Você está na página 1de 52

1

TOKUNBÓ: Sons entre mares

Inaicyra Falcão
4 CARTA EDITORIAL
8 VOZ CORPO TERRITÓRIO DE
REVOLUÇÕES E ALEGRIAS
damaso bueno
16 MÚSICAS
24 ÈRÒYÀ ṢÀNGÓTÒKUNBỌ̀:
ANCESTRALIDADE E GÊNIO
CRIATIVO AXIPÁ NA ARTE DE
INAICYRA FALCÃO
Félix Ayoh’OMIDIRE
34 TOKUNBÓ: SONS ENTRE
MARES
Inaicyra Falcão em conversa
com a curadoria
44 COLABORAÇÕES
4 TOKUNBÓ: Sons entre mares

Foram muitos os encontros, as conversas, as trocas,


as viagens, as idas e vindas até o nascimento de
Tokunbó: Sons entre mares, projeto comissionado
da artista Inaicyra Falcão para a 35 a Bienal de
São Paulo. Tokunbó é composto desta publicação,
da gravação e da apresentação de um disco e sua
performance lírica. Juntos, significam muito mais: o
projeto é a celebração da história de uma artista que
se autodefine como “articuladora de mundos”.
Para além de uma função documental, este livro,
assim como o disco e a performance, é uma obra
dedicada à obra da vida de Inaicyra. Não contaremos
aqui os bastidores das decisões curatoriais –
a escolha do projeto, os desafios de formalizar o
elemento sônico no espaço, de gravar um disco, de
escolher um repertório, ou mesmo as tensões que
encontramos entre os sistemas de produção da música
5
e das artes visuais. Com estas páginas e por meio
delas, mergulharemos nas epistemes, metodologias e
estratégias que fundamentam o processo de criação
da artista. O esforço de traduzir esse aprendizado na
escrita vem repleto de reflexões sobre a produção
de conhecimento oral, ancestral, e o encontro desse
conhecimento com espaços institucionalizados do
saber: tocam as formas como nossas lembranças e
memórias do corpo encontram, na linguagem, seus
diversos modos de expressão, ao mesmo tempo
que ampliam nossas percepções ao tensionar as
contradições da formação de uma identidade em
diáspora que esbarra com os limites da história.
Aqui, vale contar não só o que ocorreu, mas também
a narrativa daquilo que se diz ter ocorrido. Narrativa
que se materializa fora de um sentido cumulativo
do tempo, em que a ancestralidade se expressa na
voz e no corpo da artista como a própria evidência
histórica, por meio de uma noção cíclica do tempo.
O corpo desta publicação é materializado em
uma biografia crítica – marcada pelos anos de
interlocução entre Inaicyra Falcão e o pesquisador
damaso bueno –; a coleção de letras que compõe
a produção musical proposta para a 35 a Bienal de
São Paulo; uma coreografia textual organizada
pelo professor Félix Ayoh’OMIDIRE, que ressalta
a relevância ancestral dos poemas-oríkì da artista;
e uma conversa mediada pela curadoria, que nos
conduz ao repertório crítico-conceitual acumulado
ao longo das tantas articulações de mundos de
Inaicyra Falcão.
6
7
8 VOZ CORPO TERRITÓRIO DE fruto do empenho e esforço de seu trabalho.
REVOLUÇÕES E ALEGRIAS Entretanto, foi convencida de que o acordeom
era mais adequado ao espaço físico familiar,
por damaso bueno assim como aos recursos então disponíveis para
fomentar seus estudos.
De seu pai, Mestre Didi (2013),
artista visual destacado pela primazia, escritor
e Alapini, supremo sacerdote no culto aos
egunguns, perpetua e multiplica o gosto,
o respeito e a familiaridade pela escuta,
Ao buscar mergulhar nas distintas camadas pelo estudo e enunciação da língua iorubá.
sonoras abarcadas pela produção de Inaicyra, Mas, ao tratar da força e do alcance, traços
tornam-se tangíveis algumas tramas da vasta que asseguram a excepcionalidade elástica
teia pela qual transversalizam saberes locais e potente do timbre que carrega na voz, a
com sensibilidades irrestritas. Articuladora de soprano dramática é convicta ao reconhecer a
mundos e contextos, a musicista transdisciplinar herança materna de seus atributos. Sua mãe,
resiste, pela emissão impetuosa de sua voz, Edvaldina Falcão dos Santos (1967), também
às heteronomias e categorizações normativas foi responsável pelo compromisso de Inaicyra
de gêneros, sejam eles estéticos, rítmicos ou para com os estudos formais, que culminaram
musicais. em uma trajetória acadêmica consistente e
Por manter um pé profundamente desbravadora.
enraizado nas tradições nagô e iorubá, o outro O convívio com a imagem elegante e
persistiu disponível, inclinado à inventividade a voz enérgica de sua jovem mãe desencadeou
crítica e criativa, ao atravessamento o apreço pelo cancioneiro seresteiro, músicas
desobediente de fronteiras e classificações. que ouvia reiteradamente em casa, no âmbito
Aquinhoando pistas que desvelam a familiar. Edvaldina aprendera a cantar pela
multiplicidade de percursos pela qual seu canto sensível prática de ouvir. Irreverente nos
desestabiliza parâmetros e procedimentos de costumes, gostava de sambar na cozinha. Subia
transmissibilidade, ávidos por transformação no batente e se punha a miudar com os pés
e mutabilidade. Numa interlocução respaldada inteiros no chão. Quando samba na roda, são
pelo prazer incorruptível de questionar padrões essas lembranças que povoam o imaginário e a
naturalizados, incluindo os precipitadamente imaginação de Inaicyra.
hegemônicos, totalizantes e universais. Entre as canções presentes na
Lapidados por memórias transportadas cumplicidade de tantas memórias, a valsa
através de temporalidades muitas vezes CAPRICHOS DO DESTINO, de Pedro
hostis, ou pela poesia desacomodada que Caetano e Claudionor Cruz. nada além,
transborda de sua forma inquieta de observar, foxtrote de Mário Lago e Custódio Mesquita.
os sons propagados pela voz de Inaicyra Ambas consagradas por Orlando Silva. O
tocam, interseccionam e interceptam lugares samba-canção A FLOR DO MEU BAIRRO,
estrategicamente apartados. Como o íntimo e o de Adelino Moreira, na voz grave e boêmia
social, o público e o familiar, o doméstico e o de Nelson Gonçalves. A guarânia MEU
político. Por investigar modos de composição PRIMEIRO AMOR (LEJANÍA), de Herminio
e reelaboração aparentemente incongruentes, Giménez, adaptada por José Fortuna e
com a maestria inventiva e tradicional que lhe Pinheirinho Júnior, gravada por Cascatinha
é singular. & Inhana. Poemas musicados de lamento e
O primeiro instrumento musical lhe indignação, imprescindíveis na superação
chegou na infância, em Salvador, Bahia. dos momentos de abandono e ausências
Pelas mãos firmes e protetoras de Mãe Senhora, irreparáveis.
Maria Bibiana do Espírito Santo (1967). Oxum As primeiras influências musicais da
Muiwá, sua avó paterna. Reconhecida ialorixá, cantora podem ser mapeadas em três eixos
mantenedora e multiplicadora de festejado axé, referenciais: os orikis (liturgias, poemas,
condecorada Mãe Preta do Brasil. Inaicyra saudações) musicalizados e entoados em ritos e
sonhava ter um piano, adquirido anos depois, festas, nas complexas comunidades de terreiros,
9
10 presenciados na companhia de sua avó; as manhãs de sábado pela enigmática vendedora
audições de LPs e compactos colecionados de fatos – que anunciava, de forma melódica e
por Mestre Didi, muitos deles em iorubá; e as subversiva, a venda de corações, fígados e rins,
canções de amor e dor que embalavam as rádios entre outras entranhas.
nas décadas de 1950 e 1960, cantaroladas pela Posteriores ao bacharelado em dança
voz materna nas lidas do cotidiano. na Universidade Federal da Bahia (UFBA), as
Acerca da experiência recorrente de passagens pelos grupos Olodumarê e Ballet
ouvir e amplificar programas radiofônicos, Brasil Tropical, dirigidos por Camisa Roxa
guarda, com especial atenção, duas instigantes e coreografados por Domingos Campos,
recordações. As cobiçadas revistas musicais, proveram a real medida dos esforços
adquiridas em bancas de jornal, com as quais necessários para cantar e dançar de forma
acompanhava nas rádios o desconhecido e simultânea. Um aprendizado tácito, destituído
aleatório roteiro das preferidas canções. de maiores explicações; adquirido nas
Além do hábito, um tanto curioso, agora talvez repetições do ato de feitura, em resposta aos
inimaginável, de deixar sobre a mesa, por desafios constituídos pelas práticas do próprio
precaução, um caderno exclusivo para notar fazer. A exemplo do que já experimentava,
composições. Inaicyra relata que passava informalmente, nos Sambas e nas Danças dos
horas de butuca esperando a execução de uma Orixás. Experiência ampliada conforme outras
determinada canção. E que, de fragmento em variações rítmicas – o Lundu, o Xaxado, o
fragmento, esse processo poderia levar dias, até Maracatu de Caboclo e o Maculelê – eram
completar seu objetivo. Fã ardorosa de Paulinho incorporadas no repertório da revista teatral,
da Viola, assim aprendeu a cantar FOI UM RIO em suas circulações mundo afora.
QUE PASSOU EM MINHA VIDA, sofisticado A hibridização, até então inesperada,
samba-enredo composto e gravado em meados tempos depois nomeada etnolírica, encontrou
de 1970. ambiência propícia no Departamento de Artes
Na infância, ainda dividida entre a Teatrais da Universidade de Ibadan, na Nigéria.
inibição e o desejo de expressar, relembra Onde Inaicyra percebeu um estímulo maior, no
temas de autoria desconhecida, aprendidos sentido de equacionar arte, pesquisa e docência,
observando a mãe cirandar: “Lá na favela, ao durante o período dedicado ao mestrado e às
romper da madrugada, ó Mulher! Debaixo práticas do professorado em dança. Quando
de um arvoredo, onde canta a passarada, ó decidiu integrar o coral da universidade,
Mulher!”. Versos apresentados, de modo lampo naquele momento sob direção do maestro
e precoce, quando consultada por sua primeira nigeriano Christopher Oyeṣiku, acompanhado
professora de canto, Rosita Salgado Goés, sobre pela pianista antilhana Amorelle Inanga.
o conhecimento de antigas canções. Num programa composto
No entanto, ao tratar sobre a decisão majoritariamente de peças do classicismo
de cantar, no afã de escavar memórias, Inaicyra europeu, incluindo composições de Mozart,
aprofunda e informa sem titubear o momento Beethoven, Haendel e Strauss II, após o
em que assistiu pela primeira vez a uma mulher primeiro intervalo estavam previstas três
negra emprestar sua técnica lírica para vocalizar composições de Dayo Dedeke, pianista,
AVE MARIA na versão sacra romântica de musicólogo e compositor de Abeocutá: E JE
Gounod, adaptada do prelúdio de Bach. Por K’A ṢIṢE O, IWE KIKO e E JEUN TO DARA.
curiosidade, o feito se reporta à segunda série Em 10 de dezembro de 1987, no concerto
do antigo primário, na Escola Getúlio Vargas, inaugural do Coral da Universidade de Ibadan,
no Barbalho, nas proximidades do Santo no Trenchard Hall, Inaicyra performou pela
Antônio, em Salvador, Bahia. E a motivação primeira vez cantos líricos no idioma iorubá.
por alterar sentidos e caminhos respondia pelo Desse acontecimento, permanecem vivas as
nome de professora Elisa. lembranças marcadas no corpo pelos tremores
Misto de espanto e encantamento, outra musculares incontroláveis que acompanharam a
imagem importante para captar as minúcias apresentação.
que adensam as micro e macro-histórias de sua A matéria sensível, manejada em
trajetória musical remete aos cantos mercadores tamanhas intensidades, fará da performance
de trabalho (cada vez mais raros), trovados nas musical um campo de estudos e práticas
constantes, elementar nas adaptações multidirecional – como de fato é. Assim como 11
necessárias em sua volta para o Brasil, quando a ressonância da voz é capaz de chacoalhar a
integra o corpo docente da Universidade carne, atingir ossaturas, desobstruir e modificar
Estadual de Campinas (Unicamp). O a direção de pensamentos abertos, ou mesmo
canto lírico passou a ser um canal vital de romper com um baque os desavisados.
estabilização emocional e profilaxia dos Sua aptidão por integrar experimentos
estados anímicos. A estadia em Campinas transdisciplinares proporcionou atuações
(SP) proporcionou importantes encontros surpreendentes, vide a montagem teatral A
que marcaram a passagem de Inaicyra pela serpente, de Nelson Rodrigues, dirigida pela
Associação Brasileira “Carlos Gomes” de encenadora Maria Thais Lima Santos. Estreada
Artistas Líricos. A exemplo das aulas de solfejo em 1995, na Confraria da Dança, em Campinas.
e piano, com a musicista Aci Taveira Meyer, e Na peça, a cantora performava como atriz,
dos estudos continuados de aperfeiçoamento ao mesmo tempo que se esbaldava com um
vocal com Suzel Alves Cabral, Glédis Spiere, repertório apurado, que oscilava de trechos
Indira Menezes e com a maestrina Vera Olivero. da ária Vissi d’Arte, de Tosca, Puccini, a
Outras referências reafirmaram o NÃO MORRO SEM VER PARIS, popular na
propósito musical de investigar, nas tradições, bajulada voz de Luiz Cláudio.
a força motivacional de singularização dos Em projeto correlato, considerados
processos de composição: a música sincrética, os atravessamentos de diferentes campos
adaptada dos cantos negros de trabalho, de conhecimentos e saberes, mas especialmente
observada nos spirituals, que edificaram a atraída pelas interfaces possíveis entre a
parceria de Jessye Norman e Kathleen Battle; reencenação de repertórios coreográficos
os cantos ritualísticos peruanos reelaborados e a performance musical, Inaicyra
pela soprano Yma Sumac; e a extensão vocal ressalta suas contribuições em The Negro
dos extáticos cânticos sufis do paquistanês Spirituals, proposto pela coreógrafa Holly
Nusrat Fateh Ali Khan. Elizabeth Cavrell. Norte-americana radicada no
Desse vigoroso núcleo inspiracional, Brasil, Cavrell remontou oficialmente os
multiplicaram-se as mais variadas e inusitadas solos de Helen Tamires, elaborados entre
referências, que incluem desde os hits populares 1927 e 1932. Conhecida pela força de seu
do gênero Juju Music, escutados em discos de posicionamento político e socialista, Tamires
vinil, na coleção garimpada por Mestre Didi se destaca na história da dança por ter sido
para nutrir os estudos linguísticos do iorubá; precursora na experimentação de movimentos
ícones da música nigeriana, em especial Ayinde dançados ao som de cantos negros de trabalho.
Barrister, Ebenezer Obey e King Sunny Adé; Inaicyra ecoou à capela a voz insurgente
o canto saracoteado da sul-africana Miriam como gesto que entremeava os movimentos
Makeba; grandes vozes da black music, como dançados de Cavrell, pautados nas variações
Dinah Washington, Billy Holiday, Mahalia coreográficas de Tamires.
Jackson; os ritmos sul-americanos cadenciados Não há quem possa estar, ou
na voz de Nat King Cole. Até registros raros, permanecer, na presença irradiante de Inaicyra
como Watusi nos pot-pourris de Carmem sem se afetar pela alegria que transborda de
Miranda, a versão inolvidável de LA VIE EN sua maneira de cantar, mover e comunicar.
ROSE por Grace Jones, ou Ney Matogrosso e Sensação expandida de prazer e entusiasmo,
Angela Maria cantando BABALU. capaz de interceptar diferentes mundos a partir
Visualizar essa constelação musical de um entorno proclamado íntimo e pessoal.
facilita a absorção dos preceitos vibráteis e Força incomparável da natureza, é na alegria do
percussivos que transformam a percepção fazer que Inaicyra encontra sua verdadeira arma
sonora do canto de Inaicyra numa experiência de transformação. Seus gestos intempestivos
tátil, corporal, encarnada e sinestésica. Daí a não refutam o desafio de olhar para trás, para as
formulação metafórica de estar apta a ouvir profundezas do tempo, e amalgamar múltiplas
com o corpo por inteiro, de ter as sensibilidades temporalidades que engravidam o presente
de escuta ampliadas e desdobradas na árido com seu olhar crítico, questionador,
extensão de toda sua pele. Sua emissão parte detentor de uma capacidade ímpar de
da compreensão de que a propagação do som é realização.
12 Sua maneira de ser é a manifestação precisa favor da presença das artes nas universidades.
de sua mais elaborada composição. Uma Defensora da interseccionalidade nos estudos
complexa trama de valores estéticos, imateriais, a partir dos alicerces da cultura brasileira nagô
proeminentes dos sistemas culturais nagô e iorubá, sua tese de doutorado se transformou
e iorubá, reelaborados e propagados na na base literária e textual para o livro Corpo
duração de uma vida dedicada à arte. Não e ancestralidade: Uma proposta pluricultural
há como estabelecer distinções entre o que a de dança-arte-educação (2002). A obra é
coreógrafa pensa, canta ou realiza. Basta olhar referência no estudo das epistemologias
a expressividade minuciosa e hipnotizante interculturais e das performances artísticas a
de suas mãos, ou o ataque enérgico de seus partir das diásporas africanas e brasileiras.
atos performativos. A episteme que ancora a Sua escrita é contemporaneamente lida
pluralidade de sua percepção sobre o fazer como um acontecimento feliz, por inverter a
nas artes é consonante ao controverso jogo de histórica política de sequestros, e aguçar vias
intensidades que emanam de seu corpo, de sua de autonomização dos fluxos de intercâmbio na
voz, de seus modos ressonantes de mover. conexão de novas redes transatlânticas.
Comprometida com as práticas Quem teve o privilégio de acompanhar
artísticas, com o fazer criativo e inovador, de perto a atuação de Inaicyra como
suas memórias transitam com fluidez entre pesquisadora e gestora nas universidades
a linguagem falada e o canto. As palavras públicas (etnocêntricas por tradição) pôde
cantadas surgem num passe de mágica. observar a luta incansável pelo ingresso e
Presença encantadora e dançante, Inaicyra se por melhorias no acolhimento de discentes
orgulha ao dizer das teorizações tecidas a partir e docentes de matrizes afro-brasileiras. Pela
da extensão das falas de uma artista, que conduz criolização e aquilombamento dos espaços
e espacializa na voz a força misteriosa de eriçar de transmissão e produção de conhecimento,
peles, de fazer vibrar colunas vertebrais inteiras, anterior à implementação das políticas
para então estremecer estruturas assimétricas e afirmativas e da consolidação do atual sistema
estagnadas de poder. de cotas étnico-raciais. Sua tática inclusiva de
Doutora em educação pela gestão, combativa e intransigente aos crivos
Universidade de São Paulo (USP), mestre em empreendidos por uma economia precária
artes teatrais pela Universidade de Ibadan. (imperativa na conformação escassa de lugares
A designação “livre-docente” reporta ao institucionalizados de representatividade),
título acadêmico em práticas interpretativas seguiu adepta à realização propositiva, em
obtidas na Unicamp, mas também reflete o alternativa aos separatismos autocentrados.
compromisso com a liberdade de expressão O interesse em abrir e cultivar diálogos
que rege sua ética e, ao mesmo tempo, sua múltiplos, por vezes dissensuais, reincide na
poética, ambas emancipadoras das relações. apreensão sensível do trânsito inevitável por
Foi no contexto universitário que encontrou diferentes espaços de atuação. Daí o propósito
a abertura curricular necessária para dar e a necessidade de articular mundos, até os
continuidade à sua proposta intercultural de supostamente díspares. Ao mesmo tempo
dança-arte-educação, desdobramento do que que a discriminação social embrutecia e se
havia experienciado na Universidade de Ibadan. alastrava, sua forma questionadora de investigar
Por ousadia e distinção, Inaicyra transita mas os porquês encontrava nos estudos a arma
desvincula-se do cenário previsível constituído sob medida para confrontar variados tipos de
por escolas canônicas; para vislumbrar preconceito, atrelados a diferentes formas de
caminhos que antecipam a necessidade discriminação, incluindo as raciais.
de contrapor a imposição de parâmetros Sua arte não nos deixa esquecer que
curriculares, que reproduzem estruturas a alienação e os processos discriminatórios
colonizatórias de pensamento. caminharam e continuam a caminhar lado a
Em tempos de criminalização e lado. A luta pela politização e complexificação
sabotagem do investimento público nas dos processos de identificação intensifica a
instâncias educacionais, sobretudo no ensino urgência de fortalecer vozes silenciadas, ou
das artes, sua trajetória se transforma num violentamente subalternizadas, de maneira
programa político de afronta e subversão a irrestrita, não exclusiva a um reduto fechado,
avesso a interações. Mas em processos Transforma em gesto os atos de seu pensar. E 13
contínuos de performatização, abertos às pensa ao desenhar seus modos de dançar. A
diferenças cabíveis na estruturação de coletivos formulação de conceitos como operadores de
que persistem plurais. movimentos possibilita repensar as artes em
A capilaridade dos percursos seus limites e em suas contradições.
trilhados pela artista pode ser considerada a Daí a opção por processos
materialização corporificada dos dizeres de sua composicionais comprometidos com
avó, Mãe Senhora: “porteira pra dentro, porteira reelaborações, releituras e traduções. Ciente do
pra fora”. Em respeito às próprias tradições, privilégio de crescer numa família de pessoas
Inaicyra nunca abriu mão de conversar e negras questionadoras, o legado desse ímpeto
consultar suas forças poderosas, da porteira não lhe permite replicar modelos, resenhas
para dentro. Contudo, uma cartografia que ainda e rotulações – motivo pelo qual não deixa
pode surpreender e que merece maior atenção de acreditar na possibilidade de modificar
implicaria localizar e retraçar os trajetos que os modos de fazer sua arte, a cada novo
ligam a profusão de países, cidades e teatros processo. Ou de aprofundar em alternativas
visitados ao longo de sua atuação artística epistemológicas que contemplem a pluralidade
profissional. Seu itinerário diminui distâncias de muitas e diversas histórias.
entre ao menos quatro continentes – africano, Propagadora de extenso e vigoroso
asiático, europeu e americano, do sul e do norte. axé, sentido amplo que se traduz no poder e na
Dessa circulação vasta e abrangente, a força de realizar e concretizar ações, Inaicyra é
pesquisadora problematiza análises e conteúdos sucessora direta na dinastia dos Axipás – termo
que vão compor suas teorizações. Outra defesa que também designa os povos de língua iorubá
epistêmica importante, para a qual não costuma provenientes das regiões sul-ocidental da atual
fazer concessões: suas práticas artísticas são Nigéria e sul-oriental da República do Benim,
a principal fonte de pesquisa e informação berços da pluralidade étnica corresponsável
para produção de suas teorias. Suas ilações pelo levante da mais consistente comunidade
resultam tanto da observação participativa afro-diaspórica.
como da participação observante, em contextos Ainda na infância, Inaicyra foi
concretos de pesquisa e criação, no campo reconhecida por Mãe Senhora e anunciada
expandido das artes performativas. Fruto do filha de Xangô, orixá do fogo, elemento de
diálogo e da intervenção direta na realidade de propriedades metamórficas e transformacionais.
diversos contextos como sínteses de múltiplas Rigorosamente comprometidas com a justiça,
determinações. Ao debruçar em processos as narrativas míticas relacionadas ao orixá
criativos, nos quais se vê imbuída da cabeça aos se entrelaçam aos impulsos performativos da
pés, as práticas de teorização desembocaram, artista. Na boa dose de ousadia e rebeldia, que,
por consequência, na transformação política acrescida de uma honestidade inegociável, rege
de seus modos de produzir. De forma exigente, a assertividade dos gestos capazes de interpelar
mas sem perder o bom humor. incoerências nas situações mais adversas.
A postura e a responsabilidade com Da rica historiografia artística e
as quais Inaicyra reposiciona as práticas do familiar prospecta-se a compreensão alargada
fazer na centralidade de suas ações antecipam de ancestralidade em territórios bem protegidos,
o protagonismo das artes como campo mas desimpedidos, que informam mais
transversal de saberes. Como agente importante sobre a transmissão resiliente, não oficial,
na reorganização de acepções que atualizam de saberes tradicionalmente ignorados e
a compreensão humana de produção e de silenciados, do que sobre heranças biológicas
produtividade. “Tem que abanar, não pode com suas geografias privativas e acachapantes.
deixar o fogo da arte apagar.” Inconformidade que se expande das visões
Desenquadrar gavetas, desorganizar restritivas de territórios e temporalidades,
categorias, desmistificar hierarquias e contra o enrijecimento e a naturalização
estereótipos são procedimentos indissociáveis de marcadores sociais de classe, gênero
em composições que partem de uma visão e raça. Especialmente quando analisados
arrebanhadora das artes. Inaicyra dança ao compartimentados, em blocos estanques, sem
cantar. Canta ao falar. Fala ao gesticular. a devida atenção às disputas políticas que
14 atravessam e interceptam seus contornos.
A vontade de reconhecer e recompor
localizadores sociais de onde se atua – quando
comprometida com escutas finas, calcadas
no respeito e no convívio mútuo – para
além do sentido de pertencimento imprime
maior criticidade na apreensão de limites
e potencialidades que instigam moveres
emancipatórios. As práticas exegéticas, atentas
aos contextos e às trajetórias, propulsionam o
ato de cantar, na amplitude de seus horizontes,
sendo um ato performativo de luta contra o
esquecimento das próprias histórias.
Do contato imediato com a cosmogonia
iorubá, no momento revelador em que os olhos
se abrem e tocam a imensidão impermanente
de um íntimo familiar, a percepção expandida
sobre as ancestralidades se transforma em força
geradora e sonante, parte responsável pela
circum-navegação de sons que se propagam
entre mares.
Nas travessias sônicas de tòkunbọ̀, matrizes 15
ancestrais aventam novo fôlego,
multiplicam instantes, lampejos, ignescências
intrépidas. Melodias entregam plântulas.
Invocam corpora e corpos em estados de dança.
Cânticos litúrgicos ecoam embriões, folhas,
penas, escamas que alumiam e elevam curvas
em linhas oceânicas. Ritos musicalizados
multiformes, políticos por poiéticos, que se
manifestam pelo zelo em defesa da vida, dos
nascimentos e das gestações.
Segue o desejo de que a alacridade
ancestral de Inaicyra – que se desvela em sua
companhia alquímica e que engrandece nossas
dinâmicas do mover, pensar, cantar e sentir
coletivamente, como parte de seu conjunto
de práticas, saberes e tecnologias ancestrais –
continue a modificar a direção dos ventos para
propagar novas ondas sonoras, a soprar bons
tempos em nossos corações.
(((axé e evoé)))
goiânia, 20 de junho de 2023.
1 OBÁ BIYÍ
A1.
(Beto Pellegrino/Luiz
Ariston)

Obá Biyí Mãe


Quem te criou Teu fácil sonhar
16
Quem te guiou Teu sábio guiar
Foi o oxê de Xangô ô Exemplo da história falada
Oxê de Xangô Mãe
Foi o axé de Xangô ô Quem te criou
Fez o mundo mudar
Mãe do Opô Afonjá
Iyálorixá
A filha princesa do rei
Iorubá
Iyá Oba Biyí
O rei nasce aqui
Menina nilê Gurunsi

Mãe das velhas agbá


Do corpo de Oba
Cuidado e justiça com o
seu eledá
A dona do awô
Do oxê de Xangô
Da força do império nagô

Mãe
Teu grande fervor
Teu doce rigor
Exemplo da essência da
vida
A2.2 SEGREDO DAS
FOLHAS
(Beto Pellegrino/Pedreira
Lapa)

Quando a cabaça de Ê Ê Ê minha sacojé


17
Ossain E E E minha dorixa
Cofre das folhas da vida Mejê um epê
Vento mau estraçalhou Euê aça
As folhas doidas varridas Digina tá chamando
O arco-íris levou Katendê ê ê já vou já
As folhas doidas varridas
O arco-íris levou

E no coração de Olorum
Onde o amor tem saída
Verde mais vivo brotou
Pra não morrerem as
florestas
Voltaram na luz de angorô

E no retorno das folhas


Águas cantaram nos
igarapés
Bem germinaram as
sementes
Bateram os Candomblés
Sangue Iroko Caboclo
Fonte da vida jorrou
Vento natureza mãe
O verde segredo das folhas
Outra vez a cabaça
guardou
18
19
A3.3 OBÁ MORELÊ/ A4.4 INFINITUDE –
OKINININ ORIKI À OBÁ TOSSI
(Adaptação: Inaicyra (Inaicyra Falcão/Beto
Falcão/Beto Pellegrino) Pellegrino)

A. Obá morelê ô oyê Infinitude Iyá o bogundê


20
Oniyê Oba morelê ô oyê Iyá o bogunde
Aiyaku awa orixá iyó Omon Afonjá, Axipá o
Awa lotoranxé boranjé bogunde
Okina awón aiyabá E ma bé ru já Iyá asa o
Ki na já kopé botoná Eni ma be orixá
Morelê orixá Aiyabá Aiye bode

B. Okini ni só ruiyeiyé Iyá Iyá o


Oba lubé aladô Mon i ebo
Okini ni só ruiyeiyé Kebo Keto
Eniti omo kini éwa ô Iyá Iya o
Obi lodê Bori alá
Okini ni sô ruiyéiyé rokô Keto Baba
Dugbe dugbe Alado firo
Iya opé laiye
Egbomi xé bo
Iyá ope laiye
Ebomi xé bo
Iyá ope laiye

Omo iya lagbe le

Omo iya lagbe le


Omo jo Iyá o
Oni e omo Afonja, Axipá
Awa de

Ero o da lo eyn o
Omo eyn laiye
Ero o da lo eyn o
E wre
Ewa o ntolo mo mi xe
21

Omo Iya de a oxe ni aimo


Omo Iyá de a oxe ni aimo
Awa oxe ni aimo
Omo Iya de a oxe ni aimo

Awa de tere tere


Awa de taiyó taiyó
Lesi emi omo Alagogo
Oba alapa ni ka bori
Bobo um ekun axeke
Ekun ole eku ajé
Eni e gangan
A de o

Kosi mi fara e awa re!


Kosi mi fara e awa re
Awa kasa i fara e la i be
si bo
Idan toba fara a lo lo dan
Kosi mi fara e awa re

Kosi mi fara alejo


Ara wara kosi mi fara
22
23
ÈRÒYÀ Ṣàngótòkunbọ̀: Ancestralidade e gênio criativo Axipá
na arte de Inaicyra Falcão

Èròyà!
Àyabá xirê
24 Ọya ṣirê lọjà, Èròyà!
Èròyà!
Àyabá xirê
Ọya ṣirê lọjà, Èròyà a!
Ọyá xirê!
Xirê loni
Ọya Olúwoyè àìjó
Ọyá xirê!
Xirê loni
Ọya Olúwoyè àìjó
Èròyà!
Xirê Ọyá o!
Èròyà!
Xirê Ọya à à!

(Inaicyra, “Ayabafefe”, OKAN AWA:


Cânticos da tradição yorubá, 2000)

INTROITO (ÈRÒYÀ!)

Interpretado ao alegríssimo ritmo ijexá


dos candomblés da Bahia, nada melhor
que começar com esta faixa de seu
CD de estreia – OKAN AWA: Cânticos da
tradição yorubá (2000) – para convocar a
todos – transeuntes, iaôs, ebomes, abiyans,
ọ̀jè ṣ e todos os demais interessados.
Gravado sob o título Ayabafefe (grafado
naquilo que chamo carinhosamente de
idioma ou ‘dialeto’ yorubaiano), “Ayaba
afé fe ̣ ́ ”̣ (em yorùbá da costa), ou seja,
“rainha dos ventos”, é um título que
representa uma reverência absoluta à
orixá Ọya, mais conhecida no Brasil
como Iansã, dona dos ventos e das
tempestades, controladora da porta dos
eguns (Ọya ìgbàlè ̣ em terras yorubá-
-africanas, ou Iansã Balé em idioma
yorubaiano). Trata-se de uma música
com a qual Inaicyra nos convida, a toda
a comunidade, à moda das antigas
companhias de dramaturgia yorubana
na África antes da chegada dos thrillers
mediáticos de hoje, para acudir e
presenciar o insólito espetáculo da
orixá Ọya dançando xirê em plena luz do
dia na praça do mercado (Èròyà/Àyabá
xirê/Ọya ṣirê lọjà/Èròyà/). Ninguém pode
ficar impassível diante desse tipo de
convocatória, pois não é todos os dias
que acontece uma coreografia do impossível
Félix Ayoh’OMIDIRE

de uma orixá do quilate de Iansã cidade, a linhagem ou o clã específicos 25


dançando na feira popular. dos quais teriam sido arrancados no
vasto continente africano.

BÍBÍ IRE KÒ ṢE É FOWÓ RÀ! Uma das poucas famílias que
conseguiram burlar esse genocídio
A intérprete-coreógrafa Inaicyra Falcão identitário foi a de Mestre Didi Alapini,
traz na voz e nos movimentos uma pai de Inaicyra Falcão. Gerações
dramaturgia ancestral que atravessa sucessivas conseguiram manter sua
séculos, numa trajetória impossível identidade ancestral na África e na
pelo tempo e pelo espaço – desde as Diáspora graças à memória da linhagem
longínquas savanas de Ketu, antigo Axipá mantida viva na família desde
reino yorubá na África Ocidental, até as a época de sua pentavó, Marcelina da
marés da Bahia de Todos-os-Santos, Silva – Obá Tossi, passada através
viajando na memória de genitores daquilo que Mestre Didi chamava de
ilustres como Marcelina da Silva – Obá “brasão oral”, o oríkì da linhagem: Axipá
Tossi (sua pentavó), Maria Bibiana do borogum, elese kan gongo. O próprio Mestre
Espírito Santo (sua avó) e seu próprio Didi documentou como a simples
pai, Deoscóredes Maximiliano dos declamação desse “brasão oral” na
Santos, mais conhecido como Mestre corte do antigo Alákétu Àdiró Adetutu
Didi, Alapinni nile Axipá (cargo máximo no (soberano do reino de Ketu na África
culto de baba egum). Eis o que confirma Ocidental) permitiu que a linhagem
a veracidade do ditado yorubano usado dos Axipá, à qual pertencia a família
logo acima, como intertítulo: “Bíbí ire kò de Marcelina, recebesse de volta seus
ṣe é fowó rà!”, ou seja, “[para os povos descendentes do lado brasileiro, em
yorubá-africanos] nada se compara Ketu. Assim, em 1967, na primeira
ao bom nascimento numa família que viagem de Mestre Didi àquela terra,
confia na grandeza de seus ancestrais”. na atual República do Benim, reuniram-
Trata-se, assim, de uma virtude que não -se as cinco gerações: dos Axipá dos
se pode comprar e que por isso não Santos da Bahia aos seus irmãos Aṣípa
está ao alcance de qualquer um. É o na aldeia de Kosikú, nos arredores da
que reza a exaltada visão e princípio do Ketu, terra ancestral da família. Nessa
Omolúàbí nagô-yorubano. história fantástica da superação da
perda da memória ancestral, ainda mais
Quando o sujeito de bíbí ire é um emblemáticos são o elo e a força das
sujeito afro-diaspórico, como é o mães, avós e tataravós na recuperação
caso de Inaicyra, essa virtude ganha desse passado ancestral por parte
um acréscimo, pois a maior tragédia de Inaicyra Falcão. E, como nada
e perversidade da escravização foi o acontece por acaso, na cosmovisão
apagamento sistêmico e sistemático nagô-yorubana à qual pertence a
dos registros genealógicos dos família Axipá de Inaicyra, o nome do
indivíduos escravizados. O resultado foi meio de sua avó, aquela que a colocou
o genocídio identitário que obrigou milhões firmemente no meio dessa história da
de africanos escravizados nas Américas reclamação da memória ancestral, tinha
a deixar de usar as maiores marcas de que ser Bibiana! Ou seja, o prefixo Bibi
sua identidade africana, como nomes do nome da avó Bibiana já prefigurava
e linhagens, oríkì e outros atributos a herança de bíbí ire da neta Inaicyra,
ancestrais. Dessa forma, na Diáspora que passou a maior parte de seus anos
seus descendentes perderam para formativos sob a generosa tutela dessa
sempre os “localizadores” étnicos ao grande dama do candomblé da Bahia –
serem tratados apenas com a etiqueta Maria Bibiana do Espírito Santo, Oxum
genérica de “afrodescendentes”, sem Muiwá –, terceira iyalorixá do Ilê Axé
a menor possibilidade de identificar a Opô Afonjá.
26 A METÁFORA DO MERCADO

A metáfora do mercado, evocada na


introdução deste texto por meio do
convite (Èròyà) para o espetáculo de
Iansã na feira (Ọya xirê lọ́jà), domina bem
a cosmovisão yorubana sobre o papel
da feira ou do mercado (ọjà) como um
espaço mágico e magnético, que ocupa
uma função essencial no cotidiano
dos povos nagô-yorubanos. De fato,
ao lado do palácio real (ààfin-ọba) e do
ojúbọ (terreiro) do orixá patrono de cada
cidade yorubana, a ọjà (feira) forma uma
trindade de espaços sagrados dos quais
emana o axé supremo que controla o
cotidiano de qualquer reino nagô-
-yorubano. Por isso, o rei soberano de
toda cidade nagô-yorubana é também
conhecido pelo título de Ọlọ́jà (o dono da
feira), enquanto a feira mais importante
em cada reino yorubano é chamada
ọjà-ọba (a feira do rei). A ọjà yorubana
é, portanto, um palco dos espetáculos
mais importantes para o ciclo da vida.
Além disso, a feira nagô-yorubana
tem o atributo místico de ser o lugar
de encontro dos habitantes dos três
Ayê, mundos ou planos de existência
descritos na mitologia yorubana como o
mundo dos vivos, o mundo dos mortos
e o daqueles que estão na fila de espera
para entrar no Ilê Aiyé. Por esse motivo,
nenhum verdadeiro ọmọ nagô-yorubano
se espanta tanto ao encontrar numa
dessas feiras o vulto de algum parente
que acabou de morrer mas cujo ritual
de axexê ainda não foi consumado por
completo.

SEMENTES ANCESTRAIS

As faixas que compõem o repertório


de Inaicyra na 35a Bienal de São Paulo
constituem o elo mais forte do fio
condutor dessa coreografia encantadora
que é a ancestralidade da artista.
E a expressão que a solista soprano
escolheu não poderia ser outra senão
um investimento no gênero textual
da oralitura nagô-yorubana que mais
caracteriza a memória ketu-diaspórica
no Brasil, ou seja, o gênero oríkì.
Dessa forma, todas as músicas, de
alguma maneira, são um oríkì, ou seja,
um registro da coreografia verbal em
honra ao sujeito homenageado em cada
música, seja esse sujeito uma pessoa
ou um orixá.

Inaicyra nos traz nesse repertório muita


verba yorubaiana, por ter sido boa aluna
do próprio Pai Didi e boa discípula de 27
sua avó Mãe Senhora, assim como
dos tios e tias do terreiro de Axé Opô
Afonjá, onde convivia cotidianamente
com a língua yorubana, ou melhor, a
versão yorubaiana1 que a comunidade
se orgulhava em preservar e expandir
nos diversos projetos idealizados por
Mestre Didi desde a época da iyalorixá
fundadora do terreiro, Mãe Eugenia
Anna, Iyá Obá Biyi. Vale destacar a
Minicomunidade Obá Biyi, que foi,
nas Américas, o primeiro modelo de
escola-terreiro em que se produziam
e encenavam autos dramatizados da
tradição nagô, recontando e recriando
as mitologias dos orixás para a
educação dos mais novos. Os anos
que Inaicyra (Ṣàngótòkunbọ̀) investiu
em sua imersão in situ e em aprofundar
a língua e a cultura yorubanas durante
a viagem à terra de seus ancestrais,
entre 1982 e 1988 – quando estudou
para o mestrado na Universidade de
Ibadan (1982-1984) e também ministrou
disciplinas de danças e coreografia
afro-brasileiras –, foram de suma
importância para sua formação e para
o domínio da língua e das expressões
corporais de seus ancestrais nagô-
-baianos. Porém, nem isso lhe teria sido
possível sem o convívio e a intimidade
que tinha em casa com a língua de
seus ilustres genitores yorubaianos.
Assim, a arte de louvar os orixás e os
ancestrais com o gênero poético dos
oríkìs acabou marcando toda a produção
artística de Inaicyra, fazendo com que
cada música sua se tornasse uma
coreografia sensorial completa, aliando
a beleza dos movimentos corporais à
sonoridade de uma poética ancestral –
conforme fica explicitado em sua obra
teórica de 2015 e expandido em vários
textos de sua autoria.2
1 Ver mais na obra YoruBaianidade: Oralitura e matriz epistêmica
nagô na construção de uma identidade afro-cultural nas Américas.

2 Ver, por exemplo, entre a produção científica de Inaicyra Falcão


dos Santos sua obra-mor: Corpo e ancestralidade: Uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação. 3 ed. São Paulo: Terceira
Margem, 2015, 166 p. E também o artigo “Tramas criativas
do corpo e ancestralidade: o entrelaçar entre encenações e
poéticas”, in Daniel Santos Costa (org.) Corpo e diásporas
performativas. Jundiaí: Paco Editorial, 2019, 356 p.
INFINITUDE IYÁ O BOGUNDÊ – “AGBE Silva – Obá Tossi”, a artista nos
LÓ LARÓ!...” brinda, numa composição assinada em
coautoria com Beto Pellegrino, o oríkì
Conforme afirmam as letras de outro “Infinitude Iyá o bogundê” (a ancestral
cântico do vasto repertório de oríkì que irrompeu na diáspora vinda das
para saudar os orixás que Inaicyra guerras inconclusivas provocadas pelo
adaptou no disco OKAN AWA na faixa impulsivo Afonjá na terra africana).
“Ayaba Osogbo” para louvar e evocar a O poema saúda ao mesmo tempo a
memória da saudosa avó, Mãe Senhora, coragem e o instinto de preservação que
a quem carinhosamente saúda como fizeram com que a ancestral Marcelina
28 “Iyá Omi, Oxum Muiwá, Iyá Omi, Oxum – aqui referida como ọmọ Afonjá (filha,
Osogbo” (Mãe das águas, minha mãe descendente do generalíssimo Afonjá),
Oxum Muiwá, Mãe do rio, Oxum em que em momento nenhum teve medo da
Osogbo), é inconfundível a pujança da guerra (e ma béru ja) – focasse o tempo
força mística carregada e suscitada todo na sobrevivência de sua linhagem,
pela descendência dessa grande dama pois apesar de ela própria correr perigo
das terras de Ketu e das águas de de vida seus descendentes teriam o
Osogbo. Para que ninguém duvide ganho eterno de poder perpetuar-se
dessa força motriz que lhe confere tal como uma linhagem africana na
ancestralidade, a cantora recorre, na diáspora brasileira. Eis, portanto,
abertura dessa homenagem à querida a chave da rogação no poema-oríkì que
avó, a outro gênero discursivo da a pentaneta Inaicyra Ṣàngótòkunbọ̀
poética nagô-yorubana que é, em devolve à memória da ancestral com seu
essência, um sortilégio: Agbe ló laró, kìí verbo yorubaiano, a saudação reservada
rahùn aró! Àlùkò ló losùn, Kìí ráhùn osùn, aos soberanos das grandes dinastias
lekeleke ló lẹfun, kìí ráhùn ẹfun... Ou seja, yorubanas: “iyá, iyá o, moni e (g)bó/k(é ẹg)bó
̣
“é impossível furtar ao pássaro agbe o k(é ẹ)tọ
̣ ́ !” – vida longa à iya, cuja memória
axé de fabricar o índigo (aró), da mesma me garante a ancestralidade!
forma que não existe ser nenhum
capaz de furtar ao pássaro àlùkò o axé Impressionante como Inaicyra reafirma
de produzir o osùm (urucum vermelho), neste oríkì à memória da pentavó outro
e nem nasceu ainda nesta vida quem princípio da oralitura nagô-yorubana.
roubasse do pássaro lékèélékèé o axé de À moda dos poetas performativos do
alvejar suas penas”.3 Assim rezam as gênero oríkì em meios yorubá-africanos,
primeiras linhas desse potente sortilégio a cantora não foge à obrigatoriedade de
de Inaicyra evocado no ‘dialeto’ preencher a “bibliografia” mítica que
yorubaiano para afirmar a imutabilidade fundamenta a teoria da sobrevivência
da exaltada herança que lhe confere de sua linhagem nessa coreografia
sua linhagem nagô-yorubana através do impossível, apesar das condições
da grande matriarca Maria Marcelina adversas de sua implantação na
– Obá Tossi. Herança que Inaicyra diáspora brasileira. Ela afirma, assim,
carrega ao honrar ensinamentos e com todo o orgulho de quem conseguiu
valores ancestrais implantados ao longo fazer a lição de casa sem errar: Omo
das cinco gerações que a separa das jo Iyá o/ Oni e omo Afonja, Axipá/ Awa
“grandes Marias” da família Axipá: Maria de! – Que ninguém confunda minhas
Marcelina da Silva – Obá Tossi, Maria origens! Puxei à minha ilustre ancestral
Madalena da Silva, Maria Claudiana que era filha de Afonjá e dos nobres
do Espírito Santo (sua bisavó) e Maria Axipá! O mesmo princípio lhe autoriza
Bibiana do Espírito Santo (sua avó). proclamar aos quatro ventos as virtudes
Herança consolidada e concretizada e façanhas dessas linhagens, em suas
pelo exemplo e gênio artístico do coreografias de superação através das
próprio pai, Mestre Didi, o saudosíssimo águas do Atlântico – declamado o tempo
Alapinni nilê Axipá. todo em um admirável vocabulário
yorubaiano que as próprias iyás
Em continuidade a esse diálogo com os ajudaram a criar e manter na diáspora
antepassados Axipá, Inaicyra apresenta brasileira.
um remix do original poema-oríkì que De forma contundente, a música
fundamentou para sempre o brasão “Oba Morele” também nos oferece
oral de sua linhagem. Em “Poema outra joia da memória dessa linhagem
com uma série de cantigas que escondida na terceira linha na qual
homenageiam Maria Marcelina da o oríkì revela um atributo particular

3 YoruBaianidade: Oralitura e matriz epistêmica nagô na construção


de uma identidade afro-cultural nas Américas, pp. 120 ss.
da linhagem Axipá e seu papel na 29
infame odisseia das guerras que
geraram a diáspora de muitas famílias
yorubanas no episódio Afonjá. Essa
linha, que pode até parecer pouco
lisonjeira, descreve a linhagem dos
Axipá como “Awa lotoranxé boranjé” (àwa
lòtọ́rànṣe-bọ̀ránjé ),̣ ou seja, indiciando os
ancestrais intrépidos como aqueles que,
por teimosia e, quem sabe, excesso de
zelo, acabaram esquentando além das
medidas o conflito constitucional entre
o generalíssimo Afonjá e o rei Aláàfin
Aolẹ̀ Arogangan no famoso confronto
do início do século XIX no reino
yorubano de Ọ̀ yọ́.4
Nem as folhas sagradas
necessárias para qualquer processo
litúrgico e ritual nas tradições nagô-
-yorubanas ficaram de fora desse
repertório de oríkìs ofertados. Em
“Segredo das folhas” a sabedoria
milenar dos povos africanos acerca
do poder do orixá Ọ̀ sanyìn, dono
das sagradas ewé (folhas) usadas
em abó, banhos, infusões e limpezas
no candomblé, confirma-se em uma
forma milenar através do provérbio
yorubano que assim declara de maneira
inconfundível: kòsí ewé, kòsí òrìṣà – sem as
folhas, não podemos cultuar os orixás!

Nessa coreografia dos impossíveis,


o mesmo movimento alucinante aparece
no trecho dedicado a louvar a orixá
Iansã como aquela cujo redemoinho
provoca a tempestade capaz de revelar
a constelação alegre dos orixás nagô-
-yorubanos na qual o raio de Xangô
“iluminou a terra” e a generosa
Iemanjá acudiu ao espetáculo fazendo
“subir[em] mais altas as ondas do mar”
enquanto a doce Oxum fez eclodir a
cachoeira na mata de Oxóssi, o exímio
caçador dos matos de Ketu que, por
sua vez, fez cruzar no ar suas flechas
certeiras. E, para fechar esse cortejo
insólito, “Os Oguns desceram de
Humaitá”, informa esse cântico oríkì,
intitulado “Tempestade de Iansã”,
evocando uma verdadeira dinâmica
4 Para uma relação completa desse episódio, ver Samuel Johnson,
The History of the Yorubas, 1929.
30 cósmica digna das mitologias de origem
do mundo, e que desta vez ficou por
conta da feroza Oyá. “Eparrei, eparrei/
Eparrei Oyá!”, aclama a cantora!
Esse repertório, que traz em
si uma celebração dos ancestrais
Axipá, destaca-se em duas músicas
que aparecem para sinalizar o
reconhecimento da família a duas
entidades fundamentais na confirmação
da fama e do destino da linhagem de
Marcelina da Silva – Obá Tossi em
solos diaspóricos. Em “Vovó Nanã”, o
oríkì-saudação a Nanã Bukúù – orixá
primordial das terras além do rio Volta,
na África Ocidental, onde hoje ficam
as repúblicas de Togo, Gana e Burkina
Faso – é saudada como Yá Iabá da
Costa do Ouro. Considerada uma
entidade àgbà (anciã), foi trazida para
a constelação da família dos orixás
desde as trocas culturais em territórios
africanos, onde todos a reverenciam
como a “grande mãe dos orixás” cujo
atributo ritual, o ibiri, fora emprestado –
segundo uma versão de sua mitologia
bastante difundida no Brasil – para
Oxalá separar a lama do fundo do rio na
fabricação das formas humanas: “Negra
flor salubá. Salve a Velha Nanã!”.
Por último, e de propósito,
o poema-oríkì que Inaicyra dedica à
inesquecível Iyá Obá Biyi, Eugênia Ana
dos Santos (1938), mais conhecida
como Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé
Opô Afonjá, terreiro ao qual a família
Axipá se associa desde a criação.
A eterna Iyá Obá Biyi, cujo orúkọ
ritual ficou consagrado na tradução
yorubaiana como “O rei nasce aqui”,
foi talvez o maior exemplo do poder
de inclusão e agregação imbuído
nas tradições nagô-yorubanas, o que
lhe permitiu, apesar de ter nascido
de genitores de origem gurunsi,
das regiões da atual Burkina Faso
(antiga Alta Volta), receber poderes
plenos como filha de Xangô. Xangô,
orixá patrono da coroa de Ọ̀ yọ́ e que,
conforme comemora a última faixa
apresentada por Inaicyra, não somente
a acolheu mas ainda a consagrou e lhe
deu seu maior axé para fundar o novo
território yorubá no Brasil, que viria 31
a ser o Axé Opô Afonjá, fundado em
1910 na roça baiana de São Gonçalo
do Retiro. Essa admirável homenagem
de Inaicyra traz toda a alegria e o
reconhecimento dos milhares de filhos
e filhas de santos feitos diretamente ou
pelas mãos consagradas de Mãe Aninha
– que este ano completaria 154 anos
– ou pelas mãos de suas sucessoras
à frente do venerável terreiro de Opô
Afonjá, que este ano completa 113
anos. Todas elas, desde Iyá Obá Biyi,
guiadas pelo inconfundível axé e pelo
poderosíssimo oxê de Xangô.
Agora que está tudo pronto
e o convite foi lançado, entremos
todas e todos, e acomodemo-nos
para assistir e interagir com esse
maravilhoso espetáculo dos ilustres
e encantadíssimos ancestrais na
coreografia do impossível que
Inaicyra Ṣàngótòkunbọ̀ nos oferece
nesta 35a Bienal de São Paulo, ecoando
eternamente a memória da ponte
Bahia-África:
Èròyà! Ọya xirê, Ọya saré lọja, Èròyà!
Berlim, 13 de junho de 2023
32
33
34 TOKUNBÓ: SONS ENTRE MARES

Inaicyra Falcão em conversa com a curadoria

Curadoria da 35a Bienal de São Paulo: Inaicyra, nas múltiplas temporalidades


curvilíneas você dança e nos ensina a dançar. A dança sempre esteve presente
na sua vida?

Inaicyra Falcão: Eu estava conversando com o rapaz com quem


faço conversação em inglês e ele me perguntou se eu dançava
desde pequena, algo assim. Falei que desde pequena eu sou
ligada às artes, não tem essa separação. Lembro que gostava
muito de desenhar, mas eu dançava e cantava também, porque
isso está mesmo dentro da própria tradição. É a pessoa
estar cantando, dançando, recitando também, tem as próprias
comidas que estão relacionadas com as festividades, a
culinária. Tem uma série de coisas que estão todas juntas,
um universo. Agora, como eu era bem quieta na época, quando
pequena, eu gostava muito de desenhar, e lembro de pensar
em fazer arquitetura, ou coisa do tipo, mas não era o caso,
pois a pressão em ser professora primária, por causa da
independência financeira, era muito forte. Minha mãe falava
muito sobre isso, porque nesse momento a família ficou numa
situação delicada. Eu não gostava de dar aula, mas vai
acontecer algo interessante. Vou viajar pelo mundo e as
coisas sempre vão se encaixando.

É quando a articuladora de mundos se constitui como personalidade artística e


se encontra, na Nigéria?

Quando eu vou pra Nigéria, primeiramente vou com uma bolsa


de especialização. A vontade era fazer uma companhia de
dança que tivesse uma técnica relacionada com os mitos. Mas
quando eu chego em Ifé, onde fiquei primeiro, não via essas
danças. Tinha que viajar muito para o interior e não tinha
comunicação na época, na década de 1980. Estava entristecida,
mas eu, sempre atinada, percebi que todas as pessoas ao meu
redor eram doutoras e artistas também. Fui entender o que era
isso. É assim que eu faço minha entrada com meu povo na vida
acadêmica. Acontece que o departamento de arte da Nigéria
tinha muita prática também. Lá eu trabalhava com pessoas
que vinham de diferentes grupos étnicos, e você sabe que a
Nigéria é pra mais de não sei quantos grupos e eu aprendia
os passos deles, passava por mim e eu botava pro grupo todo
aprender. E sempre nos meus trabalhos eu mandava pra eles
pesquisarem alguma coisa da cidade deles. Quando comecei a
dar aula, fiquei pensando muito na minha experiência aqui na
Escola de Dança, o que foi interessante, o que não foi, os
professores. E aí vou enveredar também pela biblioteca, e é
na biblioteca da Universidade de Ibadan que vou me deparar
com as teses e dissertações de mestrado e doutorado de dança.
Foi ali que eu vi como pode variar o movimento, o movimento
mimético para o movimento mais abstrato, de onde você parte
de uma matriz – outros aí chamam motriz –, de quando você
parte de uma coisa e como você pode ir variando, reelaborando
isso de acordo com a dinâmica, com o espaço, com o tempo,
com o ritmo. A partir de então fui entendendo que o movimento 35
mimético que eu vejo nas danças, principalmente nas danças
dos orixás, a gente transcende a partir dessa variação. Todos
são movimentos do dia a dia. É a partir daí que vem a dança:
a dança é o cotidiano transformado.

Poderia comentar como esta afirmação “a dança é o cotidiano transformado”


reflete a proposta do seu livro Corpo e ancestralidade: Uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação?

Foi a partir dessa experiência do cotidiano que pude


transcender. É por isso que eu falo sempre do conhecimento,
de uma coisa que a minha mãe falava muito: o conhecimento
morre com o dono. Por isso, o conhecimento é fundamental pra
gente. Então a gente pode desenvolver uma dança que parta
de uma mitologia yorubá. Porque eu tinha visto nos Estados
Unidos, quando eu me deparei com a biblioteca e os livros
de dança moderna, principalmente da dança negra dos Estados
Unidos, cada um se inspirando nos seus problemas, falando de
sua própria vida. Ou seja, tem duas coisas importantes:
o tema e a preparação corporal. Nisso vem a questão da
própria língua falada, para falar um idioma você tem que ter
um vocabulário, que tem que coincidir com o texto que você
vai querer expressar. Assim entendi que tinha que desenvolver
uma técnica de corpo contemplando os movimentos que vão
fazer parte lá na hora do tema, quer dizer, o mito em si é o
tema, o conteúdo da história e o corpo. Então, bora rebanhar,
bora peneirar, peneirar com os ombros, com os braços, com o
quadril, com as pernas. Vamos desenvolvendo uma sequência
de ações, dessas ações que num segundo momento nós vamos
abstrair delas, vamos trazê-las dentro desse contexto que
eu falei, nessa direção, nesse nível. Pensei: esse é o
caminho! Vou desenvolver e pesquisar lá na comunidade: no
mestrado vou falar sobre a dança ritual na Bahia, como
acontece etc., e no doutorado eu vou exemplificar como se
pode fazer isso. Ou seja, vou sugerir que não é um caminho
só, são vários caminhos, que não é algo dogmático. Esse é o
motivo pelo qual o livro se chama Corpo e ancestralidade: Uma
proposta pluricultural de dança-arte-educação.

Existem muitas definições possíveis para a noção de coreografia. Poderia


comentar um pouco como você enxerga a sua relação com a coreografia?

O coreógrafo, para mim, é um intérprete, um artista: ele


fala da vida dele. Tudo isso são pontos de vista e são as
experiências das pessoas. Quem vai me dar primeiramente
isso foi a minha estadia nos Estados Unidos, onde eu fui
realmente só pra estudar. Eu chego lá por causa do Clyde
Morgan, quando uma vez mostrou um vídeo no qual a maioria
dos bailarinos eram negros e as coreografias tinham muitos
gestos do cotidiano. Ela, Judith Jason, estava dançando,
aparece ela limpando o chão, ela fazendo isso, e misturando,
dialogando com outros movimentos, com outras linguagens.
Então quando eu vi isso na graduação, ficou muito na minha
cabeça. Naquela época era muito mais difícil, porque muitos
livros eram em inglês, e não tinha tanta bibliografia sobre
dança. E quando eu vou para o Lincoln Center e começo a
frequentar a biblioteca, começo a ler muitas referências
da dança moderna, antologias grega, do Egito, da Índia, e
elas me fizeram perceber que estava todo mundo falando de si.
Pensei: “Eu não tenho nada a ver com isso!”. Quando vi que
36 muitas trabalhavam com o mito enquanto narrativa, eu falei:
“Já que tem o mito, em vez de falar do mito grego eu posso
falar do mito yorubá”, que é o mito que tenho desde pequena,
desde que eu nasci, que eu conheço. Nesse momento também
percebi que cada uma dessas referências tem uma técnica,
algumas técnicas dogmáticas – que não é o meu caso –, outras
não. Então eu disse: “Tem que ter uma técnica”. Quando eu
digo “peneira”, eu digo para o outro peneirar também, e às
vezes cada um tem um exemplo desse mimetismo, dessa ação
mimética, e cada um vai aprendendo um com o outro, criando
muitas vezes certa sequência. Por exemplo, “torcer”, pegar um
tecido e torcer. Tem pessoas que torcem cada uma de um jeito,
e deixa a ação ir espalhando pelo corpo, e vai passando pelo
corpo, até você estar toda torcida, aí começa, vamos fazer
isso mais rápido, vamos fazer isso em um tempo, depois bem
lento. Ou seja, o tempo todo eu acho saudável e criativo,
porque você como professor, como orientador naquele momento,
você também está criando, não está repetindo, estão chegando
coisas novas e você está vendo lá e também está trazendo, por
isso eu digo que foi lá na Nigéria, porque ali vai realmente
me ajudar a ter mais essa troca, mais acentuada. Eu diria
que o trabalho é muito mais uma questão de autoestima, é
uma questão de valorizar a sua história, de onde você vem,
trazendo essas coisas que às vezes… a gente, era o que
eu sentia, não era contemplado na sala de aula. Porque as
técnicas eram assim, como você mencionou, cartesianas, como
eram o balé clássico e outras técnicas. Talvez precise também
delas, às vezes precisa de uma certa disciplina. Eu também
tinha certa disciplina. Eu dizia “peneirar com os ombros”,
dizia “vai subindo e vai peneirando com os ombros”, depois
“solta peneirando com os ombros”, repete mais umas duas,
três, quatro vezes, nisso tem uma técnica. É claro que eu
não ficava em cima, dizendo que tem que ser assim ou assado,
porque eu estava em busca da transcendência, de pegar esse
passos e você ou o outro criar algo a partir disso, a partir
dessa temática do que fosse desenvolvido, que depois o aluno
realmente escolheria.

A partir dessa imagem do peneirar, podemos observar como o movimento no


cotidiano constrói a narrativa histórica. Sabemos como a história da dança
ocidental constrói uma narrativa que privilegia largamente, por exemplo, o modo
como o trabalho mecânico nas fábricas influenciou e inovou o movimento do
corpo, sem portanto considerar os corpos que dançavam a partir do trabalho
forçado e apesar dele. Ao mesmo tempo, quando você narra a sua história e
fala sobre o mito, nos deparamos com a riqueza cultural vivida dentro de casa e
do terreiro, e como a dança incorpora e transfere conhecimento a partir dessas
ancestralidades.

Sim, esse lugar é ancestral porque essa gestualidade toda,


como eu digo, é do homem. Por isso que eu transcendi a parte
das danças religiosas dos orixás. O orixá foi um ser humano
em um tempo imemorial. Nesse tempo imemorial a gente usava
o corpo pra tudo. Então essas danças miméticas, eu me lembro 37
quando a gente era pequena, que não tinha tanta coisa, mesmo
no terreiro, não tinha máquina pra depenar galinha, as
senhorinhas estavam lá na pedra tirando a pele do feijão,
depois estavam ralando feijão. Então todos esses movimentos
que a gente vê no terreiro e nas sociedades mais remotas,
nas danças folclóricas, nas danças do caboclinho, você vê
toda a coisa do cortar cana, do ceifar, muito desses gestos
que a gente vê nas danças dos orixás. Mas não vamos esquecer
que eles são arquétipos, são os ancestrais, foram seres
humanos e algumas danças representam as características
deles. Então é a dança do homem, é a nossa dança. Eu nunca
me esqueço de uma aluna que disse assim: “Poxa, essa dança
está dentro de mim e eu não sabia”. Então é como puxar fios
que estão adormecidos, isso estimula essa coisa de trazer o
que está dentro de você e do que você viu até de uma forma
remota. Outro dia eu falava assim: “No lamaçal a gente bota
o pé e às vezes tem aquele tipo de lama que você escorrega”.
A minha amiga: “Mas Inaicyra, essa gente nunca nem tirou
o pé do sapato”. Quer dizer, tem isso também, porque hoje
em dia é um outro momento que a gente vive. Antes a gente
encerava, botava pano pra passar cera no chão, se ajoelhava.
Quer dizer, não precisava nem tanto exercício porque já se
exercitava. As pessoas mais velhas já vinham se exercitando.
Quando eu me lembro da minha infância foi muito rica nisso,
pulava corda, salto em altura, amarelinha. Era algo muito
rico e tinha essa coisa do barro, que quando chovia ficava
assim, parecendo massapê e a gente ficava escorregando. Outro
dia eu vi até no TikTok umas crianças que escorregavam na
lama. É interessante, você vê que seu pé vai enterrando,
traz essas sensações. Então era como eu dizia, “Tem que
fazer laboratório, vocês têm que lavar roupa”. Eu me lembro
de um tempo que a gente trabalhou essa questão da lavadeira
e que uma das meninas fez uma coreografia baseada na máquina
de lavar, quer dizer, a dinâmica que acontece no lavar. Eu
achei muito interessante, porque era o cotidiano, o dia
a dia delas, e ficou lindo, ficaram assim bem mecânicos os
movimentos, o rodar, o secar, o giro, diferentes formas do
giro. Eu acho muito muito enriquecedor porque você vai trazer
pra sua vida.

Você diz que a tradição é um universo onde tudo habita: dança, canto, comida,
imagem. Após anos dedicados exclusivamente à dança, como você percebe a
relação entre a sua voz e o canto?

A tradição é assim: a gente está cantando, está batendo


palma, tem tudo junto. Primeiramente eu estive centrada
na dança. Mas eu também tinha aula de música e instrumento
com um professor que regia o coral de São Bento. As aulas
eram parte do curso de graduação em dança. A dança sempre
está atrelada com a música, comigo. E ele, quando fez os
exercícios, me chamou a atenção sobre a extensão da minha
38 voz, que eu poderia me dedicar também ao canto, mas eu tenho
essa coisa de ser centrada. Então na época eu só dançava:
dançava de manhã, à tarde e à noite. Era dança, sim, mas na
dança folclórica que eu fazia no Olodumaré a gente cantava,
o movimento estava atrelado ao canto. Tanto que uma aluna
minha, depois que eu fui dar aulas na Unicamp [Universidade
Estadual de Campinas], perguntou como é que poderia cantar
e dançar, e eu disse assim: “É uma técnica que eu adquiri.
Na prática não sei nem como lhe explicar, porque aprendi
dançando”.
Se tivesse que ensinar uma pessoa, eu não saberia
dizer, porque foi na própria prática do fazer. Realmente a
técnica é sempre assim, na repetição que você vai adquirir
a própria técnica. Então, como eu dizia para ela, você tem
que cantar, pular e dançar. E assim, com o tempo, você vai
adquirir essa destreza.

Por conta dessa relação da repetição?

É, justamente. Quer dizer, essa foi a minha história.


O cantar estava na capoeira: [cantando] “Pisa na linha,
levanta o boi e levanta meu boi do chão”. Tinha uma
coreografia, a gente ia para o lado e batia palma, tudo junto.
Na escola de dança não, as aulas eram mais improvisação,
embora eu procurasse sempre trazer alguma coisa desse meu
cotidiano. Na minha primeira coreografia criei a história
de um mito. Pedi a máscara do maculelê emprestada do grupo
folclórico e trouxe. Sempre estava inovando alguma coisa.
Porque justamente a gente traz o que a gente tem, a gente
só dá o que tem. Então, quando a gente pensa naquela Bahia
antiga, tinha as pessoas que vendiam cantando. Gostava da
senhora que vendia fígado quando a gente era pequena, e
[as crianças] tinham um medo dela, que vinha com o burrinho
e cantando e eu achava lindo o canto dela, que dizia “Figo e
mocotó” [Inaicyra fala em tom de canto lírico]. Passou, fui
para os Estados Unidos, depois, quando eu chego na Nigéria,
vou entrar no coral da universidade e começo a cantar músicas
em yorubá e os clássicos europeus também. Tem uma opereta,
eu participo dessa opereta, que poderia dizer que foi a minha
estreia como cantora lírica. A partir daquele momento, vou me
dedicar e mergulho inteira, vou fazer aula de solfejo, vou
fazer aula de piano, vou comprar o piano, vou fazer aulas
semanalmente com Suzel Cabral e outros professores e começo
a participar de um grupo, a Associação Brasileira “Carlos
Gomes” de Artistas Líricos. Depois começo a cantar
em eventos e nos congressos da Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil (Secneb). Os anos foram passando, até
que vieram os anos 2000, e o convite para fazer o CD para
Mãe Senhora nas comemorações de 500 anos do Descobrimento do
Brasil. Respondi: “Ah, mas tem que ter um acompanhamento,
um repertório que seja porteira para fora, porque o meu
trabalho é da porteira para fora”. Então chegamos no Beto
Pellegrini. A partir dali foi um trabalho árduo, porque ele
transcreve a partir do que eu canto. Ele vai tirar primeiro
no violão para depois fazer os arranjos. Porque, se for ver
como o povo canta já dentro do terreiro, é diferente, já tem
alguma outra coisa. Eu não consigo porque eu já estou dando
uma interpretação do que eu vi, eu não repito, porque já é
a minha forma de cantar. Então a música vai chegar porque o
desejo está ali.

39
Esta célebre frase de Mãe Senhora, “da porteira para dentro, da porteira para
fora”, é muito importante, pois ajuda a explicar como se produz e se transmite o
conhecimento nos terreiros e outros espaços de herança africana no país. Por
meio desses saberes que fazem e se refazem no cotidiano, a porteira acaba por
ser a imagem que determina o que é o conhecimento litúrgico, e que, portanto,
deve ser salvaguardado, e o que pode ser compartilhado intelectualmente ou
reelaborado criativamente para toda a sociedade. Poderia então nos contar um
pouco sobre a origem do nome “Tokunbó”?

Quando eu fui pra Nigéria, logo que cheguei lá fui chamada


pelo professor Wande Abimbola, junto com o professor Olabiyi
Yai, as pessoas com quem fiquei, de Tokunbó, quer dizer,
“aquela que voltou do outro lado do oceano”. Porque okun é o
“mar” e bó é “retorna”, ou seja, cruzou o oceano. Aí começaram
a me chamar de Tokunbó e o apelido Tokis. Quando retornei,
fui frequentar o Ilê Axipá, na Bahia, onde os ancestrais
são tratados em títulos e o meu continuou sendo Tokunbó, ou
seja, eu fico pairando. Primeiramente fui pra Nigéria, para
onde eu venho de fora, depois eu venho para aqui e assim
eu vim de lá. Tokunbó: eu fico assim, pairando pelos mares.
Aí a gente chegou, eu conversei também com o damaso bueno
e eu falei: “É entre sons e mares”, porque essas músicas
que estou interpretando têm a ver com essa troca, a relação
com a Nigéria, com a cultura yorubá, mesmo as que estão em
português, as composições de Beto Pellegrino e Pedreira Lapa.
Tem também a questão do orixá que a gente se relaciona, tanto
que no artigo do Félix Ayoh’OMIDIRE1 ele menciona isso, o
Xangô Tokunbó, que estou relacionada ao orixá Xangô, o Xangô
que retornou dos além-mares, da Bahia para Ifé, Nigéria.

Essas contradições sobre nossas identidades em diáspora, sobre como


elas não são fundações monolíticas, mas, antes disso, estão sempre em
construção, encontra na sua história de fluxos com a Nigéria como educadora
um aprendizado que se construiu com o corpo todo, com um corpo coletivo,
expandindo estereótipos, fantasias e ficções que muitas vezes reproduzimos
sobre o continente africano.

A vida é interessante, uma coreografia do impossível, porque


inicialmente eu não queria ensinar, mas realmente me encontro
num contexto tão propício, tão rico, que vou ensinar.
Também era importante para mim, pois eu tinha a meta da
sobrevivência e tudo mais. Mas o primeiro momento é muito
lúdico, eu me senti própria. Naqueles seis anos na Nigéria
eu explodi de tudo, porque não tinha censura, só recebi
elogios. Sempre gostei de fazer tudo meu bem-feito e tudo
mais. Assim, os chefes de departamento tinham tempo de ver,
diziam “Os alunos estão muito contentes com o seu trabalho”.

1 Ver mais no texto “ÈRÒYÀ Ṣàngótòkunbọ̀! Ancestralidade e gênio


criativo Axipá na arte de Inaicyra Falcão”, também publicado
neste volume.
40 Claro que faltava água, luz, transporte, era aquele inferno
cotidiano, mas na relação humana, com o povo, a gente recebia
muito incentivo. No início eu achava tudo estranho, mas no
final eu já estava igualzinha. Acho que herdei gestos: tudo
é um drama, você na plateia, o povo lá na cena. Tive que
me reeducar quando cheguei na Unicamp. Às vezes já sabiam
quando eu estava na plateia, eles se assombraram comigo,
também me assombrei com eles. Antes eu tinha uma certa
timidez, um pouco de reserva, mas depois da Nigéria me deu
segurança. Realmente, você fica num lugar onde se coloca
do jeito que você é. Quando cheguei eu achava um absurdo:
“Gente, por que eles falam assim, quando a pessoa está
falando [no palco]?”. Eu entendi que a plateia participa,
não fica só assistindo. A partir daí vem essa integração.
Depois disso eu não vou assistir nada de música parada, vou
estar dançando na cadeira, vou estar me movimentando. Até
minha professora de canto dizia “Poxa, Inaicyra, você é a
única que faz exercícios se movimentando”. Uma colega minha
na plateia disse: “Ah Inaicyra, você tem que ter cuidado”,
porque naquela época as pessoas não se moviam nesse tipo de
canto. Foi assim que decidi dizer “Inaicyra interpretando”,
ou seja, é o meu ponto de vista. Foi muito boa a observação
dela, pois nunca concordei: o movimento é tão da pessoa. Eu
gosto da palavra “inspirada”, porque o movimento é seu. Por
mais que eu queira, eu não posso fazer igual, principalmente
um movimento que vem carregado de toda uma história, de todo
físico, de tudo. Era o que acontecia com a gente negra.
Eu me lembro que na escola de dança a única que saiu com
o diploma de “dança afro” fui eu. Por ser negra, qualquer
coisa que eu fizesse era “afro”. Para a minha alegria e
melhor entendimento, quando eu cheguei na Nigéria e dancei
na Universidade de Ibadan a mesma coreografia, Origens, eles
não achavam que tinha a ver com eles, ninguém dizia que era
“afro” nem nada “clássico”. Os alunos ficavam nas minhas
aulas, “Eu quero dançar igual você”, ou seja, eles não viram
em movimento nenhum que eu fiz alguma referência à cultura
deles. Então isso é muito interessante. Eu acho que a dança
é uma arte altamente complexa, porque ela e o canto carregam
sua estrutura física, quem você é, anda tudo junto, você
não pode distorcer, não tem como, você não dissocia. Então
depende do que está em cada um, do que está na cabeça de
cada um.

No seu ponto de vista, como o cenário da dança tem se transformado?

Nas minhas experiências mais recentes, eu não gostei


muito, não. Os alunos já estão todos em outra, todo mundo
é “meu, meu”, tudo é “meu processo”, os copos estão todos
cheios, não tem mais espaço pra botar nada. Ao mesmo tempo,
acho que houve um crescimento das companhias de dança,
principalmente em São Paulo. Tem muitas companhias de dança
negra que trazem linguagens contemporâneas. Não está mais
aquela dança só de repetir a dança do orixá. Acredito que isso
foi o início, a gente agradece a Mercedes Baptista, por exemplo,
mas agora se dança tudo. Como ouvi certa vez, Don’t tell me who
I am. Quer dizer, não precisa me dizer quem eu sou, já sei que
eu sou. Quando dizem “a bailarina ou a cantora negra Inaicyra”,
precisa disso? Não está todo mundo vendo? Não sei se nessa
encarnação ainda vou escutar essa mudança, acho que não.
Talvez leve um tempo. Tem coisas que são muito difíceis,
a mudança é lenta.

41
42
44 COLABORAÇÕES

damaso bueno da Universidade Federal


de Goiás (UFG),
Artista, pesquisador, o programa de residências
professor e jardineiro, com transestéticas Conexão
experiência em gestão e Samambaia e a mostra
produção. Doutorando expandida de artes Manga
em Artes Cênicas pela de Vento, ambos fruto de
Universidade de Brasília seu compromisso com a
(UnB), onde integra dinamização dos circuitos
o grupo de pesquisa de difusão das artes em
Poéticas do Corpo. Mestre seu contexto. Integra
em História Cultural. a Red Descentradxs:
Coordena, junto à Escola descentrar la investigación
de Música e Artes Cênicas en danza.
Félix Ayoh’OMIDIRE vivência da tradição e
a reelaboração dessa
É professor titular de tradição de origem na
estudos afro-latinos- sociedade contemporânea
-americanos e da diáspora são elementos
yorubana na Obafemi constituintes da pedagogia
45
Awolowo University, transcendental em arte-
Ile-Ifé, Nigéria. Desde -educação que ela propõe.
2002, atua como professor Sua principal obra é Corpo
de língua, cultura e e ancestralidade: Uma
civilização yorubanas proposta pluricultural
na Universidade Federal de dança-arte-educação
da Bahia (UFBA), onde (2021). Seu trabalho
coordena o curso de artístico inclui o álbum
extensão em língua e OKAN AWA: Cânticos
cultura yorubá pelo Núcleo da tradição yorubá
Permanente de Extensão (2000) e Sementes
em Letras do Instituto de ancestrais (2002),
Letras (Nupel-ILUFBA). além de publicações
Atualmente é professor e performances que
visitante de estudos da contribuem para o
Diáspora africana na entendimento da obra do
Humboldt-Universität zu artista cênico, orgânico e
Berlin, na Alemanha. plural, o qual se ancora
na dinâmica de uma
Inaicyra Falcão cultura tradicional e
contemporânea.
É cantora lírica,
educadora e pesquisadora
comprometida com
a difusão da cultura
africana e afro-brasileira.
A possibilidade de
identificação do sagrado no
cotidiano e do cotidiano
no sagrado, a reafirmação
da história pessoal na
46
47
TEXTOS E ENTREVISTA 35a Bienal de São Paulo – coreografias
Curadoria 35a Bienal de São Paulo do impossível
Félix Ayoh’OMIDIRE
Inaicyra Falcão Curadoria: Diane Lima, Grada Kilomba,
damaso bueno Hélio Menezes, Manuel Borja-Villel
Assistentes de curadoria: Sylvia
EDIÇÃO E COORDENAÇÃO EDITORIAL Monasterios, Tarcisio Almeida
Tarcisio Almeida
Para mais informações sobre a
PREPARAÇÃO E REVISÃO 35a Bienal de São Paulo, acesso aos
Cristina Yamazaki áudios do projeto e a conteúdos
Ricardo Liberal complementares: 35.bienal.org.br

PRODUÇÃO
Equipe Fundação Bienal de São Paulo
CRÉDITOS DE IMAGENS
TRANSCRIÇÃO
Maria Luiza Meneses pp. 14-15, 32, 33, 46-47:
Acervo pessoal de Inaicyra Falcão.
DESIGN GRÁFICO Edição: Leo Monteiro.
Namibia Chroma
pp. 6-7, 43:
PRENSAGEM Grupo de dança da UFBA, acervo
Lombra Records pessoal. Edição: Leo Monteiro.

pp. 19, 22, 23:


Ayán – Símbolo do Fogo. Foto: Roberto
Berton. Edição: Leo Monteiro.

CRÉDITOS MUSICAIS

OBÁ BIYÍ
(Beto Pellegrino/Luiz Ariston)

Voz: Inaicyra Falcão


Produção musical: Beto Pellegrino e
Luciano Salvador Bahia
Direção musical: Beto Pellegrino e
Luciano Salvador Bahia
Produção executiva: Josi Acosta
Arranjo: Beto Pellegrino e Luciano
Salvador Bahia
Programações, sintetizadores e violão:
Luciano Salvador Bahia
Vocais: Tita Alves, Janaína Carvalho e
Luísa Pellegrino
Bateria virtual: Nairo Ello,
Estúdio Nairo Studio
Gravado, mixado e editado por Luciano
Salvador Bahia no Estúdio 40.000
SEGREDO DAS FOLHAS Vocais: Tita Alves, Janaína Carvalho e
(Beto Pellegrino/Pedreira Lapa) Luísa Pellegrino
Bateria virtual: Victor Brasil
Voz: Inaicyra Falcão Percussão: Gabi Guedes
Produção musical: Beto Pellegrino e Gravado, mixado e editado por Luciano
Luciano Salvador Bahia Salvador Bahia no Estúdio 40.000
Direção musical: Beto Pellegrino e
Luciano Salvador Bahia
Produção executiva: Josi Acosta
Arranjo: Beto Pellegrino e Luciano © Copyright da publicação: Fundação
Salvador Bahia Bienal de São Paulo. Todos os direitos
Programações, sintetizadores e violão: reservados. As imagens e os textos
Luciano Salvador Bahia reproduzidos nesta publicação foram
Vocais: Tita Alves, Janaína Carvalho e cedidos por artistas, fotógrafos,
Luísa Pellegrino escritores ou representantes legais
Efeito vocal: Beto Pellegrino e são protegidos por leis e contratos
Bateria virtual: Nairo Ello, de direitos autorais. Nenhum uso
Estúdio Nairo Studio é permitido sem a autorização da
Percussão: Gabi Guedes Bienal de São Paulo, dos artistas e
Gravado, mixado e editado por Luciano dos fotógrafos. Todos os esforços
Salvador Bahia no Estúdio 40.000 foram feitos para localizar os
detentores de direitos das obras
reproduzidas, mas nem sempre isso
OBÁ MORELÊ/OKINININ foi possível. Corrigiremos prontamente
(Inaicyra Falcão/Beto Pellegrino – quaisquer omissões, caso nos sejam
adaptação) comunicadas. Esta publicação foi
organizada por ocasião da 35ª Bienal de
Voz: Inaicyra Falcão São Paulo – coreografias do impossível,
Produção musical: Beto Pellegrino e realizada entre setembro e dezembro de
Luciano Salvador Bahia 2023, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo,
Direção musical: Beto Pellegrino e Parque Ibirapuera, São Paulo.
Luciano Salvador Bahia
Produção executiva: Josi Acosta
Arranjos: Beto Pellegrino e Luciano
Salvador Bahia
Programações e sintetizadores: Luciano
Salvador Bahia
Violão: Beto Pellegrino
Vocais: Tita Alves, Janaína Carvalho e
Luísa Pellegrino
Bateria virtual: Nairo Ello,
Estúdio Nairo Studio
Percussão: Gabi Guedes
Gravado, mixado e editado por Luciano
Salvador Bahia no Estúdio 40.000

INFINITUDE – ORÍKÌ À OBÁ TOSSI


(Inaicyra Falcão/Beto Pellegrino)

Voz: Inaicyra Falcão


Produção musical: Beto Pellegrino e
Luciano Salvador Bahia
Direção musical: Beto Pellegrino e
Luciano Salvador Bahia
Produção executiva: Beto Pellegrino e
Nestor Sales Jr.
Arranjos: Beto Pellegrino e Luciano
Salvador Bahia
Programações e sintetizadores: Luciano
Salvador Bahia
Violão: Luciano Salvador Bahia
Violoncelo: Cândida Lobão
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Falcão, Inaicyra
Tokunbó : sons entre mares / Inaicyra Falcão. --
1. ed. -- São Paulo : Bienal de São Paulo, 2023.

ISBN 978-85-85298-82-1

1. Artes 2. Bienal de São Paulo (SP) 3. Cultura


afro-brasileira 4. Performance (Arte) - Exposições
I. Título.

23-165894 CDD-700.74

Índices para catálogo sistemático:

1. Artes : Catálogos de exposições 700.74

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Você também pode gostar