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Sambas, orixás e arranha-céus: a música de

Geraldo Filme

Amailton Magno Azevedo1

Resumo: Sambista, compositor e versador. Eis o que faz de Geraldo Filme, o músico que
rejeitou o rótulo de que na cidade de São Paulo não havia samba com exceção de Adoniram
Barbosa. Com Geraldo devem-se rearranjar as narrativas historiográficas que trataram da
História musical no Sudeste. De que há no Rio de Janeiro já sabemos; o que precisamos é
observar que o mapa do samba é dilatado, fluido e multidirecional. Esse artigo destaca o
universo do músico Geraldo Filme e suas relações em torno da família, escolas de samba,
carnavais e bairros, configurando cartografias e memórias de uma modalidade de samba
com traços da Diáspora africana em São Paulo.
Palavras-chave: Geraldo Filme: sambas, memória e africanidades.

Abstract: Musician of Samba, composer and verses maker. Is this what makes Geraldo
Filme the musician that refused the label which said that in São Paulo city there wasn’t
samba with the exception of Adoniran Barbosa. With Geraldo Filme it must be rearranged
historical narratives that deal with the History of the music in Brazilian southeast. We
already know what there is in Rio de Janeiro. What we need is to observe that samba
map is larger, fluid and multidirectional. This article detachs the universe of the musician
Geraldo Filme and its relationships around family, samba schools, carnivals and neigh-
borhoods, setting cartographys and memories of a samba mode with caracters of african
diaspora in Sao Paulo.
Keywords : Geraldo Filme: sambas, memory and africanness

1
Pós-Doutorado pela Universidade do Texas em Austin-EUA. Professor da Faculdade de Ciências Sociais da
PUC-SP.

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A velha queria...’vai ser médico’. da música instituíram surpresas com os
Mas que doutor? Doutor em samba pulos de gatos, pegadas de galinhas, voos
até que ainda vai2.
de pássaros, passos de tartarugas, ras-
tros de cobras como assim encontrei nas
Não é nada novo declarar que para nós
a música, o gesto, a dança são formas vivências negras mestiças paulistanas.
de comunicação, com a mesma impor- Nas dimensões horizontais da
tância que o dom do discurso3. cultura, aos pés dos arranha-céus, os
sambas, carnavais, visungos e orixás se
Geraldo Filme viveu entre os anos tornaram expressões culturais que nos
de 1927 e 1995, portanto experimentou seus primórdios foram resistência, mas
as transformações urbanas pelas quais a também se transformaram, ao longo do
cidade de São Paulo passou. Foi testemu- tempo, em experiências contínuas e re-
nha das fremências, do frenético ritmo gulares quando se trata de arte e música
do urbano e suas sonoridades; dos seria- popular. A cultura negra mestiça tornou-
lismos e massificação da cultura à moda -se hegemônica no Brasil, pois o negro se
europeia e americana que penetraram misturou de forma plástica nesse campo
as subjetividades e alardearam novos das artes, música, festa, no mundo afe-
padrões de sociabilidade e civilidade. A tivo-sexual, bem como na culinária, ves-
metrópole paulistana se fez como espetá- tuário, poesia e religião. Quanto se tra-
culo da tecnociência que tentou seduzir ta apenas de música, “a presença negro
calmamente seus habitantes como a nor- africana aflora a cada passo, deixando-se
ma ser seguida . Mas Geraldo foi tam-
4
flagrar do plano temático à seleção voca-
bém testemunha das experiências de- bular, do destino da mensagem ao jogo
molidoras do normativo ou pelo menos das rimas, do artesanato paronomásico à
daquelas que criaram ponto de fuga a ele. simplificação sintática, enfim, da estru-
Isso não significa associar sua memória turação semântica ao estrato sônico”5.
ao exótico ou ao primitivismo como an-
títese à Modernidade. Mas pensar em Ao pai Oxalá/ Agò-gegê e iorubá/
como atuou em zonas não formatadas Eparrei!/ Oiá oiá vem nos ajudar/
Kaô Kaô Kaô ioruba6.
pela serialização da cultura e da subjeti-
vidade, onde os exus brincalhões e orixás
Na memória do samba em São Pau-
lo, “Seu Geraldo” ou “Geraldão da Barra
2
GERALDO FILME – Crioulo cantando samba era Funda”, como assim o chamavam, está
coisa feia. Direção: Carlos Cortez. Brasil, 52 min.,
cor, 35 mm, 1998.
3
Apud: GILROY, Paul. O Atlântico Negro, Rio
de Janeiro: Editora 34, Universidade Cândido 5
RISÉRIO, Antônio. A utopia brasileira e os mo-
Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, vimentos negros. São Paulo: Editora 34, 2007.
p.162. p.292.
4
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópo- 6
FILME, Geraldo. Que gente é essa. In: Música
le: os frementes anos 20. São Paulo: Companhia brasileira deste século por seus autores e
das Letras, 1992. intérpretes. São Paulo: SESC, 2000. p. 83.

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registrado como o músico corresponsá- das desse modo, como ressignificação da
vel pela instituição do samba paulista. Diáspora e seus desdobramentos. É mais
É admirado, como assim pude perceber uma metáfora que homenageia, do que
no ensaio do bloco de samba Quilombo algo que busque uma memória contínua
do Educandário, quando perguntei a um e regular. Termos como contribuição, in-
passista quem era Geraldo Filme. Em seu fluência e continuidade africana além de
rosto abriu-se um sorriso e uma mistura desgastados não respondem mais nada.
de respeito e alegria que respondiam a São verdades mortas. O que me interessa
minha pergunta. Ali percebi a importân- são as conexões, injunções, negociações
cia de Geraldo Filme como uma memória e misturas.
a ser reconstruída e preservada. A conexão entre samba, Geraldo
O contato com sua obra e com sua Filme, os negros paulistas com as Áfricas
imagem me moveu em direção aos vestí- não é automática e nem mecânica. O que
gios e rastros de memórias africanas que percebi na experiência social de Geraldo
foram reelaboradas na vida dos negros Filme e suas músicas foram sinais dessa
paulistas. É bom que se diga que nunca conexão que se manifestaram como tra-
pretendi buscar uma pureza africana. ços de uma memória africana que fora
Não pretendi também com esse termo acessada e recomposta entre os negros
propor uma visão essencialista, racia- através dos saberes orais-acústicos em
lista ou de busca de raízes originárias e torno das relações de família, amizade,
puras. Buscar uma pureza africana não trabalho e música, salões de dança, cor-
tem sentido algum no mundo contempo- dões carnavalescos, escolas de samba,
râneo, já que a experiência da Diáspora festas e religiosidades. Do lado de cá do
e do Mundo Atlântico recompuseram va- Atlântico as micro-Áfricas8 manifesta-
lores, saberes e fazeres. A zona do Atlân- vam-se nos ritmos, vocábulos, cantos,
tico possibilitou a formação de redes de performances que foram recuperados
contato entre diferentes Áfricas, Europas nos fragmentos de saberes e fazeres; pos-
e Américas constituindo uma teia multi- sibilitando a reconstrução da experiência
facetada onde o Atlântico Negro expan- social de Geraldo e dos negros paulistas
diu-se na Modernidade . Sua expansão
7
na cidade de São Paulo. Os fragmentos
pode ser considerada como dissenso, dessas memórias que ficaram como re-
contraponto, resistência à expansão da gistros das experiências, foram vividos
Europa, mas também como uma vivên-
cia mestiça, dado os diferentes campos 8
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.
de forças nas áreas Atlânticas sob a hege-
A expressão utilizada por Roberto Moura foi pen-
monia europeia. As Áfricas foram pensa- sar a pequena África na cidade do Rio de Janeiro
de modo singular. O que proponho no meu texto
é refletir sobre as áfricas de modo plural a partir
7
GILROY, Paul. O Atlântico Negro, Rio de Janeiro: de São Paulo e que não estiveram circunscritas a
Editora 34, Universidade Cândido Mendes, Cen- um ou outro espaço, mas espalhadas por toda a
tro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. cidade.

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em certos espaços da cidade por onde tégias para resistir, negociar e estar cul-
o músico circulou como o Bixiga, Barra turalmente na cidade. A partir da década
Funda e Liberdade. Costumes e laços so- de 1950, essas atividades culturais, so-
ciais construídos em torno do samba, do ciais e educacionais continuaram sendo
carnaval e da vida privada. as organizações onde os negros mestiços
Os estudos sobre as memórias ne- paulistas concentraram suas atenções e
gras e mestiças no século XX são uma ta- ações para reivindicar direitos, igualda-
refa em construção. No que diz respeito de social e sua herança cultural negro
às práticas musicais, já existem reflexões brasileira.
historiográficas que se propuseram a Reconstruir a memória musical de
problematizar quais foram os caminhos Geraldo Filme e suas relações de socia-
escolhidos, os desejos e as intenções da bilidade permitiu perceber uma socieda-
população negra mestiça que viveu em de e uma cidade com marcas dos negros
São Paulo nesse século. Tais estudos ma- mestiços paulistas apesar das políticas
pearam9, entre o pós-abolição e as déca- de higienização do espaço urbano, da
das de 1930 e 40, suas novas formas de industrialização, da racionalização da
sociabilidade10 como a vivência em ro- governança política e da economia. Por
das de sambas, a instituição de cordões entre o mapa da urbanização e metropo-
e escolas carnavalescas, a frequência de lização emerge uma cidade com traços
salões de dança, o que significaram estra- da vivência desse grupo nos costumes,
gestualidades, cantos e nos espaços ur-
9
BRITO, Iêda Marques. Samba na cidade de São banos11.
Paulo (1900-1930): um exercício de resistência
cultural. São Paulo: FFLCH/USP, 1986; VINCI, A memória de Geraldo Filme se in-
José Geraldo. Metrópole em sinfonia: História, sere nessa perspectiva de análise para
cultura e música popular na São Paulo dos anos
30, 2000; VINCI, José Geraldo. Sonoridades compreender suas práticas sociais em di-
paulistanas. Dissertação de Mestrado em Histó-
álogo, conflito e mistura com outras ex-
ria-PUC-SP, São Paulo, 1989; ROLNIK, Raquel.
Territórios negros. Uma História. Comunicação periências culturais na cidade. Isto posto,
apresentada no Simpósio –ABA. Campinas. Mi-
meo, 1998; SILVA, José Carlos Gomes da. Ne-
o texto não se tornou prisioneiro de uma
gros em São Paulo: espaço público, imagem e visão culturalista, que deseja encontrar
cidadania, 1998; SANTOS, Carlos José Ferreira
dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza em tudo uma herança africana intacta,
(1890-1915), 1998; WISSEMBACH, Maria Cristi- original e autêntica. Nem mesmo de uma
na. Ritos de magia e sobrevivência: sociabilidade
e práticas mágico-religiosas (1890-1940), 1997; visão materialista, onde os negros reagi-
WISSENBACH, Maria Cristina. Da escravidão à ram às formas de dominação no espaço
liberdade: dimensões de uma privacidade pos-
sível, 1998. Todos esses estudos apresentam as urbano, às vezes sem muita consciência
formas como os grupos negros resistiram cultu-
dos seus atos, o que os impedia de se tor-
ralmente à imposição de uma urbanidade que foi
sendo gestada como dominante e como projeto
hegemônico que tentava apagar as dissonâncias
culturais ligadas às práticas populares. 11
CAMPOS, Eudes. São Paulo na visão classi(ci)
10
ROLNIK, Raquel. Territórios negros em São Pau- sta de Prestes Maia, In: Revista do Patrimônio
lo. Uma História. Comunicação apresentada no Histórico. São Paulo: Secretaria Municipal de
Simpósio –ABA. Campinas. Mimeo, 1998. Cultura, n. 4, 1996, p-43.

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narem sujeitos de sua própria história. olhar atento aos fragmentos, pormeno-
A reconstrução de sua memória se res das manifestações negras mestiças
insere na perspectiva historiográfica que é que pude observar uma temporalida-
atenta para as práticas vividas nos mi- de histórica e experiências vividas. Com
cro-processos sociais, o que pode ilumi- essa opção teórica e metodológica pude
nar contextos e estruturas maiores que pensar a narrativa histórica de Geraldo
se fizeram com as formas de viver dos Filme; revelar fragmentos de sua vida e
grupos negros mestiços na redefinição de alma, dos dilemas, dores, alegrias, pra-
seus valores culturais no espaço urbano. zeres, expectativas e de paixão intensa
Tais formas de viver desvinculam-se de e incontida pelo samba. Revelou ser um
datações oficiais estabelecidas que tive- homem sensível às questões ligadas à ex-
ram no movimento dos grupos políticos periência vivida pelos negros mestiços.
e na dinâmica industrial, os marcos ins- Reconstruir sua memória foi uma
tituídos de compreensão das histórias tarefa onde pouco me vali de materiais
da cidade. As micro-áfricas paulistanas estatísticos: não há números, tabelas ou
expressaram sociabilidades e sensibili- dados. O que há são documentos fílmi-
dades; estiveram inseridas também nos cos, imagéticos, sonoros, orais e escritos
movimentos sociais que compuseram o que analisados revelaram um humano
ritmo de transformações da cidade com com seu mundo público, mas também
suas múltiplas temporalidades e expe- com seu mundo de dentro, íntimo e pri-
riências. A música e a experiência de vado. Com a documentação emergem re-
Geraldo Filme sofreram impactos, resis- talhos da sua memória que ficaram como
tindo em certos momentos e em outros vestígios, já que a apreensão do conjunto
se modificando de acordo com as impo- total e absoluto do que fora é improvável
sições políticas, econômicas, ideológicas, e impossível12. Sendo assim os vestígios
urbanas e industriais da cidade.
As micro-áfricas compõem um sen- 12
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças
de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
tido de história que se fez e se moveu Aqui emprego o conceito de memória elaborado
muito em função de um modo de pensar por Bosi, qual seja: “Na maior parte das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
e estar negro mestiço na cidade, que pe- repensar, com imagens e ideias de hoje, as ex-
netraram os diversos fazeres e saberes da periências do passado. A memória não é sonho,
é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobre-
vida cotidiana. Vida essa que se fez não vivência do passado, “tal como foi”, e que se da-
como desenrolar dos dias, da repetição ria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança
é uma imagem construída pelos materiais que
monótona dos acontecimentos; ao con- estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência
trário, como tensões e conflitos sociais.
atual. Por mais nítida que nos pareça a lembran-
Um cotidiano que foi vivido com as cons- ça de um fato antigo, ela não é a mesma imagem
que experimentamos na infância, porque nós não
truções, transformações ou demolições somos os mesmos de então e porque nossa per-
de culturas, sob uma multiplicidade de cepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos
juízos de realidade e de valor. O simples fato de
tempos e experiências sociais. Com o lembrar o passado, no presente, exclui a identida-

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que ficaram de sua memória sugere o tomatismos, cultura de massas à moda
menino que viveu lembranças do tem- europeia e americana que mapearam
po da escravidão dado o contato com a novos valores às subjetividades e corpos
avó; o filho de Augusta e Sebastião; o urbanos. Diante das novas sociabilida-
marido de Alice de Souza e pai de Ail- des movidas pelo ideal civilizatório de
ton de Souza; o sambista fundador de individualismo e sujeito desenraizado, os
escolas de samba como o Paulistano da grupos negros mestiços tiveram que re-
Glória nos anos 40; o compositor de arranjar os sistemas de valores, ora em
sambas-enredo para as escolas Unidos consonância com a cidade da técnica,
do Peruche e Vai-Vai nos anos 50 e 70; do urbanismo e arquitetura monumen-
o homem ligado ao universo do Teatro tal, ora com os modos de viver pauta-
e das artes como assim ocorreu nas re- dos em comunitarismos, oralidade,
lações de amizade com Plínio Marcos práticas de religiosidades, musicalida-
e Solano Trindade; o sambista de voz des com traços culturais herdados dos
grave e intimista, com sua “cuspidinha escravos. Portanto, redefinir valores e
de lado” e seu sorriso aberto, do orgu- expectativas diante de uma cidade que
lho em ser negro; opositor à Ditadura se urbanizava e modificava rapidamen-
Militar e ligado ao Partido Comunis- te os padrões culturais, significava im-
ta do Brasil; aquele que brigou com a primir marcas que se projetavam como
profissionalização do carnaval paulista prática de resistência social, já que en-
e a ingerência dos poderes municipal e contrei indícios nos documentos que
midiático a partir de 1968; o leitor que revelaram estratégias para preservar
sempre acompanhado de uma bolsa a suas expressões culturais. Mas também
tira a colo guardava livros de literatu- como norma à medida que os sambas,
ra brasileira e estrangeira; o sambista carnavais, escolas de samba foram se
compositor de músicas como Silêncio no tornando experiências contínuas na ci-
Bexiga13 e Vai no Bexiga pra Ver14 que dade. Desse modo, essas experiências
instituíram um arquivo sonoro para o podem ser compreendidas como vivên-
samba paulistano. cias dissonantes que desobedeceram a
Geraldo Filme pertence à segunda certos limites estabelecidos do que deve-
geração de homens livres que nasceram ria ser a cidade; e consonantes ao impri-
após a escravidão. Esteve imerso nas mir valores e normas que formataram a
rupturas que o modernismo paulista cultura metropolitana.
impôs, através da metropolização, au- Essas vivências compuseram a vida
de Geraldo Filme por meio de relações
de entre as imagens de um e de outro, e propõe a familiares, de amizade, com as escolas
sua diferença em termos de ponto de vista.”, p.55.
13
FILME, Geraldo. A música brasileira deste século
de samba e espaços sociais onde ele es-
por seus autores e intérpretes. São Paulo: SESC, tabeleceu uma íntima relação mediada
2000.
14
Idem pela vivência da música. Os lugares onde

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Geraldo morou, frequentou e conviveu Sinais dessa memória na vida de
circunscreveram-se na Barra Funda, Geraldo Filme se manifestam com o seu
Campos Elíseos, Bixiga, Liberdade en- nascimento, quando relata como a famí-
tre outros, e diversas escolas de samba, lia concebeu sua chegada ao mundo. Ele
entre as quais estavam o Paulistano da nasceu em 1927 na cidade de São Paulo,
Glória, Colorado do Brás, Camisa Ver- mas teve seu registro de nascimento efe-
de, Unidos do Peruche e Vai-Vai. Cons- tivado em São João da Boa Vista, interior
tituíram modos de viver que imprimiam paulista:
marcas específicas de uma cultura. Es-
Minha família era festeira. Eu nasci aqui
ses lugares com vestígios da vivência de
em São Paulo, mas fui batizado em São
Geraldo Filme permitiram pontos de
João da Boa Vista, porque a família é de
encontro e comunicação com outras pes- lá. Foram três dias de festa. Eu só tinha
soas que praticavam os sambas, congos que gostar disso. Era batuque no quintal
e umbigadas. Nesses lugares percebe-se pros nego véio, pros mais novos samba
que Geraldo Filme e os grupos negros na sala e vamos s’embora16.

mestiços flexibilizaram o espaço pau-


lista tornando-o um território por onde Não foi uma criança nascida em
expressavam os seus desejos, saberes e berço esplêndido da república cafeeira.
fazeres, e que atendessem a seus projetos As maneiras como os acontecimentos se
de vida como uma perspectiva possível sucederam com e após o seu nascimento
no mundo urbano. indicam modos de viver de sua família
Isso foi possível porque havia en- com fortes indícios de memórias negro-
tre os negros mestiços paulistas fortes -atlânticas, dado os “três dias de festa”
laços comunitários e a manutenção de com “batuques no quintal” para os mais
um lastro de tradição oral. Reagruparam velhos ligados às memórias rítmicas do
fragmentos das memórias dos africanos século XIX e “samba na sala” para as ge-
nas musicalidades , na gestualidade do
15 rações conectadas à atmosfera do urba-
corpo, em aspectos religiosos e familia- no. As musicalidades e as gestualidades
res, em formas de lazer e organizações corporais movidas pelo dançar sempre
culturais, políticas e educacionais. Todas foram, para os grupos negros da Diáspo-
essas experiências foram acessadas para ra, formas de saberes que se expressaram
recompor, naquilo que foi possível, uma como arte, comunicação e pensamento
memória. em substituição ao discurso e à política de
marcas ocidentais, portanto “não é nada
novo declarar que, para nós, a música,
o gesto, a dança são formas de comuni-
15
Musicalidade se define aqui como uma experi- cação, com a mesma importância que o
ência rítmica-acústico-melódica que compõe um
universo de saberes construídos pelos negros-
-mestiços no Brasil. Suas danças, festas, religiosi- 16
FILME, Geraldo. A música brasileira deste século
dades, instrumentos e vocalidades. por seus autores e intérpretes, p. 77, 2000.

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dom do discurso17”. Os grupos negros da Samba de Piracicaba, Tietê e campineiro
Diáspora agregaram e redimensionaram Os bambas da Paulicéia, não consigo es-
quecer
traços de memórias africanas reinventa-
Pedreiro então na zabumba, fazia a terra
das no espaço Atlântico; que foram em
tremer
certa medida estilhaçadas com o tráfico, Cresci na roda de bamba, no meio da
a escravização e as práticas coloniais. Os alegria19.
saberes musicais e performáticos permi-
tiram manter uma dimensão estética de A letra indica memórias do samba
um ser e estar negro nas urbanidades e paulista em diversas cidades interiora-
configuraram uma filosofia da Diáspora nas, mas também na paulicéia. Sendo
desobediente à racionalidade da técnica assim, a letra desvia o olhar da cidade in-
na cidade. dústria-arquitetura. Ela permite encon-
O nascimento de Geraldo Filme re- trar um tempo social vivido com “bum-
vela a vivência de uma África em minia- bo”, “zabumba”, “bambas”, “alegrias”,
tura, como o que ocorria nos quintais “roda”, “samba”, “nego” e “neguinho”.
das tias e tios baianos e cariocas desde As transformações urbanas e industriais
a virada do século XIX. Em São Paulo, impregnaram de certa forma a percep-
o quintal ou o terreiro e a sala transfor- ção sobre o sentido de modernização em
maram-se em territórios de construção São Paulo no século XX. Para descobrir
de identificação social e continuidade a música e os seus praticantes vivendo-
de novas formas de sociabilidade pri- -a, é preciso outra perspectiva. São nos
vadas. O ambiente cultural no qual Ge- fragmentos e minúcias de experiências
raldo nasceu e cresceu contribuiu decisi- sociais como as que se encontram na le-
vamente para sua formação musical. Os tra de Geraldo Filme que as formas de
“batuques” dançados no quintal de sua dança, instrumentos e musicalidades fo-
casa se tratavam dos sambas-umbigadas, ram sendo elaborados. Esses fragmentos
uma dança trazida por grupos bantos da de experiências sociais que permitiram,
África Central e que fora rearranjada no de certa forma, visualizar uma tempora-
interior paulista via vivências escravas. lidade da música onde os seus pratican-
tes viveram sensações e emoções de uma
Pirapora ê, pirapora ê
vida que valeria a pena, apesar das segre-
Bate o bumbo nego
Quero ouvir o boi gemer18 gações sócio-espaciais impostas em um
Iniciado o neguinho, num batuque de contexto pós-abolição e de urbanização
terreiro acelerada da cidade.

17
Apud: GILROY, Paul. O Atlântico Negro, Rio de
Janeiro: Editora 34, Universidade Cândido Men-
des, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001,
p.162.
18
FILME, Geraldo. Tradições e festas de Pirapora. 19
FILME, Geraldo. Batuque de Pirapora. São
São Paulo: SESC, CD, 1992. Paulo: SESC, CD, 1992.

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Essas vivências também se conec- dade da população negra mestiça paulista.
tam com o mundo atlântico ligado a Áfri- Na sua visão, o samba em São Paulo:
ca através dos traços de memórias que fi-
caram, como por exemplo, no “batuque” É diferente no andamento, no peso do
samba; o nosso vem mesmo daqueles
dos mais velhos, que se tratava do sam-
batuques, daquelas festas... rurais, fes-
ba-umbigada com fortes vínculos com a
tas que eram dadas aos escravos quando
região Congo-Angola dos bantos. Outro tinham boas colheitas, de corte de cana,
indício dessa conexão está no samba-en- boas colheitas de café; então era dada
redo escrito por Geraldo Filme Tradições aquelas festas para os escravos, na qual
e Festas de Pirapora para participar do eles se manifestavam com aquelas dan-
ças, com aqueles... era batuque, é umbi-
carnaval paulista na década de 60 com
gada, vários tipos de manifestação que
a Escola Unidos do Peruche. Geraldo
assemelha muito ao Maranhão. Como se
Filme sugeriu para a comunidade carna- faz em São Paulo, o batuque nosso aqui,
valesca e à sociedade paulistana, certas lá eu acho que eles chamam de tambor
raízes sonoras para o samba paulistano. de criola, é a mesma coisa... no tocar e
Sugestão essa presente também no sam- no dançar é igualzinho. O batuque nosso
que vira pra umbigada... o samba len-
ba “Batuque de Pirapora”. Essa minha
ço21”
afirmação se baseia em duas questões
centrais que estão nas letras. A primei-
Ao imprimir uma memória ao sam-
ra se refere à importância que Geraldo
ba de São Paulo, Geraldo atribuiu uma
confere ao samba de bumbo de Pirapora,
ligação com musicalidades que se re-
relacionada à sua infância:
metiam como venho afirmando, a regis-

Eu era menino tros de memórias dos bantos da África


mamãe disse vamos embora central. As ligações feitas por Geraldo
você vai ser batizado coincidem com a literatura que tratou
no samba de Pirapora20. sobre o assunto22. Veremos que há pistas
que oferecem uma interpretação nes-
A segunda aos “batuques” paulistas se sentido. Apontar para uma possível
das cidades de Piracicaba, Tietê e Cam- permanência/ressignificação da cultura
pinas. Havia em Geraldo uma afirmação de povos banto significa documentar vi-
da existência desses “batuques” em São vências do que ficou retido dessa cultura
Paulo por meio de sua música. Era um na prática cotidiana dos negros mestiços.
conhecedor de culturas musicais dos
negros, dedicando-se, além das compo- 21
FILME, Geraldo. São Paulo: Museu da Imagem e
sições e participações nos carnavais pau- do Som .
22
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África
listas, a pesquisas em torno da historici- coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR,
Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro
de corpo e alma- Black in body and soul. São
20
FILME, Geraldo. Batuque de Pirapora. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação
Paulo: SESC, CD, 1992. Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p.212-220.

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Registros que permaneceram na dinâ- permitiu diante de situações desfavoráveis,
mica social como a que conferi na festa elaborarem formas de existir e reter certas
em torno de seu nascimento e que fica- estruturas da cultura material e de estruturas
ram em sua experiência como herança ligadas à sensibilidade, sentimentos e emo-
de africanos bantos chegados de última ções. Isso revela uma estratégia para manter
hora como escravos no século XIX. e ressignificar os modos de ver e viver o mun-
Distanciar-se de uma postura que do sob um sentido histórico específico, não
valoriza apenas os sinais residuais po- mais africano, mas negro brasileiro.
derá propiciar um alargamento de nossa A grande maioria dos escravos que
percepção sobre a memória dos negros chegaram na primeira metade do século
mestiços em São Paulo. Os saberes ne- XIX no Brasil desembarcaram nas pro-
gros se mantiveram ao longo do tempo e víncias do Rio de Janeiro e São Paulo, e
expressaram marcas culturais, não como eram provenientes, sobretudo da África
“resto” ou “resíduo”, mas como vivência, Central onde viviam os povos de língua
pois não ficaram isoladas do contexto banto. Dado as inúmeras ramificações
social, nem mesmo folclorizaram-se de- do banto, chegaram no Sudeste brasilei-
vido ao impacto provocado pelos valores ro os falantes de “kimbundo da região de
urbanos. Sendo assim, essas vivências Luanda, o umbundu da região de Ben-
se transformaram definindo a cultura guela e o kikongo falado na “àrea que se
através de musicalidades, instrumentos, estende do rio Dande (ao norte de Luan-
rezas e danças; mudaram os registros da) até acima de Loango, e entre o mar
de memórias banto, inseridos no movi- e o rio Kwango24”. Desde o século XVI
mento do tempo e das transformações as línguas africanas imiscuíram-se ao
sociais. Com isso, a identificação de afri- português antigo; o que provocou a alte-
canismos puros perde força. Isso não tem ração desse português e “a subsequente
nenhum sentido, como já alertou Flávio participação de falantes africanos na
Gomes dos Santos. “Deve-se, pelo contrá- construção da modalidade da língua e
rio, tentar perceber a África reelaborada da cultura representativas no Brasil25”.
historicamente no Brasil ”. Para perceber
23
Essa participação, “ao longo de qua-
essa reelaboração tem que se dar destaque tro séculos consecutivos, favoreceu a in-
ao modo improvisador que os africanos terferência de línguas africanas no Bra-
deram à recomposição de suas culturas em
um contexto de desequilíbrio cultural vivido 24
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África
nas Diásporas. Foi essa habilidade de impro- coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR,
Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: negro
visar, marca singular dos africanos, que os
de corpo e alma- Black in body and soul. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação
Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 214.
23
GOMES, Flávio dos Santos. Seguindo o mapa 25
CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas
das minas: plantas e quilombos mineiros africanas no português brasileiro. In: Pasta de
setecentistas. Estudos Afro-Asiáticos (29): 113- textos da professora e do professor. Salvador:
142, março de 1996. Secretaria Municipal de Educação, 2005. p 4.

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sil. Isso se fez sentir em todos os setores: invulnerabilidade/vulnerabilidade e sta-
léxico, semântico, prosódico, sintático e, tus/prosperidade, depende, sobretudo
de maneira rápida e profunda, na língua de um estado de pureza ritual.
falada” . 26

As cerimônias e os tabus observados para


Além do aspecto linguístico, outros
atingir esse estado de pureza - associa-
aspectos dessa cultura banto resistiram e
do especialmente à dança, à música e ao
se tornaram práticas recorrentes entre os transe – geralmente são feitos em torno de
negros paulistas que lidaram, sobretudo, um fetiche (charm), que é um objeto feito
com as dimensões estéticas como a dan- sob inspiração, incorporando os símbolos
ça e a música. Há que se considerar que mais poderosos do movimento religioso28.

muito das relações familiares e formas de


religiosidade e crenças também contribu- Há que se observar que essas prá-
íram para a permanência de um modo de ticas culturais acompanham a historici-
viver com registros banto. Mas a preocu- dade da experiência social, sendo assim
pação maior é focalizar e analisar os traços modificadas conforme os novos proces-
da cultura banto a partir das dimensões sos de criação de novos símbolos ou rein-
estéticas como a dança e a música. terpretação de símbolos “estrangeiros”
Em relação à África Central, há cer- de acordo com a dinâmica interna da
ta homogeneidade de costumes entre os cultura.
povos dessa região, o que pode ser nota- Ora, o depoimento de Geraldo não
do na importância do: traz reproduções intactas com os nar-
rados da cultura dos povos bantos. Mas
complexo cultural ventura-desventura, revela vinculações com os princípios
ou seja, da ideia de que o universo é ca- e as dimensões estéticas, que foram o
racterizado em seu estado normal pela
que melhor resistiram ao impacto da
harmonia, o bem estar, a saúde, e que o
desequílibrio, o infortúnio, a doença são diáspora e escravização nas Diásporas.
causados pela ação malévola de espíritos Assim como as formas de religiosidade
ou de pessoas, frequentemente através de eram o centro vital na vida africana, as
bruxaria ou da feitiçaria27. expressões estéticas também estavam
intimamente ligadas ao sentido de exis-
Para realizar esses valores e metas tência, pois não há separação, ao cultu-
culturais relacionados à fecundidade, ar os ancestrais, entre religião, corpo,
dança e música. Em outras palavras,
26
CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas
africanas no português brasileiro. In: Pasta de cultuam-se os espíritos ancestrais dan-
textos da professora e do professor. Salvador:
Secretaria Municipal de Educação, 2005, p.4.
27
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África 28
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África
coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR,
Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne- Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne-
gro de corpo e alma- Black in body and soul. São gro de corpo e alma- Black in body and soul. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação
Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 214. Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 216.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012 57


çando e cantando. São esses elementos como bem cantadas por Geraldo:
que possibilitam a comunicação com o Eunice puxava o ponto
Dona Olímpia respondia
mundo espiritual.
Sinhá caia na roda
Mesmo com o impacto provocado
Gastando sua sandália
nas línguas, os princípios estéticos, e E a poeira levantava
aqui eu diria que os religiosos também Com o vento das sete saias
foram conservados num processo de em- Lá no terreiro tudo era alegria
préstimos e ressignificações culturais. Nego batia na zabumba e o boi gemia30

Isso traduzido revela certa maleabilidade


de comportamento que os povos bantos Expressões culturais como dançar
tiveram que assumir para recompor as em “roda”, responder o “ponto”, execu-
experiências de vida em novo contexto. tar um instrumento percussivo são ex-
As musicalidades negras ligadas à re- periências sociais que se encontram na
ligião e que se processaram em São Paulo, região da África Central e que são ressig-
como o samba de Pirapora e os “batuques” nificados nos núcleos de samba liderados
de Tietê, Piracicaba e Campinas cantados por “Madrinha Eunice” e “Dona Olím-
por Geraldo, são a música e a dança de um- pia” em suas residências.
bigada. Outras expressões musicais como Édison Carneiro, ao descrever e
Jongo e as congadas paulistas também analisar relatos de viajantes portugueses
carregam fortes traços da cultura banto, na região de Luanda, em Angola, no fi-
pois possuem vinculações com o mundo da nal do século XIX, cita que o samba de
espiritualidade e com instrumentações her- umbigada, chamado de “batuques” pelos
dadas da África, como os tambores de tronco viajantes, consistia:
(no Jongo) e as marimbas (nas congadas).
num círculo formado pelos dançadores
Essas novas formas de sociabilidade
indo para o meio um preto ou preta que,
musical e religiosa se fizeram no processo depois de executar vários passos, vai dar
de imbricamento cultural, como é o caso uma umbigada, a que chamam semba,
do samba de Pirapora e as congadas, que na pessoa que escolhe, a qual vai para o
possuem marcas de um catolicismo po- meio do círculo, substituí-lo31.
Dos grupos, em redor, saem alternada-
pular em coexistência com aquele “siste-
mente indivíduos, que no amplo espaço
ma” religioso banto discutido por Robert
exibem os seus conhecimentos coreo-
Slenes29. Há outros registros dessas vin- gráficos, tomando atitudes grotescas.
culações dos sambas e danças dos negros Por via de regra são essas representadas
paulistas com a cultura dos povos bantos por mímica erótica, que as damas, so-
bretudo, se esforçam por tornar obsce-
29
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África
coberta e descoberta no Brasil. In: AGUILAR, 30
FILME,Geraldo. Batuque de Pirapora. São Paulo:
Nelson (Org.) Mostra do redescobrimento: ne- SESC, CD, 1992.
gro de corpo e alma- Black in body and soul. São 31
CARNEIRO, Édison. Samba de Umbigada, Rio
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p.212-220. 1961. p. 10.

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na... após três ou quatro voltas perante co era versado em forma de desafio por
os espectadores, termina o dançarino um cantor mestre e reproduzido pelos
por dar com o próprio ventre na primei-
demais da roda. O segredo lançado teria
ra ninfa que lhe parece, saindo esta a re-
que ser decifrado por outro cantor mes-
petir cenas idênticas32
tre de alguma turma vizinha de escravos
nas plantações de café. E assim se fazia o
Sobre os instrumentos Édison Car-
Jongo, pergunta e resposta, ritmos e per-
neiro, ao citar os viajantes, revela:
formance, saberes e fazeres.
Os instrumentos musicais que acom- O desenho coreográfico desse canto
panhavam o batuque, são os bumbos que também incluía dança era chamado
e palmas das mãos. Além desses havia de “quizumba”, que em Angola é uma
“quiçanjes e marimbas”. Ao dançar nor- dança de namoro feita em roda. À medi-
malmente à noite as gomas, que pos-
da que as línguas africanas foram se imis-
suem o desenho de um tambor, eram
cuindo à língua portuguesa, bem como o
esquentados por fogo no terreiro em que
se dança33. seu contrário34, esses Jongos foram se
transformando em “visarias”, certa rein-
Os relatos dos viajantes portugue- terpretação daquelas expressões sonoras
ses indicam quanto esforço faziam para africanas cantadas em português.
tornar o africano um ser primitivo. As As visarias aparecem na trajetória
“atitudes grotescas” como assim os via- de Geraldo Filme na cidade de São Pau-
jantes diziam, significavam na verdade lo. Elas são citadas pelo sambista Osval-
a importância que o corpo, a dança e a dinho da Cuíca em depoimento feito para
música possuíam para imprimir um sen- um documentário do ano de 2000 que
tido de experiência social. Razão e sensi- tratou da biografia de Geraldo Filme35.
bilidade não se separavam para construir Outras indicações de registros bantos
uma percepção da realidade vivida. Ape- aparecem também nas anotações etno-
sar das avaliações racistas dos viajantes gráficas de Mário de Andrade, quando
ao relatar o que viram, elas são indicado- em 1937, acompanhou a festa e o samba
ras de como as expressões dos africanos de Pirapora na cidade de Bom Jesus do
bantos estão presentes na letra “Batuque Pirapora, lugar aonde Geraldo ia desde
de Pirapora” de Geraldo Filme. menino. Em uma das suas andanças por
Assim como dançar em roda, Ge- São Paulo, testemunhou a festa e relatou
raldo canta na letra “puxar o ponto”. O as sociabilidades que eram vividas pelos
“ponto”, uma espécie de canto enigmáti-
34
CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas
32
CARNEIRO, Édison. Samba de Umbigada, Rio africanas no português brasileiro. In: Pasta de
de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, textos da professora e do professor. Salvador:
1961. p.11. Secretaria Municipal de Educação, 2005, p.8.
33
CARNEIRO, Édison. Samba de Umbigada, Rio 35
GERALDO FILME – Crioulo cantando samba era
de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, coisa feia. Direção: Carlos Cortez. Brasil, 52 min.,
1961. p. 13. cor, 35 mm, 1998.

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negros mestiços paulistas ao praticar o sendo expostos e vivenciados a partir de
samba de bumbo. determinados códigos como a dança, a
música, o sentimento de grupo e de uma
Reúnem-se um grupo de indivíduos, liderança que compartilha poder. Mas o
na enorme maioria, negros e seus des- relato é mais extenso, permitindo notar
cendentes, pra dançarem o samba. Fre-
como os modos de relação interpessoal
quentemente esse ajuntamento mantém
uma noção de coletividade, quero dizer, são constituídos a partir da música:
forma realmente um grupo, um ran-
cho, cordão, uma associação enfim cuja Na noite de 14 de fevereiro de 1931, foi
entidade é definida pela escolha ou im- mesmo sublime de coreografia sexual o
posição dum chefe, o “dono do samba”. par que se formou de repente no centro
Esse chefe é quem toma determinações da dança coletiva. O tocador do bumbo
gerais e manda em todos. Manda sem era um negrão esplêndido, camisa-de-
muita força, obedecido sem muita obri- -meia azul-marinho, maravilhosa mus-
gação36... culatura envernizada, com seus 35 anos
de valor. Nisso vem pela primeira vez
sambando em frente dele uma pretinha
Reúnem-se para comungar. Co-
nova, de boa doçura, que entusiasmou o
mungar de uma música que os tornam negrão. Começou dançando com despu-
parceiros de uma sociabilidade. Se o dorada eloquência e encostou o bumbo
samba era a fonte da alegria, então se com afago bruto na negrinha. O par fi-
deve imaginar que o sorriso, a bebida, cou admirável. A graça da pretinha se
esgueirando ante o bumbo avançando
o prazer vinham tornar menos sofrida
com violência, se aproximando quan-
a exatidão dos dias. Naquele momento
do ele se retirava no avanço e recuo de
nada mais importava, a não ser sambar. obrigação, era mesmo uma graça domi-
Festa que projetava um presente repleto nadora37.
de possibilidades, onde a música sina-
lizava para um futuro em perspectiva. Mas o que há ali entre essas duas
Mário de Andrade narra um evento que pessoas senão a felicidade, comandada
relampeja aos nossos olhos como um pelo coração? Tudo o que era razão, com-
momento promissor. Há a organização postura, formalidade e rigidez nos movi-
de uma forma de sociabilidade festiva mentos do corpo, ia para o “ralo”. O que
que passaria a ser vivida como um costu- fica é um jeito singular de estabelecer
me entre os participantes. Construção de relações amorosas que envolvia o casal.
laços de identificação que se faziam com Uma inclinação afetuosa. Mas não é essa
a música. Desse modo, não seria exagero a graça da vida? Afago, chamego, doçura
ver nessa experiência social particular, e conquista. E para acabar com a razão
a prática de um conjunto de costumes

36
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música bra- 37
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música bra-
sileira, 2. ed., São Paulo: Martins, Brasília, INL, sileira, 2. ed., São Paulo: Martins, Brasília, INL,
1975. p. 148. 1975, p.148.

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dominadora, branca e masculina, o que do sinalizam para essa corporalidade.
acontece entre o casal é a completa cons- O corpo é o lugar por onde se inscreve
ciência daquela menina que controla o um modo de se divertir, de alegrar-se e
rapaz e a situação. Há que se considerar expressar valores. O corpo aparece aqui
que é um controle dotado de sensibili- como a marca simbólica de um grupo,
dade, de jogo de “cintura”. Uma cintura não como depósito, mas como espaço de
que dança, que conquista pela sensação construção de memória39.
e pela imaginação. Foi a cintura, centro O bumbo nas mãos dos tocadores
modulador da dança na África Central, merece destaque. Qualquer tentativa de
que possibilitou a elaboração de uma buscar um uso exclusivamente paulista
corporalidade38 negra sendo vivida pela para esse tambor, corre-se o perigo de
dançarina e pelo tocador de bumbo. O re- cometer falha. Pois ele está presente em
lato nos leva inclusive à dimensão noturna festas do Nordeste com os maracatus,
daquela sociabilidade: “na noite de 14 de nas bandas militares imperiais, no Rio
fevereiro de 1931, foi mesmo sublime...”. de Janeiro com as bandas do “Zé Pereira”
À noite os sistemas de controle sobre a no século XIX, bandas de carnaval como
vida ficavam de certa forma, mais frouxos. “O Malho” no início do século XX e no
Devia-se explorar esse horário como forma próprio samba de bumbo de Pirapora.
de aproveitar os momentos sublimes dedi- Antes da adoção do bumbo pelos
cados ao samba de bumbo. O relato revela negros mestiços de São Paulo que iam
o jogo de conquista entre o par. Aos olhos para a procissão em Pirapora, o samba
dos viajantes e cronistas, nas palavras de era feito a partir de um tambor chamado
Mário, o samba e o desenrolar da vida em de “tambu”. Um tambor feito de tronco
torno dele era tido como algo “indecente”. de árvore, tão importante que corrente-
Há explicitamente, no modo dos mente chamavam de dança do “tambu”.
negros mestiços paulistas dançarem, um Affonso A. de Freitas, no livro de Wilson
comportamento corporal africano. Pois R. de Moraes40, afirma haver a presença
se percebe que a cintura é o princípio que do tambu no samba de Pirapora onde
norteia o modo de dançar, muito comum iam grupos procedentes de diversas ci-
nas rodas de dança da África Central. A dades do interior e da capital paulista e
cintura das mulheres negras dançan- de outros estados vizinhos:

38
TAVARES, Julio. Educação através do corpo: a 39
TAVARES, Júlio. Educação através do corpo: a
representação do corpo nas populações afro-ame- representação do corpo nas populações afro-ame-
ricanas. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do ricanas. In: AGUILAR, Nelson (Org.) Mostra do
redescobrimento: negro de corpo e alma- Black redescobrimento: negro de corpo e alma- Black
in body and soul. São Paulo: Fundação Bienal de in body and soul. São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo de São Paulo; Associação Brasil 500 São Paulo de São Paulo; Associação Brasil 500
anos Artes Visuais, 2000. p.476. Tavares afirma anos Artes Visuais, 2000, p.476.
que o corpo negro coexiste como dispositivo de 40
MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de
poder, de identidade e linguagem transparente samba de São Paulo, capital. São Paulo: Conselho
em seu cotidiano. Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012 61


No centro das rodas, quatro ou seis figu- apropriação dos símbolos cristãos, mas
rantes, quantos comportasse o estreito também uma reinterpretação das práti-
círculo formado pelos terceiros, dan-
cas religiosas africanas como o culto dos
çavam e cantavam acompanhados em
“Minkisi”. Os Minkisi eram amuletos
grito pelos da roda... O bombo (sic!) cor-
riqueiro e prosaico substituía em todos feitos de madeira por povos da região do
os grupos de dançadores o primitivo e Congo, onde se depositavam substâncias
característico tambu41. do mundo natural (folhas) e mineral (pe-
dras) para ritualizar crenças nos poderes
O relato oferece pistas de que o sobrenaturais. As congadas no Brasil
tambu existiu no samba de Pirapora. Colônia e Império revelam que essa for-
Mas não é suficiente para identificarmos ma de religiosidade fora reinterpretada,
quando se dá a passagem do tambu para onde os escravos se apropriaram de figu-
o bumbo. Provavelmente o modo de se ras religiosas do catolicismo, como nossa
fazer o tambor “tambu” tenha alguma Senhora da Aparecida, Nossa Senhora do
relação com os povos da África Central, Rosário e São João, atribuindo-lhes sig-
pois a “Ngoma”, um nome universal para nificados semelhantes aos Minkisi42.
os tambores nessa região, está presente Outra relação é o modo como se
em todas as dimensões da vida social, constitui a crença nessas imagens de
sobretudo a religiosa, onde a “Ngoma” é santos e santas. Essas figuras religio-
meio de comunicação entre o mundo dos sas foram todas resgatadas ou achadas
vivos e o mundo dos ancestrais. O tam- dentro ou à beira de rios. A água para o
bu e o bumbo, como seu substituto, nas povo bacongo da África central é o ele-
mãos dos negros mestiços paulistas nas mento de ligação entre o mundo dos vi-
cidades de Pirapora e São Paulo, foram vos e dos mortos. A água representa essa
transformados em provedores e moti- ligação por possuir o poder da purifica-
vadores de uma sociabilidade sonora, ção. Sendo assim, há fortes indícios de
obedecendo ao sentido que os tocadores uma estrutura de sensibilidade africana
atribuíam. que emerge em torno da religiosidade
Outra questão importante é saber tomando novas formas e configurando
por que os negros mestiços iam para a um modo de crer que se fez em um novo
procissão em Pirapora. Buscar a respos- contexto. Diante dessa experiência que
ta para essa questão pode oferecer vín- se alterou não seria exagero sugerir que a
culos entre a África Central e São Paulo imagem de Bom Jesus do Pirapora tam-
do ponto de vista religioso e musical. As bém assumisse uma identificação como a
imagens e santos católicos adorados pe- dos amuletos. Santo esse que foi achado
los africanos no Brasil foram, às vezes, às beiras do rio, na cidade de Bom Jesus

41
MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de sam- 42
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil
ba de São Paulo, capital. São Paulo: Conselho Es- escravista. História da festa de coroação de rei
tadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. p. 12. congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

62 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012


de Pirapora, nas primeiras décadas do gros paulistas nos anos de 1930: o bairro
século XVIII. da Barra Funda.
Em função da historicidade do Bom A mãe, que se chamava Augusta,
Jesus, os negros mestiços que para aque- desejou uma carreira de médico. Sonho
la cidade iam, inclusive os da capital, improvável para um menino que nos
construíram uma forma de crença que anos de 1930 já frequentava as rodas
lembra maneiras africanas de religio- de samba da Barra Funda, no Largo da
sidade. Bom Jesus, ao ser encontrado e Banana. Nesse ambiente comporia, por
resgatado das águas cumpre a função de volta dos dez anos de idade, seu primei-
mediador entre o mundo do sagrado e do ro samba e aos vinte e dois anos, isso em
profano. 1949, já estava cantando na Rádio Amé-
A relação com o sagrado é mediada rica, revelando uma postura decidida do
pela indisposição a modos de vida dita- que queria para sua vida. Vivendo uma
dos pelos formalismos. A relação vivida temporalidade que se movia pelo fazer
pelo tocador de bumbo e pela dançarina musical e que daria o rumo de suas es-
e a relação com figuras religiosas são si- colhas pessoais, Geraldo Filme foi te-
nais concretos da disposição em se entre- cendo sua história. Exemplo disso é a
gar para um viver tangenciado por tradi- desobediência ao projeto de sua mãe
ções festivas que tinha como motivo a ida que o queria como médico. Seu projeto,
à procissão. É o que se verifica na relação como ele mesmo disse, era ser “Doutor
de romance entre os dançarinos presen- em samba”. Geraldo contrariou durante
tes na festa. A troca afetiva que ali se es- quase sete décadas a ideia de que a cida-
tabelece entre o casal tem no coração o de de São Paulo seria túmulo, ou coisa
pulso determinante de uma experiência parecida, do samba. Ele e suas músicas
social que, na década de 1930, já come- alargaram as fronteiras da cartografia e
çaria a ser sufocada pelo processo mais da memória musical paulistana.
acentuado de urbanização. O processo de Nada de romântico ou glamour na
sufocamento deveu-se às práticas de in- escolha de Geraldo. Mesmo porque sua
tolerância por parte dos poderes estabe- mãe sabia da vida boêmia de seu pai Se-
lecidos como a Igreja Católica e a polícia, bastião, que também foi músico e das
o que provocou um desânimo entre os diversas vezes que levou amigos alco-
participantes; para detrimento do samba olizados para jantar. Apesar de seu pai
vivido em Pirapora do Bom Jesus. não beber, aquilo que fazia desagradava
Já educado nesses costumes de tra- profundamente sua mãe. Também sabia
ços bantu, Geraldo Filme mudou-se com o quão difícil era a vida dos negros mes-
a família, por volta de 1933, para a cidade tiços na cidade nas décadas posteriores
de São Paulo passando a ter residência à escravidão, onde sobraram apenas os
no bairro dos Campos Elíseos e frequen- parcos e inglórios trabalhos como, por
tando um dos redutos de sambistas ne- exemplo, o doméstico. Sua mãe viveu

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012 63


essa dificuldade como mulher viúva que Havia por parte de sua avó a prática
educou sozinha o filho após a morte do de cantar músicas que situa a importân-
marido, quando Geraldo ainda era crian- cia da tradição oral entre sua família e,
ça. Portanto, viver de música seria optar como a partir dela se criavam relações
por um caminho difícil. Talvez aí esteja o concretas de sociabilidade onde se arti-
desejo de ver o filho médico. culavam novos saberes e fazeres musi-
No entanto, os caminhos de Geraldo cais. Ao atualizar as recordações sobre a
Filme foram outros. Durante a infância e história da família, a presença feminina
adolescência teve que conciliar seu entu- tem destaque no depoimento. Através de
siasmo junto ao samba com o trabalho de sua música, o trabalho de sua memória
entregador de marmitas. Essa relação e deixa evidências sobre o papel social vi-
opção pela música se devem àquilo que vido pela mãe e pela avó. São as mulhe-
Geraldo viveu no ambiente familiar, o res de sua vida. São heranças femininas
qual ele chamava de “musicalidade”, que ajudaram a definir o seu modo de
atribuída à sua mãe, sua avó e seu pai to- ser e estar masculino na cidade. Geraldo
cador de violino. refaz na lembrança certas sociabilidades
O registro da “musicalidade” vividas ainda em tempos de escravidão.
na sua memória fez-se, sobretudo, pela Primeiro a avó que vivera os anos de ca-
oralidade e musicalidade herdadas das tiveiro, e depois a mãe que nasceu em
gerações anteriores a sua. Foram essas 1901, onde sobrevivia ainda uma menta-
relações íntimas e familiares que pro- lidade escravista na sociedade brasileira
porcionavam a continuação de práticas e paulistana no início do século XX. Lem-
musicais marcadamente orais, servin- brar da avó significou reatualizar para
do como elo de ligação, contato e trocas sua época essa memória da escravidão.
entre gerações distintas. Para Geraldo, A avó busca através da prática musical,
a oralidade permitiu a transmissão dos construir uma relação com o neto. Por
sambas e choros. Ao lembrar-se de sua isso, quando Geraldo recorda de sua mãe
avó que viveu durante as décadas finais e de sua avó, nota-se nos seus gestos, na
do século XIX e as décadas iniciais do sua vocalidade e no seu olhar uma admi-
século XX, Geraldo oferece pistas dessa ração. Geraldo atualizou essa memória
relação familiar que se dava através da musical através de uma dimensão afeti-
tradição oral nas relações privadas. va. É no mundo sensível que essas mu-
lheres contribuíram para a formação de
Oi tiá, tiá, tiá sua humanidade.
oi tiá de junqueira, tiá Junto à mãe e à avó, seu pai, tam-
moça bonita, delírio tiá
bém interferiu na formação musical, pois
veja que coisa indecente, tiá
deita sem estar casada, tiá
em sua memória há presença do violino,
fazendo vergonha pra gente, oi tiá. cavaquinho, flauta e os choros no qual o
pai participava. Seu pai foi um daqueles

64 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.1, jan./jun. 2012


chorões que contribuiu na formação da Indignado com a ideia de que São
música popular urbana. Durante os anos Paulo não era o lugar do samba, Geraldo
30, a cidade de São Paulo passou a ser chega a compor uma música para mos-
um espaço no qual se multiplicaram os trar a sua insatisfação e dar uma resposta
chorões que durante o dia ocupavam-se ao pai por tal afirmação:
de um trabalho modesto e a noite trans-
formavam em músicos nos mais variados Eu vou mostrar, eu vou mostrar
Que o povo paulista também sabe sam-
lugares da cidade como a rua, cinema,
bar
festas e serestas, em troca, muitas vezes,
Eu sou paulista
de “uma mesa farta e, principalmente be- Gosto de samba
bida”. A Barra Funda também tem gente bam-
Mas a relação com o pai foi vivida ba
também a partir de conflitos e divergên- Somos paulistas e sambamos pra ca-
chorro
cias quanto ao modo de conceber o sam-
Pra ser sambista não precisa ser do mor-
ba feito em São Paulo e no Rio de Janeiro.
ro43.
Seu pai durante a década de 1930 viajou
para a cidade do Rio de Janeiro, obser-
Demarca uma cartografia para o
vando como os músicos faziam o samba e
samba paulista, realçando espaços da
concluiu que havia execução mais apura-
cidade como a Barra Funda. Busca cons-
da em função da qualidade e quantidade
truir uma territorialidade que se situa
dos instrumentos que saiam na Avenida.
nos aspectos geofísicos para afirmar uma
Para o seu pai, os sambistas no Rio esta-
diferença. Não é o morro e sim a planície.
vam melhores equipados, em termos de
Geraldo Filme narra a forma como
instrumentos que possibilitava uma me-
faziam instrumentos - “eu e o Zeca da
lhor qualidade sonora para o samba, já
Casa Verde esfolava uns bichaninho
que os de São Paulo tinham muitas vezes
para empachar tamborim... então eram
que produzir o próprio instrumento de
aqueles tamborins quadrados. Não ti-
forma caseira e artesanal. Essa experiên-
nha tarraxa, era tachinha e fogo e dá-lhe
cia vivida pelo pai de Geraldo foi também
jornal...”44.
vivida por Dionísio Barboza, que tam-
Esses processos artesanais na fa-
bém esteve no Rio de Janeiro e incorpo-
bricação de instrumentos musicais eram
rou elementos do carnaval carioca para
uma prática rotineira entre os sambistas
fundar o primeiro cordão carnavalesco
e um atraso aos olhos das classes domi-
em São Paulo no ano de 1914. Isso signi-
nantes que desejavam apagar aquilo que
fica que os músicos de São Paulo e Rio de
não representasse modernidade. Peles
Janeiro já trocavam informações desde o
início do século XX diluindo fronteiras e 43
FILME, Geraldo. A música brasileira deste século
estabelecendo diálogos. por seus autores e intérpretes, p. 78.
44
FILME, Geraldo. A música brasileira deste século por
seus autores e intérpretes. São Paulo: SESC, 2000.

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de carneiro e cabrito, latas de gordura tiplicidade de intenções, tensões, desejos
animal, barricas de madeira eram os ma- ocupando um mesmo espaço cultural.
teriais utilizados para fabricar bumbos, Aquelas experiências, de Geraldo Filme,
tamborins quadrados e surdos. Normal- Zeca da Casa Verde e Osvaldinho da Cuí-
mente as peles de animais eram conse- ca na fabricação artesanal, do domínio
guidas em curtumes ou então se compra- da técnica de execução dos instrumen-
vam em lojas de artigos de umbanda. Era tos, do canto e da dança nos carnavais
no entre-lugar das grandes transforma- como se percebe com os componentes
ções determinadas pela urbanização em da escola de samba Leandro de Itaque-
São Paulo que iriam emergir culturas ra, também irão fazer parte daquela São
e tempos sociais ditados pela música Paulo que elaborava seu samba.
configurando as áfricas em miniatura; Entre as décadas de 30 e 50 os ne-
nos interstícios da cultura dominante. gros mestiços de São Paulo praticavam
A produção artesanal de instrumentos o samba e o carnaval como forma de di-
expressava rupturas, alternativas e um versão e como modo de viver. Não havia
contraponto à época impregnada pela ainda nessas décadas uma intenciona-
urbanização. A produção de um lidade voltada para a organização sis-
tamborim era feito manualmente, pois temática do carnaval com competições,
não havia a fabricação manufatura da- fantasias e sambas-enredo. Reuniam-se
quele tipo de instrumento até os idos de na região da Praça da Sé entre as ruas
1958/1959 como revela o sambista Os- João Mendes, Direita e Quintino Bo-
valdinho da Cuíca . 45
caiúva apenas para brincar o carnaval.
No carnaval de 1960, componentes Vinham de diferentes partes da cidade
da escola de samba Leandro de Itaque- e juntavam entre 20 e 30 ritmistas, que
ra aparecem posando com fantasias e improvisavam tambores com latas de
instrumentos percussivos. Três rapazes, lixo, cavaquinhos e sanfonas, e mais os
uma moça e um menino seguram bum- brincantes que ao todo chegavam a 40 ou
bo, agogô e tamborim. Especificamente 50 pessoas. Mesmo de maneira improvi-
o bumbo possui moldes de fabricação sada, esses grupos dançavam os sambas
já manufaturados. Os dois processos de e jogavam a tiririca ou pernada paulista.
fabricação de instrumentos, o artesanal Geraldo esteve submerso nessa am-
e o manufaturado passaram a coexistir pla gama de práticas musicais, religiosas
numa mesma atividade ligada à música e e festivas como os carnavais, congos,
ao carnaval. O que se verifica é uma mul- choros, marchas, cateretês, catira ou
cururu, samba de bumbo, de roda, lenço,
tambu (a umbigada) e toda uma rede de
45
URBANO, Maria Aparecida. Sampa, samba,
sambista- Oswaldinho da Cuíca, São Paulo: Edi-
associações negras em torno de cordões
ção do autor, 2004. p.41. carnavalescos que já existiam desde as
primeiras décadas do século XX e que,

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direta ou indiretamente, foram incorpo- Fontes:
rados por ele e passaram a constituir um Discografia
repertório de saberes e fazeres que com-
pusessem a sua memória. CUÍCA, Osvaldinho da. História do sam-
Geraldo Filme demoliu o clichê que ba paulista. São Paulo: CPC/UMES, CD,
afirma ser São Paulo o túmulo do samba 1999.
ao se negar à ilustração como sua mãe
desejou ao querê-lo médico; foi a memó- FILME, Geraldo. Tradições e festas de
ria surpresa no arquivo sonoro da cidade Pirapora. São Paulo: SESC, CD, 1992.
para além de Adoniram Barbosa. Sendo
assim, ele foi o ponto de fuga, a desobe- FILME, Geraldo. Batuque de Pirapora.
diência, o inusitado, a surpresa suspeita São Paulo: SESC, CD, 1992.
diante do ímpeto sedutor da civilização
urbana e metropolitana; percorreu o Documentário
caminho úmido e quente não capturado
pela impermeabilização do espaço e da GERALDO FILME – Crioulo cantando
alma; driblou o ambiente cinzento das samba era coisa feia. Direção: Carlos
fábricas, da disciplina performática dos Cortez. Brasil, 52 min., cor, 35 mm, 1998.
negócios e serviços, da irrealidade tecno-
lógica. Viu no samba, a dança da alma. Livro
Fez do samba, o antídoto ao enlouqueci-
mento lento instituído pela modernida- A MÚSICA BRASILEIRA DESTE SÉ-
de paulista. Recusou o nada, preferiu o CULO POR SEUS AUTORES E INTÉR-
tudo. Driblou a narrativa pivô que insiste PRETES. GERALDO FILME. São Paulo:
em silenciar as memórias sonoras pau- SESC, 2000.
listas e faz triunfar apenas os ruídos de
fábricas, automóveis e outros sons urba- FILME, Geraldo. Que gente é essa. In: Mú-
nos. Com ele se vê encerrado esse chavão sica brasileira deste século por seus auto-
esquemático. Liberta a cidade da morte res e intérpretes. São Paulo: SESC, 2000.
fria enclausurada no túmulo e no silêncio
inventado. Instituiu o lugar ímpar para Referências bibliográficas
esse samba com memórias rurais e reli-
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