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Banalidade, autoironia e o Schlemiel:

o jocossério como modo poético

Adriano Scandolara

– Surely, you can’t be serious.


– I am serious... And don’t call me Shirley.1
dr. rumack, em Apertem os cintos, o piloto sumiu

Em 2005, o grupo de música eletrônica experimental Coil, dupla formada


pelos ingleses Peter Christopherson e Jhon Balance (Geoffrey Rushton),
lançou o que era, para todos os efeitos, seu último álbum, intitulado The
Ape of Naples. Balance, que, além de tocar alguns instrumentos e escrever
as letras, fazia os vocais da maioria das músicas, havia sofrido um acidente
bizarro e morrido em novembro do ano anterior, e o álbum era uma forma
de tributo ao músico, constituído de material reunido ao longo de uma
década e retrabalhado por Christopherson, de modo a compor um álbum
mais ou menos coeso, centrado no tema da mortalidade. “Going up”, sua
última canção, parece, a princípio, um tipo de elegia, que se desdobra ao
longo de seus oito minutos de duração num ritmo lento e melancólico (que
um resenhista descreve muito bem como “uma valsa fúnebre”), seu título e
refrões sendo uma alusão clara à morte de Balance. Nela também constam
suas últimas palavras, gravadas a partir de uma apresentação ao vivo: “Are
you ready to go now?” e “It just is”,2 que em retrospecto não deixam de soar
quase proféticas. O detalhe, porém, que transfigura essa música para além
de qualquer outra homenagem é o fato de que é um cover, completamente
irreconhecível, dada a mudança de andamento, de uma outra canção: a
música-tema de uma sitcom produzida pela BBC entre 1972-1985 chamada

1 “Bem, você não deve estar falando sério”, “Claro que estou falando sério... E não me chame de
bem” (no original, o trocadilho é entre “surely” e o nome “Shirley”).
2 “Você está pronto para ir agora?” e “Simplesmente é”.

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Are You Being Served?. O seriado era sobre uma loja de departamentos e é isso que estou chamando de jocossério, e porque ele é relevante, acredito,
seus funcionários, e era disso que tratavam as letras da música-tema, inalte- neste momento da poética do século 21, seria interessante começarmos
radas na versão do Coil: “Ground floor perfumery, / Stationery and leather dando uma olhada em algo da história da poesia cômica – pois é fato que
goods, / Wigs and haberdashery / Kitchenware and food / Going up”.3 Do a maior parte de nossas piadas são já meio velhas. As comédias românticas
ponto de vista de uma poética contemporânea, é isso que eu acho parti- que até hoje vemos no cinema ano após ano ainda demonstram muitos
cularmente genial nessa composição: a canção é retirada de seu contexto dos lugares-comuns da chamada Comédia Nova latina. Que, por sua
normal e ressignificada, não pelo mero prazer gratuito, de ready-made tar- vez, consistia geralmente de traduções e adaptações e recombinações da
dio, da ressignificação, mas para produzir algo que é impactante, inclusive Comédia Nova grega, que, por sua vez, sucedeu a Comédia Média, da
num nível emocional mais direto. De fato, ao ouvir “Going up”, cantada qual nada sobreviveu, e a Comédia Antiga, da qual o maior expoente foi
pelo tenor de coro de igreja de François Testory, não tem como suspeitar Aristófanes, para não falar nada também das dionisíacas peças de sátiros.
da origem cômica da canção, pelo menos até que se comece a prestar aten- Antes dele, fora do teatro, na lírica, o grande autor de poesia invectiva, que,
ção nas letras. E, no entanto, não é piada. Em certo sentido, é engraçado, segundo boatos, teria levado ao suicídio uma vítima dos seus versos, foi
óbvio, afinal é uma lista de itens de loja de departamento, mas não se está Arquíloco. Fora desta tradição, mas redescobertas só recentemente, temos
debochando do morto. Tampouco é o tipo de graça indesejada que nasce ainda obras anônimas do Oriente Médio como o chamado “Diálogo do
da ingenuidade e da falta de habilidade de ter-se escolhido um material pessimismo”, um poema mesopotâmio de 86 versos que representam uma
inadequado para dar conta de um tema dito “elevado”. Todos esses casos são conversa, bastante cínica, entre um mestre e seu escravo (HUROWITZ, 2007,
comuns e fáceis de enquadrar nas devidas categorias, mas o que se tem em p. 33), obra ao mesmo tempo cômica e filosófica, composta em acádio e
“Going up” é alguma outra coisa, entre o sério e o cômico ao mesmo tempo, registrada em tabuletas em cuneiforme; ou ainda “O festim divino de El”
sem ser, no entanto, nenhum dos dois. Há graça ainda, mas, em seu novo (LEWIS, 1997, p. 193), um poema em ugarítico (anterior ao século 12 a.C.,
contexto, a lista de produtos oferecidos a cada andar pela música-tema também em cuneiforme), infelizmente fragmentário, que descreve o pai
desacelerada de Are You Being Served? assume um ar de alegoria para toda dos deuses do panteão cananeu dando um churrasco, ficando bêbado e
a vida material – e o tom de transcendência, por sua vez, é evidenciado desmaiando em seus próprios excrementos, enquanto as deusas buscam
pelas repetições do refrão, “Going up”, que anuncia essa ascensão. uma cura para sua ressaca. Impossível, portanto, não ter a impressão de
Meu ponto de partida aqui é o Coil e não qualquer poeta em estrito que tudo que reconhecemos como elementos cômicos – a escatologia, a
senso, porque acredito que essas coisas ligadas à emoção são mais fáceis lubricidade e a embriaguez, o exagero e a caricatura, a ironia e os jogos
de se perceber via música, considerando como no Ocidente há elementos de palavras – já havia sido bem explorado pela Antiguidade.5 No século
musicais que são tradicional e imediatamente associados a certos registros 20, como elencam Paduano & D’Angeli (2007, p. 273-81), uma variedade de
de humor. No entanto, esse tipo de mescla entre sério e cômico que não pensadores se voltou ao tema do cômico, o que faz com que seja preciso,
é apenas o cômico confundido com o sério, nem o sério ironizado pelo antes de prosseguir, que eu defina o que exatamente estou querendo dizer
cômico, nem ainda o tragicômico plautino ou sério-cômico tradicionais por “cômico”. Não parece produtivo no momento fazer maiores distinções
exige, pela falta de algum nome melhor, a criação de um conceito talvez como entre riso e Witz, de Freud, ou entre comédia e ironia/sátira, em Frye,
novo, que seria interessante batizar de jocossério.4 Para entendermos o que ou riso e cômico, em Bergson, ou entre o cômico, o satirista e o humorista,
em Pirandello, apesar de haver ecos perceptíveis entre o seu humorismo e o
3 “Térreo, artigos de perfumaria, / Escritório e itens de couro, / Perucas e armarinhos / Itens de
cozinha e alimentos / Subindo.”
4 Meus agradecimentos ao Galindo por ter me sugerido a palavra com a qual batizar o conceito. 5 Não por acaso, Bakhtin aborda uma série de gêneros sério-cômicos da Antiguidade como
Ela deriva de um momento do episódio 17 de Ulysses, de Joyce, o que, dado o contexto aqui, antecessores do romance (e, ao abordá-los, resgata-os também como objetos de estudo):
como espero que fique claro nas próximas páginas, é muito adequado, uma vez que o próprio os diálogos, tanto de Platão quanto de Luciano, a sátira romana e a sátira menipeia etc.
romance também é jocossério. (BAKHTIN, 1998, p. 412)

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jocossério. Por isso, trato por “cômico”, de modo genérico, tudo que pareça rígidas do que as dos próprios clássicos. Shakespeare é um bom exemplo
visar produzir riso (a partir, claro, do que é literariamente reconhecível para ilustrar isso, visto que o nosso apreço por ele, aparentemente atempo-
como declaração de intenção cômica, excluindo-se daí o cômico acidental) ral, é fruto da sua leitura por parte dos românticos que romperam com o
ou que trabalha com matéria-prima para o riso (os ditos temas “baixos”). neoclassicismo: suas peças não se encaixavam nas prescrições de unidade
O assunto é complexo, e não temos espaço o bastante para desenvolvê-lo de tempo, espaço e registro, e por isso os franceses não souberam o que
cá em suas ramificações e usos (o riso pelo riso, a sátira intelectual, a sátira fazer com o Bardo. Pensemos em Romeu e Julieta, que é o exemplo mais
moralizante, o cômico contra a morte etc.), o que, em todo caso, daria um filisteu, por assim dizer, por ser o grande lugar-comum quando se fala em
trabalho bastante extenso. Em vez disso, meu objetivo é simplesmente Shakespeare: a peça é uma tragédia (gênero elevado, portanto), e sua noção
tratar, de forma resumida, da questão de gêneros literários e a separação de amor trágico, de star-crossed lovers, é o que é enfatizado sempre pela
entre os sérios e cômicos em suas subdivisões ao longo do tempo. leitura mais típica, clichê, da obra. No entanto, é uma tragédia salpicada de
É impossível falar de gêneros poéticos sem pensar nas divisões da poe- piadas evidentemente sexuais que diluem um pouco de sua severidade e
sia clássica, sobretudo latina, que, uma vez redescoberta, serviu de molde que por muito tempo profissionais da literatura tenderam a disfarçar, como
para os poetas renascentistas pensarem a forma e estabelecerem as regras faz o The Family’s Shakspeare (1818), de Bowdler. Nisso, podemos contras-
do jogo literário da cultura europeia dali em diante. Por esse viés, fica a tá-la com o Édipo Rei de Sófocles, por exemplo, que contém momentos em
impressão de que haveria, nos clássicos, uma concepção nítida de gêne- que a ironia trágica sugere alguma graça à plateia6 (ainda que de um humor
ros poéticos e seus limites, cada um tendo seu alcance próprio de temas, sinistro), mas são mais pontuais e sutis do que as constantes alusões shakes-
registros e formas (inclusive metros) que lhes são adequados. A sátira difere pearianas a masturbação e sexo oral e anal.
da ode ou da epístola (poema em imitação de carta), como são os nomes Como se sabe, o conceito do que entendemos como literatura é tam-
de três dos livros mais famosos da obra de Horácio, que também é dis- bém invenção romântica (COMPAGNON, 2004, p. 17-22), e com a dissolução
tinta de um poema épico ou uma elegia erótica ou uma égloga, e assim por do modelo dos três grandes gêneros poéticos – lírico, épico, dramático –,
diante. Observa-se uma divisão parecida na obra mesmo de um autor como a variedade (neo)latina de subgêneros passa a ser esparsamente praticada
Camões, por exemplo, já no século 16, que escreveu sob as formas fixas da ou abolida ou desfigurada, mas algo do pudor antigo (ou nem tanto) de
épica, da ode, da égloga, da elegia e do soneto, bem como Alexander Pope, mescla entre o sério e o cômico persiste durante boa parte do século 19.
no século 18, com suas “Pastorais”, seus “Ensaios Morais” e os longos poemas Assim como Horácio escreve um poema plácido sobre a importância de
satíricos The Dunciad e The Rape of the Lock. À primeira vista, parece que se aceitar o que o destino oferecer e colher o dia sem se preocupar com o
quase nada mudou de lá para cá, o que é justo o que os neoclássicos gosta- amanhã (Odes, I, 11), ele também fala grotescamente sobre ser desejado por
riam que pensássemos. A impressão da existência desses gêneros estanques, uma velha disforme, fedorenta e lasciva, que, como diz, se quiser excitá-lo,
porém, é obra e graça desse trabalho de recepção, e a poesia latina é, na precisará “trabalhar com a boca” (Epodos, 12). Apesar das ressalvas sobre
verdade, um pouco mais complicada do que isso e, desde o período helenís- as separações entre os gêneros, seria demais ainda para ele o extremo de
tico, vinha já promovendo a mistura entre os gêneros – um exemplo disso misturar as duas coisas num mesmo livro ou mesmo poema. Ao longo do
sendo as Metamorfoses, de Ovídio, que não se encaixam bem em qualquer século 19 podemos igualmente observar alguns poetas praticando um tipo
gênero preestabelecido. É claro que os gêneros existem (eles precisam exis- de poesia muito próxima em teor dos epodos de Horácio ou epigramas de
tir individualmente antes de serem misturados, afinal) e podem ser pen- Marcial, em paralelo, higienicamente separados, ao que é reconhecido como
sados em termos arquetípicos, mas parece ter acontecido na lírica e épica sua bibliografia mais séria: a comédia aristofânica Swellfoot the Tyrant, de
como aconteceu no teatro, com o desenvolvimento, na Idade Moderna, Shelley, o Childe Harold e o Don Juan, de Byron (este reconhecido como
de regras de composição e julgamento literário com base em Aristóteles 6 E.g. a chegada do mensageiro nos vv. 924-6, que faz um trocadilho com o nome de Édipo, crente
e em autores clássicos – regras estas, porém, que eram efetivamente mais de que a notícia que traz ao rei é boa e não o princípio da catástrofe (SEALE, 1982, p. 237-8).

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seu magnum opus), o Album Zutique, de Verlaine e Rimbaud, parte da lírica com sérios problemas urinários, junto da mãe, que tem “um joelho ruim”
de Heine (contraste os antológicos “Lorelei” e “Du bist wie eine Blume” e está para passar por uma cirurgia e o escuta conversar com o próprio
com “Philister in Sonntagsröcklein”, “Das neue Israelitische Hospital zu pênis. Quando ela pergunta, “com quem você está falando aí?”, a resposta
Hamburg” ou “Unstern”), “O elixir do pajé” e “Origem do mênstruo”, de vem na forma de uma clássica piada de vaudeville, como identifica David
Bernardo Guimarães etc. Observando essas oscilações, vem à mente a dis- Caplan (2007), em que os dois assumem os papéis de personagens-tipo da
tinção de Edmund Wilson – que o crítico apenas sugere, ao falar da herança “esposa pentelha” e do marido cínico de um casamento sem sexo: “ninguém
de Laforgue e Corbière em Eliot, mas que a crítica posterior viria a extra- que você conheça, querida”. A diferença de tom entre a primeira parte do
polar – entre as linhas sério-estética e coloquial-irônica do simbolismo poema e a aparição dos pais do eu-lírico é marcada já pelo registro vocabu-
(WILSON, 1996, p. 108-9), sob as quais, em todo caso, parece igualmente lar, de modo que saímos do reino dos “anciões imortais” (deathless elders)
correr uma distinção básica entre baixo e elevado, sério e cômico. Essa pro- (v. 5) e do “éter infindo” (endless ether) (v. 8) para o de palavras como “pri-
liferação do coloquial-irônico e da poesia baixa em geral Bakhtin atribui vada”, “pênis”, “mijar”. A piada de vaudeville que se segue eleva essa ruptura
à supremacia da forma do romance no final do século 18 e que leva a uma ao seu clímax, mas não é o fim do poema, que, como quero demonstrar,
“romancização” generalizada dos gêneros poéticos (BAKHTIN, 1998, p. 399) não é puramente um poema-piada. Na sequência, os dois riem, e o eu-lí-
– e ele também cita os exemplos de Heine e Byron. Ainda que possamos rico se dirige novamente ao deus: “watch them as they laugh so briefly,
categorizá-los dentro do conceito de sério-cômico bakhtiniano, como o // godlike, better than gods, if only for a moment / in which what goes
autor o faz com obras poéticas como as sátiras latinas, consideradas tam- wrong is converted to a rightness”10 (vv. 27-9). O riso adquire, assim, um
bém precursoras do romance, essas separações de tom e estilo são marcan- tom metafísico e eleva os dois idosos muito acima do estatuto dos deuses,
tes demais para que as possamos ver no mesmo patamar de mistura sério- incapazes de entender a experiência humana, que engloba, inclusive, sua
cômica do romance moderno. fragilidade, o patético e o escatológico, como a cena de alguém tentando e
Já saltando para a contemporaneidade, é difícil, no entanto, man- não conseguindo urinar (ele consegue no final, mas erra a mira). O próprio
ter qualquer noção de separação entre gêneros, mesmo de gêneros híbri- Apolo canta, como indicam os versos 10 e 11, sobre as mazelas humanas,
dos, quando nos deparamos, por exemplo, com os versos de “Old Joke”, “devastação e perda, velhice e morte”; mas, contra a abstração do conceito
poema de abertura de The Dead Alive and Busy (2000), de Alan R. Shapiro: de velhice entendido pelo deus, Shapiro nos mostra uma imagem visceral
“Radiant child of Leto, farworking Lord Apollo...”,7 ele começa, numa invo- da velhice (e, por consequência, da experiência humana), muito mais pro-
cação ao deus grego do sol, da música, da medicina, da verdade e da pro- saica e que contrasta com a estética elevada da abertura do poema. Por fim,
fecia, cujo estilo é visivelmente um pastiche da poesia grega em tradução ele conclui, respondendo à pergunta que faz no verso 15: “You don’t know
inglesa (“farworking”, por exemplo, traduz o epíteto homérico hekáergon, anything about us”11 (v. 33). Para o efeito meramente cômico do contraste
“que atira longe”), organizado em estrofes de três versos de doze sílabas entre a retórica elevada e a fala prosaica, o poema poderia acabar muito
cada. Depois de cinco estrofes nesse registro, o eu-lírico pergunta ao deus, antes, no verso 19, por exemplo, com um fim abrupto – “but the penis (like
“what do you know about us?”,8 e aí temos uma quebra violenta de estilo: the heavenly host to mortal prayers) / is deaf and dumb;...”12 –, mas ele vai
“Here is my father, half blind, and palsied, at the toilet, / he’s shouting at mais longe e utiliza essa cena para tratar de um assunto que é sério, exis-
his penis, Piss, you! Piss! Piss!9” (vv. 16-17). A cena é autobiográfica (como tencial, doloroso, uma dor que é amplificada pela proximidade do material
muito da obra do poeta) e descreve os pais de Shapiro: o pai quase cego, biográfico. É a esse tipo de construção – em que o cômico e o ridículo não

10 “Observa enquanto eles riem tão brevemente // como os deuses, melhores que os deuses, pelo
7 “Filho radiante de Leto, senhor Apolo, o flecheiro...”. menos por um momento / em que o que sai errado se converte em certo”.
8 “O que sabes de nós?”. 11 “Você não sabe nada de nós”.
9 “Eis meu pai, quase cego e paralítico, na privada, / ele grita com seu pênis, Mija, vai! Mija! Mija!”. 12 “mas o pênis (como a hoste celestial às preces mortais) / é surdo e mudo”.

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têm por finalidade nem o riso em si, nem o descrédito de algum tipo de alvo antepassados pensavam. Ou alguma mistura disso tudo. Na poesia de fato, o
(a lição moral/intelectual da sátira (neo)clássica), mas o tratamento direto primeiro exemplo influente do jocossério me parece ser “The Love Song of
dos chamados “Grandes Temas” da poesia, sem que eles deixem de ter a J. Alfred Prufrock”, de T. S. Eliot, escrito em 1911 e publicado originalmente
importância que têm – que eu chamo de jocossério.13 em 1915. Nele, o desespero da voz que monologa, sua frustração com a inca-
Cito o poema de Shapiro porque ele ilustra bem esse fenômeno, que pacidade de encontrar sentido na vida moderna, que se mescla com preo-
identifico como uma experiência que em essência é contemporânea. Isso cupações sobre o envelhecimento e frustração sexual, é ao mesmo tempo
não quer dizer que todo poeta hoje seja jocossério ou precise sê-lo para mascarado e potencializado pelo ridículo de imagens de um quotidiano fas-
ser um bom poeta, nem que não haja exemplos jocossérios mais antigos tidiosamente civilizado, como é o do estereótipo mais comum do mundo
(até porque mesmo esses exemplos mais antigos tendem a ser reconheci- inglês, de versos como “I have measured out my life with coffee spoons” e “I
dos e valorizados como tal hoje justo por conta de nossa maior abertura ao have seen my head (grown slightly bald) brought in upon a platter”.16 Eliot,
cômico e tendência ao jocossério, e a recepção da poesia clássica é exemplar porém, não parece ter feito do jocossério uma grande bandeira de sua poé-
disso).14 Mas, independentemente de outros detalhes, assim como reconhe- tica, presente ainda em parte de The Waste Land,17 mas ausente da poesia
cemos a princípio um poema em verso livre como sendo mais moderno posterior, já quase toda séria. No Brasil, poderíamos falar de algo parecido
do que um soneto petrarquiano (mesmo que o conteúdo dos dois seja o na obra de nossos modernistas, como Mário de Andrade (notavelmente em
mesmo), a contemporaneidade de um poema jocossério nos atinge com Macunaíma), Manuel Bandeira e Drummond, bem como, talvez, – ante-
maior urgência, de modo que um poema nesse teor que tenha sido escrito rior a eles, mas recuperado pela crítica apenas muito depois – no Guesa,
no passado, esquecido e venha a ser redescoberto dá a impressão de ter de Joaquim de Sousândrade. Outro grande exemplo é o Poema Sujo (1976),
sido composto hoje. O porquê de vivermos num tempo em que esse tipo de de Ferreira Gullar, composto em exílio durante a ditadura, que já nos seus
poética faz sentido é algo que, por ora, só podemos especular. Talvez seja versos de abertura nos submete a uma quebra violenta de expectativa com
o caso da perda da auréola de Baudelaire levada ao limite, o autodistancia- “azul / era o gato / azul / era o galo / azul / o cavalo / azul / teu cu”. De fato,
mento provocado pelas rupturas derivadas do advento da psicanálise e a a tradição moderna brasileira parece muito rica em autores jocossérios, e é
física quântica, a evolução esperada do senso estético no estágio atual de uma pena que o assunto pareça ainda ser pouco explorado.
hiperconsumo do capitalismo tardio, frente às ruínas da alta cultura euro- Para encerrar, há três poetas brasileiros contemporâneos que selecio-
peia pós-Segunda Guerra,15 ou o desenvolvimento da cosmovisão, derivada nei para comentar ainda, de forma resumida, por terem já uma carreira
do advento do jornalismo e potencializada pela era da informação, que bastante sólida e vozes muito distintas, mas que podem ser lidos como
enxerga o mundo como um lugar muito mais ridículo do que os nossos consistentemente jocossérios. São eles: Paulo Henriques Britto, Ricardo
13 O jocossério se distingue também do sério-cômico bakhtiniano (BAKHTIN, 1998, p. 413-5), ou, Domeneck e Angélica Freitas. O que une duas figuras tão aparentemente
pelo menos, se distingue como uma possível categoria dentro do sério-cômico, porque no poema díspares quanto Britto e Domeneck é o humor derivado de um tipo de
que eu chamo de jocossério algo de uma beleza poética próxima do tradicional, do “sério-esté-
tico”, ainda surge em meio ao riso, e os versos 27-9 de “Old Joke” são exemplares disso.
ironia que é a autodepreciativa, particularmente popular em nossa época
14 Marcial, por exemplo, foi notavelmente censurado até o século 20, e, de toda a obra de (pense nos filmes de Woody Allen, por exemplo, que se baseiam numa ten-
Horácio, o seu livro de Epodos é ainda o mais desconhecido. dência maior do humor judaico). Segundo Freud, como resumem D’Angeli
15 É importante falar do pós-guerra, principalmente porque é nesse momento em que surgiu o
Teatro do Absurdo de Beckett, Ionesco, Jean Genet, Tom Stoppard etc., o que é provável que seja
o primeiro momento de explosão de uma produção marcadamente jocosséria, da qual Esperando 16 “Medi minha vida com colherinhas de café” e “Vi minha cabeça (ligeiramente calva) trazida
Godot (1953) é o exemplo mais óbvio. De modo semelhante, a produção romanesca dita pós- numa bandeja de prata”.
moderna é rica em autores jocossérios, dentre os quais vale a pena destacar Thomas Pynchon, 17 Segundo Wilson, há uma forte influência do coloquial-irônico de Laforgue e Corbière no Eliot
em especial, dada sua tendência de misturar situações tocantes com o absurdamente ridículo, que de começo de carreira, mas nenhum indício dela em The Waste Land (WILSON, 1998, p. 123). Há,
um crítico como Tony Tanner resume pela expressão “serious unseriousness” – uma “falta séria porém, ainda alguma comicidade mais ampla em trechos do poema, nas citações de canções
de seriedade” – e que deve muito disso a alguns escritores anteriores como Kafka e Joyce. populares, por exemplo, e no trecho do encontro sexual da datilógrafa na 3ª parte (vv. 215-56).

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& Paduano, o riso é agressivo, um ato de superioridade, “uma refutação de uma figura como o schlemiel19 George Costanza na sitcom Seinfeld –
da identificação com o outro” (2007, p. 273). Por outro lado, pode-se con- ainda que o livro de Britto o anteceda em quase uma década – e que ecoa a
tra-argumentar, na autodepreciação o que surge é, em vez disso, um riso de máxima beckettiana “Fail again. Fail better”.20
identificação, ou a refutação da identificação não com o outro, mas consigo Um humor muito parecido é o que encontramos também em
próprio, numa interiorização da máxima horaciana, “Quid rides? Mutato Domeneck. Ninguém o descreveria inserindo-o na gaveta delimitada do
nomine, de te fabula narratur”.18 Entre outras coisas, o autoironista se pro- poeta cômico propriamente, mas esse espírito do schlemiel e do schlimazel
tege de agressões maiores já atacando a si mesmo preventivamente, o que está muito presente em sua representação de relacionamentos amorosos.
leva o leitor a abaixar a guarda, de modo que ele também possa se ver na Vejamos Cigarros na cama (2011), por exemplo, para nos concentrarmos,
figura ridícula que o outro faz de si. No caso de Britto, é recorrente a pre- pelo bem da brevidade, em um único livro, que descreve uma situação de
ocupação do poeta com o que ele vê como a desvalorização da poesia, que abandono do eu-lírico pelo amante. “Não sei, querida vaca / companheira
não deixa de remeter ao velho albatroz de Baudelaire, transformado, no de pasto / e capim pisoteado / por machos...”, começa o poema 5, que trata da
entanto, na imagem ainda mais canhestra de um cágado virado de pernas perplexidade do eu-lírico e sua falta de palavras para descrever sua tristeza,
para o ar em “Biodiversidade”, poema de abertura de Macau (2003). “Há antes de concluir com a confissão, dolorosamente sincera no desnudamento
maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo, / que não requerem prática, de sua intimidade, de que ele não poderá mais se masturbar com a imagina-
oficina, suor”, dizem seus primeiros versos. A atividade poética não é mais ção, mas somente com a memória. O poema 24, em que ele se encontra na
meramente desvalorizada, mas ridícula – e tanto mais fica quanto mais o cafeteria “próxima / ao ponto de ônibus / onde você dispensou meus servi-
poeta negar sua perda da auréola e insistir nas pompas do passado (e as ços”, melancólico, lendo Sylvia Plath (e sentido-se “já ridículo suficiente” por
academias de poesia são sempre um bom exemplo disso) e/ou se inflamar isso), é ainda mais exemplar em seu uso de ironia, culminando nos versos:
contra os filisteus. Diante disso, a autoironia acaba sendo um modo bas- “um clown!, sim, um clown / parou diante de minha mesa / para fazer grace-
tante eficaz de se resolver essa tensão do porquê de se continuar escrevendo jos. Minha vida agora / é um filme ruim”. A imagem é cômica não pelo clown
poesia. E esse é o humor (em dois dos sentidos do termo) que tinge o livro em si, mas pelo choque entre a melancolia e o que – vai lá – poderíamos cha-
inteiro: sim, escrever poesia é ridículo e somos ridículos por fazê-lo, mas o mar de a “indiferença do universo”, muito diferente do que se pode observar
que não é? “Véspera”, por exemplo, começa com “No trivial do sanduíche a na poesia sentimental mais clássica, com seu gosto pela falácia patética. Que
morte aguarda” e termina com “A morte ainda demora. O dia tarda”, inter- o eu-lírico se dê conta disso e comente, inclusive apontando para o clichê
polando imagens como o abacaxi imperando na fruteira, a lua batendo o que é a cena em si, é o que abre as portas para que o riso seja compartilhado,
ponto como um funcionário entediado, a geladeira que treme – elementos de modo que há uma identificação com ele. Eis aí uma experiência do amor
que, em sua banalidade dentro da temática discutida da morte, poderíamos e da desilusão amorosa mais imediatamente identificável no século 21 do que
comparar aos da canção “Going up”, com a qual comecei esta discussão. a de Dante ou Petrarca, por exemplo, ou mesmo Baudelaire.
Num dos chamados “Dez sonetoides mancos”, ele descreve o sofrimento Por fim, em Angélica Freitas vemos o jocossério aplicado ao político e
como “este nefando pinguim de louça / sobre o que deveria ser, na quiti- / social em seu Um útero é do tamanho de um punho (2012),21 o que poderia
nete do eu, uma austera geladeira”. Em outro, “Se tudo correr bem, tam- levar à ideia de que se trata de uma sátira, mas sou da opinião de que isso
bém a tua derrota / vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo”. Noutro
19 O termo descreve um personagem-tipo do humor ídiche, um tipo de perdedor desajustado
momento ainda, anterior, no poema “Balancete”, do primeiro livro Liturgia e desajeitado, com frequência na companhia do schlimazel, vítima crônica de má sorte. Uma
da Matéria (1982), ele afirma “Falhei até no fracasso” – o tipo de frase, ao piada visual clássica de vaudeville envolve o schlemiel derrubando sopa em cima do schlimazel.
mesmo tempo cômica e melancólica, que não seria de se estranhar vinda 20 “Fracasse outra vez. Fracasse melhor”. A frase é da novela de Beckett, Worstward Ho (1983).
21 Prefiro falar do Um útero... e não de Rilke shake, seu livro anterior e talvez considerado mais
engraçado, porque neste não temos o lado mais sério do jocossério. O livro, ao que parece, é
18 “Do que ris? Mudando o nome, é de você que a narrativa fala”. inteiramente jocoso, mais ancorado, podemos dizer, no coloquial-irônico e no nonsense.

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diminui os méritos da obra, ao enquadrá-la nessa categoria fechada e tal- referências bibliográficas
vez obsoleta dentro de um mundo que me parece pós-satírico, onde piada
BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance.
e realidade são cada vez mais indistintos um do outro. O tema é sério: a
In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora F.
opressão da mulher, os discursos alheios sobre a mulher, as exigências da Bernardini et al. São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 397-428.
sociedade, a redução da mulher ao útero, à função reprodutiva. Há alguma BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
autoironia também (em “a mulher é uma construção”, ela brinca, “parti-
______. Mínima lírica. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
cularmente sou uma mulher / de tijolos à vista”), mas o objetivo parece
CAPLAN, David. Ethical Suffering: On the Work of Alan Shapiro. VQR: A National
ser mais mimético, imitando – através de repetições, silogismos, tautolo-
Journal of Literature & Discussion. v. 83, inverno 2007. Disponível em: <http://www.
gias e até mesmo sugestões de busca do Google, automatizadas com base vqronline.org/essay/ethical-suffering-work-alan-shapiro>. Acesso em: 11 mai. 2015.
nas buscas mais frequentes – os discursos de lugar-comum sobre a mulher,
COMPAGNON, Antoine. Literature, Theory and Common Sense. Tradução de Carol
construindo, poema a poema, de forma minimalista, uma estrutura maior, Cosman. New Jersey: Princeton University Press, 2004.
pautada no cômico, mas sem se reduzir nem ao humor por si, nem ao dis-
D’ANGELI, Conceita; PADUANO, Guido. O Cômico. Tradução de Caetano Waldrigues
curso ideológico mais óbvio da poesia engajada. Tudo isso prepara o ter- Galindo. Curitiba: UFPR, 2007.
reno para o poema que leva o título do livro, que poderia ser visto como DOMENECK, Ricardo. Cigarros na cama. Rio de Janeiro: Berinjela, 2011
um tipo de resposta ao Waste Land de Eliot, tão preocupado com questões
ELIOT, T. S. The Waste Land and Other Poems. Nova York: Penguin, 2003.
de fertilidade, e que mistura reflexões sobre o mote “um útero é do tama-
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify,
nho de um punho” (retirado de um livro médico), com fatos científicos,
2012.
alusões a mulheres famosas, quadras de estilo popular (à moda, me parece,
HUNTER, R. L. A Comédia Nova da Grécia e de Roma. Tradução organizada por
das cançõezinhas sujas da Ofélia “louca” em Hamlet) e a “língua do i”, uma
Rodrigo Tadeu Gonçalves. Curitiba: UFPR, 2010.
brincadeira da infância da poeta que consiste em trocar as vogais das frases
HUROWITZ, Victor Avigdor. An Allusion to the Šamaš Hymn in The Dialogue of
por “i”. O poema culmina com a frase enigmática que aparece nas epígrafes Pessimism. In: CLIFFORD, Richard J. (Ed.). Wisdom Literature in Mesopotamia and
do livro: “i piri qui”, cujo tom algo desesperado mal se disfarça no aspecto Israel. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2007.
ridículo da brincadeira infantil. Sim, “o útero fica / entre o reto / e a bexiga” LEWIS, Theodore J. (tradução). El’s Divine Feast. In: PARKER, Simon B. (Ed.).
e “uma pessoa já coube num útero”. E para quê? Ugaritic Narrative Poetry. Atlanta: Society of Biblical Literature, 1997.
Estes são só alguns exemplos dentro do que parece ser um corpus cada SEALE, David. Vision and Stagecraft in Sophocles. Chicago: University Of Chicago
vez maior de poetas contemporâneos que vêm explorando o modo jocossé- Press, 1982.
rio e que são dignos de atenção, o que é bom frisar sempre, dada a relutância SHAPIRO, Alan. Old Joke. In: The Dead Alive and Busy. Chicago: University Of
geral em se levar o cômico a sério. Para encerrar, gostaria de lembrar que, Chicago Press, 2000. p. 3-4.
entre a piada e o poema, há mais semelhanças do que admitimos: ambos WILSON, Edmund. Axel’s Castle: a study of the imaginative literature of 1870-1930.
dependem da materialidade da língua, das palavras certas na ordem certa, Nova York: The Modern Library, 1996.
e são a cruz dos tradutores. Ambos, quando bem executados (o que é raro),
nos permitem ter uma visão nova e inesperada dos nossos arredores, aos
quais a tendência natural é nos anestesiarmos. E ambos tendem a perder a
graça quando analisados muito longa e detidamente.

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