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Música popular, valor e identidade no forró eletrônico

do Nordeste do Brasil
Popular music, value and identity in eletronic forró of NorthEast of Brazil

Felipe Trotta 1
UFPE - Brasil

Resumo
O forró é um dos gêneros musicais mais significativos da região Nordeste do Brasil.
Recentemente, esta prática tradicional tem se transformado de várias formas, modificando a
sonoridade original do forró e inaugurando um novo estilo, associado a juventude, sexo,
prazer e dança. Este processo gerou uma forte desagregação entre os forrozeiros tradicionais,
resultando numa intensa luta por legitimidade em torno dos critérios de valoração da música
popular na cultura massiva.
Palavras-chave: música popular; valor cultural; gêneros musicais; forró

Abstract

The music genre known as forró is a typical musical expression of Brazilian NorthEast region.
Recently, this traditional practise is being changed in several ways, transforming the original
sound of forró in a new style, associates with younth, sex, pleasure and dance. This process
has generated a deep disagreement among the traditional "forrozeiros", resulting in a strong
legitimacy fight upon the value criteria of popular music in the mass culture.

Key words: popular music, cultural value, music genres, forró

Introdução
O forró é um dos gêneros musicais mais representativos na música brasileira, sobretudo
na Região Nordeste. Tendo se estabelecido no mercado musical a partir das décadas de 1940 e
1950 com o sucesso do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o forró, então chamado de
“baião”, destaca-se por uma narrativa da região Nordeste baseada na construção simbólica do
“sertão” e do “sertanejo”, reconhecido como eixos de autenticidade do povo nordestino.
Sonoramente, o forró é acompanhado basicamente pelo trio formado por sanfona, zabumba e
triângulo, e suas letras descrevem “jeito de ser” do nordestino-sertanejo.

1
Doutor em Comunicação e Cultura e Mestre em Musicologia, atua como professor e vice-coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE – Brasil), onde
realiza pesquisa sobre forró desde 2007. trotta.felipe@gmail.com

1
O “modelo” estético do forró permaneceu relativamente fiel a esse referencial
gonzagueano até a década de 1990, quando começam a aparecer no mercado musical
nordestino alguns grupos de forró que manifestam explícita intenção de processar uma
“modernização” no gênero. Na vertente estilística batizada como “forró eletrônico” ou
“estilizado” a sanfona se associa não exclusivamente com zabumba e triângulo, mas também a
teclado, bateria e naipes de metais, numa aguda preocupação em aproximar-se do estilo da
música pop internacional. O resultado é uma sonoridade que pouco se assemelha à encontrada
nas gravações de Luiz Gonzaga, vinculando o novo estilo a uma modernidade jovem,
notadamente ausente no repertório consagrado do forró.
O grande impacto do forró eletrônico no cenário musical do Nordeste atualmente fez
surgir uma outra categoria mercadológica chamada de “forró pé-de-serra”, identificada ao
estilo cunhado por Gonzaga, que reivindica por isso uma estratégia de valoração pela
“tradição” e “autenticidade”. O embate entre o pé-de-serra e o eletrônico atualiza uma
complexa disputa estética e valorativa que contrapõe um certo referencial de tradição com
práticas reconhecidas como exógenas e diluidoras. Por trás desse conflito de gostos e
temporalidades específicas, disputa-se espaço de circulação de idéias e pensamentos no
mercado musical, que colabora para a construção de novos modelos de identidade nordestina
e brasileira, com toda sua riqueza, suas ambigüidades e contradições

O forró e a “saudade do sertão”

É possível afirmar que o referencial simbólico, sonoro, imagético, discursivo e afetivo


de quase todo o repertório do forró, desde os anos 1940 até hoje, está fundado na valorização
da idéia de sertão. A noção de campo, em oposição à cidade é, portanto, constitutiva do
gênero.
O significante campo e seus múltiplos significados, costuma ser associado a formas
de vida social consideradas naturais, plenas de paz, simplicidade ou inocência. Por
outro lado, o segundo termo do binômio, e seus corolários, é vinculado à idéia de
centros de empreendimento, saber e progresso. De igual forma, têm-se combinado
importantes associações negativas ora a um ora a outro: a cidade como espaço do

2
egoísmo, da competitividade, da ambição; o campo como lugar do atraso, da
ignorância, da rotina 2 .

Pode-se dizer que o forró musicou essa poderosa simbologia do sertão-campo, que desde
o final do século XIX representa na identidade nacional uma certa autenticidade perdida,
conferindo-lhe uma base instrumental, um conjunto de narrativas e memórias eternizadas no
seu repertório compartilhado. Sob o ponto de vista da estrutura sonora, a combinação
instrumental de sanfona, triângulo e zabumba, criada e utilizada exaustivamente por Luiz
Gonzaga, passou a responder pela própria idéia do forró, tornando-se uma espécie de “santa
trindade” do gênero, responsável por seu reconhecimento no cenário musical. Ao som de sua
sanfona, alguns clássicos do repertório foram divulgados em larga escala no país, inaugurando
um conjunto de memórias musicais e afetivas compartilhadas por grande parte da população
brasileira. Seu jeito especial de tocar ruralizou a sanfona, estabelecendo uma relação
indissociável entre o instrumento e o ambiente sociocultural do sertão. As temáticas
sertanejas, identificadas com uma certa pureza e simplicidade rural, a partir de então, tinham
um acompanhamento instrumental determinado.
Reforçando ainda a lógica rural-sertaneja, é possível identificar na obra seminal de Luiz
Gonzaga uma construção narrativa onde as ações humanas são fortemente marcadas por sua
relação com a natureza, que corresponde a um tipo de administração temporal no qual os
ciclos de trabalho e festas relacionados ao plantio e à colheita determinam períodos de
prosperidade, carência, tensão, trabalho e ócio 3 . Assim, os elementos da natureza são
evocados nas canções de diversas maneiras seja através da descrição paisagens, lugares e
cenários, da observação de animais ou da narrativa de angústia pela espera de mudanças
climáticas 4 .
A temporalidade rural opõe-se à velocidade das cidades, onde pessoas, automóveis,
notícias e emoções circulam apressadamente por seus espaços físicos apertados e onde é
proibido perder tempo “olhando pro céu”. No entanto, o sertão gonzagueano não está

2
MENDONÇA, Sonia (1997). O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec, p. 9.
3
VIEIRA, Sulamita (2000). O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume,
pp. 195-198.
4
LIMA, José Mário Austregésilo (2005). A oralidade e a imagética em Luiz Gonzaga. Dissertação de mestrado
Recife/PE: PPGCOM - UFPE, p. 151.

3
construído exclusivamente sobre uma noção mais “natural” do tempo, mas também vincula-se
à idéia de saudade. Imaginado a partir de referenciais urbanos, o sertão do repertório do forró
encontra-se eternamente distante no tempo e no espaço. Sua tensão emotiva reside
basicamente na dicotomia entre o aqui do cantador e o lá do ambiente idealizado nas canções 5 .
Um exemplo particularmente contundente da expressão musical dessa saudade é o início da
música No meu pé de serra (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), lançada em 1946:

Lá no meu pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão

A expressão pé de serra utilizada nesta canção servirá de inspiração, décadas mais tarde,
para designar a vertente estilística do gênero mais estreitamente identificada com esta origem
simbólica. A localidade mencionada na canção situa-se numa espécie de “interior do interior”,
onde a única referência possível é a proximidade com a serra. Por outro lado, trata-se de uma
distância apenas física, uma vez que o “coração” do personagem continua no local.
Desenvolve-se aqui uma tensão emotiva entre a distância real e a proximidade afetiva, que se
tornará constitutiva do imaginário do forró.
Para o semiólogo da canção brasileiro Luiz Tatit, um dos grandes motivos para a
projeção comercial da obra de Luiz Gonzaga era exatamente o seu “tom rural”, que
demonstrava para os empresários do ramo que “havia uma lacuna a ser preenchida no
empreendimento popular das emissoras: o grande contingente de público que migrava do
nordeste para trabalhar na capital” 6 . Assim, a tensão entre campo e cidade se transformava em
um segmento de mercado urbano temperado com sabores do sertão nordestino. Trata-se,
portanto, de uma música que, “saindo do sertão para a cidade, reinventa um sertão pé-de-serra,
um sertão-lembrança, um sertão cartão-postal, um sertão-paraíso. Um sertão agora visto pelos
olhos de quem partiu, mirou a cidade e mergulhou num mundo maior” 7 .

5
VIEIRA, op.cit., p.147.
6
TATIT, Luiz (1996). O cancionista. São Paulo: Companhia das Letras, p. 149.
7
VIEIRA, op.cit., p. 90.

4
Em meados do século passado, as narrativas do sertão cantadas no repertório
gonzagueano, quase todo composto em parceria com Zé Dantas ou Humberto Teixeira,
ecoavam de forma altamente expressiva na memória de milhares de migrantes, que
compartilhavam os significados, as paisagens e as imagens. Colaboravam, assim, para a
consolidação de uma imagem de Nordeste, estreitamente vinculada à idéia de sertão e
apontando inexoravelmente para o passado, para a memória e para a saudade. O baião será a
“música do Nordeste”, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. Usando o
rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação do baião com o
Nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta
sensibilidade regional que havia emergido nas décadas anteriores 8 .
A ênfase no aspecto regional facilitou a ocupação de um filão mercadológico que
respondesse a essa demanda. Nesse sentido, a vertente comercial inaugurada por Luiz
Gonzaga foi trilhada por conterrâneos seus, com relativo sucesso, sedimentando a criação de
um novo gênero musical baseado na referência rural-sertaneja. Nomes como Jackson do
Pandeiro, Marinês, Trio Nordestino, entre outros, tornaram-se ícones do gênero forró,
coadjuvando Luiz Gonzaga na criação de um conjunto de “regras de gênero” 9 que
transformaram o forró numa categoria reconhecida pelo conjunto da sociedade.
É importante sublinhar que o referencial sertanejo que moldou a construção do gênero
musical forró sempre foi acompanhado por uma estratégia comercial visual de absorver signos
deste universo. O chapéu de couro e as paisagens rurais compõem parte importante deste
imaginário, reforçando a identificação simbólica entre a prática musical do forró e as
referências à idéia de sertão. Outro aspecto altamente relevante na caracterização do gênero e
sua identificação com a região Nordeste e com o ambiente do sertão é sua perspectiva
masculina.

8
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de (2006). A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, p. 155.
9
FABBRI, Franco (1981). “A theory of music genres: two applications” In: Popular music perspectives.
Göteborgn e Exeter, p. 52.

5
O forró é lugar onde os homens fruem a presença das mulheres e exercem
ostensivamente sua própria masculinidade, afirmando-se como verdadeiros machos
perante as fêmeas e perante outros homens. A dança, assim como a briga, é um
momento de comprovação do vigor físico e da plenitude sexual 10 .

Desta maneira, reforça-se um componente moral conservador na prática musical


característica da região, em perfeita ressonância com uma certa rigidez de papéis sociais
determinados por um forte patriarcalismo bastante presente em ambiente rurais.
Uma vez criada comercialmente a referência básica do gênero, o repertório consagrado
se consolida como uma fonte de elementos musicais e simbólicos para reconhecimento e
caracterização do forró. Articula, dessa forma, uma memória musical e afetiva, cadastrando
tais elementos e relacionando-os a sentimentos, valores, pensamentos e visões de mundo
compartilhados por aqueles que se identificam e admiram o gênero. Dentre esses elementos,
podemos destacar a importância do instrumental baseado na sanfona, zabumba e triângulo e a
temática rural-saudosista, concebida a partir da tensão entre a idealização do sertão e a
realidade da produção musical urbana.
Como símbolo representativo mais importante, o “pé de serra” vai batizar esse conjunto
de simbologias, opondo a vertente tradicional do forró a outras tendências estilísticas que
surgiram no mercado a partir do início da década de 1990. O forró pé de serra se transforma
numa categoria que agrega nomes como Maciel Melo, Dominguinhos, Santanna e Petrúcio
Amorim, que reiteram em várias músicas sua filiação afetiva e emocional ao universo
simbólico do sertão. Um exemplo emblemático desta simbiose atual é a canção Cheiro de nós
(Nanado Alvez/ Ilmar Cavalcante), gravada por Santanna em 2001:

Ainda sinto o cheiro bom


Terra molhada já secou mas ainda cheira
Menino grita pendurado na porteira
O pai já vem trazendo o gado pra trancar
(...)
É como cheiro de saudade
Que na verdade nunca vai sair de mim
Anda comigo desde os tempos de menino
Acompanha o meu destino
Me faz tão feliz assim

10
MATOS, Claudia (2007). “Namoro & briga: as artes do forró” In: O charme dessa nação: música popular,
discurso e sociedade brasileira. Nelson Barros da Costa (org.). Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Editora, p.
433.

6
Com um acompanhamento baseado na “trindade” da sonoridade do forró, somado a uma
estrutura harmônico-melódica recorrente em canções consagradas do repertório, a letra
enaltece o sentimento de saudade através do cheiro da terra molhada, numa valorização
intencional e explícita do ambiente rural. Com isso, aciona uma determinada bagagem musical
e afetiva ao utilizar elementos musicais e poéticos previamente empregados na sedimentação
do gênero, “anáfonos” 11 aos encontrados em canções conhecidas do repertório. Mais uma vez,
a associação ao universo do sertão não se restringe ao componente sonoro, mas incorpora a
perspectiva masculina do discurso musical, incluindo também uma latente preferência pela
adoção de imagens, indumentária e cenários do homem sertanejo, que podem ser encontrados
em capas de discos, sites na Internet e nas apresentações ao vivo dos principais forrozeiros pé
de serra em atividade.
O forró se sedimentou no mercado através dessa valorização do sertão. Seu conjunto de
sonoridades (principalmente a sanfona), vocabulário (através da utilização de jargões da
linguagem regional ) e imagens (chapéu de couro, cenários de agreste, casas de barro, etc...)
passou a servir de indicador de qualidade da produção forrozeira, conferindo valor e
legitimidade aos artistas e às canções. Quanto mais próximo de uma relação estreita com o
sertão, mais “autêntica” era a voz do forrozeiro e melhores suas condições de ingressar no
mercado.

O eletrônico e a “modernização” do forró


Porém, é evidente que tal associação tão marcadamente rural passa por momentos de
baixa aceitação, sobretudo para o público urbano e jovem das capitais nordestinas, cada vez
mais distantes cultural e afetivamente dos símbolos de seus antecessores, fundados no sertão.
É assim que, nas últimas décadas do século XX, começa a ser fermentada uma espécie de
“atualização” do forró, que intencionalmente busca se afastar deste paradigma. A estética do
forró eletrônico foi inaugurada no início dos anos 1990 pela banda Mastruz com Leite,
organizada pelo empresário Emanoel Gurgel, que pretendia revolucionar os padrões do

11
TAGG., Philip (1982). “Analysing popular music” In: Popular music, n.2 EUA: Cambridge University Press, ,
p. 24.

7
gênero, tornando-o “estilizado e progressista” 12 . Tal modelo consistia na adoção de um
conjunto de referências musicais e imagético-performáticas que estabeleciam
intencionalmente um diálogo com modelos consagrado da música pop internacional. Para
começar, a ambiência sonora da banda conciliava a sonoridade da sanfona com baixo,
guitarra, teclado e bateria, praticamente eliminando a marcação rítmica da zabumba e do
triângulo. Cenicamente, as referências ao sertão são sistematicamente eliminadas e
substituídas por cenários grandiosos, luzes e figurinos brilhantes, que moldam uma
performance dançante e animada. Os shows são milimetricamente ensaiados com fusões de
músicas, entrada e saída de cantores e, sobretudo com um sedutor acompanhamento de
dançarinas que respondem por um poderoso apelo erótico e sensual nas coreografias das
canções. Desta forma, o padrão de performance do forró eletrônico dialoga com referenciais
midiáticos consolidados (as dançarinas lembram muito as “chacretes” do antigo programa
brasileiro “Cassino do Chacrinha” ou as dançarinas do atual “Domingão do Faustão”),
incorporando modelos transnacionais da indústria do entretenimento.
Mas o conjunto de elementos modernizadores da proposta de Emanoel Gurgel não se
limitava à montagem cênica e musical dos shows. Para atingir o objetivo, o empresário
montou um poderoso sistema de rádios via satélite que dava suporte à divulgação de seus
produtos musicais, a Somzoom Sat 13 . Sob a batuta de Gurgel, além da Mastruz formaram-se
outras dezenas de bandas de perfil semelhante, divulgadas durante a década de 1990 pela
rádio. Atuando ainda como gravadora, a Somzoom foi e ainda é a principal responsável pela
divulgação de novas e consagradas bandas de forró eletrônico 14 . Bandas como Limão com
Mel, , Cavaleiros do Forró, Brucelose e Caviar com Rapadura, Calcinha Preta e as mais atuais
Saia Rodada e Aviões do Forró, entre dezenas de outras, estruturam atualmente o que pode ser
entendido como um novo mainstream da música nordestina, ocupando o topo das listas das
mais tocadas nas principais rádios comerciais da região.

12
Retirado do site da banda www.mastruz.com.br Acesso: 30/jan/2008.
13
De acordo com o site da rádio, a Somzoom Sat conta atualmente com 98 afiliadas em 15 estados brasileiros,
cobrindo uma área de 95 cidades (www.somzoom.com.br, Acesso: 28/jan/2008).
14
PEDROZA, Ciro (2001). “Mastruz com Leite for all: folkcomunicação ou uma nova indústria no Nordeste
brasileiro”. Campo Grande: Anais da XXIV Congresso Brasileiro de Comunicação - Intercom, , p.2.

8
Ainda com relação ao mercado, é interessante notar que a estrutura empresarial do forró
eletrônico aponta para uma reconfiguração da indústria da música, caracterizada por uma
progressiva ênfase nos shows como eixo de comercialização. Analogamente às estratégias
clássicas utilizadas pela indústria fonográfica 15 , o vetor básico de divulgação musical do forró
eletrônico é o fonograma gravado em estúdio e tocado em rádio. Porém, enquanto nas grandes
gravadoras transnacionais a divulgação em rádio tem como objetivo a venda de discos, que
são os principais produtos dessas empresas, os produtores e empresários das bandas de forró
elegeram os shows como produto básico de vendas. Isso significa que a divulgação comercial
nas rádios está voltada para a atração de público para a experiência musical ao vivo, que passa
a ser o eixo central de comercialização. De certa forma, os produtores envolvidos com este
mercado investem no que vem sendo chamado de “economia da experiência”, ou seja, um
sistema comercial no qual o consumidor paga não para adquirir um produto ou um serviço,
mas “para passar algum tempo participando de uma série de eventos memoráveis” 16 , o que se
torna algo único e altamente lucrativo.
Porém, o preço relativamente acessível dos ingressos (muitos shows são gratuitos)
permite aos produtores uma venda “alternativa” de CDs e DVDs nessas ocasiões,
quantificando o sucesso e estabelecendo um segundo eixo de movimentação financeira. Uma
vez que a gravação dos discos oficiais é relativamente barata e não intermediada por nenhuma
gravadora, os CDs podem ser vendidos a um preço reduzido e bastante competitivo em
relação aos “piratas”. Porém, no mundo do entretenimento audiovisual, são os DVDs de
shows, gravados por produtores associados (autorizados pelos empresários) e vendidos
também a preço baixo que movimentam um intenso mercado de registro de experiências,
onde o público é seduzido a levar para casa um produto que rememora o momento da festa.
Vale destacar também o conteúdo de muitos desses DVDs são disponibilizados na Internet em
sites, blogs e comunidades do Orkut, sem aparentemente qualquer impedimento por parte dos
autores das músicas, dos músicos das bandas ou dos empresários responsáveis.

15
DIAS, Márcia Tosta (2000). Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São
Paulo: Boitempo Editorial.
16
PINE, Joseph & GILMORE, James (1999). The experience economy: work is theatre & every business a stage:
goods and services are no longer enough. Boston, EUA: Harvard Business School Press, p. 2.

9
Outro elemento importante na sonoridade da bandas de forró é a utilização de metais
(trompete, sax tenor e trombone, sempre em bloco), que realizam quase todas as introduções,
intermezzos e comentários musicais entre os versos. Apesar da tentativa de aproximação com
a vertente legitimada do forró através do uso da sanfona, o padrão sonoro recorrente produz
uma intensa similitude com a música pop nacional e internacional através do baixo, da bateria,
dos metais e do teclado, este último utilizado de forma restrita no conjunto da obra. É
importante destacar que nos shows a importância sonora e visual da sanfona fica ainda mais
reduzida em relação aos metais e à bateria. Nas mixagens, a utilização dos recursos de áudio
como reverb, equalizadores, compressores e filtros diversos obedece a padrões pré-
estabelecidos, oriundos quase todos de modelos experimentados da tradição da música pop
internacional e nacional. A voz está sempre centralizada e os timbres graves do baixo e do
bumbo da bateria recebem tratamento especial, imprimindo uma certa profundidade ao som,
característica das músicas dançantes veiculadas em larga escala pela indústria do
entretenimento. Da mesma forma, as melodias estão construídas sempre sob modelos
conhecidos do sistema tonal, assim como os ciclos harmônicos são recorrentes e encontráveis
em diversas searas da música popular. Ritmicamente, a maior parte das músicas está
construída basicamente a partir de uma única célula em andamento médio, que é repetida em
quase todas as canções 17 .
Todo esse conjunto de elementos estabelece um padrão auditivo fortemente
caracterizado pela previsibilidade. De acordo com o musicólogo Richard Middleton,
“podemos dizer que uma canção é previsível não no sentido de, sem conhecê-la, sabermos
exatamente o que vem a seguir, mas no sentido que, ao ouvir a frase seguinte, nossa reação é
‘sim, eu imaginava que algo semelhante estaria por vir’”18 . Nesse sentido, a previsibilidade
sonora do forró eletrônico resulta em uma escuta caracterizada pelo reconhecimento contínuo
de elementos. Indo além da teoria apocalíptica da estandardização de modelos, é possível
pensar no desenvolvimento de uma escuta confortável e confortante, na qual os padrões
técnicos (modelos de equalização sonora, utilização de filtros, reverb, volume, compressores)

17
Esta célula rítmica é bastante conhecida na musicologia latino-americana e tem sido chamada de tresillo ou
simplesmente padrão 3-3-2 (Sandroni, 2001, p. 28). No Brasil, é a marcação básica do samba de roda baiano, do
coco nordestino, do partido-alto carioca e do baião consolidado nacionalmente pela obra de Luiz Gonzaga.
18
MIDDLETON, Richard (1990). Studying popular music. Philadelphia, EUA: Open Music University, p. 48.

10
e musicais (clichês harmônicos e melódicos, estruturas rítmicas recorrentes) repetidos e
conhecidos estimulam o ouvinte a relacionar essa experiência com sua bagagem musical e
afetiva anterior, devidamente catalogada e associada a símbolos e sentidos continuamente
construídos. Acionam, assim, uma memória musical na qual a identificação de modelos no
repertório desencadeia complexos processos de compartilhamento afetivo.
A memória musical é exatamente essa memória do repertório, esse “cadastro” que se
revela não só como uma espécie de “banco de dados”, mas também nas formas de
acessá-los, nos recursos que envolvem lembranças e esquecimentos de canções,
estilos, sonoridades, timbres, etc. 19 .

A partir deste reconhecimento, as redes de pertencimento e identidade são reforçadas


através do compartilhamento dessa “cultura auditiva” que expressa idéias, símbolos e valores
que circundam a experiência musical. Este processo se complementa com o conteúdo verbal
das canções, que estabelece temas e refrões reconhecidos e repetidos. As letras são
estreitamente casadas com o perfil sonoro conhecido e padronizado, a sua temática principal
gira em torno do trinômio festa, amor e sexo.

Disputas valorativas
O surgimento do forró eletrônico no cenário musical nordestino provocou intensas
disputas simbólicas e mercadológicas em torno da classificação “forró”. Com razoável
consenso, artistas, mediadores e empresários ligados afetiva e comercialmente à vertente “pé
de serra” rejeitam a atribuição do termo à música produzida e divulgadas pelas “bandas”. O
argumento é que as alterações promovidas deturpam os fundamentos do forró distanciando-se
de forma radical dos limites aceitáveis para o pertencimento ao gênero. Um dos personagens
desse embate é o jornalista José Teles, do prestigiado Jornal do Commercio, de Recife (capital
de Pernambuco, estado que rivaliza com a Bahia a condição de liderança regional tanto no
plano cultural quanto no político-econômico), que sistematicamente ocupa as páginas do
periódico para desqualificar a estilo eletrônico. Em suas palavras:

19
HERSCHMANN, Micael e TROTTA, Felipe (2007). “Memória e legitimação do Samba & Choro no
imaginário nacional” In: Mídia e memória. Ana Paula Goulart Ribeiro e Lucia Maria Alves Ferreira (orgs.). Rio
de Janeiro: Mauad X, p.79.

11
O forró dito eletrônico (...) não é forró. Pelo contrário, prejudica o forró, porque
tem público. E tem o mesmo público que teve o gosto musical embotado pela axé
music. Para este o que vale é a multidão, a turba. Podem botar um poste em cima de
um caminhão, em silêncio que eles vão atrás. (José Teles, JC, 13/06/2007)

O teor agressivo do crítico torna-se particularmente violento pois dirige-se não somente
aos produtores e artistas, mas ao público do forró, num processo altamente perigoso de
demérito criado a partir do consumo. Conteúdo semelhante pode ser encontrado no texto do
jornalista Anselmo Alves, que publicou na sessão de “cartas” do mesmo jornal um artigo que
se espalhou rapidamente em dezenas de sites e blogs na internet. O sugestivo título de seu
texto funciona como uma espécie de manifesto: “Quero meu sertão de volta”. Nele, o autor
afirma categoricamente que as bandas praticam um “estelionato poético” ao nomear sua
prática de “forró”, uma música que “coisifica a mulher e embrutece o homem” (JC,
21/03/2008).
Alves toca aqui num ponto recorrente das críticas, que envolve a explícita tematização
erótica e sensual do forró eletrônico. Inserido numa “vertente maliciosa” da música brasileira,
caracterizada por uma forte integração entre ritmo, texto, música e dança, utilizando “letras de
duplo sentido, geralmente humorísticas, cuja carga semântica pode se intensificar através do
auxílio de gestos sensuais da dança” 20 , o forró eletrônico marca uma distinção em relação ao
tratamento humorístico e de certa forma respeitoso da abordagem sexual na vertente “pé de
serra”. Ainda que o “namoro” seja um tema sistematicamente freqüentado pelo repertório
consagrado do forró tradicional, sua abordagem neste ambiente remete a
um momento de permissividade, que pode incorporar ou não elementos de lirismo e
sentimentalidade, mas sempre cria um espaço, meio secreto, meio exposto, de
intimidade. O ambiente onde isso ocorre é marcado por elementos recorrentes que
favorecem, emolduram e/ou exprimem a aproximação, entorpecendo os sentidos e
ajudando a ‘borrar’ os parâmetros costumeiros de conduta: o suor, a poeira, a
bebida, a baixa luminosidade 21 .

20
LEME, Mônica (2002). Que tchan é esse? Indústria e produção musical no Brasil dos anos 90. São Paulo:
Annablume, p. 29.
21
MATOS, op. cit., p. 435.

12
No extremo oposto, as bandas defendem suas estratégias estéticas e comerciais com o
argumento da contemporaneidade. No site da prestigiada banda Calcinha Preta, o histórico do
forró eletrônico é apresentado da seguinte forma, sem esconder um viés evolucionista:
Em meados da década de 90, o forró ganhou uma nova roupagem. O ritmo tornou-se
mais acelerado, arranjos ganharam mais instrumentação, temas modernos inspiraram
novos estilos de canções, e o palco passou a ser cenário de grandes espetáculos de
decorações inovadoras, coreografias de dançarinos e efeitos especiais em luzes e
sons (do site da banda Calcinha Preta).

A idéia de “modernidade”, “aceleração” e “efeitos” busca atribuir valor ao ambiente


cênico do forró eletrônico, mas mascara a narrativa sexual explícita que aparece com
freqüência em diversas letras, reforçada pelos estímulos eróticos da coreografia das
dançarinas, sempre com figurinos provocantes e recorrendo a “poses” sensuais. Um exemplo
paradigmático desta vertente (mais) maliciosa do eletrônico é a canção Chupa que é de uva,
lançada pela banda Aviões do Forró, que esteve no topo das listas de mais tocadas em dezenas
de rádios de várias capitais nordestinas durante todo o ano de 2008:

Vem meu cajuzinho, te dou muito carinho


Me dá seu coração, me dá seu coração
Vem meu moranguinho, te pego de jeitinho
Te encho de tesão, te encho de tesão
Me deixa maluca, tirar o mel da fruta
Me mata de amor, me mata de amor
Me pega no colo, me olha nos olhos
Me beija que é bom, me beija que é bom
Na sua boca eu viro fruta, chupa que é de uva
Chupa, chupa, chupa que é de uva

Convém destacar, contudo, que a abordagem sexual feita pelo forró eletrônico, apesar de
amplamente condenada até mesmo por alguns fãs, torna-se um elemento de inegável sedução
de parcelas significativas de um público jovem urbano e nordestino, que se identifica com o
linguajar coloquial e a descrição quase sempre bem humorada de atos sexuais, com ou sem
amor.
Nesse ambiente de agudas disputas, é possível observar que o mercado nordestino do
forró está majoritariamente ocupado por bandas da vertente eletrônica, que atraem verdadeiras
multidões em shows, eventos, vaquejadas e, sobretudo, em festas do período junino. São elas
as atrações principais nos “palcos de forró” montados pelas prefeituras e pelos governos

13
estaduais, com generoso patrocínio privado de empresas e políticos. Ocupam ainda espaços
privilegiados na programação radiofônica, especialmente nos horários e emissoras de maior
audiência, reverberando de modo inconteste seu universo simbólico, seu modo de agir, sentir,
pensar e compartilhar músicas e sentimentos.
Do outro lado, o pé de serra se defende como pode. Em 2005, no Estado de Pernambuco,
foi criada uma associação, intitulada Sociedade dos Forrozeiros Pe de Serra E Ai, uma espécie
de ONG que agrega artistas consagrados e desconhecidos da vertente tradicional e que tem
conseguido, nos últimos anos, significativas ampliações na circulação do estilo no mercado
musical, tanto através de eventos, como angariando apoios políticos e financiamentos de
várias fontes para CDs, DVDs, shows e turnês de seus filiados. Porém, é mister reconhecer
que, em termos quantitativos, a penetração do pé de serra no universo musical do Nordeste é
bastante reduzido se comparado à hegemonia da vertente “rival”. No entanto, seu público se
situa em posições privilegiadas na hierarquia social, o que garante uma reverberação
continuada dos referenciais tradicionais, inclusive ocupando espaços midiáticos para, com
bastante veemência, depreciar a música e os fãs do forró eletrônico. Trata-se de um ambiente
de intensas disputas valorativas e mercantis, que têm representado uma espécie de cisão no
universo do forró nordestino atual; o que, paradoxalmente, atesta a força simbólica do gênero
(em suas várias vertentes estéticas) no imaginário e na construção identitária da própria região
Nordeste.

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Referências

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