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Na carrera do Divino

Walnice Nogueira Galvão


antonio candido e o mundo caipira

A
música caipira torna-se suporte de se ouve mais Kurt Weill, o parceiro de Brecht, ou
um espetáculo teatral. Coisa rara, música nordestina, ou música erudita, ou ainda
e muito bem-vinda. música urbana como o samba e outras.
Os espetáculos que se abrem à Não é fácil defender a presença da música
nossa frequentação nem sempre dedicam à caipira num palco. Mesmo Mário de Andrade,
exploração de suas possibilidades musicais o apaixonado por tudo quanto fosse criação de
mesmo capricho que dedicam à parte visual. Haja arte popular – e que andou por este país afora
vista o tão premiado Macunaíma, cujo requinte anotando letras e transcrevendo o que ouvia em
literário, plástico e até mesmo antropológico, árduas notações de partitura, por mais pobre e
deixou-se empobrecer, entre outras coisas, pelo fragmentado que fosse o objeto –, manifestou
nível sonoro bastante fraco. suas dificuldades.
No entanto, a lição recente de Brecht ensi- Nos volumes e mais volumes que deixou
nou ao teatro de texto um novo aproveitamento como resultado dessa tarefa pertinaz, às vezes
do potencial da canção; neste caso, sempre é não consegue esconder seu aborrecimento e
mais fácil segui-lo, porque, trate-se de uma decepção, quando se trata de música caipira.
encenação ao pé da letra ou de uma adaptação, O bumba-meu-boi nordestino, por exemplo, o
basta contar com um bom tradutor. Mas casos entusiasmava, pela riqueza da encenação, pela
célebres de espetáculos dramáticos brasileiros graça e humor, pelos achados dos libretos (ou
de alta qualidade, combinando texto e música seja, da poesia), pela melodia e harmonia.
compostos originalmente, existem, como foi
Morte e vida severina, ou alguns trabalhos
do Arena e do Oficina.
O interesse de Na carrera do Divino reside Texto publicado originalmente em Gatos de outro saco.
Ensaios críticos (São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 162-6).
em sua natureza experimental. O primeiro ponto
a ser ressaltado é que se trata de um espetáculo
no qual texto e música estão inextricavelmente
ligados, tendo sido criados a partir de um estudo
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita
da população caipira; é, assim, uma obra. O
da FFLCH-USP e autora de, entre outros,
segundo ponto é o aproveitamento da música Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa
caipira, dificilmente aparecendo em teatro, onde (Companhia das Letras).

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Já com a música caipira, sua atitude é bem Acaba animadíssimo, ao ter finalmente afi-
outra. No terceiro tomo das Danças dramáticas nado sua percepção com aquilo que o espetáculo
do Brasil, que é o nome geral que dá a todos tem a oferecer, dizendo que “como coreografia,
os espetáculos populares em que há mistura de não estes dançarinos, mas este bailado de Santa
canto, dança e recitativo, examina minuciosa- Isabel, é mais desenvolvido e mais rico que as
mente um moçambique em honra do Divino que danças dramáticas nordestinas”.
assistiu em Santa Isabel, no estado de São Paulo. A lição de Mário de Andrade foi bem apro-
Inicialmente, já é repelido pela maneira de veitada pelo Pessoal do Victor, que talvez dele
cantar, tão típica do caipira, em que o ouvinte não tenha tido conhecimento; pelo menos, o
praticamente não distingue ou entende uma só nome do escritor não vem citado na biblio-
palavra. A louvação, que se intercala entre os grafia impressa no programa. Mas essa lição
números de dança, diz ele, produz um som não é a de verificar que a coreografia é mais
que não é propriamente cantado, é fanhoso, rica. Interessa, isto sim, a outra lição, mais
antes gemido e queixado. Conclusão que tira: profunda e mais fundamental, que é a atitude,
“A indiferença, a falta de controle intelectual modesta e aberta, do investigador ante seu
ou de sentimento, com que esses louvores são objeto de investigação.
entoados, é total”. Nossos ouvidos, adestrados pelos mais sofis-
Como era um homem muito inteligente e de ticados tipos de sons, podem estranhar aquilo
extraordinária sensibilidade estética e humana, que nos aparece como pobre, fraco ou mera-
vai proceder a uma análise para buscar as raízes mente ruim. Mas, e especialmente no presente
dessa forma de expressão. Sugere que elas devem caso, quando esse som expressa justamente uma
estar ao mesmo tempo nas ladainhas religiosas e cultura parca, constituída de mínimos, como é
no cativeiro, quando escravos cansados emitiam o caso da cultura caipira, o som apresenta uma
qualquer som nos responsos ao fim do dia de adequação perfeita ao objeto do espetáculo.
que eram obrigados a participar. O espetáculo é dedicado a Antonio Candido
Assim, esforça-se por encontrar a especifici- e se baseia em algumas partes de seu livro Os
dade e mérito próprios de uma dança dramática parceiros do Rio Bonito, cujo subtítulo é “Estudo
caipira, depois de constatar que o moçambique sobre o caipira paulista e a transformação de seus
é “musicalmente e poeticamente paupérrimo”. E meios de vida”. E é dele que extraio o conceito
os encontra, a partir do respeito que lhe mere- dos mínimos, em que se baseia sua análise.
cia qualquer manifestação de cultura popular, Essa população, nossos patrícios, vive à beira
por insignificante que pudesse parecer. Acompa- da morte, confiada em mínimos vitais, ou seja,
nhemos o percurso de Mário de Andrade para uma subsistência insignificante, e mínimos
chegar a esse resultado: a tônica do observador sociais, ou seja, relações interpessoais e produção
estava deslocada, o forte do espetáculo não era cultural quase inexistentes. Abaixo desses dois
nem o canto nem a letra, mas sim a dança. Ao mínimos espreitam a desagregação e a fome.
descobrir isso, Mário de Andrade passa a dedicar A beleza e a variedade da música caipira exi-
páginas e mais páginas ao esforço de registrar gem uma certa adaptação por parte do ouvinte,
no papel e transmitir ao leitor a riqueza que talvez o estabelecimento de uma espécie de sim-
acabara de perceber. A partitura, além de letra patia por outros modos de vida onde o pouco
é música, passa a conter notações coreográficas, se opõe à nossa demasia. Mas não é mesmo?
acompanhadas de sua explicação por extenso. A nossa demasia nos oprime pelo excesso de
Também faz gráficos e desenha um bonequinho coisas materiais, de perfeições tecnológicas, de
para expressar a postura do corpo adotada pelo oferta abundante, de utensílios inúteis.
dançarino, com o tronco um pouco caído para O Pessoal do Victor parece ter dado esse
a frente e os joelhos parcialmente flexionados, passo, e seu trabalho resulta na combinação
alternando-se os pés para diante. harmoniosa de música com os temas da vida

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antonio candido e o mundo caipira

caipira, como a espoliação da terra, a fome, a Mas o ouvinte fica desejando mais infor-
exploração, as frustrações e os anseios. mações sobre toda a música de Na carrera do
O espetáculo tem altos e baixos, que não vão Divino. Além das quatro registradas, ainda há
ser comentados aqui, mas o interesse da música catiras, cururus e outras mais. Algumas são
é constante. Anuncia-se felizmente a preservação folclóricas, outras devem ter sido compostas
dessa música, num disco a sair, com o mesmo pelo grupo, como “Na carrera do Boi Assado”,
título pela RCA. Esperamos que o disco traga que encerra a peça. Esta deveria ser um ponto
mais informações a respeito das fontes e apro- alto, pois é no mito do boi que vem se oferecer
veitamento da música no espetáculo, porque o para ser comido que se expressa a cultura do
programa é insuficiente. Ali só são registradas mínimo vital (e, segundo Antonio Candido, a
quatro referências (títulos “Chitãozinho e xororó”, “fome psíquica”) e adquirem seu sentido tanto a
“Tristeza do Jeca”, tão conhecida, “Cuitelinho” cultura caipira quanto o espetáculo. Infelizmente,
e “Moreninha, se eu te pedisse”), todas de um perde em ênfase, de um lado, porque não dá para
dos discos de Marcus Pereira. entender direito a dicção, e, de outro, porque as
O último título, aliás, mostra as possibilidades ricas intervenções visuais de outros momentos
de um perfeito entrosamento da música com o de evocação na peça tornam a canção, apenas
teatro. As cenas rápidas em que o Homem-da- cantada, pouco impressiva. Por que não fazer o
-Cidade procura corromper a família, acenando Boi Assado ser também visto pelo público, além
com promessas de objetos de consumo e outras de cantado, como em outras passagens da peça?
benesses urbanas, são intercaladas pela modinha Essa é uma das insatisfações que restam,
na dúvida do subjuntivo, dando um efeito exce- um exemplo de exploração insuficiente de todos
lente, ao mesmo tempo triste e irônico. os recursos cênicos, ao contrário tão bem rea-
É assim que se fazem as propostas novas, lizados no exemplo da “Moreninha, se eu te
acertando e errando. A experiência está aí, pode pedisse”. Mas são reclamações a favor de Na
vir a abrir um caminho de renovação para o carrera do Divino, de quem teve uma boa mos-
teatro e para a música no teatro. tra e ainda quer mais.

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