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madalena schwartz

as ME aMORFOSES
L
9

travestis e transformistas
na são paulo dos anos 70
33 Madalena Schwartz: a fotografia como hospedagem

Quando 40 homens do coro


Conduzindo palmas
E artisticamente fantasiados de papoulas
Abrem a Alegoria
Do Palácio Floral
Entre luzes elétricas
— Oswald de Andrade, “Na avenida” (Pau-Brasil, 1925)

GONZALO AGUILAR
SAMUEL TITAN JR.

Comecemos por uma foto tirada por mãos anônimas ou esque-


cidas, mas em data conhecida: estamos em 1960, um navio pro-
veniente de Buenos Aires prepara-se para atracar no porto de
Santos. Sobre o convés do Osaka Maru, no canto esquerdo da
foto, uma família está prestes a descer à terra firme e começar
vida nova: Madalena Schwartz e os filhos Julio, as mãos pousa-
das na amurada, e Jorge, que acena; o marido, Ernesto, virá um
pouco mais tarde. Mais para a direita, alguns tripulantes. A foto
registra um momento decisivo na vida da família e, é claro, na
biografia de Madalena. Nascida em Budapeste, em 1921, e órfã de
mãe ainda na infância, ela havia cruzado o oceano Atlântico em
1935, para se juntar ao pai, que chegara há alguns anos à Buenos
Aires tão cosmopolita e poliglota da primeira metade do século.
Ficavam para trás as ameaças iminentes do fascismo e do antis-
semitismo; restava a tarefa nada fácil de refazer a vida em novas
terras e numa nova língua. Madalena viveu tudo isso em primeira
mão no lar paterno, para depois tornar a enfrentar desafios ma-
teriais da mesma ordem ao lado do marido, também ele judeu e
húngaro, em Posadas e em Buenos Aires. Em certa altura do fim
dos anos 50, o casal decidiu que valia a pena tentar a sorte no
Brasil, e é esse transe — mais um barco, mais um porto, mais uma
língua estrangeira — que nossa foto surpreende e fixa.
Um documento destinado ao álbum de família, portan-
to. Mas há na foto um detalhe, desimportante na esmagadora
maioria das biografias imigrantes, que aqui cobra importância
e pede comentário: nossa foto registra, entre outras coisas, um
personagem — um oficial de bordo, a julgar pelo uniforme — que,
do alto do convés, empunha uma câmera fotográfica e captura 34 35 tar um título famoso de Virginia Woolf. Nada que se compare, por
um rosto conhecido ou talvez simplesmente o conjunto da cena então, à visibilidade de fotógrafas como Claudia Andujar e Mau-
que se desdobra no cais. Nada de mais, em princípio; ou talvez reen Bisilliat, figuras já públicas e profissionalizadas, associadas
sim, alguma coisa de sintomático, nessa distribuição de papéis muito engajadamente à célebre revista Realidade (1966-1976).
pela qual cabe a dois homens, um em terra, o outro a bordo, ma- Mas as coisas tomarão outro rumo em 1974, quando, a convite de
nejar os aparelhos fotográficos enquanto uma mulher destinada Pietro Maria Bardi, Madalena realiza sua primeira exposição indi-
a ser uma notável fotógrafa em seu país de adoção deixa-se mais vidual — e num espaço privilegiado como o do Museu de Arte de
ou menos passivamente capturar em película. São Paulo. A exposição marca uma virada decisiva na vida e na
carreira de Madalena. Viúva desde o ano anterior, ela agora tem
em mãos uma “carta de visita” que lhe abrirá portas profissio-
Avancemos uns poucos anos, até meados da década de 1960. nais: monta um pequeno estúdio profissional num apartamento
Instalados em São Paulo, os Schwartz moram no centro da cida- menor do mesmo Copan, faz novas exposições, começa a cola-
de, no edifício Copan, e vivem de um pequeno negócio familiar, borar assiduamente com a imprensa. O lugar todo seu converte-
a lavanderia Irupê, situada a poucas quadras, na rua Nestor Pes- -se agora numa carreira toda sua.
tana. Os papéis parecem bem definidos: os pais trabalham, os
filhos vão à escola; mais adiante, irão à universidade. Mas tudo
começa a se mover em 1966, de modo fortuito, quando o filho Entre as obras expostas no Masp em 1974, um grupo coeso cha-
mais velho, Julio, vai assistir à gravação de um programa televi- ma atenção: uma série de retratos de travestis e transformistas,
sivo, Bibi 66, rodado no teatro Cultura Artística, a poucos metros realizados em estúdio, com luz artificial, teatral mesmo, além de
da lavanderia, e ganha uma câmera fotográfica num sorteio. Se- muita e explícita “produção”: figurino, maquiagem, pose. Algo
gundo a legenda familiar, o rapaz não faz muito caso, ao contrário desses mesmos elementos está em jogo em muitos outros retra-
da mãe, que, para a surpresa de todos — talvez até para a surpre- tos incluídos na exposição, mas percebe-se claramente que, com
sa dela mesma —, logo se interessa pelo aparelho. O fato é que essas imagens, Madalena cruza um limiar.
não tarda muito para que Madalena se inscreva nos cursos de O primeiro limiar é de ordem, digamos, estilística. Fo-
fotografia do Foto Cine Clube Bandeirante, cuja sede ficava tam- tografar essas e esses modelos implica ingressar num território
bém por perto, na rua Avanhandava. Aprende ali os elementos que já não paga tributo a certo “bom gosto” fotográfico — seja
da técnica fotográfica e, tão importante quanto, começa a travar ele pictorialista ou vanguardista — haurido no Foto Cine Clube
um círculo de relações que não passam nem pela vida domésti- Bandeirante; significa, antes, penetrar num território que se apre-
ca, nem pelo trabalho cotidiano: Tuffy Kanji, Eduardo Salvatore, senta, a quem chega de fora, sob a marca retórica do excesso e
Thomaz Farkas (de origem judia e húngara como ela) estão entre da ambiguidade, que se irriga contínua e alegremente de signos
os nomes do mundo fotográfico paulistano de quem Madalena colhidos nas searas do pop e do popular, do “alto” e do “baixo”,
se aproxima a partir de então, primeiro em busca de mentores e, do camp e do kitsch.
pouco depois, de parceiros de diálogo e ofício. O segundo limiar, não menos importante, é de ordem
Há muito por estudar a respeito desses primeiros tem- humana e social. Ao longo de sua carreira, Madalena fotografou
pos em que Madalena, beirando os 50 anos, começa a exercer um contingente bastante amplo de protagonistas da vida cultu-
essa vocação tardia — pois muito rapidamente a fotografia se ral paulistana, da “cena” acadêmica à cena propriamente teatral,
impõe como vocação, longe do hobby domingueiro. Sabemos, muitas vezes por encargo editorial: intelectuais, professores e
porém, que muito cedo começam a se afirmar alguns veios du- professoras; atores, atrizes e diretores. Quase sempre, nomes
radouros do que, um dia, será sua obra fotográfica: a prática do ligados a certo registro culto, de gosto moderno e de simpatias
retrato como gênero de eleição e a preferência pelo trabalho em políticas à esquerda, distantes tanto do universo simbólico da di-
ambientes fechados, com luz artificial. Um trabalho de estúdio, tadura militar como da cultura de massas em ascensão no Brasil
portanto, que talvez, naqueles primeiros momentos, tenha pa- na virada para a década de 1970; quase sempre, também, figuras
recido mais compatível com o éthos e com as rotinas de uma de um meio de classe média, de abordagem relativamente fácil
senhora casada, de classe média, ainda por cima tímida e recata- para uma mulher como Madalena, dotada ela mesma de um re-
da. Ao mesmo tempo, essa opção era condizente com uma das pertório cosmopolita. Se o mesmo vale para gente pública à ma-
vertentes do próprio Foto Cine Clube Bandeirante, em que a ideia neira de Ney Matogrosso ou Elke Maravilha, não se pode dizer de
de fotografia como arte serviu, desde a década de 1940, como um número considerável das figuras mais ou menos anônimas,
noção “guarda-chuva”, capaz de abrigar tanto a experimentação mais ou menos célebres que povoam as muitas folhas de contato
de vanguarda de um Farkas ou um Geraldo de Barros como um dedicadas ao universo travesti e transformista.
filão tardo-pictorialista de longo fôlego.
Mas o fato central é que Madalena não tarda em parti-
cipar de exposições coletivas, publicar imagens em boletins, fre- Pois as poucas imagens incluídas na exposição do Masp são, na
quentar os ambientes do métier. Essas aparições, mais ou menos verdade, apenas uma pequena amostra do material que Madalena
dispersas, promissoras, mas não decisivas, contribuem para que, produz entre 1971 e 1976. Ao longo desses anos, a fotógrafa se
sem romper com os rituais e as relações da vida familiar, domés- interessa consistentemente pelo mundo do travestismo, do trans-
tica e prática, Madalena vá criando um lugar todo seu — para ci- formismo e da ambiguidade de gênero, ora fotografando artistas
como Ney Matogrosso, Elke Maravilha e os integrantes do grupo 36 37 The Rocky Horror Picture Show, de 1975; A gaiola das loucas,
Dzi Croquettes, ora fotografando figuras menos célebres e mes- de 1978); na música, basta pensar em David Bowie, alias Ziggy
mo quase anônimas da noite paulistana. São centenas e centenas Stardust, ou, no Brasil, em canções e performances de Ney Ma-
de fotografias, que atestam o empenho com que Madalena se de- togrosso, Caetano Veloso, Edy Star, Jorge Mautner e, um pouco
dicou ao tema. mais tarde, Pepeu Gomes; no teatro, limitemo-nos a citar, por sua
Quais teriam sido as razões de Madalena? Difícil, talvez imediata influência no Brasil, The Cockettes, trupe de São Fran-
impossível saber. Quem sabe a fotógrafa tenha entrevisto, nes- cisco fundada em 1969 e que serviria de inspiração para os Dzi
sas faces e nesses corpos à margem da norma imperante, algum Croquettes (cuja estreia data de 1972); e fiquemos, no caso da
traço de seu próprio semblante de estrangeira e de imigrante, de literatura, com os exemplos latino-americanos de Sarduy, José
judia e de mulher. Pode ser, mas o fato é que a própria fotógrafa Donoso, Manuel Puig.
não deixou resposta — ou não deixou outra resposta além de Desse ponto de vista, o cinema brasileiro da década de
suas fotos. Se há, a resposta está no campo do sensível, esse 1970 é especialmente caleidoscópico, tanto pela quantidade como
campo em que operam os artistas, essas “máquinas sensoriais” pela variedade, ora com papéis, ora com atores e atrizes travestis
às voltas com o “exercício experimental da liberdade”, como es- e transformistas, num espectro que vai da pornografia ao cinema
creve Mario Pedrosa num texto do mesmo ano em que Madalena de autor. 3 A lista é muito longa, e inclui desde filmes francamen-
começa a fotografar.1 te menores, como A mulata que queria pecar (1977) ou Gugu, o
O fato — o fato sensível, digamos — é que o interes- bom de cama (1979), com Cláudia Wonder e Rogéria no elenco,
se por esse universo inscreve o trabalho de Madalena Schwartz respectivamente, até filmes mais experimentais, como Orgia ou O
no centro de muitas das questões e vertentes sociais e estéticas homem que deu cria, de João Silvério Trevisan (1970), e O gigante
mais candentes de seu tempo, no Brasil como no mundo. Esta- da América, de Julio Bressane (1978), chegando, já no começo da
mos falando, entre outras coisas, de um momento pós-1968, em década seguinte, a filmes mainstream que de certa forma releem
que as questões de gênero (numa gama que vai inicialmente dos toda essa produção, como é o caso de Eu te amo (1981), de Arnal-
feminismos aos movimentos gays) começam a sair da sombra da do Jabor, ou Pixote, a lei do mais fraco (1981) e O beijo da mulher
assim chamada “grande” política e pleitear legitimidade e visibi- aranha (1985), ambos de Héctor Babenco. No elenco deste último,
lidade. Mas estamos falando igualmente de um momento em que estava o ator e performer argentino Patricio Bisso, personagem
muitas dessas novas políticas encontram no âmbito das artes um incontornável, por três décadas, da cena noturna e cultural de São
lugar privilegiado de manifestação e de visibilidade. Algo disso Paulo4 — e, não por acaso, um dos retratados de Madalena. Mas
já se dava antes, certamente: basta recordar, para citar um exem- um filme do final da década de 1970 talvez seja o mais emblemá-
plo próximo, as notáveis análises de Sylvia Molloy sobre a pose tico das possibilidades em jogo nessa produção: em República
estetizante como lugar de aparição pública do homoerotismo na dos assassinos, de Miguel Faria Jr., com roteiro de Aguinaldo Sil-
literatura hispano-americana do fin-de-siècle. 2 Mas agora isso se va, uma travesti, Eloína (Anselmo Vasconcelos) se vê à mercê de
faz ao arrepio da discrição ou sugestão sutil: doravante — e em Mateus, um membro dos esquadrões da morte (Tarcísio Meira);
relativa sincronia com a temperatura política que vai subindo —, depois de passar pela via crucis que se imagina (prostituição, vio-
o registro é mais e mais explícito e “exagerado”, irreverente e lência, arbítrio, humilhação), Eloína liberta-se, matando o milicia-
iconoclasta. no. Tudo isso em 1979.
Susan Sontag terá notado algo desse movimento sís-
mico em seu célebre ensaio “Notes on Camp”, de 1964, em que,
todavia, o elo entre camp, gay, drag e trans não merece maior Mas não basta inscrever esse longo ensaio fotográfico de Mada-
destaque. A década de 1970 trata de sublinhar esse nexo íntimo, lena Schwartz em certo contexto de época. É preciso descrever
tanto no campo da reflexão como no das práticas artísticas. Den- seus traços característicos, seus movimentos decisivos, sua tem-
tre os textos, citemos apenas dois, fundadores, provenientes de peratura e seu temperamento. Podemos dar um primeiro passo
lugares distintos e publicados mais ou menos na altura em que nessa direção fazendo uma observação inicial: com pouquíssimas
Madalena Schwartz começava a produzir o corpo de trabalhos exceções, seus retratos de travestis e transformistas são feitos em
que nos interessa aqui: de um lado, o pioneiríssimo estudo de ambientes fechados e com luz artificial. Isso certamente tem a ver
Esther Newton sobre o universo drag, Mother Camp: Female Im- com o aprendizado fotográfico de Madalena, e o mesmo traço se
personators in America, de 1972; e, de outro, o brilhante ensaio do deixa ver, com menos exclusividade e com outra tonalidade, em
escritor cubano Severo Sarduy, “Escritura/Travestismo”, de 1969.
No campo das práticas artísticas, o material é abundan-
te demais para se deixar resumir. No cinema, o arco vai do expe- 3. A título de contraste: na Argentina desses mesmos anos, não há um
rimentalismo de Jack Harris e Andy Warhol a produções para o único filme com travestis no elenco. Quando uma travesti, Evelyn (ver mais abaixo,
grande público (Os deuses malditos, de 1969; Cabaret, de 1972; à pagina 186, seu retrato pelo Estudio Luisita), foi convidada a trabalhar no filme Mi
novia el travesti (1975), a censura entrou em ação para impedir sua atuação e para
mudar o título para Mi novia el…
4. O cross-dressing esteve constantemente no centro de suas interven-
ções artísticas, fosse para encarnar Libertad Lamarque e Eva Perón nos palcos, fos-
1. PEDROSA , Mario. “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”. In: se para criar uma personagem de televisão de grande êxito na década de 1980, a
Acadêmicos e modernos: textos escolhidos 3 . São Paulo: Edusp, 1998, pp. 355 -356. sexóloga russa Olga del Volga. A vida de Patricio Bisso está a clamar por quem a
2. MOLLOY, Sylvia. Poses de fin de siglo. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2012. biografe como se deve.
outras séries de retratos formais produzidos por ela. Mas, no que 38 39 de Madalena Schwartz.6 Em primeiro lugar, seu enraizamento
diz respeito à série que nos interessa, essa decisão destaca ime- num território urbano específico, que não é abordado topogra-
diatamente seu trabalho de outros modos de abordar o tema àque- ficamente, mas que nem por isso deixa de se fazer ver: seja por-
la altura, que tantas vezes privilegiaram os extremos do palco e da que, nos negativos, algo das linhas modernas do Copan acaba
rua, do estrelato e da prostituição, da fotografia de cena e do foto- por aparecer, seja porque as figuras retratadas por Madalena não
jornalismo urbano. Madalena prefere o lugar intermediário, seja estariam ali se, em primeiro lugar, esse mesmo Copan não se
ele o camarim ou o estúdio fotográfico, o lugar da transição, da localizasse num cruzamento de territórios em que os espaços
“montagem”, da metamorfose de gênero — donde o título dado a da cultura acadêmica e das artes de feição mais ou menos tra-
esta exposição.5 Veja-se, por exemplo, o contraste entre o longo dicional lindavam com os do jornalismo, do cinema e do teatro,
ensaio de Christer Strömholm sobre as travestis gravitando pelo dos cafés, dos bares, dos restaurantes, das boates e dos “infer-
bulevar de Clichy, em Paris, iniciado em 1956 e publicado em li- ninhos” em que a vida boêmia florescia em todas as suas de-
vro apenas em 1983, sob o título de Les Amies de Place Blanche. clinações.7 Já vimos como esse cruzamento reunia num espaço
O fotógrafo sueco empenha-se numa documentação extensa e exíguo a residência de Madalena, a lavanderia familiar, o teatro
empática dos modos de vida, das rotinas, dos espaços dessas per- Cultura Artística e o Foto Cine Clube Bandeirante; e agora vemos
sonagens, num estilo que vai e vem entre o retrato e a topografia Madalena ir ao encontro de seus “temas” num espaço que, afinal
urbana. Madalena, ao contrário, não realiza nenhuma tomada nas de contas, é ainda esse mesmo. 8
ruas, não envereda pela exploração do cotidiano de seus ou de O segundo veio profundo tem a ver não propriamente
suas modelos — assim como raramente registra cenas em palcos com uma concepção, e sim com uma prática da fotografia como
públicos. Tomemos um exemplo concreto entre vários, as fotos hospedagem. Seja ao entrar num camarim, seja ao organizar uma
dos Dzi Croquettes durante uma temporada paulistana: nenhuma performance de Ney Matogrosso em casa de amigos, seja sobretu-
foto na rua, nenhuma foto em cena; tudo se dá no ambiente do ca- do ao fotografar em sua própria casa, Madalena privilegia o lugar
marim, durante a preparação dos atores, ao longo de um proces- protegido, ao abrigo tanto das tensões da rua (onde a violência
so em que os “marcadores” de gênero vão se misturando — sem está à espreita) como das tensões do palco (onde a plateia, ela
culpa e sem pedir permissão. E, como epicentro do camarim, o es- sim, está protegida pelo escuro e pelo anonimato). Nesse lugar,
pelho em que todos se olham, refletido, por sua vez, em outro es- do qual a película fotográfica é uma espécie de extensão, Madale-
pelho, menor, mas incansável — o que está no coração da câmera na cria um ambiente hospitaleiro e empático para a metamorfose
fotográfica de Madalena (uma vez que estamos na era pré-digital). do outro. Voltemos à dupla que comentávamos ainda há pouco:
Um jogo análogo, quiçá, ao de Alice através do espelho, que cria nem Danton nem sua companheira de ensaio eram propriamente
um lugar de estranhamento e reconhecimento, um ponto de tran- célebres; nenhuma das duas realizara qualquer tipo de transição
sição e de contato entre fotógrafa e modelos. O antes cotidiano e o radical de gênero; mas aqui, no apartamento do Copan e sob o
depois cênico ficam para fora do enquadramento. olhar cúmplice da senhora de tailleur, sotaque portenho e câmera
O mesmo vale para as centenas de fotos realizadas em punho, as duas podem experimentar, podem se experimen-
com uma trupe muito variada de modelos no estúdio que Mada- tar. Não, as duas não: as três, pois afinal de contas Madalena está,
lena improvisava em seu próprio apartamento. O exemplo talvez também ela, em transe de se metamorfosear.
mais paradigmático — e dos mais belos — talvez seja a longa se-
quência com o cabeleireiro Danton e uma outra pessoa que não
foi possível identificar: a dupla é fotografada primeiro sem ma- Ao fazê-lo, essa mulher, que chega tarde ao circuito artístico, capta
quiagem nem figurino, para então ser captada durante a “mon- com agudeza esse momento de emergência do trans como cate-
tagem”, numa sequência de poses estáticas e, finalmente, numa goria de gênero e como vertente estética. Ela o faz a sua própria
formidável performance dançante. O material, bastante rico, dá maneira, com seus próprios meios, lançando mão de poderosa
testemunho de uma interação intensa entre a fotógrafa e as duas imaginação social — isto é, não como um ato de militância, e sim,
fotografadas, patente nas múltiplas tomadas, poses, angulações, como sugerimos mais acima, citando Mario Pedrosa, na chave de
num clima de distensão e diálogo. Mas as folhas de contatos, pré- um exercício livre da sensibilidade. Para que se faça uma ideia cla-
vias a todo corte nos negativos, mostram igualmente o lugar em ra do alcance e da potência disso que estamos chamando desse
que tudo isso se dava. Com efeito, se o centro da imagem é ocu- modo peculiar de empatia e de imaginação social, vale a pena ver,
pado pelas performers, as margens revelam o entorno doméstico no portfólio de retratos que integra este catálogo, como Madalena
e arquitetônico: os caixilhos e mesmo os brise-soleil das janelas
do Copan, uma arandela, uma estante de livros, a moldura de um
quadro — sem falar num gato da casa, funcionando como novo e 6. Esse valor bem mais que anedótico levou ao parti pris curatorial e edi-
divertido ponto de contato. torial de apresentar, na exposição e neste catálogo, os negativos inteiros, sem cor-
Esses vestígios são mais que anedóticos, e apontam tes — nem mesmo nos poucos casos em que havia cópias vintage a autorizar esta
ou aquela intervenção.
sutilmente para dois veios fundos de todo esse ramal da criação 7. Veja-se, mais abaixo, o mapa da São Paulo de Madalena Schwartz que
Beatriz Matuck e Tiê Higashi compilaram, inspirando-se no mapa pioneiro e hete-
rodoxo do centro de São Paulo incluído pelo poeta e antropólogo argentino Néstor
Perlongher em seu O negócio do michê, publicado originalmente em 1987.
5. A mesma ordem de metáforas presidiu uma exploração anterior desse 8. Sobre o modus operandi de alguns desses encontros, leia-se mais
mesmo material no fotolivro Crisálidas (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012). abaixo o ensaio de Chico Felitti.
estende sua exploração além do âmbito dos corpos jovens, se- 40 41 corpos inéditos”.10 É sedutor e revigorante pensar que, por cami-
dutores e glamorosos. Lá estão, por exemplo, alguns retratos em nhos muito singulares, Madalena Schwartz deu sua contribuição
grupo incluindo um par de crianças, a sugerir uma forma de famí- a essa fascinante e contraditória work in progress, a essa amplia-
lia gestada por laços afetivos, mais que por funções reprodutivas.9 ção moderna do campo e do corpo do humano.
Lá estão, em outro campo temático, travestis de mais idade, como
Meise, no centro de uma foto notável, captada no camarim num
momento de visível fadiga, diante de um espelho que exibe, talvez A exposição e o catálogo As metamorfoses convidam
ominosamente, uma rachadura ou emenda; ou como essa outra espectadores e leitores a uma imersão no longo ensaio fotográfico
figura, anônima e mais velha, fotografada em ambiente caseiro, sobre travestis e transformistas que Madalena Schwartz produziu,
com direito a um quadro e uma gaiola de pássaros, os braços em sua quase integralidade, entre 1971 e 1976. O projeto foi con-
peludos erguidos para, com ternura maternal, segurar um bebê duzido a partir de um mergulho prévio nos arquivos de Madalena
junto ao peito peludo e ao vestido delicado. Esta última foto, de Schwartz, que integram a coleção de fotografia do Instituto Mo-
tremendo teor afetivo, mistura sem alarde os signos tradicionais reira Salles, e representa uma ampliação considerável do trabalho
dos gêneros e dos papéis de gênero — mistura ou apagamento iniciado em 2012, com a publicação do fotolivro Crisálidas, editado
que ressurge, em tom mais dilacerado, na sequência em que uma por Jorge Schwartz, Flávio Moura e Samuel Titan Jr.
modelo jovem, fumando e bebendo, usa uma boneca como aces- Neste novo projeto, a ênfase recaiu em incluir uma
sório num strip-tease em que vão se fundindo todos os opostos (o gama mais vasta dos temas e tons da produção de Madalena e
cigarro boêmio e o colo maternal, a boneca infantil e a “boneca” em tratar de situá-la no contexto brasileiro e latino-americano da
da gíria, o afeto materno e o nu frontal), até chegar ao ápice na época. Como sugerimos mais acima, sua criação fotográfica tem
forma disso que não há senão como chamar de uma madonna em a ver com um modo de estar no espaço urbano e de se relacionar
chave trans. com o âmbito do simbólico e do midiático. Para dar a ver essa
Cultivar essas formas de imaginação, empatia e afetivi- implantação, recorreu-se, em primeiro lugar, à compilação de um
dade por esse universo não era coisa trivial no Brasil da ditadura mapa da “São Paulo de Madalena Schwartz”, presente tanto na ex-
militar. Vale recordar: Madalena começa a fotografar essa série posição como neste catálogo. Na sequência, criou-se uma seção
em 1971, no meio do mandato presidencial do general Médici e contextual, “Trânsito”, integrada por documentos de época que
no meio do ufanismo financiado pelo assim chamado “milagre lidam com a figuração pública da dissidência de gênero: matérias
econômico” brasileiro. Ao retratar travestis e transformistas na de jornais, em que travestis e transformistas tantas vezes apare-
São Paulo daqueles anos, a fotógrafa punha-se, a sua maneira ciam em páginas policiais, em notas de escândalo ou em poses à
muito discreta, numa sintonia que a ligava a toda a gama de fe- beira do crassamente pornográfico; revistas ilustradas, em cujas
nômenos que, do Tropicalismo à contracultura e ao desbunde, páginas vão se vendo, com o avançar da década de 1970, fotos e
davam expressão estética e existencial às imensas energias — reportagens que se aventuram numa representação mais legitimi-
políticas, eróticas, humanas — reprimidas ou marginalizadas pela zante do tema; videoclipes de artistas como Ney Matogrosso, Jor-
ditadura, pelo patriarcado ou simplesmente pela inércia confor- ge Mautner, Caetano Veloso, Pepeu Gomes e Zezé Motta; e trechos
mista. A fotógrafa soube captar, em estado nascente, um elã de de alguns dos muitos filmes brasileiros da época em que travestis
contestação e transformação das questões de gênero que, com o surgem como personagens e/ou como atrizes. Finalmente, con-
passar dos anos e das décadas, só fez ganhar em relevo e urgên- vidamos os estudiosos Chico Felitti, Elias Ferreira Veras e Amara
cia. Madalena não o fez nos termos de hoje, com as questões de Moira a escreverem ensaios que iluminassem, de perspectivas di-
hoje, com a atitude militante que talvez seja de rigueur hoje: não versas, essa vinculação de Madalena com seu tempo histórico e
o fez, para ir direto ao ponto, nos termos de uma afirmação de com o contexto social e sexual dos anos 70.
novas identidades de gênero, e sim, sempre em sintonia com seu Quisemos igualmente dotar Madalena Schwartz, argenti-
tempo, nos termos de uma afirmação da ambiguidade de gênero na de criação, de uma família fotográfica hispano-americana, uma
como forma de contestação. família de criadoras e criadores associados não por questões de in-
Nada disso deve, porém, autorizar uma atitude condes- fluência — metáfora que permanece no campo da filiação —, mas,
cendente em relação à fotógrafa. Suas fotos, repletas de energia, sobretudo, por certa ordem de ressonância formal e temática —
muitas vezes transbordantes de humor e alegria, não se prestam a em outras palavras, por afinidade. Donde uma seleção bastante
isso. Mais vale olhar para as fotos trans de Madalena num quadro diversa, em registros que vão do autoral ao otojornalístico, passan-
mais largo. Num livro notável, Jacques Rancière sugeriu que um do pela fotografia amadora, feita para fins estritamente pessoais
dos fios condutores da modernidade nas artes é a deposição do e resgatada do esquecimento pelos esforços de coletivos de me-
corpo clássico, estatuário, canônico, hierarquizado e hierarquizan- mória trans. Esse material forma uma segunda seção contextual
te, em nome de uma “proliferação” de outros corpos — plebeus, da exposição, imaginada para convidar a um olhar comparativo,
revoltosos, desviantes —, em benefício de uma “multiplicidade de interessado tanto nas diferenças locais e nacionais como na clara
recorrência de imagens, ícones, circunstâncias — citações pop, fi-
gurações de divas hollywoodianas, festas de Carnaval —, que faz
9. Vale consultar, a esse respeito, o livro de Jack Halberstam, Trans*: una
guía rápida y peculiar de la variabilidad de género (Barcelona/Madri: Egales, 2018),
especialmente as páginas 91- 92. 10. RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis. Paris: Galilée, 2012, p. 40.
pensar numa espécie peculiar de circulação e de cosmopolitismo 42 43 cronologia Magdolna Mandel nasce em 9 de outubro de 1921, em Budapeste,
trans.11 Este catálogo recolhe a integralidade das fotos exibidas na Hungria, filha de Rózsa Fisch e Jenö Mandel. A mãe falece jovem,
seção “Transversal hispano-americana”, acompanhadas por en- em 1927, aos 28 anos. Madalena e o irmão menor, Pál, vivem por
saios de especialistas, curadores, jornalistas e ativistas, razão pela alguns anos na cidadezinha de Kecskemét com os avós, judeus re-
qual nos eximimos de comentá-las aqui. ligiosos; os dois avós terminariam mortos no Holocausto. O pai
Uma última nota, mais que protocolar, a respeito do en- torna a se casar (com Olga Löwy) e parte rumo à Argentina, para
quadramento temporal da exposição e do catálogo. Se o parâmetro onde, alguns anos mais tarde, leva os filhos. Magdolna e Pál (do-
inicial se explica por si só, a decisão de não estender a investigação ravante Madalena e Pablo) chegam a Buenos Aires em 14 de abril
muito além do início da década de 80 deriva de razões substantivas. de 1935. Cinco anos mais tarde, em 1940, a jovem se casa com
A mais óbvia tem a ver com a derrocada gradual das ditaduras mili- Ernesto Schwartz (1909-1973), também de origem judia e húngara,
tares que dominaram o cenário político latino-americano ao longo com quem teria dois filhos: Julio (1942) e Jorge (1944). O novo ca-
de toda a década de 1970 — e com a gradual emergência de movi- sal vive em Posadas e em Buenos Aires, mas afinal decide tentar a
mentos que exigiam visibilidade social para grupos marginalizados sorte em São Paulo: em 24 de abril de 1960, Madalena e os filhos
e a reforma dos quadros jurídicos que permitiam e perpetuavam a embarcam no Osaka Maru e chegam ao porto de Santos três dias
marginalização violenta de corpos e vidas homossexuais e trans. depois; Ernesto chegaria pouco depois. Em São Paulo, o casal Sch-
Outra razão, nada luminosa, tem a ver com a irrupção da epidemia wartz compra e administra um negócio, a Lavanderia e Tinturaria
de Aids, que, por um lado, vitimou milhares e milhares de pessoas — Irupê, na rua Nestor Pestana, 16 — e mora em diversos endereços
entre as quais, muitas das modelos de Madalena Schwartz —, e, nas proximidades, até finalmente se instalar no edifício Copan.
por outro, suscitou uma onda de culpabilização conservadora, Em 1966, o filho mais velho ganha uma câmera foto-
pronta para apontar o dedo para a “devassidão” contracultural e gráfica no concurso televisivo Bibi 66, gravado no teatro Cultura
contestatária como um dos fatores para a eclosão da “peste gay”.12 Artística. O aparelho desperta a curiosidade de Madalena, que no
Nas palavras do chileno Pedro Lemebel, artista e autor trans, no mesmo ano se inscreve em cursos de formação no Foto Cine Clu-
prefácio a seu livro Loco afán, “a praga chegou para nós como uma be Bandeirante (então na rua Avanhandava, a poucos minutos da
nova forma de colonização, por meio do contágio, e substituiu nos- lavanderia familiar), onde se liga a nomes como Eduardo Salvatore,
sas plumas por seringas”.13 Por fim, a visibilidade de identidades Tuffy Kanji e Thomaz Farkas. Começa assim — “por acaso”, nas pa-
de gênero dissidentes vai se cristalizando num novo vocabulário lavras da própria Madalena — uma vida que inicialmente se alterna
(queer, trans, LGBT) que, por sua vez, também vai ganhando cir- entre a casa e a lavanderia, de um lado, e a paixão fotográfica, de
culação social mais ampla. Isso se acompanha de experiências de outro. Vivendo e trabalhando no centro de São Paulo, Madalena
transição de sexo cada vez mais públicas — das quais a mais céle- começa a retratar personagens da cena cultural a seu redor, muitas
bre, no Brasil da época, é a de Roberta Close, que em 1984 estrela vezes utilizando o próprio apartamento como estúdio improvisado;
uma campanha publicitária que girava em torno do mote “enga- frequenta teatros para aperfeiçoar a técnica do chiaroscuro; e co-
nar pelas aparências”, surge num videoclipe da canção “Close”, de meça a colaborar como freelance com diversos jornais e revistas.
Erasmo Carlos, e posa para a revista Playboy. Vindos de lugares Ao longo dos anos 70 e 80, o trabalho para a imprensa
diversos, carregando conotações diversas e mesmo contraditórias, leva Madalena a viajar pelo Brasil e mesmo pelo exterior — em
todos estes nos pareceram ser signos de um campo de questões e 1975, por exemplo, fotografa Clarice Lispector em Bogotá, durante
embates em franca reconfiguração — signos suficientes, portanto, o Congresso Internacional de Bruxaria. Em 1974, realiza no Masp, a
para que encerrássemos nossa investigação nesse marco temporal. convite de Pietro Maria Bardi, sua primeira exposição individual, na
qual inclui diversos retratos de travestis e transformistas; no ano
seguinte, faria outra exposição no mesmo museu, 24 pintores bra-
11. Ainda está por ser historiado em detalhe o protagonismo de muitas sileiros e suas obras. Ao longo da carreira, Madalena exporia ain-
travestis brasileiras no âmbito hispano-americano, das viagens individuais para
temporadas na noite dos países vizinhos, às turnês rio-pratenses de cantoras como da na Galeria Fotoptica, na Bienal, no MIS e na Pinacoteca. Entre
Valéria ou de trupes como Les Girls, com Rogéria à frente. suas exposições, vale mencionar O rosto brasileiro, realizada pelo
12. Assim, a maior visibilidade homossexual e trans não redundava numa Masp em 1983, um ano após ter sido censurada e cancelada em
liberdade automaticamente acrescida: em 1983, a transexualidade foi incluída como
“disforia de gênero” na lista DSM de doenças mentais. Ver PRECIADO, Beatriz. Testo Washington (EUA) por ingerência do embaixador brasileiro.
yonqui: sexo, drogas y biopolítica. Buenos Aires: Paidós, 2014, p. 33. Sempre fiel a seu gênero de predileção — a ponto de
13. LEMEBEL, Pedro. Loco afán: crónicas del sidario. Santiago: LOM, 1996, p. 5. ser chamada “a grande dama do retrato em nosso país” por Pedro
Karp Vasquez —, Madalena fotografa profissionalmente por duas
décadas. Nos últimos anos, mais recolhida, dedica-se à escultura, e
GONZALO AGUILAR é professor titular de literatura brasileira e portuguesa na Universidad de Buenos
falece em São Paulo em 25 de março de 1993. Seu acervo passa a
Aires e membro do Conselho Acadêmico do Museo Latinoamericano de Buenos Aires (Malba). É autor, integrar a coleção do IMS em 1998.
entre outros, de Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista (2003), Otros
mundos (Un ensayo sobre el nuevo cine argentino) (2006), Por una ciencia del vestigio errático: ensayos
sobre la antropofagia de Oswald de Andrade (2010) e Hélio Oiticica, a asa branca do êxtase (2016).
Verteu para o espanhol obras de Augusto de Campos, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Dalton
Trevisan e Oswald de Andrade.

SAMUEL TITAN JR. é professor de literatura comparada na Universidade de São Paulo, tradutor
e coordenador editorial do Instituto Moreira Salles.
Como se forja uma mulher 170 171 Duas respostas possíveis. Em primeiro Duas metades de coco foram meus primei-
lugar, não é preciso esforço para imaginá-las, nes- ros seios. Diante do espelho grande, Cícera
sa mesmíssima infância, proibidas de brincar de me surpreendeu e: outra surra. Eu cobria en-
boneca (ou duramente punidas por terem-no fei- tre as coxas com a mão para me ver como
to) sob a alegação de “não serem meninas”, forma Aparecida. Na minha fantasia, barriga redon-
bastante efetiva de se ensinar o que o conceito de da e fenda de menina.7
“menina” comporta. Além disso, seria necessário
conjecturar se, antes, ou mesmo junto, do desejo Fosse permitido a essa criança viver
de brincar de boneca, não haveria também o pro- como ela se entende, sem que o seu corpo fosse
pósito de sinalizar, por meio da brincadeira, como usado como argumento para deslegitimar a com-
a criança se entende. Para ilustrar esse ponto, con- preensão que ela faz de si, Fernanda jamais sentiria
sidere-se o seguinte trecho da autobiografia A prin- o desejo ou a necessidade de transformar seu cor-
cesa (1994), no qual a mulher trans Fernanda Farias po tão drasticamente. Mas ela conhece o mundo
de Albuquerque rememora a maneira como, desde em que vive e sabe que, numa época em que re-
a infância nos anos 60, no interior da Paraíba, ia cém se inventavam as narrativas trans, sua mulhe-
descobrindo e afirmando seu gênero: ridade com o corpo que tinha não passaria nunca
de um faz de conta entre quatro paredes. Para ela,
Fernandinho é melhor do que uma filha mu- isso não bastava, e não bastava, em especial, por-
lher; acorda cedo e me traz na cama café e que, desde inícios da década de 1970, começaram
AMARA MOIRA tapioca doce. Lava os pratos e já quer lavar a se popularizar no Brasil as tecnologias de trans-
roupa também. Nem mesmo Alaíde e Ade- formação corporal que revolucionariam nossas
História que ainda está por ser contada no formas mais frequentes e oprimidas da vivência laide aos sete anos faziam tanto. compreensões de masculino e feminino. 8
país é a das resistências que a comunidade trans/ homossexual”4 e, em “Escultura do sexo”, o psi- Guido Fonseca, delegado do 4º Distrito
travesti enfrentou por parte tanto do movimento cis canalista Fábio P. Lacombe aponta que “O ‘perso- Cícera falava de mim com dona Inacina. Eu, da capital paulista, e famoso por perseguir pessoas
feminista quanto do cis lésbico/homossexual, até nagem’ Lorys Ádreon em algum nível nos traz de ali perto, ouvia escondido, cheio de orgulho LGBTQIA+ durante a ditadura militar, testemunha a
chegar ao reconhecimento e visibilidade dos últimos volta Pigmalião”, figura que, sentindo “horror às e satisfação. nova era que essas tecnologias inauguram (era em
dez anos. Exemplos concretos disso encontram-se, mulheres”, por serem “todas pecaminosas e impu- que algumas conseguem, como ele mesmo nos diz,
dos anos 70 para cá, em diversas obras e declara- ras”, decide “esculpir a estátua de uma mulher tão […] “alcançar um dos seus objetivos mais caros, ou seja,
ções de figuras proeminentes desses ativismos. Um formosa, pela qual se apaixonou perdidamente, e uma semelhança quase perfeita com a mulher.
dos casos mais sintomáticos é o material paratex- acabou obtendo dos deuses que se tornasse viva Tinha sete anos e não sabia o que era peca- Chegam a enganar até o mais perspicaz obser-
tual que acompanha o livro Meu corpo, minha prisão e pudesse desposá-la” — a diferença consiste no do. Os grandes me escondiam as palavras, eu vador.”) 9 Ele sugere que tais tecnologias tiveram
(1985), de Loris Ádreon,1 primeira autobiografia es- fato de que Lorys, ao contrário do “herói lendário”, as roubava: vê como se comporta o Fernan- papel importante na forma como mulheres trans/
crita por uma mulher trans/travesti no Brasil. “pretende esculpir em seu próprio corpo a imagem dinho? Não brinca como os outros meninos, travestis passaram a ocupar o espaço público:
Nele, para além do relato autobiográfico, da mulher, cuja representação psíquica parece es- quer sempre se fazer de mulher para eles.6
temos o prefácio da “escritora e feminista” Rose tar no horizonte do impossível”.5 A prostituição masculina de então [antes da
Marie Muraro, responsável pela publicação da obra Os três textos criticam de forma contun- O que vem antes, o desejo por determina- década de 1970] era ainda uma prostituição,
e pela escolha dos três nomes que assinariam as dente, e com razão, a visão estereotipada de Lorys das práticas ou o sentido que essas práticas possuem, por assim dizer, envergonhada. Não tinham
notas posfaciais, todas elas unidas na deslegitima- sobre o que é “ser mulher”. O problema, no en- comunicam? Para quem observa de fora, a partir das os prostitutos a audácia dos atuais. Hoje,
ção da narrativa de Lorys: em “Brega delirante”, tanto, está em se valerem desses argumentos não identidades tidas por ilegítimas, nem sempre é per- não parecem sentir vergonha de sua anor-
a escritora Bernadette Lyra afirma que “a palavra apenas para problematizar a visão de Lorys, mas ceptível a diferença entre o que uma menina faz e o malidade. Acintosamente trajados como mu-
do texto resulta contraditória na medida em que, também para deslegitimar a reivindicação que o que faz uma menina, isto é, entre quando “menina” é lheres, fazem o trottoir pelas ruas, avenidas
se fazendo passar pela fala da fêmea, é, num jogo seu relato traz, isto é, de ser ela uma mulher. Um sujeito ou objeto desse “fazer”. Daí que, para Fernan- e praças da cidade, disputando os melhores
de inversos, uma fala do macho”; 2 em “Excesso falso paradoxo com que ainda hoje é comum de- da, não seja simples entender por que ela não pode pontos com as meretrizes e sempre levando
(ex-sexo) melodramático”, o revolucionário e gay 3 pararmos: mulheres trans/travestis associando sua ser “filha” de Cícera, se tem se saído “melhor do que vantagem.10
Herbert Daniel defende que a transexualidade rei- identidade feminina, por exemplo, ao fato de, na filha mulher”, e por que sua mulheridade é negada,
vindicada por Lorys seria uma tentativa de recusa infância, gostarem de brincar de boneca e, então, se se diz que ela “sempre se faz de mulher para os
da homossexualidade, o que configura “uma das vendo suas narrativas desacreditadas em função meninos”. Nessas passagens, o gênero é percebido
de brincar de boneca não ser considerado, intrin- como “algo que se faz” ou “que fazem com a gente”, 7. Ibidem, p. 29.
8. Nas coberturas do Carnaval do período, fotos desses
secamente (hipocritamente, se poderia também mas, na mesma página, vemos Fernanda a essa altu- novos corpos passam a rodar o país e divulgar a novidade. Cf. a
1. A capa e a contracapa do livro grafam o primeiro dizer), uma coisa “de menina”. Oras, se isso não ra também consciente de que gênero pode remeter a matéria “Enxutos: as bonecas são um luxo”, na qual, ao lado de
nome da autora como “Loris“, mas, dentro do livro, a palavra é algo intrinsecamente “de menina”, como foi que determinadas conformações do corpo: uma foto colorida com quatro travestis, duas delas nitidamente
aparece sempre com “y“. com seios, se escrevem observações como “eles vararam a noite
2. ÁDREON, Loris. Meu corpo, minha prisão: autobiogra-
lhes ocorreu a ideia? dançando, suspirando e gemendo, causando inveja a muita mu-
fia de um transexual. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, p. 133 . lher de verdade” e “não dá para entender o poder milagroso de
3. Palavras que o historiador James N. Green usou como certos hormônios” (Manchete, 17.03 .1973, p. 74).
título da sua biografia: Revolucionário e gay — A vida extraordiná- 6. ALBUQUERQUE, Fernanda Farias de e JANNELLI, Mauri- 9. FONSECA , Guido. História da prostituição em São
ria de Herbert Daniel, pioneiro na luta pela democracia, diversidade 4. ÁDREON, Loris. Op. cit., p. 136 . zio. A princesa: depoimentos de um travesti a um líder das Brigadas Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p. 229.
e inclusão (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018). 5. Ibidem, pp. 137-138 . Vermelhas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, pp. 28 -29. 10. Ibidem, pp. 223 -224.
Se o corpo era o problema, agora era pos- Abelha, fazendo o papel de si mesma, passeia com 172 173 a determinadas figuras trans/travestis, como Rogé- desnecessária, “apenas serviu para mutilar um indi-
sível transformá-lo, e Fernanda especifica as três uma gilete pelo braço e explica as cicatrizes que ria, outros tantos textos veiculados nos seus quatro víduo do sexo masculino; transformou um doente
tecnologias que, para ela, seriam determinantes ali se veem: “Eu corto, o sangue sai, a polícia tem anos de existência revelam o quão incompreensível, mental em eunuco, satisfazendo seu desejo mórbido
nesse quesito: os anticoncepcionais (vendidos sem medo que eu morra na delegacia e me solta. Quan- e logo problemática, era essa experiência aos olhos de castração”,18 argumentando ainda que “a trans-
receita nas farmácias, mulheres trans/travestis ra- tas vezes eu já fui presa?”.12 O dispositivo legal para da militância cisgênera homossexual. Exemplo disso formação do sexo poderia ter reflexo na ordem ci-
pidamente descobrindo que, como efeito colateral, justificar essas prisões arbitrárias era a “contraven- é o artigo “Sobre tigres de papel”, no qual João An- vil, induzindo a erro sobre o estado do ofendido, até
eles produziam em seus corpos o crescimento dos ção penal da vadiagem”, lei que, à época, não era tônio Mascarenhas, depois de tachar como machista mesmo ensejando um simulacro de casamento”.19
seios e a redistribuição da gordura para partes do mais aplicada à prostituição de mulheres cisgêne- e errado o afeminamento em homossexuais, afirma A matéria que Aguinaldo Silva, um dos
corpo consideradas femininas), as próteses de sili- ras, por essa ser considerada “um mal necessário”, que o propósito das operações cirúrgicas realizadas mais destacados integrantes do Lampião, dedica à
cone nas mamas, para quem buscasse seios mais com “uma importante função social, qual seja, a de por mulheres trans/travestis seria ocultar suas verda- decisão judicial de Spagnuolo escancara o quan-
imponentes, e as injeções de silicone industrial, pe- preservar a moralidade dos lares, a pureza dos cos- deiras identidades e que: to a preocupação dos magistrados jamais foi com
rigosíssimas e dolorosíssimas, pois impróprias para tumes no seio das famílias”,13 mas que se mostrava a suposta vítima da “lesão corporal gravíssima”,
o corpo humano e aplicadas sem anestesia, mas ca- uma ferramenta bastante útil para inviabilizar a exis- os esforços que ele [a travesti] dedica — e mas sim com a possibilidade de cirurgias do tipo
pazes de criar da noite para o dia um corpo escultu- tência de mulheres trans/travestis, visto que, numa nunca com total êxito — para assemelhar-se (nas palavras de um editorial do jornal O Estado
ral, só comparável ao das mais cobiçadas modelos. sociedade LGBTfóbica como a nossa, o argumento ao que metade da população mundial é com de S. Paulo, que louvou a condenação) propicia-
O efeito dos hormônios em Fernanda é lento, mas do “mal necessário” jamais seria alegado para a naturalidade, francamente, para mim, signi- rem “alterações de registros de nascimento para
o dos silicones, sobretudo o industrial, é imediato: prostituição exercida por elas. Na entrevista con- ficam uma perda de tempo e de energia mui- que pudessem unir-se pelo matrimônio indivíduos
cedida por Guido Fonseca ao historiador James N. to grandes.16 do mesmo sexo”. 20 Após denunciar a hipocrisia da
Só depois das aplicações eu soube para va- Green, esse ponto é abordado explicitamente: Justiça, que trata essas operações como mutilação
ler o que significava ser mulher no meio de Na mesma direção, mas pelo menos sem somente por envolverem mulheres trans/travestis,
mil desconhecidos. […] Fui literalmente ar- Mesmo que ele [a travesti] ficasse quatro ou o recalque de Mascarenhas, vai o artigo “Vítimas da recusando-se a adotar o mesmo critério para cirur-
rastada para um outro mundo: o mundo das cinco dias no xadrez, ele sofria prejuízo, por- falta de espaço”, de Luiz Carlos Lacerda : “O travesti gias plásticas realizadas por pessoas cisgêneras, o
mulheres. que não ganhava o suficiente para pagar o é o fetiche de uma visão heterossexual da homosse- autor apresenta o que acredita ser “a única discus-
aluguel, a prestação do carro… Ele começava xualidade. O homossexualismo, para ele, não existe. são realmente válida em torno do tema”:
Uma mulher com pau, eu sei. Mas o que eles a se conscientizar de que aquilo que ele fazia Existem o homem e a mulher. O travesti acredita ser
não veem é o que não convém ver. E eu os não dava o suficiente para sobreviver. Ele ti- mulher.”17 Na sequência, à mesma página, o autor Não teria essa operação o objetivo de conse-
ajudo. Dou garantias. Sei escondê-lo com nha de ou sair da área do 4º Distrito e ir para expõe ainda o seu entendimento sobre cirurgias guir lucros às custas de homossexuais que,
habilidade e experiência sob a minissaia. outra área onde não havia repressão, ou ar- de redesignação sexual (CRS): “E há casos em que tendo aprendido desde cedo que em matéria
Apertado em calcinhas elásticas. Minguado rumar emprego e viver de outra profissão.14 essa crença chega às raias da castração física, numa de sexo só existem duas opções, e rejeitan-
pelos hormônios. Amassado de tal modo aceitação definitiva de abrir mão da sua sexualida- do aquela que a natureza supostamente lhes
que só quem procura encontra. (Sei que A perseguição policial direcionada a mu- de empírica (o pênis)”. Perceba-se que, apesar do destinou, procurariam na outra uma saída
talvez não seja assim. Muitos sabem, perce- lheres trans/travestis, assim como a conivência da “acredita ser mulher”, nada muda em relação ao para sua insatisfação?21
bem. Veem e mesmo assim se comportam mídia hegemônica em relação a tais violências, vem tratamento masculino imposto a elas. O curioso, no
como se eu fosse toda mulher. E este “como denunciada em várias matérias do Lampião da Esqui- entanto, é que, se, para a militância homossexual A reflexão é pertinente, pois pesquisas e
se” para mim é muito. Talvez tudo.)11 na, jornal que, com 40 números publicados entre 1978 cisgênera, as reivindicações trans/travestis repre- práticas médicas não se explicam apenas pelo al-
e 1981, revolucionou a luta de dissidências sexuais e sentavam uma ameaça de heterossexualização das truísmo de quem as realiza. Há obviamente outros
Quando “fazer-se de” já não era o bastan- de gênero ao reivindicar uma consciência homosse- relações e subjetividades homossexuais, da pers- interesses em jogo, mas isso não deve fazer com
te, foram esses procedimentos que permitiram a ela xual que não se contentasse com guetos nem tole- pectiva cisgênera heterossexual, a alegação era o que se ignore o efeito que essas cirurgias produ-
passar a um outro nível, o de existir “como se fosse”. rasse estereótipos.15 No entanto, apesar da empatia exato oposto, isto é, a de que a existência de pes- ziram na visibilidade de corpos e narrativas trans/
Talvez pareça pouco, ou problemático, da perspec- expressa diante desses abusos e do espaço que deu soas trans/travestis ameaçaria promover a homos- travestis. Daí que, enquanto a militância cisgênera
tiva de quem nunca precisou lutar pelo reconheci- sexualização da heterossexualidade. lésbica/homossexual denunciava a patologização
mento do próprio gênero, mas os esforços que toda É o que se observa, por exemplo, no pro- de suas sexualidades promovida pela medicina, era
uma comunidade faz e os riscos que aceita correr 12. JABOR, Arnaldo (diretor). Eu te amo. Embrafilme, 1981.
cesso movido em 1976 pelo Ministério Público do justamente nesta que pessoas trans/travestis se
em nome dessa legitimação deveriam deixar claro Trecho entre 75’ 42 ’’ e 75’ 51’’. Estado de São Paulo contra Roberto Farina, cirur- apoiavam para buscar reconhecimento. Importante
o peso que isso assume em suas vidas. Perceba-se, 13. FONSECA , Guido. Op. cit., p. 230. gião plástico que, desde 1971, vinha realizando a considerar, no entanto, que a comunidade trans/tra-
14. GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexuali-
além do mais, que as modificações encetadas por dade masculina no Brasil do século XX . São Paulo: Editora Unesp,
CRS em pessoas trans/travestis, apesar de não haver vesti só sai em busca do apoio da medicina em fun-
tais tecnologias são em boa medida permanentes, o 2019, pp. 414 - 415. legislação específica permitindo a realização de tais ção de ser essa praticamente a única instância que
que funcionaria como um poderoso aviso tanto para 15. No editorial “Saindo do gueto”, presente na edição operações no Brasil. Na decisão que condenou Fa- se dispôs a escutar e legitimar suas reivindicações.
inaugural, eles respondem da seguinte maneira à pergunta “um
si mesmas como para o restante da sociedade: “Eu jornal homossexual, para quê?”: “Nossa resposta, no entanto, é rina, por lesão corporal gravíssima, a dois anos de
não voltarei a viver como antes”. esta: é preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele. prisão (revertida em segunda instância), o juiz Adal-
Numa passagem do filme Eu te amo O que nos interessa é destruir a imagem padrão que se faz do berto Spagnuolo afirma que a dita cirurgia, além de
homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, 18. Processo 199 / 76 , fls. 22- 3 . Observe-se, aliás, como a
(1981), dirigido por Arnaldo Jabor, a travesti Vera que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma visão do magistrado é similar à de importantes lideranças ho-
espécie de maldição, que é dado a ademanes e que sempre es- mossexuais, no que diz respeito à CRS.
barra, em qualquer tentativa de se realizar mais amplamente en- 16. MASCARENHAS, João Antônio. “Sobre tigres de papel”. 19. Ibidem, fls. 30.
quanto ser humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele Lampião da Esquina, São Paulo, n. 4, 25.08 -25.09.1978, p. 9. 20. Apud SILVA , Aguinaldo. “Transexualismo: um julga-
11. ALBUQUERQUE, Fernanda Farias de e JANNELLI, Mau- que ele desejaria ter.” Lampião da Esquina, São Paulo, n. 0 (edi- 17. LACERDA , Luiz Carlos. “Vítimas da falta de espaço”. mento moral”. Lampião da Esquina, São Paulo, n. 5, out. 1978, p. 5.
rizio. Op. cit., p. 82. ção experimental), abr. 1978, p. 2. Lampião da Esquina, São Paulo, n. 32, jan. 1981, p. 4. 21. Ibidem.
Com o genital sendo alegado, em todos de que ela é travesti, ela tira a peruca e diz: “Meu 174 175 de prazer, luxo e enfeite”. 28 Por fim, afirma que “a acaba levando-o ao suicídio. Mostram-se incapa-
os cantos, para deslegitimar a identidade de pes- nome é Patrícia, mas pode me chamar de Sandoval, homossexualidade não assumida [dos homens que zes de entender o que ele reivindica tanto amigos
soas trans, como não desenvolver uma relação e eu adoro rapazes curiosos como você”. A cena a desejam] fica perfeitamente protegida diante de próximos, como o deputado, quanto o feminismo e
conflituosa com o mesmo? Ninguém nasce que- acaba com Serginho gritando por socorro e tentan- Roberta Close. Afinal, aparentemente não se admi- a militância lésbica/homossexual cisgêneros de en-
rendo fazer cirurgia, ou desejando ter o genital x ou do fugir dos braços de Patrícia. 25 Mulheres trans/ ra um homem, e sim uma mulher.”29 tão. Marta é um exemplo apenas, mas observe-se
y, mas, quando se cresce ouvindo que ele é o pro- travestis, então, não só teriam pênis como também A crítica aos estereótipos empreendida o que diz o Galf (Grupo de Ação Lésbico-Feminista)
blema, difícil evitar o sentimento de aversão ou a estariam ansiosas por uma oportunidade para usá- pelo feminismo mascara o paradoxo da condição na carta que distribuíram no lançamento do livro
expectativa de “corrigir”, por meio de uma cirurgia, -lo, ainda mais contra homens indefesos. trans: como obter o reconhecimento do seu gêne- de Herzer, ocorrido pouco após sua morte:
esse “erro da natureza”, sobretudo após a inven- Nada mais distante da realidade, o que ro, senão apelando para os atributos que a própria
ção e popularização de cirurgias do gênero. Dizer a não impede que essa obsessão com os genitais de época entende como “femininos”? Não é Roberta O preconceito que empurra pessoas de cima
uma criança que ela não pode ser menina porque pessoas trans/travestis esteja sempre no primeiro quem os cria. Sua mulheridade seria mais facil- das pontes, como derrubou a jovem mulher
tem “pipi” não faz com que a criança se convença plano, mesmo para figuras que se destaquem em mente legitimada se, ao invés de depilação e ca- Sandra Mara Herzer de um viaduto para
de que não é menina: o que esse discurso faz é en- matéria de dissidência de gênero e sexual. Ou en- belos compridos, ela ostentasse barba e raspasse a avenida 23 de Maio, no dia 9 de agosto
sinar à criança que o genital que ela tem é o que a tão como entender as seguintes afirmações de Ney os cabelos? Além disso, é necessário perguntar por deste ano. Sandra Mara amava as mulhe-
impede de ter seu gênero reconhecido, momento Matogrosso: “A Roberta Close, por exemplo, des- que a crítica vai para uma das primeiras mulheres res numa sociedade ultramisógina, onde
em que se inicia um processo de rejeição ao pró- mascarou o machão brasileiro. Todo mundo sabe trans/travestis a obter reconhecimento, e não para apenas o masculino é positivo e tudo é fei-
prio genital e a tudo o que, em seu corpo, dificulte que é homem, e gosta. Ela é linda, mas é um rapaz. as Veras Fischers, as Luízas Brunets e as Moniques to para satisfazer as necessidades e anseios
a legitimação do que ela entenda ser. E esse toque masculino talvez seja o que mais atrai Evans que ocupavam posições similares à dela. As dos homens. Talvez por isso, supondo ser
A necessidade que Fernanda sente de nela.”26 Ney, que, na década de 1970, junto com as considerações de Marta sobre A queda para o alto incompatível a força e o feminino, o valor e o
esconder e anular seu pênis está nítida em vários Dzi Croquettes, balançaria as estruturas brasileiras (1982), de Anderson Herzer, primeira autobiogra- feminino, tenha se transformado em Bigode.
momentos de A princesa, revelando o peso sim- com a poderosa fusão de masculinidade e femi- fia publicada por um homem trans no Brasil, são Mas não cabe a nós criticá-la, pois Sandra
bólico que essa parte do seu corpo possui. Numa nilidade de suas performances, mesmo ele tinha igualmente reveladoras dessa incapacidade de Mara, o Bigode, tinha sua essência no femi-
das passagens de Meu corpo, minha prisão, Lorys dificuldade para entender uma narrativa que ques- compreender e aceitar uma noção de gênero não nino, não o feminino dos estereótipos, mas
chega mesmo a contar como, aos 5 anos, tentou tionasse o papel do genital na definição dos gêne- calcada no genital: aquele que transcende e não se conforma,
cortar fora o seu genital com uma tesoura, sen- ros. Reivindicava a androginia, o apagamento das preferindo até mesmo o suicídio. 32
do impedida pela mãe. 22 A descoberta da história fronteiras, mas não compreendia o gesto de quem, É o depoimento de uma jovem que en-
de Christine Jorgensen, mulher trans americana criada para ser homem, buscava o reconhecimen- trou com 14 anos, mulher, na Febem, e de E é Herzer quem nos conecta aos textos
que fez, com sucesso, a cirurgia de redesignação to de sua identidade feminina. Em outra entrevista lá saiu com 17 anos e meio, homem. […] O que abrem o presente ensaio, pois foi seu livro que
sexual no começo dos anos 50 e se tornou mun- concedida ao mesmo jornal, o cantor ainda afirma- que aconteceu com Sandra na Febem para pôs em contato Lorys e Rose Marie Muraro, edito-
dialmente famosa depois disso, faz com que Lorys ria: “Não preciso me cobrir de mentiras para poder mudar sua orientação sexual? Caso nunca ra de A queda para o alto. No prefácio de Muraro a
acredite que seu caso tem solução: “Eu não era passar por limpeza. A Roberta Close, por exemplo, tivesse ido parar na Febem teria mudado de Meu corpo, minha prisão, no entanto, vemos a cis-
o único no mundo a apresentar total disparidade deveria ser corajosa o suficiente para posar com- sexo? Foram as circunstâncias que a leva- generidade tanto se abrindo para dialogar com as
entre mente e sexo”. 23 Por não ter realizado ainda pletamente nua. Assim o povo iria enxergar de cara ram a se pensar como rapaz?30 reivindicações trans (ao problematizar, por exemplo,
a CRS, Lorys sequer se sente à vontade para se a realidade da coisa.”27 a negação da transexualidade por parte de um seu
tratar no feminino na narrativa. A incompreensão em relação a pessoas Marta ainda seguirá, por algumas linhas, amigo homossexual [Herbert Daniel?], e também o
Apesar disso, a maneira como persona- trans/travestis em geral, mas especificamente em problematizando a identidade de Herzer, descon- estereótipo propagado pela medicina de que a mu-
gens trans/travestis se fizeram presentes, à época, relação a Roberta, despontava também nos dis- siderando completamente o fato de que ele, da lher transexual precisaria, necessariamente, mos-
em produções audiovisuais demonstra que o peso cursos de importantes feministas cisgêneras do primeira à última linha do relato, se trata sem va- trar-se um ser “recatado, terno, discreto, submisso
dessa aversão era subestimado por perspectivas período, como por exemplo Marta Suplicy, que, cilações no masculino e por Anderson, ou seu àquele que ama”)33 quanto reproduzindo essa visão
cisgêneras. No já citado Eu te amo, por exemplo, a tentando entender “a irritação que ela (ele) causa apelido Bigode. Curiosamente, o mesmo proceder de gênero pautada pelo genital e pelo binarismo cis-
participação de Vera Abelha termina com ela rece- nas mulheres e o ‘encantamento’ que provoca em ocorre no próprio prefácio de A queda para o alto, sexista (nítida ao tratar Anderson no feminino e pelo
bendo sexo oral do protagonista Paulo (o ator Pau- muitos homens”, conclui que a razão é “porque se assinado pelo então marido de Marta, o deputado nome de registro ou ao falar do medo que sentiu ao
lo César Pereio) e, em meio a gemidos de prazer, coloca o falso como verdadeiro. O que não é como Eduardo Suplicy: “No dia 9 de agosto, Sandra Mara, encontrar-se pela primeira vez com Lorys, “um ser
mudando o próprio gênero e nome: “Paulo, eu me melhor do que o que é” e, pior do que isso, porque como eu sempre a chamara, embora ela preferis- indefinido, nem homem nem mulher, ambíguo por
chamo Paulo… Vai, Paulo, eu sou todo teu.”24 Outro “Roberta Close é o estereótipo levado ao quadra- se ser Anderson, conversou comigo sobre as suas dentro e por fora”34).
exemplo chocante ocorre em A mulata que queria do do ‘ser mulher’ na visão de uma sociedade pa- preocupações”. 31 Anderson descobriu, na Febem, Passagem que encapsula esses dois mo-
pecar (1977), de Victor di Mello. Nele, a persona- triarcal e subdesenvolvida onde a mulher é objeto que poderia existir como homem, mas, quando se vimentos é quando ela afirma que “Lorys como
gem Patrícia (a travesti multiartista Cláudia Won- vê livre da prisão, descobre que não poderia conti- mulher tem muito a dizer do mundo dos homens e,
der) fecha-se num quarto com um evidentemente nuar existindo da forma como se entendia, o que como homem, do mundo das mulheres”. 35 É como
bêbado Serginho (o ator Antônio Pedro) e come- se ela começasse a considerar a possibilidade de
ça a fazer um striptease. Quando ele se dá conta
25. MELLO, Victor di (diretor). A mulata que queria pecar. 28. SUPLICY, Marta. Reflexões sobre o cotidiano. Rio de
Di Mello Produções Cinematográficas, 1977. Trecho entre 63 ’ 40 ’’ e Janeiro: Espaço e Tempo, 1986, pp. 233 -234.
65’ 48 ’’. 29. Ibidem, p. 234. 32. “Carta por Sandra Mara”. Chana com Chana, n. 1, dez.
22. ÁDREON, Loris. Op. cit., p. 14 . 26. GROPILLO, Cilea. “Ney Matogrosso”. Jornal do Brasil, 30. Idem. Condição da mulher: amor, paixão, sexualida- 1982, p. 6 (itálicos do próprio texto).
23. Ibidem, p. 32. Rio de Janeiro, 08 .07.1984, Caderno B, p. 7. de. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 95 (texto originalmente publi- 33. ÁDREON, Loris. Op. cit., p. 6 .
24. JABOR, Arnaldo (diretor). Op. cit. Trecho entre 77’ 50’’ e 27. GRIZZA , Alice. “Ney Matogrosso”. Revista do Jornal cado no jornal Folha de S.Paulo, 21.11.1982). 34. Ibidem, p. 5.
78 ’ 10’’. do Brasil, Rio de Janeiro, 05.08 .1984 (itálicos do próprio texto). 31. HERZER . A queda para o alto. Petrópolis: Vozes, 1982, 35. Ibidem, p. 8 .
p. 13 .
uma mulheridade não calcada na vagina, mas não La Close não deu bola para sua genitália, que 176 177 LINN: … que nem toda mulher tem…
conseguisse esquecer do pênis com que Lorys nas- poderia impedi-la de ser mulher, e se cons- JUP: … barba! Mas é o meu caso…
ceu, o que só ajuda a explicar por que, para tantas truiu enquanto a imagem de mulher conven- LINN: … que nem toda mulher tem…
mulheres trans/travestis, a CRS se faz tão necessá- cional que circula por aí. Podemos questionar JUP: … chuchu! Mas eu tenho…
ria. Como nos esquecer desse genital ou reinventar essa imagem de mulher convencional que ela LINN: … nem toda mulher tem…
o que ele significa quando vivemos numa socieda- adotou, mas não a ela mesma. Sua criação é JUP: … cabelo seco, mas eu tenho!…
de que não sabe pensá-lo senão como sinônimo de muito particular e, embora parta da reprodu- LINN: … mas tem mulher que tem…
“homem” e que a todo momento tenta lembrar-nos ção do papel de gênero feminino, ao mesmo JUP: … pinto!…
de que nascemos com ele? tempo, rompe com ele, na medida em que o LINN: … olha só, gente!…
Conversando recentemente com Berna- subverte e modifica sua função principal, que JUP: … que novidade, pasmem!40
dette Lyra sobre o seu posfácio (e ela deixou claro é a de reprimir a sexualidade da mulher e a
que já não pensa daquela maneira), concluímos que sua autonomia em geral. No caso de Roberta Se, antes, identidades trans/traves-
sua crítica deveu-se ao fato de que, enquanto femi- Close, sua construção de mulher parece lhe tis incomodavam por, supostamente, se apegarem
nistas cisgêneras lutavam contra os estereótipos de dar bastante prazer e independência, e não a estereótipos de gênero, preparemo-nos agora
feminilidade impostos a pessoas criadas para ser dor ou opressão. 38 para, cada vez mais, termos que lidar com corpos
mulher (isto é, a quem nascesse com vagina), mu- dos quais nem será possível concluir se nasceram
lheres trans/travestis tentavam agarrar-se a esses Muito se pode ganhar com um resgate com pênis ou vagina. Por um mundo em que exis-
mesmos estereótipos num esforço de legitimar seu da postura contestatória de figuras como Dzi Cro- tências como essas não sejam possíveis apenas
gênero, a forma como se percebiam. De um lado, a quettes, Ney Matogrosso, Elke Maravilha e mesmo nos palcos.
pessoa obrigada a ser “mulher”, de outro, a proibida o andrógino Caetano Veloso dos anos de chumbo,
de sê-lo, o que não quer dizer que não existam pau- mas, se poucas pessoas trans/travestis do período
tas comuns a essas duas mulheridades, nem que costumam ser apontadas nesse tipo de lista, isso 40. PRISCILLA , Claudia e GOIFMAN, Kiko (diretores). Bixa
travesty. Válvula produções, 2018 .
elas não possam, juntas, construir uma luta pela su- talvez se deva menos à sua sujeição aos estereóti-
peração do sexismo. Essa união, no entanto, só faz pos e mais à dificuldade de perceberem o terremoto
sentido quando há abertura para o reconhecimento que nossas corporalidades antecipavam. Assegu-
do gênero de mulheres trans/travestis. rando-se mínimas condições de existência, como
Tal compreensão parece ser recente, mas agora começamos a ver, ainda há dúvidas de que o
brechas no pensamento hegemônico podem ser protagonismo na contestação dos padrões sexuais
encontradas, por exemplo, no já citado Chana com e de gênero é hoje encarnado por transvestigêneres,
Chana, jornal pioneiro nos debates sobre feminis- termo guarda-chuva criado por Indianare Alves Si-
mo e lesbianidade, editado pelo Galf entre 1981 e queira, que se autodefine como “nem mulher, nem
1987. No volume 6, do trimestre nov.-dez.-jan. de homem, pessoa de peito e pau”? O que, nos anos
1984-1985, Míriam Martinho publica uma intrigante 80, começava a se desenhar na vida e obra da “Diva
reflexão sobre a mulheridade de Roberta Close, de- da dúvida” Claudia Wonder, 39 assume agora o seu
fendendo que “ela é a prova mais contundente do esplendor em figuras como Linn da Quebrada e
que Simone de Beauvoir, autora do livro O segundo Jup do Bairro, que, no documentário ficcional Bixa
sexo, escreveu há quase três décadas”, isto é, que travesty (2018), de Claudia Priscilla e Kiko Goifman,
“ninguém nasce mulher, mas sim torna-se mulher”.36 protagonizam esse precioso diálogo:
O mais surpreendente, no entanto, é a maneira como
a autora constrói seu argumento. Após criticar a na- [Jup acaba de contar que o taxista a tratou no
turalização dos papéis sexuais, que teriam como masculino e ela precisou corrigi-lo, momento
principal objetivo “manter a dominação do homem em que elas começam uma a completar a fra-
sobre a mulher e o controle da sexualidade e do se da outra]
comportamento das pessoas em geral”, 37 e tachar
como “pseudocientífica” a noção de “configuração JUP: Eu tive que explicar pra ele…
cerebral feminina” (utilizada pela medicina para ex-
plicar a transexualidade), Martinho lança as bases
de um feminismo capaz de problematizar os essen-
38. Ibidem, p. 5.
cialismos de gênero sem que, com isso, se deslegiti- 39. Assim a define Caio Fernando Abreu, em sua crôni-
mem as identidades trans/travestis: ca “Meu amigo Cláudia” (O Estado de S. Paulo, 17.06.1986, Caderno
2, p. 2 .): “Para a maioria dos senhores do mundo, a presença de
Cláudia deve representar a suprema transgressão, a mais perigosa
das ameaças. Tanto que andam matando pessoas como Cláudia,
na noite negra e luminosa de Sampa. É que meu amigo Cláudia in-
corporou, no cotidiano, a mais desafiadora das ambiguidades: ela AMARA MOIRA é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária (com tese sobre
36. MARTINHO, Míriam. “Roberta Close: homem ou mulher”. (ou ele?) movimenta-se o tempo todo naquela fronteira sutilíssima as indeterminações de sentido no Ulysses, de James Joyce) e autora do livro autobiográfico
Chana com Chana, São Paulo, n. 6, nov.-dez.-/jan. 1984 -1985, p. 2. entre o ‘macho’ e a ‘fêmea’. Isso numa sociedade em que principal- E se eu fosse puta (hoo editora, 2016) e do monólogo em pajubá “Neca”, publicado
37. Ibidem, p. 4. mente o genital é que determina o papel que você vai assumir.” na antologia LGBTQIA+ A resistência dos vagalumes (Nós, 2019).

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