completa de Folhas de
Relva, em sua edição autorizada pelo autor, a Deathbed Edition, de 1891-
1892. A obra traduzida está publicada em 10 volumes na plataforma para
autores independentes da Amazon, em formatos impresso e digital. Em
seguida, para homenagear o bicentenário de nascimento do autor, em 2019,
o texto foi publicado em volume único, em formato somente impresso, na
mesma plataforma. Outras publicações de sua autoria disponíveis nos sites
da Amazon: Gramática Bilíngue Inglês-Português, Gramática do
Português Atual, Versificação em Português, Música de Câmara, de James
Joyce, e o Rubaiyat, de Omar Khayyam (estes dois últimos em edição
bilíngue). Para mais informações, visite a página:
https://www.amazon.com/author/gentilsaraivajr
© Copyright desta tradução: Editora Martin Claret Ltda., 2020.

DIREÇÃO
Martin Claret

PRODUÇÃO EDITORIAL
Carolina Marani Lima / Mayara Zucheli

DIREÇÃO DE ARTE
José Duarte T. de Castro

CAPA
Weberson Santiago

DIAGRAMAÇÃO
Giovana Quadrotti

PREPARAÇÃO
Igor Capelatto

REVISÃO
Carolina Lima

Este livro segue o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Shakespeare, William, 1564-1616


A megera domada [livro eletrônico] / William Shakespeare; tradução Gentil
Saraiva Jr. — 1. ed. — São Paulo: Editora Martin Claret, 2021.

Título original: The taming of the shrew


ISBN 978-65-5910-116-0
1. Teatro inglês I. Título.

21-82489 CDD-822.33
Índices para catálogo sistemático:
1. Teatro: Literatura inglesa 822.33
Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

EDITORA MARTIN CLARET LTDA.


Rua Alegrete, 62 – Bairro Sumaré – CEP: 01254-010 – São Paulo, SP Tel.: (11) 3672-8144
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