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HISTÓRIA DOS JOVENS

_4 época
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COMPANHIA DAS U 3TRA.S


Copyrighr © 1994 by Éditions du Seuil
er Gius. laterza & Figli
Título original:
Storia dei giovani
L 'età contemporanea
Capa:
Ettore Bottíni
sobre Menina com tranças,
óleo sobre tela, de Arnedeo ModigJiani
Prepar.1ção:
Márcia Copola
Revisão:
Ana Maria Barbosa
Denise Gutierrez
Maria Cecma Madarás
Rosemary Cata/di

D:ldo.s Internacionais de Catalog;~ç,lo na PubUoçio (c1r)


(Câmara Dm>ilelra do Livro, SI' , n msil)

Histórl~ dos jovens I org;!Jiiza~-:lo Giovannl Levi , Je~ n·


Claude Schmltt ; tr3duç-lo l'aulo :-leves. Nilwn Moulln,
Maria I-úci> )!achado. - S~o Paulo : Companhia da<
Le tras, 1?96.

Título original: StOria dd giov2ni.


Conteútlo: v. I. Da antiguidade à Era Moderna.
- v. 2. A ~poca comcmpor:inea.
ISBS 85·7164·541 -8 (v, I) - ISBS 85·il 64·555·8 (v. 2)

t. jovens - Hlstóri2 t . lcvi, Clo\":anni. u. Schmiu,


Jean·Ciaudc.

96-1480 CDI>-305.23509

!ndJccs p-•ra c:n:Uogo sistem:llico:


I. Jovens : Hist6rl2 <ocW 305.23509

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UFPB 00015/00 .JP BC_MON

SUMÁRIO

_\ Imagens da juventude na era moderna (Giovanni Romano), 7


· A experiência militar (Sabina Loriga), 17
Ser jovem na aldeia (Daniel Fabre), 49
A juventude operária. Da oficina à fábrica (Michel/e Perrot), 83
Os jovens na escola: alunos de colégios e liceus na França e na ,.
E~x_opa (fim do séc. XVIII - fim do séc. xrx) (]ean-Claude Ca-
ron), 137
Jovens rebeldes e revolucionários: 1789-1917 (Sergio Luzzatto), 195
O mito da juventude transmitido pela imagem: o fascismo italiano
(Laura Malvano), 259
Soldados de uma idéia: os jovens sob o Terceiro Reich (Eric
Michaud), 29 1
.., A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jo-
vens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950
(Luisa Passerint), 319
IMAGEf\lS DA ]DYEN TUDE
NA ERA _lfQDE~VA
Giovanni Romano

Q>_.:=:-: =:=:ciE ~:-=-~::.:.:::: po:.IcO:S :±~:ários que possam ser


:- ~:. - :._ · ~ - :...... x~e= ~--a :-etira.r co fundo de imagens da
~::!C:açâo inequí,·oca sobre os jo>ens, en-
- _ _ -!".:- -- ----, ;: 50Cial. sem alimentar muiras ilusões so-
::.I...-=-= c... : ~:óprios quadros e sem menosprezar os
~~ - .~ ::::::onscieme ou involuntária por parte ele pes-
~~ .:o::: quem remos dificuldade ele comunicação. Os
.:._ .::--=-=:~.:~ =a culrura figura tiva ilustram, em primeiro lugar, um
.=-~:::;.:c O::;; .:assa criati>idade intelectual, desde o momento re-
=: ::o quaL dela passamos a ter consciência. Em segundo lugar,
-= ~ ~:ençio programática, podem também documentar outros
...s;;e.::os do social, mas para aventurar-se nesse terreno é preciso
e:iikar. sem atalhos equívocos, todas as passagens de mediação
~ e>.liSO no .\ntigo Regime. Contudo, não é uma prática comum
_ :.:::e!p:eração brutalmente atualizadora elos documentos figurati- .
::: dos quais os historiadores ela arte se aproximaram com esforço,
s=:::n :er encontrado um terreno propício junto a certos historiado-
:-::s de outras manifestações culturais, transformados em aprendizes
~ :"e!jceiro de maneira imprudente. A base documental de toda dis-
a;:;~'"'la institucional deve voltar a ser garantida pelos mais habilita-
_:)5.. aparelhados com instrumentos de filologia pertinentes; é justo
:-=~mr.ar. de antemão, a rodos aqueles que tentam aventurar-se fo-
~ ce seu campo ele formação, se fizeram um exame específico que
5 ~bilite para isso.
··_.vs urinam mores/ animunque effingerc/ posses, pulchrior in
:;:o::is nulla tabella foret/ .MCCCCLxxxvm", a legenda que comenta o
8 HIST6!UA DOS }OI'ESS

retrato de Giovanna Tornabuoni, na coleção Thyssen de Lugano


(fig. 1), sublinha a frustrante vivência dos pintores quatrocenristas
quanto à impossibilidade de oferecer uma imagem convincente dos
sentimentos e dos costumes morais; o fracasso era ainda mais du ro,
para Do menico Ghirlandajo e para outros pintores contemporâneos,
pois na década de 80 do século xv a Itália cortesã e literária se apre-
sentava dominada por uma difusa exigência de sentimentalismo (so-
bretudo amoroso), fadado a compensar-se no renascimento da lírica
petrarquiana e num romance exemplar como a Arcadia de Sannaz-
·zaro. Por disposição natural, os jovens eram as vítimas predestina-
das daquela epidemia, e torna-se inegável que, para a literatura de
consumo mais imediato, é a juventude quem a coloca em primeiro
lugar . Não se pode afirmar o mesmo no que concerne à pintura e
à escultura, que sofrem para acompanhar o caminho da literatura
e se ressentem ainda por determinado tempo de uma documenta-
ção figurada sobre os jovens enquanto tais (exceto alguns retratos
à amiga, mas de acesso complicado para quem mal saía da adoles-
cência).
A superação do limite assinalado pela suposta impassibilidade
das artes se deve a Leonardo da Vinci, ocupado desde a década de
80 do século xv em representar sob formas sensíveis todos os im-
pulsos mentais do homem, em particular os " amorosos"; as fomes
contemporâneas são unânimes em reconhecer-lhe esse mérito su-
premo e disso estava consciente ele próprio no momento de inven-
tar, como acompanhamento de um retrato, o mote que constitui
a resposta decisiva ao desesperado utinam de Ghirlandajo: "Não
descobrir, se a liberdade te é cara,/ que m eu rosto é prisão de amor"
(Forster, m, f. 1Ov); não se tratava somente de restabelecer a inten-
sidade psicológica e sentimental do retrato, mas sim de carregá-la
com tamanha fo rça de sedução a ponto de tornar a imagem seme-
lhante a um talismã poderoso. Daí o grande êxito do retrato amoro-
so entre a última década do século xv e os primeiros anos do sécu-
lo seguinte, às vezes acompanhado de símbolos alusivos: o casto
arminho da Cecilia Gallerani de Leonardo (fig. 2), a vela acesa no
retrato de Lorro que está em Viena, a laranja azeda no chamado re-
traw Ludovisi de Giorgione, que está no Palácio Veneza (fig. 3).
Depois da longa predominância dos retraws masculinos (sobre-
tudo como autores de encomendas de retábulos sacros), este é um
dos poucos períodos da cultura italiana em que a ribalta figurativa
1.\IAGEXS DA ]UVE,\ TUDE NA ERA MODF.RNA 9

é equiHbradamente ocupada pelos dois sexos, ambos agentes do diá-


logo amoroso. Considera-se quase obrigatória uma fruição do tipo
oU1os nos olhos e, às vezes, o retrato será duplo desde o início, no
caso de histórias que levaram ao matrimônio (figs. 4 e 5); em outros
casos, emerge a tensão de sentimentos difíceis de exprimir, como
no raro desenho de Michelangelo para Andrea Quaratesi (Londres,
British Museum; fig. 7); muitos retratos femininos não se ligam a epi-
sódios sentimentais específicos, mas sim ao papel de cortesãs das
mulheres imortalizadas (fig. 6), especialistas em " dotes mentais" gra-
ças a competências amorosas e literárias pessoais.
O impressionante aparecimento de jovens vítimas do amor é
um caso quase único na história da arte européia e, como parece
claro, não é mérito em primeiro lugar ou somente dos artistas; fo-
ram a descoberta e a promoção de uma irrenunciável capacidade
humana para abrir espaço a um grupo social que até então ficara
na sombra, e que a ela logo voltará: assim que a sociedade tradicio-
nal se der conta da força destruidora oculta quando prevalecem sen-
timentos livres sobre as normas da convivência civil. No decorrer
do século XVI , os retratos de jovens gradualmente passarão a fazer
parte de uma categoria não restrita à idade, mas sim à casta de ori-
gem (figs. 9 c 10). Inclusive os grupos de família passam do entrela-
çamento livre dos afetos (fig. 8) à irrepreensível catalogação de " her-
deiros" e de "infantes" para possíveis trocas matrimoniais (fig. 11 )
ou sobre os quais mensurar o prestígio inexaurfvel da família: o se-
nador Ulisse Gozzadini, no retrato de Lavinia Fontana, hoje na Pi-
nacoteca Nazionale de Bolonha (fig. 12), exibe, além das filhas, os
dois genros incorporados.

Caravaggio tem trinta anos quando arruma nas paredes e no al-


~ da capela Contarelli, na igreja de São Luís dos Franceses, as suas
histórias de são Mateus (1600-2). Não é mais um pintor jovem, ain-
da sendo questionado, porém explode uma hostilidade bastante fone .
•-\5 fontes contemporâne~s lembram que o velho Federico Zuccari
quis \·erificar pessoalmente as razões de tanto escândalo e afirmou,
~om cerra perfídia, não ver ali razões para tanto barulho; e acres-
<:e:ltou que aquele lombardo presunçoso tinha simplesmente copiado
u.-:::. pínrura de Giorgione em Veneza (provavelmente o modelo gior-
I0 Hlrr6RIA DOS ]OI'ENS

gionesco foi invemado na hora, para defender a fama pessoal de


pintor-professor que já viajara muito e tinha visto tantas coisas).
As grandes telas na igreja de São Luís constituíam, para Cara-
vaggio, o reconhecimento definitivo de sua " maturidade" pictóri-
ca, que fora retardado além do necessário por causa da não-su bor-
dinação de seus modos (pictóricos e de comportamento) às regras
dominantes; diame daquelas obras-primas , o velho Federico Zuc-
cari fazia a última tentativa para impedir em Roma a afirmação de
uma alternativa radical à cultura figurativa tradicional c ao modo cor-
. rente de compreender o ofício de pintor, mas a batuta já mudara
de mãos e Caravaggio podia estar certo de ter vencido a partida pa-
ra si próprio e para outros mais jovens que ele . As coisas tomaram
outro rumo e os dois p ro cessos tentados por Baglione, em 1603 e
1606, deixam entender que o suposto grupo caravaggesco estava
minado em seu interior por rivalidades devastadoras e que uma tal
personagem (contemporâneo de Caravaggio, mas com um currícu-
lo menos provocatório) podia se tornar um ponto de referênc ia pa-
ra os adversários.
Creio que seria útil uma pesquisa sistemática sobre essa dramá-
tica passagem entre gerações de pintores, com especial atenção pa-
ra o comportamento dos mais jovens, a fim de verificar se os teste-
munhos contemporâneos, no campo figurativo, são revelaclores, c
em que direção, da vida dos pintores que são considerados "do gru-
po" de Caravaggio (pelo menos a partir de 1606). De tudo que emer-
giu até agora, me parece de fato identificável, embora ele modo não
muito formal, um grupo social com características comuns quanto
à origem, vida e, enfim, p ro fissão (para melhorar esta última, todos
convergem para Roma, ainda uma capital cultural e grande merca-
do para oportunidades artísticas). Raramente de origem romana e,
assim, nunca tendo o apoio de uma fam ília estável, se agregam se-
gundo a proveniência geográfica e por necessidades de indigência
partilhada; poucos afortunados são dependentes de famílias cardi-
nalícias, mas mesmo n um caso desses a instabilidade é muito alta,
o que se reflete em suas vielas morais e sentimentais, e igualmente
nos hábitos religiosos. Parece que se casam tarde, vivendo de pre-
ferência em grupos pequenos, reunidos em quartos alugados, en-
quanto algum fracasso profissional não reordena os núcleos esta-
belecidos para enfrentar as dificuldades comuns; constituem um
grupo à parte os nórdicos, de religião protestante, que logram até
fundar uma bufa sociedade juvenil (os Bentveughels).
IJIAGE.\"S DA JUVENTUDE NA ERA MODERNA II

O itinerário biográfico de Caravaggio é emblemático em seus


episódios de fome, exploração, sofrimentos, desespero, provoca-
ção e poderia ser multiplicado por dezenas e dezenas de outros per-
cursos, mais ou menos afortunados. Nesta série social, as fomes car-
toriais, judiciárias e eclesiásticas (em especial os Stati d'anime) são
ricas de informações, na mesma proporção das reticências dos tes-
temunhos artísticos: muiros desses pintores não conseguem emer-
gir com obras reconhecíveis nos arquivos da história da arte. De tal
constatação podem ser extraídas algumas conseqüências acerca da
inadequação das provas figurativas sobre realidades de fato que não
envolvem diretamente sua função primária. Os quadros de Caravag-
gio (fig. 13) são testemunhos insubstiruíveis das características do
mercado artístico e dos gostos do colecionismo romano nas primeiras
décadas do século xvn, ou então da definição de um novo tipo de
retábulo sacro: em sua maioria, foram executados em função daqueles
tipos de troca, daquelas estratégias estilísticas ou de prestígio e da-
quelas devoções; não informam outro tanto sobre o cotidiano de
seus autores, a menos que se queira arriscar pelo caminho escorre-
gadio dos fenômenos projetivos, compensatórios ou de sublimação.
Foi também muito fácil no caso de Artemisia Gemileschi rela-
cionar certa constância iconográfica (vários casos de Holofernes de-
golado) com o trauma provocado por um processo famoso, mas não
é automático transferir para o jront masculino tal gênero de leitura.
Quantos jovens Davis triunfantes no campo caravaggesco (fig. 14),
e também quantos sacrifícios de Isaac, com duas gerações perigosa-
mente em confronto: mas como ler essa constatação estatística? O
caso pessoal de Caravaggio poderia ser resolvido fo rçando a mão
sobre os poucos indícios de suas experiências homossexuais, mas
antes de fazer intrigas a respeito seria melhor ter uma idéia clara so- .
bre que opiniões podiam então circular no âmbito artístico e sobre
a incidência previsível daquelas relações no tipo de vida que leva-
vam os jovens caravaggescos. De qualquer modo, o discurso pare-
ce encerrar-se com o próprio Caravaggio, porque depois dele as prin-
ci pais razões para preferências iconográficas particulares são tanto
o desejo de competir com o mestre, adotando os mesmos cavalos
de batalha, quanto as preferências dos colecionadores por temas de
perícia fisionômica, então canônicos: as pinturas para coleção são
adquiridas por causa do belo acabamento, pelo tema difícil ou de
arualidade, incluindo os escândalos. Com o passar dos anos, mas
sem afastar-nos excessivamente de Caravaggio, pode acontecer que
/2 HISTÓRIA DOS JOVENS

um colecionador amigo de Guercino (Aurelio Zaneletti) peça ao pin-


tor dois quadros fazendo pendant: um com José que resiste à mu-
lher de Putifar e outro com Amon que expulsa Tamar depois de tê-
la seduzido (ambos se encontram hoje em Washington; fig. 20). Vir-
tude masculina contra disponibilidade feminina? Não seria tão drás-
tico sobre as virtudes de Amon e as culpas de Tamar. Contudo, os
dois quadros são uma ótima ocasião para retratar nus em poses se-
dutoras, e isso era uma demonstração de destreza pictórica, mais
que a projeção das perturbações pessoais do pintor. As razões da
pintura se sobrepõem às razões privadas e estas últimas emergem,
quando emergem , através de mediações demasiado cambiantes pa-
ra que possam ser identificadas com um mínimo de seriedade. A crí-
tica histórica não pode se tornar uma adivinhação, com alta mar-
gem de erro, que observa as obras de arte como um analista presta
atenção aos sonhos do paciente; de fato, seria bom lembrar que o
analista opera sobre uma quantidade de informações teoricamente
infinita (como o número das sessões) e, se tudo correr bem , com
a colaboração ativa do analisado; ao contrário, trabalhamos sobre
um corpus de "sonhos" pintados, reduzido tanto pela seleção do
tempo corrosivo quanto pelos caprichos do colecionador e, pior
ainda, sem relações diretas com o "sonhador".
Pode haver um tema de pesquisa sobre o grande êxito de te-
mas bíblicos e evangélicos com p resenças juvenis na pintura seis-
centista (em particular a que se inspirou em Caravaggio ou mais ge-
nericamente moderna), mas não consigo ver de que modo estejam
envolvidos os jovens contemporâneos nas séries infinitas de Tobias
e o anjo (fig. 21 ), Embriaguez de Noé, Caim e Abel, Lote suas filhas,
Rebeca no poço, Esaú e J-acó, José e seus irmãos, Davi e Saul, Agar
repudiada, Tamar reconhecida, Sansão e o favo de mel, O filho pró-
digo, Cristo no templo etc. Se ainda resta um espaço de trabalho
para o tema em pauta, seria levado a reconhecê-lo em outras séries
pictóricas, em que a intenção inicial, se não a predominante, é jus-
tamente a ele ilustrar momentos ele vida dos jovens. Poderiam ser
confrontadas as diferen tes redações da Educação da Virgem no tem-
plo, para extrair de lá indícios sobre o ideal feminino do século xvn,
ou então refletir sobre tantos quadros com trapaceiros ou ciganas
quiromantes que depenam adolescentes ingênuos numa esquina (ce-
nas freqüentes no cotidiano de nossos pintores; figs. 15 e 17), ou
então reconhecer uma elegia da vida bobemienne nos refinados qua-
dros de Valentin com jovens que jogam baralho, bebem, tocam e
IMAGENS DA JUVENTUDE NA ERA MODERNA J3

cantam, festejam de vários modos no interior de salões sem enfei-


tes ou do lado de fora de velhos vestíbulos romanos (fig. 16). Aqui
talvez exista um programa indiretO cle documentação sobre a vida
dos jovens da Roma caravaggesca, certamente adaptado às regras
então dominantes do colecionismo em moda.
Mas se tivesse de indicar um testemunho caravaggesco irrefu-
tável recorreria, em primeiro lugar, aos dois retratos juvenis, lidos
como pendant, pintados em Roma por Cecco del Caravaggio (aliás,
Francesco Boneri) e hoje conservados em Madri (fig. 18). Trata-se
de um retrato duplo de noivado num ambiente popular: os dois pro-
tagonistas ~s tão circundados de objetos e animais alusivos a algu-
mas obscenidades alegres (um confrontO com gravuras flamengas
comentadas por legendas, a exemplo daquelas do monogramista
HSD, não deixa dúvidas). Aqui, a realidade de um momento de vida
dos jovens emerge por via direta, justamente porque as pinturas fo-
ram concebidas com essa função específica, contudo tais documentos
são quase únicos. Raramente noivos que não fossem ricos podiam
permitir-se um retrato duplo e, por outro lado, a evidente lascívia
de alguns objetos simbólicos não tornava atraentes aquelas obras
além do restrito círculo familiar; portanto, é possível imaginar uma
eliminação desse tipo de retratos. Creio que também pertencem à
série aberta por Cecco dei Caravaggio a]ovem com tamborim e O
bebedor ele Ribera (hoje em coleções privadas) ou o extraordinário
retrato de noiva de Stanzione agora em São Francisco (fig. 19).

A revolução cultural provocada por Caravaggio deixará marcas


ao menos durante dois séculos, segundo desdobramentos diretos
ou indiretos, e no curso dessa longa carreira figurativa é possível co-
ligir facilmente uma grande quantidade de imagens juvenis; o reper-
tório de retratos, não mais caracterizados apenas como status symbot,
reserva-nos encontros freqüentes com ·a adolescência e a primeira
juventude pela mão de Ceresa (fig. 22), de Ghislandi, de Ceruti (fig.
23) e ele outros, originários sobretudo da Itália setentrional. No ca-
so de Ceruti, pode-se mesmo tentar utilizar, para uma sedutora ilus-
tração de uma história dos jovens na Itália, algumas personagens de
seu repertório, como os portaroli adolescentes (aspirantes a carre-
gadores quando adultos), registrados com solidariedade conivente
nos momentos de intervalo no trabalho. São exemplos bastante no-
bres de uma pintura que os contemporâneos definiam como de "gê-
/4 HiSTÓRIA DOS jOVENS

nero ", mas não ultrapassam a singularidade do tipo para chegar a


fixar um modo de ser ou de reconhecer-se da categoria social re-
tratada.
Da Itália meridional chegam outras tranches de vie graças a Tra-
versi, em sua dimensão mais criticamente documentalisra, e são fa-
mosas suas cenas de escola e de sociedade, com indubitável ápice
no Contrato nupdal do Palácio Barberini, em Roma, mas podería-
mos dizer que a informação que dão sobre os jovens do século XVIII
ocorre quase e silentio: também os de boa sociedade, não só os po-
pulares caros a Ceruti, encontram-se presos a regras de comporta-
mento que não lhe pertencem e que parecem deixá-los livres, ele
modo ilusório, somente na hora do matrimônio, quando é dema-
siado tarde para viver a diversidade natural da própria juventude.
Desse ponto de vista, o Contrato nupcial de Traversi está muito perto
da rigidez alucinada ele um pesadelo, e o pensamento volta de bom
grado a uma pifnura seiscentista com tons um pouco mais leves e
com um tema próximo: a primeira noite de núpcias (o quadro, de
Giovanni da San Giovanni, hoje se encontra na Galeria dos Uffizi
de Florença). Foi pintado para um colecionador de paladar não pre-
conceituoso como cl. Lorenzo ele Medici (e a respeito elos condicio-
namentos elo colecionismo creio ter dito o que era necessário), mas
é tão rara a ocasião de observar uma cena primacial da vida juvenil,
fora elos pruridos da pornografia, que até merece que se dedique
a ela algum tempo.

" [... ] O mundo é exatamente o contrário do que deveria, pois


o jovem, que não tem outra regra para julgamento exceto a natureza
e, portanto, é juiz assaz competente, julga sempre e inevitavelmen-
te verdade o que é falso, e falso o verdadeiro." Leopardi condensa
nesta sua reflexão elo Zibaldone (2 de agosto de 1821) as difíceis
relações entre as novas gerações, crescidas no entusiasmo do pri-
meiro Romantismo, e a frustrante experiência do mundo ela Restau-
ração, que, de fato, exclui os jovens de qualquer papel operacio-
nal: " Houve um tempo em que o ardor juvenil, coisa naturalíssima,
universal, muito importante, entrava intensamente nas considera-
ções elos homens de Estado. Essa matéria vital e de suma importân-
cia já não entra na balança dos políticos e dos reitores, mas é na
prática considerada como inexistente" (1? de agosto de 1820). A
convicção setecentisra e depois romântica de que a natureza con-
1.\/AG/!.VS DA JUVENTUDF. NA ERA MOUt'HNA 15

servaria a p ureza original e a virtude não contaminada coloca sob


o foco das atenções a idade que parece menos comprometida com
os artifíc ios da civilização, tanto que penso ser possível calculares-
tatisticamente um aumento percentual do retrato de jovens entre
o final do século xvw e os primeiros trinta anos do século seguin-
te, com exemplos supremos também na Itália (basta pensar em Ba-
toni); o assunto pode variar do fogoso retrato do jovem guerreiro
heróico até a pose pensativa do retratado entre ruínas ou diante do
espetáculo da natureza, mas é constame o cuidado com a inclina-
ção psicológica da personagem: " Des Menschen Gegenwart, sein
Gesicht, seine Physiognomie der beste Text zu aliem ist" [O texto
fundame ntal é o homem como se apresenta, seu rosto, a sua fisio-
nomia) Q. K. Lavater, Physiognomiscbe Fragmente, \Vintenhur, 1784
e seguintes, v. 2, p. 76).
Porém, no repertório de conjunto podemos isolar um subgê-
nero particular que caracteriza melhor ainda o modo de ser das jo-
vens gerações (ou uma ilusão delas, para dizê-lo como Leopardi).
Penso no retratO coletivo de coetâneos como lembrança simbólica
do sentimento de amizade que caracterizou suas relações numa es-
tação que não se repetirá mais (o Freundschaftbild dos jovens pin-
tores alemães em Roma por volta de 18 10-20). A amizade funciona-
va como instrumento de coesão e solidariedade contra a agressão
do mundo circundante (o dos mais velhos) c valia freqüentemente
tam bém entre irmãos. O retrato d uplo de Giuseppina e Carlo tta di
Lorena, pintado por Loren zo Pccheux, por volta ele 1780 (fig. 24),
cxplicita o conceito mostrando as irmãs no aro de fa zer um sacrifí-
cio, a despeito de Cupido, num altar jraternae amt'cüiae sacrum,
mas mesmo sem legenda e sem relações familiares diretas o tema
real de tais retratos é reconhecido nos exemplos de Matteini, De Boni
(fig. 25), Bossi, Tominz (fig. 27) c outros. Mais complexo e interes-
sante é o caso do grande desenho de Tommaso Minardi em que o
pintor, seu mestre Giuseppe Zauli c o amigo Michele Sangiorgi as-
sistem fasc inados ao diálogo de Sócrates com Alcibíades (Faenza,
Pinacoteca Comunale; fig. 26). Ali, a jovem geração se defronta com
mestres de outra época, aceitos como tal, e seria interessante poder
entender se não se trata da ilustração direta de alguns conceitos ex-
pressos, também por Leopardi, justamente sobre o tema da amiza-
de: "Exceto a exaltação das ilusões, que favorece bastante a amizade
dos jovens , é certo que, especialmente hoje, quando as grandes e
belas ilusões não se encontram, a amizade é mais fácil entre um ho-
/6 HISTÓRIA DOS]OVlJ,VS

mem maduro c um jovem do que entre jovens" (17 de setembro


de 1821 ). Nesse caso, Leopardi pensa em suas próprias relações pes-
soais com Pietro Giorclani (declara isso abertamente numa anota-
ção ele 20 ele janeiro ele 1820), mas creio que é extensiva a toda a
primeira geração " romântica" uma contínua e difícil alternância entre
a consciência ela própria altericlade e da própria força , como grupo
ligado por vínculos solidários e pela busca de guias morais nos quais
fosse reconhecível sem esforços a figura ideal do pai/mestre . Um
clossiê sistemático sobre essa tipologia particular ele retratO faci lita-
ria a nossa abordagem de outro tema típico da experiência juvenil.

Tradução do italiano por Nilson Moulin


A EX PERIÊNCIA MILITAR
Sabina Loriga

A guerra tem traços juvenis. É aos " imberbes consagrados" que,


segundo Gabriele d'Annunzio, se dirige "o sacerdote de Marte" quan-
do diz: " Partam, armem-se, obedeçam. ,·ocês são a sememe de um
novo mundo". Às palavras de D'Annunzio fazem eco as de outros
poetas e artistas que celebraram os dotes bélicos do "jovem" ou
do "heró ico proletário de vinte anos". 1 Imagens de juventude fo-
ram também evocadas por aqueles que recordaram o inútil sacrifí-
cio nos campos de batalha de ramas "frescas bocas sorridentes" :
" morreram aos milhares", escreve Ezra Pound em 1920, "e os me-
lhores dentre eles, por uma velha cadela desdentada, por uma civili-
zação remendada". 2 Por outro lado, o jovem macho eo interlocu-
tor do soldado com o dedo erguido, aquele que em muitas imagens
de propaganda do início do século lembra aos civis seus deveres
em relação à pátria.3 O mesmo acomece com os hinos. "Os novos
jacobinos queriam levar a juventude embora, diretO ao massacre", .
diz uma canção toscana de 1849; "não quero morrer tão cedo" , con-
firma um canto em memória de Salvatore Misdea, que, na primavera
de 1884, tinha se barricado num dormitório do quartel de Pizzofal-
cone, em Nápoles, e disparado ao acaso, matando cinco soldados
e ferindo o utros sete.4
A tais imagens juvenis freqüentemente se atribuiu um valor ini-
ciatório. O serviço militar sanciona o ingresso do indivíduo no mun-
do dos adultos, sugerindo, emre outras coisas, a imagem do me-
nino que desempenha as tarefas militares como se já fosse homem
(o tocador de tambor de Marie-]oseph Chénier ou aquele de Edmon-
do de Amicis). Segundo essa representação literária, a instituição mi-
18 HIS1ÚRIA DOS jOVENS

litar é um divisor de águas existencial, que assegura a emancipa-


ção econômica, afetiva e sexual do jovem. A história profunda des-
se modo de representar o ofício das armas ainda está para ser escri-
ta. Tendo como base as inúmeras pesquisas sobre o exército hoje
disponíveis, parece-me , contudo , possível pôr em evidência como
a imagem do ritual de passagem para a idade adulta foi constituído
e sedimentado lentamente. Nas páginas seguintes, limitar-me-ei a pro-
por algumas considerações indicativas sobre os diferentes modos
pelos quais milhões de soldados, voluntários e não-voluntários, se
defrontaram com a realidade da guerra ao longo de mais de trezen-
tos anos, do século xvn ao início do xx.

No decorrer do século XVII, "o século elo soldado", mais de 10


milhões ele homens5 assumiram o ofício elas armas . Apesar elas gran-
des ondas pacifistas, os dois séculos sucessivos não foram muito
civis: entre 1618 e 1763, a França combateu durante 73 anos; as
Províncias Unidas, 62; a Espanha, 82; a Inglaterra, apenas 45, e a
Áustria, aproximadamente 92 .6 As guerras dos "profissionais" fo-
ram logo seguidas pqr 24 anos de "guerras revolucionárias", de 1792
a 1815, e pela longa cadeia ele "guerras elas nações", que se suce-
deram ao conflito na Criméia e precederam a explosão ela Primeira
Gu~rra Munclial.7
Para além elos períodos ele combate, um elos elementos comuns
da história européia é o aumento constante da fo rça militar. No sé-
culo XVIII, na França e na Rússia, chegava-se aos 300 mil homens;
na Áustria, 200 mil; na Prússia, 150 mil; na Suécia e Grã-Bretanha,
100 mil; na Espanha e Piemonte, 50 mil. 8 Em geral, tratava-se de
voluntários, mas alguns eram obrigados a vestir a farda. O primeiro
país a instituir o serviço militar obrigatório foi a Suécia, onde, em
1544,. o Riksdag instituíra o recenseamento anual elos homens e o
direito de convocar, em caso de necessidade, um homem em cada
cinco. Um século mais tarde, a crescente necessidade de mão-de-
obra bélica obrigou a Espanha e a Inglaterra a organizar milícias na-
cionais e induziu o marquês de Louvais a sortear 25 mil franceses
e encaminhá-los para defender as fortalezas do país. A presença mi-
litar na sociedade, já bastante forte, rornou-se ainda mais capilar quan-
do começaram a ser adestrados soldados regulares também em tempo
de paz. No Piemonte, os recrutas dos regirnentos provinciais, insti-
tuídos por Vittorio Amecleo n, logo após a guerra de sucessão es-
A EXPERtfl.NCIA MILITAR 19

panhola, deviam participar de dois treinamentos anuais e executar


algumas funções particulares (como a vigilância das fronteiras ou
o serviço de segurança pública); na Prússia, o Kantonsystem , intro-
duzido por Federico JJ, o " Rei Sargento", em 1713, obrigava os ho-
mens a faze r exercícios militares duas ou três vezes por ano, desde
a idade de dez anos.9
Além de dar um caráter predominantemente nacional aos exér-
citos, o serviço militar obrigatório envolvia na rede institucional não
só os profissionais da guerra, mas também civis que tinham uma vi-
da normal (casa, trabalho etc.). O princípio segundo o qual todos
os cidadãos aptos tinham o direito e o dever de defender a pátria
foi afirmado definitivamente durante a Revolução Francesa. Peran-
te a ameaça estrangeira, em 5 de setembro de 1798, o governo re-
volucionário estabelecia, com a lei Jourdan-Delbrel, que todos os
cidadãos que tivessem completado vinte anos se inscrevessem na
mesma época ("conscritas") nas listas de recrutamento nos cinco
anos seguintes. A conscrição universal obrigatória, que, depois da
formação dos exércitos napoleônicos, foi adotada em rodos os paí-
ses europeus (exceto na Inglaterra), aumentou ainda mais o recruta-
mento de homens: somente na França, durante as guerras revolu-
cionárias napoleônicas, foram chamados às armas quase 4 milhões
de jovens. 10
Depois de 1815, os governos europeus trataram de organizar
exércitos de menores dimensões. A Áustria renunciou à conscrição
universal obrigatória; Holanda e Bélgica a ela recorreram só em ca-
sos excepcionais (quando os voluntários eram insuficientes), enquan-
to a França e o Piemonte preferiram o sistema de sorteio, que deter-
minava recrutar menos de 20% de todos os jovens aptos com vinte
anos e concedia a possibilidade, para quem tivesse sido sorteado para
servir, de ser substituído, mediante pagamento, por um suplente.
Porém, depois de um breve período de incertezas, o sistema da cons-
crição obrigatória foi retomado e aperfeiçoado por todos os países
europeus (com exceção da Grã-Bretanha).11 Durante o reinado de
Guilherme 1, a Prússia restabeleceu a obrigação de sete anos de ser-
viço ativo (três anos sob as armas e quatro na reserva), ao passo que,
entre 1872 e 1873, França e Itália estabeleceram o princípio da obri-
gação militar individual: graças à abolição da substituição e à redu-
ção do tempo de serviço (de cinco para três anos), a percentagem
dos recrutas em serviço ativo aumentou de modo considerável (na
França, em 1889, passava de 50% para 73% dos conscritos). 12 Nos
20 HISTÓRIA DOS jOVENS

anos imediatamente posteriores, além disso, o alistamento univer-


sal foi adotado também pelo Japão e por muitos países da periferia
européia: Turquia, Montenegro, Romênia, Sérvia, Bulgária, Suécia,
Noruega, Bélgica. 13 Conforme observava Francesc<? de Sanctis, em
1878, perante o Parlamento italiano,
a guerra[ .. .Jadquiriu[ .. .] tal caráter de potência e um desenvolvimen-
to de ação tão grande que os novos deveres impostos para o futuro
a todos os povos europeus trazem consigo uma verdadeira transfor-
mação social. Como quer que se julgue essa transformação, é um fato
que as potências tiveram de enfrentar como u ma necessidade absolu-
ta, b uscando, cada um a seu modo, a solução des te grande problema:
colocar, em caso de guerra, toda a nação em armas. 14

Tabela 1
Número de militares (em milhares)
Anos Fr. AI. lt. Ingl. Áus. Bélg . H o i. Din. Sué./Nor.
1850 439 131 41 201 434 .35 30 26 63
1860 608 201 183 3.47 306 40 39 25 68
1870 452 319 155 257 252 40 39 39 58
1880 544 430 167 248 273 46 41 6 65
1890 596 505 257 278 332 45 42 18 65
1900 621 624 262 487 308 51 31 Il 73
1910 652 673 252 372 31 5 48 28 15 35
1920 1457 114 1350 596 29 156 14 16 72

. Tabela 2
Percentagem de militares na população masculina entre 20 e 44 anos
Anos Fr. AI. lt. Ingl. Áus. Bélg. H o i. Din. Sué./Nor.
1850 6,5 4,7 5,3 4,3 14,5 4,3 5,4 10,3 7,2
1860 9,0 6,6 23,0 7,2 9,7 4,7 6,5 8,7 7,1
1870 6,5 7,7 3,3 5,0 7,3 4,5 6,3 12,9 6,0
1880 8,1 5,7 3,3 4,4 7,2 4,9 6,1 1,8 6,4
1890 8,6 6, 1 5,1 4,4 8,2 4,3 5,7 5,3 6,4
1900 8,8 6,3 5,3 6,6 . 6,9 4,2 3,6 2,8 6,4
1910 9,0 5,8 4,7 4,5 6,7 3,5 2,8 3,4
1920 22,6 1,1 22,9 7,4 2,5 10,8 1,2 3,0
Ponte (para as duas tabelas): P. Flora (org.) State, economy and society in Western
Europe (I 815-1975) fEstado, economia e sociedade na Europa ocidental (18 15·1 975)),
v. 1, The growth of mass democracies and wel{are State [O crescimento das demo-
cracias de massa c do Estado de hem-estar), Londres, 1983, pp. 245-53. Os dados
relativos à Alemanha de 1850, de 1860 e ele 1870 só se referem à Prússia. Os da
Itália de 1850 e de 1860 referem-se apenas ao reino da Sardenha.
A EXPF.RIENCIA .11/L/TAR 2/

Com a conscrição universal obrigatória rerornavam à ribalta os


exércitos de massa: o aparecimento das estradas de ferro finalmen-
te permitiu transportar e abastecer massas imensas de homens far-
dados (cf. tabelas 1 e 2) . A corrida à potenciação militar era guiada,
em 1870, peJa Confederação Alemã do Norte, que conseguia mobi-
lizar 1,2 milhão de homens (o dobro dos mobilizados por Napoleão
na conquista da Rússia), e, em 1914, peJa Alemanha, que chegava
a mobil izar 3,4 milhões.'; A preocupação em aumentar a mão-cie-
obra bélica era tal que condicionava rodo o debate demográfico:
a quantidade dos recursos humanos e a taxa de natalidade tornavam-
se elementos de avaliação da potência militar. Assim, em 1867, AJ-
fred Legoyt escrevia, no]ournal des Economistes, órgão oficial dos
economistas liberais, que na França a mortalidade, infantil e geral,
ainda era muito elevada e insistia na necessidade de "salvar, para
o país, um grande número de existências preciosas, que, mais tar-
de, contribuirão para sua força, grandeza e segurança" . Segundo o
chefe do Bureau de la Statistique de Paris, entre 1800 e 1850, a po-
pulação francesa aumentara apenas 31% (de 27,3 milhões para 35,8
milhões), enquanto a inglesa crescera 47% (de 15,2 milhões para
22,5 m ilhões) e a alemã, 45% (de 24,7 milhões para 35,7 milhões): 16
França c Áustria estão no último lugar[ ... ], mas, quaisquer que sejam
as caúsas das consistentes diferenças que acabamos de assinalar, elas
são dignas de serem consideradas atentamente, pois, num tempo bem
fácil de calcular, a ordem atual de grandeza e de potência dos Estados
europeus será profundamente perturbada pelo simples jogo das desi-
gualdades nas proporções de crescimento das respectivas popula-
ções.17
O exército não foi sempre um interlocutor específico da juven-
tude, tampouco um espaço ocupado exclusivamente por machos
jovens. É claro que, também nas sociedades elo Antigo Regime, a
maior parte dos soldados era composta por homens na flor da idade
que decidiam ir embora da terra de origem, após um conflito, de
natureza não necessariamente econô mica, com a família ou a co-
munidade . Mas, junto com muitos na faixa elos vinte anos, assumiam
o ofício das armas também numerosos adultos e, às vezes, até an-
ciãos e crianças. Dentre os soldados enviados para a Flandres, no
inicio do Seicento, muitos tinham trinta anos, e alguns até mais (nas
companhias valãs e espanholas encontravam-se homens de até se-
tenta anos). Um século mais tarde, na França, 16,6% dos recrutas
22 HISTÓRIA DOS jOVENS

tinham mais de quarenta anos e 11,8% menos de 21, ao passo que,


no Piemonte, 18,4% tinham menos de dezoito e 10% , mais de trin-
ta. Percentuais análogos foram também calculados do outro lado do
Atlântico, em Massachusetts, onde, durante a Guerra dos Sete Anos,
24,7% dos recrutas tinham menos de dezenove anos e 18,4%, mais
de trinta. 18
Durante muito tempo, a idade dos recrutas teve pouca impor-
tância: quem quisesse podia alistar-se. O que contava, no momento
do engajamento, era o aspecto físico. Conforme se lê no verbete
"Idade" da Encyclopédie méthodique [Enciclopédia metódica], "en-
tre as nações pouco civilizadas, o princípio do serviço militar não
é determinado pela idade, mas pela força" .19 Sobre o problema da
idade, já enfrentado na segunda metade do século xvn, começou-
se a discutir com freqüência em todos os países europeus no século
seguinte, essencialmente por dois motivos: a alta mortalidade dos
soldados nas guarnições e as dificuldades dos oficiais para discipli-
nar a tropa . Em ambos os casos, o problema não dizia respeita ape-
nas aos anciãos, mas também aos mais jovens, os rapazes de quinze
ou dezesseis anos. Morriam demais. No campo de batalha, mas tam-
bém em tempo de paz, atormentados por " uma febre pútrida, cha-
mada febre elo hospital ou das prisões": o ar elos quartéis, constan-
temente viciado, favorecia de faro o tifo exantemático ou peteqtiial,
a disenteria lncilar, a varíola e outras doenças que "impregnavam
com eflúvios venenosos as roupas, as lt'ngeries e outros objetos" .2 0
Como observavam os inspetores militares, os mais atingidos não eram
os velhos, que pareciam capazes ele "suportar o cansaço" , e sim os
mais jovens.2 1 O segundo problema concernia à disciplina: além de
adoecer facilmente, os soldados mais jovens levavam muito tempo
"para servir como se eleve" e representavam com freqüência um
obstáculo no campo de batalha.22 Por esse motivo, alguns oficiais
pediam que fosse recrutada mão-de-obra mais adulta, e o marquês
Donatien de Sacie escrevia que era necessário
refletir sobre o vício maior de nossos princípios modernos, de modo
a perceber que o objetivo fundamental não é ter militares muito jo-
vens, mas que sejam bons. Conforme o preconceito atual , é absoluta-
mente impossível que tal classe ele ciclaclãos tão úteis possa ser per-
feita, enquanto se tratar ele alistar jovens, sem saber se possuem as
aptidões necessárias e sem compreender que será impossível possuí-
las se não fo r oferecida aos jovens aspirantes a possibiliclacle ele ad-
quirir tais aptidões por meio ele uma longa e perfeita educação .23
A EXPERIÊNCIA MILITAR 23

A discussão sobre as aptidões militares inseria-se num debate


mais amplo sobre a maioridade. Enquanto era progressivamente re-
tardada a idade válida para fazer testamento, prestar juramento ou
professar votos religiosos, 24 em rodos os países, teve início a re-
gulamentação da idade dos soldados, submetendo-se o recrutamento
voluntário à autorização paterna: se um rapaz tivesse começado a
carreira·das armas sem o consentimento dos pais, estes teriam di-
reito de pedir a anulação do contrato de alistamenro .25 O limite
mínimo continuou a variar: na França, foi estabelecida a idade de /
dezesseis anos em 1681, ele dezessete em 1763, de dezoito em 1793,
devinte e m 1798 ... 26 A tendência de elevar a idade do serviço só
se inverteu no início do século xx, ~ando de novo crian_çªsJ o -
às armas. 2 7
ram- chamadas-----
Por outro lado, embora pouco a pouco fossem definidos limi-
tes de idade, os exércitos continuaram a receber crianças por mui-
to tempo : em 1870, quando da explosão da guerra contfãa Prússia,
a França ainda se valia de 5 ~os. 28 Nem sempre
os recrutadores respeitavam as normas e, para estar numa guarni-
ção, não era preciso ser alistado como soldado. Os quartéis eram
freqüentemente visitados por mulheres, velhos c crianças. Nem sem-
pre é possível quantificar a presença dos civis, mas Jacques Callot
e Pieter ele Hooch, no século XVII, Watteau e Thomas Rowlandson,
no século xvm, e também no seguinte, Horace Vernet, o pintor ele
Napoleão e ele Carlos x, deixaram inúmeros testemunhos iconográ-
ficos da promiscuidade física da instituição militar. Ademais, sabe-
se que, em 1567, o duque de Alba comandava 8646 soldados ele
infantaria e 965 cavaleiros, e tinha de alimentar pelo menos 16 mil
bocas; seis anos mais tarde, em 1572, 3 mil infantes espanhóis eram
acompanhados por quase 2 mil civis, entre lacaios, mulheres e crian-
ças. Dois séculos depois, em meados do século xvm, o exército fran-
cês dispunha ele 30,2 mil soldados e 12 mil civis; como admitia o
comandante dos Invalides, "em todas as companhias }1á muitos sol-
claclos casados[ ... ] e não se pode absolutamente dispensá-las (as mu-
lheres) para lavar e remendar a roupa branca elos soldados" . Até o
início do século XIX, as mulheres participavam normalmente da vi-
ela dos exércitos, trabalhando como lavadeiras, remendeiras, cozi-
nheiras, prostitutas.29 Se algumas chegavam sozinhas à guarnição,
por iniciativa pessoal (por vezes disfarçadas de homem), muitas acom-
panhavam o marido, levando junto os filhos, os quais eram prepa-
rados desde pequenos para o ofício das armas: como Durimel, o de-
24 HISTÓRIA DOS JOVENS

sertor do drama de Louis-Sébastien Mercier, que passara a infância


"em quase todos os lugares em que se desenrolara o espetáculo da
guerra ''.3°
Segundo alguns oficiais, a promiscuidade sexual dos acampa-
mentos era um obstáculo para a disciplina. Como explicitava um
ordenança francês de 1686, no campo de batalha, os soldados com
família rendiam menos, porque "as exigências das mulheres e elas
crianças os impediam de dedicar-se, como deveriam, a servir
bem" .3 1 Porém, mulheres e filhos surgiam também como um ele-
mento de coesão do exército. Enquanto os soldados solteiros eram
desarraigados, capazes de fugir por qualquer coisa, os casados eram
bastante estáveis: desertavam menos e mais dificilmente sofriam de
nostalgia. Como escrevia o sr. Garrigues de Froment em 1755:
É um preconceito sem fundamentos, aquele difundido na França e alhu-
res, segundo o qual os soldados casados ou os pais de família enfren-.
tam com menos coragem o fogo do inimigo. A experiência de séculos
(demonstra) que eles se batem com a mesma audácia, são menos liti-
giosos e dissoluws e infinitamente mais apegados ao próprio corpo
c à nação do que os soldados solleiros.32
Além disso, a presença ele crianças era apreciada do ponto de
vista profissional. Na segunda metade do século xvm, difundiu-se
a idéia de dar uma educação militar aos órfãos, aos bastardos, aos
abandonados e, sobretudo, aos filhos de soldados, na esperança de
que demonstrassem acentuadas inclinações marciais.33 Na década
de 1780, Moheau, especialista em população, assim exprimia o so-
nho ele fazer deles militares perfeitos:
Os filhos dos homens mais bonitos de toda a nação, precocemente
engajados com o alimento fornecido a eles desde a nascença, não con-
servarão a beleza da espécie? Nascidos sob uma tenda ou num quar-
tel, tendo tido como primeira roupa pedaços de uniforme, não assu-
mirão logo o espírito militar?3 4
Depois ela revolução, os exércitos continuaram a acolher jovens
de tenra idade. ]osep{l Bara, o heróico tocador ele tambor retem-
brado por Marie-Joseph de Chénier, em Le chant du départ, morria
numa emboscada aos catorze anos, e o Terror inventava os " bata-
lhões ela esperança", as tropas de crianças, evocadas com admira-
ção por Stenclhal, em Vie de Hemy Brulard [Vida de Henry Bru-
lard]:
A EXPERIÊNCIA .IIILfTAR 25

Haviam sido organizados os batalhões da Esperança ou o exército da


Esperança (estranho que não me lembre com exatidão o nome de uma
coisa que tanto excitou a minha infância). Eu ardia de vontade de par-
ticipar daqueles batalhões que via desfilar. Hoje percebo que era uma
instituição excelente, a única em condições ele erradicar o clero na
França. Em vez de brincar ele coroinhas, a fantasia das crianças se ocupa
com a guerra e se habitua com o perigo. Se depois a pátria os chamar
aos vinte anos, conhecem o exercfcio c, em vez de tremer diante do
desconhecido, lembram-se das brincadeiras da infância.35

Entre 1805 e 1807, os estudantes universitários e ginasiais, en-


quadrados em companhias especiais, receberam uniformes e come-
çaram a ter quatro horas semanais de exercícios militares, ao passo
que, em 1811, foi constituído o régiment des pupilles de la Garáe,
um corpo especial de 6 mil rapazes entre quinze e dezo.go anos. A
idéia de formar "uma geração de cidadãos guerreiros", como a de-
finiu Ugo Foscolo,36 teve grande sucesso inclusive durante o sécu-
lo xrx inteiro, tanto que, em 1880, foram criados em Paris alguns
bataillons scolaires: dois anos depois, mais de 20 mil jovens fran-
ceses, militarmente treinados, estavam prontos para a revista do 14
de julho.37 Mesmo com vida breve, os regimentos de estudan tes,
previstos pela lei sobre a escola de ]ules Ferry,38 assinalavam uma
reviravolta importante: enquanto infundiam a esperança de milita-
rizar toda a juventude, sancionavam a separação entre as crianças
e os jovens conscritos. Em pouco tempo, a infância era expulsa do
exército e todos os governos aperfeiço~vam projetos complexos de
formação pré-militar: os rapazes deviam adquirir força física e
apropriar-se da disciplina do soldado não no quartel, mas em ou-
tras instituições. Em primeiro lugar, na escola, como esclarecia, em
1890, uma intervenção em prol da ginástica militar:
O cidadão soldado não se forma no quartel, mas na escola; uma vez
que cidadão soldado é só aquele que na escola c no aconchego do-
méstico aprendeu a sentir o que é o sagrado fogo da liberdade, o san-
to amor pela pátria, c aprendeu a vencer por ela ou a perecer nos cam-
pos de batalha. Quando os jovens entrarem no exército aos vinte anos,
tendo antes recebido na adolescência uma preparação gimístico-militar,
e já exercitados e adestrados nas academias de tiro ao alvo nacionais,
esses jovens chegarão às nossas bandeiras como soldados já feitos e,
o mais importante, poderão oferecer em qualquer circunstância( ... ]
um contingente de 800 mil valentes, antes ele terem entrado nas filei-
ras do exército.39
26 HISTÓRIA DOS jO Vi:.N S

No mesmo período, os exércitos afastavam também as mulhe-


res. A França impedia as mulheres dos soldados ele servirem como
fornecedoras de alimentos já em 1840 c, catorze anos mais tarde,
deixava partir para a Criméia só as enfermeiras, enquanto na Ingla-
terra os Contagious Diseases Acts elos anos 1860 equiparavam as mu-
lheres que viviam em guarnições às prostitutas e definiam sua pre-
sença não apenas como inútil , mas até m_e smo perigosa. Também
os outros países europeus consumavam a separação entre Vênus e
Marte; só nos confins, na fronteira americana, na Índia ou no Norte
da África ainda era possível encontrar alguma mulher no meio da
tropa .40

Com a conscrição obrigatória, introduzida pela p rimeira vez na


França, em 1798, o serviço militar se tornava um fato peculiar aos
homens elos vinte aos 26 anos. Fosse o rom amargo ou jocoso, as
canções começaram a descrever o serviço militar como uma pro-
funda injustiça contra a juventude. E não só por causa ela guerra:
Bonapart l 'ha mandà a díre, difundida em roda as regiões da Itália
setentrional, exprimia a tristeza de abandonar a casa e romper brus-
camente as mais importantes ligações afetivas.
Talvez por isso, o chamado às armas muitas vezes era solene-
mente celebrado: na Bretanha, os pais acompanhavam os filhos até
os limites ela aldeia e pediam-lhes que cortassem os cabelos e os co-
locassem numa caixa. Como lembrava, em 1807, o p refeito de Fi-
nisterre, em determinados lugares a cerimônia assumia tons religiosos:
O modo pelo qual a maior parte dos bravos habitantes dos campos
se separa dos filhos chamados a defender a pátria é tocante e digno
de ser recordado. Primeiro, conduzem-nos a cerra distância. Lá,
abraçam-nos, pronunciando um adeus eterno. Após tê-los cumprimen-
tado, voltam para ~asa cantando o De profundis.41
Nas sociedades elo Antigo Regime, muitos soldados voluntários
abandonavam o país de origem porque sentiam as antigas ligações
sociais ameaçadas. Como o sabiam os recrutaclores, que tratavam
de "penetrar nas famílias c intrometer-se em todas as coisas da al-
deia", a decisão de alistar-se era muitas vezes o incômodo resulta-
do de uma briga:
É preciso ir a todas as festas, não propor nada nos primeiros dias, e
esperar que comece a faltar dinheiro, então os camponeses se mos-
A EXPERIÊNCIA MILITAR 27

tram disponíveis para o alistamento. Com um pouco de argúcia e pre-


cisão, é possível tirar proveito das brigas . Acontecem sempre nessas
ocasiões e, em vez de se meter com a justiça, os jovens preferem alis-
tar-se. 42
Com a lei ]ourdan-Delbrel, a partida militar deixava de ser um
gesto solitário para se tornar um evento coletivo, que reforçava nos
jovens o sentido de pertencerem a um grupo etário bem preciso.
Como escrevia, no ano VII·, o p refeitO de Landes:
Chamar às armas uma classe inteira significa formar uma coalizão, to-
dos os que a compõem estão prontos a socorrer-se e a proteger-se
reciprocamente sem trégua. Significa golpear todas as famílias e en-
volvê-las numa mesma causa. Daí se desencadeia uma proteção aos
desertores, aos quais se oferecem vários refúgios.4 3
Contudo, a solidariedade dos conscritos se transforma rapida-
mente em rancor social. Como o sabiam os milhares de jovens que,
ano após ano, se rebelavam contra o "escrutínio revolucionário ",
a injustiça militar em relação à juventude não era uniforme: as dis-
criminações começavam no momento da extração dos números e
atravessavam todo o serviço no exército. Isser Woloch observou
que, durante as guerras napoleônicas, os burgueses efetivamente cha-
mados às armas foram poucos: entre 1808 e 1813, somente 7% dos
candidatos avaliados se incorporaram numa unidade militar (em
relação a uma média nacional de 19%), ao passo que 42% foram re-
formados por razões físicas, 30% liberados através de sorteio, 15%
substituídos e 6% foram beneficiados com um adiamento (porra-
zões familiares e outras).44 O que mais escandalizava era o altO nú-
mero de reformados e de ocultados. Como indagavam cinco "re-
publicanos ele Dijon":
Por que fatalidade ocorre que o sangue [dos pobres] corre com abun-
dância enquanto o elos ricos é economizado? Por que, apesar de ro-
das as leis que foram sancionadas, esses pequenos senhores encon-
tram sempre meios de encher os escritórios e os hospitais, ele manejar
a pena ou o bisturi, enquanto seus companheiros dão tiros de fuziJ? 45
Mas também provocava escândalo a quantidade de abastados
que, após terem sido sorteados para servir, se faziam substituir por
um coetâneo, pagando uma cifra equivalente a cerca de dez anos
de trabalho de um braçal agrícola. Uma soma considerável, que in-
·duzia os jovens elo Maine a guardar, desde criança, "os pequenos
28 HISTÓRIA DOSJOVF.NS

ganhos obtidos com a colheita de frutos selvagens, flores ou cogu-


melos" .46 O sistema da substituição era sentido como particular-
mente injusto, e alguns militares, dentre os quais Lazare Carnot, fa-
laram até em "esquálido comércio de vidas humanas", em "tráfico
de jovens", de "mercadores de homens" .47
Perante a parcialidade das autoridades militares, muitos jovens
se sentiam autorizados a tentar qualquer caminho, desde que evi-
tassem servir o exército. Alguns desposavam "ficticiamente", com
a cumplicidade dos pais, mulheres velhas que logo eram abandona-
das em troca de alguma ajuda concreta. A esse respeito, o vice-
prefeito do distrito de Lario observava:
A juventude bela, e mais bem constituída, tem em si a prerrogativa
de agradar às mulheres, c, portanto, a faculdade de encontrar quem
se case com ela, livrando-a da requisição, permanecendo assim uma
espécie de descarte nas quatro listas de núbeis requisitáveis, que afi-
nal não passam de uma juventude mal constituída, de compleição grá-
cil, e de formas fei as, a qual certamente não pode oferecer bons servi-
ços, nem ter ~tquelc ar digno e imponente que é tão necessário para
um soldado.48
O resultado de tais casamentos "precipitados" era freqüente-
mente infeliz, pois "aqueles jovens desgraçados" não tinham nem
a força física, nem a maturidade psicológica para se tornarem che-
fes de família. Em 181 O, por exemplo, na aldeia de Vincuil, comen-
tava-se que, por causa de uma desventurada união com uma sep-
tuagenária, Pierre Labbé havia entrado "num forte desequilíbrio"
que primeiro lhe provocara falta de apetite e depois o conduzira
ao suicídio. 49
Para escapar do chamado às armas, outros jovens se fingiam de
doentes. O prefeito de Seine-Inférieure relatava que os conscritos
faziam esburacar os dentes, mastigavam incenso para cariá-los, pro-
vocavam chagas incuráveis nas juntas usando arsênico ... A lista das
doenças era muito variada: a única diferença, como escreveu, mui-
tos anos .mais tarde, um médico italiano, era que os camponeses si-
mulavam " tranqüilamente a surdez, a enuresc, as chagas, doenças
que, além da constância e tenacidade, exigem tolerância à dor físi-
ca", ao passo que os moradores das cidades recorriam facilmente
"a tratamentos debilitantes para emagrecer, a convulsões, a palpita-
ções, às alterações das faculdades visuais" .so
A EXPERIÊXCIA .lf/L/7'AH 29

A quem não podia casar ou se ftngir de doenre, e não queria


servir, restava a fuga. Entre 1792 e 1814, centenas de milhares de
desertores e de insubmissos foram "acolhidos nas casas de paren-
tes, de amigos, e ali permaneceram tranqüilos". Os limites entre com-
paixão e proteção eram incertos e, de qualquer modo, a ajuda da
comunidade era muitas vezes agravada pela indolência das "autori-
dades civis e talvez também militares, que não cumprem com seus
respectivos deveres".5 1 As pesquisas de Isser Woloch demonstra-
ram que, na França, afinal de comas, o mecanismo da conscrição
obrigatória funcionou bastante bem, pelo menos até 1811, mas não
há dúvidas de que suscitou igualmente muitos protestos. 52 Em 1799,
o prefeito de Nievre escrevia ao ministro do Interior:
Na altura do alistamento militar, os jovens cultivadores encontram nas
florestas adjacentes refúgios impenetráveis para os gendarmes que de-
veriam dcsentocá-los: aqueles que põem lenha para flutuar valem-se
dos carregamentos para refugiar-se nas cidades situadas ao longo do
rio Yonnc; e os que trabalham nas forjas se escondem onde conse-
guem, com medo de abandonar suas famílias na miséria, pois geral-
mente são pobres. 53
A conivência dos civis com os insubmissos e desertores foi que-
brada com uma política de repressão duríssima: além de patrulhar
as aldeias com pente fino, Napoleão Bonaparte mandou, para as ca-
sa dos desertores e insubmissos, colunas móveis de soldados que
exigiam ser mantidos e alimentados. Este método ele persuasão, que
já fora usado durante o século xvm, em relação a quem ten tava
subtrair-se ao serviço militar, foi novamente utilizado em vários países
europeus durante todo o século xrx. Medidas particularmente se-
veras foram tomadas na Itália, onde os insubmissos eram um reser-
vatório fácil de mão-de-obra para o banditismo. 54 Em 1863, ano elo
primeiro alistamento nacional, os relatórios do Ministério da Guer-
ra que calculavam os insubmissos sobre todo o universo dos cons-
critos davam uma média nacional de 11 ,8 %, mas se forem dimi-
nuídos os isentos, os refo rmados etc., os insubmissos chegavam a
25%.55 O serviço militar era pouco aceito em rodas as províncias
em que a conscrição constituía uma novidade: nas Marche, na Úm-
bria e, sobretudo, no Sul, onde alguns centros urbanos tinham ta-
xas oficiais de insubmissão superiores ou próximas a 50%.56 Co-
mo escrevia o visconde Oscar De Poli de Saim-Troquet, filho de um
militar lapidato, em 1848, em Orléans, quando se preparava para
30 HISTÓRIA DOS }OIIENS

reprimir uma rebelião, a fim de não serem convocados, muitos jo-


vens abandonavam as aldeias, armavam-se e encontravam refúgio
nos bosques.57 Durante o verão de 1863, após ter vasculhado 154
municípios para deter " todos os que se encontrem pelo campo com
idade aparente de insubmisso e com cara de assassino", o general
Giuseppe Govone prendeu, só na Sicília, 4550 insubmissos e 1350
malfeitores.58 Foi inclusive graças a operações policiais semelhan-
tes que, nos anos seguintes, o fenômeno da insubmissão foi drasti-
camente redimensionado: em 1864, descia para 5,8% (13 476 recrutas
sobre 232154); em 1865, para 4,8% (10708 recrutas sobre 223 548)
e, depois de 1866, estabilizava-se ao redor de 4%, para enfim au-
mentar levemente só na década de 1880.59

Nos séculos XVII c XVIII, o serviço militar não precedia o ingres-


so no mundo do trabalho. Infelizmente, nossas informações sobre
a composição profissional dos exércitOs são ainda bem fragmenta-
das e incertas, e não é possível um exame comparativo entre os di-
versos países; porém, dos dados disponíveis resulta que os solda-
dos com uma ocupação prévia eram muitos.6° Como sublinhou
Fred Anderson, a prop(}sitO da Massachusetts do século xvm:
Geralmente, os soldados eram homens jovens, com idade inferior àque-
la com que, na r~gião, os homens costumavam casar-se. [... ] Quase
3/4 dos soldados tinham menos de trinta anos. A maioria deles já ti-
nha tido uma ocupação manual ele algum tipo antes de alistar-se no
exército, e quase sempre se tratara de uma atividade agrícola. Alguns
homens haviam trabalhado para si próprios, e eram chamados "cam-
poneses", "proprietários de terras", "agricultores", enquanto os de-
mais haviam trabalhado para terceiros, como "assalariados agrícolas" .
No exército, esses trabalhadores agrícolas eram muito numerosos, che-
gavam a cerca de 1/3 elos homens ele quem se conhece a ocupação.
Os camponeses, os proprietários de terras e os agricultores formavam
um grupo menor mas, ele qualquer modo, bastante considerável, ele
aproximadamente 1/5 elos soldados . No interior dessa categoria, pre-
valeciam os agricultores - uma definição que implicava a propriedade
de pelo menos alguma porção de fazenda. Com exceção de 81 mari-
nheiros, o restante dos soldados que tinham uma ocupação manual
- dois homens em cada cinco - eram artesãos. As atividades prece-
dentes ao alistamento eram 57: entre os soldados, os mais numerosos
eram os carpinteiros; seguidos dos curticlores de couros, elos ferrei-
ros e dos tecelões. Em cem soldados, menos de dois - apenas 42 dos
A EXPERIÊN CIA MILITAR 31

21 75 de quem se conhece a ocupação - tinham uma atividade não


manual. Dentre eles, sete oficiais se detlniam com "gentis-homens" :
os restantes tinham, em geral, atividades comerciais modestas, como
taberneiros, vendedores de tabaco e outros comerciantes .61
Por outro lado, nas sociedades do Antigo Regime, a infância não /

estava excluída do trabalho: como é notório, em geral, um menino


ajudava no;5 trabalhos agrícolas desde os sete-oito_a.nos, aQ passo que
começava a aprendizagem numa oficina artesanal ou entrava para
o serviço de uma casa por volta ele catorze anos.62 Além de traba-
lhar, os jovens passavam freqüentemente longos períodos fora da
casa paterna. A população adolescente era muito móvel: na maioria
dos casos se tratava de breves deslocações, na mesma região, mas
os aprendizes às vezes percorriam centenas de milhas para encon- : .
trar um trabalho.63 E alguns chegavam a trocar de país: mais da.me-
tacle dos 5 mil emigrantes ingleses que, em 1635, atravessaram o i
oceano ·para instalar-se no Novo Mundo estava na faixa dos dezes- (

seis aos 23 anos e não faltavam sequer crianças de dez ou onze anos
que partiam sozinhas, sem família nem patrão. Todavia, conhecer
o mundo do trabalho não significava ser independente. Conforme
lembrou Keith Thomas:
As séries ordenadas dos salários mostram que os jovens não tinham
o direito de receber um pagamento de adultos até os dezesseis, dezoi-
to, vinte, 21 e, com bastante freqüência, até os 24 anos. Em Londres,
esta era a idade mínima que o estatuto dos artesãos previa para a eman-
cipação dos aprendizes que trabalhavam na cidade. No campo, a apren-
dizagem durava mais, até 2 1 ou 24 anos [... ]. Muitas corporações ti-
nham estabelecido severas restrições para retardar a independência
dos jovens mesmo após o final ela aprendizagem. Segundo a lei, um
mestre artesão podia ser impedido de se estabelecer por conta pró-
pria até a idade de trinta anos.64
Assim, antes de entrar para o exército, muitos soldados já ti-
nham trabalhado por muitos anos e haviam passado longos perío-
dos longe de casa. Provavelmente, a decisão de alistar-se estava muitas
vezes ligada a uma insatisfação concernente à própria situação de
semi-independência e à distância que os jovens sentiam entre suas
responsabilidades produtivas e sua autoridade na família. Por exem-
p lo, parece ter sido esse o caso de Martin Guerre, que era um cam-
ponês abastado, de 23 anos, casado e com um filho, quando deci-
diu abandonar a aldeia de Artigat e entrar nas milícias de Filipe n,
" com medo da severidade do pai". 6 5
32 HJSTÓRitl DOS]OVT,NS

A experiência do trabalho continuou, em muitos casos, a pre-


ceder a militar, até o final do século XIX. Antes de servir como sol-
dados, os jovens participavam elas atividades agrícolas e manufatu-
reiras ela família, serviam como empregados domésticos, trabalhavam
em fábricas. Como sublinhou]ules Maurin, na França, os estudantes
eram pouquíssimos: no final elo século XIX, representavam menos
de 10% dos conscritos da Lozere e do Hérault.66 Por outro lado,
em 1868, estav.am oficialmente empregados 95,5 mil jovens entre
oito e dezesseis anos, enquanto, em 1896, 9,8% da população ativa
contava menos de dezenove anos.67 Não obstante a legislação so-
bre a escola, vigente a partir de 1881, tornasse gratuita e obrigató-
ria a instrução primária, as famílias pobres continuavam obrigando
crianças a trabalhar precocemente. Do outro lado da Mancha, nas
primeiras décadas do século, a mão-de-obra dos coronifícios e das
minas era formada principalmente por crianças e adolescentes que
trabalhavam sob o controle direto dos pais; na década de 1880, Char-
les Booth observava que aproximadamente 80% elos imigrantes em
Londres tinham entre quinze e 25 anos68 e, em 1909, somente 6%
dos pais podiam sustentar a educação secundária elos filhos.69 ~
~!!~2_il!venil ~umia climçnspes impressionantes, a ponto de~r­
nar uma "praga social" .7°
Uma praga social que, entre outras coisas, ameaçava debilitar
a raça e minar a potência militar ela nação. Na Itália, os exames para
o serviço militar evidenciavam "a falta ele saúde e de robustez ele
nossa juventude" : como observava, em 1859, o professor Temísto-
cles Carminati, entre 316 047 conscritos, foram considerados inap-
tOs 73 886 (28 997 por baixa estatura, 6428 por insuficiência toráci-
ca, 38 441 por deformações e doenças)J 1 Sete anos mais tarde, o
médico militar Federico Cortese, autor de Matatie ed imperjezioni
che incagliano ta coscrizione nel regno d'Italia, insistia sobre a de-
generação física da juventude tanto nas regiões meridionais quanto
nas setentrionais ela península:
O abuso da força física dos jovens, ocupados em trabalhos que exi-
gem resistência acima de suas idades, não é lamentável somente nas
províncias napolitanas da região de Benevento e também Abruzos e
Calábria, onde seus efeitos são evidentes nas cores macilentas e ama-
reladas, nas constituições pequenas e no aspecto de velhice precoce;
isso é comum também em muitas regiões montanhosas da própria Itália
setentrional [...]. Lá também, jovens impúberes são empregados para
transportar pesos na cabeça e nas costas por caminhos íngremes e es-
1. Doml.!nico Ghirlandajo. Netrato de Gim·mnw 7brnalmonl. 1·t88. Lugano-Castagnola.
Coleção Thyssen-Rornt:misza. O texw à direita lamenta a impossibilidade de exprimir com a pintur:I
os sentimentos c os costumes da retratada.
2. Leonardo da Vinci, Retrato de Cecilia Ga/lercmi.
Cracóvia. Museu ·a<.:ion:ll (Coleciio C7.artoryski). O retr:no d:a jov~m :unantc de L11dnvico o \lomo.
fala atravt:s da imagem do arminho, símbolo da ('a~tidade.
---------------------
3. Ciorgionc, Retrato duplo. Roma, Palácio Veneza.
A melancolia amorosa é revelada pelo fruto amargo (laranja azeda)
que o jovem protagonista traz na rnào esquerda.
1. Rafael. Retrato de 1'1~1mlo L>oui.
Florença, C.aleria Palatina (foto Fmtc lli J\Jinari).
Comp f>e Lllll par com o retmto da esposa, 'Maddale na
SI rozzi, e fo i executa elo logo após <i matrirnônio ( 1504).

5. Rafael , Retrato de Jlladda/ena .Strozzi.


Flo re nça, Caleria l':tlatina (foto Fm lelli i\]inari).
Junto no d o marido, Agnol o J)oni, n: p n"SP.nt:J o novo ti po
de retrato n ~io retórico do primeiro Renascimento.
6. Giulio Romano , Retrato de jovem mulhe1: Lisboa,
r unúaç1o Calousl.e G ulbenkian. Provavdment.e é o retra to de uma c:onesâ.
7. i\lichelangelo, Retrato de Andrea Quaratesi. Londres,
Rrili:ih Muscum. Andrc a Quanuesi (1512 85) foi amigo, correspondcnle
c talvez também aluno d ile tame ele .Michclangdo.
H. Lorenzo Lou.o, A família de C:iol'tlltlli del/a I o/ta, 15·17. Londres. ;\!ational G~11lery.
Exemplo de rctnllo ele família que mostra ainda uma re lação livre e natural entre pais e fil hos.

9. Fedcrico Barocci, Retrato de ntulherjovem. Copenhague, Museu Real de


Re Jas-Artes. Exemplo típico de retrato que pretende ressaltar o status
soda! da protagonista c não a sua condi~<lo juvc:nil.
10. Agnolo Rronzino, Retrato de l.udovico Capponi. Nova York, Coleçüo Frick.
Outro retr:lto de status social.
1 L Pintor Iombardo
anônimo, A família
de Alfonso !!!. Gonzaga,
conde de Nouellara,
15RL Roma, Galeria
Colonna (foto Fra tcl li
Alinari). O nCnnero
de filhos c porta nto
a segu rança ela
descendência constitui
um elemento
qualifica dor do
retrato ele família.

12. Lavinia Fontana, A .família de Ulísse


Gozzadini, 1585. Bolonha. Pinacoteca Nacional
(foto Gabinetto Fotocr. Fico, Bolonha).
O senado r Gozzadini apresenta as fil has
com os respectivos m aridos.
13. Caravaggio, /11/adale>IICI an·opendida. Roma. Galeria Doria l'amphili. "Pintou
uma donzela sentada [... ] ç acrescentando no c.:hfto um pote de ungüento, com
colares e pedras, transformou-a em Madalena."'
(G. P. Bellori, 1672).
;,; .. -.

14. Caravaggio, lJavi com a cabeça de Gotias. Roma, Galeria Rorghese


(foto Fratclli Alinari/Girauclon). A cabeça de Golias (: urn auto-retrato de Caravaggio.

15. Caravaggio, Os lrapttceiros. Fort \X'orth, Kimbdl ,\rt Museum.


Ex<:mplo precoce das cenas de cotidiano do~; jovens que constituíram um tema
recorrente da produção caravaggesca (ver também os dois quadros seguintes).
16 Valcntin de üoulogne, 11 boa sorte. Toledo (T{:xa.s), The Toledo J\luseum of _\n..

17. Georges ele la Tour, A hou sorte. Nova York , The Metropolitan Museum of Art (Rogers Funcl, 1960).
lH. Cecco dd Caravaggio (Frann;sco Honeri),
Retraio de nolvn com pomha. Madri, M useu do Prado.
Forma um jogo com um retrato m:tsculino hoje no MuseLI
Real de ,\Jadri. caracterizado pela pre:;en\·a de um coelho
(outro bicho com prm·erbial atividade erótica).

19. Massimo Swnzione, Retrato de noiva.


San Fr.mcisco, Thc fine Art.s .\luseum:; (empréstimo
permanente da llispanic Society of America). O frango
com os pés amarrados {: uma alusão explíciLa
ao elo matrimonial.
20. c.;ucrdno. ll nH>It "-'1mlsa Tanwr. l&t9. \X1:~sh i ngron. l\:Hional Galk·ty of Arr.
Forma um jogo com josé e a m ui!Jer de Putif m : no mesmo museu. <: foram ambos pintados
p:tra o mesmo colecionador. Aurelio Zaneleui, amigo ele Gucrcino.

21. Bernardo Cavallino. Desped ida de 'f(>hiolo. Roma. Galleria l'/azionak· d'i\rrc Anrica
(foro Fratelli Alinari/ Giraudon). O rema do jovem e a\·t:nturoso Tobiolo conhen:
um êxito especial na pintura naturalista elo século XTH.
22. Carlo Cc:resa, Retrato de menino.
Mil;1o, Ci vici Musci del Castello.
O predominante realismo da rrad i~·fío figuraciva lomharda
garante um amplo repertório de retratos ele jovens.

23. Giacomo Ceruri, Retrato de menina.


llérgamo, Accadcmia Carrara.
Ceruti é um dos mais prolíficos autor(~;; de retratos de
joven;; no século X VII I lolllbardo, c o111 atenção também
para jovens que se clcclicarn a ofícios específicos.
24. Loren zo Peche ux, Giuseppiua di lorena
e su a lnncl Curlo!tu.fúz em um sacr[/icio
110 altar da amizade, 1779 (desenho preparatório).
Turim, coleç:1o privada. Amor, de.spcitado c:om a
escolha elas irmãs, quebra o arco.
----------------------

25. Vincenzo C iaconi. :1 partir de um:·l pintura de


Martino de Uo ni, !lu/o-re! ralo de i\lfartíno TJe Bcmi
com o amigo Ant01lio Canoua.
Gabinetto Oisegni e Suunpe del i'vlu.sco Corrcr
(Vol. Ci<'ogna 504). "Acreditem em mim:
ele rem moral ótima e é muito simpático
quando se conhece de pe110 ..
(Canova a Giannamonio Selva, 11 de junho de 1796).
26. Tommaso :vlinardi , Sôcra /es em diálogo com rllci!Jíades, 1807. Facn za.
Pinacoteca Comunale. Em segundo p lano, à direita, Tomma.so 1\·linarcli e o amigo
~ li chele Sangiorgi; no centro. Giuseppc Zauli, rrofessor de J\linardi.

27. Ciuseppe Tominz. Aulo-retra/o com o irmâo l·irlltcesco.


Gorizia. :\luseo l'rovlnciale. A ::.ulid;ni~dat.k c::•ll•c:: i•m•1vs é ilustrada nas
pinntras do primeiro século XIX de forma nào diferente das rt:lações entre amigos.
A EXPERIENCIA MILITAR 33

corregadios. Na pequena província de Massa Carrara, são obrigados


a transportar pedaços de mármore; na Sicília, enxofre, além dos traba-
lhos agrícolas a que são submetidos; com uma diferença: quem tra-
balha na mina de enxofre tem jornada fixa de seis horas e os agricul-
tores, nenhum limite. Tal costume de empregar as cr~nç~~vado
da falta de máquinas, ele instrumentos, ele a!}imais aptos a economizar
às-forças-humanas, explica a alta incidência de defeitos físicos que mais
tarde tornam o homem inapto para a vida militar, como a baixa esta-
tura, as curvaturas da espinha, os desvios de mãos e pés, as papeiras,
as hérnias, as varizes e as varicoceles, os males cardíacos e especial-
mente os defeitos dos pés que vemos multiplicar-se na Sicília. 72
Imersos desde a infância no mundo do trabalho, muitos jovens
vestiam a farda sem nunca ter passado pela escola. A esse respeito,
François Furet e ]acques Ozouf sublinharam que, na segunda mera-
de do século xrx, o exército realizou uma importante obra de alfa-
betização da população masculina. Na França, a idéia de "instruir
os jovens cidadãos analfabetos" remonta à revolução, quando a Con-
venção decidiu abrir cursos de leitura, escrita e aritmética, nos na-
vios da República, mas só foi realizada posteriormente, graças à
iniciativa ele alguns oficiais superiores, membros da Société pour
l'Amélioration de l'Instruction Élémentaire. Em 1816, foram funda-
das as primeiras escolas nos quartéis e, quinze anos mais tarde, os
cursos para soldados analfabetos passaram a ser obrigatórios: míni-
mo ele uma hora por dia, para aprender a ler, escrever e contar. Co-
mo declarava Benjamin Appert, um dos p ioneiros da alfabetização
popular, os cursos tiveram uma influência enorme: segundo os ela-
dos do Ministério da Guerra, entre 1844 e 1849, mais de 1150000
recrutas 73 aprenderam a ler. As escolas nos quartéis tiveram uma
função importante também na Itália, sobretudo nas últimas déca-
o
das do século XIX: percentual de alfabetizados durante o serviço
militar atingiu 90% em 1$80; e estabilizou-se ao redor de 75% nos
anos seguintes.74 Ainda em 1901, a taxa geral de analfabetismo cor-
respondia a 48%, enquanto entre os soldados que davam baixa era
só de 18,1% _7;
As possibilidades educativas do exército não se restringiam à
alfabetização. Pelo contrário, a r~flexão sobre a educação militar,
iniciada já no século precedente, sublinhava a função "nacional"
que ela exercia. Na França, em 1891, o marechal Louis-Hubert Lyau-
~ey apontava o oficial como um professor ela arte militar, de higie-
::e. de economia. A sua concepção paternalista elo comando mili-
34 /1/STÓRJA DOS JOVENS

tar, influenciada pelo catolicismo social do conde Albert de Mun,


era retomada, dez anos mais tarde, pelo ministro da Defesa, Louis
André, que o bservava: " O regimento é algo mais que uma grande
família: é uma escola. O professor se prolonga no oficial, que é um
mestre da nação" _76 Alguns oficiais denunciaram "o paradoxo das
pessoas de boas intenções", prontas a sacrificar o treinamento béli-
co em favor da educação cívica, moral e física dos cidadãos; mas,
entre 1903 e 1904, mais de 1,2 milhão ouviram conferências sobre
alcoolismo, tuberculose, honesúdade, patriotismo, colonização, or-
ganizadas pela Société Nationale eles Conférences Populaires. Na Itá-
lia, o exército parecia a muitos o elemento propulsor da unificação
nacional: Nicola Marselli o descrevia "como o grande crisol, em que
todos os elementos vão fundir-se na unidade italiana" ,77 ao passo
que o deputado Andrea Borella observava que "a atmosfera políti-
ca da Itália meridional não anela muito saudável[ ... ] e um alistamen-
to de 150 mil jovens já retiraria um bom número daquela influência
insalubre e poderia educá-los segundo a ordem e a disciplina seten- ·
trionais" .78
O exército, por outro lado, tinha freqüentemente uma função
educativa indireta e involuntária. Sobretudo nos países em que o
recrll[amento tinha caráter nacional e não regional, as trocas cul-
turais eram intensas.79 Além da retórica nacional, as palavras ele
Borella ou de Marselli punham em evidência, por exemplo, os pos-
síveis confrontos lingüísticos entre jovens . Removidos para guarni-
ções muito distantes das regiões de origem, os italianos aprendiam
e cunhavam novos modos de falar: é o caso de alguns regionalis-
mos, como cicchetto, grana ou ramazza (bronca, encrenca, vas-
soura), que foram admitidos antes na gíria militar e depois na lín-
gua. O quartel não eliminava as tradições dialetais, porém, como
obserYou Tullio De .\Iauro. favorecia "um nível lingüístico popular
e unitário, rico de regionalismos [... ]: neologismos como cecchino
(soldado austríaco) ou imboscato (fugitivo do serviço militar) são
vestígios que permaneceram na fala corrente de todas as classes" .80

Afastadas as crianças, as mulheres, os estrangeiros, e definidos


os limites ele idade do serviço militar, as guarnições se tornavam lu-
gares de separação: separação da família e dos outros jovens (na ju-
ventude era recortado um grupo masculino provisório e novo, a elas-
A EXPERIÊJ\"CIA .IIIUTAR 35

se de alistamento obrigatório). E separação do outro sexo, como lem-


brava, iron icamente, uma canção italiana do século xrx:
Cuidado, Napoleão, mui/o cuidado,
a .flor da juventude queres inteira
e as moças levar de quebra.
Napoleão, jaz as coisas direito,
jaz a conscrição das moças,
convoca as bonitas e larga as jeias.8 1
Na segunda metade do século XIX e na primeira década de nosso
século, contudo, mesmo representando uma experiência de sepa-
ração, o serviço militar não assumia ainda um valor iniciatório para
todos. A esse respeito seriam necessárias pesquisas mais detalhadas
sobre a percepção do exército por parte da tropa, mas parece pro-
vável que para aqueles jovens que já trabalha\·am desde algum tem-
po e haviam passado longos períodos longe dos pais o chamado ãs
armas não marcava a passagem de uma situação de dependência fa-
miliar para outra de independência. Ao contrário, ela era muitas
vezes considerada uma ocasião de emancipação por parte dos estu-
dantes que raramente contribuíam para a gestão econômica da fa-
mília e saiam de casa bastante tarde (na França, na Alemanha e em
outros países do continente as escolas eram diurnas, enquanto na
Inglaterra, onde prevalecia a tradição do colégio, os rapazes passa-
vam longos períodos junto à família).B2 Vestida a farda, esses jovens
se encontravam numa situação de "fundamentalliminariclade" . Co-
mo escreveu Eric Leed, distante da casa paterna, dos companheiros
de escola, o estudante do West Country ou da South Coast, de re-
pente, passava a viver lado a lado com o mineiro de Ourham e o
metalúrgico do Yorkshire. 83 No decorrer dessa experiência comu-
nitária, na qual eram temporariamente esquecidos os habituais pa-
péis familiares e escolares, ele devia confrontar-se com o seujutu-
ro: esperavam-no novas perspectivas de trabalho e relações diferentes
com o outro sexo.
Não é casual, portanto, que a imagem do serviço militar como
rito de passagem para a idade adulta ganhasse terreno sobretudo no
âmbito escolar, como elemento da ideologia nacionalista. Os ma-
nuais escolares alemães, que evocavam continuamente 1813, ano
da grande insurreição contra Napoleão, ou os franceses, em que a
retórica da guerra fora exasperada pela perda da Alsácia-Lorena e
pela crise de 1870-1, dirigiam-se aos estudantes enquanto " futuros
36 HISTÓRIA DOS JOVENS

soldados": "entende, meu filho, serás tu a cicatrizar as feridas [da


nação]" , lia-se numa ilustração de Cham. 8 4 As lições de história tra-
tavam de transformar "a classe numa célula privilegiada de um no-
vo templo, edificado para o serviço elo cultO nacional", ss e sua men-
sagem era reiterada durante o horário de ginástica, que passara a ser
matéria ele ensino obrigatório em quase todos os países europeus:
para "os jovens[ ... ), habituados em tempo ao uso das armas e revi-
gorados [nos) membros'', o militar era um exemplo a ser imitado
também no plano físico. 86 Além disso, nas últimas décadas do sé-
culo XIX, o tema do " renascimento" da nação através das novas ge-
rações não marcava só o ensino nos liceus e nas universidades, mas
também a atividade ele numerosos grupos estudantis. Na Inglaterra,
onde o Guy Fawkes Night e outros rituais tradicionais ela juventude
estavam se transformando em manifestações patrióticas,8 7 alguns
estudantes tratavam de formar corpos armados no interior elos co-
légios e Edmond Warre clava nova vida aos Volonteers, a milícia
universitária de Oxforcl que já era bastante ativa nos tempos das
guerras napoleõnicas. Sua atitude belicosa era, por outro lado, par-
tilhada também pelos estudantes franceses, italianos e alemães, que
foram protagonistas ele renhidas campanhas nacionalistas e que, quan-
do explodiu o conflito mundial, apresentaram-se em grande núme-
ro para combater como voluntários.88
Muitos desses grupos nacionalistas imaginavam o exército co-
mo uma barreira social e afetiva entre a adolescência e a vida adul-
ta, como um divisor de águas entre a escola e o trabalho, entre a
família de origem e a p rópria. E também como um lugar de prova
sexual. Conforme evidenciou George L. Mosse, o ofício elas armas
era então visto como uma missão viriJ. 89 O ideal ela masculinidade
já fora valorizado pelo movimento evangélico e pelo pietismo Oohn
Wesley considerava que só homens ele verdade poderiam ser espi-
rituais), porém, até o século xrx, ele raramente surgira na reflexão
militar. No século anterior, os julgamentos dos superiores insistiam
na força física, no aspecto marcial e, em alguns casos, nos modos
"civis" elo soldado, sem nenhuma referência à sua virilidade. Co-
mo escrevia, em 1786, Gaetano Filangieri, lamentando-se dos efei-
tos negativos da pólvora sobre a raça humana:
Quando a idéia da guerra fazia pensar numa luta, na qual os homens
eram empregados como seres inteligentes e não como máquinas; [.. .]
quando as armas que se empregavam não excluíam a destreza e a for-
A EXPERIÊNCIA ,11/UTAR 37

ça, antes a exigiam[...]; então, dado que a robustez, o vigor (... ] dos
indivíduos era preponderante para o resultado das guerras, assim a per-
feição física dos corpos se tornava o instrumento principal da segu-
rança ou da ambição dos povos[ ...]. Mas hoje( ... ] que os verdadeiros
soldados, os verdadeiros guerreiros são o fuzil e o canhão (... ]; hoje
que o soldado morre sem saber quem o mata, foge, persegue, ataca
seres que não ouve, não toca e não vê; (... ] hoje, digo que as coisas
bélicas mudaram de aspecto, os legisladores passaram a dedicar à per-
feição das armas aqueles cuidados que um dia foram dirigidos inteira-
mente à perfeição do homem.90
A força física começou a ceder terreno para a maschia vigoria
durante as guerras napoleônicas . No dia seguinte à derrota de jena
(1806), Friedrich Ludwig Jahn, o im·emor do Turnen, a ginástica
político-militar, que haveria de conduzir à '·ressurreição da nação
alemã", propunha-se a infundir nos jovens um estilo de vida viril;
fazia-lhe eco Ernst Moritz, o profeta do nacionalismo alemão, quan-
do, retornando da batalha de Leipzig (1813), exclamava: "Assisti a
um choque sangremo entre homens de verdade" .91 Algumas déca-
das mais tarde, na França, o escritor Victor de Laprade, convicto
defensor da educação física, dirigia-se à "mãe" para lembrar-lhe que
"se teu filho cresce sem se tornar homem, comporta-se efemina-
damente em relação aos deveres viris [... ], quer di zer que a tua ter-
nura não direcionou bem a alma dele: se ele não sabe morrer, não
soubeste criá-lo" .92 E o suíço Rodolfo Obermann declarava que era
necessário predispor ''fisicamente a juventude para a verdadeira vi-
rilidade, longe daquele hermafroditismo que só retém do homem
as formas externas". 93
Para um jovem, a p rimeira prova de potência viril era o exame
do serviço militar, como lembrava um dito comum na Itália centro-
setentrional, segundo o qual "quem não é bom para o rei não o é
tampouco para a rainha". Contudo, mesmo atribuindo imensa im·
portância à ginástica, muitos grupos nacionalistas consideravam que
o fundamento de "uma educação máscula e austera" seria muito mais
que corpóreo: o que estava em jogo não era a força bruta nem a
coragem, mas sim "um modelo de moralidade e de bons hábitos" .9 4
A virilidade era ames de mais nada um traço do caráter, o contrá-
rio daquela " recusa da vida, chamada na Inglaterra byronismo, na
Alemanha werterismo, [na Itália] leopardismo" _95 Assim, Paul Dé-
roulede fazia votos, em De l'education mílítaire [Sobre a educação
militar), de " transformar a juventude numa legião de valorosos fran-
38 HISTÓRIA DOS jOVENS

ceses, armá-los desde a infância com o feixe de sentimentos máscu-


los e de hábitos viris que fazem o verdadeiro soldado";% ao passo
que Francesco De Sanctis recordava, em 1878, que " não basta criar
por decreto uma ordem militar semelhante à ela Prússia para ter um
exército similar. O soldado pressupõe o homem; e o homem não
se forma em três ou quatro, nem tampouco em sete anos, o homem
se forma desde o início com uma educação viril" .97
A obsessão pela virilidade, que emergia nas circulares ministe-
riais, nos manuais de treinamento dos recrutas e em vários outros
textOs oficiais, aflorava também nos textos de literatura. Em 500 mil-
Lions de La Bégum (Os 500 milhões da Bégum], publicado em 1879,
o protagonista, Mareei Brukmann, era descrito por Júlio Verne co-
mo um menino de doze anos, a quem " as desgraças da França (a
separação da Alsácia e da Lorena] [... ] haviam impresso cerra matu-
ridade tOda viril" .98 No início do século xx, a virilidade era bem re-
presentada por Ernst Wurche, o herói de um dos livros mais popu-
lares da Alemanha do pós-guerra (Der Wanderer zwischen beiden
Welten [O peregrino entre dois mundos], de \Valter Flex), e pelo
poeta inglês Rupert Brooke, "um jovem apolo de cabelos louros que
sonha com a hora do combate, esplendidamente dcspreparado pa-
ra as misérias da vida". O novo estereótipo marcial , que pressionava
Ernst]ünger a fazer uso explícitO do vocabulário sexual para repre-
sentar o campo de batalha, encorajava a remoção mental da mulher
por parte do jovem: já expulsa, fisicamente, dos quartéis, ela devia
abandonar também os pensamentos do soldado. Como haveria de
escrever, anos mais tarde, Ludwig Tugel, no romance Die Freunds-
chajt [A amizade]: "Um soldado com uma mulher, não, não[ ... ] não
é possível; quando tem de combater vigorosamente, de corpo e al-
ma, não pode estar ligado a uma mulher" _99
No final do século passado, enquanto na Europa inteira se di-
fundiam os monumentos aos tombados em guerra, a virilidade se
exprimia inclusive por intermédio da morte. Ioo Em 1877, para a
inauguração do monumento consagrado pelos ex-alunos do Liceu
de Lyon aos companheiros que tombaram pela França, Victor de
Laprade fazia votos para que " possam, um dia, (... ] vossos nomes
serem inscritos lá, com a mão de vossos filhos " . 101 Do outro lado
da Mancha, sir Garnet Wolseley declarava invejar a morte elos jo-
vens soldados e garantia que, " se tivesse dez filhos, ficaria orgulho-
so se rodos tombassem no campo de batalha". 102 Num país como
a Inglaterra, em que a taxa de mortalidade continuava a cair (de 22
.~ EXPERIGSCIA .11/UTAR 39

por mil, em 1870, para treze por mil em 1910) e a morre era cada
vez mais associada à velhice (as expectativas de vida haviam subido
ele quarenta anos, em 1850, para 52 em 191 O), 10 3 o sacrifício da pró-
pria existência era exaltado até mesmo pelos jovens. "Morrer jovens,
puros, ardentes"), cantava Horace A. Vachell em The hill:
Morrer rapidamente, com perfeita saúde; morrer salvando os outros
da morte ou, pior, da desgraça; morrer escalando os cimos; morrer
e levar junto, na existência mais ampla e mais plena do além, esperan-
ças e aspirações não contaminadas, doces lembranças, roda a frescura
e as alegrias do mês de maio- não é este um mo tivo de alegria mais
do que de aflição? 104
Como lembra David Cannadine, a imagem, improd,·el. de uma
morte heróica no campo de batalha se corroeria em 191-L O mare-
chal Alfred von Schilieffen havia previstO ,-encer a guerra em qua-
renta dias, mas "a lista de morros crescia, mês após mês e ano após
ano, até atingir uma cifra espantosa". 105 ::--Jos campos de Ypres. de
Verdun, de Somme, de Caporeno, perdiam a ,-ida mais de 8 milhões
de jovens: " apenas" 114 mil americanos. 500 mil italianos. -oo mil
ingleses (mais 300 mil súditos do império), quase 2 milhões de ale-
mães e igual·número ele russos; mas, proporcionalmente, o preço
mais alto era pago pelos franceses com 1,3 milhão ele mo rtos, equi-
valente a 16% elos recrutas, e 2 milhões de feridos, metade elos quais
receberam a pensão por invalidez para o resto de suas vidas. 106 A
retórica da morte viril cedia lugar a outra, menos romântica, do sol-
dado desconhecido, e as elites européias começavam a lamentar a
"geração perdida" . 10 7

A associação entre a guerra e a "máscula" juventude nem sem-


pre foi válida, mas amadureceu lentamente, no decurso elo século
XIX, para difundir-se e consolidar-se só nas primeiras décadas deste
século. Os exércitos elo Antigo Regime representavam um pomo de
referência para pessoas ele teclas as idades: os soldados eram, em
geral, homens jovens, na plenitude suas forças físicas , mas eram re-
crutados também muitos adultas c velhos, ficando as guarnições fre-
qüentemente saturadas de mulheres e crianças. A instituição militar
começou a transformar-se num lugar homogêneo, do pomo ele vis-
ta do sexo e ela idade, só no final do século XVIII, quando o serviço
militar deixou de ser um ofício para se tornar um dever de todos
.J0 HISTóRIA DOS JOVENS

os machos aptos na faixa dos vinte aos 25 anos. Com a le i sobre


a conscrição universal obrigatória, proposta na França pelo mare-
chal]ean-Baptiste]ourdan, e logo adotada pela maior parte dos paí-
ses europeus, a fu nção do soldado ficava indissoluvelmente ligada
ao ciclo da vida: a existência da população masculina ficava dividi-
da em duas fases (antes e depois da convocação , do sorteio para servir
a chamada às armas) e, dentre os jovens, eram recortados os g rupos
de menor faixa etária: as classes para alistamento . 108
Contudo, essa reforma fundamental do recrutamento militar,
que contribuiu para precisar os limites da juventude, teve um im-
pacto desigual e, ainda na segunda metade elo século XIX os jovens
percebiam o ofício das armas de maneira profundamente diversa.
Uma das diferenças principais provavelmente dizia respeito às re-
lações com a famíli a de origem. ~os jov,!!ns que_ conheci~
~elo do tr~b~lh o desde a infância e já tinham passado lon~­
ríodos longe da casa paterna durante a adolescência, o exército re-
pr~sentava só uma das etapas da pró pria errumcipã"Çãõ individual,
enquanto para os estudantes, que r arame nte contribuíam para ageS-
tãó econômica da farrurrã e saíãffide casa- 5ãStante tarde,-ele tinha
umvalor iniciátÓrio fundamenrar:entre a família de o rigem e o màtri-
mônio, entre a independência econômica c a escolha da profissão,
estava o uniforme militar. Assim, foi sobretudo no âmbito escolar,
entre os ambientes mais instruídos ela população, que, na virada do
século, passou-se a atribuir ao chamado às armas um significado exis-
tencial ritual e, em alguns casos, a considerar o campo de batalha
como uma prova sexual, que sancionava o ingresso do jove m na
idade viril.

NOTAS

(1) G. d' Annunzio, Per la piu grande /talia. Orazioni e messaggi (Milão, 191 5),
p. 68; G. Pascoli, la grande proletttria si e mossa (2 1 de nove mbro de 19 11 ); F.
T . Marineni, "Guerra sola igiene dcl mondo", in De Maria, org., Teoria e irzvenzio-
nefuturista (Milão, 1986), pp. 286-9. Sobre os discursos de guerra, cf. M. Jsnenghi,
Le guerre degli Italiani. Paro/e, immagirzi, ricordi, 1848-1945 (.'vtilão, 1989), pp.
32, 205, 220.
(2) E. Pound, 1Jugh Selwin Mauberley (1920, tracl. it; Milão, 1970), pp. 186-9:
" There died a myriad,/ And of the best, among them,l For an old bitch gone in
tccth,l For acr botched civilization".
A EXPERJ!.SCIA MILITAR 4/

(3) Cf. A. Gibelli, L 'officina del/a guerra. La Grande Guerra e /e trasjorma-


z ioní de/ mondo mrmtale (Turim, 1991), cap. 2.
(4) Cf. A. d' Ancona, " Poesia e musica popolare italiana de! nostro seco lo, L'Il-
lustrazio ne Italiana" (1882), n':'' 12·3; R. Leydi, Canti sociali italiarzi, pp. 399·40 I ,
404-7, cit. em G. Oliva. Esercito, paese e movimento operaio. Militarismo e anti-
militarismo in Italia dai 1861 alt'età giolittiarza (Milão, 1986), p . 54.
(5) Cf. G. Parker, " 11 soldatO", in R. Villari, org., L 'uomo barocco (Roma- Ba·
ri, 1991).
(6) Cf. A. Corvisier, "Problemes du recrutemem des arrnées du x1ve au xvme
siecle", in Gli aspetti economici del/a guerra in Europa (sec. XVI- XVIII) (Fonda-
zione Datini, Prato, 1984).
(7) Cf. M. Howard, War in European bistory (Oxford, 1976), trad. it. La guer-
ra e /e armi nella storia d 'Europa (Roma · Bari, 1978).
(8) Cf. ]. Childs, Armies and warjare in Europe (:'/O\'a York, 1982); A. Corvi-
sie r, Armées et sociétés en Europe de 1494 à rB9 (Paris, 19- 6).
(9) Cf. Corvisier, Armées et sociétés en Europe, op cit.; >;. Brancaccio, L 'eser-
cito det vecchio Piemonte. Gli ordinamenti (Roma, 1923); G . A. Craig. Tbe politics
oj tbe Prussian Army, 1640·1945 (Oxford, 1955), rrad. ir. 11 potere del/e armi. Sto-
ria e política delt'esercito prussiano (! 640·1945), (Bolonha. 198-t).
(I O) Cf. J.-P. Bertaud, D. Reichel, org., Atlas de la Révolutionjrançaise. L 'ar-
mée et la guerre (Paris, 1989); A. Forrest, "La formation des attitudcs \·ilJageoises
envers le service militairc: 1792-181 4", in P. Viallaneix,J. Ehrard, org., La bataille,
l'armée, la gloire, 1745-1781 (Clermom-Fcrrand, 1985).
( li ) Cf. R. B. Challcncr, The Frencb theoryojtbenation in arms, 1866-1939
(Nova York, 1965).
( 12) Cf. J. Maurin, "Les progres vers l'égalité des citoyens devam le scrvice
militaire dans lt::s !ois de recrutcment ( 1870- 19 14)", in L 'Armée et la socíété de 161 O
à nos jours, Actes du I 03 eme congres natíonal des sociétés savantes (Nancy - Metz,
1978).
(13) Cf.). Gooch, Armies in Europe (Londres, 1980), trad. it. Solctati e bor-
gbesi nell'Eumpa moderna (Roma· Bari, 1982), cap. 6.
(14) Cf. G. Bonerta, C01po e nazione. L 'educazione ginnastica, igienica e ses-
suale neii'Jtalia libera/e (Milão, 1990), p. 84.
(15) Cf. Howard, W'ar in European bistory, op. cit; cap. 6.
(16) Cf. Y. Charbit- A. Béjin, " La pensée démographique", in J. Dupàquicr,
org., Hístoire de la population française (Paris, 1988), v. 3.
(17) Ibidem.
(18) Cf. G. Parkcr, The Army oj Ffanders and tbe Spanisb Road, 1567-1659
(Cambridgc, 1972), pp. 36-7; A. Corvisicr, L 'Armée jrançaise de la jir1 du dix-
septitme siecle au ministere ae Cboiseul. Le soldat (Paris, 1964), pp. 6 15-3 7; S. Lo-
nga, Solda ti. L 'istituzione militare nel Piemonte dei Settecento (Veneza, 1992),
Clp. 5; F. Anderson, A People 's Anny. Massacbusetts soldiers and society in tbe
Ser:en Year's War (Chapel Hill-Londres), p. 23 1.
(19) Cf. A. Corvisier, " La société militaire et l'cnfam", Annales de démogra-
pble bistorique (1973), pp. 327-43. No que concerne ao período medieval, cf. P.
Conumíne, Guerre, année et société à la fin du Moyen Age (Paris, 1972), p. 27.
HISTÓRIA DOS JOVF.NS

(20) Cf. Loriga, Soldati, op. cit; cap. 2.


(21) Cf. , denrre outros, M. Mitterauer, Sozialgescbichte de1·]ugend (Frankfurt
am Main, 1986), trad. it. I giovani in Europa da/ Medioevo a oggi, Roma - Bari,
199 1), p. 91, segundo o qual, nessa época, a idade adulta biológica era atingida mais
tarde: o desenvolvimento da estatura continuava até 26 anos e o da força muscular
até 28.
(22) Cf. Loriga, Sofdati, op. cit., cap. 5.
(23) Marquês de Sade, Oeuvres completes (Ed. Tête de feuilles, 1973), v. 4,
p. 283.
(24) Cf. K. Thomas, Age and authority in early modem England (Raleigh Lec-
ture on History, Proccedings of thc British Academy, LXH, Londres, 1976), pp.
19-25.
(25) Cf. Corvisier, La société m ilitaire et l'enjant, op. cit.
(26) Com a introdução da conscrição obrigatória foi estabelecido também um
limite máximo de idade (geralmente de 25 anos).
(27) Todavia, a prática de engajar crianças ainda é corrente em alguns países,
caso da Nicarágua, do Iraque, da Romênia, onde, após a queda de N. Ceausescu,
o exército adotou algumas centenas de crianças, entre seis e treze anos, que ante-
riormente haviam sido retiradas de orfanatos e utilizadas pela polícia secreta do ve-
lho regime: cf. C. Fava, "In divisa a sette anni. É questa la nuova Romanla", in L 'Eu-
ropeo (3 de maio de 1991).
(28) Cf. A. Corvisier, La société mifitaire et l'enfant, op . cit.
(29) Cf. B. C. Hacker, " Women and military ins titutions in early mode rn Eu-
rope: a recon naissance", Signs 4 (1981); Parker, Tbe Army of Flanders, op. cit.,
pp. 81-93; Corvisier, L 'Arméefrançaise de lafin du dix-septieme siecle au minis-
tere de Choiseul, op. cit., p. 760.
(30) O drama de Mercier, publicado em 1770 e representado na corte e no
Theâtre ltalien de Paris, em 25 de junho de 1782, conta a história de um soldado,
Durimel, foragido porque " fui servir com um coronel muito duro, o mais inflexí-
vel dos homens, que sentia prazer em oprimir tOdos os subalternos com sua autori-
dade", e condenado~ morte, "porque tinha havido 27 deserções em três dias".
A história era tão arrasadora que .'.1aria Antonieta pediu para mudar o final. Sobre
Mercier, cf. A. Soes. " Les militaires dans le théâtre français, 1746-1789", in Viallaneix-
Erhard, org., La bataille, l 'armée, la gfoire, op. cit.
No que concerne às mulheres disfaçadas de soldados, cf. R. M. Dekker, The
tradition ojjemale transvestitism in early modem Europe (Nova York, 1989). Ver
também L. Hennet, Une fe mme soldat: Rose Barreau de Semalen.s (Tarn), volon-
taire de la République en 1793 (Albi, 1908).
(31) Cf. Corvisier, L 'Amzée jrançaise de la fin du dix-septieme siec/e au mi-
nistere de Cboiseul, pp. 757-72 .
(32) Cf. idem, ibidem, p . 761.
(33) Cf. R. Laulan, Un pbilarztrope militaire, /e brigadier général Merlet et
la création des écoles d 'enfants de troupe, in 83e Congres des Sociétés Savantes
(Aix-Marsclha, 1958), pp. 171 -80; Loriga, Solda ti, cap. 2. A idéia de militarizar as
instituições assistenciais para órfãos e abandonados fo i retomada durante o perío-
do napoleônico: cf. F. Della Peruta, Esercito e società nell'Italia napoleonica (Mi-
lão, 1988), pp. 147-50.
A EXPERIENCTA Mll.lTAR 43

(34) Cf. Corvisier, L 'Armée jrançaise de la jin du dix-septieme siecle au mi-


nistere de Choiseul, p. 761 .
(35) Cf. Stendhal, Vie de Henry Brulard, cap. 12 , trad. it. Turim, 1976.
(36) U. Foscolo, Prose politiche e apologetiche, 1817-1827 (Florença, 1964)
parte 2, p. 11 1.
(37) S. Bégué, Le régiment des pupilles de la Garde, 1812-1814, in 97" Con-
gres des Sociétés Savames (Nantes, 1972); G. Merliner, Les bataillons scolaires en
Haute-Normandie et dans l'Académie de Rennes, 1882-1890, in loc. cit. Em 1885,
12 mil crianças foram enquadradas nos batalhões do departamento da Seine; no
do Norte, foram 6165; no da Charente-1nférieure, 2288; no da Seine-Inférieure, 1685:
cf. Y. joselau, Le 1·ôle de l'armée dans l 'évolu tion de l'enseignement des activités
physiques en France (de 1850 à 1914), op. cit. in M. Crubellier, L'enjance et la
jeunesse dans la société jrançaise) , 1800-1950 (Paris, 1979), cap. 9.
(38) "Concepção superada, pessoal incompetente, ignorância do modo de pen-
sar das crianças: os batalhões acumularam erros sobre e rros. Sua falência corre o
risco de favorecer uma reação liberal que tratará de impedir todos os exercícios
que se pareçam com exercícios militares", comentava René Meunier em 1892: cf.
Crubellier, L 'enjance et la jeunesse dans la société jrançaise, cap. 9.
(39) Cf. Bonetta, Corpo e nazione, op. cit., p. 189.
(40) Cf. Hacker, W'omen and military institutions. Mas durante a Segunda Guer-
ra Mundial, o exército americano somava 140 mil mulheres (das quais 4 mil negras):
cf. C. Adams Earley, On woman 's army: a black ojjicer remembers the \VAC (Col-
lege Station Texas, 1989). Sobre a presença feminina no exército voluntário do " pós-
Vietnã", d . o comentário de F. Colombo, " Povero e il soldato", in La Stampa
(12 de dezembro de 1990).
(4 1) Cf. ].-P. Bertaud, intervenção no Colloque International de Clermom-
Ferrand, cujas atas se encontram em Viallanaix-Erhard, org., La bataille, l 'armée,
lagloire, op. cit.;]. Waquet, "La société civile devam l'insoumission e t la désertion
à l'époque de la conscription militaire", in Biblioteque de I 'École des Chartes (1968,
126), p. 191.
(42) Cf. Loriga, Soldati... , op. cit. , cap. 5.
(43) Cf. A. Forrest, Déserteurs et insoumis sous la Révolution et l'Empi1·e (Pa-
ris, 1988), cap. 3.
(44) Cf. I. Woloch, " Le barreau devam la conscription napoléonienne" , in .
Viallaneix-Erhard, o rg. , La bataille, l'armée, la gloire, op. cit.
(45) Cf. Forrest, Déserteurs et insoumis, op. cit., cap. 3.
(46) Cf. ]. Vidalene, "Les conséquences sociales de la conscription en France,
1798-1848", in Cahiers Internationaux d 'Histoire Économique et Soeiale 5 (1975).
(47) Cf. B. Schnapper, Le remplacement militaire en France (Paris, 1968); For-
rest, Déserteurs et insoumis, op. cit. (cap. 3).
(48) Cf. Della Peruta, Esercito e società nell'!talia napoleonica, op. cit. , p. 299.
(49) Cf. Forrest, Déserteurs et insoumis, op. cit., cap. 3.
(50) Cf. Oliva, Esercito, paese e movimento operaio, op. cit., pp. 41-3.
(5 1) Cf. Della Peruta, Esercito e società nell'/talia napoleonica, op. cit. ,
pp. 88-91.
(52) Cf. l. Woloch, "Napoleonic conscription: State power and civil society",
Past and Present 11 1 ( 1986).
44 HISTÓRIA DOS JOVENS

(53) Cf. Forrest, DéserteU1·s et Jnsoumis, op. cit., cap. 5.


(54) E.]. Hobsbawm, Bandits (Londres, 1969), trad. it. I banditi (Turim, 1971),
pp. 27-8. O autor observou que, após 1860, muitos chefes de bandos armados da
Itália me ridional eram desertores ou ex-soldados do exército dos Bourbon.
(55) Cf. P. Del Negro, Esercito, stato, società (Bolonha, 1979), pp. 174 e ss.;
Oliva, Esercito, paese e movimento operaio, op. cit., pp. 18 e ss.
(56) Em Nápoles, atingia-se 57,2%; em Catânia, 45,6%; em Palermo, 44,4%;
em Trapani, 4 1,3 %; em Urbino, 40,5% . Ao contrário, a insubmissão era pouco di-
fundida nas províncias em que a conscrição estava em vigor havia algum tempo,
como na Sardenha, onde o serviço militar era obrigatório desde 1848, e tinha só
3,4% de insubmissos. Cf. Oliva, Esercito, paese e movimento operaio, op. cit., p. 18.
(57) Cf. A. De Jaco, org., Il brigantaggio meridionale. Cronaca inedita deii'Uni-
tà d'!talia (Roma, 1969), pp. 50-l.
(58) Cf. G. Rochat- G. Massobrio, Breve storia dell'esercito italiano da/1861
ai 1.943 (Turim, 1978), pp . 51-2 .
(59) Coincidindo com um forte incremento da emigração: assim, a cidade de
Turim, que, em 1863, tinha uma taxa de insubmissão bastante baixa (no Piemonte
era apenas ele 1,1%), atingia 10% .
(60) Cf. Corvisier, L 'Armée jrançaise de la fin du dix-septieme siecle au mi-
nisti!re de Choiseul, op. cit., pp. 449 e ss.;]. Ruwe t, Soldats des régiments natio-
naux au XVIIfme. siecle (Bruxelas, 1962); Loriga, Soldatí, op. cit., cap. 5.
(6 1) Cf. Anderson, A peopte's Army, op. cit., p. 53 .
(62) Cf. ]. R. Gillis, Youth and hist01y . Tradition and change in European
age relations 1770-present (Londres, 1974), trad. it. I giovani e la sto ria, Milão,
1981 , p. 5; A. Macfarlane, Thejamily life oj Ralphjosselin (Cambridge, 1970), p. 209.
(63) Cf., por exemplo, R. S. Shoficld, "Age-specific mobility in an eighteemh-
century rural English parish", Annales de Dérnographie Historique (1970), pp.
261-74; P. A. Slack, "Vagrams and vagrancy in England, 1598-1664", Econornic His-
torical Review xxvn (1974), pp. 365-6; A. L. Beier, "Vagrants anel the social order
in Elizabethan England" , Past and Present (1974, 64), pp. 9-10; O. Hufton, The
poorojeighteenth-century France, 1750-1789(0xford, 1974); D. Lamar]ones, "The
strolling poor: transiency in eighteenth-century Massachusetts' ', ]ournal oj Social
History vn (1975, n'? 28).
(64) Cf. Thomas, Age and authority in early modem England, o p. cit., pp.
14-5; so bre a dis tância entre trabalho e emancipação cf. também M. Anderson,
Family structure in nineteenth-century Lancashire (Cambridge, 1972), pp. 35-6.
(65) Cf. N. Zemon Davis, Le r·etour de Martin Guerre (Paris, 1982), trad. it.
IZ1·itorno di Martin Guerre (Turim, 1984), cap. 2.
(66) Cf. ]. Maurin, Arrnée-Guerre-Société Soldats languedociens (1889-1919)
(Paris, 1982), pp . 224-35 .
(67) Cf. Crubellier, L 'enjance et la jeunesse dans la société j rançaise, op. cit.,
p. 131.
(68) Cf. ]. R. Gillis, Youth and histoty, op. cit., pp. 55-7, 125; sobre o caráter
patriarcal das relações de [fabalho na fábrica, cf. Anderson, Family structure in
nineteenth-century Lancashire, op . cit. , pp. 11S-9.
(69) Cf. Gillis, Youth and histoty, op. cit., p . 118.
A EXPERIÊNCIA MILITAR 45

(70) Cf. ). Springhall, Comi11g of age: adolescence in Britain 1860-1960


(Dublin, 1986). O autor contou sessenta livros <:: 93 artigos sobre o problema do
emprego produti vo de crianças c adolescentes.
(7 1) Cf. Bon<::tta, Corpo e nazione, op. cit., pp. 1 OI , 150-1, 208. Na Itália, en-
tre 1862 e !865, a cota de soldados recusados por motivos de saúde oscilava emre
22% c 25% dos inscritos nas listas do serviço militar, correspondente a mais de
40% dos recrutas de fato submetidos a exame médico. As ta.xas de jovens doemes
eram muito altas tamb t!m na França: segundo G. Valléc (Compre généra/ de la cons-
cription de A. -A. Hargenvilliers (Paris, 1936], caps. 6 c 3), entre 1801 e 1806, os
recusados por motivos de saúde equivaliam a cerca de 35%.
(72) Cf. F. Cortese, Malatied imperfezioni cbe incagliano la coscrizione mili-
tare nel Regno d'Italia. lVJezzi e provvedimenti atti a prevenir/e (Milão, 1866), op.
cit. em Bonetta, Corpo e nazione, o p. cit., p . 246. Sobre o estado físico dos recru-
tas, cf. J.-P. Aron- P. Dumont- E. Lc Roy Laduric, Antbropologie du conscritfran-
çais d'apres /es comptes numériques et sommaires du recrutement de l'amzée,
1819-1826 (Paris, 1972); R. Livi, A11tropometria militare (Roma, 1896).
(73) Cf. F. Furct - ). Ozouf, Lire et écrire. L 'alpbabétisation des Français de
Calvin à ]ules Ferry (Paris, 1977), v. 1, pp. 81, 205-302; cf. também A Corbin,
" Pour une érude sociologique de la croissance de l'alphabétisation du XIX siecle.
L'instruction des conscrits du Cher et de J'Eure-et-Loir (1833-1883)", Revue d'His-
toire Économique et Sociale (1975), pp. 99-120.
(74) Segundo C. Corradini ("11 compito dell'escrcito nella Ioua contro !'anal-
fabetismo", Nuova Antologia 212 (março de 1897), pp. 305 e ss., tal queda se de-
via à abolição de algumas sanções (por exemplo, adiar a licença dos soldados que
não passassem no exame de leitura) e ao decreto régio de 3 de maio de 1892, que
delegava aos comandantes a tarefa de organizar os cursos para analfabetos,
tornando-os, de tal modo, facultativos .
(75) Cf. Oliva, Esercito, paese e movimento operaio, op. cit., pp. 63-6.
(76) Cf. W. Scrman, Les officiersfrcmçais dans la nation, 1848-1914 (Paris,
1982).
(77) Cf. N. Marselli, G/i avvenimenti de/ 1870-71 (Turim, 1873), p. 142, op.
cit. em F. Mazzonis, "L'esercito italiano al tempo di Garibaldi", in idem, org., Gari-
baldi condottiero. Storia, teoria, fJI·assi (Milão, 1984), pp. 187-251.
(78) A. Borella, Gazzetta de/ Popa/o (li de dezembro de 1860), op. cit. em
Oliva, Esercito, paese e movimemo uperaio , op. cit., p. 15.
(79) O recrutamento era regional na Prússia e, depois de 1873, também na
França. Em qualquer caso, segundo Maurin (Armée-Guerre-Société, op. cit., pp.
207·15, 307-8, 3 16-8), quase I 0% dos soldados (principalmente os indisciplinados)
eram enviados para os territórios e colônias ele além-mar: muitas vezes para a Áfri-
ca, mas, em 1900, para a China, a fim de sufocar a revolta dos boxers c, em 1898-9,
para Crcta, com o prctexro de proteger a população c ristã contra o domínio otomano.
(80) Cf. T. De Mauro, Storialillgttistica dell'Italia unita (Roma· Bari, 1991),
cap. 3.
(81) Cf. Oliva, Esercito, paese e movimento operaio, op. cit., p. 32 .
(82) A esse respeito, Gillis (Youtb a11d bistory, op. cit., pp. 98, 101) insistiu
sobre a escassa autonomia dos jovens entre catorze c dezoito anos da middle class:
" Esse grupo mais jovem estava perdendo o acesso à economia e à sociedade dos
.:6 HTSTÓJIIA DOS)O l'ENS

adultos, pois se tOrnaram cada vez mais sujeitos ao controle dos pais e das insti-
tuições".
(83) Cf. E.]. Leed, No man 's land. Combat and identity in W'orld \fi ar f (Cam-
bridge, 1979), trad. ir. Terra di nessuno (Bolonha, 1985), cap. I.
(84) Cf. O. Reshef, Guel'l'es, mytbes et caricature. Au berceau d 'une mentali-
té française (Paris, 1984), cap. 6. Sobre o patriotismo dos textOs escolares, cf. tam-
bém ~1. Ozouf, " Le theme du patriotisme dans les manuels primalres", Le mouve-
ment socia/49 (1964); A. Prost, Histofl·e de t 'enseignement en France 1800-1967
(Paris, 1968), pp. 335-40.
(85) Cf. C. Amalvi, Les béros de l 'bistoire de Franêe, recbercbe iconogmpbi-
que sur /e pantbéon scolaire de la Troisiême République (Paris, 1979).
(86) Cf. Bonetta, Corpo e naz ione, op. cit., p . 77. Sobre a atividade de ginásti-
ca, cf. S. jacomuzzl, "Gii sport", in Storia d'ltalia, v. 5, t. 1, f documen ti (Turim,
1973), pp. 9 11 -35; M. Spivak, "Contribution à l'étude du nationalisme français:
gymnastique, exercices milita ires c t spon s, de 1870 à 191 4 " , llulletin de la Sociáté
d 'Histoire Modeme 3 ( 1978), pp. 24-31; S. Gium ini, Sport scuola caserma dal Ri-
sorgimento a! primo conflitto mondiale (Pádua, 1988); E. Weber, "Gymnastics and
sports in fin-dc-siêcle France: opium of the classes", American Historfcal Revíew
(1971), pp. 70-98; J. Thihault, Les aventures du corps dans la pédagogíe française
(Vrin, 1977).
(87) Cf. Gillis, Youtb and history, o p. cit. , pp. 95 e ss., que lembra a explosão
selvagem do Mafeking Night de 18 de maio de 1900 e os ataques contra as manifes-
tações pacifistas a favor dos bôeres.
(88) Cf. G. Best, "l'vlilitarism anc.l the Victoria n public school" , in B. Si-
mon - I Brad ley, org., The Victorfan pub/ic school (Londres, 1975); J. Springhall,
Youth, Empire a.nd society: British youth movements, I 883 -1940 (Lond res, 1977),
p. 40;]. H . Grainger, Patriotfsm: Rritain 1900-1.939 (Londres, 1986); M .-L. Chris-
tadler, " Kriegserziehung im jugend buch Literarische Mobilmachung in Frankreich
une.! Deutschland vor 19 14" (tese, Frankfurt, 1977, datilografado), no q ual, anali-
sando os livros destinados à íuventudc nos anos que precederam a e xplosão da
Primeira Guerra Mundial, observa como os voluntários provinham, na maioria dos
casos, justamente dos ambientes mais instruídos da população. Cf. também A. M.
Ghisalbeni, Ricordi di uno storico ai/ora studente in grigiouerde (Guerra
19 14-1918) (Roma, 1981); R. Fabre, "Un groupc d 'étudiams protestants e n
1914-1918", Mouuement Social 122 (1983), pp. 75-101.
(89) C f. G. L. Mosse, Sessua/ílà e na zíonalismo. Mentalità borghese e rispet-
tabilità (Roma - Bari, 1982).
(90) G. Filangieri, La scfenza de/la legislazione (Milão, 1786), livro 4, pane
1, p . 5 1.
(91) Cf. Mosse, Sessualítà e nazfonalismo, op. cit. (introdução).
(92) Cf. Reshd , Guerre, mytbes et caricature, op. cit., cap. 6.
(93) Cf. Bonetta, Corpo e nazioue, op. cit., p. 63.
(94) Cf. Mosse, Sessualftà e nazionalismo, op. cit. (introdução).
(95) Cf. Bo ne tta, Corpo e nazio11e, op. cit., p. 91.
(96) Cf. Crubellier, L 'enfance et la jeunesse dans la société frança /se, op. cit.,
cap. 9.
(97) Cf. Bo netta, Corpo e naziorw, op. cit., p. S4.
A EXPERJi!..\'CIA .11/L/TAR 47

(98) Cf. Reshcf, Guerre, mytbes et caricature, op. cir.


(99) Cf. Mossc, Sessualità e nazionalismo, op. cir., caps. 2 c 5.
(100) Os primeiros monumentos aos monos em combate foram construídos
no final do século XVlll, como o Hessendenkmal construído pelos prussianos em
Frankfurt, em 1793, mas se clifundiram na segunda metade do século XIX. Cf. J. Har-
grove, " Lcs monuments au trib ul de la gloire", in Viallanaix - Ehrard, o rg., La ba-
taille, l 'année, la gloire, op. cit.
{I OI) Cf. Reshcf, Guerre, mytbes at caricature, op. cit., cap. 6.
(I 02) Cf. D. Cannadinc, "War and death, grief and mourning in modem Bri-
tain' ', in]. Whaley, o rg., Mirrors oj mo1·tality. Studies in tbe social bistory oj deatb
(Londres, 1981 ).
(103) Cf. R. Kastenbaum, "Time and death in adolescencc", in H. Feifel, org.,
Tbe meaning oj deatb (Londres, 1959), pp. 104-9.
(104) Cf. Cannadine, "War and dcath, grief and mo urning in modem Britain",
op. Cit. Cf. também].-]. Beckcr, " 19 14, La guerre inattcndue?, in Viallaneix- Eh-
rard, org., La bataille, l 'annéa, la gloíre, op. cit.
(I 05) Cf. H. MacMillan, \Vinds oj cbange, 1914-39 (Londres, 1966), p. 59.
(I 06) Cf. K. Robbins, The Fírst \Vorld \Va r (Oxford, 1984), trad. it. La prima
guerra mondiale (Milão, 1987), cap. 6.
(107) Cf. R. \X/oh!, Thegeneration oj 1_914 (Londres, 1980), trad. it. 1914. Storía
di una generazione (Milão, 1983).
(108) A esse respeito, cf., por exemplo, ~1. Bozon, Les conscrits (Paris, 1981),
p. 119; L. Pinto, " L'arméc, Je concingent et les classes sociales", Actas de la Recber-
cbe en Scíences Sociales 3 (maio de 1975).

Tradução do italiano por Nilson Moulin


SER J OVEM NA ALDEIA*
Daniel Fabre

Em que momento, sob o Antigo Regime c no século XIX a ju-


ventude- que não é em roda parte distinguida por uma instituição
que a reúna - afi rma-se de súbitO como um corpo consriwíclo no
seio ele cada sociedade local? 1 Em que ocasião vem para a frente
da cena e é imimacla a exibir, nos limites permitidos, toda a gama
de suas maneiras de ser? Que acontecimento reiterado e comum pode
oferecer-nos o melhor posto de observação dessa idade social, tal
como as sociedades modernas e contemporâneas a delineiam nas al-
deias, ainda amplamente dominantes, mas também na maior parte
dos bairros da cidade? Sem nenhuma dúvida, "a festa", a majeure,
a principal. Todos os anos, com data fixa, ela reúne o maior núme-
ro de pessoas da região, habitantes, parentes e nativos. A fes ta não
dá motivo a ritos excepcionais, não se alonga por várias semanas
como certos carnavais, não transfigura, diferentemente das grandes
procissões, todo o espaço, mas nela cada autoridade - religiosa e
civil -, cada nível ele vinculação - a aldeia, a província, a nação
- expõe seus emblemas. Nessa ocasião um e outro sexo têm seus
papéis, bem distintos; admite-se, sobretudo, que é ali que "se faz
a juventude" . Uma delegação, fo rmal ou implícita, atribui aos jo-
vens o dever e o direito de agir publicamente, ele organizar a festa
de rodos, nela dando a perceber a singularidade de sua condição.

(") O título original do artigo "'Faire la jeunncssc' au villagc·· pode ter em


francês um duplo sentido: "ser jovem" e ''construir" a juventude na aldeia :-;o fi.
nal do artigo o autor utiliza o segundo sentido. Neste momcmo, o termo ·faire la
jcuncsse" foi deixado no original. (N. T .)
50 lllSTÕR/11 DOS JOVF.NS

A fest.a J a aiJc:ia na França: pdncipais denominaçqes.

Ainda que essa prescrição costumeira seja muito geral, não se


deixa ler facilmente; que a festa seja o reino temporário dos jovens
é sabido,. mas nem sempre dito, tudo se passa, com efeito, como
se eles devessem conquistar sem tréguas o que lhes é de fato conce-
dido. Um olhar sobre o mapa das denominações da "festa" na França,
no fim elo século xrx, confirma essa tensão. 2 Em vastos territórios,
uma instituição dominante parece impor-se. Quanto é patrona/e,
ducasse, isto é, de consagração, kerrnesse, isto é, missa ele igreja,
beneisson, bênção ou voto, missa do voto, a festa está colocada sob
a égide da paróquia e de seü santo tutelar. O pardon bretão , o rau-
rnavagi provençal, a rorneria basca encaminham mesmo a celebra-
ção para a peregrinação penitenciai. Assim, eleve-se admitir que o
SER JOI"E.I/ .\A ;ILDEIA
.
51

termo " festa local", que se generaliza pouco a pouco no Languedoc


sob a Terceira República, toma a direção inversa dessa amiqüíssima
dominação religiosa e tenta laicizar a festa de todos. No emamo, por
o utro lado, outros termos evocam de modo neutro grandes mu!ri-
dõ"es ocasionais - assemblées e apports - ou então rega-bofcs, ri-
sos e danças - riotées, l?allades e baloches - mais de acordo com
as estroinices ele juventude. Duas denominações deixam mesmo
transparecer uma espécie de compromisso: ajrairie de Angoumois
é, por certo, uma confraria, uma sociedade caritativa, mas também
uma fraternidade que apenas a festa faz nascer; quanto ao reinage
do Velay, remete àquela instituição da baixa Idade Média em que,
pela eleição de um rei e de uma rainha, afirmava-se outra ordem,
no mais das vezes juvenil e fes tiva, que a Igreja preocupava-se em
controlar, conferindo o título a quem oferecesse o maior círio, e
acolhendo pelo menos a cerimô nia sob suas abóbadas )

Sc é verdade que essa dualidade dos vocábulos expõe duas ma-


neiras de fazer a festa inteiramente contraditórias, também põe a nu
sua necessária associação. E é nisso que afête majeure, no mais das
vezes relegada à sombra por sua banalidade, é das mais revelado ras
quanto à complexidade dos papéis atribuídos à juventude. Esta não
fica confinada em uma margem provisória, como em tempo de car-
naval, mas é, ao contrário, instalada no centro de uma pequena so-
ciedade que, nessa ocasião, ao mesmo tempo em que revela suas
diferenças tenta fundi-las em um todo. Paradoxo que se encontra
também na maneira como o tempo é tratado no decorrer dessa fes-
ta. Ela é, seguramente, a caixa dc ressonância de rodas as novidades
passageiras, o palco onde surgem e se impõem as últimas modas:
maneiras de cantar, de dançar, de se vestir, gostos musicais c ali-
mentares que os jovens adotam avidamente para distinguir-se dos
antigos, o que Noel du Fail já finge deplorar, em 1547, a propósitO
da assembtée camponesa de sua Alta Bretanha. 4 Mas ela é também
a mais poderosa armadilha para a memória; usos e costumes disper-
sos ao longo ela história aí se reencontram, mesclados ou lado a la-
do, mas sempre contcmporâneos. Não que a tradição aqui se tenha
tornado puramente cumulativa, bem ao contrário, é expressão con-
tinuamente ampliada, linguagem reinventada, comprom isso remo-
delado, e isso pela virtude constantemente conservada dos prin-
cipais atores, esses jovens que estão lá para servir de elo. Assim, é
52 HISTÓRIA DOS }OI'EN.~

possível, a partir de uma observação quase contemporânea- uma


aldeia da montanha Negra langucdociana dos anos 1960 - , estabe-
lecer, de modo regressivo, os traços recorrentes do que convém cha-
mar de " juventude", sublinhando as inflexões que marcaram, em
dois séculos, a história elos jovens camponeses.

SOB A VERDE FOLHAGEM

O conselho municipal, ou seja, de fato, o grupo quase comple-


to dos chefes de família, votou há muito tempo em seu orçamento
uma subvenção de 100 mil francos velhos para "a festa" . Esse é o
único ato oficial que lhe conserva o rastro. Assim, mal se remunera
a "música" . Até 1940, o nível da população- hoje duzentos habi-
tantes no inverno- permitia um financiamento autônomo; a comu-
na não dava nada, a coleta dos jovens e os fornecimentos em espé-
cies dos donos dos cafés' bastavam para manter os músicos. Esse
era o costume da montanha Negra, pelo menos desde meados do
século XVII. Nos anos 1960, estamos em plena transição; a subven-
ção municipal não eliminou a coleta juyenil e a doação dos cafés,
as contribuições acumulam-se, salvaguardando o controle coletivo.
A festa ainda não é um produto anônimo, comprado de uma empre-
sa de espetáculos; emana sempre da gente do lugar. O prefeito con-
sulta a juventude para escolher a o rquestra, pois é preciso contratar
com antecedência a menos cara para os três dias de baile . Não se
julga a qualidade da música nem o valor das atrações, o essencial
é que os músicos sejam conhecidos por sua animação, por seu dom
de "criar clima" . Devem, mesmo que venham da planície ou da cida-
de, despertar essa familiaridade imediata que, até os anos 1930, aco-
lhia o tocador local de bodega (cornamusa) e de graile (oboé).
A data, essa sim, é indiscutível, a do padroeiro da paróquia, são
Luís, 25 de agosto, de fato o úl_timo domingo do mês. É anunciada,
três semanas ames, por uma pequena feira, que tem por teatro um
prado comuna! plantado de árvores centenárias; ele margela a es-
trada em frente da igreja e elo cemitério. A vintena de vacas e algu-
mas dezenas de ovelhas apresentadas nesse dia interessam apenas
aos velhos, vindos a pé dos cós, as fazendolas dispersas no territó-
rio. Crianças e jovens comprimem-se de preferência em torno dos
vendedores ambulantes e das atrações da feira. Abastecem-se de balas,
máscaras, narizes postiços e, sobretudo, de petardos de todos os ca-
SE..'Ij()I.E,\f \';t ALDEIA 53

libres. Quando a noite cai a aldeia já mergulhou em um nOYO tem-


po. As corridas, as máscaras, os ruídos, mesmo furtivos c descomí-
nuos, mesmo abandonados apenas aos garotos entre duas idades.
são um prelúdio. Depois de 9 de agosto alguma coisa muda no ar,
a festa está em todos os espíritos, em todos os lábios, uma espécie
de febre sazonal apoderou-se da juventude.

De agora em diante, à noite, depois da refeição, os jovens se


reúnem para "fazer o baile", isto é, construir com suas mãos o lo-
cal da dança, o futuro coração efêmero da região. Com efeito, não
existe área preparada, nem salão ele festas, nem praça central nessa
aldeia de montanha estirada ao longo ele suas estradas e dispersa em
lugarejos; todos os anos tudo precisa ser reconstruído. Essa criação
é marcada em cada uma de suas etapas por uma parcela de incer-
teza, uma hesitação nas decisões, uma vaga ameaça. No entanto, a
regularidade, jamais rompida, do costume - que sem dúvida se
pode datar ele meados do século xvm, quando as cabanas de lenha-
dores e de pastores formaram essa paróquia em torno de sua igreja
e de seu real são Luís - é sempre acompanhada de dúvidas, de he-
sitações. A primeira é logo enunciada: onde se vai instalar o salão
de baile? Em princípio, a localização passa cada ano ele um café a
outro. Ninguém põe em discussão o fato de que o dono do café "faça
a colheita" durante a festa, pois, em compensação, deve garantir
muito liberalmente o alojamento dos músicos e do núcleo mais ati-
vo da juventude. Mas esse cálculo interessado jamais é confessado
enquantO tal, os jovens têm de fazer a defesa de sua causa. "Este
ano, eu não o farei, perdi demais há dois anos", anuncia brutalmente
o qono do café cuja "vez'' chegou; então começam as negociações.
Seu imperturbável desfecho é conhecido, já que apenas um luto du-
rante o ano pode dispensar o dono do café dessa gratificante obri-
gação. Mas não é menos verdade que até o final, até o último rumor
da música, a festa juvenil estará como que sujeita ao risco de uma
anulação ou de uma interrupção brutal, impostas tantO pelas auto-
ridades adultas - o dono do café, o prefeito, .que também pode fa -
zer-se ameaçador - quanto pelos saltos de humor elo tempo, que,
nesse fim de verão, manda seus nevoeiros e seus temporais.
Essa espada ele Dâmocles não deixa de produzir efeito sobre
o comportamento dos jovens durante as três semanas ele preparati-
vos. Por certo, eles agem, sob pressão, mas, sobretudo, exibem de
54 H/STÓR/ ;1 OOS]OVENS

maneira muito ostensiva sua clisciplin"a e sua hierarquia, oferecen-


do garantias continuamente. Os chefes emergem por si mesmos, são
os celibatários mais velhos, de fato, são " da classe", conscritos na
espera do serviço militar, nenhum ultrapassou os vinte anos e qua-
se todos são escolarizados. Em torno deles agrupam-se os "veranis-
tas" cujos pais alugam ou possuem uma casa na aldeia; nessa época
eles não são residentes secundários, pois laços familiares os ligam
ao lugar, sua integração à juventude é incontestável. Vêm em segui-
ela os convidados, parentes ou amigos recebidos em cada casa nes-
se período que antecede a festa. O trabalho comum agrega muito
depressa esses três círculos que partilham também os rudimentos ele
uma mesma língua. Com efeito, se alguns moços do lugar usam com
facilidade a língua de oc materna, os colegiais conhecem-lhe o es-
sencial e os estrangeiros elevem passar a usá-la por sua vez, pois pa-
ra todos os rapazes nessa idade a língua dos homens no trabalho
e no café torna-se um jargão de reconhecimento cujos idiotismos
e interjeições passam, desde a idade ele catorze anos, a pontuar, no
calor da ação comum, as trocas interpessoais. Mas, do centro para
a periferia desse corpo de juventude, decresce a possibilidade de
iniciativa na medida em que o savoir-jaire e a habilidade manual
exigidos nos momentos delicados da construção - não é preciso
montar um verdadeiro vigamento? - pertencem aos da região.
É em bandos que se vai primeiro recolher os materiais mais pe-
sados: toras e vigas elo ano anterior depositadas em um galpão, pesa-
das lonas de caminhão emprestadas pelos transportadores de ma-
deira, escada municipal de incêndio que se retira da garagem onde
fi ca ao lado do rabecão, pinheiros inteiros, carroças transbordantes
de galhos de buxo e de árvores resinosas retiradas da floresta públi-
ca ou, mais freqüentemente, ela floresta do castelo com a autoriza-
ção do proprietário - último eco de uma relação de vassalagem da
juventucle.6 Os adultos vigiam com discrição, resmungam alguns
conselhos e só põem mãos à obra no último momento, tendo pra-
zer em deixar os jovens enredar-se em sua falta de jeito, praguejan-
do contra sua incapacidade. Essas recriminações, que aumentam sem-
pre na feb re dos últimos dias, estão na ordem das coisas: para além
de uma banal estigmatização da inexperiência, afirmam a divisão do
trabalho festi vo no momento em que a necessidade impera e os adul-
tos desobrigam-se dela com prazer.
Se a área elo baile migra cada ano de uma calçada ele café para
outra, sua forma, sua aparência são estritamente fixadas pela tradi-
SER JOVEM NA ALDEIA 55

ção. Uma razão prática parece, desde o início, impor sua ordem ao
espaço. A orquestra deve ser vista e ouvida: constrói-se-lhe um es-
trado sobre o qual um toldo compõe o teto. Da mesma maneira,
vai se proteger a vasta pista de dança, delimitada por uma coroa de
grandes pilares; de um ao outro prega-se um círculo de tábuas que
formarão bancos, muito rústicos, em torno ele toda a área do baile.
O apresto desta última aguarela o último dia; exige várias camadas
ele areia, que são comprimidas passando e repassando um rolo ma-
nual, e, para terminar, uma camada de serragem que o marceneiro
deve generosamente fornecer, pois seu aprendiz faz parte da juven-
tude. Resta apenas iluminar a cena, não mais com lampiões, como
os antigos gostam de lembrar, mas com lâmpadas elétricas que vêm
sublinhar com suas cores tremeluzenres os contornos e as diago-
nais do "salão de baile". Mas este não seria mais que esqueleto sem
atrativos se não fosse revestido com seu corpo de vegetação que
rapazes e moças modelam juntos durante dias e dias. A entrada ela
pista, na frente do estrado, é emoldurada por dois pinheiros tão al-
tos e folhosos quanto possível, os ângulos da orquestra são suaviza-
dos com musgo e buxo trançado , rodas as paredes do salão de baile
são recobertas por galhos de pinheiros, pináceas e lariços entrela-
çados, entrançados, tão apertado que não sobra nenhum vazio, ne-
nhuma abertura insignificante. Guirlandas de buxo estendidas de um
lado ao outro da rua conduzem até essa e·spessa cabana ele folha-
gem, quintessência da floresta, transplantada ele fora .e na qual as
moças, no último momento, pregam aqui e ali flores de papel ver-
melhas e brancas. Antes mesmo que a música soe, assinalando-o -ao
longe, um salão de baile preparado propaga o odor mesclado de suas
resinas. Esse abrigo florestal basta para instaurar outro mundo pos-
sível onde reinam a música, a dança e a cortesia. Na própria aldeia,
a aproximação dos rapazes e elas moças é impensável; mesmo entre
noivos qualquer beijo público seria impróprio , ao passo que essa
floresta os autoriza cem vezes. A que deve ela essa virtude? A seu
lugar no calendário elos ritos que pontuam a vertente verde do ano. 7
Aqui tudo começa na segunda-feira depois da Páscoa, que "cada
fam ília celebra comendo omelete. Apenas os jovens, entre catorze
e vinte anos, entre diploma de primeiro grau e serviço militar, co-
mo dizia a geração anterior, se separam, partem juntos para os bos-
ques, até a relva - lcnhosa, espessa e sempre verde sob a neve -
que cobre os arredores dos riachos de água pura. Ali, depois de ter
dividido as charcuterias trazidas por cada um, as moças batem os
56 HISTÓRIA DOSJOVENS

ovos e os rapazes fazem um fogo sempre desmedido, mesmo para


a grande frigideira. Essa refeição ambulante, seguida de conversas
ainda tímidas- os mais jovens estão ali pela primeira vez-, prelu-
dia a longa estação do prado. As antigas ramades e juncades que
viam, na véspera do 1? de maio, os rapazes honrar e julgar as moças
com tapetes de flores, de galhos ou de espinhos diante de sua por-
ta, não são mais que lembrança distante, quase apagada, mas "ir ao
prado" permanece costume bem estabelecido. As vacas são leva-
das junto. Não cotidianamente, pois os rapazes reservam-se alguns
dias de explorações mais distantes, de grandes passeios até os refú-
gios dos combatentes da Resistência e da "guerra" de maçãs silves-
tres, mas muito freqüentemente para que os pendores se manifestem
em uma panóplia de jogos em que todas as seqüências - sorteio,
composição das equipes, perseguições ou diálogos - formam uma
linguagem de que o desejo, muitas vezes pouco seguro de si e de
seu objeto, é o único propósito. Como os bosques de árvores ra-
madas lançam seus galhos ou formam ilhotas no coração das cam-
pinas onduladas, os rapazes não deixam de gravar no flanco das faias
e dos freixos, com a ponta de uma faca que trazem sempre consigo,
os corações e as iniciais que, mais abertamente, exibem suas prefe-
rências. A maior parte esperará a festa para saber se é realmente cor-
respondida. E depois, a partir do dia seguinte, começará outra es-
tação, a dos longos passeios de outono em que o grupo misto se
forma novamente para ir longe, por caminhos redescobertos todos
os anos nessa ocasião, colher amoras e avelãs. O baile é, portanto,
o único momento em que o movimento se inverte e é exatamente
por isso que se emprega tanto ardor em instalar em plena aldeia uma
parcela de natureza de um verde intenso, o dos musgos, dos buxos,
dos pinheiros e de outras árvores resinosas, sabendo que nesse locus
amoenus o amor deve encontrar seus gestos e suas palavras. 8
Assim, os serões preparatórios, em que a noite é povoada pelo
ritmo dos martelos, pelo rangido das serras, pelas ordens gritadas,
pela bulha e pelos risos dos operários improvisados, já são a festa.
O grupo etário começa a existir em sua plenitude. Do mais distante
dos lugarejos, da mais afastada das fazendolas, a pé ou de bicicleta,
todos acorrem. Sob o pretexto de "trabalhar no baile", as moças
podem recolher-se tarde e nenhuma mãe correria o risco de afastar
a sua do grupo investido, nessas noites , de uma tão grave missão,
pois um tustet, um pequeno charivari, seria seu legítimo castigo.9
"Fazer a festa" plenamente é, com efeito, para todos os jovens do
SER )OVE.\1.\'A A LDEIA 57

lugar, uma exigência superior que implica, em primeiro lugar e an-


tes· de tudo, que participem da construção paciente elo espaço ri-
tual. Não é ali que eles vivem coletivamente o confronto , alterna-
damente silencioso e turbulento, dos jovens e dos adultos que se
diferenciam enquanto cooperam em uma relação paradoxal ele soli-
dariedade conflituosa? Mas, ao fim da última no ite, o salão de baile
está Já, surpreendente, palácio harmonioso e odorame, ele instalou-se;
os mais velhos vêm vê-lo, consideram-no "belo", felicitam a juven-
tude. Então começa o tempo múltiplo e concentrado, o dos três dias
e das três noites intensos de festa.

A CORTESIA BEM TEMPERADA

Tudo fica realmente pronto apenas no último minuto e ainda


é preciso, na tarde do sábado, fmalizar a pista, arar novamente al-
guns ramos, substituir as lâmpadas com falhas a fim de ser visto " tra-
balhando no baile" ; os mais joYens fazem questão de assinar assim,
aos olhos de rodos, a obra coletiva. Se, oficialmente, o baile é aber-
tO na noite do sábado , uma grande refeição fam iliar o p recedeu, pa-
rentela e jovens convidados fo rmaram, em torno de cada mesa, cír-
culos em que a festa foi ensaiada. A " boa casa" é detectável a partir
desse instante: transborda de "juventude" , sobretudo ele moças, to-
dos os p rimos e primas foram convidados. De resto, essa é a única
ocasião, ao lado das bodas, em que são solicitados os ramos laterais
e um pouco esquecidos da família, que passam a ter um valor novo
desde que suas filhas atingem a idade de danças; então se reatam
laços afrouxados ou, por vezes, até esquecidos. Quantas parentelas
são ass im reveladas apenas pelo poder ela fes ta! Aos parentes
acrescentam-se as amigas ele classe; freqüentemente pouco conhe-
cidas dos rapazes da aldeia, têm aos olhos deles o encanto das " es-
trangeiras" - é assim que as designam; mas não é o caso de imagi-
ná-las mais livres, as mães zelam por elas como por suas próprias
filhas. Diante desse súbitO afluxo, a casa é virada do avesso, fica-se
amontoado nos quartos, ocupam-se peças destinadas a outros usos,
os rapazes dormem nos celeiros. Na aldeia, quatro ou cinco ostals 10
resplandecem dessa vida festiva que constitui seu orgulho, enquan-
to os vinte outros comentam-se com ágapes limitados aos comen-
sais costumeiros.
Às dez horas ela noite, depois de uma "ceia" bem regacla no
Café, os músicos " atacam" o baile que o prefeito abre com sua es-
58 fi/STÓRIA DOS ]OI'ESS

posa. O programa é imutável: uma série de paso-dobles c de mar-


chas fortemente trombetados, algumas danças lemas, árias da moda
para os jovens, animadas então pelas primeiras guitarras elétricas de-
pois uma seqüência de danças antigas, javas e valsas sobretudo, com
violinos c acordeons. Por volta da meia-noite, para o cotilhão, a or-
questra acelera seus ritmos, intercala refrões e canções maliciosas
e comanda o pot-pourrí de danças ele fantasia, as que se executam
agachado, dando-se as costas, com mudança de dama a cada toque
da vassoura brandida pelo chefe ... Serpentinas e confetes lançam
suas Jianas e suas nuvens ele cor sobre o turbilhão caótico; e o gran-
de momento é atingido quando os dançarinos tomam pela cintura
suas clamas e erguem-nas o mais alto possível, para que se abra a
corola branca dos saiotes, quando a orquestra entoa o refrão ele
"Prosper, youp la boum!" . Nenhum grupo etário confisca o direito
ele dançar; os jovens são, por certo, os mais ardorosos, j á que os
melhores devem ser perfeitos em todos os passos, inclus ive va lsa,
mas alguns velhos fazem questão de lhes fazer frente, salvo nas danças
americanas, muito recentes. No começo dos anos 1960, toda refe-
rência a uma tradição local desapareceu. Nem branle, • nem rondó,
nem bou rrée; • • já é muito se uma ária de carnaval é introduzida
no último cotilhão. Contudo, esses bailes permanecem os locais pri-
vilegiados da memória musical para todas as gerações. Da valsa vie-
nense ao último rock anel roll, alternam uma surpreendente varieda-
de de estilos, porém com um ponto comum: existe apenas a dança
em pares, c estes últimos mal se fundem, no final, em cordões fuga-
zes, de mãos dadas, ou de mãos nos ombros.
No entanto, há uma dimensão desses bailes da qual os jovens
são os únicos a gozar plenamente: quem diz orquestra diz cantor,
e como nesse tempo todas as palavras são francesas , é um repertó-
rio na moda que se elabora de festa em festa. Depois do desapareci-
mento, nos anos 1940, elo cantor de feira que era também comer-
ciante de canções, antes da banalização do transistor e do toca-discos,
o baile é o medium que assegura a renovação uniforme dos gostos
musicais, é ele que lança os sucessos do dia. Essas canções aprendi-
das nas festas , nas aldeias das redondezas, são exigidas e reconheci-
elas com e ntusiasmo no dia da festa da própria aldeia; os jovens dan-
çarinos as cantarolam, as retomam em coro. São as moças que têm

( • ) Antiga dança popular. (:\. T.)


(• •) Ária e dança do folclore de Au\·ergnc. (N. T.)
SER}OV/;:11 NA ALDEIA 59

o cuidado de recolher assim, de um baile ao outro e no rádio, as


canções do momento. Cantam-nas nas noites de verão, quando o
pequeno grupo da juventude local dança na estrada, apenas ao som
de sua voz. As palavras são essenciais, pois, além de sua renovação
cada vez mais rápida, essas musiquetas de um verão desenham pa-
ra cada " onda" de juventude o percurso completo de uma ideal
Carte du. Tendre. * Levada por melodias muito simples, essa má poe-
sia propõe, ano após ano, um repertório acabado das situações amo-
rosas. Assim, como as ricas canções da tradição, oferecem, portan-
to, palavras para designar e reconhecer essas experiências íntimas
que só poderiam ser ditas cantando. 11
Com a primeira noite, eis enfim chegado o momento, tão temi-
do quanto esperado, de pôr à prova esse saber, pois o baile, antes
de ser o lugar principal de encomro e de confirmação dos pares, 12
é aquele onde cada um vem expor-se a todos os perigos das trocas
galantes. Até os anos 1950, nenhuma moça podia declinar um con-
vite para dançar, sob pena de desencadear insultos e rixas. Mas não
é o caso, sobretudo, de deduzir dai um constrangimento geral que
teria reservado apenas aos rapazes a iniciativa da escolha. De fato,
uma espécie de negociação prévia prevenia os atritos, os escânda-
los e poupava as vaidades pessoais: cada moça tinha seu "carnê de
baile' ' não escrito e cada rapaz conhecia o pequeno número daque-
las que podia e devia convidar. Assim, os convites sucediam-se sem
palavras, pois uma moça casadoura "fazia todas as danças" e, prin-
cipalmente, não era abandonada à beira da pista, entregue ao pedi-
do de um estranho. Essa maneira de agir atenuava os efeitos da grande
revolução coreográfica do século x1x que fragmentou em pares fe -
chados as grandes danças coletivas. 13 Nestas úl timas apenas os olha-
res e os encontros furtivos permitiam ao par iniciante esboçar um
espaço próprio, mas quando o duo se torna a regra é a obrigação
de uma troca ininterrupta que restabelece a preeminência ela comu-
nidade dos jovens camponeses. Em 1960 a dissociação está con-
sumada, mesmo no baile da festa local nenhuma ordem coletiva
governa as danças, cada um se vira como pode, sua história e seu
savoir-Jaire cortês, com o risco humilhante ele ficar sem o parceiro
esperado . Apenas " a dança da vassoura", em que se muda de dama

(•) Referê ncia às emoções ternas. 0 Mapa da Ternura foi concebido pela ro·
mancista francesa Madeleine de Sardéry ( 1607-1701), em sua obra Clélie, para o rei-
no de Tendre. (N. T.)
6Q 11/STÓ RIA DOS JO VENS

ao acaso, deixa a esperança, raramente satisfeita, de ter acesso àquela


que, durante toda a noite, evitou os convites.
Se a dança já não encarna em sua plenitude visível o ideal de
comunidade camponesa, esta permanece bem presente nos bancos,
contra as paredes do salão de baile, que reservam o maior espaço
àque les que estão ali não para dançar, mas para ver. De res to, opa-
lácio verdejante está plenamente iluminado, não se esquece nenhum
canto de sombra e, por contraste, a dança no escuro comandada
de súbito pela orquestra nunca é mais que um breve inte rmédio,
um jogo transgressivo com a imperiosa regra. A agressividade so-
nora e visual, o estilo "boate" que metamorfoseou os bai les de al-
deia nos anos 1970 ainda não afastou esses olhares, sempre alertas,
que jamais abandonam a pista. Danças concedidas, recusadas o u re-
p etidas são contabilizadas e avaliadas, atribui-se a alguns flertes um
futuro matrimonial, formulam-se em um murmúrio julgamentos so-
bre o bom procedimento ou a indecência, fazem-se c desfazem-se
reputações. As antigas brantes, ele que a ronda, única ou múltipla,
e ra a forma perfe ita, levavam à participação de todos, mesmo que
os jovens nelas devessem ilustrar a energia própria de sua idade; daí
em diante, o baile é continuamente cindido, a juventude dança em
pares moventes sob o olhar de um círculo imóvel, coro tagarela de
mulheres velhas, foco de todos os rumores, vetores da continuida-
de c do controle, voz plural da ordem social.
Nesse prime iro dia a festa termina bem cedo, mal se ultrapas-
sam as duas horas da manhã, pois o grande dia é o seguinte; com
efeitO, é no domingo que os riros mais diversos se enco ntram e se
conjugam, solicitando, com uma intensidade toda particular, a po-
sição in termediária e a ação mediadora dos jovens como grupo.

O DOMINGO D OS LAÇOS

De manhã cedo, por volta das oiro horas, toda casa está de pé:
todos se aprontam para a missa, vestem para a ocasião o verdadeiro
traje ele festa. Nada q ue evoque, porém, os antigos modos lo cais de
se vestir - apenas os negociantes ele cavalos com seu avental e as
batedoras de feno com sua touca usam ainda os trajes de anrigan1en-
te - , mas bastam·alguns indícios para situar cada um, nesse dia, em
seu grupo etário. Desde os catorze anos os rapazes vestem-se como
homens: terno escuro, camisa branca de colarinho engo mado, gra-
SER JOVE.\1 XA ALDt'IA 61

vara, sapatos pretos engraxados. A diferença reside nos detalhes: te-


cido mais leve, corre mais ajustado da calça, nó de gravata mais ou
menos volumoso segundo a moda do ano distinguem os jovens. As
moças são mais facilmente identificáveis, pois uma pane exclusiva
da paleta das cores femininas cabe-lhes em p articular. Com efeito,
a partir da morte de um ascendente do casal a esposa usa o pretO
até o fim de sua vida e cobre os cabelos; recém-casada, é livre para
escolher as cores; adolescente, está destinada à dominância do bran-
co. Assim, na manhã do domingo da festa as moças estréiam um ves-
tido - pois a calça seria indecente na igreja e o tail/eur permanece
apanágio das mulheres mais distintas - cujo fundo claro é apenas
salpicado de estampas vivas, florzinhas ou frutas vermelhas. A mo-
da das anáguas brancas engomadas e superpostas, dos pequenos sal-
tOS que alongam suas pernas transformam-nas em grandes flo res de
corolas invertidas. A maior parte prefere ir de cabeça descoberta.
Na missa elas nove horas, toda a comuna está presente: pessoas
da aldeia, dos lugarejos e das fazendolas subiram a colina até a igreja
inteiramente revestida de ardósia cinzenta. }.!esmo que vote socia-
lista, a região é ames praticante, mas nesse dia a afluência é excep-
cional sob a nave florida de gladíolos brancos e rosados. Os homens,
apinhados no fundo, formam uma massa negra, compacta; os jovens,
que chegaram mais cedo, puderam ter acesso à tribuna que domina
a nave, acima do portal de entrada. As crianças ocupam o espaço
intermediário. E bem junto da balaustrada, ao pé do altar, compri-
mem-se .as file iras de mulheres, com as cabeças envoltas em xales
ou lenços, mas com as cores - preta, colorida ou branca - que
revelam suas classes de idade. As cantoras, jovens e velhas mistura-
das, tomaram lugar na primeira capela lateral, com os músicos da
orquestra, pois, nessa manhã, a jU\·emude tem o dever de os "em-
prestar" à Igreja. Os metais, a clarineta, o órgão elétrico, a guitarra
de algum Americanjazz vêm acompanhar os cânticos. Do profano
ao sagrado, os instrumentistas em paletó ele gala circulam com o fluxo
coletivo. Essa convergência é, sob rodos os aspectos, excepcional.
Com exceção da noite de Natal, em que pode acolher tocadores de
antigos instrumentos pastorais, ao padre bastam o harmónio c vo-
zes femininas, mas a missa da festa autoriza, impõe mesmo, a mais
estranha mistura, pois, tanto quanto uma celebração religiosa, é um
ato de comunhão social.
O ite missa est põe fim à estrita divisão dos sexos. Mulheres
e moças empurram o gradil do cemitério bem próximo, vão visitar
61 HISTÓRIA DOS ]OI'ENS

os defuntos, " arrumar os túmulos", colocar flores; em outras aldeias


da montanha, esclarece-se que a missa do dia é dedicada " às almas'',
a assembléia votiva não as esquece. Por seu lado, os homens, que
foram os primeiros a sair, já contornaram a igreja para outra cerimô-
nia rememorativa. Agora formam um círculo em torno do monu-
mento aos morros, simples coluna no centro de um quadrado de
saibro delimitado por uma pesada corrente. Assim que se faz silên-
cio, o senhor prefeito se põe a ler com voz forre os nomes dos sol-
dados monos, inscritOS em duas placas ele mármore, uma para cada
guerra; um ex-combatente, o que carrega a bandeira, responde em
eco: " Morro pela França"; o baterista da o rquestra pontua cada cha-
mada por um rufo de sua caixa clara e, no fim da chamada, seu co-
lega trompetista faz soar o toque de silêncio. Os homens estão to-
elos lá, misturados, confundidos, crispados e recolhidos, com as mãos
cruzadas nas costas. Não é nenhum patrio tismo de encomenda que
os imobiliza assim, diante daquele monumento e daquela bandeira,
mas sim a emoção de ouvir os sobrenomes e os nomes que eles usam
ainda que desperta em cada um deles a tradição oral familiar e a me-
mória comum. Além disso, é apenas nesse momento que o título
de " conscritos", com que os mais velhos gratificam ainda os jovens
atores da festa assume seu sentido mais pleno. A coletividade dos
homens, vivos e mortos, é sempre "classificada" do ponto de vista
da guerra, ou pelo menos, da condição de soldado e de combaten-
te, qualidade maior que, desde a Revolução Francesa, estabelece o
laço entre a aldeia e a nação. 14 Quando se encerra a lista alfabética
elos nomes, o prefeito e o çlecano dos ex-combatentes depositam
o ramalhete de flores ao pé da coluna, e os jovens se dispersam ra-
pidamente .
Rapazes e moças descem juntos a estrada no meio dos prados
margeados de choupos c se encontram novamente no salão de bai-
le folhoso onde a orquestra lança alguns compassos ele musetas, dan-
ças aperitivas em que cada um se alivia do peso dessa manhã tão
solene. É em seguida que começa o Tour de table. Sobre uma car-
roça puxada por um tratar ou sobre a carroceria aberta de uma ca-
minhonete com montantes cultos sob um entrelaçado de folhagem
e de flores, empoleiram-se os músicos, alguns jovens animadores,
três ou quatro moças. O baile em miniatura põe-se a caminho, es-
coltado por um turbulento cortejo, vai de casa em casa. Bate-se à
porta, a família está à mesa, o dono da casa convida a juventude a
entrar. No pequeno cesto de vime que lhe é apresentado, ele depo-
SER }OI'Eil .VA AWEIA 63

sita seu óbolo e oferece bebidas aos rapazes, enquanto as moças pre-
gam rapidamente na lapela dos paletós e nos corpetes uma peque-
na flor de papel. Os músicos permanecem na soleira e declinam o
convite. O giro é longo e eles elevem tocar as árias que lhes forem
pedidas. Pois tais são os termos da troca: dinheiro e vinho doce por
um brasão musical. O leque das melodias é pobre mas cheio de sen-
tido : uma canção ele omrora que tOdos. mesmo os antigos, podem
retomar em coro e, aqui e ali, A marselhesa ou a In ternacional, se-
gundo a cor política dos chefes de família mais engajados. Assim
balizada, a estrada alonga-se, visto que se fazem esforços para reter
os visitantes. Por volta das quatro horas ela tarde, quando o Tour
alcança os cõs, as fazendolas distantes. fiapos de música vagueiam
no ar; chegando intermitentemente à aldeia. desenham-lhe, pelo ou-
vido, os limites extremos. Entretanto. a melodia é· cada vez mais
e ntrecortada, hesitante; por certo. os músicos não faltaram ao seu
princípio, não beberam nada nas casas, mas, como por encanto, gar-
rafas saíram dos sacos, cheias ela irresisth·ei bebida da festa em todo
o baixo Languecloc, a carthagene, essa mistela que embriaga por sua
doçura. Acontece que a trupe dos coletores YOite embriagada, que
as moças, indignadas, os abandonem no caminho ... c, assim, todos
os anos promete-se ser mais sóbrio, nem sempre fazendo esforços
para isso, a tal ponto é imperiosa a obrigação ele beber e a tal p onto
a juventude apega-se ao seu Tour de table como a um privilégio ina-
tacável, um costume que perpetua as formas e garante os limites.
Ao convidar todos os lares a dividir o custo da festa, ela assegura,
sem dúvida, a realidade de uma participação coletiva sem falhas, afir-
mando-se como uma idade menos produtora que a predadora. Tu-
do o que o giro recolhe se vai em música, banquetes e bebedeiras,
o gasto imediatO é a única regra. Além disso, e esse é outro aspecto
de sua condição, a juventude é livre para circular entre as diferen-
ças sociais: ela casa pobre à casa rica, dos " bran cos" aos "verme-
lhos", dos proprietários aos meeiros ... Desincumbem-se, portanto,
nesse dia, do dever ele dar co rpo à unanimidade comuna!, já que
apenas ela, em tempo de festa , possui semelhança e poder.
A coleta percorre toda a região, de mesa em mesa, daí seu no-
me; ela visita todas as casas, com exceção daquelas que, enlutadas
durante o ano, permanecem de janelas fechadas, solitárias e silen-
ciosas. Ao aproximar-se delas o ruidoso cortejo se cala. Mas. em qual-
quer outra parte, ele se intromete nos ágapes que reúnem parentela
e jovens amigos. A grande refeição do domingo é uma delicada tra-
64 HISTÓRiA DOS jOI'ENS

ma de paradoxos, uma reunião intencional de contrastes sempre re-


novados . De um lado, a tradição determina-lhe o cardápio com um
rigor imutável, proclamado pelas cozinheiras. Para começar, achar-
cutaria é abundante, fazendo, de resto, sua última aparição do ano;
depois dos trabalhos de verão, da feira e da festa, o armário das car-
nes de porco de preparação caseira está vazio . Matou-se também o
cordeiro que se serve assado, assim como as obrigatórias aves reti-
radas da criação doméstica. Como nesse topo ela montanha Negra
a vegetação das hortas é tardia, é nesse dia que se degustam os fei -
jões novos e as ervilhas. As lavas amarelo-pálido ele um creme ele
ovos muito açucarado comido com biscoitos encerram em doçura
esse festim. Do porco que termina aos legumes temporãos que se
descobrem, passa~1do pelo cordeiro de primavera recém-desmamado,
essa refeição inscreve-se na confluência dos principais calendários
alimentares. Além disso, ela realiza um ideal: não acumula os pro-
dutos nobres da terra como sinais de uma autarcia perfeita? A au-
rocronia da festa local afirma-se, assim, pelo enraizamento desse re~
pasto de exceção. Mas, por outro lado, aprecia-se servir à sobreme-
sa as primeiras uvas da planície, o que, de imediato, projeta-nos em
outro espaço. Eis-nos, com efeitO, em outro lugar fami liar aos rapa-
zes e às moças que, até os anos 1930 e desde o século xvm, reuni-
elos em colas, em equipes de trabalho, desciam para a ceifa e depois
para a vindima na região baixa. 15 Dali traziam para a festa vinho e
uva. Hoje, contentam-se em ir comprá-los em Carcassone ou em Nar-
bonne, mas essa pitada de exotismo instalou-se firmemente no car-
dápio da festa de são Luís . Semelhante coexistência do aqui e do
alhures que atravessa os principais objetos que a festa propõe e com-
põe - pensemos nas músicas e nas danças - amplia-se nas mesas
com a mobilidade crescente das adolescentes . Após os anos 1920,
muitas, depois do diploma de primário, fazem alguns anos de "cur-
so complementar" ou, pelo menos, de "escola de economia domés-
tica" . Daí trazem saberes culinários inéditos que, sem dúvida, não
subvertem o núcleo estável do cardápio festivo , mas, muito rapida-
mente, agregam-se ao seu redor. Assim, fazem habitualmente ovos-
mimosas de entrada, maclalenas e quatre-quarts* ele sobremesa. Nos
anos 1970, encorajarão a adoção elos primeiros produtOs congela-
dos. Estes últimos não substituem nada, sobretudo não modificam
a imutável sucessão das carnes, mas os camarões malgaxes ou os

C) Bolo com farinha, manteiga, açúcar e ovos em partes iguais. (N. T.)
SER}O\'E.\1 \'A ALDEIA 65

bolos gelados italianos, com sua forte nora exótica, prolongam e


acentuam a dicotomia. Assim, a grande refeição da festa, que "desde
sempre'' unia os ritmos temporais da produção local, acolhe agora
-depois das uvas novas que articulavam já o tempo ao espaço -
as referências bem acenruadas a dois mundos distantes: um próxi-
mo, o outro longínquo; um doméstico, o outro estrangeiro. Con-
tradições férteis ele que as mo ças são o fermento discreto mas po-
deroso, e como!

No decorrer desse domingo, passando de um lugar ao outro-


casa, igreja, cemitério, monumento ... -, percorrendo estradas e ca-
minhos, a festa revela melhor do que nunca o que a funda. Ela não
é o reflexo liso de um mundo social, nem sua ilusória transfigura-
ção; de fato, a todo momento, ela aponta diferenças e trabalho na
sua superação. Um mosaico de ritos faz existir a "comunidade" da
aldeia; esta, portanto, nunca é mais que vontade e representação. 16
::-.Jessa cena de urn dia a juventude é o intermediário, idade transiti-
va por excelência, ela é o perpétuo agcnre de ligação. Permite que
cada casa se faça notar, singular, mas seu giro as reagrupa em um
todo. Nas cerimônias, religiosa e cívica, ela está ali, bem presente,
e "seus" músicos tomam lugar como os atores indispensáveis à so-
lenidade do rito. Além disso, em cada um desses lugares a juventu-
de arranja o encontro do aqui e do alhures, do amigo e do novo.
Rapazes e moças, agindo cada um em seu registro e em seu espaço,
impõem-se como os mensageiros incansáveis de uma "confraria",
de uma "fraternidade" que faz honra à região. No tempo prelimi-
nar em que constroem seu salão de baile, eles já se tranqüilizaram
quanto ã sua capacidade de realizar uma obra coletiva; nesse do-
mingo é a coletividade como tal que eles são convidados a pór em
ação, a manifestar aos olhos ele todos. Dessa tarefa os riras são a uma
só vez os meios e os fins. No entanto, a experiência juvenil não se
limita a essa exibição bem-sucedida da harmonia social. Vimos quanto
é necessário vigiar o baile a fim ele que sejam freados os possíveis
desvios. Vimos o risco a que a embriaguez incontrolada submete
o giro geral. É preciso admitir, portanto, que a "juventude se pas-
sa" também na desordem, na violência c no excesso, e essa desme-
dida habita igualmenre a festa votiva, como sua vertente noturna.
66 HISTÓRIII OOS ]OVE!'>:S

A NOI TE DOS RAPAZES

Desde o sábado, porém mais ainda no domingo, perto do bai-


le, nos dois cafés, inventa-se uma outra festa, considerada mais pe-
rigosa. Por ondas, entre as seqüências de danças, os jovens dançari-
nos vêm beber cerveja e anisctc - sendo os álcoois fortes apanágio
dos fre qüentadores habituais do café - , e é ali, durante essas bre-
ves pausas, que pode explodir a violência.
O costume exige que durante a festa a aldeia decrete sua aber-
tura. Na semana anterior os jovens encomendaram ao impressor da
cidade um pequeno cartaz que fixaram ao longo das estradas da mon-
tanha. Às vezes uma faixa encimando as duas entradas proclama em
letras grandes o "bem-vindo". Toda festa bem-sucedida deve con-
firmar a capacidade da aldeia de receber hóspedes no momento em
que, tão intensamente, redescobre-se e aproxima-se de s i mesma.
Mas, de fato , h;.~ duas espécies de convidados. Aqueles que os laços
de parentesco c de camaradagem escolar unem a cada casa são co-
mo que adotados, fazem parte da juventude, mesmo que ainda se-
jam designados por seu lugar de origem: Paul de Mazamet, Moni-
quc de Cuxac ... Essa rede alimenta as danças, os namoricos de baile
e, mais tarde, os casamentos, pois é mais aceito esposar um primo
um pouco distante do que um vizinho imediato. É nesse parentes-
co e nessa amizade difusos - eles se irradiam nas duas vertentes
da montanha, incluindo-se as cidades - que se dão os e ncontros
duradouros. 17 Muito diferente são as relações com aqueles que, na
festa, apresentam-se em bando. Esses rapazes irrompem no baile,
em grupo compacto, apenas para um giro de pista. Não estão ali pa-
ra dança, não têm nenhuma possibilidade de convidar uma moça
do lugar, mas devem ser vistos juntos c reconhecidos ames de ir
instalar-se no café. Sua atitude é toda ele desafio e instantaneamente,
diante deles, os jovens do lugar se unem. Desordens e rixas opõem
sempre as juventudes de aldeias próximas. Elas se conhecem per-
feitamente, encontram-se regularmente ao longo de rodo o calendá-
rio das festas da montanha, c sempre subsiste um pequeno litígio
que, em geral , deve-se ao ponto de honra. Basta uma frase equívoca
a propósito de uma moça do lugar para que os insultos estourem,
dirigindo-se logo à coletividade inteira, à aldeia como entidade. Es-
ses atritos são sempre previsíveis e, portamo, no mais das vezes,
prevenidos. Depois de algu mas saraivadas de injúrias e de alguns
murros, os adultOs ela aldeia - na maior parte lenhadores c mineiros
SER}OI'E.II \ 'A ALDEIA 67

- intervêm . Mas, em geral, a dona elo café, apenas por sua pre-
sença c, quando é preciso, pela vivacidade de suas réplicas, mode-
ra os belicosos. Ela conhece os pais deles e lembra-os disso, eles
não são estrangeiros de verdade. Ela reina sem contestação sobre
outros círculos de homens exaltados que acolhe em outras ocasiões
-para os banquetes ele caçadores e de ex-combatentes -, única
mulher, maternal e respeitada, nessas reuniões viris. A arrogância
dos jovens não a impressiona muito e ela os faz saber disso. Mas
há incursões mais raras e mais inquietantes. Uma noite sobem do
burgo e da cidade esses bandos que não se identificam mais com
a juventude ele um lugar, cuja razão de ser é, precisamente, des-
prender-se de tOda vinculação e de toda continuidade genealógica.
Eles nascem num verão para desaparecer no seguinte. São temidos
na aldeia pois rompem de chofre a ordem aceita, que fixa para o
desafio um lugar, um momento, uma forma e limites. Assim, mal-
dizem-se essas batalhas que lançam por terra em um minuto a deli-
cada arquitetura ritual e desencadeiam uma violência necessariamente
absoluta: com esses estrangeiros, esses desconhecidos que destroem,
até mesmo a vendera é impossível, sabe-se que eles não serão reen-
contrados. Sua rápida incursão une instantaneamente os homens da
comuna, seus convidados e seus aliados, mas a autoridade deve tam-
bém apelar à força legítima. Com a chegada dos gendarmes, excep-
cional , é verdade, a juventude vê sua festa escapar-lhe. 18

A ameaça evocada, o jogo puramente verbal da agressão, os re-


latos posteriores são fermentos indispensáveis, apimentam toda festa.
fazem pelo menos correr perigos imaginários, põem cada um à pro-
va do m edo, exaltam a coragem . Sua presença à margem, sua lem-
brança, sua repetição mantêm uma solidariedade tranqüilizadora. For-
ça de dissolução quando realmente faz intrusão de fora, a violência
representada e dominada é unificadora. Mas na noite do café ger-
minam também experiências singulares em que a festa, por inter-
médio de seus atores p rincipais, parece levantar-se contra seus \'a-
tores proclamados. Dando as costas à unanimidade, ela cava suas
clivagens , explora seu avesso, simula desfazer seu próprio mundo.
Longe dos estranhos ela cultiva, até o escândalo, um " estranhamen-
te" interio r. 19
O divórcio delineia-se quando o primeiro baile está no auge.
\-ários jovens da aldeia, maus dançarinos ou pouco à vontade a par-
68 HISTÓRIA DOS jOVENS

tir do momento em que a orquestra ataca danças'modernas, cansa-


dos de suportar recusas - de "levar tábua", como dizem - , con-
centram-se no café, na proximidade rranqüilizadora dos mais velhos.
Pois os homens maduros e velhos, que fizeram no começo do baile
uma aparição fugaz, reencontram-se ali, na grande sala de cozinha
ou em torno das mesas que, quando a noite está bonita, ganham
a rua. Juntos bebem muito mais do que de hábitO, mas o serão é
excepcional, e, sobretudo, falam até o encerramento do baile. Para
dizer a verdade, sua embriaguez nasce menos do álcool que da pa-
lavra: histórias de caça, por cerro, já que a fes ta de são Luís é a aber-
tura da temporada, piadas obscenas, concursos de força e relatos
sobre os homens fortes do passado ... Com o avanço da noite, algu-
mas figuras tornam-se o foco da atenção: o beberrão inveterado, mais
embriagado que de costume nessa noite, mas sempre loquaz, o ce-
libatário empedernido que sustenta mais do que nunca sua reputa-
ção de pândega, o idiota da aldeia, arrebatado todos os anos pela
atmosfera de uma fes ta em que será posto em evidência ... Forma-se
um círculo em torno deles, são crivados de perguntas sobre seus
feitos galantes, suas aspirações amorosas, seus projetos matrimo-
niais, quer-se escutar novamente anedotas o uvidas cem vezes. Nes-
sa ocasião nasce um espetáculo de farsa, um jogo do esperto e do
bobo em um concerto de risos loucos. A fala regional o u a mistura,
de um burlesco muito elabo rado , do francês e da língua de oc exi-
bem-se nesses improvisos em que se destacam alguns marginais fa-
miliares. Sob muitos aspectos, esses homens de todas as idades põem
em cena o avesso da exibição erótica, cujo palco é o baile . Na caba-
na de folhagem uma espécie de gravidade imobiliza a maior parte
dos jovens dançarinos - ar tenso daquele que busca o convite de
um olhar, indiferença fingida daquelas que esperam -, a aproxi-
mação amorosa é uma arte difícil, e cada um se aplica em percorrer
segundo a progressão adequada as etapas das quais conhece o có-
digo muito rigoroso. No café, em compensação, zomba-se dessas
poses, exibe-se a galeria cômica dos galantes frustrados que vários
homens encarnam ali mesmo. Do inocente que jamais deixará de
ser simplório ao conquistador inveterado, passando pelo carnudo
complacente, cada um representa um ridículo que lembra a esse
coro fechado dos homens a esperteza das mulheres e a insensatez
do amor.
Enquanto toda a energia da juventude era empregada em tra-
mar o encontro dos rapazes e das moças, eis que, uma vez saídos
SER }OI'E.II .\"A ALDEIA 69

do baile, a noite os separa como se a diferença viril devesse forjar-


se à distância, reafirmar-se na taberna, e isso ao longo de toda a fes-
ta. Assim, o Tour de table, tão civilizado, por volta do fim transfor-
ma-se na farra de bebedores e afugenta as moças, quando estas não
são agarradas brutalmente para ser lançadas no lavadouro ou na agua-
da, depois de corridas, gritos, salpicos de lama. Da mesma maneira,
a refeição que, no domingo à noite, reúne na sala dos fundos do
café os músicos e os jovens do lugar: longe da pompa oficial, a obs-
cenidade se solta; todo alimento, desde que chega à mesa, suscita
comentários ele duplo sentido; à sobremesa, o mais jovem, que, de
olhos vendados, deve dobrar e desdobrar guardanapos, vê-se dian-
te de um sexo aberto ou então imitando a masturbação sem se dar
conta disso imediatamente. Essas maneiras, bastante secretas, pre-
param para a louca noite do domingo, na qual os atores são apenas
os rapazes da aldeia, a juventude em sua mais estreita acepção. En-
tão, eles dão corpo ao outro registro de seus ritos.
Por volta das duas horas da manhã, ei-los tomados de uma es-
tranha impaciência, acham que o baile se eterniza, apressam os mú-
sicos para terminá-lo e apagar as luzes. Tendo partido os últimos
convidados e reconduzidas as moças, a noite fica de súbito mais es-
cura e o silêncio mais absoluto. A aldeia muda ele mãos, a juventu-
de apodera-se dela. Perto do riacho, na pane baixa da estrada que
sobe para a igreja, começa-se a amontoar tudo o que foi deixado
para fora. Logo uma carroça ladeia um barril plantado como um
buxo, vasos de flores, bancos, uma bicicleta, calhas e canos de es-
coamento, tinas de lavadeiras ... A pil ha aumenta com as horas, os
objetos mais heterogêneos, acumulando-se, embaralham-se em um
magma informe. Para coroar o conjunto, corre-se o risco de içar ins-
trumentos muito pesados - um arado, por exemplo - nos ares,
até o topo de uma árvore. E depois, refinamento supremo, trocam-
se as venezianas das casas. Verde por vermelho, madeira por fer-
ro ... Charivari silencioso das matérias e das cores. Os galinheiros
que, em uma construção à parte, encimam o alojamento do porco,
são conscienciosamente esvaziados de seus ovos, por vezes de uma
galinha. O coelho e o pato estão situados mais acima na hierarquia
das retiradas possíveis, c apropriar-se deles tem sempre uma cono-
tação punitiva; assim, escolhe-se para isso a casa de uma pessoa de
difícil convívio. De resto, nessa noite alguns ostals têm direito a um
tratamento mais ruidoso. Tomando impulso, em plena corrida, ba-
te-se com muita força nas venezianas ao alcance do punho, ou en-
70 HISTÓI/IA VOS ]OI'ENS

tão é uma porta que é sacudida ritmicamente por uma grande pe-
dra angulosa ou por um pesado cepo manobrado ela ponta ele uma
corda comprida. Cobrir com um saco a chaminé, tapar com um tra-
po bem apertado o cano de escoamento que conduz para o meio
da rua as águas da lavagem ela louça, acender uma mecha com en-
xofre na gateira, untar delicadamente de estrume a maçaneta de uma
porta ... fazem igualmente parte do repertório das farsas juvenis.
Essas brincadeiras não são reservadas à noite ela festa, mas, co-
mo são apanágio exclusivo da juventude, concentram-se, prolon-
gam-se e intensificam-se nessa noite . Apenas as vigílias de Natal, do
retorno dos conscritos e, por vezes, do 14 de julho suscitam tantas
agressões simbólicas que, pelo menos, ratificam o controle exclusi-
vamente juvenil da noite.2° Sob sua aparência desenfreada e impro-
visada, essas facécias são repletas ele sentido. Em primeiro lugar,
enunciam globalmente uma relação da juventude com o mundo so-
cial que a espera. De maneira geral, o que fazem os rapazes nessa
noite? Erigem o caos, circunscrito, por certo, mas espetacular, mis-
turando objetos, impondo-lhes percursos erráticos- o que está em-
baixo passa para o alto e vice-versa- c, sobretudo, desapt·oprian-
do -os. Seu prazer nasce dessa desordem . Basta assistir, ele manhã,
às exclamações de despeitO, as vituperações e as disputas dos adul-
tos diante do amontoado confuso no qual procuram separar o que
é de cada um para avaliar a eficácia desse gesto que emaranha. Ao
diabo os espaços delimitados e as instalações regulares que dão tes-
temunho de cada poder doméstico! Tudo se confunde para além
das portas marteladas, das cercas pelas quais se penetra, das barrei-
ras postas abaixo . Quanto ao roubo, é plenamente ritual, isto é, co-
dificado em suas formas, em seus objetOs c em seus parceiros, ao
pontO de definir uma ilegalidade consuetudinária. Similar à coleta
e ao resgate matrimonial ou ao charivari que, por bem ou por mal,
acompanham todos os casamentos, ele é uma dízima tOlerada. De
restO, a apropriação juvenil é toda provisória, atinge apenas víveres
imediatamente consumíveis. Essa regra do dispêndio proíb e todo
entesouramento, pessoal ou coletivo, e acarreta, a maior parte do
tempo, a boa vontade das vítimas. A história daquela mulher que,
sem o saber, assou no dia seguinte, para a juventude, a galinha que
lhe havia sido furtada na véspera tem valor de apólogo; ilustra a coin-
cidência profunda, a harmonia preestabelecida implícita entre to-
mar e doar. Tal é, em todo caso, o princípio superior que se invoca
quando vozes se levantam contra a turbulência dos jovens, pois há
SER jOVEM .\'A ALDEIA 7/

sempre discussão sobre essas desordens, seus limites e seus efei-


tos.21 Então se revelam outras dimensões desses ritos; lembraremos
duas delas .
A primeira aparece quando se consideram as vítimas dos rou-
bos mais graves, das badernas mais extremas, das vexações repeti-
das. Elas jamais são escolhidas ao acaso. Se sacodem a porta de uma
viúva ainda jovem e aparentemente devora, toda vestida de preto,
mas da qual se sabe que recebe às escondidas o velho celibatário,
se sujam com ovos podres as graciosas venezianas do marido com-
placente ela Bovary local, se aterrorizam um grupo ele mulheres ve-
lhas, suspeitas de feitiçaria, soprando sob sua porta o nome do dia-
bo - Grifou, Grifou! - , se inventam mil brincadeiras para atormen-
tar um misantropo, os jovens fazem irromper na noite os amores
ocultos que, de dia, correm em segredo. Eles são, portanto, os agentes
do mais estrito controle social, as vozes da ordem, os defensores
minuciosos dos valores comuns. Mas, ao fazer isso, lançam uma es-
piral tumultuosa. Com efeito, se as mulheres perseguidas com suas
divertidas sátiras ou com tumultos mais cruéis calam-se, no mais das
vezes, e remoem sua vergonha, outras dão livre curso à sua cólera.
Por certo, o tipo intratável que um tustet faz saltar ele sua cama de-
sempenha seu papel na troca teatral da farsa. Sem seus gritos, suas
explosões, suas perseguições, não há mais brincadeira, a juventude
fica sem parceiro. Mas é preciso saber quando parar. Enquanto a
baderna não se tOrna perseguição, enquanto a vítima contenta-se,
no máximo, em brandir seu fuzil ou mesmo em atirar às cegas al-
guns cartuchos ele sal grosso permanecemos no toler:-ível. Além, o
consenso se desfaz e mesmo sem cair sempre no noticiário sangremo
e no caso criminal - bem raros, afinal - surge um paradoxo sob
rodos os aspectos impensável: como admitir que a ordem coletiva
possa ter como arma suprema essa desordem juvenil que se volta
contra e.la?22 Pois, longe de restabelecer a regra e de trazer de vol-
ta a justa paz, ela aprofunda querelas, enrijece inimizades. Além dis-
so, escarnece o valor que se atribui cada vez mais, nesses campos.
desde o século xvur, ao bem próprio e à viela privada, cuja esfera
reconhecida se estende, se fecha e se defende. Em suas expedições
noturnas - que deixam vestígios crescentes no arquivo judiciário
- a juventude se fere na passagem progressiva, mas irreversh·el.
para a sociedade dos indivíduos. 2 3 Que a noite da festa acolha daí
em diante o essencial desses costumes parece confirmar sua limita-
ção crescente. A importunação punitiva não poderia, como os cha-
-2 HISTÓ RIA DOS JOVENS

rivaris de outrora, animar toda uma estação; ela já não desencadeia


um longo drama confli tuoso; tem lugar simplesmente nesse tempo
breve, excepcional sob todos os aspectOs e do qual transborda bem
pouco. Em compensação, ganha em densidade expressiva por estar
inserida no curso da festa local; a desordem denunciadora contras-
ta com as cerimônias conciliadoras como a noite se opõe ao dia.
Esse enfraquecimento ela ação repressiva dos rapazes não apa-
gou, entretanto, uma segunda dimensão desses ritos. A vagueação
noturna, os gritos, as desordens e as-misturas antinaturais marcam,
.como vimos, a posição passageira elos jovens no limiar da socieda-
de camponesa na qual vão "enquadrar-se", instituindo-os como os
revelaclores dos escândalos ocultos e silenciados. Mas essas manei-
ras, caso se queira perscrutar-lhes o detalhe, formam em si mesmas
uma experiência que a sociedade reconhece e designa sob a locu-
ção misteriosamente tautológica,.faíre la jeunesse, que se aplica ape-
nas aos rapazes. Que se entende por isso? Essencialmente, a explo-
ração perigosa de margens, de limites que se desejaria que separas-
sem firmemente as polaridades opostas que servem para pensar o
mundo: o selvagem e o civilizado, o masculino c o feminino, os vi-
vos e os mortos .. . Freqüentemente juntos, mas por vezes solitários,
os jovens percorrem essas paragens e delas trazem um saber que
os transforma, que os engrandece. 24 Detenhamo-nos, a título de
exemplo, nesta última divisão, tão presente e tão ativa nessa aldeia
da montanha Negra cuja fes ta examinamos. Vimos quanto os defuntos
estavam associados ao cerimonial diurno, mas sua presença é mais
requisitada ainda ao longo ele tada a noite. Assim, para provocar me-
do nas mulheres velhas, os jovens não só ululam o nome do diabo
pela gateira, mas também invocam mortos e fazem-se de fantasmas,
semeando o terror. 2 5 Para isso, chegam eles próprios a fazer a ex-
periência do trespasse, para o pesar elos adultos preocupados com
que essa exploração, que sabem necessária, seja sem volta. No en-
tanto, não é esse o risco que se corre ao beber desmedidamente?
Quantos, no fim da noite, rolaram, caindo ele bêbados, nos fossos ,
parafaire lajeunesse até o fim? A experiência é banal e aceita, sal-
vo quando explicita muito claramente o que está em jogo. 2 6 No de-
correr ele uma dessas noites ele louca embriaguez, tendo um elos seus
mergulhado no profundo sono dos bêbados, os jovens simularam
enterrá-lo , ergueram em plena aldeia um cenotáfio encimado por
uma cruz e por uma inscrição funerária com os nomes e qualifica-
ções elo feliz defunto morto no campo de honra das garrafas. Sen-
SER JOVEM NA ALDEIA 73

do sempre as primeiras a levantar-se, foram as velhas que se reuni-


ram em torno do macabro simulacro; renovando gestOs c gritos de
carpideiras, desfizeram-se em imprecações contra essa juventude que
ousara imitar a tal ponto a morte que iria infalivelmente atrair para
si os raios do destino.
Um rico jogo de ecos unifica os atos sucessivos desse drama
noturno. Afarsa do café, que põe em evidência as fraquezas dare-
lação erótica e matrimonial, metamorfoseia-se em ação corretora por
meio das farsas que a juventude inflige aos contraventores. J\'Ias,
no momento mesmo em que ela se coloca como o braço secular
da comunidade, utiliza maneiras- desordenadas, insultantes , gros-
seiras e brutais - que a marginalizam e podem acarretar a censura.
Do lícito " direito dos rapazes " à intolerá,-el "rapaziada" a distância
é rapidamente transposta e a possibilidade cresceme de sen-ir-se dos
diferentes níveis da autoridade pública, na aldeia e sobretudo além
dela, abre para as vítimas um recurso que transforma facilmenre jo-
vens atrevidos em presas de polícia. 2 - O primeiro ato dessa margi-
nalização deliberada é, como vimos, a separação dos rapazes e das
moças. Ainda que algumas delas pareçam misturar-se, cada vez mais,
às expedições que os rapazes fomentam, afastam-se por si mesmas
no momento em que se atinge o coração da noite, o núcleo escato-
lógico do obsceno, no instante da verdadeira violência, o último
passo na direção dos mortos ... Tudo leva a crer que, para os rapa-
zes, esse fosso intransponível delimita o território em que sua iden-
tidade viril se funda e se afirma . Nessa perspectiva, o transcurso da .
festa concentra e inverte, em sua sucessão temporal, o roteiro obri-
gatório das biografias. Com efeito, neste transcurso cada sexo se cons-
trói à parte, em sua diferença, por certo sem esquecer o outro, mas
mantendo-o a essa distância que alimenta a espera e seus ritos . Che-
gado o momento, a corte será uma prova, uma tentativa de entrar
nessa linguagem comum no seio da qual rapazes e moças se exerci-
tam em fazer frutificar o tesouro de suas experiências anteriores. 28
Na festa, essa aproximação cortês impõe-se antes de tudo, ocupa
todo o primeiro plano. Momento único na vertente verde do ano,
o baile em plena aldeia é a cena capital, o clímax do drama. E de
súbito, pelo poder da noite, os rapazes abandonam a pista que tão
pacientemente construíram, num átimo parecem voltar atrás , rumo
ao seu recente passado de agressiva diferença, aquele mesmo en-
carnado na aldeia pelos "inocentes", os "selvagens" e os " loucos",
imobilizados que estão em um estado do qual não puderam retor-
74 IIIS TÓ Rf,1 DOS }OI'RNS

nar. 29 Essa reviravolta, sem dúvida, confere à festa um acréscimo


de intensidade dramática, da mesma maneira que essas barreiras no
caminho ou esses avessos contidos nos grandes ritos de passagem,
o casamento em particular.30 Mas esse momento ele dissolução re-
grado deve dar lugar ao triunfo de uma ordem renovada que os úl-
timos ritos representam.

No dia seguinte a essa louca noite, na segunda-feira, portanto ,


a aldeia se reencontra, mais recolhida em suas casas. Comem-se ao
meio-dia os restOs ela grande refeição da véspera . Alguns convida-
elos partem para retomar seu trabalho. O horário elos bailes perdu-
ra, mas os dançarinos são quase unicamente os habitantes da aldeia
e seus mais jovens convidados. Como para fazer-se perdoar pelas
travessuras da noite, os jovens abandonam aos adultos a iniciativa,
as danças antigas abundam, o violino e o acordeom dominam.
E então, por volta das cinco horas da tarde, na luz rasante de
um entardecer já outonal, a festa lança seu último brilho vivo e rea-
ta, mais estreito do que nunca, o que a irrupção do avesso quase
desfizera. A farânclola reúne a juventude pela última vez. Rapazes
e moças, de mãos dadas, deslizam na longa corrente que serpenteia
nas ruas, nas vielas e nos pátios, desliza entre as mesas dos cafés,
faz ressoar ruidosamente os assoalhos das ostals. Nada de figuras
complicadas, como em certas farânclolas provençais revistas e cor-
rigidas por mestres de dança militar, depois de 1830.3 1 Aqui é pre-
ciso simplesmente correr marcando o passo, no eixo da corrente,
por um pequeno salto sobre o pé ele apoio, enquanto o outro per-
manece um tempo no ar antes ele pousar por sua vez. A figura é difí-
cil quando a corrida se acelera, mas os jovens demonstram então
uma facilidade que o grande trabalho ela festa não diminuiu em na-
da. Pois o essencial está na velocidade e nos meandros inesperados
provocados pelo chefe de fila quando se esmera em penetrar por
toda parte. Deslizando do interno ao externo, do privado ao públi-
co, do oficial ao comum, a fila dançante, acompanhada de seus dois
músicos - clarineta e caixa clara - , unifica o território comuna!
sob o signo ele um vivo e último dispêndio de todas as forças do
corpo. Mas esse abuso de energia permanece perfeitamente sujeito
ao rirmo ela música e do passo, à alternância dos pares ... A farânclo-
la lança a aldeia em uma desordem harmonizada, ao mesmo tempo
em que reata os laços com a base imemorial da tradição; única dan-
ça viva de um repertório muito arcaico, ela desperta um longo cala-
frio de emoção coletiva, nela cada um experimenta o sentimento
imediatO de penetrar em uma totalidade social em movimento, des-
dobrada nos menores recantos do espaço e nas insondáveis profun-
dezas da duração.
Terminado o último baile, quando a música silenciou, alguns
tentam prolongar com todas as forças a festa, fazem algazarra tarde
da noite como para repelir a lassidão e a melancolia que tomaram
a juventude. Uma série de vigílias, menos febris ainda, assegura, na
semana, a desmontagem completa das instalações; o "baile" não dei-
xa nenhum vestígio. É então que panem os veranistas, logo segui-
dos pelos colegiais. Depois da colheita das batatas, das lavouras de
outono c do corte da lenha, a aldeia está pronta para entrar no in-
verno.32

Que restará ao historiador futuro para conhecer o que aconte-


ceu durante esses três dias? Bem pouca coisa: uma linha no orça-
mento comunal, o esboço de um cartaz talvez, um breve anúncio
no jornal local e, em caso de incidente realmente grave, uma notí-
cia policial. Alguns instantâneos parciais que revelam bem pouco
da complexidade dessa cena juvenil. Nesse sentido, o caso que es-
colhemos detalhar é exemplar, pois situa no primeiro plano a mul-
tiplicidade dos comportamentos que a festa local combina. A juven-
tude aparece como a detentora dos ritos da coesão comunitária c
como :a atriz principal de sua burlesca e violenta dissolução. Mas
esta última é a uma só vez uma arma do controle social e uma expe-
riência a ser vivida para se construir em seu ser de adultO consuma-
do e de habitante da aldeia. O tempo da festa, feit o de reviravoltas .
súbitas , de alternâncias, de cenas simultâneas, concentra esses mo-
vimentos contraditórios; mais do que qualquer outro momento, ele
expõe suas relações necessárias.
Por certo, apresentados tal como se combinam na virada dos
anos 1960, os elementos da festa inscrevem-se em sua própria du-
ração e seria lícito faL:er a história comparada dessas maneiras de ser
- vestuário e cozinha, dança e música - que significam a meta-
morfose festiva. Vimos quanto a juventude é, desde o início dos tem-
pos modernos pelo menos, a idade das paixonites e o fermento da.
mudança. Os bandos de migrantes temporários, as empregadinhas
elas casas burguesas, os militares e os colegiais têm todos, ao longo
76 I /IISTÓRIA DOS jOVENS

dos séculos, cumprido seu papel de captadores de desconhecido,


de promotores de novidades de que a festa era, por excelência, o
lugar e o momento de surgimento. Mas, por outro lado, como não
ficar impressionado com a força do que os próprios habitantes da
aldeia chamam de " costume"? Os jovens são seus zelosos servido-
res, pois o costume os situa em seu lugar, em uma duração que se
prolonga e em uma sociedade que eles perpetuam. É certo que o
duplo registro da diferença " cultivada" dos rapazes e das m oças c
de sua mútua conversão galante é, em nossos três séculos de refe-
rência, a trama incontestável da permanente invenção que lhe asse-
gura a eficácia. Aí repousa, sem dúvida, a originalidade profunda
da juventude camponesa. Ela não dispõe do leque aberto das carrei-
ras juvenis oferecidas imediatamente pelas cidades ou, antes, estas
não são em nada separadas. Não há comportamentos colegiais, arte-
sanais ou operários de jaíre la jeunesse. A rede das organizações
confessionais ou políticas terá na maior parte dos campos apenas
um sucesso tardio e limitado. A despeito das diferenças, por vezes
sensíveis, de riqueza e de condição social, jamais há na aldeia, quando
ocorre a festa, mais que uma única "classe de juventude". Isso não
implica uma autarcia imóvel: as Reformas e depois a renascença ca-
tólica do século XIX, a República estendendo-se até a aldeia, a na-
ção combatente ... foram acolhidas e emprestaram suas referências
e suas linguagens à festa, sem que seu roteiro se tenha subvertido
por isso.
No entanto, a ruptura existe, em primeiro lugar como um im-
perativo geral - "é preciso que a juventude passe"- sempre mais
fortemente afirmado pelas mulheres, pois muito cedo os homens
foram apanhados por uma história que, agindo como do exterior,
muda · sua vida, instaura as censuras necessárias. O recrutamento
mais ou menos forçado das milícias c, sobrerudo, a conscrição ge-
neralizada ocuparam esse lugar. Ainda hoje essa partida, mesmo que
inaugure um período em que supostamente a virilidade se consu-
ma, guarda a memória de outra partida, para os campos de batalha
e os horrores da guerra. Em maio de 1914, em uma estrada lama-
centa do Westerwald, o grande fotógrafo August Sander apreendeu,
realmente " de passagem", a imagem de "Três camponeses que vão
dançar"; o bastão rústico na mão, o chapéu preto na cabeça, muito
tesos em seus trajes de festa , prontos para a prova do baile c, sem
dúvida, para as alegres deso rdens da noite.33 Como não ver sobre
eles a sombra da hecatombe, aquela que arranca definitivamente de
SERJOVE.II NA ALDEIA · 77

seu lugar e não deixa mais que o rastro de um nome, aquela que,
ainda hoje, para a maior parte dos camponeses europeus, marca uma
fenda do tempo e revela a cláusula trágica, a do imposto do sangue.
do contrato que une o Estado moderno e sua juventude?

NOTAS

(1) Sobre a juvcmuclc como corpo constituído o melhor estudo é o de N. Pel-


legrin, Les hacbelleries, organisations et jêtes de la jeunesse dans te Centre-Ouest,
XV"-XV/JJC sifxles (Mémoires de la Société des Antiquaires ele l'Ouest, 4~ série, t.
6, 1979-82, Poitie rs, 1982, 400 pp.). Encontrar-se-á emj. Gillis, Youtb and history
(Nova York, Academic Press, 1974), trad. ital. I giovani e la storia (Milão, Monda-
dori, 1981), uma visão do conjunto sobre as formas da instituição na Europa pré-
industrial (cap. 1); da mesma maneira, em M. Mitterauer, Sozialgescbichte der j u- ·.._;
gend (Frankfurt am .Main, Suhrkamp Vcrlag, 1986), trad. ital. I giovani in Europa
da/ Medioevo a oggí (Roma - Bari, Latcrza, 1991), cap. 4. É verdade que, na ausên-
cia de uma organização reconhecida c de uma hierarquia clara, a juventude é uma
idade assinalada, socialmente ativa; esse problema foi levantado por M. Agulhon
em Pénitents et jrancs-maçons de l'ancienne Provence (Paris, Fayard, 1968), cap.
2. No caso do qual partimos, a hierarquia, com abade ou capitão da juventude, ates-
tada no Sul da França por vezes até o século xx (sobretudo na Provença), desapa-
receu. Restam os termos junessa, jovent que designam a uma só vez uma idade,
uma esfera de intervenção e um estilo de comportamento. Sobre a juventude do
ponto de vista das moças, ver Y. Verdier, Façons de dü·e, jaçons de jaíre (Galli-
mard, '1979), 2 • parte, "La couturiere" .
(2) O mapa foi montado por Gilliéron e Edmont no Atlas linguistique de la
France, c foi retomado por A. Dauzat, Le vil/age et /e paysan de France (Paris, Gal-
limard, 1943), p. 153, e por H . Mendras, Sociétés paysannes (Paris, Armand Colin,
1976).
(3) A reinage é uma forma ele organização que foi analisada por R. Bauticr,
Une institution 1·e/igieuse du centre de la France: les reinages (Guérct, 1945); por
L. Lamarchc, ''Reinagcs d romois", Bull de la Soe. d 'Arcbéologíe et de Statístique
delaDrôme(t. 745, n':' 330, 1958), pp. 105-18; por]. P. Gutton, " Rcinages, abba-
yes de jeunesse et confréries dans les villages de l'Ancienne France", Cabiers d'His-
toire (1975, n° 1). Emmanuel Le }{oy Ladurie mostrou seu papel em um caso parti-
cular: Le camaval de romans (Paris, Gallimard, 1979), em particular cap. 11 .
(4) Os Propos rustiques de N. du Fail (1 ~ ed., Lyon, Jean ele Tounes, 1547)
evocam em detalhe os "dias fes tejados"; com os Contes et discou.rs d'Eu.trapel, o
mesmo autOr (1 ~ ed., }{ennes, 1585) oferece-nos um quadro muito vivo das condu-
tas juvernis no começo do século xv1 na região de Rennes.
(5) Nas aldeias o café quase não se distingue de uma casa privada na qual se
serve comida e bebida aos fregueses, como em uma hospedaria, mas sempre na mesa
da taberneira.
(6) Sobre os riros da juventude que se tOrnam ritOS de o hediência ao senhor
do lugar, ver. N. Pellegrin, op. cit., pp. 121-40. Nos burgos da montanha Negra
78 HISTÓRIA DOS jOVENS

- como Revel - no século xvm a juventude era dividida em três categorias, se-
gundo o vínculo social.
(7) Essa retirada florestal foi subli~hada e comentada por Y. Verdier, "Che-
mins dans la forêt: les comes" , Des arbres et des hommes (atas do colóquio "Forêt
et société", Arles, Actcs Sud, 1981), pp. 344-52.
(8) Um tipo de "baile" ainda mais carregado de vegetação existia até os anos
1950 na fronteira do Languedoc e da Catalunha; ve r D. Fabre, "Le sauvage en per-
sonne", Terrain 6 ("Les hommes e t le milieu naturel"), pp. 6-18.
(9) Tustet vem do provcnçal tustar, bater; conhece-se também o termo caril-
lon , muito comum nos documentos judiciários do século xvm, e o termo marte-
lei, mais mediterrâneo (ver C. Robert & M. Valiere," 'Lo manclet', un charivari oc-
citan à Lespignan (Hérault)", in]. Le Goff &]. C. Schmitt (dirs.), Le cbarivari (Paris,
Editions de l'École des Hautes Étudcs en Sciences Sociales- Mouton, 1981), pp. 55-64.
(10) O termo ostal (do latim hospitalis) designa no Languecloc a "casa" no
sentido físico e sociológico.
(11) A Academia céltica, em suas Mémoires .. . (Paris, 1807-1 3), acolheu vários
estudos do ritO de casamento que acen tuam esse acompanhamentO de canções e,
implicitamente, a importância da canção como linguagem da educação sentimen-
tal. A passagem da canção oral tradicional para a canção moderna, referida a um
intérprete, não modificou sensivelmente essa função . Sobre o lugar da canção co-
mo espelho das emoções amorosas juvenis, seria preciso reler de perto a autobio-
grafia de Louis Simon. Ver A. Fillon, Louis Símon étaminier, 1741 -1820, dans son
vil/age du haut lvlaíne au siec/e des Lumieres, tese (Le Mans, 1982), 2 vols. , c da
mesma autora Les trois bagues au doigt, amours villageoises au XV!l/e siec/e (Pa-
ris, Robert Laffont, 1989), em particular, cap. 6.
(12) Louis Girard, pesquisando em 1959 sobre Le choix du conjoint en Fran-
ce (Cahiers de l'JNED, Paris, PUf', 2• ed., 1974), confirmou a presença do baile co-
mo lugar de primeiro encontro para os casais (22,3%). Esse lugar da dança- cujas
ocasiões e locais evoluíram, entrementes - permanece importante; ver M. Bozon
& F. Héran, "La devouverte du conjoint. Evolution et morphologic des scenes de
rencomre" , Population (novembro/dezembro de 1987), pp. 943-73, que no tam um
apogeu para o meio rural em 1969-75 (34,8%).
(13) A passagem do branle - em corrente, em círculo ... - para a contradan-
ça, no século xvm, e depois para a dança em par, no século XIX, é sublinhada sutil-
mente nos trabalhos de Jean-Michel Guilcher; ver, por exemplo, La contredanse
et les renouvellements de la danse française (Paris, Mouton, 1970). Sobre danças
modernas, ver: R. Hess, La valse, révolution du couple en Europe (Paris, Métaillié,
1989), eLe tango (Toulousc, Univcrsité de Toulouse-Le Mirai!, 1985). Sobre a críti-
ca moral da dança: P. Gerbod, " Un espace de sociabilité, le bal en France au xxe
sieclc" , Ethnologie Françaíse (t. 19, n ~ 4, 1989), pp. 362-70.
(14) Para uma apresentação geral dos efeitos modeladores da conscrição: M.
Bozon, Les conscrits (Paris, Berger-Levrault, 1981 ), e para um pomo de vista com-
parativo, T. Buhler, " Les conscrits", Folklore suisse (48? ano, n'? 3, 1958), pp. 33-42;
uma etnografia minuciosa da hierarquia atual de uma juventude (em subconscrito,
conscrito, militar, celibatário e rzoivo) é apresentada em C. 1-longrois, Paire sa ]eu-
rzesse en Vendée (Maulévirer, Héraul-Éditions, 1988, 224 pp.).
( 15) Sobre essas migrações temporárias, ler A. Poitrineau, Remues d 'bommes
(Paris, Aubicr, 1966).
SER JOVEM NA AlDEIA 79

(16) Essa refundação e essa representação constantes da "comunidade da al-


deia" por ela mesma são analisadas em D. Fabre, "Une culture paysanne", in .\.
Burguicrc &J. Revel (dirs.) Histoire de France, t. 4: Lesfomzes de la culture (Paris,
Le Seuil, 1993), em particular cap. 2, "Un horizon social, lc pagus".
(17) A análise clássica dos intercasamemos c da endogamia camponesa por mui-
to tempo deixou escapar o fato de que os cônjuges que se casam fora da aldeia são,
nos séculos xvm e X IX, mais aparentados a seu esposo que aqueles que se casam
em sua aldeia (ver, por exemplo, J. Vu Tien & A. Sevin, Choix du conjoint et patrí-
moine génétique, étude de quatre vil/ages du Pays de Sault oriental, Toulouse-
Paris, cd. do CNRS, 1978), o que confirma o papel do parentesco como rede de en-
contro. Sobre as conseqüências antropológicas desse fenômeno, ver F. Zonabend,
" Les três proche et lc pas uop Ioin. Rétlexion sur l'organisation du champ matri-
monial", Ethnologie Françaíse (t. 11 , n'? 4, 1981, pp. 311-8) eM. Segalen, Quinze
générations de bas-Bretons (Paris, PUF, 1985).
(18) Sobre essas lutas entre aldeias, battestas no Languedoc, ver as finas ob-
servações de Y. Castan, "Mentalité rurale et urbaine à la finde I'Anclen Régime dans
Ie ressort du Parlement de Toulouse", in Crime et criminalité en France, 17°-1 se
sibcles (Paris, Armand Colin, 1971). Cahiers des Annales 33, pp. 109-86, em parti-
cular, pp. 16 1-2 . Outros exemplos em L. Mazoyer, " La jeunesse villageoise du Bas-
Languedoc et des Cévenncs cn 1830", Cahiers d'Histoire et d'Archeologie ( 1948),
pp. 502-7, e C. Durand, "Sociétés de jeunesse et communautés rurales en Quercy
au XIXC siecle". in Cahors et Quercy, actes du xxxue Congres des Sociétés Savan-
tes, Languedoc-Pyrénées-Gascogne (Cahors, 1978), pp. 75·88.
(19) A palavra do século xv1, esrrangement (estranhamento), freqüentemente
citada por Lucien Febvre, é utilizada em uma acepção muito precisa -a represen-
taçiio em seu próprio território da estranheza que define o outro - em D. Fabre,
"Une culture paysanne", op. cit.
(20) De fato, é preciso admitir que a noite acarreta uma redefiniçiio dos papéis
e dos espaços; esse aspecto do tempo circadiano foi pouco estudado, a não ser do
pomo de vista de seu desaparecimento, no momento em que se realiza - tardia
e incompletamente na aldeia- a iluminação pública; ver, a esse respeito, W. Schi-
velbusch, La nuit désenchantée. A propos de l'histoire de I 'éclairage artifíciel (Pa-
ris, Le Promeneur, 1933).
(2 1) A censura das ações da juventude é efeito secundário do rigorismo das
Reformas e torna-se, nos séculos xvm e x1x, um caso de politica comuna!; sobre
esse tema, ver O. Fabre, "La fête éclatée", L 'A re 65 (1976), pp. 62-75.
(22) Essa tensão torna-se já muitO viva em meio urbano no século xvm e eli-
mina, portanto, os charivaris; ver D. Fabre, " Familles: le privé contre le coutume",
in P. Ariês & R. Chartier (dirs.) Jlistoire de la vie privée, t. 3, De la Renaissance
aux Lumieres (Paris, Le Seuil), pp. 543-79.
(23) Sobre esse pomo, ver Le charitJari, op. cit., em particular as contribui-
ções de D. Fabre e B. Traimond, N. Castan, E. P. Thompson, L Farr, E. Hinrichs.
(24) Esse tema é esboçado em D. Fabre, "Passeuse aux gués du dcstin", Criti-
que 402 (novembro de 1980), pp. 1075-99, em particular, pp. 1088-9 1; aspectos
particulares desse tema são desenvolvidos em "Le garçon enceint. La facétie ", Ca-
biers de Lillérature Ora/e 20 (1986), pp. 15-38; "L'ours, la vierge et le taureau. Textes
mythiques", Ethnologie Française (t. 23, 1993, n'? 1), pp. 9-19.
80 HISTÓRIA DOS }Q\1/f.NS

(25) Noel du Fail foi o primeiro a descrever, com relação à época moderna,
a farsa elos rapazes disfarçados de fantasmas , Contes et cliscours d'eutrapel (cd.].
Assézat, Paris, 1874, t. 2), pp. 9 e ss.; sobre esse tema, ver D. Fabre, "Juvéniles reve-
nants. Le retour des mons" , Études Rurales, 195-6 (1987), pp. 147-64.
(26) Essa simulação da morte é ritualizada em "o enterro da vida de rapaz",
ritO que Arnold van Gcnnep considerava, antes de tudo, de origem burguesa e rela-
tivamente recente- início do século XIX; ver Manuel defolklorefrançais contem-
porain (Paris, Picarei, 1943), t . 1, vol. 1, p. 318 De fatO , o ritO é muito vivo, por
exemplo, na Vendéia (C. Hongrois, 1988, op. cit.) e sua ligação com a embriaguez
ritual dos jovens é ilustrada por sistemas cerimoniais muito diversos: C. Hongrois,
"Oes caves et eles hommes en Vendée", Terrain 13 (outubro de 1989), pp. 29-41;
C. Amiel, "Traverses d'un pélerinage. Les jeunes, le vin et les mons", id., ibidem,
pp. 15-28.
(2 7) Sobre essa tensão, ver os artigos de Henri Forestier, entre os quais "Le
'droit eles garçons' dans la communauté villageoise aux xvue et xvllle siedes" , An-
nales de Bourgogne (t. 13, 1941), pp. ·100-14, que utiliza os dados dispersos na obra
de Restif de la BretOnne. Mu.tatis mutandis, a emergência do jovem ddi nqüente
rural poderia beneficiar-se da análise dc].-C. Chamboredon, " La délinquance juvé-
nile. Essais de construction d'objet", Revue Française de Sociologie (t. 12, 1971),
pp. 335-77.
(28) Os historiadores, na linha das novas curiosidades da demografia históri-
ca, ficaram fascinados pelo tema das relações pré-nupciais em sistema de casamen-
to tardio c das práticas eróticas estudadas, quanto ao Norte da Europa, em um clás-
sico da etnologia: K . Rob. V. Wikman, Die Einleitu.ng der Ebe (Acta Academiae
Aboensis, Abo, 193 7); ver, por exemplo, J.-L. Flandrin, Les amours paysannes (Pa-
ris, Gallimard-Juliard, 1975). Y. Ve rdier, op. cit. , estudou a preparação cortês das
moças; ve r também N. Belmont, "Ritucls ele courtoisie dans la société française tra-
ditionellc" , Ethnologie Française (t. 8, n':' 4, 1978), pp. 279-86. Um estudo de con-
junto dessas trocas galantes juvenis é proposto por M. Sarmcla, Reciprocity systerns
of tbe rural society in tbe Finnish-Karelian cultu.re area (witb specíal r-eJerences
to social intercourse of the youth) (Helsinque, Suomalainen Tiedeakatemia, 1969).
A monografia antropológica de C. Macherel, " La traversée du champ matrimonial:
un exemple alpin", Études Ru1·tlles 73 (janeiro-março de 1979), pp. 9 -40, é impor-
tante. Para uma análise precisa da convergência das linguagens de um e outro sexo,
ver. D. Fabre, "La voie des oiseaux, sur quelques récits d'apprentissage", L 'Hom-
me 99 (1986), pp. 7-40.
(29) Sobre uma forma dessas loucuras masculinas que implicam um malogro
dos aprendizados juvenis da virilidade: O. f abre, " La folic de Pierre Riviere", Le
Débat (setembro de 1991), pp. '107-22.
(30) A. van Gennep foi o primeiro a insistir na importância dos ritOS de sepa-
ração, op. cit., L 1, vol. 2, pp. 437-50; uma monografia muito aprofundada é pro-
posta por P. Fonier-Beaulieu, Mariages et noces campagnardes dans les pays ayant
formé /e département de la Lo ire (Paris, Maisonneuve, 1945), pp. 23 7-44, em parti-
cular. A possibilidade de comprender certos aspectOS enigmáticos do rito de boda,
como "olhares para trás", rumo à formação da identidade sexual, é ilustrada por
D. Fabre, L 'âge libertin (Paris, Le Seui!), a ser publicado.
SER JOVEM NA ALDEIA 81

(31) Sobre a farãndola, ver a tese de F. Lancelot, La f arando/e en Pro vence


et Languedoc (Paris, EPHE, s. 6, 1973), c a o bservação de uma farândola improvisa-
da em um quadro festivo muito próximo daquele que constitui o ponto de partida
deste capítulo em ''La danse à la fê te v o tive du Caylar (Hérault)", Arts et traditions
populaires (janeiro-março de 1968), pp. 63-6 .
(32) Foi intencionalmente que nossa escolha incidiu em uma festa sem relevo
aparente. Poder-se-á comparar com cerimônias mais espetaculares, a partir de raras
descrições etnográficas: F. Pomcrol, " La fête patronale de Gerzat (Auvergne)", Re-
vue des Traditions Populaires, t. 15 (1900), pp. 41 5-8;]. Guilaine, "Les fêtes Joca-
les dans la région de Saint-Hilaire (Aude)", Folklore 82 (19 58), pp. 3-7;]. Guigou,
"Les jeunes ruraux dans I e Languedoc méditerranéen", Études Rurales 19 (outubro-
dezembro de 1965), pp. 3.2-66. Uma perspectiva histórica é proposta por A. Poitri-
ncau, " La fê te traditionelle", in Les fêtes de la Réuolution (colóquio de Clermom-
Ferrand, Paris, 1977), pp. 11-26, e por M. Vo>elle, Les métamorphoses de la fête
erz Provence (Paris, Flammarion, 19 76). A festa local como " armadilha histórica"
e espelho idealizante da cole tividade é descrita, quanto ao período atual, por P. Cham-
pagne, "La fête au village", Actes de la Red;erche erz Sciences Soeiales 17-8 (1 977),
pp. 73-84.
(33) Essa fotografia é o ponto de partida do romance de R. Powers, Threejar-
mers on their way to a dance (Nova York, 1985), trad. em ital., Tre contadini que
uanno a bailare (Turim, 1991).
Tradução do francês por· Maria Lúcia M achado
A JUVENTUDE OPERÁRIA .
DA OFICINA À FÁBRICA
Michelle Perrot

Juventude: " uma palavra", segundo Pierre Bourdieu. Operária:


o adjetivo só faz complicar as coisas. A "jU\·emude operária" é no
século XIX uma realidade difícil de apreender, a pomo de se pergun-
tar às vezes se ela existe, se a própria noção rem um semido. No
entanto, adolescência e juventude são conceiros que se precisam
então, a primeira sob o ângulo biológico e moral que ]ean-Jacques
Rousseau havia perfeitamente delimitado ao consagrar o livro IV do
Emílio a essa crise da identidade sexual na puberdade, a "esse mo-
mento crítico" que se deve saber prolongar para melhor domin~!­
lo. "Nascemos, por assim dizer, duas vezes: uma para existir e a ou-
tra para viver; uma para a espécie e a outra para o sexo [... ]. Assim
como o bramido elo mar precede de longe a tempestade, essa tem-
pestuosa evolução se anuncia pelo murmúrio elas. paixões nascen-
tes: uma surda fermentação adverte a aproximação elo perigo." 1 As-
sociada às universidades, aos estudantes, às lutas democráticas ou
nacionais, a juventude adquiria um sentido mais intelectual e políti-
co, o que foi bem evidenciado, em relação à França, pelos traba-
lhos ele ]ean-Claucle Caron. Ora, esses dois fundamentos - o sexo
e o estudo - estão ausentes quando se trata elos operários. Claro
que o sexo não lhes falta. Porém, fantasmado como uma forma da
selvageria operária, escapa àquela "vontade de saber" que o "sexo
elo colegial" - transformado durante o século xvm num "proble-
ma público", segundo Michel Foucault2 - cristaliza.
Quanto aos liceus e universidades, esses bastiões da juventude
burguesa, os operários não têm acesso a eles, relegados ainda ao es-
tágio precedente: o elo acesso ao ensino primário, à escola. Este se
84 llfSTÓRIA T>OS JOVliNS

realizará no século XIX, delineando mais claramente os contornos


de uma infância operária que também se manifesta com nitidez, não
sem dificuldades e batalhas que mobilizam higienistas e pedagogos
e obsicliam os filantropos .3 "Salvem pelo menos as crianças", ex-
clama Momalembert. Elas possuem a chave do futuro, da raça, ela
indústria, da nação. O Ou.vrier de hu.it ans [Operário de oito anos],
de ]ules Simon, causa escândalo. 4 Não o adolescente de catorze
·anos, para quem o trabalho é o horizonte normal. Os jovens operá-
rios não se beneficiam, como os jovens burgueses, desse tempo ele
latência e de formação que possibilita uma sociabilidade adequada
e eventualmente uma expressão autônoma. O precoce encaminha-
mento ao trabalho absorve suas energias sem lhes dar os direitos
elos aclulros. Sua situação de aprendizes não é um estatuto, a des-
peitO dos esforços persistentes dos ofícios e do compagnonnage*
para preservá-lo. A " crise ela aprendizagem" designa a desorganiza-
ção de uma classe de idade que a sociedade tradicional administra-
va, aparentemente, melhor que a sociedade industrial. Esta só está
interessada em indivíduos, ou pelo menos em famílias. A família é,
mais que nunca, a instância de .gestão e de decisão no que concerne
aos jovens. Ora, ela tem sua lógica própria que não é necessaria-
mente a elos membros que a compõem; uma lógica mais holista que
individualista, que privilegia o todo sobre as partes e se aplica espe-
cialmente às mulheres e aos jovens, lógica que a classe opedria, em
via ele constituição, irá retomar. Sua identidade não se funda nem
sobre o gênero, nem sobre a categoria de idade; ao contrário, ela
p retende subsumi-los. A família - e a classe - operária tem neces-
sidade ele seus jovens, mas lhes pede trabalho, obediência e, em úl-
tima instância, silêncio. Eles se exprimem pouco, e, 'q uando o fa-
zem, sua voz é reprimida.

REPRESENTAÇÕES

Daí decorre, para o historiador, uma dificuldade relativa às fon-


tes. A expressão direta ou mediada da juventude operária é abafada
pelos discursos convencionais e estereotipados aos quais as pesqui-
sas não escapam, nem mesmo o testemunho dos autobiógrafos ope-
rários que devem ser vistos com reserva como todo relatO ele infân-

(•) Antigas confrarias de operários. (N. T.)


A ] Uilf:NTUDE OPERÁRIA . DA OFICINA À FÁBRICA 85

cia. Essa juventude é antes representada que descrita, e tais repre-


sentações trazem a marca ela ansiedade social, sexual e política que
ela suscita. O século XIX tem medo de sua juventude, e particular-
mente ele sua juventude operária, ela qual se teme a vagabundagem,
a libertinagem e o espírito contestador. Três figuras simbólicas: o
aprendiz, o apache, a pequena operária de costura.
Equivalente elo colegial burguês, o aprendiz é um adolescente
rebelde, que abandona seu patrão para percorrer as ruas da grande
cidade, misturar-se a seus rumores e a suas cóleras, aproveitar-se de
seus recursos, às margens da legalidade, praticando o furto ou a vi-
garice, sempre pronto para os tumultos, as manifestações, as desor-
dens e as barricadas. "O aprendiz se torna vadio em Paris, se rorna
o delinqüente ele nossas grandes cidades. Põe-se a beber, a fumar,
a blasfemar" , escreve Ducpétiaux.5 Esse Gavroche um pouco mais
crescido é o fermento elos motins e das desordens. A Gazette des
Tríbunaux, "coletânea poética da miséria e do crime" (Eugene Bu-
ret, 1840),6 muito contribuiu, com suas crônicas ele fatos delituosos,
para a transformação elo jovem vagabundo em herói, última cria-
ção elo romantismo. Eis aqui Béasse, treze anos, diante de seus juí-
zes: "O juiz: 'Deve-se dormir em casa' . Béasse: 'E eu tenho casa?' .
'Você vive numa vagabundagem perpétua.' 'Trabalho para ganhar
meu sustento.' 'Qual é sua ocupação?' 'Minha ocupação? Tive pelo
menos umas 36. Depois parei ele trabalhar. Há algum tempo vivo
de bicos. Tenho minhas ocupações de noite e de dia. De dia, por
exemplo, distribuo folhetos grátis a todos os passantes; corro atrás
elas diligências que chegam para carregar os pacotes; passeio pela
avenida de Neuilly; à noite, tenho os espetáculos; vou abrir as por-
tas das carruagens, vendo ingressos; estou bastante ocupado.' 'Seria
melhor que estivesse numa boa casa e seguisse sua aprendizagem. '
'Uma boa casa? Uma aprendi zagem? É muito chato . Além disso, o
patrão está sempre a resmungar e não há liberdade. ' 'Seu pai não
reclama?' 'Não tenho pai.' 'E sua mãe?' 'Nem mãe, nem parentes,
nem amigos, sou livre e independente' " . Ao ouvir sua condenação
a dois anos ele reformatório, Béasse "faz uma cara feia e em seguida
retoma o bom humor: 'Dois anos são só 24 meses. Tudo bem' ".7
Esse texto se inscreve numa longa série em que imagens literárias
e dados ele inquéritos se misturam ele maneira inextricável. Comen-
tado muitas vezes na época, ele fo i retomado por Michel Foucault
que, nas últimas páginas de Surveiller et punír [Vigiar e punir] , faz
ele Béasse um elos símbolos dos ''ilegalismos populares", frust rao-
86 HISTÓRIA DOS jOVF.NS

elo as disciplinas em via ele instauração. Béasse, arquétipo do rapa-


zotc nas fronteiras da infância, recusa as servidões da família e do
trabalho. Contra-exemplo: Jesus carpinteiro, o " bom aprendiz" das
Sociedades de Patronato, inverte todos esses traços . Ele ama seus
pais, inclusive o pai adotivo, sua oficina, seu o fício, o mais belo de
todos: o da madeira onde já talha sua cruz.
Béasse é um adolescente, e um solitário. O apache é, no início
do século xx, um jovem de dezoito a vinte anos, que vive em gru-
po e na cidade. Esse jovem operário das periferias urbanas, sobre-
tudo parisienses, tem um bairro que dá o nome a seu bando, e uma
família que ele contesta. Ele rejeita o trabalho assalariado e a condi-
ção proletária cios pais, os maltrapilhos e os sem-vintém. A fábrica
e a pobreza são seu terror. Tem desejos ele consumo insatisfeitos.
Gosta de deambular, de flanar pelos bulevares - pois esse excluí-
elo elas periferias reivindica o centro da cidade-, bem vestido, com
lenço de seda e boné alto, e sobretudo bem calçado. Uma elegância
desenvolta que o faz com freqüência ser tachado ele efeminado pe-
los trabalhadores dos subúrbios. Ei-lo pronto a subir num automó-
vel: um "calhambeque", ambição suprema. O apache sonha com
passeios, amigos e amor. Gosta ele dança e de mulheres . Nos ban-
dos apaches, as mulheres têm um estatuto ambíguo, ao mesmo tempo
livres - elas mudam facilmente de homem se este não as satisfaz
mais - e dominadas. Eles brigam por elas, elas se vendem por eles,
em parte proxenetas. O dinheiro conta, mas não só o dinheiro. Na
formação elos casais, a atração é muito importante. O apache é um
sentimental, um dâncli combativo que tem o senso da honra e o gosto
da distinção. Ele não se resigna. Quer ser alguém, ver seu nome nos
jornais. Espontaneamente anárquico, considera o roubo uma justa
restituição e pratica o "ressarcimento individual" com os burgue-
ses, os "otários" que lhe caem nas mãos. A passagem pela prisão
de Fresnes, a grande casa de detenção da região parisiense inaugura-
da em 1898, é quase um rito ele iniciação. Os criminologistas exami-
nam os grafites nas paredes, que os apaches enfeitam com corações ·
trespassados com o nome de suas amantes e vingadores "Morte à
polícia" .
Mais ainda que o aprendiz vadio, o apache nasce da crônica po-
licial e da imprensa que o põe em cena. Seu registro ele nascimento
em 1902 é o processo de Manda contra Lecca, em luta sangrenta
por uma jovem, Casque d 'Or. "Mas são procedimentos de apaches",
teria exclamado um obscuro escrivão durante o interrogatório de
um jovem perigoso. Em rodo caso, os jovens se reconheceram ne:;-
sa imagem indígena difundida pelos livros infantis, c bandos de apa-
ches floresceram em roda parte. A imprensa se apodero u de suas
façanhas. Reunindo na primeira página, sob o título "Paris-Apache"',
os delitos mais diversos atribuídos aos jovens, jornais como Le]our-
nat e sobretudo Le Matin, diários parisienses com tiragem de mais
de 1 milhão de exemplares cada um, construíram o mito apache c
condensaram no imaginário social uma figura emblemática do me-
do coletivo, elaborada numa psicologia da segurança ainda em seus
começos. A pretensa recrudescência da delinqüência juvenil é um
tema central na crítica que focaliza a " crise da repressão", atribuída
a uma opinião laxista e a juízes demasiado indulgentes. Os apacbes
servem de argumento a rodos os que, no grande debate de 1908
na Câmara de Deputados, recusam a abolição da pena de morre, pro-
posta pelos radicais e pelos socialistas. Vistos como sinônimos de
bandidos, eles só entendem a força física e os castigos corporais que
humilham e corrigem. O dr. Lejeune coloca a questão Os apaches
devem. ser cbicoteados? ( 191 O) e responde pela afirmativa. O fato
de os jovens terem se identificado com essa figura é outra questão
que assinala o início de uma consciência de grupo . Voltaremos a
falar disso. Mas importa sublinhar o papel dos meios de comunica-
ção - no caso a imprensa, que vive sua idade de o uro - na cons-
trução desse fato de opinião.s
Quanto às jovens operárias, elas são, e ntre delicadeza e liberti-
nagem, antes ele tudo um corpo. A pequena operária de costura
atiça os devaneios sensuais dos estudantes e dos barbados. O ro-
mantismo idealiza a grisette, * companheira ideal, discreta e submissa,
do estudante a quem se dedica, em troca de uma vida amorosa mais
delicada que ela não encontrará noutra pane. Pelo menos é o que
diz a lenda dourada do Quartier Latin que provavelmente superes-
tima as atenções do estudante.9 Um monumento à grisette, erguido
durante a Terceira República ao lado da praça Montho lon, perpe-
tuará por algum tempo essa visão nostálgica. O materialismo vulgar
do Segundo Império fala apenas das lorettes, meio prostitutas. As
oficinas de confecção e seus intermináveis serões, como todo lugar
ape nas de mulheres, excitam as imaginações: que fa:.::em elas, que
dizem , essas mulheres que têm o útero aquecido pelas máquinas ele
costura (segundo os médicos)? Por volta do fim do século, é forne-

( ' ) Costurcirinha galante. (N. T .)


88 IIISTÓR IA DOS }OI'ENS

cicia a essas operárias uma dose de droga que lhes permita " manter-
se": as "morfinadas" conhecem os paraísos artificiais. 1o Floristas c
plumisras sugerem a carícia dos frufrus; bordadeiras e rendeiras, a
doçura das roupas íntimas. Ao contato da água e do linho, lavadei-
ras e passadeiras, rema favorito dos pintores impressionistas, acen-
dem o desejo. Nas ruas, seguem-se as modistas e as cosrureirinhas,
alegres e elegantes "mocinhas". Que ocasião de conquista essa li-
vre circulação de moças elo povo tão atraentes numa sociedade em-
polada! E que fortuna para o poeta - aqui, Rainer Maria Rilke -
. o encontro com a moça pobre e pura, Marta, em busca do inefável,
querendo ir dançar em Paris, "sempre, como ela dizia, com o pres-
sentimento ele que seria para algo mais que o baile". l l Erotizacla ou
sublimada, a imagem da jovem operária, atravessada por rodos os
fantasmas, exacerbados, que envolvem o corpo das mulheres, frag-
menta-se em mil pedaços, inapreensível. Mas ela permanece amar-
rada ao sexo, enquanto a imagem de seu companheiro, o jovem ope-
rário, evolui para uma delinqüência mais ostensiva, que requer uma
intervenção mais forte . Doravante, é a juventude que precisa ser
salva.

FONTES

Essas representações subjazem às fontes que nos fornece m e


das quais dispomos. Enquanto se desenvolve o romance ele apren-
dizagem burguês, e particularmente o da educação sentimental, a
literatura, repleta de crianças pobres, 12 pouco se detém nos jovens
operários. Os ele Zola têm o sangue quente; fazem o amor e a greve
como jovens animais vigorosos, como o fazem a Mouquette e ]ean-
lin em Germina! (1885). As pesquisas se tOrnam mais detalhadas,
em razão ela inquietude suscitada pelas alarmantes constatações elo
alistamento militar. Desde a Restauração, as estatísticas estabeleci-
das pelas juntas médicas evidenciam elevados índices de dispensa
por pequeno porte, deformações ósseas, raquitismo, escrófula (na
verdade, tuberculose), doenças de olhos etc. De maneira geral, elas
sublinham o mau estado físico dos jovens de vinte anos. Os higie-
nistas, como Villermé e Ducpétiaux, ou os antiindustrialistas, como
Villeneuve-Bargcmont, apontando as manchas escuras que as áreas
industriais formam nessa primeira cartografia antropológica, remam
estabelecer uma concordância entre trabalho fabril e degradação dos
A jlii'E.\'TUDE OPERÁRIA. DA OFICINA À FÃnRICA 8_9

corpos. Os trabalhos de Jean-Paul Aron e Emmanucl Lc Roy Ladu-


rie atenuaram bastante esse quadro, sem todavia invalidá-lo com-
pletamente.13 Coleman e sobretudo Colin Heywood fizeram a es-
se respeito considerações precisas e bem funclamemaclas. 14 Não lhes
parece possível concluir uma correlação nítida entre indústria c de-
ficiência física ou mortalidade, mas sim constatar um mau estado
de saúde global. O corpo e a alma dos jovens operários tornam-se
então objetos ele investigação privilegiados. São o alvo elos primei-
ros inquéritos parlamentares ingleses, os Blue Papers, principal fonte
para Marx e o livro 1 do Capital, e para os franceses: a grande pes-
quisa de Louis-René Villermé, publicada em 1840, 1' repousa sobre
a vontade de mostrar a necessidade de cuidar da infância opedria
para preservar a raça. A obra de Edouard Ducpétiaux, eminente fi-
lantropo e homem ele Estado belga, De la condítion physique et mo-
rale des jeunes ouvriers et des moyens de I 'améliorer [Da condição
física e moral dos jovens operários e dos meios de melhorá-la]
(1845), I6 traça as coordenadas sobre a questão . Mina ele informa-
ções e fo m e bibliográfica considerável, ela indica a intensidade do
esforço de pesquisa no terreno da juventude, proporcional à angústia
que esta engendra; mas mostra também a pcrplcxiclaclc elos pesqui-
sadores, conscientes de não poderem realmente circunscrever seu
objeto. "Com freqüência seremos obrigados a confundir em nos-
sas informações o jovem operário e o operário adulto: a confusão
dos sexos e das idades nas oficinas deve ocasionar uma confusão
correspondente nas p r<íticas e nos costumes " (r, p. 199). Na verda-
de, é sobretudo a proteção ela infância operária que preocupa os
pesquisadores, e a fixação de um limite à sua exploração no traba-
lho, mais a montante que a jusame. As hesitações sobre a fronteira ,
ou sua ausência, ilustram bem a dificuldade ele resumir em um con-
ceitO essa iclaclc ela viela: a juventude, operária ainda por cima.
Quanto às autobiografias operárias, elas comportam na França
algumas dezenas ele títulos, havendo bem mais na Inglaterra ou na
Alemanha. 17 O relato de aprendizagem ocupa um lugar importan-
te nessas obras, diferente conforme as culturas religiosas e as tradi-
ções morais e políticas. A atenção dada à religião, ou ao privado,
é sempre considerável na Inglaterra, como também na Alemanha,
onde a tonalidade elo relato ele infância é com freqüência uma dra-
mática evocação ela m iséria . O relato francês é mais político, cen-
trado no íntimo, mais ainda no sexual, e acima de tudo otimista.
Assim, e m Norbert Truquin, a rememoração da infância vagabunda
90 HISTÓRIA l>OS JOVENS

e maltratada é acompanhada da lembrança feliz da liberdade. 18 Mui-


to forteme nte marcados pela tradição da cidadania e pela do movi-
mento operário, esses relatos franceses são, na maioria das vezes,
depoimentos voluntaristas e seletivos que se pretendem exempla-
res e portadores de sentido, o que explica sua relativa serenidade.
Mais do que a vida cotidiana, eles se preocupam em descrever um
processo de integração: ao trabalho, à vida política, ao movimento
operário. Das Memoires d'un compagnon (Memórias de um com-
pagnon] de Agricol Percliguier (1855) a Fils du peuple [Filho dopo-
vo] ele Maurice Thorez, o coletivo prevalece sobre o individual, a
preocupação com os outros sobre a preocupação consigo. A infân-
cia é mais desenvolvida que a juventude, por ser matéria de pintura
familiar. A juventude é vista sobretudo como iniciação ao trabalho
e tomada de consciência. A sociabilidade juvenil, mais ainda que
a sexualidade, é silenciada. O pudor é extremo e o corpo ausente.
Enfim, os relatOs femin inos são muito raros, e tardios. Eles se de-
têm sobretudo nos acidentes do privado ou na expressão de sonhos
pessoais, como faz.Jeanne Bouvier. Estamos longe ainda elo maravi-
lhoso " romance" autobiográfico de Lise Vanclerwielen, Lise du Plat
Pays (1983), que concede finalmente ao eu o direito de plena ex-
pressão (mas na terceira pessoa!). No conjunto, os relatos masculi-
nos obedecem às convicções ela idade adulta em que foram escri-
tos: a juventude eleve ser um tempo ele aprendizagem , e seu êxitO
consiste em realizar essa aprendizagem.
Isso significa que eles falam muito mais ele disciplina que ele
revolta, ou então ele revolta coletiva. Exceção: as autobiografias anar-
quistas, raras e escritas em épocas mais recentes, que valorizam a
juventude como idade ele resistência e de recusa, à maneira ele Rim-
baud ou de Kropotkin . René Michaucl, ]'avais vingt ans [Eu tinha
vinte anos] (1967) fornece um bom exemplo disso . Adolescente ela
Cité Jeanne d ' Are, refúgio elos migrantes em Paris (xm arrondisse-
ment) no início elo século, ele se inicia na fabricação de calçados
em numerosas "casas": "Não era ainda a época ela segurança, elo
cnraizamento", escreve. "Para muitos jovens de minha época, a no-
ção de antigüidade causava horror. Os antigos, para nós, erarri a ma-
tilha dos medíocres, dos pusilânimes: os sabujos elo patrão." 19 Mi-
chaud é representativo da cuhura libenária da Bel/e Époque cujos
intérpretes são Georges Nave! (Travaux [Trabalhos], 1945) ou, mais
indiretamente, Céline (Voyage au bout de la nuit [Viagem ao fim
ela noite], 1932). O próprio título ele Michaud é significativo: a ida-
A } U\1ENTUDE OPERÁRIA. DA OFICINA À FÁBRICA 91

de tremula como uma bandeira. Ter vinte anos certamente não é


a mais bela idade da vida, mas é um momento insubstituível, a ser
vivido intensamente. Aqui se exprime uma consciência da juventu-
de que preludia ou acompanha sua conquista de autOnomia . Mas
o relato ele Michaucl é sem dúvida tanto um testemunho sobre o mo-
mento de sua escrita quanto sobre a própria Belle Époque.
Assim, as representações estruturam o real da mesma forma que
o exprimem, e seria inútil opor este àquelas, igualmente reais. Elas
dizem algo de "verdadeiro" sobre a juventude, ao amplificar e de-
formar. Esse problema constante do hisroriador, tributário das pala-
vras do passado, é exacerbado quando se trata de categorias margi-
nais ou marginalizadas, imaginadas, geralmen te com temor e tremor,
mais do que apreendidas: os pobres, as mulheres, os jovens.
Tomadas essas p recauções, que não são pura formalidade, ten-
temos ir mais longe.

FRON TEIRAS DA JUVEN TUDE OPERÁRIA

A fluidez da ju ventude operária, a ausência de fronteiras bem


definidas , a montante com a infância, a jusante com a idade adulta,
é uma dificuldade de primeira ordem. Nos limites dos costumes, de-
fin ições jurídicas mais precisas, mas por definição mutáveis, se su-
perpõcm. Elas esboçam no entanto um território cada vez mais dis-
tinto da infância.
A montante, a primeira comunhão permanece, a despeitO ele
uma descristianização variável conforme as regiões e os meios, e
ele uma indiferenÇa opedria também a ser matizada, um rito de pas-
sagem quase geral, cuja persistência mesmo em zonas pouco pratican-
tes foi sublinhada por Pierre Pierrarcl:20 questão de conveniência
e de respeitabilidade, à qual as mães são particularmente atentas.21
Doze anos é a idade mais comum para os rapazes, e onze para as
meninas . A primeira comunhão marca em geral o adeus à Igreja, pe-
lo menos para os rapazes. "Ames se ia às vésperas com as mulheres;
depois se vai ao cabaré com os homens. " 22 Segundo um cura de
Pas-de-Calais, " para muitos garotos, a primeira comunhão é a carta
de emancipação, o começo da vida de jovem".23 O corte é muitO
menos nítido para as meninas, para as quais, na segunda metade do
século xrx, o vestido branco de comungante prefigura o da noiva.
9! HISTÕRI.~ DOS }OVE,\'S

Lise Vanderwiclen recorda sua emoção ao ver-se " roda de branco


no espelho". 24
A primeira comunhão coincide cada vez mais com o início da
aprendizagem; por isso muitos pais procuram antecipá-la. Na pri-
meira metade do século passado, muitas crianças já trabalhavam nesse
momento. Mas na segunda, com o avanço da escolarização, "coloca-
se" o filh o após a primeira comunhão. As roupas da primeira co-
munhão- investimento cuja duração é limitada pelo crescimento
dos adolescentes - servem para fazer boa figura por ocasião da apre-
sentação ao mestre de oficina ou no escritório de contratação ao
qual a mãe, geralmente, acompanha o filh o ou a filha. Um dia após
sua comunhão, que preparou durante um ano num pensionato de
religiosas, ]eanne Bouvier, aos onze anos, passa a trabalhar numa
fiação de seda do Lyonnais. Nas Cevenas, as meninas substituem au-
tOmaticamente sua mãe após essa cerim0 nia. 25
No fim do século, o certificado de estudos se acrescenta à pri-
meira comunhão ou a substitui, em virtude das disposições legais
que, em 1882 , o tornam obrigatório. 2 6 As falcatruas passam a ser
cada vez mais difíceis, sobretudo após as leis de 1874 c 1892 e os
controles dos inspetores do trabalho, doravanre uma verdadeira "cor-
poração".2i Em 1876, 26% dos adolescentes de doze a quinze anos
têm o certificado, 72% em 1888 e 80% em 1891, sem levar em coma
obviamente seu nível real de instrução . A lei de 1892, aliás, fixa em
treze anos a idade de admissão ao trabalho para unificar prescrições
escolares e o rdem fa bril. O certif torna-se assim para os jovens ope-
rários o que é o baccalauréat* para os burgueses: "a barreira c o
nível" .28 A infância acaba aos treze anos. As leis Ferry terminam as-
sim de retirar a infância do espaço industrial, ao menos da grande
indústria, a única que a inspeção controla verdadeiramente. Em 1876,
constata-se que os menores de doze anos são 6,5%, e em 1888, ape-
nas 1, 1%. 29
O jovem operário entra então ele vez na idade adulta? Segura-
mente nã.o. Ele requer proteção c controle. Proteção: segundo a lei
de 1841, até os dezesseis anos é proibido fazê-lo trabalhar aos do-
mingos e mais de doze horas por dia. A lei de 1892 estabelece a in-
terdição do trabalho noturno e ele descida ao fundo das minas até
dezoito anos, e limita a jornada dos menores de dezesseis anos a
dez horas. Após dezoito anos, o regime é o dos adultos. Assim ins-

(') Conclusão c.lo 2~ grau. (~. T.)


A}L I'I'ST /"DE OPER..i.RI.~ D.~ Of!CISA À FÁRR/ C;I 93

taur.a-se uma categoria de jovens trabalhadores - doze a dezesseis,


o u treze a dezoito anos - que corresponde à adolescência, cuja per-
cepção biológica se aguça. Com efeito, essas medidas são tomadas
em nome de um "crescimento incompleto", ou de uma menor re-
sistência à fad iga.
Quanto ao controle, ele varia conforme os costumes c as leis.
A Grã-Bretanha emancipa mais cedo seus jovens operários, a acre-
ditar em Ducpétiaux. Aos cato rze anos, as famílias cessam de tratá-
los como crianças, " não lhes são mais infligidos castigos corporais";
podem ficar co m uma parte de seu salário . " Freqüentemente, eles
mesmos pagam seu alojamento, sua alimentação, seu vestuário . Es-
tabelecem compromissos por sua própria conta, sem intermediário,
e tornam -se, em toda a extensão da palavra, agentes livres."30 a
França, país autoritário, o limite é mais tardio, a famíl ia e o Estado
demonstrando uma idêntica desconfiança. Em princípio , segundo
uma pesquisa de 1840, um jovem operário pode " firmar con trato "
aos quinze anos, "com o consentimento daqueles de quem depen-
de". 3 1 Na verdade, os pais são reticentes, opondo-se especialmen-
te à partida dos jovens, convidados, e até mesmo intimados a entre-
gar seus ganhos. A história da caderneta de trabalho dos jovens ilustra
essa resistência.
A lei de 184 1 estipula que, até os dezesseis anos, a caderneta
seja entregue ao pai, a seguir ao adolescente, início ele uma relativa
independência econômica. Isso é deplorado pelo autor de uma mo-
nografia, Ouvriers des deux m ondes (Operários dos dois mundos]
(Escola de Le Play), relativa aos tecelões ele Sainte-Marie-aux-Mines
(Vosges): "Geralmente, o rapaz de dezesseis anos, ele posse de sua
caderneta pessoal, trata seus pais de igual para igual, e só se senta
à sua mesa mediante uma pensão cujo valor ele reduz o máximo
que pode a fim de conservar mais dinheiro para seus prazeres"; e
ele preconiza a entrega da caderneta aos pais até o filho completar
dezoito anos: " Teríamos, em Paris, nas grandes cidades, nas manu-
faturas, menos jovens desertores da vida rural" .3 2 Seus desejos se-
rão acolhidos favoravelmente pela República, mui to respeitosa das·
prerrogativas dos pais de família. Suprim ida para os adul tos em 1890,
essa caderneta entregue aos pais é mantida para os menores, e in-
clusive reforçada, uma vez q ue é obrigatória até os dezoito anos.
De maneira geral, a Terceira República tendia a elevar em rodos os
domínios a idade da maioridade. Em 1906, ela é fixada aos dezoitos
anos em matéria penal, o que teve por efeito manter nas casas do
94 IIISTÓFIIA OOS j OVeNS

Bom Pastor jovens p rostitutas que desejavam sair dali; isso ocasio-
nou incidentes e revoltas.
Ora, as fam ílias utilizavam a caderneta como meio de pressão,
como conta Jean-Baptiste Dumay. Aprendiz na fábrica deLe Creu-
sot, em conflito com sua direção, ele teve dificuldade de obter dos
pais a autorização de partir. "Como eu não era maior, havia neces-
sidade, segundo as leis em vigor na época , elo consentimento dos
meus pais para que a Prefeitura pusesse o visro na minha caderneta
ele operário, que era uma espécie de passaporte interno e sem o qual
um operário não podia viajar. [.. .] Eles hesitaram por alguns dias,
mas acabaram se decidindo após altercações que tive com eles por
conta de um caso amoroso que veio se juntar à minha desavença
com a administração da Creusot. "33 Isso se deu em 1860, ele tinha
dezoito anos.
Começa então para ele um período de relativa liberdade, em
rodo caso de grande mobilidade, tal como lemos em outras biogra-
fias, masculinas pelo menos. Para as mulheres, pode suceder o in-
verso; tudo depende da presença e da vigilância da família e de seu
código moral. Seja como for, dois tempos se delineiam. O prinieiro
- ele doze/treze a dezesseis/dezoito anos - corresponde à adoles-
cência; o segundo, à "juventude" no sentido estrito. O primeiro é
restrito e controlado; o segundo, mais aberto , quando não mais fe-
liz: tempo ele todos os perigos, segundo os moralistas, que nada te-
mem tanto quanto a circulação dos jovens do povo.

Quanto ao final ela juventude, ele é ainda mais fluido; essen-


cialmente privado, depende para cada um de sua idade de casamento,
pomo sem retorno. Os rituais de amanho sobrevivem, como o in-
gresso do aspirante no quadro elo compagnonnage que Agricol Per-
cliguier, seu defensor, queria restaurar. O próprio Agricol viveu essa
situação como uma iniciação sacramental, franqueando com humi!-
dade os degraus ele uma hierarquia controlada pelos veteranos. "Eu
me considerava ainda muito inexperiente em minha ocupação para
obter tão elevado favor[ ...]. Era tímido, não confiava muito em mim
mesmo, e os veteranos eram necessários para me inspirar coragem
e me fazer subir na hierarquia elo compagnonnage." Ei-lo, aos de-
zenove anos, admitido compagnon, dotado das insígnias do primeiro
grau: um bastão, fitas azuis e brancas e " um novo nome, muitO agra-
dável, muito lisonjeiro , difícil de usar" : Avignonais-la-Vertu .34 Três
A ]1/l'T:ST/"DF. OPERÁRIA. LJA OF/CI.V11 ti FÁRRICA 95

anos mais tarde, é iniciado na terceira ordem, torna-se "dignitário" :


" Eu portava a estola azul em lugar da branca e, além disso, uma es-
piga de ouro a mais em meu feixe " . ão sem conflito com um "ve-
lho" que lhe reprova sua juventude " e que não podia compreen-
der como alguém tão jovem tivesse uma autoridade acima da sua" .35
Todavia, ele se impõe e empreende reformar sua sociedade. Quan-
do retorna a Morieres, sua terra natal perto de Avignon, após percor-
rer a França por quatro anos e meio, é compagnonjiní (companheiro
completo] e está com 22 anos e nove meses. "Retorno à aldeia, pen-
sando em nunca mais deixá-la, em não mais viajar, em me estabele-
cer, me casar, viver e morrer ali. "36 A ju,-enrude está terminada, em
boa c devida forma.
Mas tais riros de passagem se rarefazem com a decadência do
compagnonnage, tornado obsoleto, e cujas estruturas hierárqu icas
e a escala elas idades não são mais aceitas pelos jovens operários .
Em contrapartida, eles não escapam à conscrição e ao compareci-
mento perante o conselho de revisão médico, instituído em 1818.37
Anualmente, os jovens que têm vinte anos são reunidos na sede da
região para o sorteio de seu número. O conselho de revisão os exa-
mina a seguir em função desse número na ordem ascendente para
verificar se são ou não '"bons para o serYiço", e isso até que o con-
tingente anteriormente fixad o seja atingido. Assim, tirar um núme-
ro elevado é " tirar um bom número" . Os mais ricos podem com-
prá-lo, até 1889, quando o serviço militar se torna obrigatório para
todos (com dispensas aliás contestadas). A maioria dos jovens ope-
rários aspira a ser dispensada pelo conselho de revisão, por ser o
serviço militar longo (sete anos no início do século XIX!) e impopu-
lar. Mas temem também o olhar sobre sua nudez, o julgamento feito
sobre sua baixa estatura, sua deformidade, sua má saúde. Submeter-se
a essa avaliação é penoso, mas certa desonra se associa progressiva-
mente à dispensa que pode dissuadir as mulheres a casar.
Assim, a conscrição rende a unificar uma classe de idade - se
é da " classe X " - e a criar um sentimento de pertença, embrião de
uma consciência de geração. De mais a mais, ela é acompanhada
de banquetes, nos moldes elos das sociedades ele canto.38 Come-se,
bebe-se, cantam-se canções patrióticas ou galhofeiras. Meio embria-
gados, os conscritos percorrem o país, brandindo sua bandeira e
suas insígnias, cantam , fazem barulho, com freqüência enterram sua
vida de rapaz no bordel; mais raramente saem com namoradas. Van
Gennep e Michel Bozon descreveram esse rito de passagem que subs-
96 HISTÓRIA DOS ]OI'F.SS

titui as antigas festas da juventude caídas em desuso, especialmente


na segunda metade do século xix.39 A opinião pública , porém, não
aprecia muito essas manifestações, sinônimo de desordem e de obs-
ceniclacle, da qual a sociedade vitoriana reprova a publicidade. Segui-
dameme se produzem incidentes. É o sinal de uma marginalização
· da juventude que perdeu seu estatuto, seu papel tradicional de orga-
nizadora de festas, e não tem mais direito a seus próprios folguedos.
Em todo caso, para os homens jovens, o serviço militar é uma
última etapa, como um funil de saída da juventude. Depois da esco-
la, o exército é a forma disciplinar maior, o único confinamento pa-
ra a " juventude difíc il" . Aliás, os jovens que passaram por casas ele
correção são estimulados a entrar no exército, e Félix Voisin, filan-
tropo e administrador penitenciário, cria no final do século uma obra
destinada a favorecer esse projeto. Por isso o serviço militar suscita
tanta animosidade, uma forte insubrnissão (mais de 124 mil insub-
missos entre 1889 c 1914), "sinal certo da consciência que a juven-
tude adquire de s i mesma", escreve Yolancle Co hen,40 e um vago
antimilitarismo do qual os jovens anarquistas, no início do século,
se fazem os intérpretes c os propagandistas, sustentados pelo sindi-
calismo de ação direta. Essa form a bastante excepcional ele cristali-
zação dos jovens enquanto tais não tem, aliás, uma base especifica-
mente operária. A guerra irá varrê-la com seu terrível revés .
Do lado elas mulheres , nada ele tão nítido nem sobretudo de
tão geral , mas ames iniciativas locais. Assim como as jovens campo-
nesas de l\linot (Borgonha) iam passar junto à costureira o inverno
de seus quinze anos, 41 existem aqui e ali " festas da Donzela" que
vão sendo substituídas pelas das " Rainhas de Beleza" , que celebram
as jovens virtuosas e/ou bonitas. Nada que diga respeito particular-
mente às operárias ou que encerre sua juventude. Um exemplo, po-
rém, ele ritual recriado: a festa das Catarinetas, elas quais Catherine
Monjarct analisou as mutações e a ambigüidade. 42 Oriunda do An-
tigo Regime e festa elas raparigas, ela se rorna na segunda metade
do século XIX a elas jovens operárias da costura parisiense. Muito ani-
mada na Belle Époque, ela o será ainda mais nos anos 1920-30, quan -
do as costureirinhas saem das oficinas para tomar a rua, sob o olhar
reprovador dos bem-componaclos. Associada à celebração dos 25
anos, essa festa não é, propriamente falando, um ritual de passagem,
mas antes um sinal de alarme, uma maneira ele con jurar o cel ibato.
Sua conotação sexual é acentuada. Seu caráter em geral impertinente
assinala, de qualquer modo, que a juventude acabou.
<i ji.Tt'STCJDE OPERÁRIA. D.l OFICISA , j FÁIJIIICA 97

O fim da juventude é a estabilidade, o casamento, a formação


de um novo casal, única maneira de deixar a própria família, de
tornar-se independente, afetiva e economicamente. Momento que
as fam ílias operárias retardam o máximo p ossível, a julgar pela ida-
de relativamente elevada dos que se casam, ainda que ela diminua
ao longo elo século X IX (de 28,7 em 1821 -5 para 25 ,2 em 190 1-5,
para os homens; de 26, 1 para 24,1 , nos mesmos períodos, para as
mulheres). 43
Ass im , entre uma infância que termina cedo, apesar ela escola-
rização, e um casam ento tardio, é longo o tempo da juventude ope-
rária.

P R ESHNÇA DA FAMÍLIA

A família é, no século XIX, como se sabe.-H a principal instân-


cia de regulação de uma sociedade em princípio atontizada e hostil
a toda fo rma de organização intermediária. " Entre o Estado e os in-
divíduos eleve haver apenas o vazio", dizia o revolucionário Amar.
Na sutura do público e do privado, as duas "esferas·· que regem tam-
bém os papéis sexuais, encontra-se a família.
O mundo operário não escapa a essa ordem. Estrutura demen-
tar, a fam ília regula as uniões, a reprodução, as aprendizagens, os
projetos p~1ra o futuro , impondo seu propósito global às vontades
partic ulares de seus membros, mulheres e jovens sobretudo . Pois
a família operária é patriarcal. Obedece à lei do pai, apoiada pelo
Código Civil, que encontra nessa autoridade uma identidade legíti-
ma . Proudhon, o teórico da anarquia, o inspirado r do sindicalismo
francês, é tam bém o mais fervoroso defensor da família patriarcaL
Aqui como alhures, o pai representa a razão organizadora. Agricol
Perdiguier queria ser camponês; tendo seus dois irmãos mais velhos
preferido trabalhar na terra, coube-lhe encarregar-se da oficina pa-
terna; seu pai decide que ele será marceneiro: "Ele era o mestre,
e u me submeti'' .
Se o direito respaldou a família operária, a evolução econômi-
ca igualmente a fortaleceu, contrariamente a uma visão apocalíptica
da industrialização que a historiografia dos últimos trinta anos ate-
nuou bastanre,'sublinhando sobretudo o importante papel da pro-
to-industrialização, essa mobilização rural e aldeã das energias no
âmbito doméstico (domestic system) que opera ao mesmo tempo
98 HISTÓRIA DOS }01'1'..\'S

a mutação dos camponeses em operários. Ora, a família é o cadinho


dessa preparação para o trabalho industrial, do qual a tecelagem em
domicílio constitui o modelo. Em volta do duro ofício de tecer, co-
mandado pelo pai, atuam, cada qual com sua tarefa e seu lugar, a
mulher e os filhos, cujo número permite a instalação de vários tea-
res; a indústria rural estimula a fecundidade. 45 Se a tecelagem em
domicílio sucumbe precocemente à mecanização na Grã-Bretanha,
o mesmo não ocorre na França, terra de industrialização lenta e mais
suave; ela perdura até a metade do século xrx, e mesmo mais além,
no Cambrésis, onde Serge Grafteaux recolheu o relato de vida de
Mémé Santerre. 46
A indústria artesanal, que no século xrx, não esqueçamos, cons-
titui a maior parte do trabalho operário , mantém firmemente a di-
mensão familiar, que se agarra à oficina, doméstica ainda por cima,
como a uma tábua de salvação. Assim, o fabrico ele fitas ele Saint-
Éticnne, exemplo de autonomia operária segundo Kropotkin,4'
beneficia-se da eletrificação para manter-se até os nossos dias, em-
bora se femin izando .48
ressa " família-oficina", onde hábitat e lugar de trabalho se con-
fundem , a ordem ele nascimento determina o futuro dos filhos, sendo
o essencial levar adiante o ofício. Menino ou menina - aqui, tanto
faz- , o primogênito se encarregará do trabalho, os mais moços po-
dendo eventualmente estudar. Se for menina, ela corre o sério ris-
co, ao tornar-se chefe de empresa, de fi car solteira. "Fui forçada a
isso" , diz à historiadora que a interroga uma dessas ex-chefes de ofi-
cina, confessando, sessenta anos mais tarde, uma falta de vocação
que jamais ousou exprimir, a tal ponto a disciplina fam iliar, apoiada
na ordem elo o fício, comandava a existência.
A herança das famílias operárias é o o fício, ou p elo menos o
emprego, única coisa que podem transmitir. Como a Revolução abo-
liu os privilégios corporativos (decreto de Allardc), elas recorrem
a outros caminhos. Assim se perpetuam, no quadro ele um ofício
ligado a um território, "endogamias técnicas"49 de grande flexibi-
lidade sob o aspecto das mutações tecnológicas. Os fabricant es de
fitas de Saint-Étienne fornecem um exemplo, m~s a lista seria longa:
rosadores de lã de Sedan, luveiros ele Grenoble, ebanistas elo Fau-
bourg Saint-Antoine (Paris), cuteleiros de Thiers, fabricantes de por-
celanas de :\evers etc. esses casos, o controle familiar é total, tan-
ro do emprego como do know-how. Esse controle é geralmente mais
dissociado. No âmbito das fábricas, os operários procuram pelo me-
A j !-1'E,\ TL'D/i OPERÁRIA. 0.1 OF/0.'\:.! À r.-íBRIC.-1 99

nos regular a aprendizagem, em número e em qualidade, recrutan-


do preferencialmente seus filhos, aos quais ensinam os "macetes ...
os segredos do ofício. Mas eles precisam ela cumplicidade do patro-
natO. Em Marselha, os curtidores conseguem reforçar a hereditarie-
dade da profissão: 9% ele filhos de curtidorcs em 1820, 45% na me-
tade do século x1x.so Em Berry, os industriais dão preferência aos
filhos de operários. Na indústria de porcelana, que dizem requerer
cinco anos para formar um operário, os aprendizes aproveitam as
pausas, "instantes privilegiados durante os quais, vigiados discreta-
mente pelos veteranos, tentam sua oportunidade no rorno" .s 1 Os
auxiliares ele decorador são objeto de uma escolha ponderada da
parte elos próprios operários, mas são " codos flihos de operários" _52
Nas metalúrgicas, as crianças são primeiro serventes, depois,
por volta dos doze anos, ajudantes ao lado dos afinadores de me-
tal; por muito tempo permanecem sem lugar e sem certeza de vir
a tê-lo; mas a hierarquia e a precedência familiares não são contes-
tadas por ninguém em função do progresso no ofício. 55 Mesma si-
tuação nas vidrarias - Eugcne Saulnier é vidreiro como seu pai54
-, nos canteiros de obras de construção - Martin Naclaud é pe-
dreiro como seu pai -, nas pedreiras: em Montataire, "o pai faz
o filho trabalhar. O primogênito ensina a profissão ao irmão mais
moço, o tio ao sobrinho etc. O corte da pedra se aprende portanto,
por assim dizer, em família". 55 O patronatO se acomoda facilmente
a essas práticas que lhe poupam o encargo de uma aprendizagem
onerosa. Em compensação, franze cada vez mais as sobrancelhas
quando se trata do modo de produção que ele quer controlar. Con-
flitos se multiplicam contra "as pretensões operárias". Na época da
Restauração, freqüentes coalizões opõem operários e mestres pape-
leiros que querem romper o monopólio da contratação de trabalho.
No Lyonnais, entre 1890 e 1914, -a questão da limitação do número
de aprendizes está no centro ele numerosas greves, que geralmente
fracassam. 56 Para vencer a resistência operária, romper a velha alian-
ça da família e do ofício, o patronato introduz novas máquinas e,
por conseguinte, uma nova organização do trabalho, simplificada
e mais transparente, que dissipa os "segredos " . É o que acontece
no setor da vidraria, último bastião dessas práticas e palco dessas
batalhas. Com o tempo, os vidreiros são vencidos . Tendo o ofício
perdido seus privilégios e seu atrativo, eles doravante afastarão seus
filhos dessa ocupação . Para substituí-los, os industriais recorrem aos
menores abandonados, assim duplamente " bastardos" - é como
I 00 HISTÓRIA VOS ]Ol't:.\'S

são chamados - e duplamente explorados 5 7 Quando a proteção


familiar está ausente, a situação pode se agravar. Em Nancy, um jo-
vem romeiro mecânico, fil ho de jardineiro, sem ligação familiar com
os operários da fu ndição, é "espancado pela menor falta" .SR
Se não um ofício, é pelo menos um emprego, "uma coloca-
ção" que as famílias procuram oferecer a seus rebentos, fazendo-os
ingressar na fábrica o nde trabalham. Na indústria têxtil normanda,
em Yvctot, por exemplo, "todos os tecelões são filhos ou sobri-
nhos de tecelões". S9 A imutabilidade é muitO grande: as pessoas
permanecem no mesmo estabelecimento do nascimento à morte.
Pior ainda nas cidades industriais, monoindustriais, como Baccarat
ou Lc Creusot, que organizam elas próprias seu recrutamento,
encarregando-se da formação de seus operários, reduzidos a uma
dependência freqüentemente internalizada. A fábrica é o único ho-
rizonte deles, e fazer que o filho seja adm itido torna-se uma obses-
são. Essa era a idéia fixa do padrasto cle jean-Baptiste Dumay, com-
pletamente integrado ao paternalismo dos Schneider, que sempre
insistiu para que Jean-Baptiste trabalhasse na Creusot, e inclusive
casasse na região, exercendo uma pressão constante para que re-
tornasse para lá. Nas manufaturas de tabaco, cujo estatuto estatal
favorece linhagens protegidas, o funci onamento é idêntico: as ci-
garreiras preparam o lugar para suas filhas, caso bastante excepcio-
nal de carreira e hcreclitariedacle profissional feminina.
Noutros casos, a indústria favorece a transmissão familiar por-
que busca reproduzir uma força de trabalho difícil de constituir e
ele conservar, não tanto em razão de qualificações excepcionais, mas
ela discipl ina inculcada. É o caso elo trabalho em minas: mais que
um ofício - será o mineiro mais que um trabalhador braçal? -, cons-
titui um modo ele vida, perigoso, penoso, mortífero, em suma, pouco
atraente. A mitologia do " belo ofício ele mineiro" é inteiramente
construída, à base ele epopéia e propaganda, e cu lminará na Liber-
taÇão (1944), em razão elas necessidades energéticas nacionais. 00 Ao
contrário, os historiadores mostraram o quanto a constituição de
uma base de emprego est~ive l fo i difícil , obtida particularmente por
uma política familiar de aloj amento e contratação61 que apresenta
para a mão-de-obra vantagens em período ele desemprego, mas que
se torna insuportável com a evolução elos costumes e a elevação do
nível de viela. Tão logo a conjuntura afrouxa as coerções, os jovens
se eYadem. Em 1911 , em Carmaux (Gard), é preciso contratar trinta
mineiros para consen·ar um. A mina é vista cada vez mais como a
A jtTE.\7/"nF OPERÁRJ.~ D.-'. OFICISA .-i FÂnRtCA I0 I

pior saída, e os jovens se rebelam diante de uma estrutura profis-


sional e familiar auroritária em que o mineiro-pai de família reina
sobre a constelação dos demais, seus subordinados e seus filhos.
A situação é especialmente delicada para os berschew·s,• jovens de
dezoito a 21 anos (a lei de 1892 tendo proibido a descida ao fundo
das minas antes dessa idade) cuja ausência de estatuto apresenta mui-
tos problemas. 62
Assim, em rodos os casos em questão, no confronto entre mun-
do operário e patronato, a família é um elemento estratégico. No
centro do conflito estão os jovens, ao mesmo tempo protegidos e
dirigidos, sustentados c comandados por essa realidade ambivalen-
te que é a família. Por meio de uma série de coerções, ela se esforça
por otimizar seus recursos (como diriam os economistas) e decide
sobre muitas coisas: a form ação, o emprego, a colocação e a trans-
ferência, o uso do salário, a partida e a formação dos novos casais
que ela procura retardar o má....Umo possível, como veremos. Fecunda
mais por necessidade que por escolha, ela própria começa a con-
trolar seus nascimentos. Vale dizer que a existência dos jovens ele-
pende dela, em larga medida.
Contudo, vários fatores irão perturbar o funcionamento da fa-
mília operária, conduzi-la a no,·os arranjos, distendê-la e até dissolvê-
la. Primeiro, a própria industrialização que, após ter se utilizado da
família, pode liquidá-la quando se torna um empecilho ao rendimento
elos trabalhadores. Desse pomo de vista, as crises, em particular a
"grande depressão" do fim do século, marcada pela desinclustriali-
zação dos campos e o desaparecimento da fábrica ele aldeia, contri-
buíram para isso. A longo prazo, o que a indústria busca são traba-
lhadores totalmente independentes. Essa individualização crescente
do assalariado coincide freqüent emente com as aspirações do jo-
,·em operário.
As migrações, ainda que se efetuem segundo um plano familiar
que mobiliza os parentes, estabelecem uma distância propícia ã eman-
cipação. Jeanne Bouvicr migra do Dauphiné para Paris com sua mãe,
no início elo século xx; mas em seguida a perde de vista e se inte-
gra progressivamente na capital. As grandes ciclacles, Paris princi-
palmente, foram zonas de alforria para a juventude. Sabem-no os
mais empreendedores, que sonham ali "subir na vida". Partir, via-
jar, é evadir-se, alargar seu horizonte, apropriar-se do mundo, arriscar-

(')Denominação do Norte da França para carregadores de ngonctcs. (~. T.)


/02 HISTÓRIA DOS} OI'ES S

se para ganhar ou perder. Quantos Rimbaucl operários terão existi-


do? Os relatos de aprendizagem são sempre relatos de viagem.
Mas primeiro é preciso trabalhar.

TRABALHAR

A relação com o trabalho é certamente o que mais distingue in-


fância e juventude no século XIX . A primeira subtrai-se cada vez mais
a ele; a segunda está destinada a ele. A escola concorre com a fábri -
ca, no que concerne à infância. Os menores de doze anos desapa-
recem da mina e da fábrica ao lo ngo do século xrx63 e se reduzem
inclusive na oficina familiar, sobretudo em razão da obrigação es-
colar e da conversão das famílias ao projeto educativo. Nada disso
ocorre com os adolescentes. Passados os treze anos, com restrições
que já mencionamos, o trabalho é a norma. Após os dezoito, eles
são adultos em relação aos deveres, não em relação aos direitos, que
não têm. A oficina, a fábrica, o canteiro de obras tornam-se assim
espaços juvenis, pelo menos lugares da juventude operária. As "saí-
das de fábrica", grande tema de cartões-postais do início do século
xx, mostram, saindo ele manufaturas têxteis, no caso das mulheres ,
mas também das vidr_arias, elas usinas metalúrgicas, no caso dos ho-
mens, a presença desses grupos ele jovens, na verdade muito jovens.
A diferença reside igualmemc.na natureza elos laços ele depen-
dência. Se, em relação à infância, o encaminhamento ao trabalho
se efetuava sempre por meio da, dentro da c com a família, os me-
ninos acompanhando seus pais ou seus irmãos mais velhos, as coi-
sas se complicam e se diversificam com os adolescentes. No artesa-
nato, a oficina paterna se esforça por retê-los, para o melhor e para
o pior. Os inspetores de trabalho se queixam ele não poder pene-
trar nesses mundos fechados nos quais, quando o poder do pai é
duplicado pelo do mestre, tudo é permitido; as jornadas não têm
fim, as regras ele higiene são ignoradas e os conflitOS mais duros.
A idéia ele que se aprende melhor apanhando, idéia que a escola lei-
ga combate, persiste no meio operário. O pai não se dá conta de
que o filho cresceu. Jean Allemane não suportou que, aos dezesseis
anos, seu pai, um tipógrafo, o esbofeteasse; data daí sua revolta contra
a autoridade e sua " conversão" socialista.64
Todavia, a maior parte dos adolescentes não dispõe dessas opor-
tunidades e deve buscar colocação noutro lugar. Entre os mais qua-
A }L'I'E.\TL'DE OPERÁRIA DA OFICI.\'A -~ FÁBRICA / 03

lificados, persiste a velha idéia, herdada da Idade Média e codifica-


da pelo compagnonnage, de que tal mobilidade permite melhorar
os conhecimentos e as habilidades, mas se prefere que isso ocorra
mais tarde. Colin Heywood, que procedeu a sondagens estatísticas
em oito cidades industriais de diferente porte na metade do século
XIX, constata que a porcentagem dos adolescentes de quinze a de-
zenove anos que viviam com seus pais é sempre superior a 74%
para os rapazes e 92% para as meninas, o que restringe singularmente
·a representação de uma adolescência vagabunda_G; É óbvio quere-
sidência não significa trabalho; mas isso implica pelo menos um raio
de deslocamento reduzido. A verdadeira mobilidade começa depois.
As famílias, decididamente, conservam seus adolescentes em casa.
De qualquer modo, a aprendizagem está "em crise", wdos re-
conhecem. Mas que crise é essa? Peter Laslen havia identificado, pa-
ra a época moderna, um vasto sistema de colocação das crianças
e dos adolescentes , principalmente no serviço doméstico, que ele
chamou ''life cycle service" . Esse sistema, amplamente difundido
em toda a Europa ocidental, era ao mesmo tempo técnico e social,
correspondendo à idéia de uma distância necessária em relação à
família tanto para a aprendizagem de um ofício como para a vida.
Freqüentemente muito dura, a condição dos aprendizes se tornou
ainda mais rigorosa com o puritanismo e sua obsessão com a sexua-
lidade. Afastar os adolescentes equivalia, segundo André Burguiere,
a uma "conduta de evitação", inclusive do incesto, maior perigo
de todos (sobre esse tema, muitas pesquisas seriam desejáveis). Daí
haver uma atitude de suspeita, muito rígida em relação aos apren-
dizes, figura da tentação, "os escravos ela Europa", diz uma autO-
biografia alemã. 66
No século XIX o sistema perdura, mas se reduz em sua dimen-
são e em suas modalidades. Assim, reforça-se a divisão sexual das
tarefas. A colocação doméstica, na cidade pelo menos (no campo,
os criados de propriedades rurais são tão numerosos quanto as cria-
das), é reservada às meninas, cada vez mais raramente aos rapazes:
o ascensorista de Balbec é uma sobrevivência, ao passo que as Fran-
çoise se multiplicam .67 Para eles , contam a aquisição de um ofício
junto a um mestre, substitutO elo pai , e companheiros qualificados.
O papel dos parentes- rios principalmente, primos ou irmãos mais
velhos - ou da vizinhança provincial é decisivo na escolha do lugar
de aprendizagem. Aos treze anos, Eugene Varlin vem elo Marne a
Paris para aprender com seu tio, na rua eles Prouvaircs, o ofício de
/0-f HISTÓRIA ()()SJOI'E.YS

encadernador. ] ean-Baptiste Dumay entra na Cai!, famosa usina me-


cânica, no bairro de Grenelle em Paris, graças a operários da Creusot.
A colocação em oficina deveria, em princípio, ser objeto ele um
contrato que estipulasse os direitos das duas panes. É o que preco-
niza Ducpé tiaux, que fornece um modelo c solicita a vigilância das
sociedades de parronato.6s Nada obriga, porém, a contratos por es-
crito, nem mesmo a lei de 1851 , que rem um caráte r facu ltativo c
se contenta em reiterar os princípios de uma justa aprendizagem. 69
De 19 mil aprendizes recenseados em Paris em 1845, 10 mil têm
alojamento e alimentação, mas somente um quinto com contrato
escrito. Situação pior ainda no final do século: segundo o recensea-
mento de 1898, de 602 mil adolescentes com menos de dezoito anos
que trabalham na indústria e no comércio, 540 mil não têm nenhum
contrato. Vale dizer que este caiu em desuso. Um simples compro-
misso verbal é suficiente, fácil de romper tanto pelos mestres , que
podem dispensar de um dia para o outro em função de suas neces-
sidades e seus humores, quanto pelos aprendizes, prontos a se eva-
dir. Os tribunais de trabalho passam seu tempo co m essas questões:
entre 1868 e 1872, em Paris, 75% dos casos que e xaminam dize m
respeito a rupturas de contratos verbais de aprendizagem .7° É que
as condições ele vida e de trabalho, como rodos reconhecem, são
deploráveis. Mal alimentados, os aprendizes são ainda pior alo jados,
em sótãos, em desvãos, na própria oficina. Segundo o relato auto-
biográfico de Gilland, "esses pobres infelizes dormiam ao pé de sua
mesa de trabalho sobre um leito de lona aberto à noite e que devia
ser guardado de manhã" .7 1 Os inspetores de trabalho não cessam
de protestar contra a ausência total ele higiene da " dormida" elos
aprendizes padeiros e confeiteiros ou dos jovens torcedores ele seda
ele Lyon. A consciência da tuberculose aguça a sensibilidade para
a falta ele higie ne. Privilégio pate rno, a prática de castigos é tole-
rada quando se trata do mestre. O patrão joalheiro do pequeno Guil-
laume estabelece u uma escala de punições. "Ele batia nas crianças
com uma vara ele junco que comprava expressamente para essa fun -
ção e renovava diversas vezes por ano. Depois elos golpes, havia
o pão seco, o pão de roJão por um dia, uma semana, ou um mês. " 72
Por isso ocorriam às vezes revoltas, individuais - em 1841 , o jo-
\'em Ponier é condenado a vinte anos ele trabalhos forçados por rer
assassinado seu mestre, escultor em madeira em Paris, que batia ne-
le com ferramentas e havia pro vocado a morte de um de seus
colegas - 3 - o u coletivas, como a rela tada por Gilland, " conspira-
A )CI'/;',\ H DF OPERARIA. DA OFICIS.~ -~ 1-'ÁBRICA J 05

ção" aliás abortada contra o ·'tirano" . Com a elevação da idade dos


aprendizes, cada vez mais adolescentes, os castigos corporais dimi-
nuem, mas são substituídos por gestos de cólera, com arremesso
ele ferramentas.
Mesmo sem chegar a tanto, o aprendiz é o " burro ele carga"
ela oficina , bom para tudo c para nada, atormentado por uns e po r
outros, doméstico ele rodos, inclusive ela patroa que faz dele em-
pregado c garo to ele recados. Ele limpa os instru mentos, as banca-
elas ele trabalho, a oficina, varre, arruma; transporta caixas e paco-
tes, faz entregas, arrastando pesadas cargas em carrinhos ele mão que
no século XIX constituem o meio essencial de transporte de merca-
dorias 74 . Os "puxadores de carrinho·· sulcam as ruas da capital,
aproveitando para anelar à toa, para .. sumir". \lu itos, acusados de
vagabundagem, são recolhidos à Petite Roquene. prisão de meno-
res desde 1836. Em número meno r. porém. que os rapazes "sem
ocupação" ou que vivem "ele biscates ... mais \'Uineráveis ainda. Ser
aprendiz, apesar de tudo, representa uma seleÇ<lo que pressupõe uma
famíl ia atenta e um mínimo de instrução.-5
O mais p reocupante é que em geral esses ··paus-pra-toda-obra"
não aprendem nada. O patrão os negligencia e. sempre apressados,
os operários se impaciemam com sua falta de habilidade, estão sem-
pre a criticá-los e os preferem "comparsas" complacentes a traba-
lhadores curiosos . Ou , então, fazem-nos cumprir sempre a mesma
tarefa, o mesmo gesto, a mesma parcela ele objeto. Eles fornecem
uma mão-de-obra quase gratuita ou muito barata. Nesse ponto, a si-
tuação é ainda pior na província, onde o emprego é mais restrito .
Na Sabóia, por exemplo, em 1879, a aprendizagem gratuita dura nor-
malmente dois a três anos, "e pode-se mesmo ficar quatro ou cinco
anos quando se é alimentado e alojado na casa elo patrão" .-6
Os mais desejosos de aprender recolhem como podem miga-
lhas de saber, utilizam as pausas se encontram um companheiro com-
placente, ou "espiam por cima do ombro dos companheiros", co-
mo diz Jules Simon, que, como todos os filantropos, deplora esse
sistema. Ou então, se puderem, m udam de oficina, essa mobilidade
-esse turn over, segundo uma expressão dos anos 1930 - sendo,
ainda nos dias de ho je, um substituto da aprendizagem. Foi assim
que Eugene Varlin aprendeu seu oficio de encadernado r o u Jean Al-
lemanc o de tipógrafo. O primeiro tem treze anos quando seu tio
o faz vir ela província a Paris (em 1852) e o coloca como aprendiz
ames de o acolher em sua casa; o tio é exigente e rude; Eugêne dei-
J 06 HISTÓRIA DOS JOVENS

xa-o um ano mais tarde; está com quinze anos e começa a ganhar
a vida. Sua caderneta de trabalho permite fazer uma idéia de seu iti-
nerário; ele 1855 a 1858, tem cinco empregadores diferentes, sem-
pre no sexto arrondissement, grande bairro do livro. Dispensado
do serviço militar em 1859, ele "gira" por mais cinco anos, até 1864;
torna-se contramestre da Despierres, rua de l'Échelle, de onde é ra-
pidamente afastado. Instala-se então por conta própria aos 26 anos.
" Minha especialidade é a preparação de capas para encadernação,
mas posso fazer tudo, se preciso" , diz ele. Hábil artesão, chega a
ganhar até oito francos por dia.77
Jean Allemane tem um percurso um pouco diferente, pois per-
manece quatro anos (185 5-9), elos doze aos dezesseis anos, certa-
mente ligado por contrato, numa grande tipografia (Dupont), e so-
mente então começa um périplo profissional e operário intenso, antes
de se fixar. Quanto a Renê Michaud, cinqüenta anos mais tarde, ele
tenta se iniciar nos diversos setores da indústria do calçado, frag-
mentada em operações múltiplas, e vai de uma fábrica a outra, em-
penhado em conquistar um ofício. "Éramos os últimos nômades dó
trabalho industrial, e o número de oficinas pelas quais sucessivamente
passei, meu tum over, faria algum douto psicólogo me qualificar
como um indivíduo patologicamente instável.. . Mas como nadare-
gulamentava a aprendizagem, era preciso forçosamente substituí-la
pela iniciativa." 78
Eis o que esclarece a " crise da aprendizagem" , ao mesmo tem-
po industrial e disciplinar. As mutações tecnológicas fizeram explo-
dir os ofícios, especialmente em Paris, cidade de artesanato tradi-
cional. "A especialização invadiu tudo", diz um relatório ele 1877.
"Na maior parte das indústrias, foram criadas oficinas secundárias
nas quais se fabrica, de uma ponta do ano à outra, apenas um único
objeto ou mesmo uma fração ele objetO. Ora, é sobretudo nas pe-
quenas oficinas que os aprendizes são numerosos, porque somente
aí podem ser aproveitados pelo patrão q ue vigia ele próprio o traba-
lho. Não é fazendo constantemente o mesmo objeto que eles pode-
rão se tornar verdadeiros, bons operários. Acaso se formarão ebanis-
tas nessas oficinas ele Paris onde se fabricam apenas, e com a ajuda
de máquinasjermmentas, mesas de certo tipo ou mesas de máquina
de costura? Far-se-á um cadeireiro do aprendiz cujo único trabalho
consiste em reunir as diversas partes de uma cadeira que, por causa
das necessidades ele transporte, chega desmontada ela província ou
do estrangeiro?" E o relatório conclui: " A aprendizagem está em
vias ele decadência" . O remédio? Uma rede ele escolas profissionais
sustentadas pelo Estado, pois "a pobreza elos pais é grande e não
lhes permitiria sequer pagar uma pensão suficiente para cobrir as
simples clespesas.com o ensino".'9 O movimento operário não diz
outra coisa , desenvolvendo, ele congresso em congresso, um ver-
dadeiro " pensamento sobre a educação" .so Ele reivindica sobrem-
elo um "ensino integral" que não sacrifique nem a cultura geral que
faz o cidadão, nem os saberes profissionais que constroem o bom
operário, o operário completo; um ensino que jamais dissocie a teoria
c a prática. "O adolescente que experimenta no mesmo dia um fe-
nômeno cuja teoria estudou, honra em sua justa medida o labor do
operário, suas mãos", diz Ernest Rache no Congresso de Marselha
(1879). 8 1 Vãs esperanças. O ensino técnico e profissional francês foi
e continua sendo um fracasso. Isso se deve ao desconhecimento que
o sistema escolar, contrariamente à Grã-Bretanha e sobretudo à Ale-
manha, tinha da indústria, à indiferença e mesmo ao desprezo que
nutria em relação ao operário - e que os jovens sentiam como uma
discriminação. 82
Isso explica seu " espírito ele rebeldia", sua insubordinação, sua
tendência a " desistir", sua insolência. Eis aqui um trecho do regis-
tro ele uma agência patronal de colocação, em 1874. Um aprendiz,
"após ter permanecido dois dias na casa ele seu patrão, partiu ele
maneira bastante grosseira, sob a influência ele sua tia. Voltou ao
escritório elo secretário dizendo que havia deixado seu patrão por-
que seus pais não haviam podido se entender com ele quanto às
condições. O secretário lhe indicou a casa Hendrickk, onde ele se
apresentou ele forma tão pouco conveniente e demonstrando pre-
tensões tão exorbitantes que a senhora Henclrickk o dispensou" .83
" Não há nada a esperar dos aprendizes", escreve La République
Française (18 ele agostO ele 1884). " Eles não sabem nada, mas em
compensação conhecem todas as ruas de Paris e mesmo da perife-
ria." A lamentação sempiterna indica uma situação real, bem iden-
tificada por Alain Cottereau: a recusa ele um número crescente ele
aprendizes ele aceitar a situação que lhes é proposta, recusa que o
mercado ele emprego parisiense permitia. Mais instruídos (desde
1860, 87% elos operários parisienses sabem ler e escrever), com mais
idade também, os "aprendizes" do fim do século XIX dão sinais de
consciência impaciente.
i 08 HISTÓRIA DOS ]Ol'E.\'S

NA FÁBRICA

Em virtude da legislação protetora, as crianças desaparecem,


lenta mas inexoravelmente, elo fundo elas minas e do recinto ela fá-
brica, que se tornam assim território dos jovens operários. Em 1897
(ano de um recenseamento), a grande indústria conta com 223 385
rapazes ele doze a dezoito anos e 21 O182 moças da mesma idade,
portanto quase o mesmo número . Mas uma segregação sexual cres-
cente separa empregos e espaços: a indústria têxtil é majoritariamente
ocupada por mulheres adultas e menores de idade; os rapazes não
poderiam permanecer ali além da adolescência, exceto se fazem uma
carreira no setor administrativo ou em tarefas especializadas.
Em rodos esses lugares - a mina, o canteiro de obras, a fábrica
- a contratação é familiar. Com freqüência é feita dentro ele equi-
pes em que o jovem operário é auxiliar de seus pais ou ele um ir-
mão mais velho, tão incorporado à força de trabalho de les que seu
salário é agregado ao deles. Quando trabalha para outras pessoas,
é remunerado por seu chefe de equipe. Sua relação com o patrão é
sempre intermecliacla; aos olhos deste, ele não existe. Passa a traba-
lhar na fábrica porque " não vai bem na escola " ou porque se abor-
rece nela. Muitos testemunhos - os de Dumay, Saulnier e Nave!,
por exemplo - mencionam esse tédio escolar. ' 'Estava cansado ele
gastar os fundilhos nos bancos de escola e não via a hora de seguir
o caminho elo irmão mais velho", diz Eugene Saulnier. " O certifi-
cado, para mim, não representava grande coisa. Talve z com pesar,
meu pai sentenciou: 'Poderás ser um bom vidreiro' . "84 As fo rma-
lidades são simples: "Dois minutos ele entrevista entre o pai e o di-
retor, e tudo estava acertado". É verdade que se trata aqui de uma
fábrica de vilarejo. Nas grandes empresas é mais complexo. Algu-
mas recrutam diretamente em suas escolas. Na Creusot, contratam-
se por grupos de seis, dez ou doze, conforme as necessidades: "O
diretor elas escolas chegava na primeira classe e dizia aos alunos: 'É
preciso tantas aprendizes nas forjas , tantos na afinação ele peças ou
na caldeiraria . Quem quer ir?' - e quem quisesse erguia o braço,
contanto que tivesse pelo menos doze anos, e isso sem nenhuma
consulta aos pais, sem nenhuma vocação para o emprego disponí-
vel, mas movido por este único propósito: o prazer ele deixar a es-
cola", conta Dumay,85 que entra assim, aos treze anos, em 1854,
para a o ficina de afinação ele peças. De maneira geral, os jovens ope-
, 1JUI'ESTIJDE OPERARIA. D.~ OF/Ch\'A À FABRICA J09

rários de fábrica são menos instruídos que os aprendizes das ofici-


nas urbanas.
Desde o início, os jovens das fábricas se inserem num proces-
so d.e produção elo qual constituem uma peça. Mais do que apren-
dizes, são chamados "ajudantes", "auxiliares" , ou pelo nome da ope-
ração que executam; são cerzidores de fios , cardadores de malhas,
remenclões, marginadores de tipografi a, serventes de altos-fornos,
carregadores de minas, serventes de vidraria etc. As vezes exercem
uma função temporária, repetitiva e sem fu turo; outras vezes esca-
lam os degraus de uma profissão. Exemplo elo primeiro caso: .na Creu-
sot, os aprendizes fabricam sempre as mesmas peças; " os torneiros
eram agrupados em cerca de trinta, cada um se especializava em ca-
vilhas e parafusos sempre mais ou menos idênticos, durante seis me-
ses, um ano, dois anos ou até mais, adquirindo uma habilidade ma-
nual extraordinária com a rotina. Cm jo,·em aprendiz. ganhando um
franco por dia, conseguia fazer numa jornada até duzentas cavilhas",
que normalmente teriam custado dez francos para a fábrica. O apren-
diz não aprende nada, mas é útil à fábrica e à sua família, que fre-
qüentemente se contentam com isso. É preciso energia para se livrar
dessa armadilha, como faz Dumay, que, aos dezoito anos, resolve
ir para Paris.
A mina ou a vidraria pertencem ao segundo caso. Com rara pre-
cisão, Eugene Saulnier conta como aprende os gestos elo ofício e
sobe na hierarquia da vidraria. Contratado como "substitutO" ele
um rapaz ausente numa equipe (composta ele três assopraclores e
seus três auxiliares), em seguida é auxiliar de forno, foguista, e fi-
nalmente assoprador ele primeiro grau, pois existe toda uma grada-
ção. Aos dezessete anos tem um " ofício nas mãos" que ele prefere
ao de doméstico numa casa ele campo. Ganha mais e sente-seres-
peitado. Gosta sobretudo ele subir na escala elas tarefas: "Quando
começo a trabalhar, os outros já trabalharam para mim " . Sua ascen-
são foi relativamente rápida graças a um velho operário, Pere Pilon,
que o ensinou bem; mas ele admite que isso acontece freqüente-
mente por "mera sorte" ou segundo as decisões elos veteranos, muito
influentes. O ofício é uma pirâmide tanto de poderes quanto ele sa-
beres. O que é ainda mais verdadeiro nas minas, e mesmo nos can-
teiros de obras ele construção. Vale dizer que o jovem operário sofre
múltiplas sujeições, nas quais justamente a idade tem muita impor-
tância.
110 HISTÓJ<IA V OS JOVENS

Os veteranos se mostram mais ou menos condescendentes. "O


operário, senhor e mestre, devia ser servido " , diz Saulnier 8 6 Mas,
diante da urgência da tarefa ou do apetite pelo pagamento por pe-
ças, com freqüência são grosseiros e brutais. Dumay, servente na
Cail (Paris, Grenclle) aos dezenove anos, deve transportar chapas
metálicas espessas e geladas até o traçador " que se divertia vendo-
nos soprar nos dedos" . Quinze dias mais tarde, ele su bstitui numa
forja o auxiliar elo operário encarregado ela purificação do ferro fun-
dido (a rotatividade muito alta permite a contratação r:.ípicla) . Passa
lá uma noite que lhe deixou tristes lembranças. Canhestro, é insul-
tado pelo operário, " um homem de trinta a 35 anos com porte her-
cúleo, que ameaçou me dar uma sova", que o trata de " desajeita-
do, indolente, inútil " e acaba por lançar-lhe no rosto suas tenazes,
elas quais felizmente se esquiva. "Os operários elas forjas jamais fa-
lavam com seus auxiliares a não ser desse modo",87 diz Dumay, me-
lancólico, que resolve mais uma vez ir e mbo ra.
Essa aprendizagem "no trabalho " não é necessariamente difí-
cil. Trata-se de tarefas simples e repetitivas: "abrir, fechar, abrir, fe -
char, nem mais nem menos ", o molde para a massa de vidro. "Pre-
so no meu banquinho" , rente ao chão, "praticamente não tinha
ocasião ele contemplar o que se passava ao redor", cliz Eugene Saul-
nier, que se lembra sobretudo ele seu extremo cansaço. Quando
· cochila, seu assoprador lhe dá um pontapé na tíbia . Intermináveis
jornadas: depois dos dezesseis anos, nada as limita, é o ritmo dos
adultos que comanda sem restrição . Intermináveis semanas: há in-
clusive acertos para que no domingo os jovens venham limpar as
máquinas c arrumar as oficinas. Saulnier considera-se feliz por ter
sua tarde ele domingo livre, "o domingo gordo". As pausas são en-
curtadas pelos deveres - os operários exigem que tudo esteja pro nto
para recomeçar - ou pelos eventuais exercícios.
· Por isso as reivindicações para preservá-Ias: os jovens metalúr-
gicos ele Lillc pedem para não mais ir à escola durante a hora elo
almoço; os marginaclores elas tipografias gostariam ele não mais la-
var as ferramentas no momento ela refeição e ter direito a um re-
creio ele cinco minutos "para comer uma fatia de pão" , pois lhes
proíbem formalmente comer trabalhando e "eles acham muito lon-
go o período da tarde" _88 As refeições são rapidamente consumi-
das; a marmita, mal aquecida, é logo esvaziada. Os adultos, aqueci -
dos, bebem muito; e os jovens cedo se iniciam no álcool que viriliza.
A ]UliENTUDE OPERÁRIA. LJA OFICINA À FÁBNICA 111

Extenuados com freqüência, menos habituados às cadências das


máquinas, assumindo riscos para executar mais depressa o serviço,
distraídos pelo desejo de se comunicar com os colegas, os jovens
operários estão mais expostos a acidentes. Segundo o governador
do Departamento do Norte, num mês de 1853, de 81 operários aci-
dentados, 57 têm menos de vinte anos. Mãos mutiladas, dedos ar-
rancados, membros quebrados ou feridos são fatos ordinários, quan-
do não acontece o mais grave: corpo e roupas abocanhaclos pélas
temíveis presas elas máquinas deixadas expostas, sem proteção, so-
bretudo na primeira metade elo século, tão descuidada nessa questão.
Não é de admirar portanto que os conselhos ele revisão do exér-
cito dispensassem tantos jovens operários. Na segunda metade elo
século XIX, porém, a situação melhora, por razões gerais (melhoria
global do nível de vida) e particulares: retirada das crianças, melho-
res condições de higiene e ele segurança. Os insperores de trabalho,
muito vigilantes quanto ao primeiro ponto, se ocupam depois de
1900 sobretudo elos segundos, sem que os jovens sejam alvo de uma
atenção específica. 89
A fábrica é mais dura para os jovens que a oficina? É discutível.
Norbert Truquin preferia a fábrica ele fiação da Picardia, onde aos
treze anos ingressa como cerzidor, ao arbítrio elos antigos mestres.
" Nas f:.íbricas, as oficinas são aquecidas, suficientemente arejadas e
bem iluminadas; a ordem e a limpeza reinam ali e o operário tem
companhia. [.. .]O tempo passava alegremente", diz ele acerca des-
sa época (por volta de 1845) em que o espaço da fábrica era pouco
controlado.9° É provável que o fortalecimento geral ela disciplina
industrial tenha pesado especialmente sobre os jovens, pressiona-
elos entre um patronato tenso e·adultos nervosos. A fábrica torna-
se " o trabalho forçado" . Eles a detestam, o que alimenta no início
elo século xx a psicologia libertária.
Os jovens se revoltam? A fábrica, mais que a oficina, favorece
suas ações coletivas. O aprendiz desafortunado, muito isolado, conta
apenas com o tumulto, a escapadela ou a fuga . Mais numerosos, os
jovens de fábricas formam um grupo capaz ele se afirmar. Movimento
social, no sentido ela sociologia da interação (Alain Touraine)? Nem
tanto. Antes movimento ele protesta, sobretudo pela greve. De duas
maneiras:91 primeiro participando elos conflitos ele massa. Os jovens
estão presentes nesses movimentos, manifestando-se com ardor. En-
tre 1871 e 1890, 16% elos manifestantes detidos têm entre quinze
111 H/STÓRI. i !)OS }OI'ESS

c çlezenove anos e 6% dos líderes identificados pertencem a essa


faixa de idade. Delineiam-se figuras de jovens " líderes", com a voz
potente, o tom da recusa e às vezes o carisma que arrebata. Como
Félix Cottel, jovem militante sindicalista de Troyes, por cuja reinte-
gração se mobilizam os cardadores. Como Étinne Rondeau, dezes-
sete anos, laminador, excelente operário, líder de Vicrzon: "Não sou
um escravo", diz ele, exortando seus companheiros.92 Nas indús-
trias mais homogêneas, onde estão bem integrados, os jovens são
às vezes detonadores. Isso é verdade sobretudo na indústria têxtil,
onde são muitos. Em Troyes, os cardaclores, trabalhadores ele ca-
torze a dezesseis anos - " nossas crianças" -, fomentam a maior
parte dos conflitos dos fab ricantes de bonés. Nas fiações, os cerzi-
dores, muito afetados pela aceleração do rirmo de trabalho acom-
panhada da supressão da mão-de-obra, se agiram muito. Na Alsácia,
entre 1850 e 1870, os jovens operários formam mais de 22% dos
grevistas, abrangendo também as mulhcres.93 No conjunto da Fran-
ça, entre 1870 e 1890, eles são responsáveis por mais da metade das
greves de jovens e têm um forte poder de mobilização. Em Vienne
(Róclano), os cnlaçadores de fios, adolescentes de doze a dezesseis
anos, convencem as mulheres, estofadoras c tecelãs, a se manifesta-
rem no Primeiro de Maio de 1890, c protestam com furor contra
os fabricantes da cidade.
Nas minas, a situação dos condutOres ou carregadores de vago-
netes é mais desconfortável, e seu papel incitador depende da es-
trutura familiar. Nas minas das encostas do Maciço Central, eles de-
sempenham com freqüência esse papel: em 1846, na Loire, em 1878,
no Allier, por exemplo. No Norte - da França e da Europa em ge-
ral -, mais hierarquizado, onde profissão c família são construídas
em torno da figura do lenhador, do mineiro em plena força da ida-
de, do " Pai", a posição dos carregadores de vagonetes é subordina-
ela. Reduzidos ao silêncio na famíl ia, também o são nos sindicatos,
que sempre estabelecem cláusulas restritivas a seu voto; em Seraing,
é preciso ter 21 anos para votar numa assembléia.9.t Suas greves pró-
prias, relativamerHe numerosas, são pouco levadas em conta pelos
mais velhos, que julgam que eles não têm voz no assunto, que há
um tempo para tudo. Na maio ria das vezes, os jovens, educados no
culto do pai. do herói masculino do inferno negro, seu modelo de
identidade, aceitam, se calam e reproduzem por sua vez o papel in-
culcado. Mas, em 1ieríoclo de crise ou de tensão, essa segregação
pode levar a um conflitO de gerações que se traduz em termos de
A }l:l'E.VTUDE OPERARIA. I M OFICI.VA ;Í F,ÍIJf<ICA 113

fuga ou ele confronto, inclusive sindical. Pois os jovens de um dia


serão os adultos de amanhã.
O mesmo acontece em todas as indústrias de estrutura hierár-
quica que consideram os jovens como auxiliares cuja agitação per-
turba a ordem das coisas. É o caso das tipografias, onde recebedores
de folhas c marginadores são vistos como entidade negligenciávcl.
Ou nas vidrarias, onde as greves de serventes ou mesmo de "auxi-
liares" são sempre tratadas com desprezo. O peso elas famílias soma:se
então ao elo patronato para fazer cessar um conflito considerado co-
mo um prejuízo e urna incongruência. _lotemos porém que essa in-
dústria manifesta veleidades ele organização elos jovens; convoca em
Aniche, em 1893, um "congresso de serYentes" e, durante algum
tempo, um jornal, Le Cri des}eunes, dirige-se aos de dezo ito a vin-
te anos .95
A reivindicação elos jovens operários, numa grande fábrica co-
mo a Creusot, é vista como inadmissível, quase como uma piada,
o que é pior. Jean-Baptiste Dumay coma como, em 1858, após uma
redução do magro salário que ele e os colegas recebiam, conven-
ce-os a "marcharem coletivamente até o chefe dos trabalhos, que
era então um tiranete da pior espécie [... ), o qual fico u literalmente
apavorado ao nos ver chegar, uns trinta reclamantes juntos. Ele de-
clarou não querer receber delegação, mas que cada um de nós lhe
apresentaria seus desejos pessoais isoladamente" . Dumay se adian-
ta, enquanto os outros vão embora; acaba sendo demitido, o que
ele buscava, tendo vontade de mudar de ares.96 Muitas greves ele
jovens exprimem assim o cansaço e o desejo ele se evadir. .Mas nes-
sa época as possibilidades ele ação autônoma dos jovens operários
são muitO reduzidas .

V!VER NA CIDADE

Por isso, assim que podem, aos dezoito ou mesmo aos dezes-
seis anos, os jovens procuram partir, valendo-se ela idéia positiva
que apesar de tudo se associa à viagem como instrumento de for-
mação, na esteira do Tour de France, do qual Agricol Perdiguier
fo rneceu, na metade do século, um modelo autobiográfico nostál-
gico . A narração desse tour ocupa dois terços das Mémoires d 'un
compagnon. Percliguier realiza essa viagem, principalmente pelo Sul
da França, entre 1824 e 1828, dos dezenove aos 23 anos. Faz dela
p=
1/4 HISTÓRIA VO~ JOI't:.VS

um relato iniciático, cuja circularidade - de Moricres a Morieres,


sua aldeia do condado venasco - sugere o acabamento da forma-
ção do aprendiz, tr:.tnsformado em compagnon fini. Iniciação ao tra-
balho, fundamento da identidade, no caso o trabalho em madeira
da mais bela profissão, a de marceneiro - aquela que ]ean-Jacques
Rousseau queria dar a Emflio -, amorosamente detalhada em seus
materiais, suas habilidades e seus instrumentos. Iniciação às práti-
cas do compagnonnage, a seguir; iniciação à França, enfim, cuj os
cosmmes, paisagens e cidades, centros da civilização, devem ser co-
nhecidos. Há aí uma apologia ela viagem a pé e suas virtudes fo rma-
doras para íl juventude popular, um elogio dí! mobilidade ordena-
da . O Tour de France é uma iniciação operária e cívica ao mesmo
tempo . Por o utro lado, esse relatO é também uma reportagem mui-
tO animada, cheia de encanto, recheada de informações concretas
sobre a viela de trabalho e de lazer elos jovens compagnons. Um mo-
numento c um documento.
O jovem metalúrgico Dumay também faz ·seu tour em 1860-1,
com dezenove-vinte anos, sem apoio elo compagnonnage, mas
valendo-se constantemente de muitos parentes ligados à profissão
e ele conterrâneos da Creusot que, por sua qualificação, ocupam po-
sições elevadas nas grandes fábricas metalúrgicas.97 Ele deixa Paris,
não sem alguma tristeza - " a capital me agradava" -, mas é que
lá não aprende mais nada. Com seu companheiro Thomas, dirige-se
ao Sul, passando por Auxerre, Dijon, Po mmard, Épinac, Lyon, o vale
do Ródano, N1mes, Uzes e finalmente Marselha, trabalhando, por
semana, em grandes fábricas ou modestas oficinas, dormindo em
quartos ele aluguel ou em hospedarías geralmente agradáveis, ou ainda
em granjas. Viaja quase sempre acom panhado, com com panheiros
diferentes, ora de diligência, ora de trem ou a pé, como entre Lyon
e Marselha. " Que tempo bom, com que prazer me lembro dele, que
alegria ao longo da estrada com minha mochila na ponta do bas-
tão!" , cantando c se divertindo. Contratado em Ciotat, na Trans-
portadora Impériales, permanece ali cawrze meses, retido por "um
amor partilhado cuja lembrança ainda hoje me comove, após qua-
renta anos de distância". Mas tira um mau número que rompe todo
projeto semimenral, obrigando-o a um serviço militar de sete anos
(1861 -8) do qual nos oferece um relato bastante excepcional na li-
teratura operária.98 Durante todo esse tempo, ele jamais perdeu con-
tatO com os familiares que insistem na sua volta aLe Creusot. É pa-
ra lá que retorna, ao sair da caserna, para trabalhar e se casar com
.~ jl 'l't:.\'TL"{)F OPERARIA DA OFICJ.VA À FÁJIRICA li 5

uma moça da região, a 21 de novembro de 1868, aos 27 anos. Esse


jovem despreocupado e rebelde - fomentou várias greves em sua
passagem, à diferença de Perdiguier - to rna-se um militante repu-
blicano e socialista.
Saulnicr, o jovem vidreiro, sonha também deixar a vidraria de
sua adolescência para conhecer melhor o ofício: "As pequenas pe-
ças que havia aprendido a tirar de meu bastão (bastão de assopra-
clor) não me satisfaziam". Seu irmão mais velho, Armancl, vidreiro
na Oordonha, gaba-se de suas proezas e do dinheiro que ganha. "Co-
mo os velhos, ele trabalhava com as quatro patas e a boca [termo
de ofício] e se felicitava por ter nos deixado.·· Eugene decide par-
tir. Está com dezesseis anos. "Então. Eugene. ,-ais fazer teu tour?",
,lhe dizem. A mãe resmunga um pouco mas se conforma: "Estava
escrito no destino dos vidreiros. Quando não se rem a alma nôma-
de, o ofício faz com que ela se torne". Além disso, "estava na hora
ele pagar o tributo ela mocidade".99 Ele junta-se ao irmão, passa a
trabalhar em sua vidraria, partilha seu quarto e descobre outra at-
mosfera social; em virtude da proximidade de Bordéus, os jovens
são mais contestadores, fazem grave, cansados de não serem consi-
derados como verdadeiros aprendizes. Saulnier é mais está,·cl que
Dumay: dois anos (1908-10) na Dordonha, dois anos (1910-2) em
Choisy, peno de Paris, até ser com·ocado pelo exército. " Não me
interessava ser dispensado. Em Plessis, isso daria o que fa lar. Colo-
cariam questões a meu respeito, não me levariam a sério. " 100 De-
cididamente, os tempos mudam. Incorporado em 1912, ele passará
pela Grande Guerra e só voltará à terra natal em 1919, aos 27 anos,
para desposar Alsine, sua "prometida" há doze anos.
Por meio desses três exemplos, percebem-se bem as funções
múltiplas dessas viagens, iniciação ao ofício, à sociabilidade, ao amor
e à política, verdadeiras " universidades" dos jovens operários. Tem-
po essencial de ruptura, de descoberta, de escolha pessoal, de en-
contros e de inserção na vida pública, em q ue as cidades justamen-
te desempenham um papel preponderante.
Mais efervescentes - sobretudo Paris, tão amada pelos prole-
tários do século XI X -, elas oferecem possibilidades múltiplas , um
formidável alargamento de horizonte. Pois os jovens são ávidos ele
diversões. Apreciam todas as formas de teatro, que Percliguier ado-
ra, o café-concerto e o cinema, dos quais farão o sucesso. Mais preo-
cupados com seu corpo, freqüentam os banhos públicos; Saulnier
vai toda semana aos banhos quentes com seus companheiros; nos
li G IIIS H )R h l DOS .f01%YS

dias de sol, eles nadam e remam. Quanto ao esporte (palavra tardia),


preferem o boxe francês e a luta, mais do que a esgrima que prati-
cam os mais abastados (Norbert Truquin, por exemplo). No começo
do século >..'X, o boxe suscita um entusiasmo proporcional às espe-
ranças que faz nascer. IOI As modas mudam, mas se afirma um gos-
to crescente pela competição e o exercício físico. Mais ainda, em
seus quartos e em seus alojamentos, nos bares, nos cafés , os jovens
se reúnem para jogar bilhar, sobretudo cartas, para discutir ou sim-
plesmente beber juntos. No começo do século xx, surge o costu-
me dos passeios fora ela cidade, ele bicicleta, e em grupo.
O grupo é, tradicionalmente, o cadinho de uma sociabilicladc
juvenil intensa. Ele se forma segundo afinidades de ofício - os com.-
pagnons, nesse ponto, são ele um particularismo assustadiço que se
atenua com o tempo-, de bairro ou ele origem. Os jovens ele Le
Creusot, sensíveis ao "ponto ele honra" , põem-se a brigar nos salões
de esporte ou de baile, não suportando a zombaria que sua rustici-
dade às vezes suscita: "Jamais poderíamos nos resignar em ouvir os
apelidos insultantes dados aos pedreiros ela Creuse' ', diz Martin Na-
daud. Os contlitos, resolvidos nos meios intelectuais o u nas·classes
abastadas pelo duelo (que conhece um recrudescimento no século
XIX), se resolvem a socos, e coletivamente, entre grupos. "Hoje não
se poderia fazer uma idéia do quantO naquela época se prezava a
força. " 10 2 Há uma violência operária em que se misturam o gosto
ele liberar o corpo das coerções impostas pelos gestos elo trabalho
c o desejo ela proeza fís ica. As saídas ele baile, lugar de encontro dos
sexos, são também a ocasião de rixas pelas mulheres, disputadas co-
mo um terreno a conquistar.
Terreno mais importante que o ela política. Em geral, esta é um
assunto ele adultos, ainda mais que os limites de idade frequente-
mente excluem os jovens do voto, mesmo do sindicato. Ele"s se ma-
nifestam mais elo que se associam , em grupo na maioria elas vezes;
são ardentes nas barricadas, que a lenda lhes atribui muitO sistema-
ticamente. No entanto, é p reciso grandes acontecimentos para que
se mobilizem, com freqüência incertos. Norbert Truquin, em feve-
reiro de 1848, é em Paris um jovem espectador interessado, a revo-
lução não interrompendo o curso de sua vida ordinária e ele seus
prazeres. Em junho, porém, apóia os insurretos dos Ateliers Natio-
naux, que a Guarda Nacional móvel reprime. Esta é recrutada entre
os jovens desempregados . Os estudos ele Charles Tilly e ele Pierre
Caspard permitiram sólidas comparações sociológicas: a média ele
idade dos insurre tos levados aos tribunais é de 34 anos; a dos guar-
das móveis, 21 anos e meio, a metade tendo entre dezessete e ,·ime
anos. Nenhuma diferença profissional entre uns e outros, eles per-
tencem à mesma camada social. Em contrapartida, enquanto 63 %
dos guardas móveis nasceram na província c chegaram recentemente
a Paris, o inverso acontece com os insurretos. A idade, em suma,
conta menos q ue o grau ele integração, profissional, local e polí-
tica. 103
As vias ele politização são muito diversas. Muitas autObiografias
insistem na transmissão de um modelo famili ar republicano oriundo
da Revolução Francesa, invocam a influência ele alguém mais velho
- geralmente um irmão -, encontros, acima ele tudo amizades, lei-
turas ou discussões de café. Martin Naclaud fala do café Mom us, em
Paris, cujo dono é um velho soldado ela guarda imperial (o papel
dos oficiais de meio soldo na tradição o ral foi considerável): " Aquele
sopro revolucionário q ue respirávamos no café lVlo mus impedia de
perdermos a esperança de ver um dia a realização de nosso sonho,
is to é, o adventO da República" . 104 As sociedades secretas, como
as " casernas" ela Provença cuja influência subterrânea foi mostrada
por Maurice Agulhon , tos seduzem os jovens. A sociabilidade infor·
mal, predominante na primeira metade do século, lhes convém mais
que as o rganizações formais c hierarquizadas. Por conside rarem os
jovens como menores e subordinados, na maioria das vezes, sindi·
caros e partidos não favoreceram mui to sua integração (cf. Yolande
Cohen). !06 Daí sua atração, no início do século, pelos liben ários que
os acolhem melhor. A ousadia dos " bandidos trágicos" (por exem-
p lo, o Bando de Bonnot, cuja resistência desesperada ao assalto da
p olícia, e m 1912 , fascina as crianças pobres) 10 7 e até mesmo a in·
solência dos apacbes os seduzem.
Mas, aos vinte anos, o amor compete com a política.

DO LADO DAS MOÇAS: A jUVENTUDE DAS OPERÁRIAS

Mas as moças, onde estão? Como a infância, termo neutro, a


juventude é p ensada no masculino . Filantropos e pesquisadores fo·
ram, no entanto, sensíveis à p resença elas moças nas oficinas c mais
ainda nas fábricas, para deplorá-la, sobretudo sob o ângulo da mo·
ralidade . A prostituição - a parte extra ela jornada elas jovens ope·
rárias ele Reims (cf. Villermé) - ronda sempre as portas elas fábri·
118 HISTÓRIA fJOSJO I"t".V~

cas. Se operária é uma " palavra ímpia" (Michclct), ela o é ainda mais
para as jovens. Trata-se de protegê-las, de separá-las, inclusive de
subtraí-las, muito mais do que lhes dar uma identidade e uma for-
mação. Assim, a legislação (leis de 1874 e de 1892) cria uma catego-
ria: "as moças menores" (dezoito a 21 anos), rejeitada no que se
refere às adolescentes: " é proibido a estas ...", c nada mais. A dimen-
são da relação dos sexos é, no entanto, essencial. Como se constrói
o " gênero" na juventude operária?
Em primeiro lugar, na família. Há pouca segregação na primei-
ra infância: mesmos jogos, mesmos trabalhos. As menininhas parti-
cipam juntamente com seus irmãos das operações proto-industriais
ou manufatureiras, confundidas no elogio de uma destreza infantil
da qual se fará a seguir um apanágio das mulheres. A diferença co-
meça com as aprendizagens formais. Quer sejam escolares ou indus-
triais, estas excluem em grande parte as meninas. A escola é conside-
rada algo secundário para elas. O Estado faz pouco a esse respeito;
a lei Guizo t (1833) as esquece. A Igreja substitui o Estado. As meni-
nas pobres são confiadas às religiosas ou às clamas de caridade. Nes-
sas escolinhas, ensinam-lhes as o rações, a moral, a costura, os rudi-
mentos de uma instrução; preparam-nas para a comunhão, em geral
aos onze anos. A diferença de alfabetização entre garo tas e rapnes
é variável conforme as regiões, mas constante. 108 A Escola Ferry,
sejam quais forem seus objetivos políticos, realiza quase a igualda-
de; ela é p ouco diferenciada. A segregação se opera pela família, e
em primeiro lugar pela mãe.
A mãe, chave da transmissão elos papéis, ela memória, dos ges-
tos cotidianos, inicia as filhas em melo. Isso acontece como norma,
sem que sejam devidamente avaliadas as perturbações trazidas pela
sociedade industrial às antigas práticas, como a confecção do en-
xoval, essa " longa história entre mãe e filha" . 109 Na indústria do-
méstica, a mãe ensina às suas filhas os gestos do trabalho: é o que
acontece no fabrico ele malhas ele Troyes ou na passamanaria de
Saint-Étienne, onde as filhas sucedem às mães sem terem realmente
escolha. Essas aprendizagens não gozam de nenhum reconhecimento:
fala-se das "qualidades inatas" dessas meninas que nascem "com
uma agulha entre seus dedos de fada".
J\lais uma razão para que não lhes proporcionem uma qualifica-
ção particular. Isso as dispensa igualmente de entrar em aprendiza-
gem, a menos que se trate de pseudo-aprendizagens, pretexto para
uma exploração desavergonhada . 110 A pesquisa ela Câmara do Co-
A JUI'E.\Tl.'DE O PERÁRIA. DA OFICINA À FÁBRICA 119

mércio ele Paris, que em 1870-2 registra 8902 meninas contra 18127
rapazes, denuncia isso claramente. Os patrões, por meio ele contra-
tos ele longa duração, se asseguram ele mão-ele-obra barata; as poli-
cloras ele metais ou as cortadoras de diamantes são obrigadas a per-
manecer dos onze aos dezenove anos com os mesmos mestres, a
baixo preço, quando poderiam inteirar-se elo.ofício em dois ou três
anos. Ora as utilizam sistematicamente como domésticas: "Nas ofi-
cinas têxteis, as mestras de aprendizagem parecem[ ... ] ignorar a exis-
tência do artigo 8? da lei de 1851. Parecem tOmar aprendizes so-
bretudo para empreg<í-las nas tarefas domésticas ou em trabalhos
de qualquer natureza" .111 Noutros casos, a denominação de apren-
dizes dissimula um trabalho produtivo, aprendido em alguns me-
ses, ou mesmo em alguns dias, e a baixo custo: é o que acontece
com as torcedoras de fios ou as dobadeiras de seda de Lyon, cuja
sorte nada perdeu de sua dureza desde o século :>.'VIII. 112 Em 1877,
a jornada começa às sete da manhã e termina pela nove ou dez da
noite, com apenas três intervalos de meia hora. "Poucas dessas apren-
dizes sabem ler e escrever, e trabalham em oficinas malconserva-
das, onde as normas de higiene não são observadas e o ar não é su-
ficientemente renovado." 11 3 A alimentação e o lugar ele dormir são
medíocres. De modo que essas jovens vivem " num estado mórbi-
do" inquietante, expostas à tísica, ou tuberculose. A condição elas
moças aprendizes é pior que a dos rapazes , e agravada pelo fatO ele
não poderem se revoltar nem fugir. Não há turn over feminino. As
moças são fixadas em seu lugar pela vontade de todos, a começar
pelo pai.
Algumas brechas se abrem, no entanto, no ramo do desenho
ou ela moela e de seus ofícios. As operárias da costura - floristas,
plumistas, modistas, bordadeiras etc. - adquirem no trabalho ha-
bilidades requisitadas, base de um melhor salário e ele certo prestí-
gio. Jeanne Bouvier relatou seu périplo pelos ateliês ele costura pa-
risiense e as rupturas por meio elas quais acabou por se impor. 114
Mas o que é normal ou meritório para um rapaz é suspeito para uma
moça, que não deve ter ambição e geralmente terá que pagá-la ao
preço ela solidão ou da má reputação. A impertinente festa das Ca-
tarinetas adquire aqui todo o seu sentido.
É que as moças não são feitas para exercer o fícios, mas apenas
para realizar trabalhos provisórios, à espera elo casamento e da vida
doméstica, ideal do século xrx e do mundo operário. Por isso um
mercado ele emprego é restrito. Dois grandes setores: o serviço do-
110 11/ST<'IRIA DOS}OI'E.YS

méstico c a indústria de vestuário. O primeiro, cada vez mais femi-


nizado, cresce em razão do desenvo lvimento urbano. Para as jovens,
sobrewdo migrames, lrata-se de uma passagem praticamente obri-
gatória, que muitas famíl ias consideram como uma quase aprendi-
zagem, Elas são " colocadas", a partir elos treze-catorze anos, por
intermédio de conhecidos, do cura , de fam íl ias notáveis, primeiro
nas vizinhanças, depois cada vez mais longe, os salários urbanos sen-
do mais elevados. Assim, para as moças, conservou-se o life cycle
servant do Antigo Regime. Na verdade, ele está relacionado ames
ao campesina to que ao mundo operário, cada vez mais reticente dian-
te da servidão pessoal que o serviço doméstico implica. Um jovem
operário, ao chegar à cidade, pode querer viver com uma jovem
empregada séria, cujas economias lhe permitam pagar suas dívidas.
Mas não é certo que sua própria filha será doméstica. Na segunda
geração , as filhas de operário preferem a fábrica. ll5
O outro setor de emprego é a indústria de vestuário, que ocu-
pa cerca de três quartos elos efetivos femininos, e certamente ainda
mais de jovens operárias, que encontramos também ocupadas na
triagem do carvão na entrada das minas (os fotógrafos gostam de
seus lenços e seus rostinhos enegrecidos), nas fábricas ele açúcar,
nas papelarias, nas indústrias de pro dutos químicos, ele conservas
etc. , onde quer que as matérias-primas sejam moles, os instrumen-
tOS simples, as operações divididas e repetitivas. Mas a grande maioria
das jovens se encontra nas f~í.b ricas têxteis, onde formam, dos doze
aos 25 anos, o grosso da mão-de-obra, tendo garotos por auxiliares
e homens por chefes . Estes lhes dão o rdens, as importunam , outor-
gando-se com freqüência um "direito da primeira noite" como preço
de contratação. Em Amiens, onde as cerzidoras são objeco ''de tro-
cas complacentes" entre empregados de escritório, contramestres
e filhos de fabricantes, o prefeito baixa um decreto, em 1821, proi-
bindo "aos donos de fiação escolherem seus auxiliares entre jovens
de outro sexo que não o deles" . 116 Dadas as relações ele idade e de
poder, as jovens operárias eram vítimas preferenciais elos abusos e
das exigências lúbricas. No entanto, não podiam praticamente sequei-
xar, espremidas entre as vontades dos chefes e a complacência das
famílias, por muitO tempo indiferentes à sua sujeição sexual. Daí a
existência de boatos, rumores, mais que faros c inquéritos. A prin-
cípio silencioso, o movimento operário passou a denunciar cada vez
mais esses abusos e, no fmal do século XIX, a " lubricidade" dos con-
tramestres é um dos grandes remas dos jornais operários do Norte
A } U l'EiSTL'DF. OPF.RÃRIA. DA OFICISA A FÃBRJCA 121

têxtiL A questão do "direito ela primeira noite" está no centro da


grande greve elas operárias de porcelana de Limoges, em 1905, fei-
ta contra o diretor, amante ele "carne fresca". Marie-Vicroire Lo uis
realizou, sobre esses aspectOs desconhecidos, uma pesquisa de gran-
de amplitucle 11 7 que sublinha o quanto a sujeição das mulheres -
e das jovens, que ela raramente distingue por serem pouco identifi-
cadas - passava pela dominação de seus corpos.
Quanto aos moralistas, eles não se detêm muito nessa explora-
ção sexual e denunciam bem mais os perigos ela promiscuidade e
ela devassidão intra-operárias. Para alguns, a visão das fábr icas co-
mo grandes lupanares é uma obsessão. A solução? Uma segregação
total, e até mesmo uma clausura completa. Três modelos se ofere-
cem então. Primeiro, a velha tradição elas oficinas-ateliês mantidas
por damas ele caridade ou religiosas. Em Paris, em 1879, 3760 mo-
ças de doze a 21 anos debruam assim, durante doze horas por dia,
panos ele prato e lenços para congregações. 11 8 No interior, o papel
de religiosas ou semi-religiosas como as beatas é ainda mais consi-
derável; em 1853, mil delas preparam para trabalhos ele renda mo-
ças elo alto Loire e a seguir as empregam, para a satisfação geral, ao
que parece. Segundo tipo: os orfanatos ou casas de correção de mo-
ças para lá enviadas pelos tribunais ou por suas famílias, às vezes
chamadas "arrependidas" (ex-prostitutas, com freqüência), adminis-
tradas pelo Bom PastOr, com uma vontade expiatória que passa por
uma severa disciplina e um trabalho constante e sem ganho; trata-
se de uma forte concorrência para as operárias " livres" , que muitas
vezes protestaram contra os conventos-oficinas, especialmente em
1848, quando vários deles foram incendiados no Loire. Terceiro ti-
po, enfim: o da fábrica-internatO implantada por volta de 1830 em
Lowell para as filhas de fazendeiros do Massachusetts por industriais
de Boston. 119 Essas jovens têm de dezessete a 24 anos; ganham sa-
lários elevados, fazem um dore e se casam facilmente. Lowell, por
outro lado, é um sistema completo que pretende controlar a totali-
dade da vida elas jovens: trabalho , lazer, prece, distrações as mais
diversas etc., com uma preocupação moral evidente. "Elas estão sob
a proteção ela fé pública." A organização fascinou os observadores;
o saint-simoniano Michel Chevalier a descreveu longamente em suas
Lettres sur l 'Arnérique du Nord [Cartas sobre a América elo Norte],
embora com reservas quanto ao '·'pudor anglo-americano", " o as-
pectO de tristeza e de tédio " que se vê nessa colméia industriaL Duc-
pétiaux, ao contrário, enalteceo espetáculo idílico ele " 5 mil dessas
122 HISTÓRIA LJOS jOVENS

jovens, todas vestidas de branco e portando guarda-sóis de seda ver-


de", acolhendo em procissão o presidente Jackson . Ele se ex tasia
diante da " boa aparência, do ar de saúde c de contentamento das
operárias dessas fábricas" . 120 O sistema foi importado para o Lyon-
nais, na França, em 1836, primeiro em Jujurieux (Ain), depois aos
poucos em tOdo o Sudeste elo Ródano e das Cevenas. Calcula-se em
100 mil o número de moças incorporadas a esses estabelecimentos
em seu apogeu . Os pais, camponeses na maior pane, estabelecem
com o patrão um contrato ele três anos e meio e devem pagar uma
multa de cinqüenta centavos por dia (taxa de 1890) em caso ele rup-
tura. As fábricas alojam as operárias em dormitórios abarrotados,
dão-lhes comida (freqüentemente elas trazem provisões de casa pa-
ra economizar) e as vigiam . A supervisão técnica é feita pelas con-
tramestres leigas; a material e moral, por religiosas , que para essa
finalidade fundaram ordens especiais. Como existe uma capela no
interior ela fábrica, as jovens não saem de seus limites. O trabalho
efetua-se sob o crucifixo, sendo ritmado por preces ou cânticos (even-
tualmente as jovens operárias tentam introduzir outras canções). A
higiene deixa muito a desejar e os castigos corporais persistem, co-
mo num internatO religioso e, por isso, as controvérsias cada vez
maiores em relação a esses estabelecimentos. Elogiados por pessoas
tão diversas como o jornalista Louis Reybaud, os partidários da Es-
cola de Le Play e o liberal Paul Leroy-Beaulieu, 121 são criticados pe-
los republicanos radicais, que denunciam o domínio ela Igreja. Após
1892, os inspetores de trabalho, " fuzileiros" da República, os com-
batem.122 Greves freqüentes irrompem dentro deles, cada vez mais
apoiadas de fora; elas revelam à opinião pública o arcaísmo de um
sistema que não obstante subsistirá, um tanto laicizado, até os anos
1930, enquanto as famíl ias rurais lhe forem favoráveis. "Feliz um
camponês que tem filhas", dizia-se no Bugey; " graças a elas, paga
suas dívidas e compra terras." Afinal ele contas, o queimpressiona
é o aspecto disciplinar e moral do trabalho elas moças, o papel atri-
buído ao corpo, o tabu da sexualiclacle, a força dos controles. O que
decididamente as distingue de seus irmãos é a ausência de liberdade.
Tanto ou mais que os rapazes, as jovens estavam excluídas da
vida pública. Para elas, nada ele sindicato, já de difícil acesso para
suas mães. MuitO menos de greve. No entanto, elas realizaram algu-
mas, inclusive mais visíveis que as dos rapazes em razão de sua con-
cenu·ação, especialmente na indústria da seda do Sudeste. A greve
A }LTE.\TCDt OPER.~RIA DA OFICI.\'A À fÁIJRI CA 12]

elas torcedoras ele fios de Lyon (1869) põe em cena moças muito
jovens, muitas.delas italianas, que os patrões despedem sumariamen-
te; elas acampam nas ruas, junto com suas malas. Sua líder, Philo-
mene Rosalic Rozan, que desfila pelas ruas de Lyon brandindo um
bastão como uma espada, é por um momento conejada pela Pri-
meira Internacional; pensou-se em enviá-la como delegada ao con-
gresso da Basiléia, o que teria sido uma grande novidade, j~í que os
congressos, lugares por excelência de discursos e representações pú-
blicas, eram masculinos. Mas isso não aconteceu. 123 Outra figura de
líder é Lucic Baud, que deixou um raro testemunho autobiográfico
sobre a condição elas operárias ela indústria da seda c a greve de Vi-
zille (1905). Expressão ele uma mão-de-obra juvenil, a maior parte
elas líderes de greve eram moças muito jovens; entre 1871 c 1890,
42% delas têm de quinze a 24 anos (segundo as fichas ela polícia).
A juventude das operárias dá um co lo rido espécial a suas manifesta-
ções: elas formam bandos, às vezes faràndolas, agitam bandeiras, can-
tam, geralmente a Marselbesa, mas também canções sentimentais
nos comícios, e dançam . Assim. finge-se não levar a sério suas "gaia-
tices", trarando-as, se necessário, co m uma indulgência divertida o u
um moralismo sentencioso. No caso ele raparigas, suspeita-se sem-
pre de seus hábitos, põe-se em questão sua virtude. Juntemos a isso
a reprovação das famíli as que temem a ruptura dos contratos. Tudo
isso torna difícil a sustentação e o êxito dessas greves juvenis que
na maioria das vezes terminam sem resultado. É possível, porém-
disto há testemunhos mais contemporâneos -, que a greve tenha
deixado nessas vidas cinzentas um gosto de audácia, um sabor de
prazer, um ar ele festa.
Encontramos essa mesma coloração moral em todas as formas
de enquadramentO para moças: o ensino de atividades domésticas,
em que alguns- Émile Cheysson, por exemplo, eminente estatísti-
co, discípu lo deLe Play - vêem um meio ele melhorar o serviço
doméstico, como se este fosse sempre o único futuro profissional
das jovens das classes populares. Delineiam-se porém outras formas,
do lado do setor terciário que, já antes de 191 4, se feminiza. Datiló-
grafa, funcionária elos Correios, professora, enfermeira, parteira ...
projetam novas identidades. As famíli as populares gostariam de ter
acesso a elas: em Saim-Érienne, as escolas profissionais não podem
acolher todas as candidatas, geralmente filhas ele comerciantes de
passamanarias, e as famílias criticam a importância excessiva dada
aos trabalhos manuais. Mas, para as filhas ele operários, tornar-se pro-
I 24 msr6Rt,l nos JOI"t:ss

fessora era um sonho, ainda irrealizável , e recalcado, como mostram


redações feitas em 1877 para o certificado de estudos em dois ar-
rondissements parisienses. "Queria ter sido professora, mas meus
pais se opuseram", ou: " mas preciso trabalhar", ou ainda: "meu pai
não quer" . 12 -l Com o tempo, e~~as ambições inusitadas ganharão al-
guma consistência, mas ainda é muito cedo .
Em suma, as jovens da classe operária acumulam todas as des-
vantagens, sociais e sexuais. Para elas, é particularmente difícil trans-
formar sua destinação em destino. A migração, com todos os seus
riscos, é uma das raras escapatórias possíveis. A classe operária não
é um lugar privilegiado de emancipação das jovens. Sua identidade
coletiva se baseia numa rigorosa separação elos papéis sexuais, nu-
ma simbologia viril, no poder do pai. O entreguerras irá valorizar
o jovem herói, figura - por exemplo - do comunista conquista-
dor. As jovens continuarão sendo suas companheiras à sombra.

AMAR

"Aos dezenove anos pensávamós menos nas lutas políticas que


nos prazeres, e juntos nos entregamos seguidamente a eles' ', escre-
ve]ean-Baptiste Dumay. " Tive nessa região algumas aventuras amo-
rosas corno as tiveram todos os jovens da mesma idade, aventuras
que não vêm ao caso neste relato." l2; Não saberemos mais que is-
so . Da educação sentimental, e principalmente sexual, elos jov<.:ns
operários c op<.:rárias, q uase nada sabemos. Imaginada pelos obser-
vadores, ela é omitida pelos autobiógrafos que, sobretudo na Fran-
ça, consideram que o privado clcv<.: permanecer oculto.
Rapazes <.: moças, cada vez mais separados, vivem a princípio
entre si, dentro elas fronteiras de seu sexo. Tem relações de camara-
dagem e amizade, mais visíveis para os jo,·ens porque elas se mani-
festam no trabalho e na cidade, no café, no bairro, nos tumultos,
nas manifestações de todo tipo; mais ocultas para as moças, muito
mais solitárias, ainda que não devam ser subestimadas as conivên-
cias e solidariedades femininas que, na maioria das vezes, nos esca-
pam. Da homossexualidade, masculina ou feminina, sabemos me-
nos ainda, a não ser por uma alusão pudica de Agricol Perdigui<.:r,
que parece sugeri-Ia entre os jovens aprendizes marceneiros, ele pró-
prio apresentando-se como um modelo de castidade.
A j(rti.\Tl"DE 0/'t'H.ÚU.I D.l Ol'/Cf.\:1 .~ fAfJN/CI 115

Os encontros entre rapazes e moças não eram muito facilitados


por essa segregação, especialmente na cidade, onde já se esboça a
"multidão solitária" contemporânea. 12 6 Ora, o casamento tardio
criava um longo tempo de liberdade sexual, tanto mais problemáti-
ca pelo faro de a contracepção só existir de maneira rudimentar, o
"prestar atenção " do coitO interrompido q ue supõe autocontrole
e preocupação com o outro . Nem todos tinham os escrúp ulos de
Agricol Perdiguier. "Não podia me emregar às mulheres perdidas
que eu não amava, não queria enganar a jovem Sophie, essa amiga
tão doce, tão terna , e lançá-la na miséria, na desonra, por culpa ele
meu amor. Seduzir uma jovem com belas promessas, com juras ele
fidelidade sem fim, torná-la mãe, abandoná-la em seguida, lançar a
aflição e o desespero em sua familia, romper-lhe o coração, matá-
la, assassiná-la, não estava em meus princípios, em meu caráter. Eu
amava, cu ardia, cu sofria, era violentado, sacudido, puxado em di-
reções opostas por minha paixão e minha consciência ." Mas " não
queria me ligar, não queria me fixar fo ra de minha terra natal" . 127 '
Essas angústias de um jo,·cm migra me, quantos as terão sentido ...
Os jovens não dispunham de muitO dinheiro para freqüentar
o bordel, que tinha no entanto uma clientela popular.t 2s Martin Na-
daud, que se casará em sua aldeia, em 1839, aos 24 anos, e relata
longamente seu noivado e seu casamemo, dá a entender que em
Paris seus companheiros recorriam a ele. O intercâmbio sexual po-
dia ser muito mais breve o u limitado. Os jovens operários certamente
não haviam esquecido as práticas dos "amores camponeses", 12\! que
as granjas e os bosques tornam mais fáceis. O espaço urbano com-
plica os gestos elo amor, pelo receio de ser surpreendido e então
tachado de libertinagem vergonhosa. Em Sedan, "as relações ilíci-
tas entre jovens dos dois sexos são infelizmente bastante co muns.
Para fazer cessá-las, ou ao menos diminuir sua freqüência, bastaria
certamente estender à libertinagem os meios empregados contra a
embriaguez" , escreve Ducpétiaux, que se espanta com a licenciosi-
dade dos jo vens trabalhadores ingleses: " H ~í cabarés com quartos
para anele sobem rapazes e moças dois a dois; geralmente o comér-
cio dos sexos começa aos catorze ou quinze anos" . 15°
Ser pensionista numa casa particular, prática comum dos compa-
gnons do Tou r de France (a dona da casa oferece-lhes hospedagem)
e de seus homólogos em viagem, também possibil itava freqüente-
mente cortejar a mulher ou a filha - Dumay clé1 muita importância
126 IIISTÓRIA [)OS./Ol'é'SS

à cara de suas hospedeiras - e às vezes partilhar seu leito. Por essa


razão, os pensionistas eram o terror dos moralistas.
Morar em quarto alugado, solução mais onerosa, permitia mais
liberdade. Eugene Varlin, encaclernador, homem muito engenho-
so, imagino u uma cooperativa diferente: partilhava um alojamento
com seis colegas e uma mulher que cuidava ela roupa e do sexo,
ora partilhando seu leito com um, ora com outro. 13 1 Certamente
ele estava convencido de estar na vanguarda do amor livre! Jovens
operárias adotavam também a solução do quarto alugado. jeanne
Bouvier exprimiu sua alegria por ter finalmente um quarto; no sexto
anelar de um prédio parisiense. 1 32 O quarto ele Gervaise, em L 'as-
somoir [A taberna] (Zola), é o símbolo de uma viela nova. 133 Mobiliá-
lo por conta própria é um signo suplementar de liberdade. Mas, pa-
ra as jovens, viver sozinha é sempre arriscado. Todo intercârribio
sexual, ocasional ou temporário, assemelha-se à prostituição, aos
olhos da vizinhança. A polícia persegue as "clandestinas" , procu-
rando transformá-las em profissionais " de carteira", mais fáceis de
controlar: caso exemplar de gestão dos " ilegalismos populares" . 134
Os jovens, assim que podem, saem ele casa, a despeito da resis-
tência da família que perde o salário deles . Todos os testemunhos
recolhidos pelo inquérito parlamentar de 1872 o confirmam. Nas
fábricas de Lavoulte (Garcl), " muitos, ao passarem a receber salá-
rios, deixam sua casa e vão morar em pensão como fariam solteiros
estrangeiros" . Na indústria têxtil da Picardia (região de Amiens),
vêem-se freqüentemente rapazes e inclus ive moças, ele dezesseis a
dezessete anos, instalarem-se "em quartos alugados " c não darem
mais dinheiro aos pais. !35 Permanecem solteiros. É a norma para am-
bos os sexos. Em La Croix-Rousse, pesquisada por Yves Lequin, em
1851 , antes elos vinte anos, o casamento é excepcional; entre vinte
e 24 anos, a quase totalidade dos jovens não se ca.sou, e a grande
maioria das moças permanece solteira; e esse é ainda o caso de cer-
ca da metade dos homens entre 25 e 29 anos. 136
Resta "a incógnita da concubinagem". Convém certamente não
exagerá-la; não poderíamos confiar inteiramente nos dados reun i-
dos pela Sociedade Saint-François Régis, necessariamente seletivos,
uma ,·ez que ela se dedica à regularização das uniõ es ilegítimas. W
Todavia, a prática era bastante difundida, ao que parece. Em Saint-
Quentin, "muitos. e são talvez os menos liberrinos, vivem juntos
publicamente, como se fossem casados"; o casamento, aliás, costu-
ma ocorrer depois, não havendo senão 25% de nascimentos ilegíti-
A }UVJ::NTU/JE OPERÁRIA . f)A OFICINA /j FÁBRICA J2 7

mos. 138 O que é confirmado por numerosos observadores e pelo ex-


celente estudo de Michel Frey; 139 em Paris, os bairros operários são
os que têm o maior índice de concubinagem, este podendo chegar
a 472 em mil habitantes e abrangendo mais ela quarta parte elos casais.
Será que se deve ver, nessa generalização atestada da concubi-
nagem, uma forma de " civilização popular" (Louis Chevalier) ou de
amor romântico c ele liberação da juventude (Edward Shortcr)? 140
Certamente não. Michel Frey mostra, por um lado, que não se trata
ele uma prática especificamente operária , e sim mais amplamente
pequeno-burguesa ou mesmo burguesa; por outro lado, trata-se com
freqüência da menos pior das soluções, uma prática de espera do
casamento que, no mundo operário sobretudo , continua sendo a
solução normal e desejada. A "concubinagem é um tempo de con-
vívio que conduz ao casamento " .141 Especialmente para as mulhe-
res, que no mercado matrimonial se encomram sempre em posição
ele inferioridade, correndo o risco de ficar sozinhas com um ou vá-
rios filhos. A desigualdade das relações entre os sexos, reforçada pelo
afrouxamentO elas normas aldeãs e pelas disposições elo Código Ci-
vil que proíbe a partir de então a busca de paternidade, normal no
Antigo Regime, 142 faz com que a liberdade sexual seja antes de tu-
do a cios homens.
Muitas foram as jovens seduzidas e abandonadas, as jovens mães
que tiveram de assumir sozinhas o fruto de amores ilegítimos. E se
as domésticas formam o maior contingente na maternidade de Pa-
ris, ali se encontram também numerosas jovens operárias abando-
nadas por seus companheiros. Eis aqui, por exemplo, a história de
Ernestine Pallet, levada aos tribunais por ter estrangulado seu bebê,
após ter sido abandonada. Filha natural ela própria, mas amparada
por uma tia vigilante, Ernestine fora colocada em aprendizagem elos
doze aos dezesseis anos junto a um policlor ele metais . Aos dezes-
seis anos conheceu um operário, Eugene Legault, de 22 anos, rude
c beberrão, mas por quem ela se apaixonou. Apesar.das objurga-
ções da tia, vai morar com ele em Belleville num quarto mobiliado.
Um ano mais tarde, engravida; dá à luz um menino que ela própria
amamenta; gostaria ele se casar, mas Eugêne recusa, rouba as econo-
mias dela e parte. Por isso, concedem a esse infanticídio circunstân-
cias atenuantes, condenando-a a cinco anos ele prisão em 1881. 143
A crônica judiciária está repleta de faros como esse. A moral popu-
lar, por sua vez, não condenava, nem a concubinagem nem as jo-
vens mães, que freqüentemente eram auxiliadas pelas próprias mães,
/28 11/~J ÔRI.~ DOS.JOI 't ".\S

ou até pela família elo rapaz sedutor, sobretudo quando este não havia
feito o serviço militar. Havia certa reprovação, feminina sobretu-
do, em relação ao pai que não cumpria seus deveres. A mãe ele Amé-
clée, jovem operário do início do século, obriga seu filho a casar
com a moça que engraviclou, a despeito da forte resistência elo ra-
paz.1'-~-1 De resto, ao longo do século, o índice de nascimentos ile-
gítimos não cessa de baixar e o das regularizações de crescer. Con-
trariamente a isso, alguns p ais podiam se opor a tais regularizaçôes,
assim como a uniões, por motivos econômicos ou de estima social.
As famílias operárias, em sua penúria, têm também estratégias ma-
trimoniais. Muitos casamentos buscavam condições vantajosas e es-
táveis.
As relações amorosas também podem acabar em violência. As
jovens das classes operárias são as principais vítimas dos crimes pas-
sionais cometidos pelos parceiros que não suportam sua liberdade
de compo rtamento e sua reivindicação do prazer. 14 S As jovens ope-
rárias têm acesso aos jogos do amor, a grande aventura dos tempos
modernos, arrastando consigo seus companheiros.
Assim, coerção e liberdade atravessam a juventude operária no
século XIX . A disciplina do trabalho torna-se mais pesada, acompa-
nhada de normatizações de todo tipo. Mas crises múltiplas, ruptu-
ras diversas, migraçôes etc. favo recem uma conquista de autono-
mia, mascu lina sobretUdo. Os jovens tendem a libe rtar-se, a indivi-
dualizar-se. De resto, no início do século xx, o aparecimento de uma
juventude libertária causa inquietação, como também a agitação con-
tra o serviço militar, os bandos de jovens que se tornam mais visí-
veis, o aumento da delinqüência juvenil, as revoltas das casas ele cor-
reção. Já se esboçam algumas soluções tímidas que posteriormente
se desenvolverão em movimentos e políticas da juventudc.t-16 A
questão ela infância, pensa-se, está resolvida; a da juventude come-
ça. O século xx far<i dela um problema, um campo de intervenção,
uma entidade.
No século XIX não encontramos a juventude operária. Entretan-
tO, nos deparamos com jovens operários .

.VOTAS

(i) jcan-jacques Rousseau, É111ile {lino 4, "Paris, Gallimard, Bibliothêque de


la Pléiade). p. 489.
A jtTE,\ TCDE OPER.iRIA D.-1 OFIOSA À f ÁBRICA 129

(2) M. Fo ucault, La volonté de scwoir (Paris, Gallimard , 19- 6). p. ·10


(3) C. Duprat, ' ' Le temps d es philamhropes. La philamhropie parisicnne. d cs
Lumi~res à la .1-lonarchie dejuillet. Pe nsée et action··. tese de d outOrado, sob a orien-
tação de Maurice Agulhon (Paris 1, 199 1), t. 5 " Action sociale. Comrô1e social'', es-
pecialme nte ca p . 1, " La famillc mcnac~e ", pp. 1217-3 15; cap. 2, " Pa tronage", pp.
13 15-429 trata-se de uma autê ntica m ina de informações.
~
(4) J. Sirno n , L 'ouvrier de bttit a11s (Paris, Lib rairie Internatio nale, 1867). o.
(5) Eclo uarcl Ducpétiaux, De la condition pbysique et mora /e des j em 1es ou- 'l.1.o

vriers er des moyens de l 'am éliorer (Bruxelas, ~l él ine Cans et Compagnie, 1843), :J
2 vo ls., 444 e 423 p p .; v . 1, p. 36.
-~
'
(6) Citado po r C. Duprat, o p . ciL ; 1. 5. p . 1334.
(7) Citad o por M. I'oucault, Surveiller e1punir. Saissance de la p rison (Paris, ""'
.:::::
Galli mard, 1975), p . 297, segundo La Ga:eue des Tribunaux (agosto de 1840). -,
(8) .\I. Perrot , " Dans Je Paris de la Belle Époque: les Apaches, premiêres ban - : ..--'
des de jeun es", Cabie1·s ]ussieu 5 (prim:J\'e ra de 19- 9), Les marginau.\· et /es exclus u
~

de l 'bistoire (Paris, t:GF., 10/18). -=-


{ ;;
(9) ]. Guillais-Maury, " 1mages de 1:1 griscue", in A. Farge & C. Klapisch-Zuber -J
(edit.), Madame ou mademoiselle? ltinéraires de la solitude féminine, J /f·2~ siecles u.J
(Paris, Montalba, 1984). ' ,.-.
i--
J
( IO) J.·J. Yvorel, " Drogues et dro gués :JU xtxe s iecle " , tese (Paris vu, 199 1),
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a se r publicad o.
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( I I) J. Ra nciere, Courts myages au p ay s du peuple (Par is, Lc Seuil, 1990),
p . 11 6.
( 12) M. Bethlenfalvay, Les L'isages de l'enjant dans la liltérature j rançaise
du X /XC! siixle. Esquisse d'une typo!ogie (Genebra, Droz, 1979).
( 13)).-P. Aron, P. Dumo nt. E. Le Ro y Ladurie, Anlb,·opologie du conscril fran -
çais (Paris, Colin, 1972).
(14) W. Colcman, Deatb is a social disease (Madison, \X'isco nsin, I 982); C.
lleywood, Cl.iildbood in nineteerub celllury France. ll7ork, healtb and education
among tbe ' 'classes populaires " (Cambridgc University Press, 1988), es pecialmen-
te pp. 84, 151 -64.
( I 5) L.· R. Villermé, Tableau de l'élat pbysique et moral des ouvriers emplo-
yés dans les manujactures de coton, de laine et de soie (Paris, ]. Rc no uard, 1840
2 vo1s.; rccd. integral, Paris, F.DIS, I 99 1).
( 16) Ducpétiaux, op. cit.
( 17) Sobre esses aspecw s. ver ~I. Pcrro t, ' 'Vies ouvrieres", in Lieux de mé-
moire, Pic rrc Nora (edit.), t. 3, Les France, \' OI. 3 (Paris, 1993, Ga llimard).
( 18) N. Truquin, Mémoires et aventures d 'un prolétaire à trat•ers la rét'ofu·
tion. L 'Algérie, la république argentina et le Paraguay (Paris, l.ibrairi e dcs Deux-
Mo ndes, F. Bou riand edit., 1888). Ve r M. Pe rrot, " A n inctcenth centur y wo rk ex-
pe rience as relatcd in a worker's auwh iograph y: Norbcn Truq uin ", in Work in
Frcm ce, S. L. Kaplan & C.) . Koe pp (edit.) (Cornell Uni versity Press, lthaca-Londres,
1986), pp. 297-317.
( 19) R. Michaud, ]'avais vingt tllls. Un jeune ouvríer au début du si~cle (Pa-
ris, Éditio ns Synd icalistes, 1967), p. 39.
(20) P. Pierrard, Enjants el jeunes ouvriers en France (XIX.C-xxesi~cle) (Pa-
ris. Éditions O u\·rie res, 1987 p p. 183 e ss.; Jean Dclumeau, La Prem lere Commu-
nion. Quatre siecles d 'bisloire (Paris, Desclée de Bro uwer, 1987).
1]0 11/STÓR/A DOS JOI1E.\'S

(21) J. Caroux-Destray, Un couple ouvrier traditionel. La vieille garde allfO·


gestionnaire (Paris, Anthropos, 1974), p. 48.
(22) P. Pierrard, op. cit., p. 184.
(23) Em 1880, mesma fonte, p. 184.
(24) L. Vandcrwielen, Lise du Piai Pays (Lille, Presscs Universimirc::s, 1983),
p. 38
(25) C. llcywood, op. cit., p . 138.
(26) Instituído em 1866 por Vicror Duruy, ministro da Instrução Pública, o
certificado de estudos fo i o rganizado por Octavc Gréa rd no departame nto do Scna
em 1868, introduzido em 1878 em 83 deparramentos e oficializado por Jules Ferry
em 28 de março de 1882. ·
(27) V. Viet, "Aux o rigines de l'Inspection du Travail au xxe sicclc. L' tnspcc-
tion de 1892 à 1914'', doutOrado, lnstitut d'Étudcs Politiqucs de Paris, 1992, 900
pp.; nume rosíssimas informações a esse respeito e, de manei ra geral, sobre a condi·
ção dos jovens oper<írios.
(28) /\. Goblot, La barriere et te nir;eau (1925, reed., Paris, PUf, 1967).
(29) V . Vi<::t, op. cit., 1, p . 226.
(30) Ducpétiaux, op. cit.; n, p. 45.
(3 1) Ducpétiaux, op. cit.; 11, p. 19: trat~t·SC de um inquéritO administrativo para
preparar o projeto de lei sobre o trabalho das c rianças (1 H4 1); na questão 4, fala-se
explicitamente dos "adolescentes".
(32) Les ouvriers des deux-mondes, t. 4, monografia n'? 36, feita em 1862; lc::m·
bremos que Frédéric Le Play foi o iniciador dessas pesquisas familiares publicadas
em Yárias séries: Les ouvriers européens, Les ouvriers des deux-mondes, segundo
um questionário unificado que girava sobretudo em torno do orçamento, que su·
postamente revelaria os hábitos de uma fam ília. Essas monografias são minas de in·
formações, especialmente para o rema que nos interessa, a Escola de Lc Play dando
uma extrema importância aos modos de re lações familiares.
(33)).·13. Dumay, 1\llémo.ires d'un militant outJrier du Creusot (184 1· 1.905) (Pa·
ris, Maspéro, 1976), pp. 84-S; trata-se ela prim<::ira edição integral dessas mc::mórias.
(34) A. Perdiguicr, Mémoires d'u11 compagnon (1855, 2 " ed., Moulins, Cahiers
du Centre, 1914 [a que citamos]), p. 95. Assinalamos a 3~ ed. integral, apresentada
po r .\laurice Agulhon, Paris, Imprimcrie Nationalc, col. "Actcurs de l'Histoire", 1992.
(35) Jd., p. 263.
(36) ld., p. 332.
(37) C. llcywood, o p . cit.; pp. 148 e ss.
(38) ~1.-V. Gau thier, Cbanson, socictbilité et grivoiserie au X!Xe siecle (Paris,
Aubier, 1992).
(39) A. van Gennep, Manuel defolklorefrançais contemporain (Paris, Picarei),
9 \'Ois., 19-43-58, especialmente t. I; Michel 13own, Les conscrits (Paris, 1981).
(-lO) Y. Cohen, Lesjeunes, /e socialisme et la guerre. Histoire des moul/emems
de jeunesse en France, prefácio de ,\ ladelcine Rebério ux (Paris, L'Harmattan, 1989).
p. 33 para essa citação e o conjunto de seu estudo sobre insubmissão, amimilitaris·
mo e ju\'cntude.
(..;I ) Y. \ 'erdicr. Façons de dire, façons de f a ire. La laveuse, la couturiere
la cuisiniere (Paris, Gallimard, 1979).
A jliVF.STUDE OPERÁRIA. DA OFICINA À FÁBRICA 13 I

(42) A. ~onjaret, "La Salnre-Cathcrine à Paris de la fin du x1xe siecle à nos


jours. Ethnographie d'une fcte urbaine et professionelle", 2 tomos, 600 pp., tese
(Paris x, Nanterre, 1992).
(43) M. Segalen, Sociologie de lafamílle (Paris, Colin, 1981), p. I 09: esses da-
dos constituem uma média para o conjunto da França e não se aplicam particular-
mente aos operários.
(44) A. Burguiere et alii (edit.), Ilistoire de la Jamil/e, v. 11, Le cboc das mo-
dernttés (Paris, Armand Colin, 1986); P. Ariês & G. Duby (edit.), Histoire de la vie
privé, r. 4, Le X /Xe siecle, sob a direção de M. Perrot (Paris, Le Seuil, 1987).
(45) Ver, por exemplo, 11. Medick, "The proto-indusrrial family economy",
Social llistory 3 (1976).
(46) S. Grafteaux, Mémé Santerre. ~-ne t'ie (Paris, ~larabout, 1975).
(47) S. Kropotkin, Cbamps, usinas et ateliers (Paris, 1910).
(48) M. Dubcsset & M. Zancarini-Foumel, "Parcours de fcmrnes. Réalit.és ct
représcntations. Saint-Éticnne (1880-1950)", tese (Cniversidade de Lyon n-Lumiere,
1988), especialmente a segunda parte, "Le fil du métier. Les rapports entre lesse-
xes dans la ruhannerie stéphanoise".
(49)]. Vallerant, "Savoir-faire et idenúté SOCial e", Etbnologie Française 12 (abril-
junho de 1982): o exemplo das endogamias técnicas do Sudeste da França.
(50) W. ti. Sewell, Gens de métier et révolutions. Le langage du travail de
I'Ancien Régime à 1848 (Paris, Aubier, 1983), p. 236, trad. do inglc?s, \Vork and
revolution in France (Cambridge t..:ni\·ersiry Press, 1980).
(51) M. Pigenet, Les ouvriers du Cber ([in XV/1~- 1914). Travail, espace et
conscience sociale (Institut CGT d'Histoire Sociale, Paris, 1990), p. 80.
(52) Id., p. 89.
(53) Id., p. 43 .
(51) M. Chabot, L 'escarbille. H isto ire d'Eugene Saulnier, ouv1·ier verrier, pos-
fácio de Madeleine Rebérioux (Paris, Presses de la Renaissance, 1978).
(55) Archives Nationales (A. N.), F12, 483 1, Pesquisa do Ministério da Agri-
cultura e do Comércio junto aos Conselhos de juízes de Trabalho sobre a aprendi-
zagem, novembro de 1877; pesquisa feita a pedido do embaixador alemão na Fran-
ça, final de 1876; essa pesquisa contém uín grande número de informações inéditas.
(56) Y. Lequin, Les ouvriers de la région lyonnaise (1 848-1914), Prcsses Uni-
versitaircs de Lyon, 1977,2 vols., 1, p. 89; sobre o conjunto desses problemas, cf.
cap. 5, " La naissance et le métier", pp. 205-38.
(57) Além dos trabalhos de Y. Lequin, citados, ver J. Scott, Les verriers de Car-
maux. Histoire de la naissance d'un syndicalisme (Paris, Flarnmarion, 1982), trad.
ing., The gfassworkers of Carmaux. Crafstmen and political action in a nineteenth
century city (Harvard University Press, 1974).
(58) C. Heywood, op. cit., p. 137.
(59) A. N. Fl 2 4831 , pesquisa.
(60) B. Matréi, Rebelle, rebelle! Révoltes et mythes du minettr (1830-1946) (Seys-
sel, Charnp Vallon, 1987).
(61) R. Trempé, Les mineurs de Carmaux, 1848-1914 (Paris, Ediúons Ouvrieres,
1971, 2 vols.); Murard et Patrick Zylberman, Le petit trauailleur infatigable ou le
prolétaire régénéré (Recherches, Paris, 1976).
132 HISTÓRIA DOS JOVENS

(62)]. Michel, "Le mouvcment ouvrier che7.1es mincurs d'Europe occidenta-


le (Grande-Bretagne, Belgique, France, Allemagne). Étude comparative des années
1880-1914" (tese de doutorado, Universidade de Lyon 11, 1987), especialmente a
primeira parte, "Un monde se crée" .
(63) C. Heywood, op. cit.; e a tese de Y. Tyl, "Le travail des enfants au xrxe
siecle. Une région: I'Alsace. Un métier: la verrerie" (Universidade Paris Vli, 1987),
especialmente a quarta parte, "Régression au travail des enfants", pp. 632-795.
(64)]. Allemane, cit. por S. F rance Reynolds, " Biograph ie de Jean Ali emane"
tese, Universidade Paris Vli, 1978.
(65) C. Heywood, op. cit., p . 186, nota 5.
(66) Hístoíre de la famílle , op. cit.; 11 , pp. 42 e ss.
(67) Trata-se de personagens de M. Proust in À la recherche du temps perdu.
(68) E. Ducpétiaux, op. cit., li, cap. 6, "De J'organisation de l'apprentissage".
(69)]. Simon, L 'ouvrier de huit ans (Paris, 1867), apresenta o texto ela lei de
4 de março de 185 1; sobre as fortes críticas de Jules Simon, ver pp. 222 e ss.
(70) A. N. F12 4831, pesquisa citada.
(71) Gilland, "Les aventures surprenants du petit Guillaume du Mont-Cel",
em Les conteurs ouvríers (Paris, 1849), p. 229.
(72) Id., p. 230.
(73) P. Pierrard, op. cit., p . 72; segundo a Gazette des Tribunaux ele 29 de
junho de 1841 .
(74) J. Simon, op. cit., p. 249; cf. também Anthimc Corbon, De l'enseigne-
ment professionnel (1859).
(75) L. R. Berlanstein, "Vagrants, beggards and thieves: clelinquent boys in mid-
nineteenth-century Paris" , ]o urna/ of Social History 12 (1979), pp. 53 1-52.
(76) Y. Lequin, Ouvríers du Lyonnais, li, p. 69.
(77) M. Cordillot, Eugene Varlin. Chroníque d'u.n espoír assassiné (Paris, Edi-
tions Ouvricres, 1992).
(78) R. Michaud, op. cit. , p. 94.
(79) A. N. Fl2 4831, pesquisa citada.
(80) G. Duveau, La pensée ouvriere sur l'éducation pendant la Seconde Ré-
publique et te Second Empire (Paris, Domat-Montchrestien, 1948).
(8 1) Compte-rendu du Congres de Marseille (1979), p . 431.
(82) Cf. M. Crubellier, L 'enj'cmce et la }eu nesse dcms la société française,
1800-1950 (Paris, Colin, 1979); ] .-P. Guino t, Formation professionelte et travail-
leurs qualifiés depuis 1789 (Paris, Domat-Montchrestien, 1946).
(83) A. Cottereau, "Travail, école, famille. Aspects de la vie eles enfants ou-
vriers à Paris au xrxe siecle" (Centre d'Émde des Mouvements Sociaux, junho de
1977, datilografado, p . 32), estudo parcialmente publicado em Autrement (agosto
de 1977), "Méconnue, la vie des enfants d'ouvriers au x1xe siecle" .
(84) M. Chabot, L 'escarbille, op. cit., p. 2 5.
(85) J.-B. Dumay, op. cit., p. 82 .
(86) M. Chabot, L 'Escarbille, op. cit. , p. 40.
(87) J. B. Dumay, op. cit., p. 86-7
(88) M. Pcrrot, Les ouvriers en greve, École des Hautes Études en Sciences
Sociales (Mouton, Paris), vol. 1, p. 315.
(89) .M. Chabot, l. 'escarbille, op. cit., p. 37, sobre os inspetOres.
A j~'I'E.\7l"DE OPERÁRIA DA OF/CISA À r:-íBRI("..A 133

(90) N. Truquin, op. cit. p. 70.


(91) )1. Perrm, op. cit.. 1, pp. 313·8, "'Gre\·es de jcuncs"; 11 , pp. '158·6o.
(92) ~1. Pigcnc1, op. cit. , p. 112 .
(93) Y. Tyl, op. cit. , p. 602.
(94) J. Michel, op. cit., 11, pp. 428·30 e 63+5, greves de carregadores de va-
gonetes.
(95) M. Perrot, op. cit., p. 316.
(96) J. ll. Dumay, op. cit., p. 84.
(97) Sobre esses périplos pro nssionais, muiw difundidos entre vidreiros c me-
talúrgicos particularmente, ver os desenhos feitos por y,·es Lequin, op. cit., pp.
531-41.
(98) J. n. Dumay, op. cit .. pp. 95-110.
(99) i\1. Chabot, L 'escarbille, op. cit . pp. 68-9.
(100) Id .; p. 11 4.
(IO I) A. Rauch, Boxe, uiolence du .'O."' siecJe (Paris. Aubier, 1992).
(I 02) M. Nadaud, ,Hémoires de Léonard. ancien garçon maçon (Bourgancuf,
1895}, pp. 149 e 134; é a edição que citamos: pode ser também consultada a ed.
org. por t'vl. Agulhon (Paris, Hachcttc, 19-_6). Sobre a ,-ioléncia operária no século
XIX, cf. L. Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses ci Paris pendant
la premiere moitié du X/XC siecle (Paris, Plon. 1958); F. Cha,·aud, De Pie1-re Rivie-
re à Landru. la violence apprh•oisée au xtxe siecle (Bruxelas, Brepol, 1991 }; P.
Willis, ''L'école des ouvricrs" , Actes de la Recbercbe en Sciences Sociales 24 (no-
,·embro de 1978).
(I 03) P. Caspard, "Aspecrs de la luue des classes en 18-18", Rel'l/e Historique
(julho-setembro de 1974).
(1 04) i\1. Nadaud, op. cit.; p. 198.
(1 05) M. Agulhon, "Les Chambrées cn basse Provence: histoire c t c thnolo-
gie", ReVt-W llistorique 498 (abril-junho de 19- 1), pp. 33 7-68, retomado em llistoi-
re vagabonde (Paris, Gallimard, 1988), pp. 17-59.
(l 06) Y. Cohen, Les jeunes, /e socialisme et ftl guerre, op. cit.: fonte de infor-
mações muito ricas para todos esses aspectos apenas aflo rados aqui.
(107) M. C:habot, L 'esca rbilfe. op. cit.. p. I 08: "Nos pátios dos bairros pobres,
as crianças substituíram a brincadeira de polícia e ladrão pela do 'bando de Bon-
not ·, no qual, como por acaso. a polícia perdia sempre".
( I 08) A. Conereau, " Destins masculins et destins féminins dans les cultures
o u,•rieres en France au xL..,.c siecle' ', .llOIIt'ement Social (julho-setembro de 1983);
C. Heywood, " On learning gender roles during childhood in ninctcenth ccnrury
france", F1·encb History (v. 5, n '? 4), pp. ·151 -66.
(1 09) A. Fine, " A propos du trousseau: une cu1ture férninine?", em Une bis-
tofre clesf emmes est-elle possible? (sob a dir. de M. Perrot, Marselha, Rivages, 1984),
pp. 55-89.
(1 1O) M. Dubcsset, op. cit.; li. llarden-Chcnut, " Forrnatio n d 'une c ulrure ou-
vrierc férnininc. Lcs Bonnetieres troyennes, 1880-1939" (tese de doutorado de ter-
ceiro ciclo, Paris vn, 1988), especialmente a segunda pane. "Une culture féminine
du travail".
(til) .rl. 1Y. Fl2 4831 , pesquisa do i\linistério da Agricultura e do Comércio,
18--.
134 11/STÓRIA DOS]O l%VS

( I 12) 1\·1. Garclcn, Lyon et les Ly onnaís au XV/lle siecle (Lille , 1970).
( 11 3) A. N. F l2 483 1, pesquisa ... , 1877.
( I 14) J. Bouvicr, Mes mémoires ou cinquarzte-neuf années d 'activité iru:lus-
lrielle, soeiale et inteflectuelle d'une ouvriere (1876-193 5), 1 ~ ccl ., 1936, 2" e d . au-
mentada, apresemada e comentada por D. Armogathe & M. Albistu r (Paris, La Dé-
couvene, 1983); K. Paul!, " Les miclincttes à Paris (1885-1914)" (mestrado, Paris vu,
1975).
( I I 5) A.-M. Fugicr, Laplace des bonnes. La domesticitéfém iníne à Pan·s en
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1900 (Paris, Grassct, 1979).
(1 16) Ducpéliaux, op. c it., p. 326.
(11 7) M.-V. Louis, Le droit de cuissage. Chair à trava i!, cbair à plaisir, Fmn-
ce, 1860-1930 (L'Atelier, Paris, 1994).
(118) C. Hc ywood, o p. cit., pp. 102-3 .
(1 19) T. Harcvcn, Randolph Langenbach, Amoskeag. Life and work in anAme-
rican factory city in New England (Methucn, 1978).
( 120) Ducpétiaux, op. cit., 11 , p. 286.
('I 21 ) L. Rey baud, Étu de su1· te régime des marzufactures. Condition des ou-
uriers en soíe (Paris, Michel Lévy, 1859); Les ouvriers des deux-rnondes, wmo 5,
monografia n <:' 26, monografia dos tecelões ele Sainte-Marie-aux-Mines, Vosges, pp.
392 c ss.; P.-Le roy & Beaulieu, re travai/ des jemmes au X!Xe si(JC/e (Paris, Char-
pentier, 1888), pp. 41 4 e ss. Ent re os estudos recentes, além de Y. Lequin , op. cit.,
ver Dominiquc Vanoli, " Les ouvricrcs cn soie du sucl-csl ele la France, 1890-1914"
(mestrado, Paris vn, 1975); Claire Auzias c 1\nn ick 1-louel, La greve des ovalistes,
juin-juíllet 1869 (Paris, Pa yot, I 982).
(122) V. Vie t, op. ciL, passim.
(123) C. Auzias, A. Hou el, op. c it.
(124) A. Cottereau, "Travail, écoles, famillc. Aspects de la vie dcs enfan ts cl'ou-
vricrs à Paris au X!Xe siccle", op. cit. , pp. 41-2.
( 125)]. B. Dumay, o p. cit., pp. 9 1-2 .
(126) D. Riesman, La foule solita.il'e (Arthaud, Paris, 1964).
(127) A. Pe rdiguier, op. cit. (ed. de 19 14), p . 216.
(128) A. Corb in , Filies de noce. Misere sexuel/e et prostitutíon au X/XC siecle
(Paris, Aubier, 1978).
(I 29) J.-L. Flandrin, Les amours paysannes. Amour et sexualité dans /es cam-
pagnes de l 'ancienne France (XVJ-XIÃ"' siiJcle) (Paris, Gallimard, 1975).
( 130) Ducpétiaux, op. cit ., 1, p. 33 7
( 13 1) M. Cordillot, op. cit., p. 120.
(132) J. Bouvicr, op. c it. , pp. 83-5.
(133) 13ihliothcque de la Pléiade, Gallimard, pp. 137-8 .
(134) M. Frey publicou sob re esse ponto dois artigos complementares: " Du
mariage et du co ncubinagc dans les classes populaires à Paris cn 1846- 1847", An-
na/es ESC 4 (julho-agosto de 1978); " Les comportemen ts concubins au sein eles clas-
ses populaires à Paris en 1846-1847: le rõle des proslituées et des fe mmcs logeant
en garnis'', em Aimer en France, 1760-1860, Un iversidade de Clermont-Fcrrand,
Atas do Colóquio Internacional, recolhidas e apresentadas por P. Viallaneix & ] . Eh-
rard, 1980, 2 vols .. aqui t. 2, pp. ;6;-87.
(13 5) M. Perrot, op. cit., 1, p. 314, cf. 11. N. C 30 18 -21 , pesquisa de 1872.
A }l.YF..\'TUDE OPERÁRIA DA OfJCINA -~ FÁBRICA 135

(136) Y. Lequin, op. cit., I, p. 209; C. Ouprat, op. cit., p . 1229; embora criti-
cando M. Frcy, ela sublinha igualmente que os casais concubinos representam um
caso em cinco, e que os mais altos índices de concubinatO coincidem com os bair-
ros jovens, com uma grande porcentagem da população de vime a 29 anos.
(13 7) Ibidem.
(138) Ducpétiaux, op. cit., p. 234.
( 139) Cf. nota 134, especialmente Annales para o estudo estatístico.
(140) L. Chevalier, op. cit.; Edward Shoner, "lllegitimac y, sexual revolution
and social change in modem Europe", journal of /nterdisczjJ!inarJ' Hístory (u, ou-
tono ele 1971).
(14 1) M . Frey, op. cit., u, p. 568.
(142) As feministas reivindicam durame o século XIX o direitO de busca de pa-
ternidade, que elas só o btêm no início do século xx e com algumas condições res-
tritivas.
(143) R. G. Fuchs, Poor and pregnanr in Paris. Strategies for surv ival in the
nineteenth-century (Rutgers Universi ry Press. :"'ew Brunswick, Nova ]ersey, 1992),
p. li ; nume rosas informações sobre a condição das mulheres pobres parisienses
no século x1x.
(144)]. Caroux-Destray, op. cir.; p. 70.
(145)]. Guillais-Maury, La cbair de l'atllre. Le crime passionnel à Paris au
X!Xe siiJcte (Paris, Orban, 1986).
(146) Sobre todos esses pomos. que não aborda mos aqui, ver Y. Cohen, op.
cit. O enquadramento elos jovens nas sociedades de patronato é um capítulo consi-
derável; em relação à primeira metade do século XIX, ele foi estudado por C. Du-
prat, mas relacionado sobretudo às crianças. Sobre as casas de correção, ver H. Gail-
lac, Les maisons de correclion, 1830·1945 (Paris, Cujas, 2~ ed., 1991), que trata
também das colônias agrícolas para jovens delinqüentes, que podiam ser coloca-
dos ali até os 21 anos.

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Tradução do francês por Paulo Neves
OS JOVENS NA ESCOLA:
ALUNOS DE COLÉGIOS E LICEUS
NA FRANÇA E 1VA EUROPA
(FIM DO SÉC. XVIII - FIJ1 DO SÉC. X IX)
]ean~Claude Caron

INTRODUÇÃO

A escola, sob todas as suas formas. faz pane há muito Lempo


da paisagem social e cultural das sociedades européias. Qual outra
instituição se associa mais forrememe à idéia de juventude? Essa as-
sociação depende de uma longa e,·olução que. na Europa, em datas
diferentes mas em uma cronologia afinal bastante semelhante, de-
via faze r da escola um assunto de Estado, para retomar o título de
uma o bra recente. 1 Um Estado Yitorioso, erigindo-se em rival da
Igreja pelo controle progressh·o dos níveis de ensino. Não se trata
aqui de fazer o inventário dessa instituição escolar nem o de seus
administradores ou mestres, mas de traçar um retrato daqueles a
quem se destinava: os jovens. O peso estatístico destes, embora cle-
clinantc, permanece muito significarh·o: a faL-xa até dezenove anos
representa cerca de 42,5% da população francesa em 1780, e ainda
35,5% em 1881.
No quadro desta contribuição, não seria possível tratar a inte-
gralidade da questão. Assim, escolhemos ater-nos a uma faixa de ida-
de que corresponde aos anos ele ensino secundário : idade que se
estende elo fim ele uma escola primária já bem-suced ida antes mes-
mo ele ser obrigatória à entrada no ensino superior ou na viela pro-
fissional. Idade flutuante e difícil de determinar: Furetiere, em seu
célebre dicionário publicado em 1690, designa sob o termo adoles-
cente "o rapaz dos catorze aos vinte ou 25 anos". 2 Um pouco me-
nos de dois séculos mais tarde, o Grande dicionário universal do
século X TX de Pierre Larousse conserva os mesmos limites de idade
/38 HIJ7ÓIIIA DOS }OVF.XS

e acrescenta que, durante esses anos, " a higiene e a educação de-


vem preparar e fundar, de alguma maneira, a saúde física e moral
do homem". Enquanto o ensino primário tem como encargo prin-
cipal apenas o aprendizado dos rudimentos necessários a toda vida
social, o ensino secundário, eventualmente completado por estu-
dos superiores, tem também a obrigação de educar moralmente o
futuro adulto. Na França, mas também na Europa, o século que se
estende dos anos 1780 aos anos 1880 é essencial na instalação eles-
se ensino secundário : dos projetos de reforma iluminista e da obra
legislativa da Revolução ao esboço de democratização do acesso ao
colégio c ao liceu , encontra-se um século ele lutas e também de ten-
tativas na definição e na criação daquilo que, progressivamente, ad-
quire sua auwnomia como nível de ensino e afirma-se como o pon-
ro ele encontro das classes ascendentes .
Este estudo limita-se igualmente àqueles que seguiam u m cur-
sus de estudos mais escolar que profissional: a aluno no sentido mo-
derno elo termo, mais que o aprendiz. Ter-se-á compreend ido que
se trata aqui de fazer a história de uma minoria, aquela que comi-
nua a escola além do ensino primário; que essa minoria estreita-se
na direção do alto da pirâmide universitária; que no seio dessa mi-
noria encontra-se uma outra que Yai, muito lentamente, conquistar
o direito à instrução : as mulheres. Juventude privilegiada, elite cul-
tivada cuja o riginalidade sobressai ainda mais em uma Europa im-
p erfeitamente alfabetizada, grupo social cuja unidade se eleve tanto
à freqü entação de locais comuns c ao aprendizado de um saber co-
mum quanto a uma origem social comum: tais são algumas das ca-
racterísticas desses jovens - alunos de colégios ou liceus - a res-
peito elos quais se apresenta um último problema: o das fontes.
Essa juventude exprime-se raramente por meio da escrita, a me-
nos que se considerem seus trabalhos escolares como fontes: o que
eles ele fato são, porém mais para o estudo do funcionamento e da
ideologia da escola, a tal ponto se mostram submetidos a normas.
Na verdade, as fomes disponíveis são, com exceções, freqüentemente
indiretas: o diretor ele colégio ou o superior de colégio religioso,
o pai ou o tutor, o policial ou o juiz, o jornalista ou o romancista,
todos se exprimem sobre essa juventude dos cursos de latim ou da
recreação, tanto mais que na época romântica a burguesia vitoriosa
descobre e afirma o valor juventude, ao mesmo tempo que sua fé
na educação e na instrução. Mas poucos vestígios, em definitivo,
de um discurso direto dessa juventude sobre si mesma. Restam as
OS}Ol"li.\'S SA ESCOL'.. .-!LCSOS DE COLÉG105 ;. lJCE 3 "•A =R,ü'Çt E\".! Et:ROPA 139

memórias e outras lembranças que, muitas vezes, conferem um lu-


gar importante a esses anos ele aprendizado elo saber: quer sejam
críticos, por vezes violentamente, quer laudatórios, freqüentemen-
te nostálgicos, esses belos textos refletem tanto, se não mais, a afu-
mação ele um olhar sobre o presente, ou mesmo sobre o futuro, quan-
to uma visão objetiva de um passado muitas vezes mitificado. Sem
falar ela obrigatória seleção trazida pelo tempo e da deformação ope-
rada pela memória.

RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA

O fim do século xvm é marcado por uma renovação pedagó-


gica em que, ao lado da definição de novas práticas, afirmam-se a
idéia ela onipotência da educação na modelagem elo homem (Hel-
vetius: "O homem não é de fato mais que o produto ele sua educa-
ção") c a tomada de consciência da juventude como riqueza social,
como objetO e suj eito da renovação po!ít'ica que alguns então dese-
jam. Pensa-se naturalmente em]ean-Jacques Rousseau e em Emílio
ou Da educação (1-762). O Antigo Regime fora marcado pela peda-
gogia desenvolvida nos colégios jesuíticos ou prOtestantes: a rela-
ção pessoal mestre-aluno, ideal do humanismo erasmiano, cedera
lugar a uma relação mestre-classe, não desprovida, ele resto, de ino-
vações, como , por exemplo , a prática elo teatro entre os jesuítas.
Em todla a Europa, no oeste e mais ainda no leste, a marca dos jesuí-
tas é profunda - antes ela supressão de sua ordem em 1773 - n o
ensino secundário : na Polônia, na Áustria, na Hungria, os discípu-
los de Inácio ele Loyola são onipresentes, apenas sofrendo a con-
corrência ele o utras ordens e dos colégios protestantes .3 Na Euro-
pa do século xvn, comam-se mais de quinhentos colégios jesuítas
que acolhem cerca ele 150 mil alunos 4 Nesse ensino, as humanida-
des triunfam sem reservas, ciência c matemáticas permanecem as-
sunto de especialistas ou de amadores - éacla vez mais numerosos
no século XVHJ - ,sem que isso desemboque em um verdadeiro en-
sino. O latim e a história antiga formarão gerações ele retóricos, com
freqüência conhecendo melhor a República romana que os reinos
elos Bombons. Louis-Sébastien Mercier, bom observador c fino es-
critor, escarnece elo paradoxo desse sistema igualmente em uso nos
colégios públicos: "É um rei absoluto que paga os professores pa-
/40 HISTÓRM DOS }OI'E.\"S

ra vos explicar gravemente todas as eloqüentes declamações lança-


das contra o poder elos reis". ;
O dito ou c declamado prevaleciam então sobre o escrito, e da-
vam origem a trechos de bravura imitados da arte elos antigos: dis-
cussões, cerimônias e entregas de !áureas fornec iam um cenário a
esses certames oratórios . Esses discursos não deixam ele lembrar as
assembléias de estudantes de d ireito no século XIX: mas, ali, cada
um se exercitava na palavra, no papel elo procu rador ou do advoga-
do, com uma finalidade profissional. Essa predominância da dispu-
fatio perde o fô lego, no entanto, ao longo do século XIX: com a aju-
da da invenção e, em seguida, da generalização da pena metálica,
o escrito se impõe sob a forma da dissertação, coroamento do ensi-
no recebido. Quanto à finalidade do ensino do Antigo Regime,
concorda-se em dizer que visava mais educar do que instruir: não
que não se aprenda, mas, não sendo objetivo da educação fo rnecer
um diploma ou um ofício, acentuava-se a fabricação de homens ele
bem ou de gentlemen, protótipos de sociedades ele ordens basea-
das no pensamento cristão. Um objetivo, em última análise, de so-
cialização. Mas pouca promoção social, o que, em uma sociedade
de ordens, seria um contra-senso. O exempl o de Valentinjamerey-
Duval, simples pastor que fez sua educação ele maneira tão incom-
pleta quanto fragmentada, notado depois por homens da cone do
duque de Lorraine, dá testemunho disso: tornando-se bibliotecário
elo imperador Francisco, numismata tarimbado, ]amerey-Duval é o
exemplo perfeito - mas raro - do plebeu modelado por sua edu-
cação. A criança selvagem, correndo nas estradas no tempo ele Luís
XIV, morre em Viena na corte ela imperatriz Maria Teresa ...6
já o século >.'VII da Contra-Reforma produzira sua cota de tra-
tados sobre a educação. Madame de Maintenon e Fénelon são seus
do is mais célebres representantes. Evocava-se sem descanso a alma
"branca, terna e maleável" ela criança (Sacchini, 1625). Mas john
Locke, puro produto da Westminstcr School e de Oxforcl, tentara,
em Algumas reflexões sobre a educação (1693), levar em coma a
imegraliclacle da criança e do aclolescenre, suas necessidades físicas
e morais, sua educação e sua instrução, incluindo-se aí a educação
física c o aprendizado de um ofício, em uma obra destinada aos fi-
lhos de gentis-homens. Com Locke e Rousseau, lembrar-se-á o nas-
cimento do corpo c da pessoa física da criança: esta não é mais a
cópia de adulto que, durante séculos, os pintores representaram de-
sajeitadamente, nem o pequeno homem já tocado pelo pecado ori-
OS]OI'ESS SA ESC0/.11.· M.U,\"05 ne COLtGIOS E UCECS .\:i FR,-!XÇ-1 E XA El"ROP.i 141

ginal e que, por bem ou por mal , é preciso salvar, mas um indiYí-
duo naturalmente bom. Do bebê ao rapaz, o século xvm malt.hu-
siano reinventa as idades ela viela, ritmadas pela educação e a ins-
trução que, por etapas, permitem fab ricar o homem esclarecido. O
objetivo, como sublinha Louis Trénard, não é mais o céu, mas a Fe-
licidade .7

NASCIMENTO DE EDUCAÇÕES NACIONAIS:


A JUVENTUDE COlll/0 APOSTA

Conhece-se toda a importância representada pela geração edu-


cada nas Luzes em estabelecimentos religiosos quando ecloclc a Re-
volução Francesa: Robespierre (nascido em 1758), Danton (1759),
Desmoulins (1760), Saim-Jusr (1- 67). De Locke ao Emílio, h<i a dis-
tância das Luzes e a crença, noYa, de que a transformação ela socie-
dade passa prioritariamente pela educação do cidadão esclarecido,
protótipo de uma sociedade de liberdade (Voltaire) ou de igualdade
(Rousseau) baseada em um pensamento deísta, ou mesmo ateu para
alguns (Diderot, Helverius, D'Holbach). No centro dessa educação
roussea.uniana sem livro (a Namreza faz-lhe a função), execro oRo-
binsón Crusoé, encontra-se o frutO elo despertar para a sensibilida-
de, a observação, a auto-aprendizagem, a recusa ela coerção aparente
("Não há nenhuma sujeição tão perfeita quanto aquela que mantém
a aparência ela liberclacle") e do castigo, a virtude preferida às hu-
manidades. Conhece-se o desprezo de Rousseau pela educação fe-
minina: desprezo que devia influenciar duradouramente o século
xrx, menos no que se refere ao ensino primário elo que em relação
aos ensinos secundário e superior. Pomo comum, no entanto, en- .
tre Locke e Rousseau: a crença na relação pessoal entre o mestre
(memor ou preceptOr) e o aluno . Crença afirmada no momento em
que essa prática, ainda preponderante na nobreza, é rejeitada pela
burguesia que povoa as classes elos colégios com seus rebentos en-
quanto parlamentares ou filósofos definem as bases ele uma educa-
ção nacional: La Chalotais, em seu notável Essai d 'éducation natio-
nale ou plan d 'études pour la jeunesse [Ensaio ele educação nacio-
nal ou plano de estudos para a juventude) (1763), faz uma severa
crítica da influência elas congregações sobre o ensino e o regime elos
colégios; o presidente Rolland (1768), Lamoignon (1783), os amo-
res da Enciclopédia, especialmente D' Alembert, Filangieri na Itália
142 HISTÓRI.~ nos JOVENS

(1 785) exprimem-se sobre o assunto com a mesma vontade de re-


forma.
Nessa abordagem, uma evidência se impõe: por meio ela proje-
tada nacionalização das redes escolares, é a juventude gue se trans-
forma em aposta política e social. Roger Ducos o diz sem rodeios
diante da Convenção em 1792: "criar uma geração no va p or uma
educação uniforme" . Os dirigentes dos Estados, favoráve is ou não
à Revolução, compreenderam que, com o nascimentO ele opiniões
públicas, as jovens gerações elevem ser controladas. Na Espan ha , Ma-
nuel José Quintana, poeta ela resistência ao ocupante francês e após-
rolo ela instrução como fonte de utilidade comum e de felicidade
individual, resume em uma frase a aposta educativa: "Aquele que
ensina domina" . Na França, Guizot, porta-voz ela burguesia liberal,
faz-lhe eco em 1832: "A base mais inabalável ela ordem social é a
educação da juventude" . Na Itália, Estado em mudança, Cavour
interessa-se de peno por tudo que se refere à educação: ele fornece
um bom exemplo dessa vontade ele desenvolver uma educação li-
beral, não constrangedora, devendo servir o Estado e a formação
do sentimento nacional, mas não visando colocar em questão as de-
sigualdades sociais. Leitor ele Rousseau, viajante que estuda os sis-
temas ele educação francês, inglês e suíço, Cavour quer conciliar "for-
re ordenamento da instrução social, e ampla liberdade do ensino
privado, não oficial" .15 Não existe melhor meio ele controle social
que a escola, que se torna assim, muito rapidamente, objetO de so-
licitude e mesmo lugar ele freqüentação obrigatória, bem antes da
França ele Julcs Ferry, em inúmeros Estados (ver a Prússia c a maior
parte dos Estados alemães, os Estados escandinavos, o Piemonte,
a Escócia, a Inglaterra, a Hungria etc.), ainda que seja preciso distin-
guir a lei de sua aplicação.
A Revolução Francesa influenciará a Europa por seus p rojetos
educativos que, embora pouco ou não realizados, estarão freqüen-
temente na base ele sistemas nacionais ele ensino. Desses projetos
(Mirabeau, Talleyrand, Condorcet, Daunou, Le Pelletier ele Saint-Fa-
geau etc.), lembremos a afirmação elo direito à instrução e elo caráter
obrigatório desta (1793), ela projetada organização de estabdecimen-
ros que acolhessem indistintamente os alunos, de uma pedagogia
em que o coletivo prevalecesse sobre o individual. O século xrx ten-
tará realizar essa fusão entre um ideal rousseauniano e essa nova fé
nas virtudes da instrução. Um exemplo dessa transição é fornecido
por Chateaubriancl: ele recebe sua primeira educação de professores
OS j01'ESS NA ESCOLAc ALUJ\ 'US VI:: COLÉGIOS E UCEL'S SA FRA.\'C~ E .\'A EL'ROI'.~ 143

particulares, mas em seguida freqüenta o colégio de Dal, onde apren-


de matem<íticas, desenho, esgrima e língua inglesa (seu pai o desti-
na à Marinha real), assim como grego e latim, sob a pressão de sua
mãe Y Pouco a pouco, o preceptor, ilustração da educação privada
e individual, vai ser eliminado para subsistir apenas nas classes abas-
tadas ou nos países de resistência ao " movimento", como a Rússia
de Nicolau r: assim, salvo uma breve permanência em um ginásio
de Moscou, o jovem nobre Piotr Kropotkin, futu ro teórico da anar-
quia, recebe roda a sua educação de três p receptores - inicialmen-
te um francês, depois um russo e um alemão - antes de entrar no
corpo dos pajens. lO Comportamento minoritário, social e geogra-
ficamente: em uma Europa a imaginar e a reconstruir, na busca de
valores novos depois ela derrocada de uma sociedade baseada na
busca da salvação, na n ecessidade de definir as regras de novas re-
lações sociais, afirma-se o papel da escola como aglutinante entre
os homens. Convicção religiosa que se encontra expressa no peda-
gogo que certamente teve mais influência no século xrx, ]ohann
Heinrich Pestalozzi (1746-1827): '·Não há para a nossa parte elo mun-
do, arruinada moral, espiritual e politicamente, nenhuma salvação
possível, a não ser pela educação, a não ser pela fo rmação ela huma-
nidade, a não ser pela formação do homem" . 11
Esse discípulo de Rousseau, uma das dezoito personalidades es-
trangdras a ser honrada com o título de cidadão francês pela Con-
venção em 1792, distinguia, assim, no homem, o crescimentO (Wa-
chstum), a formação (Bildu ng) e a educação (Erziehung); recolocan-
do em discussão as noções de aula, ele programa, ele horário, ele
visava a elaboração do saber (cabeça) do saber-fazer (mão) e elo sa-
ber-ser (coração), sendo seu objetivo a construção da personalida-
de autônoma. Pode-se, entretanto, apresentar objeções: por que no .
momento em que Pestalozzi elabo rava esse méroclo renomado e
adaptado pelos sistemas de ensino primário de certo número ele paí-
ses (Suíça, Estados alemães, Estados italianos), esses mesmos países
e os outros estabeleciam sistemas ele ensino secundário baseados
em princípios exatamente opostos? Por que colégios ou liceus na
França ou na It~Hia, Realschulen ou Gymnasien na Prússia, Institu-
tos na Espanha, gramm.ar ou p ublic schools na Inglaterra definiam
horários e programas muito rígidos? Por que toda inovação ou ten-
tativa de inovação pedagógica chocava-se com a tripla resistência
dos docentes, da administração, das famílias? Por que o desenvol-
vimento da personalidade autônoma não era um objetivo a atingir,
/44 !IISTÓRIA DOS }OVRNS

mas a combater, com o risco de destruir aqueles que recusavam


moldar-se? Ernest Lavisse, colegial em Laon e depois aluno ele liceu
em Paris sob o Segundo Império e futuro " papa da história o ficial",
julga severamente esse ensino: "Nós vivemos fora da natureza, as-
sim como fora da história" . 12 Quanto à pedagogia, não é ensinada,
para os professores do secundário, antes da criação, em 1883, de
uma cátedra na Sorbonne, confiada a Georges Marton; e é apenas
na virada do século XIX que Ferdinand Buisson e Ém ile Durkheim
se distinguirão nas ciências da educação.
É nesse sentido que Marie-Madeleine Compere rcinsere a histó-
ria do colégio e do liceu no longo prazo, o de uma busca de identi-
dade (cerca de 1750 - cerca de 1830), e recusa-se a ver 1789 como
o momento de uma gênese na história do ensino secundário.I3 Con-
vém lembrar a experiência breve, porém interessante, das Escolas Cen-
trais (1795-1805). Criadas por iniciativa de Lakanal, Fourcroy e Dau-
nou, elas inovaram ao dirigir mais o ensino para as ciências exatas,
pretendendo-se um pouco antecâmaras ela Escola Politécnica, e ao
suprimir as classes como grupos de indivíduos obrigados a cursos
comuns: cada aluno pertencia a uma seção (doze-catorze, catorze-
dezesseis e dezesseis-dezoito) e, no interior das matérias oferecidas
em cada seção, fixava seu programa. Experiência breve, por vezes
bem-sucedida, mas que encontrou resistências: não muito mais, no
entanto, que os liceus napoleônicos baseados em princípios diame-
tralmente opostos. Estes, descritos como verdadeiras casernas, mar-
chando ao som elo tambor que se opõe ao sino do Antigo Regime
demasiadamente clerical, fo rmaram, porém, uma geração ele intelec-
tuais q ue desabrocha no século XIX. É o caso de Jules Michelet, nas-
ciclo em 1798 c cuja infância se passa em um contexto fami liar e po-
lítico difícil: ele recebe uma fraquíssima instrução primária, e depois,
não sem choros e resistências, freqüenta um internato onde apren-
de rudimentos de latim, antes de entrar no liceu Charlemagne. A de-
fasagem social e cultural que aí viverá, os trotes ele alguns de seus
camaradas, o desprezo de uma parte de seus professores, tudo isso
não o impedid ele impor-se e de consagrar sua vida ao ensino.

A ESCOLA CONTRA A FAMÍLIA

Em uma obra publicada em 1869, Nos fils [Nossos filhos], Mi-


chelet exprime bem antes ele Ferry seu credo na escola republica-
OSJOI.F.SS .\', 1 ESCOLA · <lLUSO:i DE COLÉGIOS E UCEl'S \:~ FK.-1.\ ÇA E SA EL'ROPA 145

na, opondo o humanismo (Rabelais, sobretudo) ao ensino medie-


val, os pedagogos das Luzes (Rousseau, não sem crítica) às congre-
gações religiosas . Mostra de que maneira pedagogos corno Pestalozzi,
Fellenberg, Fróbel tentaram conciliar exigência moral, ensino reli-
gioso e instrução ele qualidade. E, sobretudo, como tenderam a subs-
tituir a educação fam iliar: esta não é rejeitada por .!'vlichdet, que, no
entanto, adverte contra o risco de sufocamento da criança. Prolon-
gando o pensamento ele Pestalozzi, chega a uma comparação orgâ-
nica entre a mãe de sangue, individual, e a mãe educativa, coletiva:
"A verdadeira mãe, a escola, aparece para instruir, nutrir toda crian-
ça". Dessa escola nutriz, Michelet espera propaganda cívica, pro-
moção social e unidade moral. Palavras publicadas, lembremo-lo,
em 1869, e que aparecem como as premissas da floração ele obras
que retomam esses mesmos temas depois da derro ta ele 1870. Nes-
sa versão leiga ela missão educativa, o colégio e o liceu formam a
parte essencial do sistema: se .Micheler critica-lhes duramente o fu n-
cionamento e os mérodos educativos que experimentou como alu-
no, faz-se defensor obstinado do ensino clássico, das humanidades
greco-latinas. Posição imutável desde um discurso pronunciado por
ocasião da distribuição dos prêmios no colégio Sainte-Barbe em 1825.
Tradução e composição latinas, dissertação filosófica: tais são os exer-
cícios a ser privilegiados para formar cidadãos esclarecidos . São es-
sas classes instruídas e educadas que permitirão o progresso: clas-
ses que Michelet reencontrara em seu público do College de France
(1838-S 1).
Assim, o século XIX vê a afirmação e o triunfo ele uma escola
que, nas diferentes idades ela infância e da adolescência, encarrega-
se da totalidade da formação, sob a vigilância por vezes pesada, mas
por vezes distante, da família. Balzac, interno no colégio dos orato-
rianos de Vendôme ele 1807 a 181 3, não é sobrecarregado ele visi-
tas de seus pais . A dor do afastamento e da ruptura com a família,
no internato, que permanece dominante até o fim do século, suscita
reações de rejeição - como em Flaubert, Valles ou .Maxime du Camp,
rebeldes derrotados para os quais o fim elo colégio é vivido como
uma verdadeira libertação - o u ele desejo ele fuga - como em La-
visse, que se deita todas as noites com o rosto voltado para a casa
ele seus pais, ou em Jules Isaac, interno em Lakanal, animado por
um "desejo contido, mas um desejo louco ele fugir a mil léguas" . 14
Sensibilidade exacerbada, não representativa da tendência geral? Su-
blinhemos antes o antagonismo que podia surgir entre uma moral
146 HIHÓHIA DOS JOI'E.\"S

familiar dirigida desde a primeira infância, na burguesia, para o in-


dividualismo, inclusive no domínio ela disciplina, c essa forma de
disci plina coletiva que o internato podia representar. Victo r de La-
pracle denuncia L 'édu cation homicide [A educação homicida] (1867)
dispensada por esses colégios ou liceus comparados a conventos,
casernas o u prisões. Depois ele Michel Foucault, conhece-se melhor
esse processo de internamento que, em paralelo com o asilo e a pri-
são - acrescentemos a oficina para a juventude laboriosa -, vê,
desde. o sécu lo >.'VII , a instalação de uma rede de colégios m enos fe-
chados que os conventos, mas distantes, muito distantes elos prin-
cípios humanistas de educação, assim como os liceus napolcônicos
o serão dos princípios rousseaunianos de educação. Contudo, é es-
se modelo que se imporá, e isso muitas vezes contra a família. Ain-
da em 1856, Lac0rclaire, diretor elo colégio de Soreze, ergue-se contra
"a sombra enervante do núcleo doméstico" 15 e precoiliza confiar
a professores a edl,JCação das crianças desde a idade de sete anos.
No entanto, tenhamos o cuidado de evitar o anacronismo ao
opor com muita força a escola à família. Por certo, já sob o Antigo
Regime, o ensino dado pelos colégios jesuíticos pretendia remediar
as insuficiências da educação familiar nos domínios moral c religio-
so. No século XIX, esse processo ele substituição da educação fami-
liar pela instituição escolar, em um contexto de laicização da socie-
dade, é claramente expresso, quaisquer que sejam sua origem c sua
finalidade (como as múltiplas correntes socialistas, Saint-Simon, Fou-
rier, Prouclho n etc., q ue se interessam pela educação), mas não re-
cebe mais que um começo de realização. Com Philippe Aries, con-
cluamos que esse processo apenas será terminado na segunda metade
do século xx e que continua a desenvolver-se com a multíplicação
dos campos educativos confiados ao colégio e ao liceu (educação
para o trânsitO, respeito ao meio ambiente, prevenção do tabagis-
mo, d a toxicomania e do alcoolismo , educação sexual, luta conrra
·o racismo etc .).

O " TOD O PODEROSO IMPÉRIO DO MEIO"

Uma escola que, no século XIX, torna-se dominadora ao ligar


sua sorte à laicização das sociedades: isso é verdade quanto ao e nsi-
no primário. em que, depois de uma longa guerra entre Igr eja e Es-
tado, as leis Ferry-Goblet (1880-6) concluem um processo iniciado
OSJOVT:.VS .\'11 T:SCOI.Ac Al.U,\ 'OS f>T: COLÉGIOS F. UCF.CS \"A FRA.\'Ç~ F. .\'A F.l'ROPA /47

desde a Restauração. Em 1880, pode-se considerar que o conjunto


dos meninos e das meninas está escolarizado, ainda que essa esco-
larização sofra as eventualidades das estações e do vínculo a tal ou
qual categoria socioprofissional. O mesmo ocorre com inúmeros paí-
ses onde o caráter obrigatório e gratuito da escola fora proclamado,
se não respeitado, há muitO tempo (desde o século xvm na Prússia
e nos países escandinavos). O mesmo não acontece com o ensino
secundário, esse " todo-poderoso império do meio", como o defi-
nia Lucien Febvre: em uma época (fim do século xvm- fim do sé-
culo X IX ) em que o ensino superior é reservado apenas a uma elite
m uito restrita de amadores (científicos. litedrios) o u ele futuros pro-
fissionais (médicos, juristas), o ensino secundário aparece de fato
como o laboratório em que se elabora a formação elas fu turas gera-
ções ele notáveis. Notáveis mais letrados que e mpreendedores , ao
sair do secundário. Mas elitismo firma com intelectualismo: cultiva-
se, então, o amor pelo belo. nas mesmas fontes greco-latinas que
os colégios elo Antigo Regime, perseguindo com constância um "ideal
não utilitário" .16 Todas as tentath·as feitas para criar um ensino " es-
pecial" ou "moderno" em que a pane do latim seria reduzida, ou
mesmo suprimida (Vatimesnil, Guizot, Salvandy, Fourtoul, Duruy),
foram objeto de vivas resistências e, quando tinham êxito, de zom-
barias. Assim, quando uma classe comercial é criada em Sainte-Barbe,
grande instituição privada parisiense, seus alunos são chamados, por
derrisão, ele pas latin * (fala-se também ele "classes ele venclciros").l7
Se o escrito torna-se pouco a pouco a marca do saber, não dei-
xa por isso.de reproduzir a retórica das humanidades c não se des-
denha, por ocasião das festas (por exemplo, a de são Carlos Magno),
fazer vibrar as salas e os corações com discursos eruditamente com-
postos. O poder da palavra, do lado dos mestres, está intato: qual-
quer que seja o país, o curso magisual prevalece nos liceus e colé-
gios, ainda que se levantem aqui e ali vozes q ue denunciam esse abuso
do verbo com sentido único. Por exemplo, Michelet: "O suplício
das aulas no ensino atual é a passividade, a inércia, o silêncio a que
está condenada a criança. Receber sempre sem dar jamais! Mas é o
contrário da viela!". 18 Pedagogo (redige quadros cronológicos e sin-
crõnicos, um Précis d 'histoire moderne [Manual de história moder-
na]), professor (em liceu, em faculdade, depois no Collegc ele Fran-
ce), preceptor (do filho da duquesa de Bourbon, depois da fi-

(*) Pas /alin significa não latinos c soa como palatinos. (N. T.)
/48 HISTÓRIA 1)05}01'E.YS

Iha ele Luís Filipe), Michclet é, também ele, homem da palavra, ora-
dor reconhecido, embora vocalmente bastante fraco.
Esse confisco da palavra pelo mestre no ensino secundário é
encontrado ainda mais no ensino superior, no qual o professor per-
manece aquele homem que, do altO de sua cátedra, demonstra um
saber raramente contestado e tanto mais apreciado quanto a fo rma
está à altura do fundo. Entre esses homens de palavra de o uro, es-
tão Cousin, Villemain, Guizot na Sorbonne sob a Restauração, Mi-
chelet, Quinet, Michiewcz no College de France sob a Monarquia
de Julho.

JUVENTUDE ESTUDIOSA, JUVENTUDE BURGl./ESA:


RETRA TO DE GRUPO

Queri1 são esses colegiais, esses alunos de liceu? São antes de


tudo uma minoria, o que exprime a estreiteza de seu número para
todo o período considerado. As cifras citadas variam freqüentemente
e estão sujeiras a caução a tal ponto é grande a variedade dos tipos
de es tabelecimentos que podem ser ligados ao ensino secu ndário.
Estima-se em cerca de 65 mil o número de colegiais na França em
1650 (em uma população de cerca de 18 milhões de habüantes), dos
quais mais de 40 mil com os jesuítas. O domínio educativo e peda-
gógico destes últimos é incontestável sobre o ensino que ainda não
se c hama secundário, até sua expulsão elo reino em 1762-3 . Impor-
tante também é o papel educativo dos oratorianos, notadamente com
o colégio ele Juilly, que, nesse fim ele século. acolhe Hérault de Sé-
chelles, Louis ele Oonalcl e Adrien Duport: como uma súmula da re-
volução por vir ... Em 1789, contam-se cerca de 70 mil colegiais (para
25 milhões de habitantes) na França, mas apenas 50 mil alunos de
colégios e liceus em 1806 (quamos, entretanto, em estabelecimen-
tos privados com efetivos dificilmente contabilizáveis?) c o mesmo
número em 1820, fora os institutos religiosos. O número d uplica
em 1850, depois progride sob o Segundo Império para alcançar cerca
ele 165 mil alunos no advento ela Terceira República, incluídos os
institutos religiosos. Uma cifra que vai praticamente estagnar até o
fim do século: cerca de 180 mil em 1895, para uma população que
atinge então 38 milhões de habitantes. l9 Uma evolução que permi-
te apreender o peso respectivo da conjuntura socioeconô mica e dos
acontecimentos políticos . Crescimento econômico e crescimento
OS)OI'ESS S A ESCOLA· AJ.USOS DE COI.f.GtOS E UCEL"! .'.:i ::!1.~~ E.~ E1.7:fJ#'A 149

da escolarização andam juntos, no secundário, ainda que as reper-


cussões das guerras e das revoluções não devam ser negligenciadas.
É sob a Monarquia de Julho e o Segundo Império que os efeú,·os
crescem mais rapidamente. Mas esse crescimento geral esconde forres
desigualdades regionais: uma criança em 24 é escolarizada no se-
cundário na Seine-Inférieure sob a Monarquia de Julho contra uma
em 144 nas Cótes-du-Nord. A Alemanha não aparece muito à frente
da França no momento de sua unificação: conta, então, cerca de
170 mil alunos no secundário. Mas perto de 100 mil desses alunos
freqüentam um Gymnasium, equh·aleme do liceu francês que, na
mesma época, acolhe apenas cerca de 40 mil alunos. O balanço de
uma Itália em gestação é menos brilhame: cerca de 50 mil alunos
no secundário, dos quais a metade no equivalente dos liceus fran-
ceses; na Áustria, cerca de 80 mil alunos, dos quais 60 mil nos 250
Gymnasiums; na Espanha, passa-se de 16 mil alunos nos institutos
e nos colégios em 1858 para 25 mil por ,-olra de 1878; o limiar dos
50 mil é transposto apenas em 1918.:w :\a Rússia, a reforma de 1828
introduz oficialmente uma hierarquização escolar: as escolas de pa-
róquia para as classes inferiores. as escolas de distrito para as clas-
ses médias, os ginásios para as classes superiores e a aristocracia.
Esta povoa em mais de 75% os ginásios de 1833 e ainda em mais
de 50% no fim do século XIX: na mesma época, os fi lhos da bur-
guesia urbana passam de 17% a 31%. Os ginásios do império, em-
bora praticamente gratuitos, acolhem apenas 15 mil alunos em 1836
e 30 mil em 1863, para uma população avaliada em 65 milhões de
habitantes, dos q uais apenas cerca de 5 milhões são alfabetizados:
ir ao liceu supõe uma escolaridade primária completa e uma abas-
tança financei ra de família de modo que possa ao mesmo tempo pagar.
os estudos e dispensar a força de trabalho do filho. 21
Os trabalhos de Dominique)ulia, Roger Chartier, Wilhem Frij-
hoff ou Marie-Madeleine Compere mostram que, sob o Antigo Re-
gime, a parcela dos filhos da nobreza permanece bastante pequena,
ainda que amplamente superior à sua porcentagem na distribuição
das categorias sociais da França: o peso dos setores de funções pú-
blicas, de profissões jurídicas ou médicas, de comerciantes c nego-
ciantes, de artesãos abastados e, nas regiões mais rurais, dos figu-
rões d e aldeia ou grandes agricultOres permanece preponderante.
Quanto à cota das classes inferiores - pequenos artesãos ou comer-
ciantes, oficiais inferiores, arrendatários - permanece pequena e
/50 ll/STÓRIA VOS JOVENS

sofre acentuadamente as eventualidades da conjuntura: preço do trigo


e taxa de freqüência escolar variam em paralelo. Sob esse aspecto,
o século xvm é marcado por uma nítida regressão dos efetivos dos
colégios: entre o flffi do século :X.\11 e a Revolução, passa-se de 1200
alunos para 250 em Lyon (La Trinité); de 1200 para 120 em Nantes;
de 1400 para duzentos em Bordéus 22 Para os mais desprovidos, a
única solução continua a ser o instituto religioso, seguido de uma
eventual carreira eclesiástica: mas muitos não chegam até a ordena-
ção, como o jovem veneziano Giovanni Giacomo Casanova.
Atrás dessas cifras brutas, a realidade social: abandonos, repe-
tências, duração da escolaridade são fatos que dependem amplamente
dos componentes sócioeconõmico e sociocultural, mas também do
número de filhos por família ou da distância do estabelecimento.
Pode-se falar de reprodução social das elites "como se o sistema es-
colar da França dos notáveis se houvesse instalado desde ames da
Revolução". 23 A Revolução, e depois o século xrx, não mudarão
muito as coisas, excetuado o peso declinante da nobreza. À França
dos notáveis, do triunfo econômico e cultural elas classes burgue-
sas, corresponclem estabelecimentos ele notáveis: ainda assim é pre-
ciso esclarecer que a denominação de colégio ou de liceu esconde
fortes disparidades de conteúdo de ensino e ele recrutamento so-
cial, dois dados estreitamente ligados. Desse modo, encontram-se
15% de nobres e 4% de filhos de comerciantes artesãos em Belley,
colégio mantido pelos jesuítas, contra respectivamente 8% e 7%
em Grenoble, em 1786-91. 24 A pesquisa de 1864 organizada por
Victor Duruy oferece uma imagem muito precisa da origem social
dos alunos de colégios e liceus franceses sob o Segundo Império:
imagem sem surpresa no peso respectivo das categorias sociopro-
fiss ionais representadas entre os alunos. Menos de 2% de operários,
um pouco menos de 3% de empregados; o mundo das modestas
classes urbanas (artesanato, comércio) totaliza cerca de 30%, aos quais
se acrescentam um pouco mais de 5% de grandes comerciantes e
de grandes industriais; os proprietários, sozinhos, pesam mais de
17%; as profissões liberais, jurídicas ou méclicas, cerca ele 11%; o
mundo da função pública (ensino, exército, funcionários diversos),
perto de 20%. Mas a distribuição não é a mesma nos colégios e nos
liceus, mais elitistas: assim, encontram-se peno de 2,5% de filhos
de operários nos colégios contra menos de 1, 5% nos liceus; 9,65%
de pequenos comerciantes contra 4,06 %; o u ainda menos de 5%
de profissões jurídicas contra mais de 8 %. 25 Um dos mais belos re-
OS JOVENS N/1 ESCOLA c Al.UNOS DF; COLÉGIOS E UCEUS NA FRASÇA E NA EUROPA 151

tratos literários de um colegial oriundo da pequena burguesia é o


de Charles Bovary, o marido de Emma: filho de um ex-assistente
de cirurgião-mor pouco dotado para os negócios, educado por seu
pai em um espírito viril e anticlerical e por sua mãe nos valores con-
trários, recebe do cura da aldeia rudimentos de instrução, enquan-
to continua a vagar por prados e caminhos, em seguida, freqüenta
o colégio ele Rouen e, depois de uma vida de boemia, é admitido
sem glória como oficial sanitário, isto é, médico dos pobres ...
O ensino especial ou moderno é mais aberto que o ensino clás-
sico: no liceu ele Rennes, as crianças oriundas de meios populares
(artesãos, lojistas, pequenos funcionários, camponeses, domésticos
etc ... ) representam dois terços dos efetivos das seções especiais; por-
centagem idêntica nas seções clássicas, mas para as crianças oriun-
das ele meios favorecidos (proprietários, pessoas que vivem de ren-
das, industriais, profissões liberais, funcionários superiores etc.). 26
Mas o que se tem aí são apenas estatísticas socioprofissionais, não
cruzadas com outros dados como o absenteísmo, a duração efetiva
da escolaridade etc. Porém, no total, há um nítido estreitamento entre
o colégio e o liceu, menor, entretanto, que o existente entre o se-
cundário e o primário: em 1821, em cerca de 6 milhões de crianças
escolarizáveis (meninos e meninas), perto de 2 milhões freqüentam
uma escola primária, e apenas 50 mil um colégio ou um liceu, ou
seja, 2, 5% em relação ao primário, menos ele 1% em relação à clas-
se de idade, sendo as meninas ainda mais desfavorecidas.
Elitista por sua função desde a sua criação, o ensino secundá-
rio permanece assim até 1914, pelo menos. Guizot o exprimiu mui-
to bem: se o primário é destinado a " todos os súditos do Estado
(.. .], tanto pelo interesse do Estado quanto pelo elos indivíduos",
o secundário dirige-se apenas aos "homens que são destinados a ter
lazer e abastança, ou que abraçam profissões livres ele ordem mais
elevada, como o comércio, as letras etc." .27 Uma posição quase ofi-
cial que praticamente não evoluirá até o fim do século: a Terceira
República procurará resolver prioritariamente o ensino primário, e
em seguida o ensino secundário feminino (lei Camille Sée de 1880).
E, no total, poucas bolsas provenientes do Estado ou das municipa-
lidades, bolsas cuja atribuição nem sempre obedece a critérios ele
puro mérito. Mas, sem bolsa, jamais o "Coisinha" Alphonse Dau-
det teria podido pretender entrar no colégio de Lyon no qual o aven-
tal que é o único a usar logo o torna vítima da zombaria de seus
colegas e elo desprezo de seus professores ...
!52 fJISTÓRIA DOS jOVENS

ELITISMO E MEDO SOCIAL

Do Antigo Regime ao fim do século XIX, inúmeros são os pu-


blicisras ou os políticos a exprimir seu receio de ver as classes po-
pulares terem acesso ao ensino secundário e reivindicarem uma posi-
ção social não correspondente às suas competências nem aos seus
"interesses" : o que Richelieu e Colberr, mas também Voltaire e Rous-
seau, afirmavam antes da Revolução (muita instrução nas classes
populares ameaça os equilíbrios social e econômico da sociedade),
oucros (Balzac, Stendhal, Reybaud) o reafirmam no século XIX, te-
mendo as conseqüências sociais - às claras, a insurreição ou a re-
volução - de um excesso de letrados condenados à inatividade.
O reitor de Aix-cn-Provence evoca rudemente essa "multidão de
desertores do arado ou da quitanda paterna". 28 Damon, partidário
da Montanha, lhes dá razão retrospectivamente quando descreve seu
itinerário: "Fui educado com grandes senhores. Terminados os meus
estudos, eu não tinha nada( ... ]. A Revolução [de 1789] chegou; eu
e rodos aqueles que se assemelhavam a mim lançamo-nos a ela. O
Antigo Regime nos forçou a isso ao nos fazer educar bem sem abrir
nenhuma perspectiva para os nossos talentos" .29 Cinqüenta anos
mais tarde, Balzac desenvolve uma análise espantosamente similar:
"A juventude explodirá como a caldeira de uma máquina a vapor.
A juventude não tem saída na França, acumula uma avalanche de
capacidades subestimadas, de ambições legítimas e inquietas, casa-
se pouco, as famílias não sabem o que fazer de seus fi lhos: qual será
o rumor que abalará essas massas, não sei; mas elas se lançarão no
estado de coisas atual e o subverterão" .30 Claramente dito ou silen-
ciado, esse medo de um remake de 1789 constitui seguramente uma
das razões essenciais que freou a progressão dos efetivos do secun-
dário nesse século XIX escandido por revoluções cada vez mais so-
ciais. Luís Filipe tem os trunfos na mão ao inscrever seus filhos no
Louis-le-Grand ou no Henri rv: o rei-burguês não teme más com-
panhias para sua progenitura, ainda que depois de 1830 e de 1848
as classes superiores iniciem uma retirada do ensino público, acen-
tuada com a lei Falloux, que instituiu a liberdade do ensino secun-
dário em 1850.
A situação é globalmente comparável nos outros países da Eu-
ropa, mas com variações: por wda parte, a palavra soberana de
liberdade de ensino se impõe, nos Estados constituídos há muito
tempo, como a Grã-Bretanha, ou nos Estados em gestação, como a
OS jOVENS NA ESCOLA c ALUNOS DE COLtGJOS E UCEliS S.4 FRASÇA E NA EUROPA 153

Itália e a Alemanha. Uma liberdade de ensino que está acompanha-


da de seu corolário: a recusa de ampliar o acesso ao ensino secun-
dário por uma intervenção elo Estado. Quanto à Alemanha, a pró-
pria estrutura do país impõe uma grande liberdade de ensino, a uma
só vez no plano administrativo e no plano religioso, cada Land pra-
ticamente conservando seus tipos de escolas ao integrar o Reich.
Na Itália, a luta entre clericais e liberais está no auge entre uma Igre-
ja cujo poder se esfacela e um Estado vitorioso, a um só tempo no
plano territorial e no plano legislativo. Na Escócia, existe incontes-
tavelmente um dos sistemas mais liberais da Europa, com escolas
confessionais e uma escola pública que se laiciza rapidamente para
deixar cada um como senhor de suas convicções religiosas. Mas por
toda parte o ensino secundário aparece como o refúgio da elite, com
o caso-limite da Inglaterra e de suas prestigiosas public schools: es-
sas nove escolas de elite (Eton, Westminster, Winchester, Merchant
Taylor's, Ha'rrow, Charterhouse, Saim Paul's, Rugby, Shrewsbury)
acolhem em 1861 pouco mais de 2700 alunos oriundos das cama-
das sociais mais elevadas; para os outros, restam as grammar schools.
O pode r da Igreja anglicana se afirma com essas escolas privadas
e ricamente dotadas. Os projetos de reforma resultarão no Public
Schools Act de 1868, instituindo escolas fundadas no princípio de
um financiamento público, porém pagas: não se trata, portanto, de
uma reforma social.3 1 A notar, entretanto, que, como a Alemanha,
a Inglaterra desenvolve muito sua rede de escolas técnicas ou pro-
. fissiona:is destinadas aos filhos da middle class, com Marlborough
Cheltenham, o Wellington College ou a Instituição Real de Liver-
pool.
Cada vez mais, a aristocracia e a alta burguesia refugiam-se no
ensino privado: ao saber das sucessivas revoluções, carlistas, orlea-
nistas, bonapartistas e anti-republicanos de todas as facções, freqüen-
temente ligados à hierarquia católica, abandonam liceus e colégios
públicos. De outro lado, o número de bolsas aumenta. Há, portan-
to, por um sistema de compensação, um início de democratização
que beneficia as classes novas evocadas por Gambetta, evolução mais
qualitativa que quantitativa. De resto, não é no público, mas no pri-
vado que se encontram os alunos oriundos de meios desfavoreci-
dos. Em todos os tempos, a Igreja soube recrutar em meios popu-
lares - artesãos de aldeia, camponeses etc. - os elementos mais
dotados para lhes dar uma formação voltada, in fine, para o sacer-
dócio. Essa tradição manteve-se no século XIX nos institutos religio-
154 HISTÓRIA DOS)O VENS

sos que acolhiam muitos filhos de camponeses, longe de destinarem-


se todos à batina. Comparando a origem social dos alunos do colé-
gio católico de Marcq-en-Baroeul, do colégio comuna! de Tourcoing
e do instituto religioso de Cambrai, Robert Gildea mostra que os
três estabelecimentos acolhem respectivamente 22, 5%, 6,5% e 2,1%
de filhos de proprietários ou de possuidores de rendas, contra 1,3%,
5,4% e 21 ,1% de filhos de anesãos.3 2 Ponto notável, encontram-se
mais de 30 % de filhos de camponeses no instituto religioso contra
10% nos colégios. Os internatos privados e leigos também sabem
recrutar o povo: naquele freqüentado pelo jovem Frédéric Mistral,
filho de camponeses abastados, o diretor percorre os campos à pro-
cura de cabeças por formar, com a condição de ser pago em traba-
lhos ou em alimento ...
O colégio e o liceu, o internato e o instituto produzem tam-
bém alunos pouco e mal formados, cujo nível é implacavelmente
revelado pelo baccalauréat. * Longe de ser uma formalidade, este
é um indicador da qualidade do ensino recebido, ou da relação en-
tre o supostO nível elos alunos e seu nível real. Naturalmente, con-
vém tomar suas distâncias com relação a inúmeros testemunhos de
examinadores que, já nesse tempo, lamentam-se pela fraca cultura
dos candidatos, por sua incapacidade de escrever em francês - ou
em latim - co rreto, pela queda elo nível etc. Não é menos verdade
que as estatísticas estão aí: uma taxa de êxito de cerca de 50% -55 %
no baccalauréat em letras é considerada normal. Jules Valles ob-
tém o precioso diploma apenas na terceira tentativa e provavelmente
graças às recomendações de um amigo, filho de um professor in-
fluente. O caso de Valles, atípico pelo radicalismo ele seu engaja-
mento político, o é menos por sua difícil busca de uma posição so-
cial, para retomar o título de uma obra célebre de Louis Reybaud
publicada em 1848. A dedicatória do Bachetier, "a todos aqueles
que, alimentados de grego e de latim, morreram ele fome", parece,
por vezes, de um exagero bem vallesiano: quando muito, associa-
se essa fórmula, que coloca, contudo, a questão essencial do futuro
dos alunos de liceus, no período difícil em que vive Valies. Isso sig-
nifica esquecer que, durante todo o século XIX, apenas uma peque-
na minoria desses alunos prossegue estudos em faculdade ou em
uma grande escola. Para outros, a inserção social rorna-se uma me-
ta preocupante se não são filhos de possuidores de rendas, de co-

(•) Primeiro grau obtido ao término dos estudos secundários. (N. T.)
OS jO I'I::,vs S A ESCOLAc A/.U,\.OS nr: COL!!GIOS E UCEL"S .YA FRASÇA E .\A EI.JIIOPA 155

merciantes ou negociantes, de proprietários fundiários. A reco men-


dação desempenha então um papel essencial para entrar em uma
administração, um ministério ou uma empresa, e aí rabiscar papel
o dia inteiro. O funcionário e o empregado são os produtos mais
correntes do ensino secundário. A desclassificação social, como o
oposto da ambição social, é um dos grandes temas desenvolvidos
pelos políticos e escritores de um século XIX fértil em insurreições
e revoluções: ora, estas não são a ação de todos esses frustrados,
trocando a pena pelo fuzil? Visão bem definida que, mais uma vez,
testemunha a aposta fundamental representada pelo ensino secun-
dário e defende um comportamento malthusiano: nenhuma restri-
ção legal, nenhum numerus clausus para limitar o acesso aos colé-
gios e aos liceus, mas uma vontade política claramente afirmada de
barrar o caminho aos filh os das classes inferiores.

O COLÉGIO OU A RECLUSÃO DO CORPO E DO ESPÍRITO

O tamanho dos estabelecimentos escolares é muito variável: de


menos de cinqüenta alunos para pequenos estabelecimentos pro-
vincianos (nove em Sablé em 1842!) a mais de mil para liceus reno-
mados como o Louis-le-Grand. Tamanho variável igualmente para
as public schools inglesas entre Eron e seus oitocentos alunos e Saint-
Paul com apenas 153, em memória dos 153 peixes pescados pelos
apóstolos por ocasião da pesca miraculosa. Em 1864, os efetivos dos
liceus franceses escalonam-se de 79 a 1867 alunos, os dos colégios
de 21 a 940. Diferentes por seu tamanho, os estabelecimentos o são
também pelo nível dos estudos: muitos pequenos internatos ofere-
cem alguns rudimentos de latim e de francês, espécie de ensino ele-
mentar mais extenso. Os colégios de pequenas cidades produzem
bons alunos, mas estes perdem suas ilusões ao chegar aos colégios
reais das grandes cidades: Hippolyte Forrou!, futuro ministro da Ins-
trução Pública, teve essa experiência ao passar de Digne a Lyon.
Quanto aos docentes, fala-se com pudor de sua heterogeneidade nos
relatórios de inspeção: para um Renan, um Sarcey, um Michelet,
quantos mestres, religiosos ou leigos, recrutados sem formação e,
por vezes, incompetentes, e - mais grave - não tendo nenhuma
noção do que pode ser um adolescente? O relatório anual da inspe-
ção geral de 1877 avalia em 3 7% do tOtal os mestres de elite, em
43% os medíocres, em 20% (um em cinco!) os incapazes ... 33
I 56 HISTÓRIA DOS JOVENS

Em cada estabelecimento, duas categorias de alunos: os inter-


nos, cujo crescimento chega ao fim sob o Segundo Império (cerca
de dois terços dos efetivos contra um terço antes de 1789) e os ex-
ternos, que no último terço do século XJX voltam a ser majoritários.
Mmação de ordem cultural importante, mas também razão material:
o externato é muito menos caro (em torno de trezentos francos em
1864) que o internatO de liceu (739 francos) ou de colégio (649 fran-
cos). O externo é freqüentemente mal controlado pela administra-
ção: é menos suscetível de vigilância, e pode introduzir jornais ou
livros proibidos, relatar os acontecimentos políticos, servir de men-
sageiro para os internos. Sabe-se igualmente de toda a importância
do internato nas pubtic schools inglesas, um internato considerado
como valor essencial do sistema educativo e acessoriamente como
uma fonte de rendimentos não desprezível.
O quadro de vida dos alunos de colégios e liceus corresponde
pouco aos ideais pedagógicos definidos na virada dos dois séculos.
Construções freqüentemente vetustas, dormitórios mal aquecidos
e mal arejados; pátios·estreitos e desnudos; tonalidade dominante,
inclusive nos grandes liceus: o cinza-muralha. VictOr Duruy, então
inspetor geral, faz uma averiguação em 1863, na Vienne: ali visita
o liceu de Poltlers, "como envergonhado de suas muralhas negras,
de seu ar de hospüal e de prisão". Conclusão do futuro ministro:
"Uma mãe deve hesitar muito antes de vir bater à nossa pona .34 A
averiguação de 1867 sobre os 77 liceus do ensino público encontra
apenas treze considerados em estado satisfatório e 22 em estado de
grande deterioração. Para algumas exceções tardias como Lakanal,
em Sceaux, ou Michelet, em Vanves, dotados de verdadeiros par-
ques propícios aos exercícios físicos ou às competições esportivas,
quantos colégios ou liceus refugiados em locais não concebidos pa-
ra o ensino! As congregações docentes, muitas vezes alojadas em
antigos edifícios conventuais cercados de jardins, mostram-se mais
bem aquinhoad<\S. Em Belley, o colégio mantido pelos jesuítas, e
que acolhe os filh os das grandes famílias do Piemonte ou da Lom-
bardia, destaca-se por seus vastos jardins, suas alamedas de árvores
frutíferas, seus canteiros de flores e de legumes. Os edifícios são am-
plos, limpos e arejados. Em Soreze, encontra-se um vasto parque,
fontes, aragem c árvores, das quais Lacordaire, diretor do colégio
de 1854 a 1860, manda abater duzentas por preocupação de ordem
e de claridade. Vantagem também para as public schools inglesas e
seus grandes parques cobertos de um gramado denso e verde.
OS )OI "ESS SA ESCOLA: ALU.\'05 DE COUGIOS E UCEl.."S .\"A FJH\"ÇA E .\"A EL'ROPA 15 7

A higiene é mais que medíocre. No entanto, os regulamentos


pretendem-se persuasivos, já no fim do Amigo Regime: "Se alguma
criança se abandonar à suj eira, empregar-se-ão todos os meios pos-
síveis para corrigi-la; chegar-se-á até mesmo às punições, se isso for
necessário" .35 Voto piedoso: a água fria dos simples lavabos comuns
- quando existem- não incita muito à limpeza. No colégio de Ven-
dOme, no fim do Império, " Java-se o rosto" em baldes de água fria,
cada um por sua vez, e depois se é penteado e empoado por mulhe-
res; o banho, mensal no melhor dos casos, testemunha uma relação
com a limpeza_mais marcada pelas práticas do Antigo Regime do
que pelas reflexões dos higienistas. :'\o colégio Saint-Winoc de Ber-
gues, as irmãs fazem todas as manhãs uma inspeção simbólica das
orelhas e do pescoço.36 Os banheiros são com freqüência repug-
nantes, o papeÚnexistente é por vezes substituído pelo lenço ... Em
seu conjunto, os 'locais são raramente limpos, e as salas de aula su-
pcrlotadas, pouco arejadas, sobretudo no inverno em que o aque-
cimento se faz raro, exalam odores tenazes: "Essa espécie de hú-
mus colegial, misturado constantemente à lama que trazíamos dos
pátios, formava um estrume de um insuportável fedor" .37 Na maior
pane dos casos, o miasma parece prevalecer decididamente sobre
o junquilho ... Contudo, as epidemias que atingem ainda a França
no século XIX, notadamente o cólera, poupam geralmente a popu-
lação escolar desses estabelecimentos. Há frieiras, gretaduras, pou-
cas fraturas e doenças graves. A alimentação, embora denegrida pe-
los colegiais, parece pelo menos satisfatória em quantidade na maior
parte dos casos: as queixas se levantam sobretudo contra o abuso
de conservas ou a monotonia das refeições.
Os horários englobam todo o dia do aluno de colégio ou de
liceu , se este é interno. Como no Louis-le-Grand em 1769 ou no
colégio de Niort em 1806, levanta-se às cinco no verão e às cinco
c meia no inverno no colégio de Tulle, estudado por Alain Corbin
com relação ao ano de 1864,38 e deita-se por volta das nove e meia
da noite no máximo. Horários de camponeses ou de operários, nu-
ma época em q ue a vida econômica e social ainda se calca ampla-
mente na hora solar. Horários de prisioneiros, também, compará-
veis aos de uma prisão como Fomevrault: o interno encarcérado
assemelha-se ao detento. Mas tradição humanista também, se nos
lembrarmos que em Rabelais o aluno Gargântua levanta-se às qua-
tro e deita-se às oito no inverno e às nove no verão. Durante essas
quinze a dezesseis horas de atividade, apenas cinco horas de curso,
15 8 HISTÓRIA DOS }OI'ENS

em média, e mais de seis horas ele estudo, ou seja, onze horas pelo
menos em posição sentada e, teoricamente, silenciosa ... Michelet
tem razão de evocar " assembléias de pequenos paralíticos, de per-
netas, de velhos pequenos escribas" .39 Esses horários aparecem com
freqüência aos seus usuários como uma prévia do regime militar,
sobretudo para a geração que, como Alfred de Vigny, cresceu so b
o Primeiro Império: "Nossos preceptores pareciam arautos, nossas
salas de estudos casernas, nossas recreações manobras e nossos exa-
mes revistas" .1° Conhece-se também toda a importância do unifor-
me usado pelos alunos de liceu: instaurado sob o Império , foi su-
primido sob a Restauração nos estabelecimentos públicos, primeira
etapa da desmilitarização elos liceus. Ele subsiste, contudo, em es-
tabelecimentos privados como Soreze, onde, além disso, a jaqueta
marrom é assinalada por uma cor diferente segundo o nível (verde,
amarelo, azul, vermelho, elos mais jovens aos mais velhos), o que
permite estabelecer uma hierarquia visual entre os alunos.
Quanto aos efetivos das classes, são muito variáveis, mas, nos
grandes liceus, não é raro ver, no século XI X, turmas de sessenta,
oitenta ou mesmo cem alunos em retórica. Em Strasbourg, a classe
de retórica de Jules Ferry compreende 51 alunos em 1848 . Ainda
que seja difícil generalizar, alunos de colégios e liceus vivem muitas
vezes mal essa reclusão interrompida apenas por alguns raros pas-
seios de percurso sempre idêntico, seis semanas de férias de verão
sob a Monarquia de Julho, e pequenas férias passadas no estabeleci-
mento para os internos cuja família é muito pobre ou está muito
· distante para buscá-los . Muito pouco ou nada de exercícios físicos:
a obra pioneira de Amoros não atingiu diretamente a escola, e as
tentativas para criar uma ginástica escolar chocaram-se, ao longo do
século xrx, com o obstáculo das mentalidades e da administração.
Caso bastante excepcional o do colégio de Soreze, onde Armand
Barbes entra em 1824: além de cursos ministrados por pedagogos
renomados, ali se pode praticar diferentes esportes e equitação. 41
Facultativa nos liceus imperiais a partir de 1854, o brigatória em to-
dos os níveis de ensino (escola, colégio, liceu , escola normal) em
1869, a ginástica é novamente proclamada o brigatória em 1880, em
um país marcado pela derrota de 1870 - o paralelo com o ensino
de história é significativo da vontade de enraizar o sentimento na-
cional e o espírito de revanche no seio das futuras elites do país.
Conhece-se o avanço inglês nesse domínio, tendo o colegial a
obrigação de ser um sportsman consumado: cultivam-se muito as
virtudes viris dos esportes, um dos quais leva o nome de uma céle-
OS JOVENS N'l E.SCOlll: ALUNOS DE COLÉGIOS E UCEL"S .\:-1 FRASÇA E SA EUROPA J59

bre public school, a de Rugby. Foi ali que Thomas Arnold desen-
volveu o ideal do muscular christian. Na França, Michelet, desde
1869, reclamava férias à beira-mar, passeios botânicos e geológicos
e uma ginástica digna desse nome, como a que os gregos pratica-
vam e da qual os alemães haviam sabido redescobrir o espírito com
Friedrich Luclwig]ahn, "der Turnvater" ("o pai da ginástica"). Mas
foi preciso esperar o fim do século para que a ação ela Liga Francesa
do Ensino ou do Comitê para a Propagação dos Exercícios Físicos
na Educação, de personalidades como Pierre Coubertin, Jules Simon,
Philippe Daryl, ou mesmo dos próprios alunos ele liceus, fizesse do
esporte um componente da educação: assim , alunos do liceu Con-
dorcet criaram, fora da universidade, o Racing Club da França em
1882 e os do Saint-Louis criaram o Stade Français em 1883.

OS REGIMES PASSAM, AS H UMANIDADES PERMANECElvl

Quanto às matérias ensinadas, sabe-se da preeminência absolu-


ta das humanidades e das letras, herdada da ratio studiorum dos
jesuítas. Na Europa, não existe exceção à regra: as publicou gram-
mar schools inglesas, os ginásios alemães, austríacos ou italianos,
todos cultivam essa herança greco-romana que produz uma cultura
européia, um sinal de vinculação a uma classe social e fornece, por
veze;s, uma língua vernácula. Na Espanha, os diferentes planos de
estudos que se sucedem ao sabor das mudanças políticas não afe-
tam na verdade a primazia das " humanidades" :42 mas percebe-se
claramente, como na França dos anos 1840, o embate ideológico
que se perfila atrás do ensino do latim, a língua da Igreja. Na Fran-
ça, La Chalotais desde 1763, Diderot, D'Alambert e tantos outros
mostram a inutilidade do latim para a maior parte dos alunos dos
colégios. Entretanto, depois da experiência inovadora mas malograda
das Écoles centrales (1795-1805), em que as matérias científicas ha-
viam feito uma sólida entrada, voltOu-se praticamente ao cursus dos
colégios do Antigo Regime. Os progressos da história são hesitan-
tes: em 1818, Royer-Collard a transforma em matéria obrigatória nos
colégios reais, mas é preciso esperar Duruy para a introdução da
história contemporânea em curso de filosofia (1 867); depois da der-
rota de 1870, a matéria é ensinada em todos os cursos. A filosofia,
matéria rio centro elas lutas entre clericais e liberais, por muito tem-
po ensinada em latim, e que apenas se impõe realmente sob a Mo-
160 HISTÓRIA DOS JOVENS

narquia de Julho, é novamente rebaixada à categoria de "lógica"


por FortOul, antes de ser restabelecida por Duruy. Apesar da lenta
introdução das línguas vivas (facultativas em 1829, obrigatórias em
1.838), das matemáticas (em 1826, no primeiro ano colegiial) e das .
mâtérias científicas (física no curso de filosofia em 1826) nos pro-
gramas, o latim, o francês e o grego, em menor grau, continuam a
ser a base da educação de todo homem de bem.
Ninguém consegue realmente pôr em questão essa preponde-
rância que as cifras do baccalauréat traduzem bem: em 1830,
contam-se 34 bacharéis em ciências para 2816 bacharéis em letras.
Entre as provas enfrentadas pelo conde D'Haussonville no bacca-
lauréat de 1827, a tradução latina (dos versos das Geórgicas de Vir-
gílio) e as matemáticas (uma multiplicação ... ).43 A tentativa de " bi-
furcação" imaginada por H. Forrou!, ministro da Instrução Pública
em 1852 (uma seção literária e uma seção científica depois do ter-
ceiro ano ginasial) será suprimida por V. Duruy em 1863 . Os cursos
especiais de Vatimesnil (1829) ou de Savandy (1847), e o ensino pri-
.mário superior criado por Guizot em 1833 ou o ensino secundário
especial estabelecido por Duruy em 1863-5 serão considerados com
decidido desprezo nas altas esferas da universidade. Valies , do ·qual
se citou a dedicatória irada do Bachelier, torna-se o ardente pro-
pagador de um ensino baseado na aprendizagem da ortografia, do
desenho, da mecânica, ela física e da química. 44 Mas é preciso es-
perar 1891 para ver a criação ele uma seção moderna nos estabele-
cimentos secundários ele 1902 para a instalação de seções que con-
duzem a baccalauréats nitidamente diferenciados: A (latim-grego),
B (latim-línguas), C (latim-ciências) e D (ciências-línguas).
Os empregos do tempo refletem bem, durante todo o século
XIX, esse peso das humanidades, verdadeiro triunfo tardio do ensi-
no do Antigo Regime. Em 1843, o colegial típico de primeiro ano
ginasial engole dez horas semanais de latim, grego e francês e três
horas de escrita, contra uma hora de cálculo; em curso de retórica,
ele não tem mais que oito horas de humanidades, mas sempre uma
única hora de aritmética e de geometria, completadas com uma ou
duas horas de religião, de música, ele história e de línguas vivas, sendo
o desenho mais favorecido, com três horas semanais.45 Em vão Ed-
gard Quinet, Jules Simon, Frédéric Bastiat denunciaram o conteúdo
desse ensino; em vão Jules Valles mostrou o ridículo de exercícios
estereotipados que consistem em plagiar os dicionários de latim pa-
ra versificar sofrivelmente e Maxime du Camp zombou desses "sà-
OS}OI'ESS SA ESCOLA. ALUt\ '05 DE COLÉGIOS E UCEt"i ·"-' F.'U.''Ç~ E-"~ Et:ROP.4 161

bichões que não sabem nada e são incapazes, ao sair da escola. de


explicar um verso de Virgílio", assim como Vicror Hugo declamar:
" Mercadores de grego! Mercado res de latim! Pedantes! Rabugen-
ros!/Filisteus! pernósticos! Eu vos odeio, pedagogos! " de nada adian-
tou: o culto dos antigos, por vezes ameaçado por seu paganismo,
ressurgiu periodicamente, inclusive sob a República, e, com freqüên-
cia, dele extraiu suas referências.
O quadro é diferente na Alemanha: embora de condição infe-
rior aos Gymnasiums, únicos a conferir o Abi tur que permite o aces-
so à universidade, as Realschulen , das quais a primeira foi criada
em 1747 em Berlim pelo pasror Hecker, recrutam uma vastíssima
clientela no seio da pequena e média burguesia e desempenham um
papel importante na formação de artesãos qualificados ou ele técni-
cos. Igualmente inferiores aos Gy mnasiums, as BUt·gersch ulen aco-
lhem aqueles que não podem ou não ·querem seguir um ensino clás-
sico longo: essa hierarquização do saber, à qual corresponde uma
hierarquização da população escolar, instala-se entre o fim do sécu-
lo xvw c o início do século x1x. Na Itália, Cavour intercede e legis-
la igualmente pelo desenvoh·imento de um ensino técnico que re-
sulte em produrores e não em doutores ou retóricos. Na Inglaterra,
as public schools e as grammar schools dirigem seu programa para
o estudo do grego e do latim, desprezando matemáticas, ciências
e filosofia, sendo a história (nacional) e a geografia antes mais bem
tratadas. Mas existem inúmeras escolas p rofissionais que formam ar-
tesãos, ou mesmo engenheiros, em todos os corpos de ofícios.

A COROA E A PALMATÓRIA

Na pedagogia em uso ou em elaboração nos séculos xvm e XIX,


encontram-se sempre os dois meios de balizar o comportamento dos
alunos e de efetuar uma distinção entre o indivíduo e a coletivida-
de à qual pertence: o castigo e a recompensa. Esta última faz parte
da p edagogia dos jesuítas, que desenvolvem ao máximo o espírito
de emulação por esse artifício: nomeação de "imperadores" com
cruz de prata na botoeira, quadros de honra, prêmios sob a forma
de livros) distribuição de palmas, louros, coroas na melhor tradição
antiga, tudo isso existe so b o Antigo Regime e será conservado de-
pois da Revo lução, inclusive nos estabelecimentos públicos. Sob a
Restauração, a isso se acrescenta a condecoração do lis. No século
XIX, a d istribuição dos prêmios, com borda dourada, por vezes en-
162 HISTÓRIA DOSJ OVJ:::NS

cadernados em couro, porém no mais das vezes em cartonagem ver-


melha, com o timbre do estabelecimento, fornece o quadro da grande
cerimônia anual que a República prolongará c ampliará, antes de seu
dcsaparecimemo momentâneo em maio de 1968.
Alphonse Daudet faz o relato dessa festa de fim de ano em um
pequeno colégio de Cévennes, sob o Segundo Império: no dia da
cerimônia, uma tenda é erguida no pátio, panos forram os muros,
bandeiras cobrem as árvores, poltronas de veludo grená, destinadas
às autoridades, guarnecem o estrado.46 Cada fim de ano escolar,
Lamartine em pilha no veículo da família coroas de louros e prêmios
de todo tipo. Thiers, bolsista estudioso, faz outro tanto no colégio
de Marselha: sua partida para a faculdade de direito de Aix deixa
comovido pesar em seus professores ... Em 1822, Auguste Blanqui,
aluno do primeiro ano no colégio Charlemagne e futuro socialista
revolucionário, recebe o primeiro prêmio de história e menções hon-
rosas em versos latinos, versão latina e versão grega. Aluno do liceu
de Lyon de 18 19 a 1825,Jules Favre acumula recompensas, encon-
trando nesse sucesso escolar uma compensação para uma situação
social difícil: seu pai, comerciante atacadista de tecidos, ficara ar-
ruinado em 1815. No fim da Monarquia de Julho, o jovem}ules Ferry
também acumula os livros de prêmio no colégio de Saint-Dié, in-
clusive o primeiro prêmio de instrução religiosa 47 e continua nes-
se impulso no colégio real de Strasbourg, obtendo brilhantememe
seu baccalauréat aos dezesseis anos.
Para a elite, enfim, a recompensa suprema é ser apresentado
no concurso geral (criado em 1747, suprimido sob a Revolução, res-
tabelecido em 1809), a fim de ali defender as cores de seu liceu c
receber prêmios ou menções honrosas que servirão ao renome, e
à publicidade, do estabelecimento. Todas as personalidades políti -
cas, literárias, médicas ou jurídicas do século xrx se destacarão no
concurso geral. Lista de laureados particularmente eloqüente em
1848, ano no emanto comurbado, para a classe de retórica: Edmond
About ganha o primeiro prêmio de dissertação franc esa, Hippolytc
Taine o segundo prêmio, Francisque Sarcey a primeira menção hon-
rosa e François Hugo, filho de Victor, a segunda. Escândalo em 1856
na Academia de Toulouse, onde Gambetta, aluno do liceu de Ca-
hors, recusa publicamente o segundo prêmio de dissertação fran-
cesa, considerando que o primeiro prêmio fora concedido por fa-
vor ao filho do prefeito de Lot. 48
OS jOVENS NA ESCOLA: ALUNOS DE COLEGIOS E UCEL'S .\>! FR.-{Sç.-\ E.\:~ EUROPA 163

No oposto da recompensa, mas com seu complemento no sis-


tema educativo, a punição. Os castigos corporais, em uso em toda
a Europa até o século xvm, acabam, entretanto, por cair em desu-
so no fim do Antigo Regime - salvo na Inglaterra e na Rússia -
antes de ser oficialmente abolido, na França, em 1803. Mas nas pu-
blic schoo!s inglesas e nos ginásios russos, portanto, em dois siste-
mas políticos diferentes, utilizam-se comumente as varas. Contudo,
se "a repressão, na Inglaterra, faz pane do sistema de educação, na
Rússia, o substitui": dispõe-se de testemunhos concordantes sobre
as violências da administração dos liceus e mais ainda das escolas
militares, que, no entanto, acolhem jovens nobres, usando do chi-
cote até o extremo limite da tolerância da dor, por vezes com a in-
tervenção de um médico decidindo acerca da interrupção ou do pros-
seguimento do castigo; violências também nos institutos religiosos
russos, que acolhem os mais pobres dos alunos do secundário, on-
de as varas são moeda corrente; onde os punidos devem ajoelhar~
se sobre uma prancha cortanté ou, em pé, carregar nos braços uma
grande pedra.49 Na França, desde o século xvm, evoca-se a idéia de
prevenção no regulamento do colégio Louis-le-Grand de 1769: os
professores adjuntos não empregarão nenhum meio humilhante nem
ofensivo e ''evitarão maltratar ou ferir os escolares por qualquer causa
que seja, '. so Mas o uso da palmatória (larga espátula de madeira ou
de couro espesso, a ultima 1·atio patrum) aplicada pelo " corretor",
do chicote, do açoite ou da régua era ainda temido pelos colegiais
do século XIX. Pouco a pouco, substituíram-se esses castigos que co-
meçavam a chocar as classes médias por proibições (notadamente
de receber a visita dos pais), privações (de alimento até 1809, de
saída, de recreação, ou mesmo de uma parte das férias) ou punições
mais simbólicas (uma roupa de burel, equivalente do chapéu de burro
na escola primária, uma mesa de penitência para as refeições, um
banco de preguiça e o envio para o canto, com a variante clerical
de manter os braços em cruz). Entre os mais usados dos castigos,
a prisão e a lição suplementar.
A prisão ou as detenções foram suprimidas apenas em 1863.
Sua utilização por vezes maciça (no Louis-le-Grand, mais de 1900
dias de prisão são "distribuídos" a mais de 11 00 alunos no período
1836-37)' 1 tenderia a fazer duvidar da eficácia do castigo, sendo a
sanção provavelmente percebida como um título de glória para aque-
le que era atingido por ela. Mas alguns liceus arrumam verdadeiras
celas - treze no Louis-le-Grand, duas no Henri IV - , com barras
161 11/STÓRIA DOS jOVENS

de ferro nas janelas e postigo nas portas para vigiar os " detentos" .
No colégio de Vendôme, os alunos apelidam de "alcova" um cala-
bouço situado sob a escada, e nos dormitórios existem também "cal-
ças de madeira'' , uma espécie de cela minúscula. No Rollin, trata-se
de jaulas contendo uma mesa cujo corte molda-se ao contorno do
aluno na altura do estômago, não podendo o prisioneiro ''passar as
mãos em nenhuma parte inferior de seu corpo" .52 Se o regime da
prisão geralmente não é muito duro, a privação ele liberdade pode
prolongar-se no caso de recusa do condenado de retratar-se; Lamar-
tine, interno em Lyon, pego depois de uma fuga em companhia de
dois colegas, permanecerá um mês no calabouço, de onde apenas
sairá tirado por sua mãe.
A lição dobrada é uma punição escrita que vai da dissertação
à cópia, passando pelos verbos latinos a copiar, talvez ma.is temida,
por vezes, que o calabouço, pois priva de recreação ou de saída,
dá um trabalho suplementar a fazer no estudo ou à noite e não tem
o prestígio da prisão para suas vítimas. Ainda mais que dos profes-
sores, ela é a arma favorita dos vigilantes. Suas vítimas guardam-lhe
uma lembrança tenaz e um vivo rancor; de Victor Hugo, aluno do
colégio Napoleón sob o Primeiro Império, com "seus bancos de car-
valho escuros, seus longos dormitórios melancólicos,/Seus pedan-
tes que fazem, entre a papelada,/ Devorar a hora da brincadeira pe-
las lições vorazes", a Paul Verlaine, aluno do modesto internato
Landry sob o Segundo Império, que, não sabendo o pretérito do
verbo legere, vê-se condenado a copiá-lo dez vezes, com sua tradu-
ção, no calabouço. Terminemos este rápido florilégio lembrando
a dedicatória de Jules Valles em L 'enjant: "A todos aqueles que mor-
reram de tédio no colégio o u a quem se fez chorar na família, que,
durante sua infância, foram tiranizados por seus mestres ou espanca-
dos por seus pais". A visão vallesiana do colégio que "mofa, transpi-
ra tédio e fede a tinta'', associada de maneira significativa à da famí-
lia, evidentemente não pode servir de mero padrão a uma apreensão
" média" da atmosfera colegial: Valles, filho de vigilante que se tor-
nou professor, tinha duplas razões para detestar tanto o lugar quan-
to os q ue ali trabalhavam. Também ele foi transformado em "besta
de lições".
Contudo, convém recolocar em questão essa visão uniforme
demais do colégio ou do liceu-caserna. Depois da experiência das
Écoles centrates, a estrita aplicação da parte de jovens burgueses ha-
bituados a mais liberdade e a mais consideração. Diante dessa per-
OSJOI 'EXS .\"A F.SCOI.Ac ,ILU.\'05 VE COLiGIOS E LICEl"S .\'A FR...!XÇA E ,\A ECROPA 16 5

da de poder e desse sentimento de dano à sua dignidade social. os


alunos de liceu reagiram então pela revolta: revolta ele caráter por
vezes político - muitOs desses alunos fa larão ou agirão em fa,·or
de Napoleão em 1814-5 - ,mas também recusa de um nivclamemo
social. Assim, em Lyon, em Marselha e notadamente em Toulouse.
os iniciantes multiplicam-se. Na " cidade rosada", o diretOr do liceu,
inaugurado em 1806, logo fica sobrecarregado: bebedeiras, rixas,
lançamento ele maçãs nos servidores. grafites obscenos multiplicam-
se; os alunos saem, vão a espetáculos ou ao cabaré, cometem diver-
sas clepreclaçõcs, molestam aqueles que tentam impedi-los; a subs-
tituição do diretor por um abade de pulso permite restabelecer a
ordem.5:i Tais incidentes são bastante freqüemes sob a Restauração .
No colégio real de Marselha, a nomeação do abade Denans como
diretor, em 1821, vai provocar um lento deslizamentO do estabele-
cimento para fora das normas admitidas em matéria de disciplina:
alunos que dormem fora, construção de cabanas n o pátio, introdu-
ção de livros c de jornais, caricaturas consideradas obscenas, petar-
dos e baile ele máscaras por ocasião do Carnaval ele 1823, algazarra
contra professores ou mestres de estudos; mas também discursos
e grafites anti-religiosos, rixas entre carbonários e realistas, e con-
testação geral da autOridade da administração. Essa progressiva ins-
talação de uma contra-autoridade, com emissão de uma " constitui-
ção colegial" da parte do clã liberal, estende-se por mais de dois
anos : ela vai finalmente acarretar uma reação brutal, a dissolução
do internato5 4
Estamos então, na encruzilhada do social e elo político, na per-
cepção de comportamentos juvenis que se prolongam por todo o
século xrx: a relação de autoridades introduzida pelo regulamento
encontra-se em permanente confronto com a dimensão cl.e uma con-
testação mais ou menos violenta provocada por sua aplicação. Con-
testação devida também à negação ele qualquer forma de cultura de
oposição: nenhuma atividade de grupo é tolerada nos colégios e li-
ceus (os pequenos círculos ele alunos de liceus localizados por Alain
Besançon na Rússia não existem), nem forma alguma ele expressão:
um Georges Canning, aluno em Eton no fim do século xvw , ani-
mando uma revista político-literária, O Microcosmo , e ali publican-
do um artigo que condena a dominação da Grécia, é por cerro uma
coisa rara na Inglaterra, mas impossível na França. Conhece-se o caso
mais tardio ele Mareei Proust participando, com colegas do liceu Con-
dorcet, da redação da Revue Lilas, de essência puramente literária.
166 li/STÓRIA DOS jOVENS

COMPORTAMENTOS RELIGIOSOS

Difícil ava liar com justeza os comportamentos religiosos dos


alunos dos liceus e colégios. Os que fazem seus estudos em esta-
belecimentos mantidos por congregações docentes estão evidente-
mente sujeitos, no ano escolar, a práticas deixadas à apreciação das
famílias nos estabelecimentos públicos, especialmente o compare-
cimento à missa, a confissão e a comunhão pascal. Os colégios man-
tidos pelos " bons padres" praticam a oração matinal e participam
como corpo da celebração do santo patrono do estabelecimento
e das procissões que marcam as festas religiosas nacionais ou lo-
cais. Contudo, incidentes provocados por comportamentos anti-
religiosos existem desde antes da Revolução. M.-M. Compere cita
o testemunho de um oratoriano, ]oseph Villier, pedindo em 1789
a supressão de todo constrangimento em matéria de religião: " Fui
tantas vezes testemunha da repugnância dos escolares em ir à mis-
sa, das irreverências, dos murmúrios, do desgosto que ela acarreta-
va e que infelizmente se conservou por muito tempo depois de sua
saída do colégio ... ". 55 Mas como apreender a realidade, na medi-
da em que os comportamentos religiosos desses alunos aparecem
apenas nos casos ele crise? Como no Colégio Real de Marselha já
evocado, onde, nos anos 1821 -3, apenas um número muito peque-
no de alunos é considerado freqüentador dos sacramentos, outros
" gabam-se abertamente do horrível sacrilégio que cometem uma
vez por ano no tempo pascal". As missas são perturbadas por mur-
múrios e apupos. Alunos escreveram " horríveis blasfêmias na cape-
la aonde haviam ido para confessar-se". Participa-se da procissão
da quarta-feira de Cinzas do ano de 1823 e "uma divisão inteira te-
ve a audácia de zombar das pessoas que a ela assistiram, de rir às
gargalhadas e de imitar de uma maneira burlesca os cantos religio-
sos" _56 Alhures, testemunhos afirmam que os colegiais " cuspiam
o pão de Deus" e utilizavam as hóstias para lacrar cart~s .57
Embora paroxísticos e ligados a uma situação e a uma época
de surda luta entre realistas clericais e liberais anticlericais, esses com-
portamentos não deixam de traduzir a descristianização que atinge
sensivelmente as jovens classes burguesas no século xrx. Houve mui-
tas tentalivas de reconquista, brutais e ineficazes sob a Restauração,
mais hábeis sob a Monarquia de Julho e o Segundo Império: a ação
de um homem como Lacordaire, diretor espiritual de alunos de li-
ceu e de estudantes, e do colégio de Soreze, ilustra bem essa ação
OS } OVE;\·s SA ESCOLA: ALUNOS DE COLÉGIOS E LICEt:S ,\:-1 FRANÇA E NA EUROPA 167

dos católicos liberais orientada para a juventude. No seio dessa ju-


ventude, alunos de colégios, ele liceus e universitários, a França dos
notáveis do futuro (Lamennais deu o títulÇ) de Av enir ao jornal que
lançou com Lacordaire e Montalemben em 1830), constituem um
objetivo privilegiado. Desde o fim dos anos 1820, mas sobretudo
sob a Monarquia de Julho , nascem conferências ou sociedades ca-
tólicas o u protestantes que procuram reunir a juventude das esco-
las: movimentos esparsos, ainda pouco numerosos em termos de
adeptos, mas muito voluntaristas e empreendedores. 58 Se os pas-
calizantes se fazem raros nos anos 1830 (no Louis-le-Grand, são 25
em 489 internos, em 1832), seu número aumenta mais tarde: mas
esse é um bom indício de uma verdadeira recristianização? Dispõe-
se do testemunho bastante raro de um interno do liceu de Bastia,
aliás republicano, que, em 1878, reprova seu pai, por não ter " fei-
tO sua Páscoa", em termos muitO duros: "Se fosse jovem, ainda pas-
saria, mas está em uma idade critica, ·idade em que não se deve
afastar-se de seu Deus. [... ] Que alegria para mim se tivesse podido
comungar com você na sexta-feira depois da Páscoa!" .59 No entan-
to, a longo prazo, o movimento geral parece ser de fato a afirma-
ção de um deísmo muito voltairiano, ou mesmo de um ateísmo mais
ou menos confesso, ainda que respeite as fo rmas exteriores da prá-
tica religiosa. Lacordaire conhecera essa incredulidade quase geral
no liceu de Dijon, sob o Império, e perdera a fé no dia seguinte
à sua primeira comunhão . D'Alton-Shée, colegial no Henri rv em
1822, evoca a passageni ele pregadores da Quaresma à Páscoa, ei1-
tre os quais Lamennais, o abade de Janson ou o príncipe abade de
Rohan. Resultados muito mitigados: " A despeito de tantos esfor-
ços convergentes para um mesmo fim, as crenças religiosas eram
raras entre nós e quase não ultrapassavam a época da primeira co-
munhão" .6o Por vezes, até esses esforços agem ao contrário. Bar-
bes afirma ter perdido todo sentimento religioso no contato com
os capelães de seu colégio. Sob a Terceira República, no entanto,
estudantes universitários e alunos de liceu desempenharão um pa-
pel importante no seio da Associação da Juventude Católica Fran-
cesa, nascida em 1886, e do Sitlon de Marc Sangnier, fundado em
1894: a época alia engajamento religioso e luta pela defesa da esco-
la confessional. Entre as igrejas reformadas, conhece-se a atividade
conduzida pelas Young Men's Christian Associations, inicialmente
em Londres e depois por toda a Europa, desde os anos 1840-50 .
/68 fi/STÓRIA DOS JOVENS

VIOLÊNCIAS COLEGIAIS

As violências da vida de colégio ou de liceu fazem parte da vi-


são quase mítica desses estabelecimentos, visão prolongada pelo ro-
mance (ver O jovem Torless) ou pelo cinema (de Jean Yigo, Zéro
de conduite [Zero em comportamento), a Linclsay Anclerson, !f). Toda
tentativa de classificação dessas formas de violência mostra-se difí-
cil, pois estas são raramente unívocas: o incidente inicial, muitas vezes
ligado a um problema de disciplina interna, desemboca com freqüên-
cia em prolongamentos políticos ou religiosos. Na França, as duas
Restaurações, nos anos 1820, em que os ultras estão no poder, e
os períodos imediatamente posteriores a julho de 1830 ou feverei-
ro ele 1848 são marcados por tais fenômenos. Godefroy Cavaignac,
aluno do Sainte-Barbe em 1815, no momento do desembarque de
Napoleão 1, dirige o campo dos "azuis" contra os "brancos" em san-
grentas rixas. O caso não é isolado: em inúmeros liceus de provín-
cia (Nice com Auguste Blanqui, Avignon, Bordeaux, Lyon, Douai,
Strasbourg etc.), os alunos das seções elos mais velhos mostram-se
dos mais determinados a combater a Restauração e a sustentar um
bonaparrismo com fortes tintas de patriotismo. Em 181 9, o Louis-
le-Grand está na vanguarda do combate à obrigação das práticas re-
ligiosas, mas muito rapidamente essa revolta espalha-se pela Fran-
ça, especialmente no Oeste. A Bretanha colegial (Nantes, Rennes,
Vannes, Pontivy) passa, no início dos anos 1820, por um clima de
revolta dificilmente contido, a não ser pela expulsão. Outros co-
légios são atingidos na França, notadamente em Caen, Périgueux,
Toulouse.
No mesmo momento, as faculdades de direito de Paris e de Ren-
nes e a faculdade de medicina de Montpellier agitam-se igualmente:
os liceus produzem então liberais que, tornando-se estudantes uni-
versitários, ampliam o combate travado contra a reação ultra que
atinge seu paroxismo depois do assassinato do duque de Derry, em
fevereiro de 1820. No mesmo ano, ocorre a morte de Nicolas Lalle-
mand, estudante de direitO, morto por ocasião das manifestações
do mês de junho pela manutenção da lei eleítoral em vigor. A ju-
ventude liberal, produto do ensino secundário, ocupa a primeira po-
sição e mostra-se o adversário mais determinado de um regime que
não a fará recuar senão a golpes de regulamentos repressivos, de
suspensão de professores e de expulsão de alunos de liceu e uni-
versitários. Em 25 diretores nomeados por monsenhor Frayssinous.
OS J OVENS NA ESCOLA: A LUNOS DE COUGIOS E ucu·s SA FRASç..-. E SA EUROPA 169

ministro dos Assuntos Eclesiásticos e da Instrução Pública, vinte são


padres; quando a Revolução de Julho de 1830 eclode, sessenta dos
oitenta professores de filosofia que ensinam em liceu são igualmen-
te padres. A criação de colégios mistos em 1822, acolhendo a uma
só vez alunos e candidatos ao sacerdócio, comq nos institutos reli-
giosos, revelar-se-á um fracasso. No Colégio Real de Marselha, os
anos de provisoria do abade Denans (182 1-3) são ao mesmo tempo
marcados pela atitude anti-religiosa dos alunos e por enfrentamen-
tos políticos entre liberais, acusados de ter formado uma associa-
ção interna de tipo "carbonário", e os realistas: os primeiros usam
fitas vermelhas, os segundos flores-de-lis. Até 1830, poucos são os
anos que não passam por uma ou várias revoltas dos alunos de li-
ceu em nome da palavra soberana de liberdade. Lamennais, então
uma das penas católicas mais ultra, fulmina, em Le drapeau blanc
[Bandeira branca], essa "raça impia, depravada, revolucionária" que
fo rma a universidade . Tema recorrente na imprensa realista que su-
blinha a profunda fratura que existe no seio da geração nascida por
volta do fim do Império. Geração sem história, sem raízes, sem pas-
sado: a dos anos 1789-1815 é conhecida apenas por vias indiretas
e é, portantO, mitificada. Alfred de Musset descreveu soberbamen-
te essa "geração ardente, pálida, nervosa" de filhos "concebidos entre
duas batalhas, educados nos colégios ao rufo dos tambores" e que
crescem embalados pela leitura do Boletim do Grande Exército. Vem
a derrota que a deixa desamparada: quando fala de glória, de ambi-
ção, de esperança, essa geração vencida antes mesmo de ter vivido
ouve a resposta: "Tornem-se padres" .6l
A freqüência dessas revoltas diminui muito sob a Monarquia de
Julho: a França dos notáveis e de seus herdeiros reconhece-se de
bom grado nesse regime de liberalismo econômico e político. Em
fevereiro de 1848, a efervescência reina mais uma vez nos liceus,
notadamente em Avignon e em Marselha. Em Paris, os alunos do
Louis-le-Grand, rebatizado de Descartes, inicialmente tomam posi-
ção a favor da República: participam da manifestação dos liceus do
mês de março e redigem um jornal diário, Le Progres. Mas alguns
inquietam-se, desde o mês de abril, com a feição dos acontecimen-
tos, em nome de um medo das conseqüências de desordens sociais,
enunciado com ingênua franqueza: "Já somos grandes e julgamos
que, com todas essas agitações políticas, nossos pais podem perder
sua fortuna e nos deixar em dificuldade" .6z Medo exacerbado pela
insurreição operária de junho de 1848, que vê alunos de liceu ali-
170 HISTÓRIA DOS J OVENS

nharem-se no campo das forças da ordem, e alívio ao anúncio da


tomada do Panthéon. Ésse testemunho revela ainda melhor os limi-
tes do que podia ser a violência da juventude dos liceus se a com-
paramos com a violência da juventutle operária rebelada, mas tam-
bém da juventude rural que fornece o grosso dos contingentes ele
guardas móveis enviados a Paris para defender um mítico direito
de propriedade contra os " comunistas". Os poucos incidentes dos
anos 1849-50 (liceus de Paris, Moulins, Besançon, Le Puy, Toulou- ·
se) serão anulados pela força. Sob o Segundo Império, a política se-
rá excluída dos campos do ensino secundário e do ensino superior.
Fora dos períodos de distúrbios políticos, é incontestavelmen-
te a disciplina imposta e sofrida que mais gera conflitos individuais
ou, mais raros porém mais violentos, coletivos. O peso desse cole-
tivo, mas também dessa solidariedade que privilegia a noção de classe
de idade ou de geração diante da diversidade social existente entre
os alunos, explica a uma só vez o vigor dessas revoltas e sua brevi-
dade. A violência é exercida em dupla d ireção entre professores,
alunos, entre mestres de estudos c alunos, e naturalmente, entre alu-
nos. Ela traduz freqüentemente o peso da importância da defasa-
gem social que pode intervir entre os diferentes componentes do
colégio. O professor, que Lautréamont qualifica de " pária da civili-
zação", é por vezes desprezado por suas origens sociais e por sua
incompetência: em Blois, Augustin Thierry vê desfilar em classe de
segundo ano ginasial um ex-gendarme, um desenhista que ensina
grego e um vendeiro que, em suas horas vagas, ensina retórica; em
Boug-en-Bresse, Edgard Quinet v<::-se ãs voltas com um rabequista
matemático e, em Charolles, com um velho capitão de dragões que
comenta para seus alunos o regulamento da cavalaria ... É verdade
que se está em um período de déficit de docentes. Balzac, Flaubert,
Michelet, Valles e tantos outros traçam retratos por vezes ferozes
de alguns desses professores, carrascos quando são competentes,
mas vítimas à menor falha. O caso do pai de Valles ilustra essa sen-
sação de desprezo que, mesmo não sendo geral, é bastante d ifundi-
da, como o mostrou Paul Gerbod em seu estudo sobre os p rofesso-
res de ensino secundário. Comparado a uma elite de normaliens
e de agrégés* encaminhados automaticamente para os grandes es-
tabelecimentos da capital, mais raramente da província, o comum

(•) .\'ormaliens, alunos da École Normale Supérieure; agrégés, professores de


grau universitário. (N. T .)
OS }0\' ENS NA ESCOLA: ALUNOS DE COltGJOS E UCEL'S ':-t .<;;!A..'olÇ.{ E ·~ .ft"""'G?..< 1-1

dos professores não pode pretender mais que uma estima na me-
dida de seu saber e, mais ainda, de seus rendimentos.
O que provoca formas de violência, ainda que abafada, sah·o
casos extremos. Sob o Antigo Regime, as revoltas de alunos comra
os pedagogos são bastante freqüentes: bastões, pedras, espadas, ver-
galhos são por vezes utilizados em estabelecimentos franceses; no
século :xvm, vários decretos da universidade lembram a proibição
do porte de armas pelos colegiais; um edito de 1763 recomenda aos
diretOres e aos pedagogos que zelem para que " ninguém se aban-
done, nos ditOs colégios, às invectivas querelas, explosões ele cóle-
ra, vias de fato, para que não se dispare[ ... ] sob nenhum pretexto,
com nenhuma arma de fogo , iscas, espoletas nem petardos" .63 Na
Inglaterra, as public schools passam também por violentas rebeliões:
a de 1779 em Rugby não 2erá controlada senão pela intervenção da
força armada, tendo a última dessas re,·oltas ocorrido em Eton, em
1832.64 Na França, sob o Império, o jovem Lamartine, interno em
uma instituição privada de Lyon, é testemunha de uma luta feroz,
verdadeiro corpo-a-corpo, entre um aluno mais velho, que se recu-
sa a ajoelhar-se para pedir perdão por uma falta, e um professores-
pecialmente encarregado da disciplina: o primeiro arranca a peruca
do segundo, que, com a ajuda dos empregados e cozinheiros do es-
tabelecimento, consegue pôr para fora , na rua ela Croix-Rousse, o
jovem revoltado.65 Lamartine conduzirá a vingança dos colegas por
ocasião de uma "distração" proposta aos alunos: tratava-se ele ten-
tar, de olhos vendados e de sabre na mão, cortar o pescoço de uma
gansa suspensa a uma. corda; em combinação com um camarada,
Lamartine ·guiou-o com sua voz para o professor temido, que re-
cebeu, por uma aparente inabilidade, o golpe de sabre destinado
à gansa. Em Belley, com os jesuítas, o futuro poeta encontrou, ao
contrário, um espírito liberal e conviva!: estava-se entre pessoas do
mesmo mundo, em sociedade. As violências são praticadas também
entre a direção e os alunos: violências desiguais devidas à diferença
de condição, mas que resultam por vezes em verdadeiras rebeliões.
É o caso do colégio D'Eu em 1788, diante das brutalidades do sub-
diretor. Revolta mais comedida, porém determinada, diante de uma
lição suplementar infligida pelo encarregado da disciplina do liceu
Corneille de Rouen: o jovem Gustave Flaubert toma a pena para exigir
justiça ao diretor e afirmar a solidariedade da classe com os alunos
ameaçados de expulsão.66 Em 1840, em Bourges, é preciso enviar
a força armada. Mais grave, no Louis-Ie-Grand em 1883, a expulsão
f 72 HISTÓRTA DOS JOVENS

de um aluno provoca um verdadeiro motim com quebra de vidro,


pilhagem de um dormitório e lançamento de projéteis diversos; o
diretor e seus assistentes são apupados; só a chegada da política per-
mitirá pôr fim à rebelião, que terá como saldo a expulsão de doze
alunos de todos os liceus da França (caso raríssimo) e de outros 93
do estabelecimento (dezesseis serão aceitos de volta como externos
e quatro reintegrados depois ele uma severa admoestação). 67 Os
mestres de estudos ou vigilantes, com poderes muito menos consi-
deráveis e com situação social inferior, são freqüentemente bodes
expiatórios dessas relações de força. O "Coisinha" (Alphonso Dau-
det) é vítima delas no colégio das Cévennes, para o qual é nomeado
e onde é confrontado com alunos camponeses descritos como ver-
dadeiros brutos: "Grosseiros, insolentes, orgulhosos, falando um ru-
de patoá das Cévennes do qual eu não entendia nada, quase todos
eles tinham essa feiúra especial da infância na muda, grossas mãos
vermelhas inchadas pelo frio , vozes de galinhos resfriados, o olhar
embrutecido, e ainda por cima o odor do colégio ... Eles me detes-
taram imediatamente, sem me conhecer. Eu era para eles o inimi-
go, o Vigilante; desde o dia em que me sen tei em minha cátedra,
houve guerra entre nós, uma guerra ferrenha, sem trégua, de todos
os instantes". O patético da situação, unido à ferocidade ela descri-
ção da população escolar, ilustra bem essa percepção do vigilante
como fu sível concentrando a descarga ele agressividade dos alunos.
Essa situação (extrema) é encontrada, em graus variáveis, em mui-
tos outros testemunhos. No entanto, Pasteur, repetidor no interna-
to Barbet em 1842, não experimenta nenhuma dificuldade desse gê-
nero, é verdade que com alunos de outra idade e de outro meio,
no qual o investimento educativo é percebido como uma neces-
sidade.
O colégio é também a desforra do forte no braço sobre o forte
nos estudos; o pátio de recreio, a desforra sobre a sala de aula: desi-
gualdades sucedem-se a outras desigualdades, não menos traumati-
zanres . 9s próprios jogos são por vezes fonte de violência: em Ber-
gues, no Norte, o jogo da garuche - atinge-se o adversário com
uma t6<iiha amarrada muito apertada que se torna um verdadeiro
chicote - é tão violento quanto a balle à la casque ou a balle au
drapeau, jogos guerreiros por excelência.68 Existe também um tem-
po de latência, de provas para aquele que chega, que ainda não faz
parte do grupo. O que se convencionou chamar de " trote" parece
ter constituído, na origem , um conjunto de práticas ele resistência
OS JOVENS NA ESCOLA: ALUNOS DE COLÉGIOS E LJCEL'S SA FiUSÇA E SA El:llOPA 173

dos alunos de uma escola ou ele uma instituição em face da adminis-


tração. Por um desvio de função, esta última autOrizou, ou mesmo
encorajou, esses ritos de integração que, perdendo seu valor comes-
tador, wrnaram-se práticas violentas, justificadas pela necessidade
de aquisição de valores comunitários.
A maior parte dos países da Europa conhece esse fenômeno.
Na Inglaterra, esse tempo é marcado, nas public schools, pela impo-
sição de certo número de tarefas penosas ou de vexações ao mais
jovem, ojagging, a serviço ele um veterano. Na Rússia, encontram-
se testemunhos da violêf1:Cia inerente aos ginásios ou às escolas mi-
litares, violência que chega à perversão emre veteranos e calouros ,
em um processo ele submissão absoluta.69 Na França, a situação di-
fere segundo os tipos de estabelecimentos: existem formas de " tro-
te" (uma prática oficialmente proibida em 1928 ...) nas escolas de
regime militar, como Sainr-Cyr desde 1843, na Escola Politécnica
com a prática da chamada de "absorção", durante a qual o calouro
é submetido às vontades dos veteranos, o u nas grandes escolas de
vocação profissional, como a Escola das Artes e Ofícios. Essas práti-
cas humilhantes, justi ficadas igualmente pela afirmação ele uma co-
munidade de elite unida pela prO\·a, não têm então o caráter sexual
que tomaram depois nas grandes escolas mistas. Elas tomam formas
mais " benignas" nas escolas de regime civil como a École Normale,
ou nas faculdades: assim, a faculdade de medicina, reservada ape-
nas aos homens, não conhece ainda o " dinamismo" atual cujo com-
ponente sexual é primordial; na École Normale, gnouj(calouro) deve
passar pelas farsas organizadas pelos veteranos, estudantes de se-
gundo ou terceiro ano, ames de rornar-se conscritO (aluno de pri-
meiro :ano).
Nos colégios e liceus, o "trote" obedece a regras tácitas fixa- .
das pelo chefe ou chefes de clãs, espécie ele testes da resistência
física e psicológica do recém-chegado. Em 1779, Napoleão Bana-
parte, rapaz pobre, franco e estrangeiro, chegando de sua Córsega
natal no colégio militar de Brienne, sofre as vexações e humilha-
ções ele seus camaradas, antes de se fazer respeitar. Em 1781, novo
aluno no colégio ele Rennes, Chateaubriand tem de bater-se com
seus colegas: luta-se à moda bretã ou com a espada- na realidade,
um compasso de ferro preso na ponta de uma bengala- entre cam-
poneses e citadinos, entre semidefensores das tradições bretãs e pu-
ros francesistas; uns cento e cinqüenta anos mais tarde no liceu ele
Quimper, o jovem Pierre-Jakez Hélias, bretão incorrigível, peleja
174 HISTÓRIA DOS jOVENS

ainda contra os jovens burgueses da cidade de linguagem afetada ...


Sob o Império, Alfred de Vigny paga o fato de p ertencer à nobreza
sendo posto de lado pelos colegas. Que dizer de Alexandre Dumas,
cuja recepção no colégio - de fato uma escola melhorada- man-
tida pelo abade Grégoire em Villers-Cotterêts foi das mais úmidas?
A crer no célebre romancista - mas atenção à sua imaginação trans-
bordante-, seus futuros camaradas acolheram-no com "um orva-
lho que mais parecia um aguaceiro" caindo sobre sua cabeça: "Cada
aluno, sobre um barril, posava na atitude e na ação do Manneken-
Pis de Bruxelas.* As grandes águas caíam pela minha chegada" .iO
Bela imagem que, na falta de ser autêntica, é pelo menos simbólica
do ato batismal inicial que preludia a entrada na comunidade. Du-
mas ainda esclarece que, tendo cometido o erro de denunciar esse
atO e seus autores, fo i obrigado a enfrentar um deles em combate
singular: essa paródia de julgamento divino lhe foi favorável.
Quando Michelet, integra o liceu Charlemagne vindo de um
meio modesto e apresentando uma aparência frágil , dois dados que
o predispõem a tornar-se o ponto de convergência de uma violência
grupal exercida por seus colegas de classe: "A partir daquele mo-
mento, fui o joguete deles. Não me batiam[ ... ]. Mas à entrada, à saí-
da da classe, eu era cercado como uma curiosidade. Os de trás em-
purravam os outros, e eu tinha dificuldade em afastar essa multidão
hostil que me interrogava apenas para rir de minhas respostas, quais-
quer que fossem. Eu ficava no meio deles exatamente como um mo-
cho em pleno dia, completamente amedrontado". Relato de uma
impressionante similitude encontra-se em Lacorclaire, a propósitO
do liceu de Dijon: " Meus camaradas, desde o primeiro dia, tomaram-
me como uma espécie de joguete ou de vítima. Eu não podia dar
um passo sem que sua brutalidade encontrasse o segredo para me
atingir . Durante várias semanas, fui até mesmo privado à força de
qualquer alimento além ele minha sopa e de meu pão" .7 1 A ausên-
ciá ele resistência das vítimas, prova de sua submissão, leva os auto-
res desses tormentos a abandoná-los gradualmente: a integração ao
grupo é considerada feita. Nenhuma queixa, nenhuma intervenção
externa, tais são as condições exigidas para essa integração. Jules
Valles, por seu lado, escapa à sua difícil situação de filho de profes-
sor, e além disso aluno de seu pai, recebendo deste, publicamente,

(') Escultura de Neinrich Duquesnoy, ornamenta uma fonte c representa um


menino urinando. (N. T .)
OS ]OIIENS Nil ESCOLk ALUNOS DE COLÉGIOS E UCEUS SA FRANÇA E NA EUROPA 175

corretivos apresentados como injustificados, mas também fazendo-se


fisicamente respeitar por seus camaradas.
Luta-se também entre alunos de estabelecimentos diferentes a
jortiorí, quando se trata de alunos do público e do privado: em 1872,
em Charleville, os colegiais e os "Rossat" (nome de uma instituição
livre que Rimbaud freqüentou) enfrentavam-se violentamente, a gol-
pes de cassetetes, obrigando o diretor do colégio a acompanhar seus
alunos nos passeios para evitar as rixas. 72 Violências grupais que po-
dem acarretar a constituição de bandos inimigos. Na primavera de
1879, em Bastia, em conseqüência de uma violenta disputa em curso
entre dois alunos, dois grupos de seis a sere alunos de liceu querem
bater-se "com pistolas, revólveres, punhais" : o combate é impedi-
do apenas pela intervenção de adulros avisados do caso. 73 Violên-
cias, enfim, entre juventude dos colégios e juventude dos subúr-
bios, como em Bergues pela posse de um balão, cada um dos dois
campos tendo consciência da diferença social que os opõe.74 Mas
essa violência própria ao mundo dos colégios e dos liceus deve ser
recolocada em seu contexto: ela existe também no mundo dos es-
tudantes universitários e dos alunos das grandes escolas; no mundo
dos seminários, a crer na descrição que Stendhal faz deles em O ver-
melho e o negro Oulien Sorel, apelidado de Maninho Lutero por seus
colegas, ameaçado de ser espancado, arma-se ele um compasso de
ferro); no mundo elos companheiros ele ofício ou dos operários: reler-
se-á o relatO ele Martin Naclaucl sobre os sangremos confrontos do-
minicais entre operários ela construção não pertencentes à mesma
corporação; e por vezes em confrontos entre operários e estudan-
tes, desmentindo a afirmação clássica ele uma solidariedade ele ge-
ração que superaria as clivagens sociais.

A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E SEXUAL

Os comportamentos sentimentais e sexuais desses jovens bur-


gueses são raramente mencionados, mas rodos os testemunhos in-
sistem na dor afetiva ela separação familiar que preludia a entrada
na comunidade escolar, especialmente no caso elos internos. O jo-
vem Tórless descrito por Robert Musil é o arquétipo dessa juventu-
de sofredora. Os choros, os gritos, a prostração momentânea para
os mais jovens traduzem essa ruptura afetiva que busca substitutos.
Estes podem ser de várias ordens. Por vezes, criam-se animais: se
176 HISTÓRIA DOS J OVENS

o regime é bastante liberal, podem ser camundongos ou pássaros,


pardais ou pegas etc. No colégio dos oratorianos de Vendôme, mais
de mil pombos são criados, assim, "para suavizar nossa vida, priva-
da de toda comunicação com o exterior e destituída dos carinhos
da família" , esclarece Louis Lambert/Honoré de Balzac.75 Em caso
de regime mais restritivo escondem-se, no espaço dos livros sob a
carteira, bichos-da-seda, besouros, escaravelhos ou toda espécie de
insetos.
Por vezes, transfere-se sua necessidade de afeição para u m pro-
fessor de comportamento mais "maternal". Mas o substituto ideal
é o colega. Este, da mesma classe de idade ou mais velho, pode tornar-
se a uma só vez o confidente, o ouvido que escura o que o pai ou
a mãe não podem ou não querem ouvir, e o iniciador que substitui-
rá a educação familiar no domínio da sexualidade. A representação
do colégio como descoberta por vezes brutal da sexualidade tornou-
se um lugar-comum da literatura romanesca ou dos relatos ele mc-
morialistas: a iniciação se faz sempre pelo outro, mais velho o u mais
precoce, ãs vezes não sem dor. Elias Canetti, aluno em um liceu de
Viena, conta como, posto a par por ~m colega da maneira pela qual
as crianças vêm ao mundo ("o homem agita-se sobre a mulher co-
mo o galo sobre a galinha"), revolta-se contra a revelação e, falan-
do com sua mãe, é encorajado por esta em sua recusa dessa versão
bestial da concepção.76 Em Le lieute1~ant-cotonel de Maumort [O
tenente-coronel de Maumort], Reger Martin du Gard tratou co m olhar
de analista as diferentes etapas da revelação sexual de seu herói, aluno
de colégio e depois de liceu nos anos 1880-90. Nessa análise muito
aprofundada e amplamente autobiográfica, aparece constantemen-
te em filigrana a ausência de presença feminina nas relações sociais
dos adolescentes, ausência mais ou menos compensada por uma
sublimação da mulher e por sua transferência para o domínio dos
fantasmas. Em um mundo quase exclusivamente masculino - ne-
nhuma mulher tem, em teoria, o direito de penetrar nos estabeleci-
mentos secundários - apenas o pernoite fora pode eventualmente
permitir aos alunos encontrar elementos femininos, ou gabar-se disso.
Pois muüas vezes a imaginação substitui a realidade. Quando mui-
w , segue-se à distância, nas ruas, alguma moça, como Michclct e
seu amigo Po insor; por vezes, fazem-se confidências amorosas (pla-
tônicas) à mulher do dono do internato, já que se fica apaixonado
sem esperança, como Michelet: " Não podendo minha exaltação
satisfazer-se por meios físicos, fiz versos, os primeiros que tenha fei-
OS ] O I'E:.:s SA ESCOLA ALC:S OS Dr COLfGI"l5 E UGE~~ E

te" .77 Em 1823, no Colégio Real de .\larselha, os inspetores gerais


ficam assustados de ver que as roupeiras circulam livremente pelos
dormitórios: sem demora, manda-se colocar divisó rias. Os alunos
gabam-se por vezes de suas aventuras amorosas; no liceu Charle-
magne, alguns afirmam freqüentar os bordéis: o dito insistente de
uns se opõe ao não-dito elos outros como uma garantia suplemen-
tar de superio ridade, de distinção, ele recusa da conformidade. Os
colegas de Tórles permitem-se familiaridades em palavras e gestos
com as camponesas elos arredores de seu internato de luxo e fre-
qüentam uma prostituta, jovem camponesa progressivamente rebai-
xada. Mas, em geral, a sexualidade dos alunos ele colégios e liceus
é antes de tudo uma questão de ,·erbo, um verbo que permanece
no mundo fechado de um pequeno círculo. Pois tudo que se rela-
cione aos sentimentos ou à sexualidade é considerado suspeito pe-
la administração e por um "corpo" docente que fingem ter diante
ele si apenas espíritos.
Em geral, o corpo é considerado suspeito, herança do pensa-
mento educativo medieval- assim como a segregação dos sexos -,
como o demonstram a pouca higiene praticada, a quase ausência
de exercícios físicos e a ,·igilància. mesmo na prisão, do comporta-
mento sexual solitário dos alunos. Sobre a masturbação, o século
XIX é educativo e continua amplamente regido pela obra do dr. Tis-
sot consagrada ao Onanismo, publicada em 1760 e continuamente
reeditada. Exerce-se uma vigilância discreta, mas real, sobre a " pu-
reza dos costumes" elos alunos, entre os quais alguns são suspeitos
de servir ele espiões com esse objeth·o. Entre os jesuítas, preferem-
se os grupos de três alunos aos de dois, para os passeios ou as re-
creações. No outro extremo da escala social, Amoine Sylvere, dito
Toinou, aluno de curso complementar em uma instituição mantida
pelos frades, descreve a masturbação praticada em classe por alguns
de seus colegas: " Preciosamente recolhido em uma caixa de graxa
de sapatos ou ele penas, o produto circulava para autenticar a indis-
cutível produtividade elo produtor". 78 Classicamente, os banheiros
se prestam a práticas idênticas mas em duo .
Quanto aos problemas de homossexualidade ou de violências
sexuais, são difíceis de conhecer: cada estabelecimento mantém um
sil êncio absolutO sobre esses assuntos, silêncio retomado pelas fa-
mílias. Quando muito, fa7.-se menção - mas rarameme, para não
atingir a reputação dos cstabelecimemos - de livros suspeitos, de
canções maliciosas, de palavras consideradas escandalosas ou de ca-
I 78 HISTÓRIA DOS JOVENS

ricaturas obscenas. Em 1807, no recém-inaugurado liceu de Tou-


louse, cujo diretor está sobrecarregado, desenham-se "no muro dos
locais de uso comum as partes naturais" do professor de francês;
os dormitórios estão nas mãos dos alunos e, por ocasião de uma ins-
peção noturna, o diretor descobre dois internos na mesma cama,
o que lhes vale uma simples admoestação verbal. No colégio real
de Amiens, em 1835, a direção ordena a um aluno da seção dos gran-
des que deixe de freqüentar um colega da seção dos pequenos: de
resto, nenhuma afirmação de "amizades particulares" nessa proibi-
ção. Mas o caso degenera em rebelião: os alunos erguem barricadas
com os bancos e as mesas, entrincheiram-se na sala de estudos, cuja
porta o diretor manda arrombar: então os alunos acendem uma fo-
gueira e bombardeiam o diretor com temíveis dicionários e peda-
ços de pau; apenas a intervenção conjunta das forças da ordem e
dos pais permitirá o retorno da calma.79
A violência da reação colegial pode ser interpretada como a ilus-
tração das situações de tensão extrema que existem em certos esta-
belecimentos: a instalação de redes afetivas de relações privilegia-
das, de comportamentos protetores não é forçosa ou unicamente
o reflexo de uma homossexualidade nascente, mas em igual medi-
da o de uma falta de relações afetivas familiares, rompidas de ma-
neira brutal em internatos perigosamente fechados, e compensada
por uma transferência de afetividade para tal ou qual camarada. Ca-
so reconhecido e proibido pelo regulamento do colégio Louis-le-
Grand desde 1769: "As ligações muito particulares entre os alunos
dão muito freqüentemente ocasião às maledicências, às calúnias, à
desconfiança com relação aos mestres, à dissipação, à perda de tem-
po. Os escolares terão o cuidado de as evitar, e os mestres estão muito
expressamente encarregados de zelar por isso com atenção" _ao Es-
se texto permanece evidentemente alusivo. Mas dá testemunho a
contrario da percepção muito clara dessas necessidades afetivas ine-
rentes a uma comunidade de jovens separados do mundo.
Balzac evoca, assim, o "faz-tudo" , nome dado no colégio de
Vendôme àquele que se coloca a serviço de um de seus camaradas
para todos os aspectos da vida material cotidiana. Seu herói, Louis
Lambert, trava uma relação privilegiada com o narrador, relação as-
sim evocada por Balzac: "Nós nos habituamos, como dois amantes,
a pensar juntos, a nos comunicar nossos devaneios".8 1 Por seu la-
do, Arthur Schnitzler conta como, na Viena dos anos 1870, vários
de seus camaradas do Colégio Acadêmico sentiam uma paixão por
OS JOVENS NA ESCOlA, AI.UNOS DE COLtGIOS E UCE~'S .'VI FRASÇA E XA EUROPA 179

um deles, " amável e dotado, bonitO como uma moça", suscitando


rivalidades: " Que pudesse haver, nas emoções despertadas pores-
sas paixões, ressonâncias homossexuais, tanto os interessados quanto
eu mesmo não nos dávamos coma disso então; (... ] tínhamos nós
a men()r idéia de sua existência?", conclui Schnitzler. 82 As fomes
romanescas - cuja utilização permanece problemática - mostram-se
mais prolixas. É o caso dos romances de Roger Martin du Garcl. Em
Les Thibault, ]acques, filho ele uma respeitável família burguesa e
aluno de uma instituição católica, troca palavras ele amor platônico
com um aluno protestante que ele conheceu no liceu: o " caderno
cinza" que serve a essa correspondência é apreendido, o que de-
sencadeia a cólera elo pai, a fuga dos dois adolescentes e o envio
de]acques para uma colônia penitenciária. Em Le lieutenant-colonel
du Maumort [O tenente-coronel de ~laumort], o romancista faz evo-
luir seu herói em um estabelecimento mantido pelos jesuítas: os alu-
nos das seções dos grandes têm todos um eleito, aluno das seções
dos pequenos, escolhido por seu aspecto juvenil, pré-púbere, "um
pouco menina de aspecto" - aí reencontramos Schnitzler. Mas,
"com raríssimas exceções, esses sentimentos permaneciam absolu-
tamente platônicos". O que não é o caso de Maumort e de um cole-
ga: mas se trata, então, de homossexualidade ou da transferência
das pulsões sexuais para um parceiro masculino? Martin du Gard
descreve longamente as noites nos dormitórios dos grandes: atra-
vés das cortinas entreabertas, exibicionismo e gestos obscenos, ona-
nismo solitário e por vezes partilhado na mesma cama. Sutilmente,
Martin du Gard adianta que os vigilantes não reagiam, menos por
ignorância do que se passava do que por uma espécie de resigna-
ção, ou mesmo de recusa de intervir para preservar a reputação do
estabelecimento ou das famílias. Encontra-se em Robert Musil uma .
alusão e uma descrição mais breve, porém mais clara, de relações
entre internos: Torless fica fascinado pela "beleza ainda isenta de
toda sexualidade de uma menina" que emana do corpo de um co-
lega. Mas, no romance de Musil, a simples prática de uma homosse-
xualidade de compensação é suplantada: trata-se de uma violência
de caráter sádico e totalitário que se exerce em relação a um bode
expiatório, transformado em vítima de tiranos em potencial, nos
quais se viram esboços de nazistas, e que se torna o joguete de uma
opressão cada vez mais forte, com caráter de perversidade sex ual.
Pulsões de morte e pulsões libidinosas perversas estão aqui estrei-
tamente ligadas.
180 HISTÓRIA DOS JOVENS

O que concluir dessas poucas informações necessariamente es-


parsas? Alain Corbin evocou a existência desses grupos de celibatá-
rios masculinos que recorrem à prostituição elas "mulheres de pra-
zer" : empregados, estudantes, que formam "guetos sexuais", para
retomar a fórmula de jean-Louis Flanclrin aplicada à idade da ado-
lescência.83 Poder-se-ia estender essa noção aos alunos de liceu que,
na idade em que os operários de sua geração vivem em um mundo
bissexual, estão confinados em um mundo monossexual. O apren-
dizado se faz, então, de cima para baixo, do "grande" ou elo " ini-
ciado" para o pequeno ou o ignorante. Um aprendizado parcial, sub-
terrâneo, onde se exprimem o desejo e seu recalque. A sexualidade
permanece, portanto, no mais das vezes, um fenômeno fantasmáti-
co: nenhuma informação, nenhuma escuta ela parte da família nem
dos professores. Tudo é recolhido aqui e ali e digerido sem ser ana-
lisado. O rumor como forma de informação, em suma. À iniciação
precoce do saber, ao aprendizado forçado e furibundo das humani-
dades corresponde a inumanidade, sentida como tal, dessa segrega-
ção sexual ligada à educação burguesa: precocidade do despertar
intelectual e retardamento do despertar dos sentidos andam juntos.
Daí o recurso a essas práticas de amores adolescentes masculinos,
que seria errôneo chamar de homossexuais em seu conjunto, ou mais
tardiamente, na idade elos estudos superiores, o recurso à prostitu-
ta ou à jovem operária, a grisete. 84 O discurso ambiente é idênti-
co, de um extremo ao outro, às ideologias existentes: de Lacordaire
a Michelet, gabam-se os méritos da castidade e o exercício- da se-
xualidade apenas no seio do casamentO. Duas correntes ideológi-
cas, mas uma única moral. Quanto a essa juventude burguesa, deixa-
se agarrar também pelo respeito às conveniências de seu meio:
Schnitzler, adolescente, dirige "uma severa reprimenda" à sua em-
pregada (francesa!) que muda de blusa na sua presença, " talvez não
inteiramente por inadvertência". 85 Melhor ainda, faz visitas, pagas
porém castas, a prostitutas a quem tenta mostrar, aparentemente em
vão, o reto caminho: ele tem então dezesseis anos e não é particu-
larmente místico nem moralista. Enfim, precisemos que, para bem
compreender a natureza das relações entre alunos ele liceus ou co-
légios convém tomar consciência da diferença de expressão elos sen-
timentos que ex iste entre o século XIX - século de expressão mui-
to forte desses sentimentos - e o nosso; a correspondência que podia
ser trocada entre rapazes, inclusive irmãos como os Garnier-Pages
ou Charles e ] ules Ferry, reflete uma sensibilidade extrema ao ou-
OS JOVENS NA ESCOLA: ALUNOS DE COLÉGIOS E LICEL:S SA FRASÇ4 E .\'A EUROPA 18 1

tro, ligada a uma pureza de sentimentos e a. um emprego do verbo


amar que são inequívocos.

OS PÁRIAS DA HUMANIDADE

Resta a questão da educação e da instrução das moças. Como


deixar ele tratar à parte o caso desses "párias" ela humanidade? Por
toda parte na Europa, a fórmula alemã dos três K - Kirche, Kin-
der, Küche* -constitui o pano de fundo do horizonte feminino.
Todo o Antigo Regime e uma boa pane do século XIX viveram se-
gundo um postulado definido desde o século xv por Gerson: " To-
do ensino para as mulheres deve ser considerado suspeito" .s6 Não
voltaremos às razões (religiosas, morais, sociais) ele tal posição: mas
sua conseqüência foi o atraso extremo em que ficou o ensino das
moças. Se, na França, um Condorcer ou um Diderot defenderem
o ensino feminino, conhece-se o que Rousseau escreveu sobre a ques-
tão: seu pensamento em termos de desigualdade teve ecos até em
Prouclhon, Auguste Comte (falando de uma "inferioridade natural
que nada poderia destruir") ou Renan ("A mulher encarrega-se do
bem, a verdade não lhe diz respeiro").87 Quanto à posição da Igreja,
permanece presa à idéia da mulher como mensageira privilegiada
do cristianismo para as gerações futuras. Posição afinal bastante pró-
xima da de um Michelet, de um Hugo, de um Enfantín, ou mesmo
de uma Flora Tristan , que atribuem um papel moral privilegiado à
mulher: em todos esses casos, com variantes, ela encarna a reden-
tora. A subjugada dos códigos napoleõnicos é também, e com toda
a lógica, a grande esquecida da criação da universidade. E, a despei-
to elo advento do feminismo por volta de 1830, a despeito das re- ·
volucionárias de 1848 (Désirée Gay, Pauline Roland, jeanne Deroin)
e de George Sand, a questão do ensino secundário feminino não
foi seriamente abordada antes dos cursos instituídos por Victor Du-
ruy em 1867, com o apoio da imperatriz.88 Mas a organização de
tais cursos põe em evidência a questão de sua finalidade: para que
criar um ensino não sancionado por diplomas e não produtor ele
empregos, no final das contas? Atendo-nos ao nosso quadro crono-
lógico, o nascimento desse ensino secundário encontra-se na Fran-
ça, no limite do período definido: apenas em 21 de dezembro de

(*) Igreja, c rianças, cozinha. (N. T.)


182 HISTÓRIA VOS JOVENS

1880, graças à lei Camille Sée, foi oficialmente constituído o ensino


secundário feminino. Este, antes, não tinha nenhuma existência le-
gal, mas existia, no entanto, sob diferentes formas. Em 1848, Hip-
polyte Carnot lançara um projetO que não chega a bom termo antes
das jornadas de junho. É preciso esperar a lei Falloux de 1850 para
que as comunas de mais de oitocentos habitantes sejam obrigadas
a abrir uma escola primária feminina: a conseqüência será um au-
mento sensível do número das moças alfabetizadas. Mas estas difi-
cilmente transpõem a barreira da escola secundária, mundo reser-
vado aos rapazes.
Na Europa cristã, as próprias mulheres mostram por vezes uma
viva resistência às tentativas de desenvolvimento da educação das
filhas: " A natureza, que nos põe na segunda classe, impede nossa
educação de elevar-nos à primeira", escreve a mãe de Charles de
Rémusat em 1819.89 As poucas iniciativas tomadas aqui e ali per-
manecem sem futuro : por exemplo, na Rússia, o Instituto Smolnyi,
fundado por Catarina n em São Petesburgo em 176lí, para cerca de
duzentas moças nobres, às quais se juntarão 240 moças da alta bur-
guesia; na França, nos anos 1820, os cursos de Lévi-Alvares fazem
grande sucesso em Paris - mães e filhas os seguem juntas. Existem
também internatos e instituições não-religiosas: é em uma delas que
as duas irmãs de Balzac aprendem inglês, piano, costura, bordado,
whist, um pouco de química e alguns textos dos autores dássicos.
Mas essas casas formam um conjunto muito díspar quanto à quali-
dade do ensino oferecido. Estarão entre as primeiras vítimas da lei
Falloux que, ao estender a liberdade de ensino secundário , provo-
cará um espetacular desenvolvimento das congregações religiosas.
Sob o Segundo Império, os cursos profissionais de Elisa Lemonnier,
que pretendem formar artesãos e artesãs qualificados, têm um grande
sucesso. Mas, ao passo que, nos Estados Unidos, Elisabeth Blackwell
rorna-se a prímeira mulher doutora em medicina em 1849, é preck
so esperar 1861 para ver uma mulher bacharel aceita em Lyon, Julie
Daublé, que se inscreve em licenciatura de letras dez anos mais tar-
de. O fenômeno permanece raro: ele 186 1 a 1873, a França conta
apenas dezesseis mulheres bacharéis, das quais doze em ciências
(reencontra-se aí a defasagem entre matérias literárias " nobres" e
matérias científicas). A Rússia desenvolve desde 1858 ginásios para
moças: no wtal, enumeram-se 190 escolas secundárias em 1873.90
Na Alemanha, as posições de Fichte ou de jean-Paul, de Campeou
de Basedow não são marcadas por seu progressismo sobre a ques-
OS JOVENS NA ESCOLA: ALUNOS DE COLÉGIOS E UCEI.iS SA FIUNÇA E NA EUROPA 183

tão.9 1 Os protestantes, contudo, tOmaram distância no avanço em


direção da emancipação da mulher e desenvolveram desde o início
do século XIX uma rede de escolas secundárias . Seguiram-se inicia-
tivas privadas ou municipais em Munique (1822) ou Berlim (1838).
O Kultu1·kamp{, expulsando as congregações docentes da Prússia
(1875), reforçará o peso dos protestantes e dos leigos. Por volta de
1870, existe uma rede de escolas ditas superiores para moças (mais
de 45 mil delas seguem-lhes os cursos no momento ela unidade ale-
mã) provenientes de iniciativas privadas, comunais ou confessionais,
mas é preciso esperar 1889 para que um primeiro verdadeiro liceu
de moç~s seja criado em Berlim. E é apenas em 1891 que as mulhe-
res podem ter acesso ao Abitur: Hildegrad Ziegler será a primeira
alemã aprovada nesse exame de fim de estudos secundários, indis-
pensável para inscrever-se em faculdades (haverá 111 até 1906). Na
Áustria, o primeiro ginásio para moças é criado em 1892, mas os
liceus femininos recebem seu estatuto apenas em 1900. Na Itália,
fora o peso não surpreendente das congregações religiosas, abrem-
se escolas superiores cte moças como em Milão, em 1861, e depois
na maior parte das grandes cidades. l\a Inglaterra, são fundadas ins-
tituições privadas como o Queen 's College de Londres, em 1848,
que recebe moças a partir de catOrze anos (mas estas só podem ob-
ter diplomas em 1878) ou o Bedford College, fundado em 1849.
Conhece-se também a ação de Miss Buss (North London Collegiate
School em 1850) e de Miss Beale (Cheltenham Ladie's College em
1858). Depois da votação ela lei de 1869, os estabelecimentos se-
cundários de moç.as multiplicaram-se: enumeram-se 36 public schools
femininas em 1891, inclusive nos feudos universitários masculinos
de Oxford e ele Cambridge.92
Na França, a lei Camille Sée foi votada depois de ásperas dis-
cussões: a Igreja temia perder sua clientela tradicional em proveito
çla escola republicana. Sob o Segundo Império, a polêmica estava
no auge entre o monsenhor Dupanloup e o ministro da Instrução
Pública Victor Duruy, que criara em 1867 cursos secundários para
moças: o primeiro fez-se o defensor ela moça educada "nos joelhos
da igreja" e mobilizou o clero contra os cursos Duruy. Mas a ação
da Sociedade para o Estudo das Questões de Ensino e da Sociedade
para a Propagação do Ensino entre as Mulheres foi importante: um
homem como Michel Bréal, fundador da Escola Alsaciana e do co-
légio Sévigne (com]. de Marchef-Girard), desempenhou um papel
fundamental nesse combate. Pode-se citar igualmente o papel do
184 HISTÓRIA DOS JOI'ENS

diretor Maggiolo, de Paul Bert, de Octave Gréard. No próprio seio


elo campo republicano, nem todo mundo estava convencido da ne-
cessidade ele criar colégios e liceus de moças. Jules Ferry, em um
célebre discurso pronunciado em 1870, mostrara em que a educa-
ção da mulher, futura esposa e mãe, constituía a base do poder do
clero, e denunciava: "É preciso que a mulher pertença à ciência
ou que pertença à Igreja". Mas retomava também um argumento
já desenvolvido por Legouvé em 1849: o que é um casal, ainda que
unido com base no amor, no seio elo qual apenas um dos dois mem-
bros é instruído? Ao "casamento das almas" Ferry opunha o " di-
vórcio intelectual" , que forçava o homem a procurar fora, espe-
cialmente em clubes, a satisfação de suas necessidades intelectuais.
Argumento corroborado por inúmeros testemunhos da época, mas
que por isso não vem em apoio de uma tese que coloque a mulher
em pé de igualdade com o homem. A própria Camille Sée esclare-
ceu que não se tratava "de afastar as mulheres de sua verdadeira
vocação, que é criar seus filhos e manter uma casa". De resto, não
há paridade entre os liceus femini nos e seus homólogos masculinos:
neles não se confere o baccalauréat, mas no máximo um diploma
ele conclusão de estudos secundários. No fim elo século, funcionam
41 liceus e 29 colégios, entre os quais alguns adquirem rapidamen-
te grande reputação, como o Fénelon. Mas os efetivos progridem
apenas muito lentamente diante da concorrência das congregações:
estas continuam a atrair as moças oriundas da alta e da média bur-
guesia. As leis de 1901 (sobre associações) e de 1904 (sobre as con-
gregações docentes) desempenharão indiretamente um papel na
transferência das alunas de colégios e liceus para os estabelecimen-
tos públicos e leigos. Em 1881, cerca ele 6 mil moças freq üentam
os diferentes tipos ele estabelecimentos secundários; em 1891 , elas
são 12 mil; às vésperas da Primeira Guerra Mundial, cerca de 35
mil, contra o dobro ele rapazes.93
A quase totalidade desses estabelecimentos femininos possuem
modos de funcionamento sensivelmente diferentes dos das escolas
de rapazes: a ênfase é colocada menos na passagem de exames do
que no conteúdo elo ensino, "adaptado às virtudes 'femininas' " (pu-
dor, sensibilidade, simplicidade etc.). Nada ele realmente aprofun-
dado, nada de latim nem de grego nessas humanidades rebaixadas.
Pouco de ciências também, e pouco ou nada ele educação física. Mas,
de preferência, o estudo de autores "fáceis", da história, da geogra-
fia, da cosmografia, por vezes; e do desenho, da escrita, do canto
OS JOVE.VS NA ESCOLA c A LUNOS DE COLÉGIOS E UCEt;S .\'A FRA1VÇA E .\'A EURO PA 185

e da música, às vezes da dança, e os inevitáveis trabalhos de agulha.


A escolarização das moças é com freqüência mais descontínua que
a dos rapazes e apenas uma minoria delas termina seus estudos. MuitaS
não freqüentam mais que alguns cursos e fazem seus deveres por
correspondência. A homogeneidade social das alunas é maior: nos
estabelecimentos públicos, predominam a pequena e média burgue-
sia, a das profissões comerciais ou industriais, mas também a das
profissões liberais ou da função pública, naturalmente, com as fi-
lhas de professores que monopolizam as bolsas muito parcimonio-
samente concedidas. Poucas jovens do povo, mas a alta burguesia
também está pouco presente, dando preferência às escolas católicas.
O corpo docente é por vezes falho em quantidade e em qualidade,
daí a criação de Écoles Normales Supérieures (Fontenay e Sevres),
que acolhem as melhores alunas do ensino público: elas retornarão
então aos colégios ou liceus, se não se casarem, pois muitas perma-
necem celibatárias, vivendo seu ofício como um sacerdócio.
Fora os liceus públicos ou as escolas privadas leigas, existem
duas outras soluções para dar às moças uma instrução superior aos
rudimentos que são ler, escrever, comar: o ensino familiar ou o en-
sino ministrado por congregações superiores, o convento. O ensi-
no familiar é o mais difundido, mas o menos conhecido. Por vezes
é o irmão que dá rudimentos de cultura: o da futura saint-simoniana
Suzanne Voilquin é um ex-seminaris[a que abandonou o hábito e
que ensina à sua irmã alguns fragmentos de história antiga e con-
temporânea_94 Aluno do liceu em Bastia, o jovem Lanfranchi se pro-
põe a ensinar às suas irmãs um pouco de história natural e os filóso-
fos franceses.95 Mas é sobretudo à mãe que cabe esse papel. Como
avaliar o que proporcionam, o que transmitem as mães às suas fi-
lhas, além de um ensino religioso de base? Algumas, cultivadas, por
vezes mantendo salão, eram verdadeiras educadoras. Um exemplo
é o programa fixado pela mãe alemã de Marie d' Agoult: Grimm e
Schiller, Mozart e Haydn, e cosmografia, enquanto o pai francês
propõe Horácio e Ovídio, Rabelais e Montaigne, La Fontaine e Vol-
taire.96 Família cultivada e de dupla cultura, educação aristocrática
completada pelo ensino de um professor de dança e de uma profes-
sora de esgrima, ambos franceses. Quando foi preciso passar às coi-
sas sérias, recorreu-se aos cuidados de um abade francês encarrega-
do de ensinar latim, gramática, história, geografia e os rudimentos
das matemáticas às moças e aos rapazes do jaubourg Saint-Germain
(coisa rara, a classe era mista)97 e aos de um professor particular ale-
186 HISTÓRIA DOS } OI'ENS

mão . Educação aprofundada, no total, e, portanto, relativamente ex-


cepcional, mesmo no meio ao qual pertencia Marie d' Agoult.
Educador, o convento o é também, com a missão claramente
definida ele fazer das moças que recebe boas cristãs. As ursulinas,
as visitandinas, a Congregação de Norre-Dame, depois o Instituto
do Sagrado Coração são algumas das congregações docentes mais
difundidas. A clausura não é obrigatória, como, por exemplo, entre
as Damas de Saint-Maur. Desde o século XVII, a comunidade de Saint-
Louis fundada em Saint-Cyr em 1686 por madame de Maintenon,
influenciada por Fénelon, autor de um Traité de l 'éducation des filies
[Tratado da educação das moças], trabalhará para dar uma verda-
deira educação às moças nobres, na falta de lhes dar uma sólida ins-
trução. Com a supressão elos conventos pela Revolução, desenvol-
veram-se os internatos privados. O Estado napoleônico instituiu as
Casas ela Legião de Honra, onde se destacaram especialmente a sra.
Campan (que abrira um internato para moças ele boa sociedade em
Saint-Germain em 1795) e a sra. De Genlis (que fora a preceptora
do futuro Luís Filipe). Mas, desde o Consulado, congregações vol-
taram fortalecidas ou surgiram, como o Sagrado Coração f'lmclaclo
por Sophie Barat em 1801. Com a Restauração, inicia-se a idade ele
ouro do convento: Sainte-Clotilde, Assomption, Les Oiseaux dirigem-
se a uma clientela de posição, elevada. Depois de 1830 e do advento
do catolicismo liberal, produz-se uma reação para dar às mulheres
uma instrução mais firme: elas devem tornar-se os pilares de uma
fé cristã que parece ameaçada nas novas gerações.
A vida nos conventos é geralmente regulada segundo um re-
gime bastante· duro: a dureza ela viela material, austeridade e mo-
notonia do cotidiano mais ainda que nos internatos masculinos, e,
sobretudo, privação de todo contato com o exterior: ''Ficávamos
enclausuradas em toda a acepção do termo . Saíamos apenas duas
vezes por mês e só dormíamos fora no Ano-Novo'' . Assim se expri-
me a jovem Aurore Dupin (Georges Sand), educada pelas augusti-
nanas inglesas de Paris de 1816 a 1820.98 Quanto a Marie cl' Agoult,
não parece ter sofrido tanto com esse confinamento. Depois de uma
primeira juventude marcada por uma verdadeira instrução, mas tam-
bém por uma verdadeira liberdade, vivendo " em grande franqueza
ele comportamentos, improvisando cada dia, ora a sós, ora com as
crianças da vizinhança, novos divertimentos" , aos dezesse is anos
entra para o convento das Damas do Sagrado Coração, onde seu no-
me e sua posição social lhe valem alguns arranjos no regulamento:
OS J OI'ENS NA ESCOLA, ALUNOS DE COLÉGIOS E UCEI.:S Srl FRA.\'ÇA E NA EUROPA 187

um quarto particular, um piano com professor, mais saídas etc. Além


disso, a qualidade de sua instrução lhe permite passar diretamente
para a classe superior - simbolizada por um cimo de fita preta - ,
com um efetivo reduzido de seis alunas, todas nobres. A vida de
convento não desagrada à jovem, bem recebida por suas compa-
nheiras e sensível à religiosidade do lugar.
No entanto, críticas afloram em seu testemunho. Por exemplo,
a perigosa mediocridade da alimentação e a falta quase total de hi-
giene, na mesma linha dos colégios de rapazes, mas aqui com uma
dimensão religiosa e moral que despreza a carne: "Tomavam-se ba-
nhos no Sagrado Coração apenas por ordem elo médico, em caso
de doença" .99 Dez minutos de toalete matinal, uma bacia de água
fria, nenhum espelho. Esse regime produz " uma interrupção da vi-
da" - interrupção das menstruações - na jovem Marie? Nada de
médico, nenhum tratamento. Outra prática denunciada, a existên-
cia de uma delação constante, reservada às "Filhas de Maria", uma
espécie de pequeno grupo que reunia as mais bem-comportadas e
mais cristãs das alunas ... As relações entre moças também possuem
suas violências: feia e idiota, uma aluna é perseguida por suas cole-
gas até à intervenção de Marie. Tensões afetivas entre alunas ou en-
tre professores e alunas são abafadas, mas explodem por vezes em
conseqüência de incidentes menores. Quanto à qualidade do ensi-
no recebido, é severamente julgada: Atenas, Roma, a Antigüidade
e a Renascença, tudo isso é desconhecido entre as Damas do Sagra-
do Coração. Tudo é edulcorado, tudo é tornado insípido, inclusive
o ensino religioso, baseado na sensação, próximo do misticismo.
Nenhum ensino científico, nada de história natural - "a natureza
é Satã". Trata-se, por certo, de palavras retrospectivas, ditas por uma
mulher de letras confrontada mais tarde com uma "verdadeira" cul-
tura, isto é, com uma cultura comumente reservada aos homens.
Mas não se trata de palavras militantes, hostis ao convento como
sistema: no total, Marie d'Agoult foi feliz ali. O regime de relativa
liberdade vivido por essas moças das classes abastadas permite con-
tatOs com o mundo dos quais é privada, no mesmo momento, ajo-
vem Aurore Dupin. Como exemplo, o parl~tó rio onde, todas as
quintas-feiras, as famílias das internas reúnem-se em círculos nos quais
se incluem irmãos e primos, "colegiais, alunos do Saint-Cyr, da Es-
cola Politécnica, pajens": o mundo masculino não está totalmente
ausente da vida das moças do Sagrado Coração. E, no final elas con-
tas, desfaz-se o medo elo vazio ao sair do convento, onde Marie
d' Agoult retoma várias vezes para os ofícios religiosos.
188 HIS TÓRIA DOS JOVENS

CON CLUSÃO

No ocaso de sua vida, Valles aborda novamente o tema dos li-


ceus: seus estilo flamejante encontra matéria para exprimir-se sobre
esse assunto que lhe permaneceu caro. Ele se entrega a uma críti-
ca implacável do sistema de ensino secundário, insistindo na dis-
ciplina autoritária que ali reina: o liceu militarizado, o liceu trans-
formado em caserna, adestrado na obediência absoluta e, a partir
daí, moldado como em uma fôrma única: " O aluno de liceu segun-
do a fórmula será um vigilante desde os vinte anos, e permanecerá
assim por toda parte, sempre, nos escritórios ou nas academias, diante
dos fedelhos ou diante das multidões, diante da ciência em progresso,
diante da literatura em alerta, diante de todos os movimentos dos
libertários" . 100 Assim, não resta mais que uma solução: "O liceu,
ainda uma bastilha a derrubar" . Combate perdido por antecipação
e ninguém o sabe melhor do que Valies, puro produto desses liceus.
Mas, além do espírito polêmico e político que anima Valles, além
das palavras e dos ressentimentos, subsiste esse retorno constante
à sua juventude, ao seu passado de aluno de colégio, de liceu, de
estudante universitário. Como se essa juventude repleta de huma-
nidades e de lições suplementares, mas também de camaradagens
e de esperanças, houvesse deixado um traço indelével no homem.
Pois é bem isso, em definitivo, que transparece através de inúme-
ros escritos de Valles, e nisso ele se junta aos seus contemporâneos
que deixaram lembranças ou memórias: o colégio ou o liceu como
lugar de formação social, de educação e de instrução. Amados ou
o diados, temidos ou desejados, deixados com pesar ou com alegria,
o colégio e o liceu deixaram uma marca duradoura naqueles que
o freqüentaram. Eles formam uma classe ou uma casta de privile-
giados. chocaram-se contra uma mesma cultura e, por vezes, foram
domesticados por ela: agrupam-se em associações de ex-alunos-
no Henri f\' desde 1833, no Louis-le-Grand em 1839 - para pro-
longar esse sentimento de penencer a uma elite oriunda de uma clas-
se. a burguesia, q ue, fazendo seus os princípios de 1789, lançou-se
à conquista do poder econômico e político na França e na Europa.
:\essa estratégia, a escola desempenha um papel essencial: indireto
no caso da escola primária, que, dando os rudimentos necessários
ao povo, supostamente o " civiliza" e o faz admitir a supremacia da
classe "superior"; direto no caso do ensino secundário, que, mais
ainda que o ensino superior, é a antecâmara de uma posição social
OS ]OVE/'•S NA ESCOLA: ALUNOS DE COLÉGIOS E LICEL"S XA FIU..\'ÇA c .\'A EUROPA 189

que a herança familiar (transmissão de um cargo, de uma cliemela


ou de um patrimônio) nem sempre permite. Foi graças aos seus su-
cessos no secundário, à sua osmose com o sistema de valores ,-ei-
culado por esse ensino que um Pasteur, um Gambctta ou um Ferry
tornaram-se, emre outros, essas figuras emblemáticas da República.
Mais amplamente e no plano do conjunto da Europa, o ensino se-
cundádo surge como o cadinho em que se formam os filhos de uma
burguesia vitoriosa: fica-se impressionado de ver o paralelo entre
a constituição de sistemas nacionais de ensino secundário e a ascensão
dessas classes burguesas que, através da economia e da política, to-
mam as rédeas de Estados em pleno desenvolvimento e por vezes
em formação. A essa "fabricação" de Estados corresponde a "fabri-
cação" de elites: sobre estas se disse que, no século XIX, recebiam
mais uma instrução que uma educação, que a passagem do Antigo
Regime à época contemporânea estava marcada por essa inversão
dos valores. Mas essa é uma visão esquemática demais: o colégio .
e o liceu são tanto lugares de educação - que passa pelo mestre,
mas também pelo colega - quanto de instrução, e produzem, em
definitivo, indivíduos educados segundo os valores dessa " nova"
sociedade: esforço, mérito, concorrência, sucesso etc. Se, no final
das comas, o ensino secundário torna-se uma aposta nacional no
século XIX, é menos pela promoção social que oferece do que por
seu papel de agente educador, formador de uma juventude con-
frontada desde a adolescência com o sistema de valores que deverá
aplicar, reproduzir e defender na continuação de sua vida. Em defi-
nitivo, o liceu como agente normativo, o que Valles, o rebelde, de-
nuncia vigorosamente ...

NOTAS

(1) Christina Niquc, Comment l'éco/e deuint urre ajfaire d 'État (Nathan, 1990),
288 pp.
(2) Citado in L. H. Parias (dir.), Histoire générale de l'enseignement et de l 'édu-
catiort en France (t. 2, Nouvelle Librairie de Francc , 1981), pp. 135 c ss.
(3) Ver Les Lumii!res en Hong1·ie, en Europe centrale et err Europe orielltale,
Actes du 5e co/loque de Matrcwfured, Budapest (Akademi Kiado e CNRS, 1984), 412 pp.
(4) C. Mialaret e]. Via!, Histoire mondia/e de l'éducation (Pt;F, 1981, t. 1), pp.
213-32.
(5) L. -S. Mercicr, in Tabteau de Paris, cit. por M. Gomard, L 'enseignement
secondaire en France de la.fin de.l'Ancien Régime à la /oi Falloux, 1 750-1850(Edi-
sud, 1984), pp. 1O e ss.
190 HISr6RiA DOS jOVENS

(6) V. ]cmerey-Duval, Mémoü·es. Enjance et éducation d 'un paysan au XVII~


siecle. Apresentadas por J.-M. Goulemot (Le Sycomore, 198 1), 415 pp.
(7) L. Trénard, "L'entre-deux siecles", in C. Mialaret e J. Via!, op. cit., t. 2,
pp. 359-93 .
(8) B. Ferrari, La política scolastica del Cavour, vita e pensiero (Milão, 1982,
256 pp. Discurso de 1857).
(9) Chateaubriand, Mémoires d'outre tombe (Le Livre de Poche, 1973, t . 1),
pp. 76-7.
(10) P. Kropotkin, Autour d'une vie. Mémoires (Stock, 1971), pp. 48-9.
(11) Cit. in M. Soetard , Pestalozzi {Lucerna-Lausanne, Ed. Renê Cocckclbcr-
ghs), p. 142.
{12) A. Prost, Histoit·e de l'enseignement en France, 1800-7967 (A. Colin, 1968),
p. 63.
(13) M.-M. Compere, Du collêge au lycée (I 500-1850) (co!. Archives-Gallimard,
1985), 286 pp.
(14) L.-H. Parias, op. cit. , t. 3, p. 487.
(1 5) Lettres du révérend pêre Lacordaire à des jeunes gens (Ch. Douniol, 1865),
pp. 324-5 .
(16) M. Curbellier, L 'enjance et la jeunesse dans la société jrcmçaise, 1800-1950
(A. Colin, 1979), pp. 154 e ss.
(17) G. Weill, Histoíre de l'enseígnement secondaíre en France, 1802-1920
(Payot, 1921), p. 11 5.
(18)]. Michelet, Nos jils (1 ~ ed . 1869, reed. Slatki ne, 1980), p. 287
(19) Quanto às cifras, ver G. Weill, op . cit.; A. Prost, op. cit.; M.-M. Compere,
op. cit.
(20) A. Vinao Frago, Política y educación en los origenes de la Espana con-
temporanea (Madrid , Siglo xx1 de Espana editores, 1982), pp. 41 0 e ss.
(21) A. Besançon, Éducation et socíété en Russíe dans te second tiers du x1xe
siecle (Mouton, 1974), pp. 45-7 . .
(22) M.-M. Compere, op. cit.; p. 160.
(23) W. Frijhoff & D. ]uila, École et société dans la France de I 'Ancien Régí-
me. Quatre exemples: Auch, Avallon, Condom et Gisors (A. Colin, 1975, Cahier
des Annales 35), p. 93; ver também M.-M. Compere, op. cit.; R. Chartier, D. Julia
& M.·M. Compere, L'éducation en France du XV~ au XVI!J€ siêcle (Sedes, 1976).
(24) Cifras de W. Frijhoff c D. Julia cit. por Louis Trénard, " Universités, colle·
ges e t écoles en France au Siccle des Lumieres" , in Les Lumieres en Hongrie, en
Europe centrale et en Europe orienta/e, pp. 263-88.
(2 5) P. Harrigan com V. Neglia, Lycéens et collégiens sous /e Second Empire.
Étude statistique sur les jonctions sociales de l'enseignement secondaire public
d'apres t'enquête de Victor Duruy (Lilk, Édition de la Maison des Sciences de 1'1-Iom·
me, Publications de L'Université Lille m, 1979), ver o quadro 2.
(26) R. Gildea, Education in provincial France 1800·1914. A study of tree
departments (Clarendon Press, Oxford, 1983), p. 201. Trata-se dos anos 1863-70.
(27) F. Guizot, I::ssai sur l'hístoire et sur l 'état actuel de l'instructiorz publi-
que en France (Paris, 1816), pp. 2-3.
(28) M. Gontard, L'enseigment secondait·e en France, p . 141.
(29) Idem, ibidem, p. 33.
OS }OI'E,\"$ SA ESCOLA: ALUNOS DF. COLÉGIOS E UCECS .\'A FRA.YÇA E XA EUROPA I9I

(30) H. de Bal7.ac, z. Mcwcas, in Oeuvres completes (Louis Conard, 1914), p. 425.


(3 1) V.er C. Shrosbee, Public sciJools and private educatiOII. Tbe Clarendon
commission 1861-1864 cmd tbe public scbools acts (Manchcstcr Unive rsity Press,
1988, 246 pp.).
(32) R. Gildea, op. cit., p. 188. Trata-se dos anos 1840-51 .
(33) Relatório cit. in P. Gerbod, La vie quotidienne dans les lycées et colleges
au X1JC! siecle (llachette, 1979, 268 pp.).
(34) Idem, ibidem, p. 14.
(35) C. Jourdain, Histoire de l'Université de Paris au xvrtc et au XVI/f! e
siecles (Hachcrte, 1862-6), pp. 238-52, titulo Xl.
(36) L. Rajon, La Garuche. Mémoires d 'un collégien de 1900 (La Pensée Uni-
versclle, 1990), pp. 35 e ss.
(37) H. Bal7.ac, Louis Lambert (France-Loisirs, 1987), p. 34.
(38)A. Corbin, Arcbai'smeet modemitéen Limousin, 1845-1880(2 vols., Mar-
eei Riviere, Paris, 1975), ec. v. 1, p. 34.
(39) J. Michclct, Nos fils, p. 285.
(40) Cit. por M. Gontard, L 'enseignement secondaire en France, p. 92.
(41) R. Merle, Annand Barbes, un rér-'Olutionnaire romantique (Privat, 1977),
pp. 14-5.
(42) Ver A. Vinao Frago, op. cit.
(43) C. d'Haussonvillc, Majezmesse 1814-1830. Sozwenirs (Calann-Lévy, 1885),
pp. 155 c ss.
(44)]. Valies, "Chers parcms!", in Les enfants du peuple (1987, Du Lérm),
p. 125.
(45) M.-M. Compêre, op. cit., p . 191.
(46) A. Daudc t, Le Petit Cbose (Le LiHc de Poche, 1983), p. 83.
(47) J.-M. Gaillard, jules Ferry (Fayard. 1989), p. 23.
(48) Hommage à Léon Gambetta, catálogo da exposição organizada no Mu-
seu do Luxemburgo de 18/11/1982 a 3 I 1983, p. 14.
(49) A. Besançon, op. ciL, p. 30·3.
(50) C. Jourdain, op. cit., p. 238-52.
(51) P. Gerbod, o p. cit., pp. 102 c ss., segundo Dupom-Ferrier, La vie quoti-
dienne d'un collàge parisien (t. 3, 1800·1920).
(52) F. Meyeur, in L.-H. Parias, op. cit., t. 3, p. 497.
(53) O . Devaux, "Lcs lycées impériaux, des casemes: mythe ou réalité? L'exem·
ple du lycée de Toulouse", Sources. TraL·aux Historiques 2 (1986), pp. 67-71.
(54) M. Gontard, 1-listoir·e des lycées de .llarseille, pp. 55 e ss.
(55) M.-M. Compere, op. cit., pp. 249-50.
(56) M. Gontard, Hístoire des lycées de Marseille, pp. 52-3.
(57) M. Gontard, L 'enseignement seco11daire en Frarrce, p. 139.
(58) Ver G. Cholvy (dir.), Mouvernents dejeunesse. Chrétiens et juifs: sociabi-
litéjuvénile dans un cadre européen, 1799-1968 (Cerf, 1985, 432 pp.).
(59) M. Lanfranchi, Mémoires de P.-A. Lanjrancbi, instituteu1· à Guitera
(1835-1875), suivies de la correspondance d 'unlycéen corse à son fJere (Cone, Le
Signet, 1990), p. 143.
(60) D'Alton-Shée, Mes mérnoires (1826-1848), l ~ parte: 1826-1839. (Paris
Lacroix-Verbocckhoven, 1869), pp. 23-4.
192 11/STÓIIIA DOS JOVENS

(61) A. de Mussct, La confession d 'un enfant du siecle (Gallimard-Folio), pp.


20-33.
(62) Letlres d 'unlycéen et d 'un édudiant de 1847 à 185 4, por Hcnri Dabot
(Péronne e Paris, s. d., cana de I O de abril de 1848), p. 20.
(63) Cf. C. j o urdain, op. cit.
(64) G. Mialeret e]. Via!, op. cit., t. I , p. 99.
(65) A. de Lamartine, Mémoil·es de jeunesse 1790·1815 (Tallandier, 1990), pp.
54-5.
(66) G. Flaubcrr, Corn!sjJondance (La Pléiadc), t. 1, pp. 56-7, novembro de
1839).
(67) P. Ge rbod, op. cit., p. 105 .
(68) 1.. Rajon, op. cit., pp. 132 e ss.
(69) A. Besançon, op. cit., pp. 30 e ss., c P. Kropotkin, op. cit., pp. 49 c ss.
(70) A. Dumas, Mes mémoires, t. I , 1802-30 (R. Laffont, 1989), p p. 200-1.
(7 1) Ver). Michelet, ÉCI·its de jettnesse (p. 202) e Lettres du R. P. Lacordaire
à des je1mes gens. (Paris, Ch. Douniol, 1865), pp. 444-5.
(72) M. Crubellier, op. cit., pp. 150·1.
(73) M. Lanfranchi, op. cit., pp. 162 .
(74) L. Rajon, op. cit., pp. 132-3.
(75) 11. de Balzac, Louis Lambert (France-Loisirs, 1987), p. 22 .
(76) A cena se passa em 1915, cf. E. Canetti, Histoire el'unejeunesse, La lan-
gue sauvée (Aibin Michel, 1980), pp. 142-4.
(77) ]. Michelet, Écrits de jeunesse, p. 208.
(78) A. Sylvcre, Toinou. Le cri d 'un enfant auvergnat (Plon, 1980), p. 269.
(79) Caso cit. por F. ~layeur, in L.-H. Parias, op. cit., t. 3, pp. 498-9.
(80) C. jourdain, op. cit.. pp. 238-52, título 13.
(81) H. de Balzac, Louis Lamberr, p. 43.
(82) A. Schnitzler, Une }eunesse viemzoise (Le Livre de Poche, 1987), p. 105.
(83) A. Corbin, Les filies ele noce. Misere sexuel/e et prostitution aux I 9e et
2~ siecles (Aubier, Paris, 1978), pp. 294 e ss.
(84) Ver ].-C. Caron, Générations romantiques. Les étueliants de Paris et /e
Quartier Latin, 1814-1851. (A. Colin, 199 1), cf. o cap. 7: "L'étudiant dans la cité:
I e marriage au xvme ".
(85) A. Schnitzler, Une jeunesse viennoise, p. 120.
(86) G. Mialaret c]. Via!, op. cit., t. I , p. 183.
(87) R. Via la, L 'enseignement secondaire de jeunesfilles 1880 -1940, par ceux
qui l'on crée et cel/es qui l'ont fait vivre (CIEP de Sevres, s. d .), p. 43 .
(88) Sobre o ensino secundário feminino, ver F. Mayeur, L 'enseignement se·
condaire des jeu.nes filies sous la TroisiiJme République (Presses de la FNSP, 1977,
489 pp.) e L 'éducation des filies en France au X!Jé! siec/e (Hachette, Paris, 1979),
207 pp.
(89) M. Crubellier, op. cit., p . 274.
(90) V. Rudy. The universities of Europe 1100- 1914. A history (Farleigh
Dickinson Uni\·ersity Press, 1984), p. 122.
(91) Sobre a Alemanha, ver o livro de] . Albissetti, Schoo/ing German gírls
anel women. Secondary and higher education in the nineteenth century (Prince-
ron University Press, 1988), do qual é extraída a maior pane das info rmações refe-
rentes à Alemanha.
OS jOVE.\'S .VA ESCOLA: ALUNOS DE COUGIOS E UCIC:S .\"A FRASÇA E,\:~ EliROPA 193

(92) G. Mialaret e J. Via!, op. cit., t. 2, pp. 167 e ss.


(93) Ver L L Clark, Schooling the daughters ofMarianne. Textbooks and rbe
socialization of girls in modem FrenciJ primary sc!Jools (State University o f :\ew
York Press, 1984), p . 120; essas cifras não levam em conta as escolas primárias su-
periores.
(94) S. Voilquin, Sou verzirs d'une filie du peuple (F. Maspéro, 1978), p. 65.
(95) M. Larífranchi, op. cit., p. 165.
(96) D. Stcrn, Mes souverzirs (Calmann-Lévy, Paris, 1877), pp. 3 7·8.
(97) lde::m, ibidem, pp. 98 e ss.
(98) G. Sand, Histoire de ma vie (Gallimard, La Pléiade), v. I , p. 868.
(99) D. Stern, op. cit., p. 159 e ss.
(I 00) J. Vallcs, " Les lyc<!e::s", artigo publicado em 4 de agosto de 1882 in La
France, reproduzido in Le tableau de Paris Gllessidor, 1989), pp. 149-53.

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Tradução do francês por Mm·ia Lúcia Machado
JOVENS REBELDES
E REVOLUCIONÁRIOS: 1789-1917
Sergio Luzzatto

Foi a revolução que trouxe a velhice para o mundo.


Georges Sand

Onde quer que se olhe no mapa ela" Europa, e praticamente em


qualquer momento, o século xtx apresenta a imagem compósita mas
clara de uma juventude inquieta ou rebelde: jovens, os carbonários
franceses ou italianos da década de 1820, e a maioria dos decabristas*
russos; jovens, pelo menos como os que apre-sentou Delacroix em
seu quadro mais célebre, os estudantes e os operários nas barrica-
das parisienses de Julho; jovens também os sequazes ele Mazzini nos
anos 1830; jovens ainda q uase rodos os heróis e m<írtires elas revo-
luçôes de 1848 na Europa; jovens os " filhos" que se rebelam con-
tra os "pais" na Rússia de 1860 e 1870, a de Turg~ niev e de Dos-
toicvski; jovens, igualmente, os intelectuais que assumem a defesa
elo capitão Dreyfus na França elos anos 1890, e jovens os membros
elos Wandervôgel, os quais, depois ela virada elo século, agridem a
burguesia guilhermina em suas tranqüilas e industriosas certezas. A
história ela primeira parte do século xx confirmará a permanência
dessa equação jovens-rebeldes, quando, na França e na Alemanha,
na Inglaterra como na Itália , os porra-vozes ela juventude européia
invocarão as virtudes regeneradoras ela guerra: um apelo às armas
ao qual responden1, disciplinada, a geração de 1914.

(*)Referên cia à insurreição decabrisla ele 1825, um marco para a juventude


revolucionária da Rússia, apesar da derrota então sofrida. (N. T .)
196 11/STÓRIA DOS]O VE,\S

Os jovens conrra os velhos: foi muiro presente, duranre o sé-


culo XlX, a tentação de sublinhar as razões dos movimentos de pro-
testo ou de lamentar seus erros, tendo por base considerações de
ordem geracional. À primeira vista, tentação paradoxal: no momento
em que a juventude perdeu o papel culturalmente reconhecível c
socialmente coesivo que mantivera na economia da sociedade tra-
dicional, ela se tornou objeto de reivindicação e ele denúncia políti-
ca. Observando melhor, tentação conseqüente: no "novo regime"
que o decênio revolucionário c os quinze anos napolcônicos entre-
garam à posteridade, 1 no século da "descoberta" da família,2 roma-
se ainda mais urgente definir segundo novas fórmulas os respecti-
vos papéis da juventude, da maturidade e da velhice; não é casual
que, das lojas maçônicas às seitas carbonárias, da igreja saint-simo-
niana às icárias de Caber, reformadores e revolucionários , converti-
dos e utopistas se afanem na busca ele uma fór mula assoc~ativa que
possa conciliar a aspiração igualitária contida na idéia ele fraternida-
de com a ordem hierárquica garantida pelo reconhecimento de uma
paternidade.3 De qualquer modo, a ren,tação de louvar ou de des-
mascarar, nos momentos de crise c de ruptura, a inevitável intro-
missão da juventude está bastante presente na cultura política do
século XIX, e merece ser levada em consideração pelo historiado r.
A image m de uma juventude do século xrx em perpétua revol-
ta - alguém há de objetar - foi desmentida, ou pelo menos diluí-
ela, por pesquisas de campo mais rigorosas: os historiadores da área
social demonstraram, por exemplo, como não eram tão jovens as-
sim os revolucionários que subiram nas barricadas de julho, na Pa-
ris de 1830; e enfatizaram que na Paris de junho de 1848, os jovens
serviram à ca usa da ordem bem melhor que à causa revolucionária.
Apesar disso, no século XJX, a juventude assusta. Tudo parece cons-
pirar para torná-la não confiável: o modelo corporativo do Antigo
Regime já não serve para refreá-la, ao passo que a urbanização que
acompanha o desenvolvimento industrial rompe suas coordenadas
espaciais; sem falar do inédito contexto familiar e social determina-
do pela crise da primogenitura c pela ampliação do período médio
do celibato. Daí a exigência de preparar uma espécie de moratória
que aclie o momento da assunção, por parte dos jovens, ele respon-
sabilidades políticas e sociais. 4 Awam nesse sentido as leis eleito-
rais, que se fundamentam em critérios de registros carroriais, além
de censitários, a distinção entre eleitorado passivo e ativo. Das pe-
ripécias e efeitos de tal moratória, as personagens do Bildungsro-
jOI'F.SS RF.RELDES E REVOWCJO.VÁRIOS 197

man constituem um testemunho literário e os bohémiens, a encar-


nação viva.5 .Mas nenhum contemporâneo encontrou, para descre-
ver sua lógica, palavras mais incisivas que as de Ludwig Borne, o
poeta que a juventude alemã erguia, na década de 1830, como sím-
bolo ela contestação dos valores filisteus: " Dado que todo homem
nasce romano", explicava Borne, "a sociedade burguesa trata ele
desromanizá-lo" ; não tinham outro objetivo os jogos de azar e de
sociedade, os romances, as óperas italianas e as revistas elegantes,
os cassinos, os círculos para o chá e as loterias, "os anos de tirocí-
nio e ele noviciado", as guarnições militares e as paradas de troca
da guarda, as cerimõnias, as visitas de corresia, as roupas mais ou
menos estreitas, senão esvaziar os jO\·ens do máximo possível de
forças e de veleidades.6
Contudo, as revoluções de 1848 revelam à burguesia européia
a insuficiência de medidas similares e assinalam a fragilidade intrín-
seca de um mundo minado pela crise das hierarquias consolidadas.
Após um biênio de grande medo, as classes dirigentes do continen-
te se reorganizam, bem determinadas a defender-se tanro da re\·ol-
ta dos próprios filhos como da revolução do proletariado. Durante
a segunda metade do século, nos países mais avançados do conti-
nente, a engrenagem articulada da instrução e do serviço militar obri-
gatório se reveste de uma função de disciplinamento social que com-
pensa amplamente a desordem potencial derivada da concessão do
sufrágio universal.7 Escolas modeladas a partir de quartéis: a litera-
tura da época documenta os efeitos traumáticos das mil punições
arbitrárias impostas aos jovens alunos por docentes mais severos que
qualquer sargento. Contudo, é preciso admitir que as fadigas peda-
gógicas de gerações de professores surtiram, em grande medida, o
efeito desejado. As rebeliões juvenis do século XIX tardio e do iní-
cio do século xx têm uma conotação diversa das que as precede-
ram: pretendem servir aos interesses nacionais, por mais que sugi-
ram uma transformação revolucionária da sociedade; por isso, elas
escapam à hegemonia dos partidos socialistas mais do que fogem
ao controle das organizações burguesas.
Que se manifestem nos fatos ou que se satisfaçam com gestos
e palavras, os protestos juvenis do século xrx lembram aos contem-
porâneos e ao historiador a inegável novidade da herança revolu-
cionária: entendida como grupo etário, com uma precisa função cul-
tural c social, a juventude deixou de existir; em compensação, ela
se hipertrofiou no imaginário . .Mais que ela presença real dos jovens
198 HISTÓRIA DOS JOVEM;

nas diferentes vicissitudes das revoluções européias, proponho-me


portanto a tratar da sua presumível presença: os protagonistas das
páginas seguintes não serão tantO - ou não somente - os jovens
que de fato escalaram as barricadas ou aderiram a um e outro movi-
mento de protesto político, mas os rebeldes e os revolucionários,
qualquer que fosse a sua idade, que sentiram-se jovens e como jo-
vens combateram; são, também, os seus adversários políticos, na
medida em que sentiram que deviam enfrentá-Ia como se enfrenta
uma geração. Em relação ao horizonte geográfico, creio ser correto
assumir a centralidacle da França, Paris em especial, na prática c nas
lendas revoluciomí.rias do continente, ao menos para o período que
vai ele 1789 à Comuna. Naturalmente, também outras personagens,
sejam elas italianas ou alemãs, austríacas ou romenas, suíças ou rus-
sas, fazem parte dessa história; mas aparecem sobretudo por terem
podido passar a própria "juventude" enfrentando os mitos c os ri-
tos revolucionários de origem francesa.
Falou-se de mitos e ritos: poderíamos ter ditO também paró-
dias e modas. Os revolucionários, ainda mais quando não eram de
nacionalidade francesa, logo reconheceram, ainda na época do Di-
retório e das chamadas repúblicas-irmãs, o problema da força da
tradição revolucionária francesa, baseada num passado tão incômo-
do e avassalador que prejudicava o desenvolvimento e o êxito das
revoluções atuais. Daí a severa análise de Vincenzo Cuoco da "pas-
siva" revolução napolitana de I 799, da qual foi um dos protagonis-
tas, e a não menos feroz fórmula de Marx no 18 brumário, a pro-
pósitO das tragédias históricas condenadas a repetir-se como farsas.
Os revolucionários do século XIX - pelo menos os mais perspica-
zes - captaram tudo o que havia, em seu inclinar-se à primazia de
Paris, de homenagem reverencial ou até mesmo mecânica e servil.
"Traduzam também fábulas populares russas, sagas familiares sue-
cas e romances ingleses de bandidos: havemos de recorrer sempre
à França no que concerne às massas; não porque será sempre a ver-
dade, mas porque será sempre moda": 8 assim escreve em suas Let-
tere da Parigi [Cartas de Paris] , de 1842, Karl Gutzkow, o publici-
tário então desencamado, mas com um passado glorioso de fundador
do movimento literário dedicado à "Jovem Alemanha". Assim tam-
bém se exprime, em 1849, um líder dos liberais moderados no Par-
lamento de Frankfurt: "Nossas revoluções, como nossas modas, te-
mos de recebê-Ias de Paris" .9
}OI.E.\"S REBELDES E REI.OLCC/0.\ÁR/05 199

Numa página parricularmente densa de sua pesquisa sobre as


passages parisienses no século XIX, Walrer Benjamin propôs as ca-
tegorias de " moda" e de "envelhecimento" como decisivas para
a compreensã~ da diferença geral que se interpõe entre a tradição
da classe dominante e a tradição dos oprimidos. Segundo Benjamin,
o proletariado vive mais lentamente que a burguesia ou, pelo me-
nos, do que a burguesia desde que esta se tornou classe dominante.
Os movimentos e as ideologias da burguesia, que edificaram algo
que constitui a sua tradição, dependem estreitamente da moela, por-
que devem - de tempos em tempos- adaptar-se à situação do con-
flito social em curso, negar que ela seja conflituosa , provocando,
ao contrário, sua harmonia. Segundo Benjamin, as ondas da moda
se chocam, inversamente, contra a massa compacta dos oprimidos,
cujos militantes, com seus guias que não envelhecem, ou envelhe-
cem bem mais lentamente que as grandes figuras da burguesia. lO
A noção de envelhecimento da tradição burguesa, mais ainda
que a ele moela, parece pertinente na economia ele nosso discurso.
1oção discutível, não fosse por outras razões, pela origem burguesa

que tiveram, no século XIX , tamos chefes históricos do proletaria-


do; c por ter sido pela via " burguesa" do papel impresso - livros
c libelos, jornais e mémoires - que boa parte da tradição revolu-
cionária vem se transmitindo de uma geração a outra, entrelaçada
de diversas maneiras à tradição oral e aos progressos da alfabetiza-
ção. Mas noção p ertinente, ao menos no contexto francês: de 1793
às jornadas de julho, de 1848 à Comuna, a transmissão de toda ex-
periência revolucionária implicou o encontro entre os veteranos e
os novos grupos; c tal encontro muitas vezes correu o risco de as-
semelhar-se a um choque em que a disputa não consistia simples-
mente na atualidade política das respectivas idéias, mas na idade social
que uns atribuíam aos outros. Resulta difícil entender plenamente
a história dos jovens revolucionários franceses no século xtx, se não
estudamos essa controversa relação com quem os precedera no ca-
minho da revolução. Nos jovens, o orgulho dos neófitos se justa-
põe ao culto pelos grands ancêt1'es; nos vdhos, o reconhecimento
dos herdeiros se acompanha do orgulho dos desbravadores; na me-
mória ele uns e outros, exaltadora ou incômoda conforme o caso,
está a lembrança da Declaração dos Direitos do Homem de 1793,
a qual afirma, no anigo 28, que " uma geração não pode sujeitar às
próprias leis as gerações futuras" . Assim, a genealogia elas ascendên-
cias e das excomunhões, dos mestres c dos monsrros, configurou-se
200 IIISTÓHIA DOS}OIIE,\"5

segundo módulos complexos. Às vezes, os velhos acabaram por co-


locar-se à esquerda dos jovens ...
Roman]akobson disse de maneira magnífica, a propósito da ge-
ração de Maiakovski: acabam sendo bizarras as relações que têm lugar
entre as biografias das gerações, o curso da história e as diferentes
"idades em que são chamadas as gerações e a duração elo recruta-
mento histórico"; ele algumas gerações, a história mobiliza "o ar-
dor juvenil", de outras, "a têmpera madura ou a sabedoria senil". 11
PortantO, erraria quem quisesse escrever a história políti<:a dos jo-
vens franceses do século xrx da maneira como Schulz traça a vivên-
cia infantil de Linus e ele Charlie Brown: colocando-os num mundo
sem adultos. A história dos jovens revolucionários é , também, uma
história de homens maduros e de velhos: ao longo do caminho, al-
guns correm e tropeçam tanto quanto outros. Convém evitar qual-
quer abordagem teleológica à história francesa do século XIX, que
tenda a reconhecer nela a progressiva, lógica realização, de uma ge-
ração revolucionária a outra, das premissas contidas na grande Re-
volução. De qualquer modo, vale a pena começar pela Revolução
Francesa. Segundo alguns historiadores, ela inventa o conceito mo-
derno de geração. 12 Certamente, a Revolução inaugura ao redor da
jeune gens uma retórica política destinada a um belo futuro: a retó-
rica que deseja uma juventude tão generosa e exuberante a ponto
de constituir um perigo permanente para a ordem política e social.

JUVENTUDE DOURADA E JUVENTUDE QUEIMADA

"A Revolução nutre o espíritO humano como o sol da África


nutre a vegetação: o influxo da liberdade torna fácil criar qualquer
instituição e torna precoce a maturação de qualquer fruto": para ilus-
trar aos colegas da Convenção a oportunidade de uma escola mili-
tar que formasse na arte da guerra os mais promissores dentre os
jovens franceses, Benrand Barere, porta-voz habitual do Comitê de
Salvação Pública durante o Terror, havia recorrido - como era há-
bito seu- a uma linguagem metafórica e barroca. 13 Contudo, es-
sas suas palavras de fevereiro de 1794 servem bem para definir o
sentido da aposta jacobina que, dentro de poucos meses, haveria
de concretizar-se na criação da École de Mars: enquanto, nas fron-
teiras do país, os jovens dos dezoito aos 25 anos combatiam valo-
rosamente pela defesa das liberdades republicanas, por que não se-
}OI'ESÇ REBELDES E REl"OLI;CJO.\'ÁRJOS 201

lecionar, nos departamentos, alguns milhares de jovens de dezes-


seis e dezessete anos e por que não fazê-los ir a Paris durante algu-
mas semanas, com o fim de inculcar-lhes de uma vez para sempre,
junto com os segredos da arte militar, o ódio contra a tirania, a des-
confiança contra os preconceitos, um patrio tismo sincero, o instin-
to da fraternidade? No dia seguinte ao Termidor, os deputados da
Convenção se mostraram igualmente confiantes na possibilidade de
formar por meio de critérios similares uma geração de professores
de escola e, tomando a École de Mars como exemplo, construíram
a École Normale. Porém, vale mais a pena nos determos na École
de Mars, cuja história documenta, melhor que q ualquer outro acon-
tecimento ligado aos projetos revolucionários, a natureza da atitude
assumida pelos jacobinos em relação à juventude e a amplitude de
seu fracasso.
Tudo começara sob os melhores auspícios. Havia sido encora-
jadora a resposta das províncias ao rapport de Barere, de 13 de prai-
rial do ano 11 (1? de junho de 1- 94), base da fundação da École de
Mars: muitos distritos haviam indicado um número de candidatos
superior ao previsto pela lei. A seleção fora efetuada com a devida
atenção, tratando de privilegiar os jovens com dificuldades econô-
micas e, sobretudo, os que viessem de famílias cuja orientação polí-
tica fosse inequivocamente confiá,·el. Os agentes nacionais delega-
dos para o recrutamento tinham tido o prazer de constatar, em mais
de um caso, o louvável zelo republicano dos candidatas: os seis alu-
nos provenientes do distrito de Limoux, por exemplo, tiveram a pro-
missora idéia de acrescentar um sobrenome conforme os santos do
novo calendário, escolhendo os no mes de Manjericão, Louro, Tuli-
pa, Carvalho, Fungo c Ancinho! Como figuras tutelares da escola
militar, os convencionais tinham colocado- sem surpresas - Ba-
ra e Viala, dois jovens mártires da Revolução que logo se tornaram
matéria de lenda republicana; seus bustos eram exibidos com des-
taque no acampamento de Sablons, nas portas de Paris, onde os 3400
recrutas da escola haviam sido reunidos. Em suma, podia parecer
justificado o otimismo demonstrado por Barere no relatório de prai-
rial: ele reiterara - em pura linguagem jacobina - que a função
de educar homens livres estava reservada, mais do que às famílias
individualmente, à grande família que é a pátria; e dissera ter a cer-
teza de que a École de Mars acabaria formando uma geração de re-
publicanos autênticos, ao passo que não se veria infiltrar nela ne-
nhum rnuscadin, nenhum " hermafrodita".
- - -~ ~ ------------------

202 HISTÓ RIA DOS }OVE,\'S

Uma vez mais, as palavras de Barcre se revelam indicativas pa-


ra o histOriador, justamente quando retomam, tecendo sobre ames-
ma trama, os estereótipos do discurso político corrente. De fato,
a retórica, se não quisermos falar de ideologia, que orienta a cria-
ção da Écol e de Mars, é uma retórica da virilidade. Os alunos da
escola tinham, conforme foi dito, dezesseis e dezessete anos; bem :
dezesseis é também a idade que os teóricos das festas revolucioná-
rias decidem escolher como a mais justa para convocar os adoles-
centes da França para a cerimônia de sagração das armas, autêntico
ritual de passagem para a nova liturgia republicana. 14 A experiên-
cia da École de Mar s deve ser, sob esse ponto de vista, a mais sofis-
ticada e bem sucedida entre todas as festas de virilidade: porque,
nas fronteiras, os recrutas dos Sablons deverão demonstrar que são
homens ele verdade. Não por acaso, na polêmica de Barere, os mus-
cadins - isto 6, os jovens, relapsos, mimados opositores elo regime
jacobino - são associados aos hermafroditas ou até identificados
com eles: para os revolucionários intransigentes, trata-se ele indiví-
duos que tentam, ocultando-se, fugi r ao combate viril.
Todavia, o culto da virilidade entra em contradição com o mora-
lismo fundamental que permeia o imaginário jacobino; aquele mo-
ralismo, o mesmo que leva o médico da École de Mars a advertir
os alunos contra o relacionamento com mulheres, não apenas, ba-
nalmente, para evitar doenças terríveis, mas para mostrar-se diferen-
tes dos " povos depravados que buscam o prazer numa viela debo-
chada e libertina" . Por outro lado, assim como devem prevenir-se
contra prostitutas vulgares, os alunos são convidados a evitar as mu-
lheres muito explícitas na proclamação de uma fé revolucionária,
ou muito entusiastas, demasiado masculinas ao vivenciá-la: pensan-
do, bem, puras também elas, p ois a política implica o uso estratégi-
co do corpo c do espírito, e não há sedução sem prostituição. Quando
se lança contra os hermafroditas, um Barere não tem em vista so-
mente o lado fe minino de certos homens, mas sim, também, o lado
masculino de certas mulheres. A indepen dência dos solteiros e a
livre iniciativa elas m ulheres se relacionam mal com a dimensão
conservadora da mentalidade jacobina, que cultiva o mito do pai
de família e desconfia tantO elo jovem ardoroso quanto da mulher
militante, a quem transforma numa espécie de personagem fama-
siada.15
Após a queda de Robespierre, em pleno clima político renova-
do pelo Termidor, os muscadins vão aumentar as fileiras ela " ju-
}OI.EXS REBELDES E REI.OLCCJOXÁRIOS 203

ventude dourada": grupos de jovens que invadem os teatros pari-


sienses e obrigam os atores a entoar cantos contra-revolucionários,
destroem os bustos públicos de Marar até conseguir que suas cinzas
sejam ignominiosamente retiradas do Panthéon, espancam os jaco-
binos no Palais-Royal. Tudo isso com a benevolente cumplicidade
do Comitê de Segurança Geral, solidamente nas mãos dos termido-
rianos, os quais louvam, ao menos num primeiro momento, as vir-
tudes patrióticas de tais jovens. "Nunca sucedera que alguém setor-
nasse herói com tanta facilidade", comentará décadas depois, com
louvável sinceridade, um dos líderes da juventude dourada. 16 Co-
mo única resposta, fiéis aos argumentos jacobinos, os historiadores
pró-revolucionários representaram tais grupos como a versão sete-
centista tardia elos bandos fascistas. Porém, aos jeune gens do ano m
caem mal tanto as roupas de heróis quanto as de monstros: o protes-
tO deles ilustra, simplesmente, a desforra de um segmento da socie-
dade civil que a Revolução pusera de lado com desprezo, justamen-
te a elos jovens solteiros (não é casual q ue o Termidor represente
também - ele alguma for ma - uma revanche das mulheres)Y
A história ela École de Mars reflete com igual clareza o preço
que o jacobinismo acabou pagando pela própria ingenuidade, con-
fiança utópica na possibilidade de plasmar a juventude à imagem
e semelhança do modelo espartano que fervia na cabeça elos revo-
lucionários adultos. Poucas semanas depois do dia 9 de Termielor,
a escola militar entra em crise. Os alunos demonstram uma inquieta-
ção crescente em relação à disciplina militar à qual se acham sujei-
tos; esses adolescentes reclamam, compreensivelmente, as comodi-
dades da vida doméstica e deplo ram o próprio isolamento do resto
do mundo. Quanto aos depurados rermidorianos, declaram-se céti-
cos quanto à confiança política ele uma instituição que fora fundada
durante o período raivoso do jacobinismo. Louis-Stanislas Fréron,
considerado por todos o autêntico padrinho da juventude doura-
da, não precisa se cansar excessivamente para convencer os cole-
gas da convenção a mandar de volta para casa os recrutas ela École
de Mars, enquanto ainda exalta a contribuição que os muscadins
vão dando à causa republicana. Alguns meses mais tarde, quando
a força ele choque da juventude dourada contribuiu o suficiente pa-
ra a crise elo movimento sans-culotte e a Convenção sente nitida-
mente a urgência de uma pacificação, o mesmo Fréron se encarre-
ga de entoar um réquiem também para os grupos de jovens que ele
204 lf/S TÓRIA DOS ]Ol'F,\"S

manobrara tão habilmente: "Sentíamos uma dor profunda ao cons-


tatar como crianças foram encarregadas de manter a ordem e de ga-
rantir o triunfo da justiça" , escreve Fréron no Orateur du Peuple,
na primavera do ano m. 18
Tratava-se, mais em geral, de um réquiem da aposta jacobina
na precocidade que jovens oportunamente educados eram suscetí-
veis de revelar ao assumir a própria identidade de adultos republi-
canos. A Revolução preparava-se para investir, então, na moratória
psicológica e social representada pela adolescência e pela juventu-
de como idades bem distintas da infância e da maturidade, como
quarentena que os filhos deveriam cumprir à espera de poder assu-
mir plenamente o papel de pais e de cidadãos. Uma questão de tem-
pos, se nada mais fosse. Os jacobinos tinham contado com os efeitos
taumatúrgicos que uma separação dos jovens da corrupta socieda-
de circundante e uma doutrinação adequada poderiam exercer no
breve lapso de algumas semanas. Os termiclorianos se mostraram
mais realistas; enquanto estimulam, de todas as formas possíveis, o
culto da velhice, enquanto organizam uma festa anual ela juventude
com espetaculares encenações das distinções nítidas entre as ida-
des, 19 preparam-se para organizar para os jovens uma separação
igualmente duradoura.
Durante a primavera do ano m, a Convenção debate a respei-
to da nova constituição. A assembléia convida os republicanos da
França inteira a mandar suas próprias opiniões sobre o que fazer.
Aqui, pouco importa decidir se a iniciativa de tal consulta popular
derivava ele meras intenções demagógicas ou do respeito por um
hábito consolidado (em 1791 e em 1793, isso já fora fe ito) ou então
ela sincera vontade dos mandatários de conhecer a vontade política
dos mandantes. Do nosso ponto de vista, interessa mais destacar co-
mo, entre as centenas e centenas de cidadãos que respondem, com
cartas apresentando diferentes compromissos, ao apelo da Conven-
ção, muitos se preocupam em intervir também sobre o problema
político da juventude. Para tais legisladores mais ou menos impro-
visados, a melhor ocasião de pronunciar-se a respeito é dada pela
questão ela idade que a constituição deve indicar como mínima pa-
ra exercer o direito de voto c pela questão, diferente apesar da afi-
nidade, relativa à elegibilidade para cargos públicos: qual deveria
ser a idade mínima dos cidadãos? Quer se pronunciem pela manu-
tenção dos termos constitucionais previstos em 1793 (eleitorado pas-
sivo e ativo aos 2 1 anos) ou vice-versa, pela reproposição do déca-
]0\.ESS REBEWES E REVOLUCIONÁRI OS 205

lage previsto pela constituição de 1791 (eleitorado passivo aos 2 1


anos, ativo aos 25), os correspondentes da Convenção se mostram
unânimes em relacionar o problema do eleitorado ao problema do
estado civil; não menos que os mandatários, os mandantes se reve-
lam convencidos da existência de uma relação direta entre a idade
da certidão de nascimento, o fato que um indivíduo seja casado ou
não e sua confiabilidade enquanto cidadão.2o
idade
40
,, ~
'"·:;
espera pela elegibilidade ffili]
40

I
::l
o espera pelo direito de voto O
13
""'~ 30

25 - Jl v

2)

21 - 21

'--
1791 1793 179S 1799 1807 18 14 1831 1848

Limites ele idade para a elegibilida de e o direito de voto na


Fra nça, 1791-1848.

Ainda mais significativa, de n osso ponto de vista, é a decisão


final da assembléia. Segundo os termos da constituição do ano m,
além de satisfazer determinadas condições de recenseamento, os ho-
mens franceses , cidadãos passivos a parrir dos 21 anos, elevem che-
gar aos 25 para votar nas assembléias eleitorais; devem aguardar os
trinta anos para poderem ser eleitos para o Conselho dos Quinhen-
tos (a quem cabe a iniciativa das leis), e os quarenta para ter acesso
ao Conselho dos Anciãos (a quem cabe aprovar as leis ou rejeitá-
las): serão im pedidos de pertencer a esta última câmara se não fo-
rem casados ou viúvos ... Uma cláusula da constituição intervém para
206 HIS1'ÓIIIA DOS JOVI':SS

temperar momentaneamente tais medidas, estabelecendo que, pa-


ra os dois primeiros turnos eleitorais, bastariam 25 anos para pode-
rem candidatar-se ao Conselho elos Quinhentos: a Revolução não
queria rejeitar d 'emblée todos os seus próprios filhos. Colocando
de lado as cláusulas que continham exceções e a própria brutalida-
de elos eventos, que só concederá à constituição ele 1795 quatro anos
ele vida, permanece o faro ele que os termidorianos inauguram uma
época na história política elos jovens. Conforme resulta visualmen-
te do gráfico, o intervalo entre os 25 c os quarenta anos (depois trinta)
representa, na lógica que os termidorianos transmitem ao século XIX,
o período ele quarentena ao qual é oportuno submeter qualquer
" jovem" antes de reconhecê-lo como cidadão de faro.
Entretanto, reduzidos a escrever em jornais cada vez mais clan-
destinos, apontados e perseguidos como terroristas nas seções de
Paris ou até no interior dos departamentos, quando não trancafia-
dos nas prisões termidorianas, os jacobinos irredutíveis passam, des
também, a ret1etir com desencanto sobre o papel c o destino da ju-
ventude na revolução. Para quem não cai em eombate, para quem
não honra o preceito de Saint-Jusr segundo o qual um bom revolu-
cionário nunca morre na cama, fazer uma revolução significa, tam-
bém, sobreviver a ela. Isto é, de algum modo, sobreviver a si mes-
mo, quando o mundo novo (ou o mundo que se tentou renovar)
se equilibra, ao se apagar o fogo que arde na mente de rodo revolu-
cionário. Para quem se lança na Juta desde jovem, pode acontecer
que tal época incendd ria venha a durar a vida inteira. É o caso ele
Marc-Antoine )ullien, que iremos colocar no centro elas próximas
páginas: talvez uma representativa amostra dos jovens revolucioná-
rios que sobreviveram à Revolução Francesa, certamente um teste-
munho apaixonante.
Jullien não tem mais que vinte anos em 1795, quando sofre nas
prisões termidorianas; mas, êm suas costas, já pesa um longo passa-
do de militante terrorista. De fato, fizera sua estréia no cenário da
Revolução vestido de anjo exterminador. Filho de um convencional,
aos dezoitO anos se tornara homem ele confiança de Rohcspierre,
em delicadas c ferozes missões nos departamentos, durante o ano
n. Porém, depois de 9 de rermidor, jullien começa a conhecer, junto
com outros, a perseguição como agente robespierrista. Durante to-
do o ano 111, até se beneficiar da anistia concedida aos ex-terroristas,
em seguida ao complô monárquico do mês vindimadeiro do ano
IV, ele permanece nas prisões rermidorianas. E no cárcere é alcan-
JOI'EXS RERELDES E REI"OLI::C/OX.iRJOS 207

çado, é ferido pelas notícias do sacrifício de tantos republicanos.


pelos horrores do Terror branco, pelos avanços da contra-revolução:
uma reação contra a qual]ullien tema opor-se de algum modo, aliás,
segundo fórmulas e táticas políticas nem sempre adequadas ao cli-
ma dos tempos novos.
Além de documento da luta entre facções na França do ano m,
os papéis de Jullien prisioneiro (as canas, as notas dispersas, as pá-
ginas do diário que chegaram até nós) interessam mais, aqui, como
expressão imediata elo estado de ânimo de um jovem revolucioná-
rio que amadureceu muito rápido c precocemente envelheceu. "Nas-
ci num vulcão, vivi no auge da erupç-Jo, serei sepultado por sua la-
va": palavras hiperbólicas de um jO\·em de vime anos recém-saído
do colégio, todavia marcadas por um lamento de quem constata -
literalmente - a própria ju venrude queimada. "Minha vida é um
romance pesado e terrível, mas como,·eme e instrutivo para os jo-
vens sem experiência", escreve jullien na mesma página ele diário
em que se interroga a respeito da identidade do "gênio salvador"
destinado a restaurar a liberdade na tão fustigada república da Fran-
ça: romance instrutivo, a \"ida de jullien. pois com ela a juventude
pode aprender como defender-se da febre re,·o lucionária. Livre en-
fim, no vindimadeiro do ano I\", Jullien anota, à maneira de Rous-
seau: " Pano, não quero rever Paris, quero vacas, leite ... Tenho 21
anos, que imagens tão pesadas não interYenham mais para obscure-
cer a aurora da. minha vida" .21
Devido ao golpe de Estado de 18 brumário elo ano VIl (9 de no-
vembro ele 1799), o gênio salvador invocado por Jullien e por tan-
tos outros como ele encarna-se em :;-lapoleão Bonaparte. Jullien não
perde tempo. Poucas semanas depois do golpe ele Estado, ele pu-
blica, anônimo, Entretien politique sur la France (Diálogo político
sobre a França), com um nítido teor bonapartista. De resto, diver-
samente do que se prometera, Jullien \·inha não de um triênio com
intervalo para descansos bucólicos, mas sim de uma avcmurosa ex-
periência política em companhia dos exércitos republicanos, entre
República cisalpina, expedição ao Egito e República napolitana: anos
durante os quais se movimentara, principalmente, na entoU1·age do
próprio Bonapane, mas sem economizar críticas contra ele. Para além
de razões ele oportunidade ou ele oportunismo político que podem
ter movido a pena de jullien no frimário do ano v11, é preciso no-
tar quanto existe, na Entretien em questão, de insistente reflexão
sobre o destino elos jovens e - mais em geral - sobre os destinos
das gerações a quem cabe a son e de viver uma revolução.
208 11/STÓRIA DOS jOVENS

Irremediavelmente degradada e corrupta, segundo Jullien, age-


ração presente: daí a necessidade de um governo forte e bastante
duradouro para deter as rédeas do poder até que uma nova geração
atinja a maturidade. Entretanto, as crianças devem ser colocadas,
desde a mais tenra idade, em pensionatos nacionais onde sejam ri-
gorosa e longamente educadas para o saber, o trabalho e a guerra.
Segundo a form ulação de Jullien, é preciso interná-las , durante dez
ou vime anos, "em algo parecido com lazzeretti", é preciso
"seqüesmí-las da sociedade, para preservá-las do contágio e formar
uma nova geração". 22 Sob vários aspectos, estamos diante de uma
versão atualizada do sonho espartano que animara tantas reflexões
políticas e pedagógicas na segunda metade do século XVIII: banho
dos recém-nascidos em vinho novo, exercícios físicos associados
ao estudo e - sobretudo - retirada das crianças das famílias, com
a entrega aos exigentes cuidados do Estaclo. 2 ' Mas distante de qual-
quer otimismo setecentista parece possível decifrar, no texto de ]ul -
lien, algo como uma fúria educativa desesperada; de qualquer modo,
estamos longe de apostas no gênero da École de Mars e ela École
Norma/e, ela confiança numa pedagogia concentrada em poucos me-
ses ou até em poucas semanas c nem por isso menos triunfante so-
bre os vícios comuns. A experiência da Revolução demonstrou a
inutilidade de intervenções pedagógicas demasiado curtas no tem-
po; também para o jacobino Jullien, conforme já ocorrera com os
termidorianos, os jovens devem ser isolados ela cité enquanto du -
rar a juventude.
Para sorte dos enfants du siecle, projetes como os de Jullien
estavam destinados a permanecer, ao menos naquele momento, le-
tra morta. Em suas famosas Conje~sions, Alfred de Musset limitou-
se a carregar nas tintas ele um quadro fiel à realidade;2 4 a história
dos jovens durante o Império é uma história bem variada de gina-
sianos inquietos na mesma proporção em que os adultos gostariam
que fossem austeros, inclusive de filh os excessivamente apaixona-
dos ele oficiais do Grande Exército, de alunos impacientes entre os
muros da Écol e Polytechnique: durante os Cem Dias, muitos estu-
dantes desta última aderiram à causa de Napoleão fugido de Elba,
não só por estarem influenciados pela lenda militar imperial, mas
também porque movidos pela esperança de uma reconversão do di-
tador aos valores republicanos de sua juvenrude. 2 5 A história dos
jovens no Império é, igualmente, a história de uma ciência em evo-
lução tão rápida e de um espaço social tão fluido que a universidade,
jOI.EXS REBELDES E REI.OLCC/0.\'ÁRIOS 209

em crise dé crescimento, tem dificuldades para manrcr longe das


cátedras professores com apenas trinta anos; pelo menos até que.
em 1808, o ministro Fontanes leve adiante uma grande e discreta
campanha de reconquista visando restituir às novas gerações a fé
católica dos pais ou, pelo menos, a elos avós .26
No mesmo ano de 1808, Marc-Antoine]ullien volta à carga com
um Ensaio geral de educação jfsica, moral e intelectual, seguido
de um projeto prático de educação para a infância, adolescência
e juventude. O método educativo de]ullien prevê, segundo a idade
dos alunos, separações bem precisas na diYisão da jornada entre horas
de sono, de estudo e de exercício físico. Além disso, prevê que os
jovens sejam obrigados à redação cotidiana de uma espécie ele me-
morial, baseado nos relatórios que os militares entregam todos os
dias aos superiores hierárquicos: três cadernos nos quais registrar,
com a maior atenção introspectiva possível, os menores detalhes
em relação à própria vida corporal, afetiva c intelectual. Contudo,
à diferença do que ocorre na sociedade militar, o memorial assim
redigido não pode ser exibido a ninguém, deve ser mantido secre-
to, guardado com ciúmes. Para embaralhar ulteriormente os papéis,
convém que o jovem redator atribua identidades imaginárias às pes-
soas que cita; e é bom também que o jovem trate a si mesmo "co-
mo um estranho", escrevendo na terceira pessoa e atribuindo-se vá-
rios nomes fictfcios. 27
A obra pedagógi ca de Jullien não passa despercebida entre os
contemporâneos. Conforme observou Alain Corbin, responsável por
ter chamado a atenção também dos historiadores para esse texto:
no conjunto, constitui um testemunho significativo a propósito da
evolução que vinham sofrendo, no alvorecer do novo século, as re-
lações entre público e privado. 28 A leitura resulta ainda mais impres-
sionante quando se considera que o autor era- como sabemos-
algo mais que um " militar na reserva" de que fala Corbin. Aliás, Jul-
lien fora grande admirador ele Saint-Just, a ponto de, durante o Di-
retório, ter publicado , mesmo sem revelar a paternidade, mais ele
um extrato dos Fragments de Saint-]ust, então inéditos, sobre as ins-
tituições republicanas. 29 É paradoxal a aproximação com o proje-
to político c moral de Saint-]ust, do sonho de uma transparência ab-
soluta entre os indivíduos da República, de uma comunicação total
entre o Eu e o Outro. O objetivo último do monólogo interior su-
gerido por Jullien parece consistir de fato no desejo de tornar-se me-
2/0 HISTÓNI.~ DOS}OI'E,\"S

nos identificável pelo Outro; o mito da transparência se resolve em


elogio da opacidade. ·
Deixemos transcorrer uma década até 1820, para acompanhar
um jovem entusiasta, à procura de trabalho e de mestres, enquanto
bate à porta do editor de uma nova revista: numa página autobio-
gráfica, Jules Michelet relatou seu próprio encontro com]ullien, então
dirigindo a Revue Encyclopédíque. Grande havia sido a desilusão
de i\'l ichelet, aos dezessete anos, ao se ver perante um homem baixo
e triste, precocemente decrépito, com o olhar voltado para o fogo
da lareira mais que para o rosto do visitante, uma conversa monó-
tona e didática.3° Entretanto, jullien enviara os próprios filhos pa-
ra experimentar os métodos educativos de Pestalozzi na Suíça: uma
reiteração do escrúpulo pedagógico q ue continuava a mover o an-
tigo jacobino . Todavia, com os jovens ela Restauração, Jullien tinha
uma relação difícil. Quando Michclet o visita, havia decorrido um
quarto de século elo tempo em que o ex-terrorista havia lamentado,
elo fundo de uma cela termidoriana, o próprio destino: um jovem
ele 21 anos marcado_ele morte pela lava elos tempos. ]ullien acabou
sobrevivendo ao vulcão revolucionário; mas sua vida, como a de
outros, ficou marcada para sempre. Por isso, os jovens da Restaura-
ção que encontram os sobreviventes da Revolução têm muitas vezes,
como Michelet, a impressão de encontrar-se frente a monos-vivos.

A GRAÇA DO NASCIMENTO TARDIO

Ano importante, 1820, na história da Restauração. O assassina-


tO do duque de Berry e a queda do governo Decazes selavam o fim
da experiência liberal; abria-se uma década de reação política, mais
fone _a pós a grande agitação mediterrânea dos mores pela indepen-
dência. Em 1821 , a morte do titã de Santa Helena entregava aos jo-
vens oficiais fra nceses, bem como a tantos emigrantes polacos e ita-
lianos, uma lenda suficientemente brilhante a ponto de empurrar
mais ele um deles pelas vias ela conjuração. Com menos riscos, ou-
tros jovens da França seguiam, após a queda elo ministério Decazes,
o conselho que lhes chegava de um moderado inteligente, Roycr-
Collard: "Escrevam livros ... " Era o caso de dois jovens advogados
ele Aix-en-Provence, com pouco mais de vinte anos, Thiers e Mig-
net: quando não reuniam os coetâneos na quente - e discreta -
oficina de ferreiro do pai de Mignet, para discutir política ou para
]OI"ESS REBELDES E REI"OL/:CJOSÁRJOS 21 1

deplorar os excessos ela reação, esses advogados, que tinham difi-


culdades para encontrar clien tes num mercado então saturado, ua-
balhavam de faro na redação ela história dos anos formidáveis que
se seguiram a 1789. ~as respectivas Histoires de la Réuolution, Thiers
e Mignet propunham considerar a Revolução com a devida distân-
cia histórica, abstraindo de seus erros e avaliando como inevitáveis
até mesmo os crimes do Terror. As obras de ambos assinalavam uma
etapa na história da tradição revolucionária; obras bem-sucedidas
comercialmente: porque as classes médias da Restauração, embora
se mostrassem apáticas em política, revelavam-se ávidas por romances
históricos e livros de história, que gratificavam sua incipiente sensi-
bilidade nacional. 3J
Restituir um significado histórico ao famigerado 93 não equi-
valia, de qualquer modo, a conferir uma dignidade política aos res-
pons~iveis pelo Terror. A reação dos convencionais ainda vivos, frente
ao sucesso que o público reservava às HistoiÚ~s ele Thiers e Mignet,
é instrutiva a respeito: em tais obras, os chamados regicidas viam
a arrogância de jovens petulantes bem mais que a prova de uma rea-
bilitação em curso.32 Um documento ilustrativo da distância que se-
parava os velhos dos jovens - se quisermos, os " pais" dos "filhos"
- consiste num libelo publicado por um certo Carrion-Nisas, em
1820, e intitulado, simplesmente, Sobre a juventude francesa. O au-
tor, filho de 25 anos de um ex-membro do Tribunato, era um jo-
vem culto e sagaz; por outro lado, sensível à herança intelecwal do
século xvm, visto que naquele tempo ele trabalhava coletando as
obras de um grande ideólogue, Volney. Porém, antes ele mais nada,
Carrion-Nisas tinha urgência de convidar os coetâneos para a liber-
tação definitiva elas disputas elos pais. Quem havia nascido muito
tarde para participar pessoalmente não era responsável pelos excessos
que tais dispu tas provocaram, ao passo q ue tinha o direito de se be-
neficiar de seus resultados: "Essa nova geração, que cresce e ama-
durece ã sombra das novas instituições, deve à própria idade a pre-
ciosa vantagem de ser herdeira da Revolução, sem tê-la feito " .;3
Surge a tentação de comparar a condição dos filhos elos revo-
lucionários, no mundo restaurado, àquela (embora tão diferente, por
muitas razões óbvias) dos filhos elos nazistas, na Alemanha liberta-
da,34 e de aproximar essa página de Carrion-Nisas à infeliz declara-
ção do chanceler Kohl, sobre a " graça do nascimento tardio" .3S
Também em 1820, a tranqüilizante evidência do cartório socorria
quem quisesse transcender um senso de culpa muito elementar. Não
,-

2 12 HISTPRIII l>OS j OVENS

que se tratasse de puro escamotage: Carrion-Nisas tinha a coragem


de pedir que fosse suspenso o juízo sobre os violentos fundado res
di República, em consideração pelas circunstâncias extraordinárias
com as quais eles se viram confrontados; ele tinha a coragem de es-
crever: " Nenhum de nós pode garantir o que teria feito no lugar
deles " . De qualquer modo, a distância entre os homens da Repúbli-
ca c os jovens ela Restauração permanece insuperável: separa-os a
diferença entre quem promove uma revolução e quem a encontra
concluícla.36 Mais que voltar-se para o passado , para reabilitar os re-
volucionários do século xVIII, os jovens da Restauração pensavam
em olhar para diante. Pouca_!) gerações na história ela França moder-
na assumiram tanto quanto a geração elos anos 20 do século xrx a
responsabilidade de virar a página no livro escrito pelas gerações
precedentesY A evolução demográfica do país só podia lhe dar ra-
zão: a partir ele 1824, os nascidos depois de 1789 constituem a maio-
ria ela população masculina francesa.38 A vida parlamentar apresen-
tava, ao contrário, traços pouco atraentes. Difícil, para os jovens com
sentimentos mais fo rtes, que buscavam exemplos ele trabalho entu-
siástico, apaixonar-se pelo liberalismo maneiroso dos " constitucio-
nais'' , reconhecer mestres em seus cautelosos porra-vozes.
No fundo, compreensível a dociliclaclc com a qual alguns den-
tre os melhores representantes dessa geração respondiam, na segunda
metade da década, ao apelo dirigido a eles pelos profetas de um ou-
tro evangelho: a boa nova da doutrina saint-simoniana. Saint-Simon
ocupara as últimas clécaclas da própria viela de nobre decaído na vã
tentativa de convencer cientistas e filósofos de que a política sere-
solveria na economia política e de que se devia investir na indústria
como o regime do futuro.
No dia seguinte à morre do conde, alguns jovens- não tão jo-
vens assim: Enfantin, Bazard, Buchez eram bastante velhos para te-
rem "feito" os Cem Dias, como estudantes39- se encarregaram de
reiterar e difundir os ensinamentos dele. Após uma tímida fase ini-
cial, a doutrina encontrava terreno propício para radicar-se: o fra-
casso das conspirações do início ela década demonstrara que a via
sectária para a mudança do regime era insuficiente ou inadequada
por completo; estava soando a hora para uma busca ele consenso.
Significativamente, os sequazes da escola privilegiavam, além elas
obras do mestre, os livros ele Ballanche, o filósofo ele Lyon que se
esforçava por fun dar sobre um cristianismo renovado as bases teó-
ricas da palingenesia sociat.4o Mas não eram somente os espíritos
)0\'E.\S REBElDES E RE\'OLIX/0.\ 'ÁR/OS 213

religiosos que aderiam ao saim-simonismo; caminhavam para ele mui-


tos jovens com belas e impacientes esperanças, que sofriam com
o excesso de profissionais liberais e que se reconheciam portanto
( na batalha do Productew· e depois do Globe, por uma redução do
sistema bancário e creditício. Além disso, aproxi mavam-se do saint-
simonismo radicais c democratas, que nele apreciavam o substan-
cialismo político. Por volta de 1830, o próprio Filippo Buonarroti,
o Nestor da memória histórica re,·olucionária, confiará ao menos
alguns momentos na possibilidade de estabelecer uma aliança es-
tratégica com os adeptos da doutrina. 41
O significado histórico da ideologia saim-simoniana permane-
ce como tema de debate entre os exegetaS. Contra quem descreveu
as palavras de ordem associacionistas dos adeptos de Saint-Simon
como relevantes para o desem·oh·imento ele uma embrionária cons-
ciência de classe elos operários franceses, levantou-se quem consi-
derou sobretudo os elementos estritamente produtivistas da propa-
ganda ele Enfamin e Bazard, até falar do grupo deles como ele um
"exército de salvação" da burguesia; com quem insistiu sobre a im-
portância, na economia do saim-simonismo, da confiança laica nas
possibilidades de uma emancipação humana, confrontou-se quem
nela evidenciou os aspectos fideístas e hierárquicos; a quem subli-
nhou os motes antimonárquicos e amifeudais da doutrina, se con-
trapôs quem acreditou poder fazer do saint-simonismo - antide-
mocráticó, antiparlamentar, anúigualitário- o berço do totalitarismo
contemporâneo.42 Não parece ser este o espaço mais adequado para
tomar partido quantO ao significado último da experiência saint-si-
moniana. Em nossa perspectiva- a das dinâmicas geracionais que
têm sido organizadas ao redor da tradição revolucionária ou então,
para retomar a expressão de Benjamin, das formas de envelhecimento.
de tal tradição - , o problema do saint-simonismo se apresenta es-
sencialmente como o problema da relação entre os jovens saint-si-
monianos e a herança da Revolução Francesa. Portanto, merece uma
referência à obra histórico-política mais importante que a escola pro-
duziu: a Réfutation de l' "Histoire de France" [Refutação da "His-
tória da França"] elo abade de Montgaillard, assinada em 1828 por
Uranelt de Leuze (pseudônimo de Laurem de I'Arcleche, um dos che-
fes do movimento).
O livro começava com a homenagem de Laurent à obra corajo-
sa, exaltando mesmo a grandeza moral de muitos deputados da Con-
venção, e, sobretudo, a Robespierre. 43 Os historiadores não traíram
211 HIST ÓRIA DOS }OVESS

o espírito da obra quando identificaram na Réfutation o signo mais


evidente do início de uma nova época ideológica, marcada pela von-
tade de reconsiderar o significado histórico da expe riência robespier-
rista.44 Justamente, parece ser o caso ele distinguir entre dimensão
histórica e dimensão política ela herança revoluciomíria. Se Laurent
convidava a própria geração à indulgência em relação aos " de mo-
cratas inflexíveis" da Convenção, fazia isso baseando-se no fato de
que a própria Revolução entoara o elogio fúnebre ela democracia:
"sistema transitório por natureza" , enlameado para sempre coro o
sangue derramado, e finalmente enterrado pela popularidade do bo-
napartismo. Os doze anos decorridos entre Waterloo e a hora pre-
sente ofereciam-se a Laurent como prova da " idêntica esterilidade"
dos alquimistas políticos de um e de outro lado, tanto legitimistas
quanto "ontologistas", bastante ingênuos para acreditar ainda na so-
berania popular . Por sorte da França, o Auguste Comte do Catecis-
mo dos industriais c os homens do Producteu.r tinham trabalhado,
seguindo Saint-Simon, para deter a produção transbordante do cri-
ticismo e encerrar a arena revolucionária, " na qual combatiam en-
tão fantasmas" ; Laurent chamava os próprios leitores para colabo-
rar com eles nos trabalhos orgânicos necessários para destruir de
faw os vestígios elo Antigo Regime e para estreitar a nova ligação
que garantiria a unidade e a harmonia do conjunto da sociedacle. 45
A re\·olução que os jovens saint-simonianos se propunham não
era violenta nem era - em geral - política. Eles aspiravam a coisas
muito mais importantes que a liberdade e a igualdade: queriam que
se concedesse honra ao mérito aos produtores mais ousados e ca-
pazes, autêmica elite ela sociedade, contra os privilégios feudai s de
uma nobreza parasita e também contra as ociosas quimeras liberais
elos "doutrinários" e dos "constitucionais" . Não por acaso, rece-
biam o aplauso solíciro de Enfantin os opúsculos financeiros de um
jornalista suíço com pouco mais de trinta anos, ]ames Fazy, instala-
do em Paris havia pouco tempo, depois de uma longa experiência
como conspirador carbonário e sequaz de Buonarroti: com maio r
eloqüência que outros, Fazy vinha lutando para que o sistema ele
crédito francês se adequasse à época, para garantir aos empresá rios
mais hábeis fortu nas semelhantes àquelas que estavam acumulando
certos capitalistas ingleses e amcricanos. 46 Na Paris de 1820, fazy
era simplesmente um entre vários jovens com boas e desordenadas
leituras, mais ou menos deslocados , os quais desejavam que as re-
formas econômicas não passassem disso pois buscavam um lugar
JOI'ESS REIIt"LDF.S E Rt.'I'OLUC/0.\'ÁRIOS 215

ao sol para si próprios. Porém, descendia de uma importante famí-


lia de Geneb ra e se preparava para assumir um papel de primeiro
plano na história genebrina elo século XIX; como tal, Fazy é bem co-
nhecido elos histOriadores helvéticos:'- ~Ias a personagem mereceria
a consideração ele todos os historiadores interessados pela cultu ra
política européia elo período da Restauração. 48 Como chegaram até
nós, seus papéis juvenis - massa informe de noras, esboços de pe-
. qucnas obras literárias e morais, ambiciosos projetos editoriais -
parecem ele fato bem representativos da paisagem intelectual ele um
jovem que nasceu junto com o século: paisagem tão rica quanto con-
fusa, em cujo horizonte perfilam-se. em o rdem dispersa, Rousseau
e Voltaire, Sismondi e Fourier, Lamennais e Saint-Simon, Buonar-
roti e Lafayctte.49
Em 1828, Fazy entrega,·a à imprensa um libelo feroz e bem
elaborado , provocato riamente intitulado Sobre a gerontocracia. 50
Nas páginas do panflero, a geração dos anos 1820 exaltava a expres-
são brilhante e impiedosa do próprio mal-estar, elas próprias idios-
sincrasias, das próprias veleidades. O incipit era fulgurante: " Que
extraordinário instinto de dominação agitava então a turbulenta ge-
ração ele 1789! Ela começou por interditar os próprios pais e aca-
bou deserclando os filhos! ". Não lhe bastava ter assistido, dizimada
pelas execuções capitais e enfraquecida pelas campanhas militares,
ao desaparecimento dos homens mais inteligentes c mais vigorosos
da própria época. Tal geração se obstinava em encarregar-se do go-
verno inteiro: ávida de poder, estabelecera, por meio de dispositi-
vo constitucional, que ninguém podia rornar-se deputado se não ri-
vcse ao menos quarenta anos, e se não dispusesse de uma grande
fortuna. Assim, a França encontrava-se " como concentrada e mini-
mizada em 7-8 mil indivíduos 'elegíYeis', porém asmáticos, gotosos,
paralíticos, esclerosados ... " . Tanto os jovens quanto os homens ma-
duros estavam excluídos das deliberações públicas; consternada, a
verdadeira França, a grande maioria do país era obrigada a engolir
as brigas estúpidas e vulgares dos próprios velhos, empenhados em
radoter a legitimidade monárquica ou a liberdade inglesas em vez
de garantir o que era de faro urgente: a reforma da administração
pública, da justiça, do sistema tributário . E, sobretudo, a reforma
do crédito: a qual teria colocado todos de acordo, pois demonstra-
ria o aumento total das riquezas como indefinido e falso o princí-
pio segundo o qual só se adquire um valor retirando-o ele alguém.
2/6 HISTÓRIJI DOS JOVEKS

Ainda no final da década de 1820, Fazy mantinha contatos com


uma personagem como Buonarroti, que até contribuía no financia-
mento de suas iniciativas jornalísticas. Mas uma distância abissal os
separava, em termos de mentalidade e também de linguajar políti-
co. Nos texros do jo rnalista suíço seria inútil buscar as marcas do
moralismo fundamental que informava as idéias e os escritos do ve-
lho companheiro de Babeuf; quanto à fórmula mágica do libelo Sulla
gerontocrazia. " fazer fortuna", tinha tudo para suscitar o horror
de Buonarroti. Lendo Fazy, tem-se a nítida impressão de ler o exe-
cutor testamentário da geração revolucionária: "Vocês se consomem
em suas lutas ultrapassadas, enquanto a ju vcmude, do jovem prín-
cipe ao balconista, se diverte c se emende; vocês continuam a te-
mer a 'revolução', ao passo que a juventude nem usa mais essa pa-
lavra em torno da qual vocês se digladiam. A juventude de hoje é
impulsionada pela civilisation c não pela révotution; aquilo que vocês
chamam de 'perturbação', ela chama de 'progresso"' .SI Inclusive
um texto de Fazy, escrito dois anos depois, era um hino às maravi-
lhas do crédito: um elogio aos bancos de desconto, aos seguros, às
sociedades por açõcs.52 E quando tiver início, logo depois, a revo-
lução de julho, vai encontrar Fazy em primeiro plano, com seu jor-
nal La RévoluUon de 1830, combatendo para que a solução orlea-
nista não se transformasse numa burla organizada pela "geração que
sai de cena, velha e decrépita", em detrimento da nova geração, a
fim ele que a mudança de regime não se limitasse à mera substitui-
ção ela aristocracia do Antigo Rcgime53 por uma oligarquia finan-
ceira.
Na realidade histórica dos eventos, a revolução de 1830 não
se resolveu inteiramente na generosa revolta dos jovens conrra a
geromocracia, seguida ele sua patética falência; nem se esgotou na
encenação de uma elite esperta, à custa do movimentO popular. Por
um lado, a julgar pelas cifras das vítimas nos combates de julho, as
honras da vitória talvez possam ser atribuídas mais aos veteranos
do Império elo que aos que tinham vime ou rrinta anos durante a
Restauração. Por outro lado, a mudança de regime criou as con-
dições para que um novo segmento social - hurguesia ou classes
médias, pouco importa - substituísse a aristocracia como grupo di-
rigente. Nos anos seguinres a 1830, assistiu-se, é verdade, a uma in-
volução autoritária do regime orleanista, que culminou em perse-
guições c processos contra os ativistas republicanos; os primeiros
desta década foram , apesar ele tudo, anos de extraordinária efervcs-
JO I'ESS REBEWES E REVOLt:CIOXÃRIOS 2/7

cência intelectual e moral, que, entre outras coisas, permitiram a uma


classe operária em crescimento incidir profundamente na reformu-
lação ela doutrina democrática. 54
Todavia, tudo aquilo que os historiadores conseguem recons-
truir não corresponcle necessariamente à percepção dos contempo-
râneos. Menos ainda à percepção que de tais eventos podiam ter
jovens rebeldes ou revolucionários de origem burguesa: indivíduos
alheios por vocação ao espírito de iniciativa que vinha demonstrando,
sob Luís Filipe, uma nova geração de empresários e, pela extração
social, alheios ao movimento operário, que então elaborava uma nova
estratégia política sobre as sólidas bases de suas próprias tradições
corporativas. Assim, na prática, freme à notória mediocridade elo
novo roi-citoyen e à miséria moral do jus te milieu, muitos jovens,
ou quem assim se considerava, que haviam acreditado na revolu-
ção de 1830, amadureceram a impressão de terem sido manipula-
dos e, numa conjuntura tão difícil, terem desperdiçado a própria
juventude.55 Um deles, Edgar Quinet, descreveu o amargo destino
de sua geração como o de pessoas que se tornaram adultas no lapso
de poucos meses e que ficaram grisalhas com a passagem de uma
noite. 56 Mas nem todos se satisfaziam com fórmulas retóricas; para
os refin ados]eunes-France dos quais Gautier se fazia intérprete ou
para os mais populares bousingots, a experiência ele estilos ele vida
excêntricos ou escandalosos representou uma forma ele dramatizar
o que era sentido como a ambivalência psicológica e social da pró-
pria identidade. 57
Na Comédia humana, Balzac escreveu, também, o romance des-
sa juventude francesa, da Restauração à Monarquia de julho. Romance
ou reportagem? Durante os primeiros anos da década de 1830, Bal-
zac era, até mais que autOr de romances, jornalista amargo e corrosi-
vo, além de candidato derrotado nas eleições políticas. Os leitmotiv
de suas intervenções na Caricature eram a desoladora capacidade
de recuperação da gerontocracia, após os golpes sofridos em 1830;
o espetáculo derrisório ele "velhos arlequins arrancados aos palcos
ela Revolução, elo Império e ela Restauração", transformados em es-
queletos em suas genuflexões; o escândalo ele "falsos jovens " e de
"jovens velhos" que confiscavam o poder, desprezando as justas
aspirações cultivadas pelas novas gerações. O regime orleanista eles-
conhecia os méritOs ela juventude, tratava de denegri-la e deixá-la
ele lado; a juventude não estava na moda, lamentava Balzac nas pá-
ginas da Mode.58 E, em certo sentido, roda a obra elo autor das !lu-
218 HIS7'6NJA DOS ]01!/JNS

sões perdidas estava construída sobre uma reflexão, excepcional-


mente lúcida, a respeito da moda e de seus efeitos sobre a idade
social dos indivíduos; o novo sistema burguês não se satisfazia de
fato em manter os jovens distantes das responsabilidades políticas:
na visão ou na denúncia nostálgica de Balzac, a aceleração que o
capitalismo imprimia na dinâmica social incidia igualmente sobre
as dinâmicas das gerações, pois os jovens ficavam envolvidos no
turbilhão ela moela a ser consumida, na juventude, durante a viela
inteira. 59
Não adianta aqui recorrer a distinguo muito sutis, para desti-
lar, elo caldeirão europeu da década ele 1830, qual é a cota específi-
ca do romance, elo jornalismo, ela política ou elo mito . Acontecia,
tanto na Veneza dos Habsburgo quanto na Rússia czarista, que gru-
pos ele homens e de mulheres chegassem a distribuir os papéis elas
personagens ela Comédia humana, esforçando-se por adaptar a pró-
pria viela aos h eróis balzaquianos!6o O que não faziam o mito ou a
moda de Paris - a gaze cor-de-rosa capaz de nuançar e embelezar
as cores da mais truculenta realidade parisiense, segundo uma ima-
gem de Heiné 1 - era feito pela distância geográfica e pela diferença
ele contextos políticos e sociais. Assim, por exemplo, se o saint-
simonismo declinava rapidamente na França elos primeiros anos ela
década de 1830, depois ela ruptura ocorrida entre Enfantin e Bazarcl,
tal doutrina ainda fascinava jovens estrangeiros, talvez a milhares
de quilômetros de distância. Era o caso de um jovem oficial ele ma-
rinha de Nice, segundo comandante elo navio em que embarcaram
Emite Barrault e outros sequazes de Enfantin decididos a buscar no
Oriente a Mulher-Messias, a redentora da família ocidental: a extra-
vagância do projeto não bastava para ocultar as virtualielades elo hu-
manismo saint-simoniano do jovem Giuseppe Garibaldi. 62 Era oca-
so de dois nobres russos, que acabavam de completar vinte anos,
mas bem convencidos de uma missão revolucionária pessoal (eles-
ele quando , das alturas moscovitas da Colina dos Pássaros, haviam
jurado, pouco mais que crianças, vingar o sacrifício dos decabris-
tas): para Alexanclcr Herzen e Nicolai Ogarev, a adesão ao saint-si-
monismo, por volta ele 1833, já significava distanciamento da Revo-
/
lução Francesa, crítica à democracia, busca ele novos fundamentos
para o ideal socialista. 6:-s
Vale a pena insistir quanto às alternâncias elo grupo saint-simo-
niano justamente porque se revela muito forte, mesmo depois ela
crise do grupo na França, a influência elo saint-simonismo sobre a
]OI'FXS REBELDES E REI'OL UC/OSÁR/05 219

juventude européia da década de 1830; sobretudo p o rque tal in-


fluência agia freqüentemente no sentido de um distanciamento da
Revolução Francesa, contribuindo para definir um horizonte de ex-
pectativas em cujo interior princípios e valores de 1789 e ele 1793
encontravam pouco espaço. A esse respeito, a parábola da "Jovem
Alemanha" rem uma configuração típica . Até 1832, Karl Gutzkow
podia reconhecer e proclamar como a verdadeira tarefa da nova ge-
ração construir uma república democrática alemã modelada pela re-
pública francesa de Robespierre e de Saint-Just. Depois dessa data,
seguindo a sugestão do amigo Heinrich Laube e do próprio Hcine,
imbuídos do espírito saint-simoniano, mais até do que em conse-
qüência das pressões e das censuras governamentais, Gutzkow aca-
baria propondo à "Jovem Alemanha" um ideal di fe rente: filosofia
da história, expcrimentalismo literário, regeneração religiosa em vez
de luta política. Em 1835, Gutzko w ainda terá coragem de publi-
car, embora recorrendo a corres, aquele extraordinário documento
de revolta moral e de denúncia políüca que é A morte de Danton
de Georg Büchner; mas até mesmo a um jovem com a têmpera de
Büchner, Gutzko w poderá aconselhar que se dedique mais à litera-
tura que à contestação radical do sistema" .64
O encontro com o saim-simonismo foi decisivo também na bio-
grafia intelectual de Giuseppe ~1azzini. No primeiro ano do exílio
em Marselha, em 1831 , o advogado genovês - o "jovem energú-
meno" q ue tanto inquietava um informante dos Habsburgo6s -
partilhava, relativamente à situação política francesa, a idéia buo-
narrotiana de uma luta de classes: à qual ele acrescentava, como con-
tribuição pessoal, o elemento de contraposição de gerações: uma
guerra sem quartel deveria opor a França velha e rica a uma França
jovem e pobre. Porém, j:.í em 1832, sob o impacto resultante da lei-
tura da Esposizione delta dottrina di Saint-Simon [Exposição da dou-
trina de Saint-Simon), Mazzini preferia falar de democracia dirigida
do alto, de inteligências, de gênios; insistia em assumir o princípio
da distinção entre gerações como operacio nal na luta política, além
de ser instrutivo no âmbito da análise histórica: tendia, contudo,
a contrapô-lo à luta de classes. "Odiamos o derramamentO ele san-
gue fraterno" :66 para Mazzini, a ofensiva contra os pais representa-
va o modo de sublimar a perspectiva elementar de um choque en-
tre irmãos numa forma superior de imerclassismo.
Os movimentos políticos criados e animados por Mazzini na-
queles anos, a "Jovem Itália" e a ' 'Jovem Europa", apontavam qua-
220 HISTÓRIA DOS }Ol'BNS

renta anos como a idade máxima para a admissão ele membros. O


historiador interessado nas formas ele representação política da ju-
ventude no século XIX ou no mito da própria juventude como força
revolucionária não podia exigir das fontes testemunho mais indica-
tivo que este: reconhecer como capazes de ação política progres-
sista somente os "jovens'' abaixo dos q uarenta anos significava de
fato rebelar-se com precisão quase escolar contra a quarentena que
o mundo restaurado impusera às novas gerações. Significava, além
disso, reverter tal quarentena, com o resultado de afastar muitos pa-
triotas acima dos quarenta anos, os quais, após décadas de militân-
cia política, sentiam-se inesperadamente tratados como "idiotas elo
tempo dos argonautas" .6 7 A competição que explodiu entre maz-
zinianos e buonarrotianos italianos pela primazia revolucionária na
península, durante os primeiros anos da década ele 1830, ressentiu-
se dos efeitos desse mal-estar entre as gerações.6s
Sem dúvida, seria inoportuno exagerar as implicações do ape-
lo que o jovem genovês dirigiu aos under 40, fazendo disso o nú-
cleo de toda a história do movimento mazziano. De outra natureza,
eminentemente política, foram as dificuldades maiores encontradas
pelas criações de Mazzini, incluindo as mais vivazes entre elas (a "Jo-
vem Alemanha" - que não deve ser confundida com a de Glutz-
kow -, a "Jovem Polônia" , a "Jovem Suíça"), na definição de uma
linha de ação comum: sobretudo o temor, partilhado pelos agita-
dores alemães, poloneses e suíços, de que Mazzini quisesse substi-
tuir a tradicional leadership francesa por uma espécie de leadership
italiana na iniciativa revolucionária na Europa. Dentre as pequenas
vicissitudes da "Jovem Europa" , contudo, existe uma que assume
relevância particular no desenvolvimento de nosso discurso. Entre
1834 e 1835, o mais prestigioso interlocutor, mas também o mais
ferrenho adversário, de Mazzini na Suíça veio a ser ]ames Fazy, che-
fe do chamado partido nacionaJ:69 as tramas helvéticas da "Jovem
Europa" acabaram se chocando contra a decidida oposição de Fazy,
anteriormente porta-bandeira dos jovens franceses da Restauração
na luta contra a gerontocracia. Tornavam-se claros, para quem qui-
sesse vê-los, os limites de uma abordagem baseada nas gerações pa-
ra o problema da revolução; a mais de um revolucionário europeu
os tempos pareciam maduros para uma abordagem decididamente
classista.
JOI'ESS REBEWES E I<EI'OlliCIOSÁR/OS 221

OS RAPAZES PERIGOSOS

Os tempos pareciam maduros para assumir plenamente uma


consciência de classe, pelo menos, para os revolucionários ingleses
da década de 1830. A década de 1920, inaugurada sob o impacto
do massacre de Peterloo, tinha sido, do outro lado da Mancha, tran-
qüila só na aparência: importante, de faro, no desenvolvimento do
sindicalismo e na luta pela liberdade de imprensa. Nos anos 1830,
prometia ampliar-se a ofensiva desencadeada por um movimenro
operário cada vez mais consciente contra tudo que restava da cons-
trução antidemocrática ele Pitt e, mais em geral, contra aquelas que
se descobria serem as falhas do sistema de fábrica capitalista. Numa
Inglaterra economicamente bem mais a,·ançada em relação aos paí-
ses do conrinente, se a luta de classes ainda não se configurava co-
mo objetivo claro e clistinco do movimento operário, a identidade
de classe do próprio movimento parecia um resultado adquirido.7°
Aliás, a maturidade dos re,·olucionários ingleses não deve le-
var os historiadores à indiferença pelas dinâmicas encre as gerações,
não deve conduzi-los a anular as ,-iyências particulares dos jovens
na mais ampla ou suprema experiência da luta de classes. Por exem-
plo, é óbvio que os radicais ingleses combatiam , na Old Corrup-
tion, não só um sistema corrupto, mas um sistema velho. É menos
evidente constatar como alguns elemencos ele tensão, e por vezes
de autêntico conflito entre gerações, emergissem também no inte-
rior do movimento operário como resultado das estratégias de res-
ponsabilização política dos milüantes. Certamente, a propaganda
radical nos cafés, nas igrejas não conformistas, nas sociedades ele
socorro mútuo, nos sindicatos permanecia organizada de modo a
envolver a grande massa dos analfabetos. Mas era essa, também, a
época dos autOdidatas entusiasmados, os quais, segundo o título das
memórias de William Lovctt, faziam da instrução um ingrediente es-
sencial na luta pelo pão e pela liberdade.- ' Todavia, tratava-se de
autodidatas que deviam opor-se à desconfiança dos operários mais
velhos, suficientemente confiantes na força da própria cultura cor-
porativa para não reconhecer a exigência urgente de difundir entre
o povo formas de aculturação sentidas como irremediavelmente bur-
guesas.
Um líder sindical como ]ames Burn, que cresceu nos piores am-
bientes de Glasgow, tinha dificuldades para aceitar que os operá-
rios mais velhos pudessem admitir trabalhar como escravos meia
222 HISTÓRIA VüS }üVENS

jornada em fun ção da magra satisfação ele embriagar-se na outra me-


tade, em vez ele usar o tempo livre para instruir-se e depois reivin-
dicar melho r os próprios clireitosn Porém, até que a propaganda
elo cartismo* encontrasse a receita certa para conciliar o ingredien-
te literário e o mais imediatamente político, os autodidatas como
Burn eram raros. Sobre o fascínio do livro prevalecia, compreensi-
velmente, o apelo da garrafa: um sinal ela resistência surda que a ju-
ventude se esforçava em opor à industrialização, que amontoava a
força de trabalho na fábrica indistintamente, sem consideração pe-
la idade; um sintoma ela tentativa mais ou menos consciente, por
parte elos jovens, de conservar as margens de independência que
haviam desfrutado nas sociedades tradicionais. Não é casual que,
depois de os progressos do movimento radical e a reforma eleitoral
contribuírem para redesenhar todas as coordenadas ela vida políti-
ca inglesa, Benjamin Disraeli , ao fundar um movimento dirigido ã
"Young England", considere poder investir, com objetivos de con-
servação política, nas nostalgias carnavalescas da juventude ingle-
sa: exceto merecer, por isso, o sarcasmo de Karl Marx. 7 3
Quando a década ele 1830 dá lugar à de 1840, também na Fran-
ça explode, como uma bomba-relógio, a questão social: explosão
anunciada, no decênio precedente, pelas insurreições dos trabalha-
dores ela seda de Lyon e preparada, de uma forma ou de outra, pelo
p rofundo repensar que o próprio fracasso de tais insurreições esti-
mulou nas fileiras republicanas. O ano ele 1840 traz à luz: Organi-
zação do trabalho, de Louis Blanc, Viagem a Icária, ele Cabet, O
que é a p rop riedade?, de Proudhon, Sobre a bumanidade, de Pier-
re Leroux, Compagnon du tour de France [O companheiro ela via-
gem pela França), primeiro romance social de George Sand.74 No
ano seguinte, dois jovens de vinte anos, T héodore Dézamy c Albcrt
Laponnerayc, lançam L 'Humanitaire e La Fratern ité, os primeiros
periódicos comunistas elo continente. Segue-se, p ouco depois, o Ma-
nifesto da democracia pacífica, de Victor Considérant. Não impres-
siona que Marx, Ruge e outros revolucionários alemães que, desem-
barcando em Paris, em 1843, partilhem a impressão de chegar ao
berço da revolução européia?
Impressão fugaz: a desilusão elos agitadores alemães se concre-
tiza ao redo r elo fracasso substancial q ue golpeia o Deutsch-franz6-

(*) Na Inglaterra do início elo século X IX, o cartismo ou mo vimento canista


reunia trabalhadores que lutavam pela ampliação elos direitOs democráticos. (N . T .)
siscbejaharbücher, com o qual as grandes firmas do socialismo pa-
risiense recusam-se a colaborar. 75 A atitude de suficiência dos so-
cialistas fran ceses, absolutamente convencidos da superioridade da
própria tradição revolucionária para olhar com interesse para a ini-
ciativa ele propaganda dos exilados, conduz os alemães a uma rea-
ção de orgulho: tenham ou não um passado de " jovens hcgclianos",
eles sentem que podem se alinhar à prestigiosa lignée da filosofi a
clássica alemã, Kam, Fichte, Schelling, Hegel, enquanto patrimônio
igualmente rico. São orientados nessa direção pelas lições prestigiosas
de Heine, cada vez mais convencido das potencialidades revolucio-
nárias da recente filosofia alemã, cada Yez mais crítico contra uma
Revolução Francesa denunciada como inteiramente política, em vez
de- por fim - revolução social. Torna-se para eles motivo ele or-
gulho até mesmo a lembrança da "Jovem Alemanha", que também
fora, quando de seu surgimento, objeto de desdém de um Bruno
Bauer e de um Moses Hess: para Friedrich Engels, Gutzkow parece
um modelo de jornalista político-literário; Boorne, q ue havia sido
o ídolo da "Jovem Alemanha", chega a lhe parecer um mestre para
a vida. 76
Quanto a Marx, em seu exilio parisiense, de 1843 aos primei-
ros meses de 1845, estreita os contatos pessoais com Hcinc: assim,
o revolucionário de 25 anos de Tre\·iri prepara uma História da Con-
venção (que jamais terminará) em anos de amizade com o mais fe-
roz fustigador alemão do mito da própria Convenção. 77 Naturalmen-
te, um jovem como Marx tinha suficiente energia intelectual para
defin ir a própria estrada com plena autonomia, ele modo que, pelo
menos em seu caso, seria fa lta de cautela sugerir correspondências
muito mecânicas entre encontros e opções de vida, entre experiên-
cias humanas e sucessos ideológicos. Depois da intensa atividade
jornalística elo período renano, o ~larx do biênio parisiense tinha,
sobretudo, voracidade pelos estudos: os biógrafos concordaram em
sublinhar a imponância elos livros lidos por ele, naqueles dois anos,
para a maturação de sua doutrina. Contudo, não cq nstitui psicolo-
gismo baratO tentar defini r certas razões íntimas do impacto exerci-
do sobre Marx por alguns daqueles livros; por exemplo, a leitura
de O único e a sua p mpriedade ele Stirner. Persuasiva, embora fi-
losófica e antropologicamente fraca , a representação stirneriana do
ciclo vital infân cia - adolescência - maturidade como uma série
de revoltas dos filhos contra os pais, até que os filhos rebeldes des-
cubram os próprios pais na origem da rebelião ... Então em Londres,
224 11/STÓHIA DOS}OI'Et\;<;

Marx tomava Stirncr a sério; no manuscrito da Ideologia alemã, ele


derrubava a idéia stirneriana da maturidade enquanto retirada indi-
vidualista da vida, fazendo da maturidade a fase da assunção plena,
por parte do indivíduo, do papel que socialmente lhe compete. Acon-
tece que o Marx que acusava Stirner de ter traçado não um quadro
da juventude em geral, mas algo parecido com um auto-retrato de
si mesmo quando jovem, era um Marx que buscava- por seu lado
- livrar-se do peso da relação com o pai; na recusa de qualquer
interpretação psicológica da relação entre as gerações, no investi-
mento decidido sobre a primazia do status social, Marx se esforça-
va por transcender sua própria juventude. 78
Pais e filhos: o romance de Turgueniev é tão famoso que se
corre o risco, no âmbito historiográfico, de confinar a relação pais-
filhos ao universo literário ou imaginá-la num plano puramente me-
tafórico . Ao contrário, sobretudo na França - no país das revolu-
ções -, a seqüência das gerações comporta também , em sentido
restrito, uma delicada relação entre pais revolucionários e filhos mais
ou menos investidos de tal paternidade: cabe ao historiador a tarefa
de tomá-la em consideração, sem por isso ter de aventurar-se obri-
gatoriamente no terreno da psicologia do profundo. A história dos
filhos de convencionais, 79 por exemplo, está diretamente ligada ao
problema do envelhecimento de uma tradição revolucionária: o fa-
to de ter um pai com passado de depurado na Convenção, o fato
de vê-lo envelhecer sob regimes novos e talvez hostis obriga o fi-
lho a medir-se com a herança política ela qual o pai constitui, bem
ou mal, uma encarnação viva. Encarnação viva ou, mais comumen-
te, encarnação figée,so mesmo que tal pai ainda sobreviva, mesmo
quando se admire sua grandeza. Para a compreensão ele vivências
humanas e ideológicas semelhantes àquelas que aconteceram com
os filhos dos convencionais, podem comribuir bastante algumas pá-
ginas ela obra que Jean Améry dedicou à experiência geral elo enve-
lhecimento humano. Igual a qualquer velho, ninguém pergunta mais
ao velho revolucionário: "o que vai fazer?"; todos estabelecem im-
piedosa e irrevogavelmente: "você já fez isso" . Após ter feito um
balanço de sua vida, os outros apresentam ao velho revolucionário
um saldo, que é elc. 8 1 Sucede que às veles eles tentem encaixar tal
saldo no mercado da viela política (foi Benjamin quem falou dos re-
volucionários franceses do século XIX como de " liqüiclações").82 E,
algumas vezes, são os p róprios filhos elo velho revolucionário que
realizam esta operação.
JOVEXS REBELDES E REVOLUCI ONÁRIOS 225

Nesse sentido, pode parecer indicativo o conflito que opõe, em


1846, os irmãos Blanqui. Filhos de um obscuro ex-deputado co m
simpatias girondinas, que se tornou subprefeito do Império numa
aldeia do Var, Adolphe e Auguste Blanqui, quando adolescentes, vi-
veram na Paris dos primeiros anos da Restauração: na metrópole,
culturalmente tão viva, os dois jovens logo se livraram da afável mas
apagada figura paterna. MuitO brilhante nos estudos, Adolphe, al-
guns anos mais velho, cuidava do irmão como se cuida de um filho;
ele próprio o encaminhara, na década de 1820, para a oposição mi-
litante ao regime dos Bourbon. Porém, depois de 1830, os irmãos
haviam seguido vias divergentes: enquanto Adolphe obtivera êxito
numa carreira de professor de economia política, Auguste se dedi-
cara à carreira, mais dolorosa, de revolucionário profissionai.83 Can-
didato ministerial do governo Guizot no departamento da Giron-
da, nas eleições legislativas de 1846, Adolphe Blanqui imagina que
agradaria aos cidadãos de Bordeaux relembrando a militância do pai
nas fileiras girondinas: numa circular eleitoral, ele chega a transformá-
lo em promotOr da petição de pro testo conhecida como "dos 73",
contra a depuração promovida pelo grupo da Montanha em 31 de
maio ele 1793. Então, elo hospital de To urs (mo tivos ele saúde ha-
viam convencido o governo a retirá-lo do clima insalubre elo Mont-
Saint-Michel), Auguste Blanqui escreve a Ferdinand Flocon, redator
elo jornal republicano La Réforme, para desmascarar a propaganda
eleitoral do irmão: "A versão dos fatOs do candidato de Bordeaux
não passa de um romance " . Com efeito , fora reduzido, segundo o
mais jovem elos Blanqui, o envolvimento do pai ]ean-Dominique
nas tramas contra-revolucionárias da Gironda; quanto à versão im-
pressa do protesto dos 73, que Adolph e fizera alarde de possuir en-
tre seus papéis, cheia ele correções à mão feitas pelo pai, tratava-se
de pura invenção, pelo bom motivo ele que tal protestO jamais ha-
via sido publicado!
Blanqui escreve a Flocon também para to rnar pública a con-
versão tardia do pai ao ideal montanhardo , ocorrida depois das mu-
tações ela revolução de julho. Segundo o relato do filho, ]ean-
Dominique havia reconhecido no conservadorismo e na corrupção
da grande burguesia orleanista a versão atualizada do m odérantisme
e elo négotiantisme contra os quais tinham se batido os homens da
Montanha; assim, o velho participante ela Con venção havia admiti-
do o próprio erro de quarenta anos atrás: " Quantas vezes" - es-
creve Blanqui - "ouvi que exclamava, falan do elos adversários: 'Ti-
226 HISTÓRIA DOSJ OVt'M

nham razão; agora ficaria do lado deles!'. E aquele velho girondino


que havia alimentado minha juventude com seu ressentimento contra
os montanhardos morreu pensando como eles".a4
Evidentemente, é impossível verificar a exatidão da versão dos
fatos apresentada pelo prisioneiro de Luís Filipe: considerando-se
que jean-Dominique morrera em 1832 e que Auguste havia passa-
do o período entre a revolução de julho e o ano de 1832 entrando
e saindo da prisão, pode presumir-se, na realidade, que Blanqui não
tivesse tido muitas ocasiões para ouvir as retratações paternas. De
qualquer modo, do episódio convém registrar o testemunho segundo
o qual a juventude de Auguste Blanqui, porta-bandeira do neojaco-
binismo do século xrx, fora marcada pelas lições rancorosas de um
pai girondino. E convém registrar igualmente o protesto veemente
elo filho contra a "liqüidação" ela figura política do pai feita pelo
irmão. Nada mais verossímil e nada mais indemonstrável que a afir-
mação de Sartre, segundo a qual, quando os pais têm um projetO
os filhos têm um destino.
Três lustros haviam decorrido desde o início do reino orleanis-
ta e os democratas continuavam a esperar seu fim, tantas vezes anun-
ciado como próximo. Assim, os anos que precedem imediatamente
1848 eram vividos, por alguns entre eles, como anos ele cansaço.
"Jovens e velhos, estamos todos cansados", admitia Michelet em
Le peuple [O povo], que é um textO de 1846.85 Francamente, não
pareciam cansados Amédée jacques, Jules Simon, Ernest Renan e
os outros jovens estudiosos que publicavam, no ano seguinte, um
periódico batalhador como La Liberté de Penser [A liberdade de pen-
sar]: literatos que tinham sido educados no ideal laico e democrático
justamente por Michelet, além de Cousin e Quinct. Porém, signifi-
cativamente, desde o primeiro número do jornal, eles dedicavam
um artigo à busca das causas que teriam permitido radicar-se no seio
da juventude francesa a planta árida e an1arga da indiferença.86 Fran-
ça cansada, juventude indiferente: talvez fosse necessária a energia
exuberante de um estudante estrangeiro (no caso, Dumitru Bratia-
nu, que será o líder do partido liberal na Romênia recém-nascida),
para sentir-se, após a leitura do Peuple de Michelet, "mais jovem,
mais forte, melhor". 87 Em todo caso, talvez fosse preciso perten-
cer, como Bratianu, a um povo politicamente virgem, para suscitar
o entusiasmo de um Michelet: o historiador do College de France
se entusiasmava com as reivindicações de liberdade dos estudantes
moldo-valáquios, mas não se comovia igualmente com a causa dos
]OVEXS REBELDES E REVOUiCJOSÁRIOS 227

que lutavam pela independência da Polônia e que, em 1846, a Fran-


ça dos direitos do homem abandonava de novo a um destino in-
fausto. Havia ainda quem não tivesse perdido o costume, românti-
co, de pensar nos povos em termos de idade, como se se tratasse
de indivíduos: comprovam isso, justamente, tantas páginas do Mi-
chelet de então, tantas páginas de Quinet ou de outros: velhos os
países da Europa ocidental, frementes de juventude os povos do nor-
te e do oriente. Ao passo que tinha as idéias um tanto confusas a
senhora parisiense que, num prestigioso salão de exilados polone-
ses, onde haviam sido apresentados alguns estudantes das distantes
regiões danubianas, exclamara, surpresa: "Tão jovens e já moldo-
valáquios! " .88
Revolução ele intelectuais, na conhecida interpretação historio-
gráfica de Namier, foi um pouco toda a revolução ele 1848. Sem dú-
vida houve algo de literário , pelo menos na maneira pela qual os
revolucionários do 48 francês enfrentaram a questão dos povos ve-
lhos e dos povos novos, das tradições revolucionárias e elas nacio-
nalidades: seja sacudindo a poeira - como fazia Lamartine - de
algum decreto amarelado de 1790, para defender a renúncia fran-
cesa a intervir na Europa; seja, como Blanqui e Barbes, invocando
o precedente das guerras da Revolução Francesa diante de uma po-
lítica de intervenção. Até quando pregavam a guerra ele classe, um
Blanqui e um Barbes pagavam tributo à própria abstração, na medi-
da em que se revelavam insensíveis às mentalidades coletivas mais
radicadas; invocavam, para a Polônia e para a Hungria, o princípio
revolucionário elo direito elos povos à autodeterminação, sem com-
preender a comunhão de interesses existente entre magiares, po-
lacos e alemães quanto ao tratamemo das chamadas raças domina-
das.89
O preconceito literário e o peso da tradição revolucionária in-
fluíram, para além da política externa dos quarante-huitards, so-
bre sua política interna. Sob certos aspectos, derivaram elos pomos
nodais de tal tradição a própria insurreição do povo de Paris, na pri-
mavera tardia de 1848, e a impiedosa repressão que se seguiu. Com
as jornadas de junho, de fatO, explicitou-se a contradição entre as
duas colunas mestras do edifício da memória da Revolução France-
sa: os operários dosjaubourgs podiam sentir que herdavam da rica
vivência insurrecional parisiense dos anos 1789-95 o princípio do
direito de resistência à opressão. Ao contrário, a Guarda Nacional
podia considerar, obedecendo ao general Cavaignac (a quem as au-
228 11/S TÓRIA DOS jOVEXS

toridades legítimas da República haviam confiado a tarefa de resta-


belecer a ordem), que interpretava o princípio da inconsistência de
tal direito onde não houvesse razões lesivas à soberania popular.
Imediatamente, observadores interessados como Karl Marx vislum-
braram - no roteiro da Segunda República- a importância do pre-
cedente constituído pela Primeira; porém, mais que de lutas de classe
marxistas, as ruas de Paris parecem ter sido teatro, em junho de 1848,
de um confronto renovado em torno do problema que a Revolu-
ção Francesa havia entregue por resolver à posteridade: o enigma
da soberania popular. 90
Nesse sentido, o drama de 1848 poderia ser representado por
meio da experiência de dois irmãos, filhos de um membro da Con-
venção. O general Eugene Cavaignac apostava no massacre dos ope-
rários rebelados como sendo uma dolorosa ocasião para dirimir uma
divergência que ele considerava perniciosa para a herança dos pró-
prios convencionais: ou seja, a divergência entre direito popular à
insurreição e aspiração republicana à estabilidade. Quanto aos ope-
rários dos faubourgs, eles só podiam ter em mente, no momento
da insurreição, as lições revolucionárias que Godefroy Cavaignac
- irmão mais velho de Eugene - lhes repetira durante vinte anos,
enquanto líder carismático do movimento republicano. Algumas pá-
ginas de livro, alguns trechos de tradição oral, às vezes se encarre-
gam de sugerir os detalhes mais íntimos e patéticos da grande histó-
ria: de seu irmão Eugene, Godefroy havia dito, certo dia: "É meu
filh o: cu o educo para a República" .9 1 Outra vez as preocupações
da fraternidade e da paternidade, entre os descendentes de um de-
putado da Convenção.
Notoriamente, bem mais que a Guarda Nacional, a chamada
Guarda Móvel - criação da Segunda República - se distinguiu na
repressão do movimento popular. O alto pagamento diário não basta
para explicar a ferocidade que os mobiles demonstraram na guerra
civil de junho. Tampouco serve, como explicação, a lenda negra
dos subproletários disposros a tudo para não ficarem desemprega-
dos: a composição da Guarda Móvel não diferia significativamente
da Guarda Nacional. Registro de nascimento, a verdadeira diferen-
ça: a Guarda Móvel era composta por quadros cuja idade média não
superava 22 anos.92 Embora os próprios mobiles repetissem slogans
republicanos, tinham tido pouco tempo para assimilar de fato, elo
ambiente operário, um patrimônio de valores democráticos. Nem
aqueles jovens eram s uficientemente maduros para terem introjeta-
do a solidariedade característica da Yida corporativa: crescidos con
o capitalismo, tinham tido ocasião de experimentar, do mundo do
trabalho, só os aspectos mais embrmecedores. Some-se a tudo isso
sua origem interiorana: talvez os quadros da Guarda Móvel se fizes-
sem intérpretes do ódio obscuro e selvagem que, em momentos de
crise, a província francesa manifesta contra a capital.93
Se a insurreição dosjaubourgs tornou evidente, aos olhos dos
burgueses da França, a existência do " perigo vermelho", a fúria dos
mobiles lembrou-lhes a insídia permanente representada pela juven-
tude. Ainda na primeira metade do século XIX, as classes trabalha-
doras haviam sido denunciadas como perigosas também por serem
compostas, na maioria, por jovens trabalhadores.94 Confiemos na-
quele observador social sempre atemo que é Daumier: numa cari-
catura de 1848, intitulada Os rapazes perigosos, um casal burguês
não pode ocultar o espanto diame do espetáculo dos adolescentes
da Guarda Móvel que fazem arruaças como patrões por Paris.
Além disso, a experiência da Guarda Móvel demonstrou aos con-
temporâneos mais lúcidos o ,·azio substancial de certa retórica re-
publicana, então considerada boa para qualquer uso. Deixemos falar,
neste caso, a mulher de um ilustre exilado russo em Paris, Natalia
Herzen: "Após o massacre, que durou quatro dias e quatro noites,
[... ] tropas alegres de guardas móveis bêbados anelavam para baixo
e para cima pelos bulevares, berrando Mourir pour la patrie (Morrer
pela pátria]; esses moleques de dezesseis o u dezessete anos exibiam
com ar de triunfo, nas próprias mãos, vestígios ele sangue frater~
no" .95 Será preciso a sensibilidade de Maxime du Camp, sua bono-
mia de ocasional freqüentador dos ambientes bohémiens (além de
seu orgulho de oficial da Guarda :\acionai fer ido nos combates ele
fevereiro), para se enternecer com a lembrança da "pequena guar- ·
da móvel", ferida de morte, a qual haYia expresso, como última von-
tade, o desejo de saborear um gole de madeira ... 96
Bem mais assíduo que Du Camp nos circuitos da boheme pari-
siense, Alfred Delvau tinha só 23 anos em 1848. Suficiente para ser-
vir ele braço direito a ninguém menos que Ledru-Rollin , ao chefe
reconhecido da extrema esquerda parlamentar. E bastante para em-
punhar a pena logo na manhã seguinte à derrota, esforçando-se por
reconstruir a dinâmica de eventos demasiado graves para serem afo-
gados no mero desconforto: a História da ,·evolução de fevereiro,
como Dclvau irá publicá-la em 1850, pretende ser uma contribui-
ção para a retomada do movimento democrático. Porém, contribui-
230 HISTÓRIA DOS JOVENS

ção desencantada desde as primeiras páginas; por exemplo, a pro-


pósito do decreto pelo qual a Segunda República havia declarado
elegível, sem condições de censo nem de domicílio, qualquer cida-
dão que tivesse completado 25 anos, Delvau descreve com sarcas-
mo o zelo patriótico demonstrado pelos under 40: todos queriam
candidatar-se às eleições iminentes, suplicando a Lamartine ou Sé-
ranger uma carta de recomendação, infalivelmente concedida; "os
pequenos se colocavam sob o patronato dos grandes, os quais , por
sua ,-ez, exibiam junto aos eleitores sua própria ligação íntima com
os humildes" .
Quase contrariando as intenções do autor, o livro de Delvau
é obra de um jovem profundamente pessimista acerca dos resulta-
dos do compromisso político e da dinâmica das revoluções. Esplên-
didas as páginas que dedica a Blanqui: ao homenzinho miúdo e pá-
lido, com uma expressão de monge ("digno do pincel de Holbein
ou de Ribera"), de aparência graciosa e ao mesmo tempo tão forte,
na realidade, tão determinado em atingir a todo custo o objetivo
estabelecido, a fundação de um mundo novo; mas igualmente deci-
dido a não retroceder nem reconsiderar o caminho percorrido, por-
que sabe que se encontra cheio de ruínas, de violências, de amigos
sacrificados.97 Naqueles anos, apenas um poeta - aliás, amigo de
Delvau, bobémien como ele e também militante de 48 do lado do
povo-, só Baudelaire sabia ser igualmente agudo e expressivo ao
descrever, passando de uma geração a outra, o esforço e o desgaste
de ser revolucionário.98 Quando, nos anos 1850 e 60, Delvau es-
colher como profissão a de testemunha dos ambientes marginais de
Paris, ele somente estenderá o seu pessimismo ao próprio protesto
dos bobémiens; até comparar Henry Murger, a personificação da bo-
beme, aos rapazes da Guarda Móvel de junho: um burguês que ha-
via cuspido na burguesia, como os mobiles tinham disparado con-
tra o povo do qual faziam pane.99

DAS GUILHOTINAS AOS MACHADOS

No período seguinte ao 48, muitos franceses se debruçaram so-


bre o recente, dramático passado nacional, visando decifrar sua ló-
gica e, quem sabe, diagnosticar aquela patologia. Os aposentados
da geração orleanista - Barante, de Broglie, Tocqueville - se em-
penhavam nesse exercício com a mesma paixão de Delvau. Duran-
]O~'E.\"S REBELDES E REI'OU:ClO.\:iRios 231

te os meses em que o ex-secretário de Ledru-Rollin trabalha,-a na


História da revolução de fevereiro, também um ex-seminarista, Er-
nest Renan, ia amadurecendo suas próprias idéias sobre os aco nte-
cimentos, que tinha vivido enquanto espectador, primeiro partici-
pante e depois estarrecido.
Torna-se obrigatório, ao esboçar uma história dos jovens e das
revoluções no século XIX, dar algum espaço para L 'avenir de la
science; pensées de '48 [O futuro da ciência; pensamento ele '48]:
escrita por um jovem de apenas 25 anos, talvez seja a obra mais rica
de temas e de idéias na literatura francesa do século xix. 100 Livro
- convém dizer - que Renan renunciará a publicar por quarenta
anos (como se quisesse garantir uma moratória ao vigor de sua inte-
ligência juvenil ... ), 10 1 e que há de permanecer pouco lido quando,
em 1890, ele se decide a entregá-lo para publicação. Mas é um livro
do qual o autor irá valer-se muito, ao menos durante os 25 anos su-
cessivos às circunstâncias feb ris em que o redigira: assim, L 'avenir
de la science passou a fazer parte integrante da lição que Renan trans-
mitiu às gerações francesas da segunda parte do século XIX. E a idéia-
chave da obra não dava margem a dúvidas, embora afogada num
amontoado de confissões pessoais e de apelos à nação, de divaga-
ções eruditas e de polêm icas pedantes: a política era definida como
coisa tão desagradável a ponto de merecer ficar só para os políti-
cos; mesmo o sufrágio universal, como a Segunda República o ha-
via recebido da Primeira, era descritO como pouco entusiasmador,
pois ''a estupidez não tem o direito de governar o mundo''. O futu-
ro da espécie humana dependia de uma reforma moral e religiosa,
que só poderia ser obra de uma elite intelectual: esta, prescindindo
ele qualquer referência ao sobrenatural, tinha a tarefa de "organizar
cientificamente a humanidade" .
Renan partilhava portanto com os jovens mais desencantados
ela época, com um Flaubert, o tédio em relação a qualquer demo-
cracia contratual, além do desprezo pela utopia socialista; e com as
inteligências mais brilhantes da sua geração, com um Taine e um
Berthelot, ele apostava na teocracia dos cientistas como sendo o me-
lhor dos governos possíveis. Porém, uma sociedade domesticada
por completo, socialmente pacificada até nos aspectos negativos,
não cabia nas aspirações do jovem Renan; era dominado por um
desejo inquieto e confuso de viver os momentos empolgantes da
história, de "ser um soldado perdido no exército imenso que avan-
ça para a conquista da perfeição". Inútil sublinhar quanto havia, em
232 11/STÓRIA DOS ]OI'Et•S

tudo isso, de "moderno", tanto que uma página dos Pensées de '48
pode soar inquietante para o leitor deste século, conhecedor de cenas
mutações posteriores do "modernismo reacionário". Mais pertinente,
na economia de nosso discurso, é notar como a obra de Renan cons-
titui, também, uma espécie de história moral elas gerações france-
sas, do século X IX a 1948. Renan usava palavras de escárnio para o
sonho pedagógico que o Iluminismo entregara aos jacobinos: a busca
de procedimentos que servissem para acelerar a moralização dos ho-
mens, "um pouco como frutos que amadurecem entre os dedos.
Gente de pouca fé na natureza, deixem-nos ao sol!". Por outro la-
do, ele devia reconhecer que o sol do progresso não aquecia wdas
as gerações com a mesma intensidade.
Como outros franceses do século XIX, antes e depois dele, Re-
nan cedia à tentação de falar de sua geração como tendo sido sa-
crificada. Fizera falta aos homens que haviam começado a pensar
depois de 1830, à diferença do que ocorrera com os expoentes da
geração que se tornara adulta em 1815, uma luta generosa para exer-
citar a própria juventude. Nascidos sob o signo de Mercúrio, os ho-
mens da geração de Renan se adaptaram rápido demais a uma vida
cômoda e banal: "Pobre da geração que teve diante dos olhos so-
mente uma ordem regular, que concebeu a vida como um repouso
e a ane como uma fruição!". Por outro lado, já não parecia invejá-
vel a Renan- que escrevia tendo ainda nos olhos as cenas sangui-
nolentas de junho - o destino das gerações a quem caiba uma re-
volução; também ele era sensível à graça dos nascimentos tardios:
"Ai de quem faz as revoluções, feliz de quem as recebe como he-
rança! Felizes sobretudo aqueles que, nascidos numa época melhor,
não mais terão necessidade, para fazer triunfar a razão, de recorrer
aos meios mais irracionais e absurdos! ''. Este, o círculo vicioso dentro
do qual se inscrevia a reflexão de Renan, sem que o jovem se agitas-
se muito para escapar dele, convencido que estava de escrever o
profético elogio de uma humanidade afortunadamente progressiva.
Esta era a convicção que o ex-seminarista amadurecia nos Pensées
de '48, exceto quando tornava a apresentá-Ia, mais ou menos enve-
nenada, nas obras posteriores: os tempos de revolução enquanto
maldição, os tempos de repouso enquanto condenação; a sociedade
política como o terreno de caça para os seres imorais, a socieda-
de civil como o paraíso para os seres frívolos. Assim, se o rigor filo-
lógico c o gênio crítico de Renan serviram de escola para gerações
de estudiosos de lingüística e de psicologia, de etnologia e de reli-

L
}OI'EXS REBELDES E REVOWGO.VÁRJOS 233

gião, para os jovens que vão ler sua obra com intenções políticas
Renan será mestre de outra coisa: tanto a Georges Sorel e a Lucien
Herr quanto a Charles Maurras e a Léon Blum, ele comunicará o fas-
cínio da política e, ao mesmo tempo, a repulsa por ela.
Nada mais alheio a Renan que a apologia da violência revolu-
cionária, quer se tratasse da praticada pelos operários nosjaubourgs,
em 1848, quer fosse a dos terroristas do ano II; contudo, ele sabia
que, "quando se trata ele fundar o fu turo agredindo o passado, são
necessários soldados enérgicos, que não se deixam enternecer com
prantos femininos e não economizam golpes de machado". 102 Co-
mo fizeram tantos jacobinos, Renan desprezava as massas, mas ad-
mirava quem sabia se fazer intérprete delas, fosse um punhado de
homens ou um único. Portanto, foi também por meio de Renan que
a Revolução Francesa transmitiu aos homens da Terceira República
seu legado jacobino mais imponante: a desconfiança em relação a
uma sociedade civil reconhecida como jovial ou como incapaz, e
a convicção de que cabe a um punhado de heróis da inteligência
sacrificar as próprias vidas na lama da sociedade política, para o bem
das gerações futuras.
Mas convém destacar que não só aos franceses os acontecimen-
tOS de 1848 ofereceram matéria de reflexão quanto ao "mal" da Fran-
ça e às perspectivas da revolução na Europa. Decisiva para o futuro
da tradição revolucionária foi a meditação de Herzen no tocante ao
significado profundo dos fatos de junho e às perspectivas do socia-
lismo francês no contexto do movimento democrático europeu. Num
ensaio hoje clássico, Isaiah Berlin colocou a tônica sobre a carga ex-
traordinária de anticlogmatismo que animava um texto como Da ou-
tra margem: elegia herzeniana para as ilusões ele 1848 e denúncia
- ao mesmo tempo - da aberrante lógica jacobina que conclama-
va as gerações presentes a sacrificar-se pelas gerações vindouras ("co-
mo cariátides obrigadas a sustentar uma sala na qual, algum dia,
outros irão dançar"). to3 No admirável estudo que dedicou ao po-
pulismo russo, Franco Venturi descreveu, por seu lado, os êxitos
políticos da reflexão de Herzen sobre as ruínas de 1848: o reconhe-
cimento ela irremediável "velhice" da Europa ocidental e a decisão
do exilado de voltar-se para aquele Oriente do qual ele se afastara;
um Oriente bastante "jovem" para subtrair-se à esclerose de ideais
elo Ocidente, e, talvez, para evitar algumas etapas do desenvolvi-
mento eco~ômico pelo qual a Europa vinha pagando a um preço
tão alto.
234 l!ISTÓRh1 DOS J OVENS

O retorno da França ao jugo bonapartista, com o golpe de Es-


tado de Luís Napoleão, só podia confi rmar o diagnóstico de Her-
zen. Em meados da década de 1850, a guerra da Criméia haveria
ele romper o mito da invencibiliclade militar elo gigante autocrático
russo. Em 1855, a morte de Nicolau 1 parecia assinalar ele fato o fi-
nal dos difíceis trinta anos que começaram, na Rússia, sob o signo
da derrota decabrista. "Estamos embriagados, ficamos loucos, tor-
namo-nos jovens", exultava Herzen perante a notícia; por ocasião
do grande meeting ele Londres, de 27 de fevere iro de 1855, diante
dos chefes da emigração política européia - Louis Blanc, Marx, Maz-
zini , Kossuth, Worcell - , ele reiterava que havia chegado a hora
da Rússia nova. 10 4 Os interlocutores franceses com os quais o exi-
lado russo podia contar eram homens também no exílio, enquanto
ferrenhos opositorcs de Napoleão III: Proudhon, Quinet, Hugo. Na
verdade, estamos falando de personagens não mais jovens, embora
um Herzen pudesse sentir-se rejuvenescido após a morte de Nicolau
u; mas a correspondência desses homens de quarenta a cinqüenta
anos referendam o nosso discurso, pois ao redor das grandes figu-
ras da emigração movimentou-se em parte toda a vivência ela juven-
tude revolucionária, russa e francesa, nas décadas de 1850 e 1860.
E convém dizer que as cartas dos exilados falavam com freqüência,
em relação às novas gerações , a linguagem da incompreensão. Se
a prática ela revolução desgasta os revolucionários, a espera de uma
revolução, nem que fosse apenas uma revolução moral, tem efeitos
não menos devastadores sobre homens no exílio, cuja história de-
clina, tantas vezes, no sentido de um paradigma de solidão ranco-
rosa e de envelhecimento precoce.
Desse ponto de vista, é significativa a reação elos exilados do
Segundo Império frente aos gostos literários dominantes entre os
jovens durante os anos 1850 e 186o, décadas marcadas por um boom
literário da narrativa. Os exilados, que já desprezavam sinceramen-
te as massas, dóceis instrumentos da propaganda bonapartista, não
entendiam como até as novas gerações mais dotadas, em vez de se
interessarem pela história política e civil, pudessem contentar-se com
a leitura de romances. No fundo , os adversários de Napoleão m par-
tilhavam com os censores imperiais a convicção moralista de que
a juventude precisava ser protegida dos excessos da sensualidade
e dos apetites materiais. 10 5 Os exilados sentiam-se os Tácitos e os
Sênecas do Império, contra os Petrônios e os Marciais; não era " com
romances" que se podia "salvar a França". Io6 O orgulho dos mento-
JOVESS REBELDES E REVOWCIONÁRJOS 235

res era acompanhado, além disso, de um sentimento de pena infi-


nita, porque os mais sensíveis entre eles captavam, no próprio en-
durecimento em defesa de princípios reconhecidos como irrenun-
ciáveis, algo de rígido e ele afetado, além de patético aos olhos dos
jovens. "Não posso deixar de constatar como, nas épocas de deca-
dência, as consciências confusas e degradadas ficam muitíssimo mais
à vontade, e, assim, mais naturais no sentido da arte, do que os
poucos homens de fé que continuam a escrever": é o caso de Qui-
net, diante elo sucesso, durante o Império, de autores que chegara
a estimar e considerar enquanto amigos, começando por George
Sand. 10i
Nemo propheta in patTia. Se Quinet, Louis Blanc e às vezes até
Michelet freqüentemente amadureciam a impressão de serem negli-
genciados pela melhor juventude francesa, não poderiam pensar o
mesmo a respeito da juventude revolucionária russa. A convivên-
cia, mais ou menos clandestina, com as obras históricas que os opo-
sitores de Napoleão m estabeleciam com a Revolução Francesa cons-
titui ele faro - com a leitura da Cospimzione per L'eguaglianza
[Conspiração pela igualdade], de Filippo Buonarroti - a passagem
obrigatória na aprendizagem política dos jovens populistas, durante
a segunda metade ela década ele 1850 e nos anos 1860. E vice-versa,
o objetivo polêmico dos populistas tendia cada vez mais a se tornar
o p róprio Herzen, orgulhosamente aprumado em seu pedestal lon-
drino . Figura bastante mística, a elo autor de Da outrp margem, ca-
paz de convencer alguns jovens valorosos, como Cernysevskij, a
desafiar as distâncias e o governo czarista para ir visitá-lo; mas o en-
contro com ele se revelava decepcionante. E não só por causa da
impaciência dos jovens, mas também por causa dos modos rudes
do "velho": porque Herzen, à semelhança ele outros exilados do
1848 europeu, se agarrava ao exílio como uma forma de ter, sozi-
nho, razão contra todos. lOS
As citadas cartas de Quinet sobre a condição dos escritores de
denúncia, no árido clima moral ela França ele Napoleão m, devem
ser cotejadas com as páginas então escritas por Herzen sobre a fig u-
ra do "homem supérfluo" (a expressão era de Turgueniev), na rea-
lidade russa de Nicolau 1. Para Herzen, defender a opção de vida
elo chamado homem supérfluo - elo intelectual ele origem nobre
tão corajoso a pomo de aceitar a alienação física e moral, desde que
buscando a rota do ideal - equivalia, evidentemente, a defender
a própria escolha de vida; apologia ainda mais urgente dada a aspe-
reza das críticas que os jovens precursores do populismo, Cerny-
236 HISTÓRIA DUS jOVEN S

sevskij e Dobroljubov, dirigiam os corifeus da intelligentsia de


origem nobre. Na mesma linha, o exilado de Londres definia como
"uma das situações mais trágicas do mundo" aquela enfrentada pe-
los homens supérfluos. Pesava-lhe, sobretudo, a ingratidão que os
revolucionários da nova geração demonstravam em relação a quem
lhes havia indicado o caminho; perto do final de sua vida, Herzen
terminará comparando os "bazaróides" (outro decalque de Turgue-
niev, naturalmente) aos "habitantes da Kamtchatka que matam seus
velhos" . 109
A inco mpreensão entre "pais" e " filhos" revolucionários não
era rota!. Entre 1861 e 1862, quando, no dia seguinte à libenação
dos servos, os estudantes de Moscou e de Tcharkov empreendiam
as primeiras atividades conspiratórias, eram eles próprios que pro-
moviam a circulação das publicações londrinas de Herzen, reiterando
a persistente influência ele Iskander nos ambientes mais jovens; sem
falar do sucesso que obteria a palavra de ordem então lançada pelo
outro grande exilado em Londres, Nicolai Ogarev, sobre " ir ao en-
contro elo povo". No verão de 1862, contudo, os juveníssimos au-
tores do manifestO A jovem Rússia atacavam Herzen com uma vio-
lência inaudita, criticando nele não só a "política de espera" mas
também suas posições constitucionalistas. E, aquilo que mais inte-
ressa neste caso, Zaicnevskij e os demais autores da jovem Rússia
fundamentavam sua divergência com Herzen a panir ele um juízo
histórico e político sobre a Revolução Francesa. Eles se vangloria-
vam ele ter estudado com atenção a obra elos "grandes terroristas
ele 92", de tê-la comparado com a dos "pobres revolucionários de
48" e de ter chegado à conclusão de que era necessário, para rege-
nerar a Rússia, fazer correr mais sangue do que os terroristas fran-
ceses tinham conseguido: os machados da juventude teriam desem-
penhado, na Rússia, o papel da santa guilhotina. 11o
Em 1863, o fracasso da enésima insurreição polonesa, para a
qual os jovens russos reunidos na organização Terra e Liberdade ha-
viam esperado poder contribuir com os fundos londrinos ele Her-
zen, acentuava o afastamento deles em ralação a Iskander. Em 1866,
por sua vez então exilado na Suíça, o fundador dessa primeira Ter-
ra e Liberdade, Alexandr Serno-Solov'evic, desencadeava a inves-
tida decisiva. Segundo ele, nem Herzen nem o humanismo à Lamar-
tine do autor de Da outra mm·genz serviam de bandeira para a jovem
Rússia; que admirava, mais que ninguém, Cernysevskij, o qual
pagava na Sibéria pela tentativa de conspirar de fato contra o regi-
}OI'ES5 REBELDES E RE\"OI..LC/0."-Wos 2] -

me czarista; que admirava o socialismo do autor de Que jazer?. Pa-


ra as fronteiras da Sibéria voltava-se "a Rússia realmente jovem".
desinteressando-se pelo exilado de Londres, que "se pretende/pre-
tendia" jovem. As afirmações de Serno-Solov'evic eram mais que
simples palavras: ele trabalhava ativamente a serviço da Internacio-
nal, tentando favorecer uma aproximação entre as posições de Marx
e as de Bakunin, enquanto desempenhava um papel de primeiro pla-
no na luta social genebrina, cuja grande greve dos operários da cons-
trução civil lhe garantia- em 1868 - uma ressonância européia.
Serno-Solovevic, aliás, não dirigia somente contra Herzen suas fle-
chas de polêmica juvenil, temperada com diferentes citações prou-
dhonianas e marxistas. Para se tornar uma força independente -
explicava em La Libe1·té - , a Imernacional não devia incensar ne-
nhum ídolo, nem que se tratasse " de Fazy, de Garibaldi em pessoa;
ou de qualquer outro deus" . Como o próprio ]ames Fazy, quarenta
anos antes, Serno-Solov'evic demonstrava crer numa espécie de lei
biológica destinada a premiar a juvemude; ele confiava na "força
dos[ ... ] jovens tecidos orgânicos" , na "jovem vontade à qual não
poderão resistir tecidos ressecados, envelhecidos, rasgados" . 111 Her-
zen, por seu lado, permanecia horrorizado diante da arrogância dessa
segunda geração de revolucionários russos, que ele considerava ru-
de e fanática; " O Bazarov de Turgueniev é um deus ao lado desses
porcos", escrevia a Ogarev em maio de 1868. 112
Igualmente encorajadora era a atitude com a qual outro grande
líder da emigração russa, Bakunin, observava naqueles anos os pro-
jetos e as tramas elos jovens populistas. Uma divergência, entre ele
e Herzen, destina'd a a se tornar insanável em 1869, com a aparição
- no horizome cinzento dos exilados - de um agitador russo com
apenas 22 anos, Serguei Neeaev: figura na qual Bakunin reconhece-
rá uma energia arrebatadora, ao passo que Herzen só verá nele a
ambigüidade ideológica e moral. Mas tal divergência já amadurecia
desde algum tempo, pelo menos a partir de 1866, após o atentado
falido de Karakazov contra Alexandre u. Conforme documentam as
cartas enviadas por Bakunin a Herzen, entre 1866 c 1867: "Herzen,
diga o que quiser, mas esses imundos, desajeitados e tantas vezes
assaz incômodos pioneiros de uma nova verdade e de uma nova
vida são um milhão de vezes superiores a todos os seus cadáveres",
atacava Bakunin. "Não envelheça, Herzen, na velhice não há nada
de bom"; para um Herzen que se agarrava ao próprio exílio, um
Bakunin que se agarrava à juvenrude dos outros. Numa projeção fu-
238 HISTÓRIA DOS JO VENS

tura, a discussão entre Herzen e Bakunin girava ao redor das pers-


pectivas de evolução econômica da comunidade agrária russa e das
táticas de mobilização política das massas camponesas; mas a dis-
cussão deles era, antes de tudo, uma discussão sobre o passado: era
um debate- o mais profundo do século - em torno da Revolução
Francesa e do Terror. Explicava Bakun in a Herzen, em defesa da
geração dos " bazaróides", como todo o problema dos jovens con-
sistia na procura de uma nova moral e no faro de não a encontrar:
" Daí as incertezas, as contradições, as vilanias e não raro os escân-
dalos asquerosos. Assim foi em 93, só que lá a guilhotina purificava
os costumes e não permitia o apodrecimento ele brotas imatu-
ros" .11 3 Eis o ponto máximo da aposta jacobina na precociclacle dos
frutos aquecidos pelo "sol africano" da Revolução: a guilhotina co-
mo garantia última de uma biologia delicada, de certa maturidade
problemática.
Mesmo sem assumir a redação do texto, Bakunin é o inspira-
dor ele Necaev, em 1869, quando este se decide a redigir o Catecis-
mo do revolucionário. Reiterada no início de vários parágrafos, uma
fórmula- " o revolucionário é um homem p erdido" -constituía
o Leitmotiv do manifesto.1 14 A fórmula retOmava as palavras do mais
célebre discurso interrompido na história do parlamentarismo: no
dia 8 termidor do ano 11, Robespierre, preparando-se para pedir ou-
tras execuções capitais, havia pretendido falar ele seus coetâneos co-
mo de uma "geração ele homens perdidos"; mas a Convenção se
cansara de ouvi-lo, tinha preferido silenciá-lo junto com Saint-Just
e mandá-los para o patíbulo. Também como resultado de tais cir-
cunstâncias, as palavras de Robespierre tinham adquirido o caráter
de testamento para quem pretendera tornar-se herdeiro do Incor-
ruptível. Segundo o testemunho cético de Heine, para os militantes
republicanos da França, durante os primeiros anos da monarquia
orleanista, o discurso de 8 termidor era um "evangelho" sobretu-
do para "os muito jovens e os muito velhos " . 115 Em 1869, o co-
mentário de Herzen quanto à receita necaeviana de um novo terro-
rismo - talvez com a repetição de cortes de línguas, de traições,
novos extermínios de massa - retomava a idéia de Heine : "Trata-
se de sonhos viciados ele quem é demasiado velho e de quem é de-
masiado jovem". 116
De qualquer modo, sonhos suficientemente belos para fazer de
Bakunin um líder do socialismo europeu. Para falar só da França,
ele disputava com Blanqui o primado da iniciativa política revolu-
]Ol.E.\"S REBELDES E FEIYJ!L"CIO..Vk 239

cionária, durante os últimos, cinzentos anos do Segundo Império.


E Blanqui, por seu lado, vinha aproveitando alguns anos deco rri-
dos à espera de julgamento para educar um grupo de jovens segui-
dores do culto da memória jacobina. Exercício pedante, arqueoló-
gico, de homens voltados mais para trás do que para a frente? 11 -
Talvez. Mas existe algo de comovente na seriedade co m a qual al-
guns estudantes universitários se debruça\·am para estudar a história
da Revolução Francesa, preparando para o velho Blanqui pequenos
trabalhos monográficos com diferentes compromissos. Sobretudo
comovente a lucidez com que os mais inteligentes dentre eles dis-
cerniam os limites sociais da própria ação política. Para ilustrar tu-
do isso, servem-nos ainda outras cartas, como as que Gustave Tri-
don dirigiu a Blanqui entre 1866 e 1868. Nascido em 1841 , filho
de um rico proprietário de terras de Dijon, Tridon era a figura inte-
lectualmente mais dotada no grupo de jovens blanquistas, além de
ser o mais generoso na atividade militante. Os estudos de direito
e de ftlosofia da história a que ele se dedicava, os jornais que pro-
movia, os processos e as prisões a que era submetido regularmente
não lhe retiravam o tempo para refletir sobre a ambivalência funda-
mental de " um movimento revolucionário dirigido por jovens bur-
gueses" . Bem melhor que Blanqui, Tridon sabia medir a distância
que separava os quadros do blanquismo, homens de letras ou de
direito, da classe operária, pela qual eles afirmavam lutar. Mais que
tudo, Tridon se irritava com o lado bohémien- à maneira de Val-
Ies, especificava - de cena juventude revolucionária, que só pen-
sava em brincar, beber, com·ersar, divertir-se com tudo e com to-
dos e fazer barulho. " Esses ambientes juvenis não passam de uma
mistura de gente desagradável" : 118 a conclusão de Tridon não po-
deria ser mais severa.
Logo depois, a própria Comuna de Paris viria a revelar-se, sob
certo aspecto, uma aventura bohémienn e. Não só por ter investido
das mais altas responsabilidades um Raoul Rigault e um]ules Valles,
mas porque teria representado algo como a tentativa suprema de
um acordo entre rebeldia e moralismo, entre a emancipação elo in-
divíduo c as exigências de ordem da sociedade. Não para Tridon
e seu desaparecido grupo de sequazes, naturalmente: para eles, a
Comuna se oferece como a tão desejada ocasião de retomar o u de
continuar o sonho hebertista que haviam aprendido nos livros de
história da Revolução. Não para os operários dos faubourgs, aos
olhos dos quais a Comuna significa coisa bem diferente. Contudo,
240 HISTÓRIA DOS JOVENS

para mais de um revolucionário burguês, a adesão à Comuna deriva


da busca ansiosa de um final feliz, parte da vontade de coroar o pro-
jeto - assim como Valles dera expressão a ele em 1867 - de uma
reconciliação entre os " artistas" e os "burgueses", entre os " filhos"
e os " pais" separados durante demasiado tempo. 119

BARBAS BRANCAS, BARBAS GRISALHAS, BARBAS PRETAS

Podemos olhar também para os participantes da Comuna e para


os quarante-huitards como se olha uma geração de sobreviventes.
A variedade de destinos da patrulha blanquista, depois da Comuna,
parece particularmente instrutiva. Tridon deixava Paris na véspera
da "semana de sangue" de maio de 187 1, indo morrer em Bruxe-
las, com apenas trinta anos, em completa solidão. Blanqui, de novo
na cadeia, lançava-se - com L 'éternité par les astres [A eternidade
por meio dos astros) - na redação ele uma cosmologia vertiginosa,
da qual Walter Benjamin sublinhou a relevância como etapa nas trans-
formações ela tradição revolucionária: dado q ue a de Blanqui era
uma reflexão desencantada sobre os obstáculos elo progresso e so-
bre os "sósias de carne e osso" que interpretam a história da huma-
nidade. 120 Quanto aos quadros do blanquismo que escaparam elos
pelotões de fuzilamento, dispersaram-se pela Europa durante a dé-
cada de 1870; e uma vez ele regresso à França, com a anistia de 1880,
não tiveram grandes dificuldades em traduzir sob a forma de nacio-
nalismo o tradicional chauvinismo blanquista, até engrossar as filei-
ras das tropas do general Boulanger.
Mas 1871 não fora somente o ano ela Comuna ele Paris; na Rús-
sia, tinha sido o ano do processo a Necaev e aos membros da "Na-
rodnaja rasprava" : o primeiro processo político na história do regi-
me czarista, destinado a ter reflexos importantes tanto nas mudanças
internas do movimento de oposição - conforme os estudantes ado-
tassem ou não o catecismo de Neeaev - , quanto sobre o papel
dos exilados russos no contexto da revolução européia. De fato, du-
rante a década de 1870, a teoria e a praxe elo populismo, aureoladas
por vinte anos de lutas e de sacrifícios, começavam a contar como
coma uma tradição. Neste sentido, característico foi o êxito do ro-
mance político de Cernysevskij , Que Jazer? . Na Bélgica, foi tradu-
zido por ninguém menos que César de Paepe, personalidade das mais
prestigiosas da Internacional; na França, o romance encontrava es-
JOVEXS REBELDES E REI'OLI.:CIOXÁRIOS 241

paço - depois de 1880 - no jeuilleton do boletim blanquista, N i


Dieu, ni maftre [Nem Deus, nem mestre], bem como nas páginas
da Revue Sociatiste de Beno1t Malon. Responsável pela primeira tra-
dução francesa da obra, publicada em Lodi, em 1875, Jules Guesde
em pessoa.
A figura de Guesde remete, mais ainda que à crescente autori-
dade dos revolucionários russos, ao reconhecimento - na França
-do primado revolucionário da social-democracia do além-Reno,
em tempos de "crise alemã" do pensamento francês .121 Todavia ,
são notórios os problemas encontrados pelo marxismo para abrir
espaço na esquerda francesa, ramo no nível do movimento operá-
rio quanto no nível das vanguardas políticas e imelecmais. Solidez
de uma tradição revolucionária autóctone, mais rica que qualquer
outra no mundo e, além disso, fone por causa de uma robusta veia
operária. Além disso, os reflexos fatalmente antialemães do patrio-
tismo ideal jacobino , que Gambetta e o governo de defesa nacional
haviam querido ressuscitar no dia seguime ao da derrota de Sedan,
a eficácia unânime da experiência militar que os " brancos" e os
"azuis" tinham partilhado nos campos de batalha de 1870 e de 1871 ,
a ascensão de um sonho revanchista contra a anexação da Alsácia-
Lorena e os sucessos interclassistas da batalha, que durou vários anos,
para consolidar a Terceira República, contra as intrigas monárqui-
casl 12 são elementos que intervêm para explicar os limites do fas-
cínio que o modelo social-democrata conseguia exercer sobre os
revolucionários franceses, fossem eles jovens ou velhos. Bem melhor
que a dimensão classista, o componente racista da cultura política
do além-Reno se demonstrava capaz, na década de 1880, ele impres-
sionar os franceses mais inquietos das novas gerações; cúmplices,
na pátria, os livros ele Taine e de Drumont, mas também a obra pós-
tuma de Tridon , Du molochisme juif [Sobre o molochismo judeu]
e tantos artigos da Revue Socialiste. 123
A aprendizagem intelectual de Lucien Herr, o qual, como ca-
rismático bibliotecário da École Normale Supérieure, estará na ori-
gem da vocação socialista de gerações de intelectuais franceses (de
Jean]aures a Léon Blum), ilustra o peso que a tradição revolucioná-
ria russa podia assumir, mais ainda que a alemã, sobre um jovem
francês do final da década de 1880. Após ter obtido a agrégation
em filosofia, aos 22 anos, Herr não se contenta em faze r a ritual via-
gem de estudos à Alemanha; entre 1886 e 1887, talvez sob a influência
de Gustavc Monod - genro de Herzen, além de mandarim ela his-
242 11/STÓRIA VOS}OVE,\"5

toriografia positivista-, ele ruma também para a Rússia. De volta


à França, enquanto assumia o cargo de bibliotecário na rue d'Ulm,
Herr estreita os laços com a figura mais representativa da emigra-
. ção política russa em Paris, Piotr Lavrov: autor, não mais jovem, das
Cartas históricas, que haviam influenciado profundamente a gera-
ção pOpulisra dos anos 1870. 124 Se o culto clitismo político de La-
vrov dispunha de poucas credenciais para interessar ao proletariado
francês, e ra diferente o caso de um intelectual como Herr, crescido,
igual a muitos jove ns da Terceira República, sob a influência moral
de Renan, e preparado por uma longa tradição saint-simoniana e po-
sitivista para apreciar a idéia lavroviana de um partido dos intelec-
tuais.1 25 Devido ã influência de Herr, o slogan "Ir ao encontro do
povo", que, com sucesso alternado, havia mobilizado os populistas
russos dos anos 1870, preparava-se para reviver na França do final
do século, e se traduzir em realizações também notáveis, como as
chamadas universidades populares ou a edição popular socialista,
mas ao preço de um recurso amplo às abstrações, num país em que
os camponeses cada vez mais cediam lugar aos "franceses" . 126
Lucien Herr era muito inteligente para ficar pendente das pala-
vras dos próprios mestres e de masiado jovem para negar à própria
juventude uma m issão revolucionária . Uma anotação sua, daquele
período, inédita, soava como répl ica exata à célebre página da Ré-
forme intuelectuelle et mora/e [Reforma intelectual e moral] em que
Renan lamentara a fa lta, na história política e civil da França, ele uma
cadeia que unisse - de uma geração a outra - os monos aos vivos
c garantisse a estabilidade do futu ro: "Toda a vida política moder-
na" - escrevia Herr - " pressupõe a negação da herança, da soli-
dariedade entre gerações sucessivas. [... ] Uma vez que, chegando
à maturidade, o homem comum se encontra imobilizado nas pró-
prias idéias e nos próprios inte resses, o progresso depende da ini-
ciativa das gerações mais jovens". De resto, Herr concordava com
o moralismo intelecrualista de Renan e com o socialismo clitista de
Lavrov quanto à q uestão decisiva; aliás, na mesma anotação, ele pros-
seguia afirmando que "a insurreição, a revolta" coincidiam com "o
exame e a crítica" . 127
Cerca de dois anos depois, Hcrr podia encontrar no Avenir de
la science ele Renan, finalmente publicado, a expressão mais acaba-
da do projeto revolucionário transformado em revolução dos inte-
lectuais; e não por acaso, quinze anos mais tarde, Charles Péguy (que
)OI'E.\"S RF.BELDES E REI'OLI:C/0.\'ÁRIOS 243

se tornara, nesse ínterim, o braço direito de Herr na mobilização


do Quartier Latin em defesa do capitão Dreyfus) poderá falar da
obra juvenil de Renan como sendo o livro capital para quem aspire
a compreender o mundo moderno. 128 Mas não é preciso esperar
que Péguy lance, em 1900, os Cahiers de la Quinzaine, extraordi-
nária vitrine dos ideais e elas obsessões, das esperanças e dos trau-
mas ele uma geração de intelectuais, para reunir testemunhos em
torno da continuidade de uma atitude moral e de uma cultura polí-
tica que, graças à mediação de Herr. ligavam os normaliens socia-
listas do final do século ao Renan de 1848. Basta acompanhar, por
exemplo, o itinerário de um outro "aluno" de Herr, ex-companheiro
de Péguy na École Normale e militante dreyfusardo, que, jovem pro-
fesso r de 25 anos, pronunciava um discurso para os alunos do liceu
de Montauban, em 31 de julho de 1899. A ocasião: a distribuição
de prêmios aos melhores estudantes, cerimônia de importância pri-
macial na liturgia da Terceira República; 129 o orador: Albert Mathiez,
futuro chefe de escola da historiografia filorrevolucionária.
Esse discurso merece ser citado longamente, pois nele Mathiez
recita o credo do intelectual radical ou socialista da Bel/e Époque,
confrontado com o problema dos jovens, de sua emancipação, da
revolução. Credo até excessi,·amente granítico nos três lustros se-
guintes, elemento fixo no barômetro de uma época que se conclui-
rá, em Paris, exatamente quinze anos depois do discurso escolar do
jovem professor de Montauban: em 31 de julho de 191 4, dia do as-
sassinato de Jean j aures. Conforme Zeev Sternhell sustentou, num
livro tão discutido quanto sólido, pode considerar-se relativamente
casual a posição intervencionista ou belicista e depois (para quem
sobrevivera às trincheiras) a posição socialista ou fascista dos ex-
poentes mais brilhantes da geração de Mathiez: de Péguy c de Berth,
de Challaye e de Bourgin, de Isaac e de Benda.•3o Todavia, à dife- ·
rença do que o historiador israelita pretendeu argumentar, a koine
que unia esses intelectuais não passava necessariamente pela desva-
lorização histórica da Revolução Francesa. Era possível, como fazia
Mathiez, cultivar o seu mito, e igualmente partilhar com os coetâ-
neos, fossem de direita o u de esquerda, o tédio - em simultâneo
- pelo liberalismo, pelo individualismo e pelo materialismo.
" Há muitas maneiras de ser jovem", iniciava o orador de Mon-
tauban , mas " apenas uma é boa, a que convém exatamente a de-
terminado tempo e a determinada sociedade." Mathiez pretendia
fundamentar os seus argumentos com a lição do passado; e, sem
244 HISTÓRIA DOSJOI'ENS

surpresas, o aprendiz de história da Revolução retomava os movi-


mentos da geração de 1793. Lembrava como os pequeno-burgueses
da província transformados em ministros da República, os campo-
neses que se tornaram generais de exércitOs vitoriosos, tinham sido
formados mais pela ,·ida que pelos livros: oriundos das profunde-
zas da França, eles ha,·iam experimentado todas os seus sofrimen-
tos e partilhado wda as esperanças. Jovens que haviam terminado
por derrotar os tiranos da Europa - explicava Mathiez - porque
não haviam hesitado em sacrificar a ·p rópria vida, com a plena cons-
ciência de trabalhar, combatendo pela França, pela regeneração da
· humanidade inteira. Não menos valorosos os jovens do Império; ad-
mirá,·eis também tantos jovens da Restauração e da Monarquia de
Julho, embora muiws, entre eles os mais coléricos, tivessem "per-
manecido bohémiens": mas os outros, os savants, haviam feito -
durante quarenta anos - milagres de estudo e de ciência, provo-
cando na França uma verdadeira revolução, não menos bela e fe-
cunda que a Revolução dos direitos do homem. Ao contrário, de-
gradados, cem vezes mais frios, mais calculistas e materialistas que
os pais, os jovens do Segundo Império: responsáveis, sob diversos
aspectos, pel.a derrota de Sedan e pela mutilação do território na-
cional.
Chegando ao presente, Mathiez solicitava aos estudantes de Mon-
tauban que considerassem os riscos que andava correndo a própria
Terceira República, ameaçada por " jovens que vivem só para si mes-
mos", estetas ridículos que "se perfumam e vivem feito mulheres",
ocupando-se de moela, dedicando meia jornada a estudar os mati-
zes de uma gravata ... República ameaçada, além disso, pela raça mal-
dita "dos arrivistas, dos aproveitadores, dos debochados", geme
hipócrita e estúpida nos períodos ele calma, feroz e ávida no mo-
mento oportuno. "São eles, os estetas e os arrivistas, os responsá-
veis pelo sucesso de uma literatura que desvia e corrompe a alma
nacional, uma literatura de bizantinos e ele degenerados"; decaden-
tes e simbolistas trancados numa torre de marfim, cultivando só " o
próprio eu -como dizem - , o eu imenso que deles esconde o resto
do mundo", jovens bastante tomos para autoproclamarem-se dé-
racinés. Diante dos costumes debochados da geração presente, Ma-
thiez convidava os estudantes a prestar uma homenagem mais que
obrigatória à geração dos homens que tinham feito a Revolução Fran-
cesa: aos jovens apóstolos de um novo evangelho e que, mesmo
os que tivessem conhecido a palma do martírio ou sofrido a contra-
JOVESS REBELDES E REVOLUC/0.\'ÁR/OS 245

ofensiva do passado que acreditavam ter abolido, não tinham sido


nunca vítimas da dúvida e do desencorajamento; homens cuja alma
"irradiava uma eterna juventude, porque era verdade e justiça". 131
O que Mathiez exprimia ao discursar para os estudantes de Man-
tauban era, antes de mais nada, uma fo rma de populismo comum
a muitos normaliens radicais e socialistas do final do século XIX:
a vontade tenaz do pro fessor bem-sucedido de permanecer fiel ao
povo do qual provinha, sem que a melhoria verificada em seu pró-
prio status se tornasse o pretexto para uma espécie de traição so-
cial.1 32 Era, além disso, uma convicção partilhada pela maioria da
intelligentsia de esquerda na Terceira República, que a liberdade
era inevitavelmente internacionalista quando exportada na ponta
das baionetas francesas, ao passo que se reduzia a imperialismo me-
díocre quando exportada pelas armas de outros. I33 Sentia-se pois,
no discurso do professor recém-nomeado, a lição de Renan e de
toda cultura positivista da segunda metade do século: a revolução
pacífica e calma dos laboratórios e das bibliotecas como a mais atual
no mundo moderno. Mathiez atualizava, também, a antipatia dos
sans culottes em relação à juventude corrupta e às mulheres cor-
ruptoras, dajeunesse dorée e das merveuilleuses, sempre dispostas
a minar a moral social: ele sublinhava assim aquele desprezo pelos
prazeres da vida, pelas alegrias que os jacobinos anteriormente re-
provaram nos dantonistas, até puni-los com a morte; prazeres que
Renan, por seu lado, observara com escândalo e que Lavrov havia
denegrido como os apetites anónirnos e obscuros de quem estava
condenado a uma existência puramente zoológica. Ainda mais, as
palavras de Mathiez sugeriam o horror do literato de escritório por
qualquer boheme passada, presente e futura, onde ela se traduzisse
em retirada individualista da vida; manifestavam, além da transpa-
rente polêmica com Barres, a víscera! desconfiança do verdadeiro
revolucionário pela arte e pela literatura como formas de livre exer-
cício da fantasia e como refúgios do eu, opacos para o olhar da co-
letividade. Enfim, talvez sobretudo, o discurso de Mathiez (como
também as páginas que ]ean]aures se preparava para publicar sobre
a Revolução Francesa) 134 fazia eco ao idealismo filosófico fin-de-
siecle na redescoberta do elemento voluntarista da política; o elo-
gio da subjetividade revolucionária que assumia, uma vez mais, co-
notações setecentistas, na medida em que o professor de Mantau-
ban dava a impressão de partilhar o sonho jacobino de um mundo
246 HISTÓRIA nos ]OVE.VS

regenerado pela nitidez das consciências ames ainda que pela solu-
ção dos problemas materiais das classes populares. 135
No mesmo período em que o jovem Mathiez reconhecia nos
acontecimentos históricos da Revolução Francesa a melhor prova
do primado da subjetividade revolucionária, o jovem Lenin trans-
formava a asserção de tal primado em linha política. Contudo, fa zia
isso refletindo sobre a tradição revolucio nária russa em detrimento
da tradição revolucionária francesa: 136 ames do exílio na Suíça, ha-
viam sido decisivos para ele, bem mais que o estudo deste ou da-
quele livro de história da Grande Revolução, o encontro com Ak-
sel'rod e o diálogo à distância com Plekanov, veteranos do populis-
mo que se haviam incorporado às fileiras do marxismo. Embora os
exegetas tenham muitas vezes sublinhado as dívidas do leninismo
com o jacobinismo, o percurso ideológico de Vladimir Ulianov ofe-
rece sempre um sinal da progressiva desatualização, fora da França,
do património de memória que, durante quase um século, servira
de referência, em positivo ou em negativo, aos revolucionários do
mundo inteiro . Quando, no início da década de 1890, Lenin se vol-
tava para a política militante, as gerações de populistas e niilistas rus-
sos que o haviam precedido na estrada da op osição revolucionária
ao regime czarista já tinham atuado e sofrido suficientemente para
que ele th·esse que considerar tudo o que eles representavam, pres-
cindindo das experiências revolucionárias estrangeiras e até elo pe-
sado precedente representado pela Revolução Francesa.
Em 1902, Lenin publicava o seu Que jazer?. Um livro que, desde
o título, remetia para o romance político de Cernysevskij, e que
exibia claramente o que o auror aprendera com Aksel'rocl: o modo
de produção capitalista não incide sobre o desenvolvimento social
ele maneira tão determinante a pomo de não deixar espaço para o
voluntarismo individual e coletivo, à intervenção da ação revolu-
cionária. Porém, o que é mais necessário destacar é a importância
elo elemento de polêmica geracional no magistério de Aksel 'rod e
ele Plekanov, os quais se opuseram infatigavelmente à interpretação
escolar que era feita da doutrina marxista pelos jovens recrutas rus-
sos: tào cegos em sua fé no proletariado quanto haviam sido os po-
pulistas da década ele 1870 em sua fé nos muziki. No momento em
que aprendia com os "velhos" a investir na ação socialista como
o melhor trunfo para suprir as carências ela espontaneidade históri-
ca russa, Lenin se rornava, digamos assim, um estranho no interior
da própria geração. E isso acontecia num período em que a social-
]Ol"ESS REBELDES E RE~"OL/.:C/0.\"ÁRIOS 247

democracia européia, em geral, e a alemã, em particular, tentaYam


a quadratura do círculo, esforçando-se - na prática- por contras-
tar o sucesso das associações juvenis de massa de inspiração burgue-
sa com iniciativas de associacionismo juvenil socialista, mas negan-
do - em teoria - a pertinência da dimensão da idade, declarando
q ue ela estava irremediavelmente superada pela lógica de classc.l37
Mesmo do ponto de vista dos joYens - sobretudo elo deles,
poder-se-ia dizer - a história dos anos que vão do início do século
a 1914 parece dominada pela idéia da guerra: um fantasma para al-
guns, uma miragem para outros. TalYez por isso as análises mais ar-
ticuladas em torno do significado político das dinâmicas geracionais
em curso viessem de Ono Bauer e de outros socialistas ausu·íacos,
que pretendiam valer-se do sucesso. nos territórios dominados pc-
los Habsburgos e de língua não alemã, de movimentos estudantis
que oscilavam entre o patriotismo reacionário e o nacionalismo de-
mocrático. Em 1908, uma das manifestações dos operários vienen-
ses contra a carestia ocasionou uma espécie ele contramanifestação
dos estudantes; Max Adler ,·ia-se obrigado então a constatar com
amargura a diferença entre a cena apresentada pela Viena presente
e o "grandioso espetáculo" dos jo,·ens na Paris de 1848, conforme
a memória revolucionária européia lhe transmitira. Outra vez, estu-
dantes e operários chamados às ruas e praças . Porém, não mais jun-
tos, uns ao lado dos outros, ao contrário, " separados por um abis-
mo de ódio recíproco e de raiva", armados uns contra os outros.
Não tinham passado inutilmente sessenta anos; a Bildung burguesa
conseguira fazer dos ideais de liberdade, ele nacionalidade, de pá-
tria, algo que reluzia aos olhos dos estudantes, enquanto suscitava
a desconfiança dos jovens proletários.
Não menos lúcida que a reflexão política dos maiores teóricos
do austro-marxismo, mas orientada noutro sentido, a teoria e a prá-
xis dos artistas ele vanguarda na Viena do início do século XIX. Os
expressionistas fugiam à tentação de afirmar a própria identidade
em termos de conflitos com os pais; eles renunciam a relançar a ten-
são entre as gerações que marcara a experiência ideológica e cultu-
ral austríaca na segunda metade do século xvm, do protesto dos
wagnerianos contra os velhos liberais ao movimento da]ung- Wien
até a crítica destrutiva dos "sccessionist.as" . Nos anos em que Sig-
mund Freud (que penence à geração precedente) afirma a centrali-
dade individual e social da revolta edipiana, Schiclc, Kokoschka,
248 fiiSTÓRIA V OS jOVENS

Trakl, Musil, Schónberg, Wittgenstein refletem sobre a condição do


homem em geral, em vez de organizar o próprio discurso em ter-
mos de pais e de gerações, de passado e de modernidade. Torna-se
possível até a indulgência em relação ao pai, baseando-se na cons-
ciência de uma inaudita alteridade de condição. Segundo Robert
Musil, "meu pai era mais jovem que eu"; 138 e Musil é o autor, em
1906, de O jovem Tdrless. Na primeira metade do século XVII, o Bil-
dungsroman havia posto em cena, com a inquietude elos jovens,
a sabedoria elos adultos; na virada do século, nas suas últimas ex-
pressões, o Bildungsroman relata a história de uma juventude que
não aspira mais a tornar-se adulta, a pomo ele querer transformar
o natural percurso biológico elo crescimento num percurso psico-
lógico ao contrário, rumo à adolescência ou à pré-adolescência ou
ainda mais adiante. 139 E para as figuras de Egon Schiele, a maturi-
dade chega a parecer fisicamente negada: corpos jovens mas secos
como ramos, inertes, estéreis.
" Nossos filhos não têm a nossa idade", lembra, ela França, Char-
les Péguy, lapalissiano só na aparência; os filhos são, ao mesmo tem-
po, mais jovens e mais velhos que os pais, mais jovens no cartório
da mairie, mais velhos no registro ela humanidade. Também a de
Péguy, do quarentão obcecado pela falência da " revolução dreyfu-
sista", pelo envelhecimento dos homens e das coisas, pelo proble-
ma da inscrição da história na vida e de vida na história, é uma re-
presentação da esterilidade do mundo moderno. E acaba sendo uma
aposta sobre as virtudes da maldição final que os filhos podem jo-
gar contra os pais, numa versão moderna da amiga maldição pater-
na, por meio elos ensinamentos da guerra. Se a revolução de Péguy
se propõe como um modelo para os jovens italianos reunidos em
torno de Giuseppe Prezzolini e da Voce, 140 Péguy elege como sím-
bolo Ernest Psichari, jovem rebento de uma grande família intelec-
tual e burguesa que, em vez de prosseguir os estudos, havia preferi-
do a carreira de soldado na artilharia colonial , e que dava então voz
poética à inquietude ética e estética de uma geração. Nenhuma es-
colha poderia ter sido menos casual. Em Ernest Psichari, Péguy ve-
nera o sobrinho (por parte da mãe) de Ernest Renan; nele, reconhe-
ce a encarnação viva da própria teoria geracional, segundo a qual
os jovens e os velhos devem aliar-se contra os homens maduros.
Psichari, por seu lado, escreve a Péguy, do fundo de um quartel,
"como o filho ao pai" . 141 Ambos consideram a juvemude e a ve-
]O~cXS REBELDES E REVOL/.JCIONÁJUOS 249

lhice idades difíceis, mas vitais; idade terrível a maturidade, os qua-


renta anos, enquanto condenada a uma irremediável esterilidade.
Não fosse por isso, as "barbas pretas" e as "barbas brancas ..
- como Péguy as denomina - devem ironizar as " barbas grisalhas"
elos Lucien Herr e dos]ean]aures. Chegado o momento, depois de
1911, o diretor dos Cahiers de la Quinzaine não hesita em afirmar,
como "velho revolucionário", que os titulares de barbas pretas e
de barbas brancas devem cortar, à maneira dos convencionais, as
cabeças emolduradas por barbas grisalhas. 142 Cai, enfim, a cabeça
de]aures, no final ele julho de 1914; justamente a tempo para que
os socialistas possam impunemente apropriar-se do mito ela Grande
Guerra como a última e mais indispensável das guerras revolucio-
nárias. Mas bastam poucas semanas para que tantO Péguy quanto
Psichari sejam também abatidos, com dezenas de milhares de com-
panheiros e de adversários, no inferno da Mame e da Somme. E bas-
tam poucos meses para que os soldados e os jovens oficiais incorpo-
rados, indiferentemente franceses ou ingleses, alemães ou italianos,
percebam quão pouco a guerra em curso se parece com a higiene
do mundo de que falara Marinetti e na qual muitOs haviam acredita-
do. A anunciada regeneração da humanidade se traduz no desumano
massacre de uma geração. Os que escaparem serão apenas sobrevi-
ventes, mesmo quando a lembrança da luta cotidiana contra a mor-
te permanecer suficientemente inebriante para induzi-los a descre-
ver a experiência ele trincheira com os versos que uma testemunha
excepcional, \Xlilliam Wordsworth, que, referindo-se à Revolução
Francesa, escrevera: "Belo era naquela aurora estar vivos/ mas ser
jovens um vero paraíso!" _143 A literatura de guerra tOmará, de res-
to, vias diferentes daquelas da procl~Jção histOriográfica e do imagi-
nário ideológico; pelo menos na França, os custos humanos e polí-
ticos do conflitO obrigarão os intelectuais socialistas a uma revisão
profunda do mito das guerras revolucionárias. 144
Por outro lado, os desdobramentos da Grande Guerra sobre as
opções políticas dos jovens europeus que dela participaram resultam
tão variados que desencorajam no historiador qualquer veleidade
de síntese. Fiquemos comentes com uma olhadela na correspondên-
cia de guerra de Romain Rolland: do antigo amigo de Péguy, figu ra
de primeiro plano dos Cahiers até que o conflito mundial levasse
Péguy para as trincheiras, Rolland para o exílio suíço e a batalha pa-
cifista. Em uma carta que ele recebia no início de novembro de 1917,
seu correspondente considerava superada a " lei brutal" que Rolland
250 HISTÓRIA OOS.fOVF:NS

havia formulado em]ean-Christophe, segundo a qual tocaria a cada


geração empurrar a precedente; lei desatualizada, depois da Gran-
de Guerra e após o desafio bolchevique: "Não existem mais idades.
[... ] Romain Rolland, caro amigo, pertenço para sempre à nossa ge-
ração sem idade". Numa missiva ele poucos dias depois, o mesmo
correspondente escrevia ao prêmio Nobel ele literatura: "Diga-me
fran camente se não encontra em mim, que pertenço a ,outra gera-
ção e que poderia ser seu filho, os mesmos motes de desconforto
e os mesmos impulsos que o senhor experimenta, um cansaço idên-
tico e contudo um fervo r idêntico" . 145
O autor das cartas era um jovem de 21 anos, Jean de Saint-Prix,
que fora dispensado elo exército por problemas de saúde, mas que
se sentira bastante envolvido na tragédia para se dedicar - depois
de 1916- à minoria " zimmerwaldiana", voltada para a propagan-
da internacionalista e revolucionária; Rolland o h.avia conhecido e
visitado por poucos dias no verão de 1917, e identificara nesse "pe-
queno Saint-Just" (que descendia em linha direta de um Saint-Prix
deputado à Convenção) o melhor representante da nova geração. 146
Escritas sob a impressão das notícias de Petrogrado, as palavras elo
correspondente de Rolland podem bem valer como epílogo para
esta história: de um lado, o jovem Saint-Prix encontrava o sonho
de uma conciliação entre pais e filhos que não seria em nada um
compromisso, que nada retiraria à revolução; ele outro, o bisneto
do convencional se resignava a passar a rocha: "Não somos um país
jovem como o país de Gorki. A asa da morte se estende sobre a nossa
maturidade" .147

NOTAS

(I ) Ver I. Woloch, The New Regime: transformations of lhe French ciuic ar-
der, 1789-1820s (Nova York, 1994).
(2) Segundo a conhecida tese de Philippc Arics, Padri e figli nell'Eumpa me-
dievale e moderna (1975) (Roma-Bari, 1985); e idem, "Generazioni", in EnciclojJe·
dia Einaudi, v . Vl (Turim, 1979), pp. 557·63.
-(3) Ve r J. R. Gillis, Youth and history. Tradition and change in European age
relatíons, 1770-present (Nova York, 1974).
(4) Remete-se aqui, naturalmente, à interpretação já clássica de E. H. Erikson,
Childhood and society (Nova York, 1963).
(5) Ver F. Moretti, i! romanzo diformazione (Milão, 1986); R. Terdiman, " Struc·
tures o f Initiation: on semiotic education and its comradictions in Balzac" , Yale
]0\"ESS REBELDES E REl"OU:aO.\'ÁRJOS 251

French Studies ( 1982), pp. 198-226;]. Seigel, Bohemian Paris. Cultw·e, politics and
the boundaries of bourgeois life, 1830-1930 (Nova York, 1986).
(6) L. Borne, Gesammelte Schrijten (Hamburgo, 1862), p. 63.
(7) Limito-me a remeter a J-C. Schmitt, " Generazioni", in Enciclopedia Ei-
nattdi, vol. 15, Sistematica (Turim, 1982), pp. 266-75; e, para a França, a M. Crubel-
lier, L 'enfance et la jeunesse dans la société jrançaise, 1800-1.950 (Paris, 1979).
(8) K. Gutzkow, Briefe aus Paris (Leipzig, 1842), pp. 227-8.
(9) Assim F. D. Bassermann, cit. in L B. Namier, La rivoluzione degli intellet-
tuali e altri saggi sull'Ottocento europeo (Turim, 1972), p . 2 12.
(1 O) Ver W. Benjamin, Parigi capitale de! XIX secolo. I "passaggí '' di Pm·igi
([1982, ed. póstuma) Turim, 1986).
(11) R. ]akobson, Una generazíone che ba dissipato i suoi poeti. ll caso Ma -
jakovskzj ( 193 1] (Turim, 1975), p. 41.
(12) Assim D . Milo, Trabír te temps (histo ire) (Paris, 1991), p. 182.
(13) Cit. in A. Chuquet, L 'École de Ma rs (Paris, 1899), p. 6 [grifo meu); do bc-
lo livro de Chuque t também foram extraídas as citações que seguem.
( 14) Obrigatório remeter a M. Ozouf, La fête révolutionnaire, 1789-1799 (Pa-
ris, 1976).
(1 5) Ver J.·F. Lyotard, " Futilité cn révolutio n" (1975), in idem, Rudiments
pai"ens. Genre díssertatif (Paris, 1977), pp. 157-212, esp. pp . 198 e ss.; L Hum, "La
vita privata durante la Rivoluzionc francese ", in Ph. Aries-G. Duby (sob adir. de),
La víta privara. L 'Ottocento, organizado por M . Perrot, Roma-Bari, 1988); e P. Vio-
la, Il trono vuoto. La transizione delta sovranità nella Rivoluzione francese (Tu-
rim, 1989), pp. 76 e ss.
(16) Ch. Lacretellc, Dix années d 'épreuves pendant la Révolution (Paris, 1842),
p . 202 .
(17) Ver R. Cobb, Reazioni alta Rivoluzione francese [1972 ] (Milão, 1989).
(18) Cit. de F. Gend ron, La "jeunessedorée". Episodes de la Révolution (Quc-
bec, 1979), p . 164.
(19) Ver ]. -P. Gutton, Naissance du vieillard. Essai sur l'histoire des rapports
entre Jes vieillards et la société en France (Paris, 1988); eM. Ouzof, "Symboles e t
fonction des âges dans les fê tes de I'Europe révolutionnaire", Annales HistOriques
de la Révolution Française (1970), pp. 569-93, notadamente pp. 579 e ss.
(20) Paris, Archives Nationales, Assemblées Législatives, C 266-232.
(21) Moscou, Arquivo do Instituto para o Marxismo-Leninismo, dossiê Jullien.
(22) (M. A. Jullien], Entretien politique [...] sur la France (Paris), a. vw, pp. 62-5 .
(23) Ver L Guerci, Libertà degli antichi e libertà dei moderni. Sparta, Atene
e i "philosophes" ne/la Francía del '700 (Nápoles, 1979).
(24) Naturalmente refiro-me a A. de Musset, La conjession d'un enjant ctu sie-
cle [1836), in idem, Oeuvres compli~tes (Paris, 1866), vol. m.
(25) Ver ].-C. Caron, Générations romantiques. Les étudiants de Paris et /e
Quartier Latin (1814-1851) (Paris, 1991), pp. 225 e ss.
(26) Para uma descrição particularmente rica e de nuances fe lizes dos ambien-
tes estudantis sob o Império, ver H. Gouhier, La jeunesse d'Auguste Comte et la
jor·mation du positivisme, vol. 1 (Paris, 1933); ver também Ch. H. Pouthas, Guizot
pendant la Restauration: préparation de l'homme d'Etat (1814-1830) (Paris, 1923),
pp. 5-27.
252 HISTÓRIA DOS jOVENS

(27) M. A. jullien, Essa i général d'éducation pbysique, morale et intellectuel-


le; suivi d'un plan d 'éducation pratíque pour l'enfance, l 'adolescence et la }eu-
nesse (Paris, 1808; cita-se porém a edição de 181 O, p. 126; o autor declara, de qual-
quer modo, que a obra estava pronta desde 1805).
(28) A. Corbin, "Oietro le quime", in Pcrrot (org.), La vita privata, cit., pp.
361-2. Fundamental, para toda a questão, R. Sennet, ll declínio dell'uomo pubbli·
co. La societCJ intímista [1976] (Milão, 1982).
(29) Ver P. de Vargas, "L'éducation du 'petitJullien', agem du Comit~ de salut
public", in Vários, L 'enfant,la famille etla Révolution française {Paris; 1990), pp.
219-39, que anuncia uma contribuição para Jullien, editor de Saint-Just sob o Dire-
tório.
(30) J. Michclet, Histoire de la Révolution française [1847-1853](Paris , 1952),
vol. 11, p. 1089.
{31) Limito-me a remeter ao ensaio, ainda não superado, de L. Mazoyer,
"Catégories d'âge et groupes sociaux: les jeunes générations françaises de 1830",
Annales d'Histoire Économique et Sociale (1938), pp. 385-423; a Y. Knibieh1cr,
Naissance des sciences humaines. Mignet et l'histoire philosophique au X/Aro sie-
cle (Paris, ·1973); c a algumas considerações estimulantes de P. Rosanvallon, Le
moment Guizot {Paris 1985), pp. 202 e ss.
(32) Ver S. Luzzatto, 11 Terrore ricordato. Memoria e tradizione dell'esperienza
rivoluzíonaria (Gênova, 1988), pp. 55 e ss.
(33) A.F. Carrion-Nisas, De lajeunessefran~lise (Paris, 1820), p. 7.
(34) Ver P. Sichorsky, Nati colpevoli. I figli dei nazísti raccontano (1987) (Mi·
lão, 1987).
(35) Para as repercussões da polêmica, que se interligou, em 1989, ao chama-
do " caso jenninger", \'er M. Pirani, 11 fascínio de/ nazismo (Bolonha, 1989).
(36) Carrion-Nisas, De la }eu nesse, cit., p. 8.
(37) A obra de referência agora é a de A. B. Spitzer, Tbe Frencb generation
of 1820 (Princeton, 1987).
(38) Ver S. Charléty, La ResttiUration (Paris, 1921), p. 197.
(39) Uma boa reconstrução em F. A. Isambert, De la cbarbonnerie au saint-
simonisme. Étude sur la jeunesse de Buchez (Paris, 1966).
(40) Ballanche era o autor, entre outros, de Le uieillard et /e jeune homme
(1819), a mais original tentativa teórica realizada durante a Restauração para conci-
liar os lcgitimistas velhos e novos com os republicanos, velhos e novos.
(41) A. Galante Garrone, Filippo Buonarroti e i rívoluzionari dell'Ottocento
(1828-1837), nova cd. (Turim, 1972), pp. 40-7.
(42) Limito-me a assinalar, entre os historiadores "simpatizantes", o clássico
S. Charléty, Histoíre du saint-simonísme (Paris, 1931 }; entre os "detratOres", L. Va-
liani, Questioni di storia del socialismo (Turim, 1958), pp. 325 e ss.; e, sobretudo
G. G. Iggers, The cult of autbority. The politicttl philosopby ojthe saint-simonians:
a cbapter in the inte/lectual bistory of totalitaríanism (The Hague, 1958). Para a
definição do movimento saim-simoniano como exército da salvação da burguesia,
ver Benjamin, Parígi capitale, op. cit., p. 761.
(43) Uranclt de Leuze [Laurent de l'Ardeche), Réfutation de IM'Histoire de Fran-
ce" de l'abbe de i\Jontgaillard (Paris, 1828), p. 33.
JOVE,YS REBELDES E REI'OLVGO.\'ÁRJOS 253

(44) Ver A. Galante Garrone, " I sansimonianí e la storia della Rivoluzione fran-
cese", Rivista Storica Italiana (1949), pp. 252-78, e R. Pozzi, "La nasci ta di un mi-
to: robespierrism o e giacobinísmo nella Francia della rivoluzionc di luglio" , in ~!.
Salvadori & N. Tranfaglia (org.), 11 modello político giacobino e le rívoluzioni (Flo-
rença, 1984), pp. 19 7-222 .
(45) Uran elt d e Le uzc, Réjw ation de I'" Histoire de France" op. cit., p p. 283,
383, 435-7, 442.
(46) Segundo o relato do fil ho, I-1. Fazy, ]ames Fazy. Sa vie et son oeuvre
(Genebra-Base!, I 887), p p. 40 e ss.
(47) Ver F. Ruch on , "Une famille geneYoise: les Fazy d'Amoine Fazy, fabri-
cam d'índiennes àjamcs Fazy, homme d'état et tribun", Bulletin de l' Institut Natio-
nal Gcncvois (1939), pp. I e ss., eM. Vuilleumier, '·Buonarroti ct ses sociétés secrê-
tcs à Genêve. Quelques documents inédits (1815-1824)", Annales Historiques de
la Révolution Française (1970), pp. 473-505.
(48) Como saliento u ]. H. Billington, Con i/ juoco nella mente. Le origini del-
la fede rivotuziona ria [1980] (Bolonha, 1986), pp. 303-1O.
(49) Genebra, Bibliotheque Publique et Universitaire, Fondation Fazy, pasta 5.
(50) O termo gero ntocrac ia (do qual Fazy vangloriava-se de ser o criador) fo i
imediatamente retomado por Béranger- ou seja, pelo poeta nacional, ídolo da ju -
ventude - , que o transformou em título de um poema: ver]. Touchard, La gloire
de Béranger (Paris, 1968), vol. 1, pp. 525-9.
(5 1)]. Fazy, De la gérontocratie, ou abus de la sagesse des víeillards dans
le gouvernement de la France (Paris, 1828), pp. 5, 23.
(52) Ver J. Fazy, Príncipes d'organization industrielle pour /e développement
des richesses en France, e:::tplication dtt malaise des classes productives, et des mo-
yens d'y porter remede (Paris, 1830).
(53) La Révolulion de 1830, 21 de dezembro de 1830.
(54) Satisfaço-me rem ete ndo a M. Agulhon , " 1830 d ans l' histoire du x1x< sie-
clc français" (1980], in idem, Histoire vaga bonde, t. 2, l déologies et poli tique dans
la France du XIX" siecle (Paris, 1988), pp. 31-47, e à clássica síntese de D. H. Pink-
ney, The Frerzch revolution oj 1830 (Princeton , 1972).
(55) Para uma visão de conjunto, ver A. Esler, "Youth in revolt: the French
generation of 1830", in R.]. Bezucha (org.), Modem European social histOIJ' (Le-
xington, D.C., 1972), pp. 301-34.
(56) E. Quinet, Advertissement à la monarchie de 1830 (Paris, 1831), p. 5.
(57) Ver Seigel, Bohemian Paris, op. cit., pp. 25 e ss.; c P. Béníchou, "Jeune-
Francc et Bousingo ts", Revue d'Histoire Littéraire de la France (1971), gp. 439-62.
(58) Cit. in B. Guyon , La pensée politique et sociale de Batzac (Paris, 1947,
pp. 384 e ss.
(59) Ver Moretti, /1 romanzo di jormazione, op. cit., p p. 2 11 e ss.
(60) A anedo ta em R. Caillo is, "Paris, mythe mo de rne", Nou.velle Revue Fra n-
çaise (193 7), p . 698.
(61) In Notti fiorentine: cit. por S. Kracauer, ]acques Ojfenbach e la Parigi
del suo tempo [193 7] (Casalc MonferratO, 1984), p. 12 .
(62) Ver R. Treves, La dottrina sansimoniana nel pensiero italiano de/ Ri-
sorgimento (Turim, 1933), p. 17.
(63) Ver F. Venruri, // populismo russo, vol. 1, Herzen, Bakunin, Cernysevs-
kij (Turim, 1972), p. 19.
254 HISTÓRIA DOS JOVENS

(64) A contribuição mais atualizada sobre a questão é a de L. Calvié, Le renard


et les raisins. La RéiJolution française et les intellectuels atlemands, 1789-7845
(Paris, I 989); mas permanecem úteis as pesquisas de J. Dresch, Karl Gutzkow et
la ]e une Allemagne (Paris, 1904), e de E. M. Butler, The saint-simonian religion
in Cermany: a study of Young German Mouement (Camhridge, 1926).
(65) Cit. in F. Della Peruta, Mazzini e i n·voluzionari ita/iani. 1/ "partito d 'azio-
ne" (1830-1845) (Milão, 1974), p. 60.
(66) G. Mazzini, "D'alcune cause che impediscono finora lo sviluppo della li-
bertà in ltalia" [1832), in idem, Scritti edili e inediti (ed. nac., Imola, 1907), vol.
11 , p. 2 10.
(67) Cir. in Della Peruta, Mazzini e i riiJoluzionari italiani, op. cit. , p. 150.
(68) Ver Galante Garrone, Filippo Buonarroti e i rivoluzionari, op. cit., pp.
3'í0 e ss.
(69) Ve r Del la PenHa, Mazzini e i rivoluzionari italiani, op. cit., pp. 204-17.
(70) Satisfazemo-nos em remeter, aqui, ao discutido mas não superado E. P.
Thompson, Rivoluzione industriale e classe operaia in fnghilterra [1 963) (Milão,
1969).
(7 I) W. l.ovett, Life and struggles in pursuit of bread, knowledge and free-
dom (Londres, 1876).
(72) Ver D. Vincent, Bread, knowledge and freedom: a study of nineteentb
centwy working class autohiograpby (Londres, 1981), p. 185.
(73) Ver Gillis, Youth and bistory, op. cit., p. 37.
(74) Ver D. H. Pinkney, Decisive years in France, 7840-7847 (Princeton, 1986),
p. 93.
(75) Remeto pelo menos aj. Grandjonc, Marx et les communistes allemands
à Paris, 1844. Contribu tions à l 'étude du marxisme (Paris, 1974).
(76) Ver Calvié, Le renard et les raisins, op. cit., p. 11 9.
(77) A contribuição mais recente é a de L. S. Kramer, Thr·esbold of a new world:
intellectuals and the exile experience in Paris, 1830-1848 (Ithaca, 1988). Ver tam-
bém N. Reeves, "Heine and the young Marx, Oxford German Studies (1972), pp. 44-97.
(78) Para tudo isso ver J. Seigel, Marx 's f ate: the sbape of a life (Princewn,
1978), pp. 154-69.
(79) Ver Luzzato, 11 Ter-rore ricordato, op. cir., pp. 108-3 5.
(80) Em 1846, o filho de Georges Couthon, do terrível jacobino que caíra com
Robespierre em Termidor, comparava os fundadores da Primeira República a está-
tuas antigas, figuras esplê ndipas e mudas como certos grupos escultóricos encon-
trados em Herculano: ver Correspondance inédite de C. Couthon, 7791 -1794, or-
ganizada por F. Mêge (Paris 1872), pp. 336-40.
(81) J. Améry, Rivolta e m ssegnazione. Sult'invecchiare (1968 e 1977] (Tu-
rim, 1988), pp. 77 e ss.
(82) Benjamin, Parigi capitale, op. cit., p . 105.
(83) Ver M.Dommanget, Auguste Blanqui des origines à la révolution de 1848.
Premiers combclts et premieres prisons (Paris-La Haye), pp. 8 e ss.
(84) La Réfonne (18 ele agostO de 1846). Sobre a questão toda, ver]. Grand-
jonc, "A propos des relations eles freres Blanqui entre eux et avec P.J. Proudhon:
quelques documents oubliés o u inédits", in Vários, Blanqui e i les blanquistes (Pa-
o
ris, 1986), pp. 13-27, que republica texto de Blanqui.
}Ol"ESS REBELDES E REI"OLL"C/0.\"ÁRIOS 255

(85)]. Michelet, Le peuple [ 1846] (Paris, 1979), p. 139.


(86) Ver R. Pozzi, Gli intellettuali e i/ potere. Aspetti del/a cultura Jrancese
delt 'Ottoccllto (Bari, 1979), pp. 127-69.
(87) Ve r C. Durandin, Révolulion à lafrançaise ou à la russe. Polonais. Rou-
mains et Russes au XIX'" siecle (Paris, 1989), p. 98, que também acompanho para
as considerações seguintes.
(88) Cit. in N. P. Smochina, ''Sur les t:migrés roumains à Paris de 1850 à 1856",
Nlélanges de l 'École Roumaine en France (1933), p. 173.
(89) Os líderes do movimento democrático alemão raciocinam, po r sua vez,
até em termos mais inquietantes: no Parlamento de Frankfurt, diante das reivindi-
cações libertárias da juventude tcheca, Arnold Ruge - o chefe da extrema esquer-
da - fala do Rawn necessário à Alemanha para cumprir a própria missão mundial:
sobre a questão toda, ver Namier, La rit•oluzione degli intellettuali, op. cit., pp.
160 c ss.
(90) Segundo a proposta inte rpretativa de A. De Francesco, "Dcmocratici e
socialisti in Francia dal 1830 al1851 ", 11 Pensiero. Rivistaltaliana di Scienze Poli-
ttcbe (1986), pp. 459-94.
(91) Cit. in P. Lero ux, La greve de Samarez, poimze pbilosopbique (Paris, 1863),
t. 1, p. 332 . Godefroy Cavaignac morrera em 1845.
(92) A média de idade dos rebeldes, o u pelo menos dos que entre eles foram
levados diante dos tribunais militares, era de 34 anos: \·er, sobre este assumo, P.
Caspard, " Aspects de la luttc de classes en 48: le recrutcmem de la Garde Nationale
Mobile", Revue Historique (1974), pp. 81·106.
(93) Ver, nem sempre convergentes com Caspard, M. Traugott, " The Mobile
Guard in the French Revolution o f 1848", Theory and Society (1980), pp. 683-720;
c R. Bezucha, "The French Revolution o f 1848 and rhe social hiswry o f work" ,
Tbeory and Society (1983), pp. 477-82; além disso, algumas sugestões no velho mas
apaixoname livro de]. Cassou, Quarante-buit (Paris, 1939), pp. 247 e ss.
(94) Remero aqui à clássica monografia de L. Chevalier, Classí lavoratrici e
cfttssí perícolose. Parigi nella rivoluzione índustriale [1958) (Roma-Bari, 1976), par-
ticularmente pp. 240 e ss., 314 e ss., 560.
(95) Referido em A. Herzen, Passé et méditations (Lausanne, 1979), t. 3, p. 113.
(96) M. du Camp, Sou venirs de l 'cmnée 1848 [1876) (Paris, 1979), p. 91.
(97) A. Delvau, Histoire de la révolution de Jévrier (Paris, 1850); citações à~
pp. 3 e 3 16.
(98) A respeitO do Raudelaire "político", agora é possível ler algumas páginas
estimulantes de A. Rey, " Réuolution": histoi,·e d 'zm mot (Paris, 1989), além de, na-
turalmente, Benjamin, Parigi capiiCIIe, op. cit., pp. 480 e ss.
(99) A. Delvau, H Murger et la bo!Jàrne (Paris, 1866), p. 48.
{100) Sem igual, a respeito, G. La Feria, Renan p olitico (Turim, 1953).
( I O1) Escreverá, em 1904, Charles Péguy: "[L 'a11erzir de la science] permane-
ce, para mim, a obra capital de Renan, a que ilustra a o rigem c o fundo de seu pen-
samento por inrciro: já que, infelizmente, uma vida quase sempre se resolve numa
maturidade perseverante, bruscamChte revelada por um clarão de juventude (Ch.
Péguy, Zangwi/1, in idem, Oeuures en prose completes, nova cd. (Paris, 1987), vol.
I, p. 1420.
256 HISTÓRIA DOS JO VENS

(1 02) E. Renan, L 'avenir de la science. Pensées de '48, in idem, Oeuvres com-


pletes (Paris, 1949), vol. 3, p . 995; para as c itações que seguem, ver, respectivamen-
te, às pp. 756, 884, 750, 1064, 991 , 990.
(1 03) Ver I. Berlin, " H~rzen, Bakunin e la Jibertà individuale" [1 955), in idem,
11 riccio e la volpe e altri saggi (Milão, 1986); a citação de Hcrzen à p . 175.
(104) Ver Venuri, Il populismo russo, vol. 1, op. cit., pp. 49 e ss. c 177 c ss. :
a citação à p. 177.
(105) A respeito da investida do Segundo Império contra o romance como
uma política de defesa da juventude, ver). ]. Darmon, Le colportage de librairíe
sous-le Seconct Empire (Paris, 1972).
(106) E. Quinet, Lettres ct'exil à Michelet et à ctivers amis (Paris, 1885), vol.
1, p. 70 (carta a Mich elet, de Bruxelas, 25 de outubro de 1853).
(107) Idem, p . 28 (carta a Souves tre, de Bruxelas, 17 de fevereiro de 1853:
também para a referência a Tácito, Sêneca etc.).
(108) Segundo a análise aguda de Durand in, Réuolution à la française ou à
la russe, op. cit. , p . 153.
(109) Cit. in V. Strada, "Leggendo 'Paclri e figli' ", in idem, Tradizione e rivo-
luzíone nella letteratura russa (Tu rim, 1969), pp. 13-5. Sobre a relação Quinet-
Herzen, ver M. .Mcrvaud, Amítíé et politique: Herzen critique de Quinet (Paris-La
Haye, 1976). ·
(1 10) Ver F. Vcnturi, Il populismo russo, vol. 2, Dal/a liberazione dei servi
ai nihilismo (Turim , 1972), pp. 148 e ss.; e T. Kondratieva, Bolcheviks et jacobins.
!tinéraires eles analogies (Paris, 1989), pp. 43 e ss. para as citações; A. Gleason,
Young Russia. The genesis oj the Russian radicalism in the 1860's (Nova York,
1960).
(11 1) Sobre Serno-Solov'evic, a respeito de todo o contexto e para as cita-
ções, ver Vemuri, !I populismo russo, vol. 2, op. cit., pp. 128 e ss.
(11 2) Cit. in Strada, " Leggendo", op. cit., p. 23 .
(113) Carta de 23 de junho de 1867, cit. por V. Strada, Introdução a A. Her-
zen, A un vecchio compagno [1870) (Turim, 1977), pp. 47-8; grifos meus.
(11 4) Republicado idem, pp. 67-75; ver também M. Confino, Il catechz:smo
del rívoluzíonario. Bakunin e l'affare Necaev [1973] (Milão, 1976).
(J 15) H. Heine, Rendiconto parigino (1831 -1832) (Bari, 1972), pp. 57-8, cor-
respondência para a Ausburger Allgemeine Zeitung (10 de fevereiro de 1832). -
(116) Cit. in Strada, Introdução a Herzen, A un vecchio compagno, op. cit., p. LV .
(11 7) Ver P. H. Hutton, Tbe cult of revolutíonary tractition. The blanquists
tn hench politics, !864-1893 (Berkeley, 1981 ), que deve ser cotejado com M. Dom-
mange t, Blanqui et l'opposition révolutiormaire à lafin ctu Seconct Empire (Paris,
1960).
(1 18) Cit. in M. Paz, Auguste Blanqui, un réuolutionnaire projessionnel (Pa-
ris, 1974, de uma carta de 25 de abril de 1866 e de uma carta de 8 de janeiro de 1868).
(1 19) Para a interpretação da Comuna deste pontO de vista, ver Seigel, Bohe-
mian Paris, op. cit., pp. 170 c ss., para a citação de Valles também.
(120) Ver Benjamin, Parigi capitale, op. cit., p. 472; e A. Blanqui, lnstruc-
tions pou.r une prise d'annes. L 'éternité p ar les astres [1872) (Paris, 1972), p . 155.
(12 1) Remeto, naturalmente, a C. Digeon, La crise allemande de la pensée fran-
çaise (1870-1914) (Paris, 1959).
JOI'f;,\l REBELDES E REI'OLI..'C/0.\ 'ÁRIOS 257

(122) A respeito, permanece sem igual R. Girarde t, La société militaire en Fran-


ca, 1814-1939 (Paris, 1953).
( 123) Ver Z. Sternhell, La droite rét•olutionnaire. Les origines fran çaises du
fascisme (Paris, 1978), pp. tl5 e ss.
(124) Ver Vemuri, 11 populismo russo, \ ' OI. 2, op. cir., pp. 425 e ss.
(125) Sobre Herr e o encontro com Lavrov, ver D. Lindemherg·P. A. Meyer,
Lucien 1/err. l.e socíalisme et son destin (Paris, 1977), pp. 69 e ss.
(126) Aqui remeto à notória tese de E. Weber, Da conwdini a frallcesi. La
modemízzazione del/a Francict rurale (19- 6] (Bolonha, 1990).
(127) L. 1-lerr, Choix d'écríts [póstumo) (Paris, 1932), t. I , p. 27; quanto à refe-
rência à Renan, ver E. Renan, La réforme imellectuelle et morafe de la Franca (Pa-
ris, 1871), p. 68.
(128) Ver Péguy, Zangwi/1, op. cit., p. 1420.
(129) Como lembrou V. Isamben-jamati, Crises de la société, crises de /'ein -
segnement (Paris, 1970}.
( 130} Ver Sternhell, La dmite révolurionnaire, op. cit.; além disso, idem, Ni
droite, 11i gaucbe. L 'idéologie fasciste en France (Paris, 1983).
(13 1)A. t\<lathiez, }aunesse: hier, aujourd'hui, demain (!l!ontauban, 1899, re-
publicado nos Annales 1listoriques de la Rét.·olurion Française (1977]), pp. 43-8.
(132) Ver C h. Charle, .\'aissance eles "imellectuels", 1880·1900 (Paris, 1990),
pp. 92 e ss.
(133) Ver S. Luzzato, la "Marsigliese" stonata. La sinistrafrancese e i! pro-
blema storico de/la guen·ct giusta (1 H48·1948) (Bar i, 1992).
(134) Como levantado naquela época por F. Venturi,jeanjaures e altri stori-
ci del/a Rlvoluzione francese (Turim, 1948}, pp. 95·6.
(135) Ver P. Viola, "La storiografia francese sulla Rivoluzione da Alben .\la-
thiez a Georges Lefebvre", in A. Sai na (org.), La storia del/a storiografia europea
sul/a Rivoluzione francesa (Roma, 1990), vol. 2, pp. 143-59.
(136) Para tudo o que segue sobre Lenin, ver C. S. lngerflom, Le citoyen im-
possible: les racirzes russas du léninisme (Paris, 1988).
(137) Remeto, para o assunto tOdO, a P. Dogliani, La "scuola del/e reclute".
L 'internazionale giouauíle socialista da/la fine de/1 'Oflocento alta prima guerra
..._mondiafe (Turim, 1938}, também para a citação de Marx Adler que segue (p. 20);
para o contexto francês, ver Y. Cohen, Les jeunes, te socialisme et la guen·e. His-
toire des mouvements de jatmesse en Frtmce (Paris, 1989).
(138) O brigatório remeter aos belos trabalhos ele C. E. Schorske, " Generatio·
na! tension and cultural change: reflections on the case of Vienna, Daedalus (1978),
pp. 111·22; e idem, Fin-de-siecle Vienna. Politics anel culture (Nova York, 1981).
(139) Remeto para isso a F. Moreni, "Un 'iltutile nostalgia di m e stesso ". La
crisi del romcmzo di fomwz ione europeo, 1898-1914, no prelo.
(140) Ver H.. Wohl, 19 14. Storia di una generazione [ 1979] (Milão, 1984), pp.
270·9.
(141) E. Psichari, Lettres du centurion, ín idem, Oeuvres completes (Paris, 1948),
v oi. I, p. 265 (cana de I '? de maio de 1913).
( 142) Para as citações, ver, na ordem, Ch. Péguy, Victor-iHarie, com te Jlugo
( 19 1O), in idem, Oeuvres en pr·ose ( I • ed., Paris, I 957), v oi. 2, p. 768; idcm.L>eux íe·
ma élégie XXX (1908], in idem, Oeuvres en prose completes, op. cit., p. I 073; idem,
258 11/STÓRIA DOS JOVENS

De la situation .faite au parti intellectuel dans te monde moderne [1906], idem,


p. 539. Sobre Péguy e o vieillisement, ver P. Duplové, La t·e/igion de Péguy (Paris,
1965), pp. 560 e ss.; sobre Péguy e Psichari, ver Girardet, La société militaire, op.
cit. , pp. 242-3; sobre Péguy e Renan, ver S. Fraisse, "Péguy e t Renan", Revue d 'His-
toire Littéraire de la France (1973), pp. 264-80.
(143) Ver R. Nichols, Anthology o.fwar poetry, 1914-1918 (Lond res, 1943).
(144) Ver Luzzato, La "Marsigliese " stonata , op. cit.
(145) J. de Saint-Prix, Lettres (ed. póstu ma] (Paris, 1924, cartas a R. Rolland de
4 de novembro de 1917 e de 27 de novembro de 1917, respec tivamente às pp. 34 e 46).
(146) Ver R. Rolland, Pré.face, idem, p. 12.
(147) Idem, p. 55 (cana de 9 de maio d e 1918).
Tradução do italiano por Nilson Jll!oulin
O MITO DA ]UVEJVTUDE TRANSMITIDO PELA
IMAGEM: O FASCISMO ITALIANO
Laura Malvano

Cíouinezza, giot •inezza, Primal'era di bellezza!


E per la uita, e per I 'ebrezza
i/ tuo cc11110 squi/la e t:a!

juventude, juventude, primavera de beleza! E pela vida, só le-


ve7,a o teu canto ressoa c vai! Por meio da paráfrase concisa do sím-
bolo e da redundância verbal cara ao linguajar fascista, o 'hino do
regime exprime de modo exemplar a dupla relação de identidade
que o fascismo manteve com a noção de juventude. "A bela canção
da juventude audaz" designa ames de mais nada o referente social
que, graças a um eficaz dispositivo simbólico, passa a adquirir um
valor universal e totalizante.
Além de qualquer limite histórico ou de geração, essa noção
investe basicamente o modelo ideal de uma norma de vida: "Nas
fileiras do fascismo são jovens o garibaldino e o vanguardista: des-
de que entendam a norma de viela de Mussolini" .'
De fato, " a nossa juventude é um símbolo que domina, desvin-
culado do espaço c do tempo: ele resume o amor c a beleza, a força
e o canto" .2 Expressão elo absoluto positivo, a noção de juventu-
de recobre uma vasta gama de valores, ao mesmo tempo cívicos,
morais e estéticos: "O vil não pode ser jovem: segundo uma signifi-
cativa intuição do Duce, ele é velho, decadente. O 'jovem' implica
uma alma de herói" .3
Mas sobretudo o hino fascista exprime o modelo de identifica-
ção central do fascismo:
260 11/STÓR/A DOS}OVESS

O fascismo é juventude, mas a incxoruvel lei do tempo é o envelheci-


mento, e o que será do fascismo à medida que envelhecer?( ...]. Enve-
lhecimento de homens, mas a estirpe, se não condenada à extinção
por uma tara degenerativa, se renova perpetuamente. O Ülscismo, sur-
gido das mais vivas energias de nossa estirpe .. . para não envelhecer
e degenerar por sua vez, eleve percler os elementos ele fraqueza e ca-
ducidade que são inatOs a qualquer "partido" e seguir a nature;ta,
identificando-se com a estirpe para haurir todo ano vigor de vida das
gerações sobreviventes. 4
Porramo, juventude eterna, de uma nação perenemente jovem
que se traduz na escolha política de um regime que fez dos jovens o
fulcro da própria ação c o momento central do próprio sistema or-
ganizativo.
Juventude, igualmente, a elo Estado fascista, herdeiro vigoroso
da revolução fascista, ela mesma " juveníssima c fresquíssima". Es-
tado "jovem", "inovador" e, segundo as palavras elo Duce, "em
plena posse de todas as suas energias" e subvcrsor dos valores do
"velho governo da Itália" que tinha como ideal " fazer política fi-
nanceira com Nitti e Giolitti".5
"Decididamente, temos um defeito maldito: o de ser demasia-
do jovens. Por essa nossa irredutível inquietação juvenil que, em
1919. nos le\·a\·a de bombas na mão para as praças da Itália, tive-
mos sempre inúmeros inimigos" .6 Evidentemente, a carga subver-
siva dessa juventude ainda impregnada da violência de 1919 ("Nós,
quando se trata da Pátria e do fascismo, estamos sempre prontos
a matar e a morrer")i será espertamente canalizada na rígida disci-
plina militar das organizações do regime. Os jovens incontroláveis
que cantavam "Giovinezza" e manejavam com desenvoltura bom-
bas manuais c punhais acabarão, enquadrados pelo ritual militar do
regime, por wrnar-se ]ovens Fascistas que, segundo o desejo do Du-
ce, "anteS de chegar aoS pOStOS de COmando, devem servir COm fi-
delidade e silêncio nos postos de obediência" .s
Evidencia-se, nesses poucos exemplos, como o discurso sabia
modelar-se com particular ductilidade e aderência à multiforme c
abrangente noção ele juventude, a ponto de tornar-se seu elemento
constitutivo. Graças a uma hábil manipulação do discurso, a noção
de juventude pôde ser privada de qualquer conotação histórica ou
sociológjca e assumir uma dimensão exclusivamente simbólica, ope-
rando a fusão elos diversos significados implícitos na própria noção.
O .11/TO DA}Ili'ENTUDE TRAXS.If/T/DO PELA /.IIAGE.I/· O FASC/S.I/0 ITALIASO 261

Assim, é lícito perguntar-se, querendo encarar uma investiga-


ção que recorre ao discurso por imagens, até que ponto tal suporte
era adequado para aderir às múltiplas implicações conexas com a
noção de juventude.
Não se pode deixar de lembrar que Gombrich, grande estudio-
so ele símbolos, tantas vezes alertou sobre as dificuldades, que são
próprias da imagem, para exprimir uma mensagem clara e unidire-
cional dado que "o significado é um termo lábil, sobretudo quan-
do referido a imagens em vez de referir-se a formulações verbais" .9
Problema ainda mais significativo se for considerado o papel fun -
damental que a cultura figurativa teve durante os vinte anos do fas-
cismo, enquanto veículo privilegiado da ideologia do regime. lO
" O fascismo é juventude, portanto beleza, ardor, harmonia" . 11
Será, evidentemente, a imagem do efebo atlético e vigoroso, har-
moniosamente dotado, rodo beleza e juventude, a quem tocará si m-
bolizar o homo novus do fascismo ou, mais precisamente, o pró-
prio fascismo . " Esse homem - jovem ele idade c belo ele corpo-
o qual tem o passo seguro e o olhar direto, se chama o italiano de
Mussolini. Podeis identificá-lo a cem metros de distância, bem plan-
tado em seu uniforme imeiramente negro, que é o signo estético
ele sua fé [... ].A uma estética pessoal deve corresponder uma ética
do costume" . 12

O EFEBO "JOVEM DE IDADE E BELO DE CORPO"

MuitO mais trabalhoso se revelará para a imagem apropriar-se


desse modelo sedutor, detalhado com tanta meticulosidade. Cerra-
mente não era uma operação indolor aquela que teria permitido in-
troduzir no campo figurativo o sugestivo "uniforme inteiramente
negro" vestido pelo efebo esplendoroso, com o risco de relegá-lo
definitivamente à categoria das imagens com estatuto "baixo" : ima-
gens de propaganda que teriam inevitavelmente encontrado uma
acolhida difícil em contato com a rígida etiqueta formal que rege
o código estético da " obra ele arte" .
Em várias ocasiões, aliás, já se ten tara sublinhar a inamovibili-
clacle ela linha de demarcação que devia separar as d uas diferentes
categorias de imagens: a pintura e a escultura, imagens com estatu-
to "nobre", e as outras imagens, caracterizadas por uma infinidade
ele suportes e destinadas a uma precisa " função social". Margherita
262 HISTÓNIA DOS } OVRNS

Sarfati, por exemplo, que também tentara deslocar os parâmetros


referenciais da licitude estética, fazendo da arte do século xrx a ex-
pressão da " moderna italianiclaele" mussoliniana, não deixara de su-
blinhar que "a representação imediata elos eventos ele nosso tempo
não se coaduna com as tradições de nosssa grande arte, de natureza
mística e legendária'' .13
É interessante notar que as mesmas preocupações serão encon-
tradas nas altas esferas do fascismo . Será o próprio secretário do par-
tido, Alessandro Pavolin i, que, por ocasião de uma assembléia do
Sindacato Professionisti e Artisti, colocará brutalmente a explosiva
questão da op ortunidade ou não ele uma "arte de propaganda". A
resposta foi precisa: "A propaganda é uma coisa, muito digna e útil,
mas a arte é coisa bem diferente" . 14
Quando, no decorrer ela década de 1930, a escultura monumen-
tal foi confrontada com a questão ela demanda pública, o problema
da relação arte/propaganda emergiu com toda a sua atualidade. " O
homem jovem de idade e belo de corpo" foi solicitado a traduzir
na linguagem majestosa da grande escultura a complexa simbologia
elo " Italiano ele Mussolini". Abandonado "o uniforme inteiramente
negro" com o qual a metáfora verbal o vestira, o monumento po-
dia exaltar sem reservas a nudez atlética do jovem efebo, fazendo
assim valer uma ilustre genealogia imortalizada pelo célebre Davi
de Michelangclo. Título de nobreza muito importante, que permi-
tia legitimar o modelo dando à obra uma aura cultural ele indiscutí-
vel prestígio, garantia da irreprecnsível "italianidade" das próprias
ascendências e do prestígio ele uma simbologia bem notória, como
fora a do Davi no tempo da Florença depois de Savonarola.
A elaboração dessa representação, suspensa entre referências
culturais e simbólicas, não foi fácil e seguiu um percurso bem pou-
co linear. Seu traçado pode ser acompanhado no interior de uma
produção menos prestigiosa que a escultura monumental, percor-
rendo os meandros ele uma produção "menor " : imagens ele natu-
reza variada, com formato (e destinação) mais modesto e cotidiano.
Certamente a personagem que ilustra as vantagens do Istituto Na-
zionale delle Assicurazione é jovem e tem boa aparência. Símbolo
evidente do Estado fascista benéfico e providencial e, ao mesmo tem-
po, referência implícita ao sujeito ideal a quem se dirige a mensa-
gem. A abstração da linguagem simbólica surge mitigada pela su-
mária contextualização da imagem cuja leitura é facilitada por uma
série de referências de leitura simples: o apelo a um vago, mítico
O .\1/TO DA jlJVFiNTUDE TKA,\'S.\1/T/DO PEL~ IJIAGE.ll, O FASCIS.\10 TTALIANO 263

universo agreste, o fascio - símbolo da fascismo - entrelaçado


com uma exuberante colheita de cereais e frutos (fig. 1).
O mesmo universo agreste, idílico e luxuriante de flora prima-
veril ("Giovinezza, giovinezza, Primavera di bellezza!") serve de fun-
do para uma surpreendente marcha de um grupo ele adolescentes
com as pernas ainda cobertas pelo fatídico uniforme negro e o pei-
to nu que sublinha seu aspecto incongruente e vagamente silvestre.
("Juventude da Itália! Bela, vigorosa juventude que desabrocha nestes
dias tal primavera flamejante no céu da Pátria!") 15 (fig. 2).
A eficácia propagandística da imagem, que fazia parte de uma
forma singular de propaganda baseada em vendas por correspon-
dência, 16 pode ser medida pela capacidade de apresentar o jovem
fascista (naquela época ainda oscilando entre a violência de 1919
e os apelos à ordem do regime) por meio de uma imagem loquaz
e silvestre, que dissolve, entre árvores floridas e bandeiras tricolo-
res tremulando ao vento, os ecos agressivos elo mito elas tropas ele
choque.
Aqui, o discurso poderia deslocar-se para a acrobática capaci-
dade da imagem, no início dos anos 1920, de remover qualquer ves-
tígio de um passado ele violência difícil de ser administrado. Mesmo
reivindicando constantemente o grande mito elas origens (a revolu-
ção e o fascismo puro e duro de 1919), desaparece na representa-
ção figurativa qualquer inconveniente traço de violência. Aliás, no
mesmo período, o look elos jovens fascistas sofre uma transforma-
ção significativa: um uniforme mais respeitável e tranqüilizador subs-
titui o guarda-roupa " genial" e anticonformista do "Soldado Audaz"
que provocara a admiração de Marinetti. Assim, desaparece a panó-
plia elas caveiras e dos punhais entre os dentes, substituídos pela
simbologia abstrata e romanizante ela nova " juventude da Itália".
Portanto, iremos encontrar, narradas por meio elos suportes mais
variados, as gestas elos primeiros grupos de choque: alegres expedi-
ções em que a presença inquietante do "santo cassetete" é afastada
em meio aos frascos ele vinho e à envolvente alegria que reúne ban-
deiras ao vento, jovens vigorosos e frágeis heróis adolescentes.

Em 1932, inaugurava-se em Roma a exposição da Revolução


fascista, haut lieu onde eram celebradas as glórias ele dez anos elo
regime. Recorreu-se sobretudo à imagem, utilizando com sábia or-
264 HISTÓRI.~ DOS}OVENS

questração suas diferentes especificidades: ilustrar e visualizar o per-


curso da " Revolução", mas sobretudo oferecer aos ' 'símbolos plás-
ticos e visuais" a oportunidade excepcional ele "esculpir, de forma
definitiva, em matéria perene, a história de nosso tempo" Y
No mesmo ano, em Brescia, com a novíssima praÇa da Vitória,
graças à cenografia habilidosa ele Piacentini, era inaugurado outro
importante espaço celebrativo: a retórica dos edifícios se integrava
ao conjunto dos monumentos que garantiam, com redundância ora-
tória, a presença ela mensagem fascista. Na Torre ela Revolução de
Piacentini, o baixo-relevo com Mussolini a cavalo, ele Romano Ro-
manelli, empenhava-se por traduzir "em matéria perene" o epos elo
discurso fascista. À sua frente, nas paredes do "Arengaria", os baixo-
relevos de Antonio Maraini celebravam a "história de Brescia" . 18
No centro da praça, o efebo de mármore de Adriano Dazzjl9 do-
minava tudo . Romaniclade oblige, a figura impunha com uma arro-
gância não disfarçada a própria nudez e a juventude atlética (fig. 3).
Sem dúvida personagem emblemática, com apelos múltiplos e
nada inocentes a tradições ilustres, mas certamente não tão explíci-
ta quanto ao significado da própria presença. De fato, aparentemente,
a mensagem de que era portadora se situava em vários níveis. Ela
exprimia seguramente aquelas "qualidades eternas da estirpe" que
a propaganda de massa transformara em mercadoria de consumo
fácil. As qualidades que, segundo Bottai, coincidiam com "a ener-
gia vital da raça que sempre se renova e revive (... ]pela própria for-
ça de sua tradição" .20 O título da obra, Era fascista, sugeria con-
tudo uma mensagem mais complexa, certamente menos dependente
ela pesada concretucle da obra.
Todavia, é possível interrogar-se sobre a disponibilidade dessa
vigorosa escultura em se tornar "imagem viva e fa lante", símbolo
sobre o qual fazer convergir a multiplicidade dos significados que
o título sugeria. Certamente, como no caso de qualquer obra com
vocação social, as condições da receptividade não podiam deixar
de intervir sugerindo qual era a sua vocação; mais precisamente, o
contextO expositivo, tão inequivocamente fascista, evidenciava com
ênfase o significado ideológico do enigmático efebo. Porém, consi-
derando as reticências expressas quanto a esse tipo ele representa-
ção, parece claro que a problemática do símbolo provocava perfei-
ta consciência do caráter aleatório da escolha. Além ele tudo, não
se pode ignorar o aspectO provocatório que a presença do nu atléti-
co, tão ostensivamente pagão, podia ter sobre a sensibilidade de um
().\l/TO DA j UIIEN 1V DE TRAJ\'S.\1/TIDO PELA /.IJAGE.\1: O FASC/5.110 ITAUASO 265

país católico, em que os desiderata da Igreja eram cuidadosamente


tomados em consideração pelo Estado fascista.
Que o mesmo tipo de representação pudesse adaptar-se perfei-
tamente a um contexto político c cultural diferente é demonstrado
pelos famosos nus de Arno Breker. A sua concretucle desinibida,
glorificação de um paganismo mítico, tOrnava-se metáfora transpa-
rente do caráter ariano ele um povo. É claro que neste caso a men-
sagem, de leitura fácil e inequívoca, permitia transformar sem difi-
culdades os musculosos heróis do Walhala ele Brcker em instrumento
eficaz de propaganda, q ue encontrava uma leitura imediata na eu-
genia racial do nazismo.
À diferença do fascismo, o nazismo reco rrerá amplamente a uma
simbologia abstrata c rotalizame, em que a exaltação pagã e hedo-
n ista elo corpo juvenil se integrará com a absoluta imaterialidacle da
simbologia espacial e luminosa das cenografias wagnerianas de Speer,
surgidas por ocasião das grandes cerimônias nazistas.
Na It:Hia, ao contrário, o símbolo globalizante prevalecerá so-
bre o abstrato, preferindo-se uma simbologia ligada mais diretamente
ao próprio referente social e por ele condicionada.
Tal discurso conccrnc a uma estratégia mais abrangente, com
amplitude mais geral, que diz respeitO ao conjunto da política da
imagem do fascismo .21 Assim, a imagem emblemática do fascismo-
juventude será fragmentada numa vasta, compósita iconografia e nu-
ma igualmente complexa rede de suportes formais e simbólicos. Evi-
tando portanto os perigos e os limites de uma imagem simbólica
abstrata, destituída ele prudentes suportes interpretativos, o fascis-
mo optará por aquela que, em termos mais gerais, constituirá a pró-
pria peculiaridade cultural: uma hábil e pragmática articulação da
imagem sobre a realidade social em movimento. Isso não exclui que
a imagem do efebo faça alguma aparição pontual no decorrer elos
vinte anos, conforme acontecerá sobretudo por ocasião de mani-
festações com altO valor celebrativo, mais disponíveis para a pre-
sença ele imagens com forre potencial simbólico.
Por exemplo , uma ocasião foi a Exposição Universal , progra-
mada para Roma e jamais realizada por causa da guerra: a famosa
E 42, que devia celebrar as glórias da " Terceira Roma", a Roma de
Mussolini.22 Diante do Palácio dos Uffici, o escultor Italo Grisselli
fora encarregado de " representar um jovem" de proporções impo-
nentes: uma estátua de mármore de dois metros, colocada sobre um
alto pedestal. Assim, a versão definitiva apresentará um jovem atle-
266 11/STO RIA i>OS ]OI'E.VS

ta nu , retesado na saudação romana: na base, a inscrição Roma ae-


terna reiterava com redundância caprichosa o significado do gestO.
Apesar desse evidente mecanismo interpretativo, apesar do gesto
que devia exprimir a disciplina fascista do jovem que "bebe a pala-
vra de outrem", 23 as oscilações que acompanharam a escolha elo
título do monumento indicam as dificuldades relacionadas com es-
se tipo de representação (fig. 4). O primeiro título proposto pelo
artista permanecera prudentemente restritO a uma leitura em primeiro
plano do tema tratado: GIL, Gioventu italiana de! Littorio [A juven-
tude fascista], um argumento com o qual o escultor já tivera opor-
tunidade de confrontar-se. 24 O título que, por seu lado, a direção
da mostra escolhera se ligava mais diretamente à vocação totalizan-
te do símbolo: O gênio do fascismo. Título que, depois ela guerra,
foi prudentemente mimetizaclo, recorrendo-se ao menos compro-
metedor Gênio do esporte.
Ao contrário de outras representações ela juventude, o efebo
teve acesso ao espaço seletivo e fortemente codificado ela pintura,
justamente pela adaptabilidade e pelo caráter atemporal desse tipo
ele imagem. Por isso, ele será reencontrado, coberto com os atribu-
tos mais ,·ariaclos, em especial onde a pintura se propõe a recalcar
as pegadas da retórica e elo epos. Funi, por exemplo, mas sobretu-
do Sironi, ,-o itará a propor essa imagem arquetípica contextualizan-
clo-a em cenários arquitetõnicos arcaizantes c solenes. O efebo se
tornará, sucessivamente, O atleta, O construtor ou, com um valo r
ideológico mais cleclaraclo, O trabalho, que encontrará sua própria
vocação social nas paredes ela v Trienal ele Milão 2 5 (fig. 5).

OU[ra personagem que penencia à mesma categoria dos gran-


des símbolos do regime será encontrada, inesperadamente, na xx
Bienal de Veneza de 1936.
liavia vários anos, Maraini, escultor e comissário nacional do
Sindicato Fascista das Belas-Artes, nomeado em 1927 para a presi-
dência da Bienal, introduzira no programa ela exposição uma seção
reservada para obras "que tratem elos vários aspectos ele nossa vida
familiar e política" .26 Naquela ocasião, o secretário do partido , Au-
gusto Turati, pretendera definir de modo mais preciso o significado
dessa decisão, propondo um prêmio reservado às obras que sou-
bessem "trazer à luz aquela arte contemporânea que todos espera-
O Jf/TO D.-'1 JUVEN TUDE TR.-lNS.\f/TWO PELA 1.1/AGE.\/: O FASC/5.110 ITAI.IAXO 267

mos [... ] a sensibilidade moderna [...] nossa, elos italianos fascistas


elo regime mussoliniano". 27
Não obstante as solicitações, as salas da Bienal revelaram uma
adesão escassa a tal tipo ele "sensibilidade moderna" . Contudo, na
edição de 1936, Maraini podia saudar com um longo artigo " o re-
torno da arte à viela". No salão central do Palácio ela Itália, destaca-
vam-se de faro o Busto de bronze de Mussolin i, obra de matriz fu-
turista ele Ernesto Michaelles, o Thayath, e também uma escultura
menos "sintética" e "essencial": a "poderosa massa de um atleta
impetuoso, imagem do fascismo em marcha". 28

O ATLETA, SfMBOLO DO "ESTILO FASCISTA"

O fascismo em marcha era de fato o tírulo com que o escultor


Domenico Por1Zi apresentava um enérgico, musculosíssimo corre-
dor (fig. 6). Nenhum sinal particular, exceto a intenção enunciada
p elo título, predispunha a obra para uma simbolização tão engaja-
da, dificilmente legível sem o suporte elo título e elo contexto expo-
sitivo. Malgrado a relativa rudeza da obra, essa escultura exprimia
um interessante momento ele transição iconográfica: isto é, quando
a representação do efebo, símbolo que se adaptava com dificulda-
de aos diversos níveis de significação exigidos, encontrará uma ima-
gem substitutiva na representação elo atleta "em situação". Graças
a uma forma de substituição metonímica, o que constituía um sim-
ples atributo conotativo tornar-se-á o elemento constitutivo elo pró-
prio símbolo, permitindo assim uma leitura mais fácil.
O exemplo mais notório dessa promoção simbólica da figura
do jovem atleta é certamente a legião de atletas ele mármore que
coroam os degraus elo Fórum Itálico em Roma, obra elo arquiteto
Del Debbio (fig. 7).29 Que os famosos nus, que provocaram uma pu-
dica e discreta intervenção ela censura, pudessem faci lmente assu-
mir significado simbólico mais amplo é demonstrado pela presença
deles no interior elo chamado "Fórum Mussolini ", opus magnum,
que devia evocar os faustos ela Roma imperial através da linguagem
plástica elo fascismo . Porém, essa árdua função não impedia que sua
primitiva vocação esportiva fosse caprichosamente sublinhada por
uma panóplia de esquis, raquetes, bolas, que evidenciavam em ter-
mos inequívocos a identidade daquela assembléia esportiva.
268 HIS TÓRIA DOS )OI'H:\

Foram os anos em que o tema do esporte assumiu uma rele-


vância particular no interior do discurso escrito ou figurativo do fas-
cismo. É notória a importância que, especialmente no decorrer da
década de 1930, a política de massas do regime atribuiu ao esporte
enquanto fator de enquadramento e de formação do italiano do fu-
turo. "Do fascismo força viva - É a prática esportiva" :3° o espor-
te tornou-se, principalmente na exasperada ritualização da época de
Starace, sinônimo de estilo de vida, " modo fascista de conceber e
de lenr a vida( ... ] de formar o caráter fascista".3 1 O esporte como
mítico bain de jouvence teria para isso reunido jovens e menos jo-
vens além de, malgrado algumas reticências, algumas restritas fai-
xas etárias do sexo feminino. Os filmes Ll!CE desse período nos
transmitiram uma infinidade de imagens de jovens e de maduros sal-
tadores e corredores os quais, deixando as roupas burguesas, se trans-
formavam nos celebrados atletas de um dia.
Se "o passo dos jovens deve ser de uma celeridade elástica que
exprima a energia, o atletismo e a perfeita sanidade física" ,3 2 "des-
filar correndo" não constituía apenas uma tonificante prática despor-
tiva. Aí poderiam ser encontradas implicações bem mais compro-
metedoras: "Na corrida não há somente a velocidade e a realização
da harmonia na velocidade, mas também está representado o sím-
bolo do movimento da ação rápida, da impossibilidade ele deter o
fascismo " .33
A ductilidade do discurso fascista seguid assim essa "esporti-
vização" geral até nos meandros do mais ingrato dia-a-dia, chegan-
do a conferir uma nova imagem "dinâmica e viril" até mesmo ao
insosso , nada heróico funcionário público, dado que, na era fascis-
ta, "emprego não quer dizer vida de pijama", tampouco "existên-
cia acomodada, a odiosa vida mansa dos organismos flácidos" . Ao
contrário, o jovem fascista "muito distante da mentalidade da sine-
cura c das rendas fixas" saberá oferecer à imagem deteriorada do
funcionário "a plenitude da juventude, a vontade de fazer, um mo-
do ágil, dinâmico", dado que "as horas do escritório não envelhe-
cem, não fazem estagnar o sangue nem relaxam as energias" .' 4
A imagem participou com entusiasmo, e com indiscutível su-
cesso, para constituir essa lisonjeira auto-representação do novo ita-
liano, dinâmico e musculoso, convidado a renovar as frustrações
cotidianas e nacionais graças à presteza e combatividade do mode-
lo esportivo. A fotografia, fixa e em movimento (já se fez referência
ao poderoso instrumento de propaganda representado pelos filmes
O ,1/ITO {)A ] UI'T:NTU{)F: TRA.VS.I/IT{f)O PELA 1.\IAGE.If, O FASC/S.\10 ITALIA.\'0 269

LUCE) , foi assim amplamente solicitada a mostrar as glórias esporti-


vas, profissionais o u adventícias dos italianos " jovens de corpo e
de espírito" . O futebol, o célebre calcio nazíonale, mais ainda que
o ciclismo (outro esporte com vocação popular), tornou-se num país
com escassas tradições no campo ela ginástica e elo desporto um fone
fator ele identidade nacional. Fenômeno que se demonstrou parti-
cularmente notório no final elos anos 1930, quando, após uma série
de vitórias futebolísticas internacionais ela equipe nacional, o ·im-
pacto emotivo de um povo pouco praticante mas profundamente
"torcedor" foi amplamente utilizado como cimento fácil para a cons-
trução de mitOs nacionais bem úteis.
Além da fotografia, uma miríade de imagens com diferentes es-
tatutos se transformou em veículo complacente dessa mitOlogia na-
cional tão acessível. Dela se fez intérprete sobretudo a imprensa
juvenil, em que o modelo esportivo assumiu uma clara função di-
dática, enquanto veículo de transmissão privilegiado ele valores ca-
ros ao fascismo: a exaltação da presteza física e da autodisciplina,
o valor agonístico elo empenho fís ico, a importância relaciona! do
grupo , do qual o futebol representava o modelo forte . As capas ele
Gioventu Fascista, revista sob a responsabilidade direta de Starace,
apresentaram portanto uma vasta galeria ele jovens atletas empenha-
dos de diferentes maneiras: ao pé da página, invariavelmente, uma
frase ele Mussolini destacada com letras garrafais, à guisa de escrita
monumental, trazia à imagem a certeza axiomática da palavra que
indicava no dever e no combate a verdadeira essência da "prática
desportiva" (fig. 8).
Evidentemente, "o espetáculo de uma juventude forte de espí-
rito e de músculos" podia constituir matéria facilmente visualizá-
vel, que teria permitido fazer passar mensagens de conteúdo bem .
mais engajado, dado que "a prova claríssima do vigor ela estirpe", 35
expressa através elo esporte, teria encontrado uma vasta audiência
nas teorias raciais que viriam a afirmar-se por volta do final elos anos
1930.
Também a pintura e a escultura foram inesperadamente cha-
madas a exprimir na linguagem culta c solene da arte "os cuidados
apaixonados que o regime dedica a esse ramo da atividade huma-
na" .36 Por ocasião da Quadriénal romana de 1935, fora cuidadosa-
mente encaminhada a idéia de propor aos artistas defrontar-se com
um tema, relativamente pouco vinculador, mas de indiscutível atua-
lidade: "o esporte visto ao longo da arte ele seu tempo" . Não se dei-
270 IIIS TÔRh1 DOS J OVENS

xara de sublinhar "o caráter esportivo das artes grega e romana" :


sagazmente, a esses ilustres precedentes tinham se referido alguns
dos escultores que haviam enfrentado o tema propostO, co nscien-
tes ele que toda alusão à romanidade constituísse uma panacéia efi-
caz diante dos embaraçosos pedidos do regime. Fontana apresenta-
ra um Atleta em repouso, Maraini, um pugilista, enquanto Romano
Romanelli conara decididamente os laços com o presente e expu-
sera um Hércules que destroça o leão .
Mais delicada a posição dos pintores, pouco motivados a
mensurar-se com o mito da romanidacle. De fato, não tinham sido
muitos os que haviam respondido diretamente ao convite. Além de
tudo, como se verificava, muitas vezes " em vez do elemento espor-
tivo" os artistas pareciam privilegiar " o nu masculino ou feminino" ,
com o resultado ele modifica r o corpo elo suposto atleta " em fun -
ção ele um banhista ou de um pescador" .37 Dentre os poucos co-
rajosos que assumiram de frente o tema proposto, vamos encon-
trar Carrà, com um irrepreensível jogo de futebol (fig. 9). A abstrata
volumetria das habituais personagens familiares ao universo poéti-
co ele Carrà cede lugar aqui a uma dedicada pontuação representa-
tiva. Representação em equilíbrio precário quanto à linha demarca-
tória que, no período elo século XIX, se p retendera traçar entre " a
representação elos eventos ele nosso tempo" e " a verdadeira gran-
de arte" que era convocada a transpor " os fatos materiais e efême-
ros para o campo das imagens duradouras e espirituais". 38
Contudo, era à " arte verdadeira" que, em geral, se confiava o
privilégio de transmitir as grandes mensagens do regime, expressas
por meio da linguagem solene do símbolo " mantido sempre num
ritmo ele controlada e grandiosa aristocracia de pensamento e for-
ma" .39 Assim, caberia perguntar (e certamente essa interrogação de-
ve ter sido feita quando a resposta supunha uma escolha de estraté-
gia cultural) até que ponto a representação de um acontecimento
contingente e ocasional como um jogo de futebol poderia ser reve-
ladora daquilo que Panofsky chama ele "simbolismo encoberto" ela
imagem. Portanto, até que ponto teria sido possível, por meio do
evento esportivo, "rornar palpável o conceito" 40 e fazer do espor-
te "o elemento ele regeneração física e moral da raça" .41 Porém , o
tema do esporte tinha a indubitável vantagem de ser portador ele
uma mensagem clara e ele fruição imediata, facilmente adaptável ao
destinatário social. A rapidez, a eficiência, a boa forma física que
estavam na base do mito esportivo podiam tornar-se suportes efica-
O M/1"0 UA}Ul't::NTUDJ:: TRANSMITIDO PEU l.lfAGF..If, O FASC/S.IfO ITALIANO 271

zes para designar " o jovem Estado fascista", dinâmico c " moder-
no": transferência usada freqüentemente pela imagem publicitária.
O esporte estará presente da mesma forma nos numerosos periódi-
cos dedicados às mulheres e às " mães da Itália" : modelo insistente-
mente proposto de pedagogia saudável e de higiene familiar.
Para os mais jovens , as atrações e as gratificações da vida es-
portiva tornaram-se um motivo recorrente no âmbito da rica pro-
dução da imprensa juvenil, cuiclaclosameme calibrada segundo a ida-
de e o sexo do destinatário. Para o vasto público de Balilla (jornal
"elos jovens ela Itália" sob a égide da ONB), será assim o emblemáti-
co Lio, petulante e ousado bati/la modelo, que saberá representar
com eficácia, por meio da simbolização essencial e primária ela his-
tória em quadrinhos, as vantagens que a vida espartana em acampa-
mentos podia trazer para uma estirpe vigorosa: " Grita Lio: 'Nossas
fileiras/ feitas são de meninos fortes: sabem dormir em cama de pre-
gos/ depois de fazer os deveres!"' _32
Para as meninas, ao contrário, as vantagens eram apresentadas
em termos menos peremptórios. A Piccola I taliana, "jornal dedi-
cado às moças e às meninas ela It~!li a", oferece de fato uma imagem
esportiva mais fugi dia e discreta, pois as " moças" e as "meninas"
devem ser "saudáveis, fortes e belas" , mas sem renegar a própria
vocação doméstica e familiar. Os fatais saiotes pretos plissados do
uniforme serão encurtados ou alongados pudicamente conforme as
necessidades da ginástica, limitando-se sempre às modalidades rít-
micas ou atlética ligeira "que melhor se adaptavam" às meninas c
às adolescentes (fig. 10). No final da década de 1930, podemos roda-
via constatar, para as " pequenas" e " jovens" italianas, uma roupa
mais desenvolta, mais adaptada à prática desportiva: em conseqüên-
cia, surgem na imprensa feminina algumas elegantes nadadoras de
maiô. Devido à provável influência das colegas alemãs, mais desini-
bidas por seu enquadramento nas Hitler-]ugend , mas também ao
faro ele, na Itália, aumentar o peso do eugenismo biológico oficiali-
zado pela política racial, a partir de 193 7, e especialmente uma no-
va orientação na política juvenil em geral (e feminina em particular),
que se afirmou com a criação da G IL , como faria supor o material
iconográfico do período. Hipótese que deveria ser verificada por
meio de um estudo mais aprofundado.
272 HISTÚRIA DOS}OI'ENS

A ITÁLIA FASCISTA: A JOVEM GUERREIRA

Era igualmente feminina a representação que, pelo seu alto va-


lor simbólico, constitui o homólogo (ou o duplo feminino) elo pou-
co afortunado efebo: a mulher jovem, monumental e garbosa, fi-
guração do emblemático b inômio fascismo - nação . Para além ele
qualquer contingência histórica, é notório como essa imagem obte-
ve grande sucesso e pode ser enconrrada, com algumas variantes
iconográficas, sob as vestes ele protagonista ele uma simbologia na-
cional bem mais ampla.43 Na simbologia fascista, a jovem que, des-
prezando toda moda efêmera, veste-se solenemente com nobres dra-
peados, a cabeça cingida pela coroa em forma de torre, foi antes
de mais nada a Itália: "Mamma Italia" que, protetOra e materna, te-
ve grande êxito no universo elas imagens infantis (fig. 11). Mas ela
podia (e devia) mostrar-se orgulhosa e combativa quando fosse ne-
cessário, tranqüilizadora por sua força e determinação diante ela agres-
siva prepotência estrangeira.
Esse tipo ele representação emerge naturalmente por ocasião
das "iníquas sanções" o embargo econômico decidido pela Socie-
dade elas Nações depois da Guerra da Etiópia. Na Rivista Illustrata
del Popolo d 'Italia vamos encontrar, por exemplo, a Itália evocada
oportunamente por Sironi. Seu corpo monumental se ergue para im-
pedir a passagem de um bando de personagens torpes, " traficantes
contumazes, habituados a roubar no peso [... ] expressões cúpiclas
de negócios, amareladas pelas moedas esterlinas [... ], os hálitos fe-
diam a loja, a drogas, a petróleo". No centro, uma Itália empunha
ameaçadoramente a espada, enquanto com a outra mão sustenta um
raquítico ramo ele oliveira apoiado no colo: "Deixai o símbolo da
paz onde ele pode augurar a fecundidade: na mão está melhor a es-
pada que corrige os pastores"44 (fig. 12).
Essa fone imagem feminina é adaptada, com pequenas varian-
tes iconográficas, a uma versão mais agressiva e guerreira, tornando-se
o modelo das inúmeras Vitórias aladas, que celebram as glórias do
regime. A representação ela Vitória rorna-sc um topos celebrativo do
qual a escultura se fez intérprete condescendente por meio do mo-
numento público com alto valor simbólico. Os exemplos são incon-
táveis : poder-se-ia citar a imagem alada esculpida no frontão do mo-
numento à Vitória, erguido por Piacentini em Bolzano; 4' ou então
a colossal estátua da Vitória erguida no Parco delta Rímembranza "

(•) Parques dedicados aos heró is do Risorgimel'lto (unificação política da Ttá·


lia, 1870) e que existem em vár ias c idades. (N. T .)
O .11/TO DA ]UI'ENT/JDE TRASS.\1/T/DO I'EL~ 1.\JAGD/: O F.-iSC/SJ/0 !TAJ.IASO 2 73

de Turim, pelo escultor Rubino, exemplo precoce de um modelo


representativo recorrente no curso dos anos 1930.46 A imagem da
deusa alada não podia faltar entre os redundantes símbolos figurati-
vos aos quais recorria a grande exposição da Revolução fascista de
1932. Nesse contexto, a Vitória assumia uma conotação precisa: ela
era de faro "a Itália armada ... rude e vigorosa, tensionada como no
ímpeto de um vôo' ' ,47 momento forte do percurso demonstrativo
da exposição focalizada ao redor da identidade Itália/fascismo . Si-
roni impôs a sua presença no centro da Galeria dos Fasci, com uma
gigantesca escultura de cinco merros. 48 Marino Marini traduziu em
linguagem plástica um símbolo que se pretendia denso de significa-
dos, dado que a Vitória italiana da Grande Guerra devia ser o signo
da continuidade do fascismo com a história nacional, e igualmente
exprimir "a pureza simples e heróica de nossa estirpe eternamente
jovem contra certos cerebralismos doentios e artificiais das raças de-
cadentes"49 (fig. 13). É ainda possível citar um curioso exemplo de
interpretação " militante", um símbolo condicionado em geral por
uma rígida codificação formal. O Monumento à Vitória africana,
nascido no " clima do Império " e das guerras coloniais, é obra ele
um jovem c desconhecido artista dos GUF de Roma. Reproduzido
em página inteira na Rivista Illustrata del Popolo d'Italía,50 o mo-
n umento é proposto com ênfase à "juventude guerreira" enquadrada
nas estruturas juvenis do regime. A escultura, colocada no interior
da Universidade ele Pavia, confirma em termos inequívocos o tipo
de destinatário a quem se dirige a mensagem. Expressão de um en-
tusiasmo militante antes de ser uma inteligente manipulação do sím-
bolo, a deusa alada parece perder, nesta circunstância, a hicrática
solenidade habitual, para assumir o aspecto de uma frágil adoles-
cente cingida por uma saia hiperbólica, com os cabelos ao vento.
No braço dessa moderna e irada Diana, a linguagem alusiva do sím-
bolo se materializa através da presença de um ameaçador fuzil car-
regado com um roque esportivo, sem esquecer um dissuasivo f as-
cio romano (fig. 14).
Graças à adaptabilidade elo símbolo, a imagem feminina da Vi-
tória poderá, num contexto cultural diferente, encontrar seu papel
originário: abandonando assim o impulso alado c o aspecto guer-
reiro, vamos reencontrá-la, solene e majestoso símbolo da Itália fas-
cista, legitimando com a própria presença a retórica solene da pin-
tura mural, dispositivo essencial para atestar a vocação "nacional"
da grande arte fascista. A Itália de toga presidirá portanto, ad hono-
274 HISTÓ RIA TJOS } Ol'eNS

rem, a solene assembléia , sob a forma de um afresco de 1935, exe-


cutado por Sironi no salão de honra da Universidade de Roma (A
Itália entre as artes e as ciências)5 1 Sím bolo ela nação, que a ima-
gem devia representar por meio de um d ifícil compromisso semân-
tico, concentrando numa única imagem os signos ele uma dupla iden-
tidade·. Nação " juveníssima" se auroproclamava de fato a Itália que
busca,-a suas origens no miro· primordial da " Revolução". Porém,
ao mesmo tempo, nação herdeira de um passado distante que, além
da ' ·romanidade", mergulhava as próprias raízes em espaços tem-
porais incertos, que serviam de base para fo rjar o mito ela " estirpe
itálica".

O POVO "]OVE1vf E PROLÍFICO"

Símbolo de juventude , o povo italiano, segundo a representa-


ção pretendida pelo regime, graças à notória ta urologia fascista, era
o bviamente " jovem'' e , em conseqüência, vital, agressivo e prolíüco.
Eficaz simbolização no nível do imaginário social dessa " juven-
tude" que devia envolve r toda a coletividade, e ra evidentemente
" a bela famíl ia italiana" , " sólido e vital conjunto " do Estado fascis -
ta, objetO, como é sabido, elas "atenções dedicadas" elo regime e
sobretudo de uma insistente campanha demográfica, tendo como
base o axioma de que "o destino elas nações está ligado à potência
demográfica'' _' 2
No nível do disc urso político, a " juventude" elo povo italiano
era identificada com as opiniões expansionistas do fascismo. As ra-
zões ele um " destino histórico" encontravam uma tradução mais atual
na miragem elos " espaços além-mar" que espe ravam um povo " jo-
vem e prolífico" e, em conseqüência, muito numeroso.
A image m desempenhou um papel ele notável eficácia nessa li-
sonjeira obra de auto-representação nacional. Em tal construção ele
um imaginário cole tivo preferia-se, em relação às refe rências cultas
ela grande eloqüência, uma ampla amostrage m de imagens que ape-
lavam de modo diretO para uma sensibilidade " difusa" , para códi-
gos culturais de ampla divulgação, extraídos diretamente da mito-
logia cotidiana e familia r do italiano re al.
Assim, assistimos a uma proliferação de imagens que participam
sem reticências dessa epifania ela exuberante procriação nacional:
" ninhadas" ele crianças (de preferência fardadas) disponíveis frente
() ,11/7'0 VA j UVENTUDE TRA.VS.11/TmO PEL4 fJfAGEJf, O FASCIS.110 fT.~LfASO 275

à mensagem política, mas não avessas à mensagem publicitária (fig.


15); fotografias de grupos familiares numerosos que retomam,
adaptando-o sem dificuldade às exigências oficiais, o culto tão mar-
cadamen te italiano das "forografias de família" que celebram em gran-
de estilo, expostas no bufê da casa, as glórias domésticas de uma
"estirpe" com fortes tradições familiares. Alguns uniformes para o
pai e em especial para os "rebentos vigorosos", faze ndo pose com
ostentação. Os avós inevitáveis, registro do caráter irremovível da
tradição familiar alargada e aqui símbolo da passagem de gerações
(a meia-idade é rigorosamente proscrita pela juventude cristalina ela
estirpe). Mas em particular a continuidade do tempo, que a presen-
ça dos anciãos evidencia em termos simples e famil iares, permite
à imagem concentrar num símbolo de consumo fácil a complexa
noção ele continuidade de uma estirpe "jovem" e ao mesmo tempo
"antiquíssima": "estirpe trabalhadora e guerreira que recebeu co-
mo herança elos últimos ancestrais, ligado ao arado de Rômulo, o
fuzil garibaldino " .53
Q ue a incessante campanha demográfica insistisse não só so-
bre os incentivos econômicos, mas também sobre o prestígio pro-
dutivista das " belas famíl ias italianas" , é comprovado pela ênfase
com que era valorizada a p rocriação, que a imprensa do período
celeb rava por meio ele inúmeras fotOgrafias que testemunham a ine-
xaurível prolificicladc da estirpe.
Se a imagem se revela um suporte extremamente válido, o clis-
curso escrito demonstrará uma força semelhante, como testemunha,
por exemplo, a carta enviada "por um colega alemão" ao feliz pai
romano de vinte filhos (o Duce havia mandado uma "mensagem ele
simpatia à mãe p rolífica"). 54 Outro testemunho, " as confidências
de uma dedicada mãe de dez fil hos'', a dona de casa da aldeia de .
Cicognolo "que teve 12 filhos, elos quais dez vivos, exuberantes.
Ninhada de vanguardistas, balilla, pequenas italianas, filh os ela
loba" .55
A metáfora da terra que remete para uma fertilidade saudável
certamente nã.o é exclusiva do discurso, escrito ou figurativo, do
fascismo. Contudo, a imagem ela fam ília rural como arquétipo que
serve de referência para todo o corpo social assume durante os anos
1920 uma arualiclacle particular, pela realidade social italiana e pela
importância elo ruralismo no interior da ideologia fascista.
A famíl ia " popular e rural", portanto, raça prolífica e vigorosa,
expressão "genuína e pura da raça", símbolo dúctil c de fácil aces-
276 IIISTÓRI/1 DOSJOVE:VS

so da validez de um modelo social que reúne ele modo feliz a pro-


dução de filhos com a do pão, "fruto ela terra", assumido enquanto
símbolo de mobilização nacional com a " batalha do trigo" .
"Trabalha e canta" - declamava Manlio Pompci, notável fascista c
escritOr bissextO. - "Necessitamos daquele canto não menos que elo
trabalho [...] e aquele teu cantar chega até a casa onde a esposa c os
filhos esperam e mantém vivos durante o clia inteiro os laços ela tua
bela família[ ... ). És e continuarás a ser o rei dos campos .abertos [... ]
com a límpida fonte para a secle, o perfumado pão para a fome: c os
filhos que enxameiam ao teu redor, complemento vivo da tua riqueza
não abundante, que te compensam de toda penúria e de toda conti-
nência." 56
Este mítico Eldorado familiar foi naturalmente adaptado para
uso dos mais variados destinatéhios:·a juventude de todo um povo
se exprimiu com redundância repetitiva em uma profusão de ima-
gens ele felizes semeadores ou colhedores, fixados no gesto gene-
roso ou sentados "à mesa familiar". Tema de consumo fácil em que
o exotismo social se adaptava bem ao universo da infância, mas igual-
mente ao elos menos jovens.
Citaremos uma vez mais a persuasiva melopéia, escrita e ilus-
trada, dos quadrinhos: " Há o uro nas vísceras da terra e cem grãos
rende um único grão (... ]. E q uanclo os belos sulcos no terreiro/ hão
ele espalhar faíscas de ouro,/ ceifa cantando! O cansaço é alegre,/
e bendito o fruto elo trabalho " ,57
A partir de 1935, encontraremos este mesmo povo jovem, cheio
ele fi lhos e com alguma bagagem, sempre festivo e exuberante, que
agita os braços numa despedida, amontoado no passadiço de um
navio . As fotografias, que a imprensa traz com grande destaque, mos-
tram-no a ponto ele abandonar a Itália para alcançar, " no além-mar",
a terra prometida pelo Império (fig. 16).

A COMUN ICAÇÃO FIGURATIVA: PL URALIDADE D E REGISTROS

É inegável que, no nível da imagem " culta", pintura e escultu-


ra não podiam senão exibir uma circunspecta cautela ao negociar
os privilégios de seu próprio estatuto com aquela "sensibilidade mo-
derna " diante ela " realidade ela Itália fascista", que reclamavam os
exegetas da "arte fascista" .
O .1111'0 L!A jUVEN TUD E TRA ,\ 'S.IIITIDO PEU /JHGEJ/, O FASC/S.I/0 ITAUASO 277

Serão assim as faixas intermediárias ela produção pictórica ou


plástica, em cujo âmbito a obra era contrária a negociar a qualidade
estética com a disponibilidade "militante' ', que se revelarão parti-
cularmente predispostas a formas ele simbolização menos alusivas,
menos inibidas diante da etiqueta formal própria ela obra com ele-
vado estatuto cultural. Fará parte dessa categoria intermediária a
produção mais diretamente ligada às novas estruturas artísticas do
regime; p rodução que se insere diretamente no vastO tecido elas ex-
posições sindicais, regionais e nacionais. No interior dessas estrutu-
ras que se autoclefiniam " militantes", o exemplo mais conhecido
era o p rêmio Cremona, criado por Farinacci, em 1939, " primeira
tentativa de chamar os artistas italianos para a realidade histórica ela
era mussoliniana". ss
O tema obrigatório, que vinculava com argumentos ele inequí-
voco enfoque fascista, levava os artistas a medir-se com a presença
incômoda de uma " realidade histórica" rica de elementos ideológi-
cos implícitos. A adesão a tal realidade exigia uma dosagem aten;,"a
entre o aspecto contingente e descritivo da Itália mussoliniana e .:)ua
tradução simbólica. Operação conduzida com relativo sucesso por
ocasião das duas primeiras edições ela mostra, tendo como tema a
' 'Audiência pelo rádio elo discurso do Duce" (1 939) e a "Luta pelo
trigo" (1940). As duas exposições haviam propiciado um exagero
de imagens celebrativas que exaltavam a "era mussoliniana" por·meio
da representação ele um povo obviamente jovem enquadrado den-
tro ele fa mílias sólidas e protetoras (rurais em sua quase totalidade)
(fig . 17). A complexidade elo "difícil encontro entre arte e celebra-
ção"S9 revelou-se com particular evidência na terceira edição ela
mostra, que tinha corno tema a GIL, " um dos mais nobres e tam-
bém u m dos mais complexos" .60 Até os mais irredutíveis apoiado-
res da exposição não puderam deixar ele sublinhar o faro de que
os artistas não souberam evitar cair " no ilustrativismo genérico";
ou , pior ainda, que "muitos tenham errado a mão, permitindo que
dominasse o gosto grosseiro e a retórica; outros se revelaram con-
ceitualmente pobres, em especial no que concerne à 'moral', e,
enfim, alguns tentaram ilustrar a atividade desportiva da GIL, que
enquadra os vigorosos jovens do fascismo, demonstrando não ter
nenhuma noção esportiva", chegando a ponto de representar jo-
vens eliscóbulos " que parecem bonecos raquíticos" .61
É claro que justamente a universalidade de alguns temas, co-
mo o da família, podia justificar a presença do mesmo assunto em
278 HISTÓRIA D OS jOVENS

diversos níveis de representação: motivo de mobilização ideológi-


ca em nível " militante", mas igualmente, num contexto cultural di-
verso, suporte de valores estritamente formais. De fato, o tema da
família, que durante o fascismo assumira um forte valor ideológico,
podia do mesmo modo fazer valer um irrepreensível estatuto cultu-
ral, tendo como base uma ilustre genealogia que apropriava-se dos
grandes modelos do passado. Modelos que serão habilmente evi-
denciados no discurso crítico.
A f amília de Sironi, exposta na Quadrienal romana de 1931,
será definida por Sarfatti "grandiosa como um fragmento ele pintu-
ra amiga" .62 Fora do contexto expositivo, que lhe garantia o esta-
tuto cultural, o arcaísmo aremporal ela obra podia abandonar a co-
notação eminentemente estilística, para tornar-se suporte ele uma
mensagem, simples e essencial, baseada na retórica ele modelos pri-
mários fixados com eficácia demonstrativa através ele personagens
arquetípicos, irremovíveis e "eternos" (fig. 18).
Não se pode deixar ele sublinhar de novo a extraordinária ri-
queza e variedade das imagens que participaram ela construção do
mito ela esplendorosa juventude do fascismo. Tudo isso exigia, co-
mo se viu, uma adaptação elo símbolo em relação aos diversos tipos
de imagens examinadas. Assim, o símbolo ela juventude se fragmen-
tou numa miríade de imagens de natureza diferente que acompa-
nharam durante vinte anos a vida cotidiana dos italianos.
Isso não excluía a necessidade de recorrer a formas de simboli-
zação rotalizames, capazes de reunir sob um único signo o fascismo
e a juventude. Símbolo, ponanro, que soubesse exprimir etkazmeme
tal iclenticlacle, sem que a metáfora visual tornasse obscura a quali-
dade da mensagem. Mas necessitava sobretudo de um símbolo que
oferecesse uma disponibilidade de registros a ponto de poder en-
volver simultaneamente os freqüentadores da imagem ''alta" e aque-
les a quem, ao contrário, se dirigia a variegada produção da ima-
gem " ele massa".

O DUCE, "O MAIS ]OVEJv! DE TODOS NÓS"

A partir da década de 1920, baseando-se num projetO preciso


do departamento de imprensa de Mussolini, o "culto ao Duce"
tornou-se um dos mais importantes temas de mobilização nacional.
O .\fiTO {)A .fill'F.N TU{)F: TR1L\'S.lffTff)O PF:lA 1.\f,IGE.lf, O FASC/S.\10 ITALf,INO 279

Contudo, foi no decorrer ela década ele 1930 que, ao redor da ima-
gem elo Duce, se estruturou uma operação ele propaganda de gran-
des proporções e com uma articulação sem precedentes . Uma or-
questração atenta e .meticulosa conduziu portanto à transformação
da imagem do Duce em objeto de culto 6 3 Imagem onipresente, ca-
rismática e ao mesmo tempo familiar e tranqüilizadora, a obcecante
repetição dessa presença não exprimia somente a homenagem e a
veneração frente ao chefe. "A esmagadora, predominante e domi-
nante figura do Duce" tornava-se de fa to um acessível suporte in-
terpretativo que permitia concentrar num símbolo visual, evitando
qualquer perturbadora mediação conceitual, a imagem do próprio
fascismo. A espetacular exposição da Revolução fascista ele 1932 pu-
sera em evidência sobretudo "a unidade espiritual Duce - Itália -
Fascismo" .64 De faro , "a Mostra de/la Rivoluz ione é Ele: Mussoli-
ni. A exposição palpita inteira com sua presença invasora, que elo-
mina homens e coisas [... ], criações de arte e figurações simbó li-
cas"65 (fig. 19).
A "unidade espiritual " entre o Duce e o fascismo exigia uma
estreita concordância de e lementos conotativos: a juventude eter-
na do fascismo devia ser inapelavelmente a de seu chefe. Assim, so-
bre a imagem do Duce serão acumulados todos os atributos que a
"primavera ele beleza" podia o fe recer ao fasci smo: o dinamismo e
a força, o entusiasmo e a eficiência, a excelência física e o espírito
combativo e a udaz. "O Duce é o mais jovem ele todo nós. Maravi-
lhosa juventude a Dele!" 66 A "maravilhosa juventude" do chefe
constituía de fato o atestado necessário da juventude de um sistema
político que p retendia caracterizar-se pela novidade e pela juventu-
de dos próprios dirigentes. Mas sobretudo a juventude que a ima-
gem do Duce devia sugerir constituía um símbolo "c\esvinculac\o
do espaço e elo tempo" :67 juventude eterna, portanto atributo ina-
lienável do carisma do chefe; ao mesmo tempo, gratificante certeza
ela perenidade do fasc ismo .
É sabido como, por meio do discurso chegou a criar-se, em torno
ela imagem do Duce, um inimaginável florilégio de metáforas, de
despreocupadas e fantas iosas aproximações históricas ou literárias,
de líricas evocações e de místicos transportes. " O filho melhor ele ·
nossa grande mãe Itália" será, no .decorrer da operação, "o novo
Enéias", o "herói que supera os limites elo humano" . Inclusive os
profissionais da escrita participarão com entusiasmo dessa epifania
280 HISTÓRhl DOS JOVENS

mussoliniana. Por exemplo, o "sansepulcrista e futurista " l'v1ario Carli,


que versejava: "Mussolini, tela estendida ele todas as asas e velas nos-
sas/ Sumo ela viriliclacle que pode e deseja arrebatar". 68 Mais adian-
te, Mussolini será "o semeador";"[... ] e sua testa uma beleza enfei-
tiçadora/ trazia no sorriso matinal..." .69
Sem dúvida, a representação figurativa não podia deixar ele ma-
nifestar algumas dificuldades para acompanhar tais metáforas acro-
báticas sem cair no excesso e no grotesco. Tentou o ex-soldado Fer-
ruccio Vecchi, promovido a escultor, que pretendeu encarar uma
confusa alegoria pl~istica intitulada O Império salta da cabeça do
Duce. Sobre a cabeça do Duce que pensa ("Tem os olhos entreaber-
tOS ... mas por trás ela aparente calma da máscara, a potência mira-
culosa do espírito reduz vinte séculos a um dia, a um instante, para
abrir uma nova era"), salta o musculosíssimo Império, " tendo esca-
lado os degraus da mente ben'l construída" . Um temerário estrata-
gema retórico permite um audacioso desdobramento : "Também o
rosto elo Império se parece com o do Fundador: poderia ser dife-
rente?" Os dois rostos emblem~hicos têm as mesmas feições, ousa-
das c juvenis. O vigor físico ele um garante a presteza juvenil " da
mente" evocada com os traços distintivos do Duce: "Os lábios muito
pronunciados ele quando o Duce parece farejar eventos malignos,
os olhos ameaçadores, abertos, ou melhor, esbugalhados, fixados
no chão, sobre a realidade. E a espada é exibida para quem quer
e quem não quer vê-la, bem firme no punho extremamente forte,
síntese da nobilíssima decisão elo rosto"70 (fig. 20).
Serão estes os topoi que transmitirão a célebre tipologia mus-
soliniana: o maxilar "másculo e volitivo", a testa ampla, ''o olhar
magnético' ' . Código restrito a poucos e essenciais signos ele reco-
nhecimento, com acesso imediatO e geral, que permitirão concen-
trar no símbolo, fixando para sempre os signos imutáveis, a ima-
gem eterna ela juventude do Duce71 (fig. 21).

A JUVENTUDE FARDADA

Símbolo forte da nação inteira, a representação da juventude


assumia igualmente outro significado: reiterar e afirmar o papel da
juventude enquanto protagonista social e referente privilegiado do
regime ele cuja imagem propunha um modelo cuidadosamente co-
dificado e ritualizado. Modelo que era proposto diretamente aos jo-
O .1/ITO DA JUVENTUDE TRASS.\II TIDO PEV. 1.\IAGEJI. O FASC/S.\10 ITAUASO 281

vens por meio de uma intensa obra de pedagogia visual baseada es-
pecialmente nas inúmeras revistas e jornais que se dirigiam à juven-
tude italiana, " pupila e esperança do Regime" .
Uma série bem articulada de estereótipos intermediados pela
palavra - mas que se exprimia sobretudo na linguagem elíptica e
concentrada da imagem - tinha o escopo de definir, e de impor,
aquele enorme prontuário de modelos tipológicos que, enquadra-
elos pelo critério ela idade e elo sexo, formavam "as legiões" e "os
manípulos" da ON I3 (Opera Nazionale Balilla) e, depois ele 193 7,
da GIL (Gioventü Italiana del Littorio).
Uma vez mais a imagem se revelava particularmente apta para
abranger e sublinhar a especificidade das estruturas de enquadra-
mento do regime, fazendo-se instrumento de transmissão e ele mo-
bilização, que podia atingir com extraordinária capilaridade rodo o
corpo social. A representação da juventude italiana enquadrada pe-
lo regime levava sem dúvida a modificar alguns estereótipos impos-
tOS pela imagem na representação ela mítica juventude elo fascismo.
Mesmo porque na variedade de indivíduos que compunham a "ju-
ventude nova e guerreira" não se incluíam somente os jovens, mas
também as crianças: antevisã.o elo regime " que provê o amanhã"
ao forjar em tempo hábil a "grande, gigantesca forja de lutadores" 72
(fig. 22). De fato, " o regime e o Partido definiram para si a tarefa
de educar o espírito das crianças treinando-lhes o corpo e equipan-
do um e outro, gradualmente, para as exigências elo combate" .7 3
Nas colônias fascistas, " complemento ela família", as "vigilantes ma-
ternas [... ] educam fascistamente os tenros rebentos, viveiros ela
pátria" .74
Assim, a imagem procurará com indulgência, com a máxima be-
nevolência, esculpir tantos "borões de nossa estirpe fecundíssima",
remontando até os primeiros e míticos " filhos ela loba": os vigoro-
sos gêmeos amamentados pela fatídica loba de Roma, emblema da
ascendência romana elo fascismo (fig. 23). Uma surpreendente série
ele meninos de poucos meses (as meninas serão singularmente ex-
cluídas deste cerimonial), vestidos com a camisa negra e o indefec-
tível boné, expostos com o rgulho ao objetivo, irão estrear nas pági-
nas dos jornais, tradução convincente e doméstica da " perenidade
ela estirpe" , tranqüilizante " certeza da Itália fascista" (figs. 24-5).
282 HISTÓIIIA DOS }OI'E.VS

Contudo, o símbolo mais pertinente da juvenrude fascista "mag-


nífica , disciplinadíssima, arrebatadora", eram os balil/a que garan-
tiam ao fascismo, por meio do revezamento no "alistamento fascis-
ta", " o prodígio recorrente da juventude perene" .7 5 Descendente
do " heró ico garoto", o balilla dos bairros populares de Gênova que
a hagiografia do período ela unificação nac ional (1870) imortalizara
no ato de jogar uma pedra co ntra um oficial austríaco, ato audaz
que provocaria uma "vitOriosa insurreição popular" contra o
inYasor-6 (fig. 26). Com esse herói mítico se identificavam os halil-
la ele i\lussolini, " vestidos com o uniforme negro, com o boné ne-
gro enterrado nas cabecinhas caprichosas [... ], minúsculos mas in-
falíveis soldados" .77
A farda será cuidadosamente estudada e fixada entre o aspecto
travesso e exuberante do modelo inicial c o rigor militaresco adap-
tado "aos meninos e aos rapazes que já adquirem o perfil e a postu-
ra elo infante" 7H(fig. 27). Menos travessa e certamente menos guer-
reira, a farda das Pequenas Italianas, as "andorinhas ela It~Hia", com
aspecto sábio e discreto, referência a qualidades morais e cívicas que
sublinhavam bastante o pouco criativo e severo "saiote negro ", a
" blusinha branca", a boina na cabeça e as indefectíveis meias com-
pridas brancas.
O estilo mais reservado e doméstico do uniforme das Pequenas
Italianas (e dos uniformes femininos em geral) c sua nítida diferen-
ciação com respeita às fardas masculinas distinguem singularmente
o modelo fasc ista ela Alemanha nazista o u ela União Soviética, onde
os uniformes dos dois sexos parecem menos codificados em sua di-
versificação. É muito provável que a roupa fem inina, evidenciada
pelo uniforme, representasse o índice de interação ele duas linhas
ideológicas presentes na política de massa do fascismo. A referên-
cia familiar, com evidente matriz católica, que atingia sobretudo o
setor femin ino e, na outra vertente, reservada ao sexo masculino,
a mo bilização "guerreira" que, a partir de 1935, ganhará uma colo-
ração cada vez mais militarista. O mito das origens, levemente sub-
versivo, faz ia dos balilla , obrigatoriamente, uma geração de rapazes
audazes e destemidos, resolutos e corajosos, aos quais era dirigida
uma "educação viril que não se cristalize no cérebro", prontos "a
amar o risco e a ousar tudo" _79 Os heróis emblemáticos eram o ine-
vitável Lio, o valente Coração-de-Ferro, destemido balilla sempre
pronto para as aventuras mais audazes: " O pensamento c o ato são/
O .11/TO DA )Ul'E.\71JDE TR,IXS.IIITIDO /'ELA I.IHGE.I/ 0 FASC/S.I/0 ITALIASO 283

uma só coisa para ele,/ e em instantes ele voa/ entre as nuvens e o


trovão" 80 (fig. 28).
Muito habilmente, a imagem modulará esses modelos sugesti-
vos segundo a especificidade do receptor: um universo aventuro-
so, mas cuidadosamente transferido na essência da mensagem, para
os balilla mais jovens; para "os irmãos mais velhos", ao contrário,
serão evidenciados sobretudo os exemplos de dedicação c discipli-
na, o valor agonístico da vida desportiva, dos " treinamentos saudá-
veis" nos "acampamentos " ao ar livre: "Uma semana militar no
campo 'Dux', uma realidade que rem os reflexos do aço" .s 1
Porém, bem menos sugestivos eram os modelos oferecidos ao
sexo feminino: meninas e " mocinhas" serão rigo rosamente excluí-
das do universo aventuroso elos homens. Receberão como propos-
tas ele leitura obras exemplares, escolhidas com cuidado: Ninhos de
amor, O guia do infante, Vôo de borboletas, "novelas particular-
mente adequadas para senhoritas, modernas mas sem ter nada elo
ve1·ismo descarado que faz tão mal à juventucle" 82 (fig. 29). A ima-
gem, em numerosas publicações dedicadas a elas, tratará de eviden-
ciar com atenção as conotações positivas das pequenas (e jovens)
italianas: mulherzinha judiciosa e esperta executora dos " pequenos
trabalhos das meninas", pronta a cerzir as meias elos irmãos desem-
bestados e a ninar as bonecas, " mãezinha dedicada" ele futuros me-
ninos, e sobretudo "coadjuvando as boas mães na santa missão da
família" 83 (fig. 30).
A esse modelo edificante opunha-se a descuidada e irresponsá-
vel Carotina Zuccalessa, modelo negativo cuja incipiente frivolida-
de é estigmatizada com severidade nas páginas de ll Batiila, no qual
a encontramos às voltas com fruta roubada na cozinha: " Duas cere-
jas como cabelo/ é um efeito muito belo!".s4
De fato, também nos divertimentos a sábia Pequena Italiana não
se esquece do seu papel de futura dona de casa: " Pequenas Italia-
nas! Insistam com seus pais para lhes dar no Natal presentes úteis",
sugeria um réclame de uma empresa "especializada na indústria de
brinquedos de cobre e alumínio, reprodução ele artigos domésti-
cos"85 (fig. 31). Das Jovens Italianas, vestidas com o sóbrio unifor-
me branco e preto, a imagem destacava o papel discreto, pouco mar-
cial mas com indubitável eficiência tanto no interior do lar quanto
no âmbito das organizações femininas do regime. De faro, o fascis-
mo tornava-as "dignas de estar em sociedade, de viver uma vida in-
tensa ele trabalho c de política" cuja meta final permanecia, contu-
284 HISTÓRIIl nos JOVE.VS
do, a de serem acima de tudo " boa esposa, excelente mãe de famí-
lia, perfeita dona de casa", pois " nada é mais estético que a moci-
nha dedicada aos hum iIdes e necessários trabalhos domésticos". 86
Missão sublime, apesar da aparente domescicidade, dado que "as na-
ções, como os homens, formam-se nos joelhos das mães" 8 7

~ações guerreiras, como aquela que o fascis mo se propunha


a forjar insistindo sobre as estruturas de enquadramento da juven-
tude fascista "magnífica, disciplinadíssima, arrebatadora" .88 Esu·u-
turas que pretendiam ser ames de mais nada uma severa escola de
disciplina e de rigorosa formação militar: "Juventude que marcha
com passo marcial na ordem unida como se proviesse de longos ti-
rocínios de quartel (... ]. Soldados já preparados pela pátria e pelo
fascismo com a vontade formada para cocal obediência" .89 Impo-
nente obra de militarização que investirá uma ampla faixa etária, tor-
nando assim possível, ao longo ela passagem de gerações, o mito
da "eterna juventude" elo fascismo. Os balilla "futuros militantes
elo fascismo e soldados da Itália" são acompanhados " radiantes de
orgulho, vibrantes de impaciência e de exaltação máscula e madu-
ra, com perfeita ordem militar, pela 'Legião elos Recrutas' que hoje
entram no Partido e na Milícia. Se fecharem os olhos um instante
c pensarem no fu turo, surgirá diante de vós a visão ele uma intermi-
nável e densa selva de mosquetes e de canos ele metralhadoras, sau-
cladas por bandos de p~issaros com asas tricolores voltejantes c ;!la-
cres no céu"9° (fig. 32).
Essa apoteose de mosquetes e de asas tricolores se concentra,
na imagem, numa iconografia mais definida c precisa: a representa-
ção do bati/la (ou do Vanguardista) - rígido no uniforme " inteira-
mente negro", completado por uma panóplia guerreira cada vez mais
vistOsa, enquanto desfila diante do Duce ou cumprimenta "romana-
mente" -, símbolo da juventude fascista c da juventude do regime.
Perante a exaltação guerreira ele uma nação fardada, a função
ele genitoras irá exonerar a mulher-mãe de qualquer signo exterior
de participação na vida política do regime. Portanto, não será ne-
cessário, tampouco desejável , pretender "ver brilhar nas roupas o
distintivo dos Fasct', 91 pois "passou o tempo em que escola e po-
lítica destruíam tudo que as assustadas e santas mães construíam afe-
tuosamente nos corações dos filhos", pois o fascismo " deseja das
mulheres boas mães e nada mais" .92 Portanto, a mãe, símbolo da
O .11/TO DA j(; l'E.\7/:DE TR.~S~.IIIT/VO PEL.4 I.II.~GEII O F.HC/5.110 17.-{l.JA-\'0 285

juventude e da fecund idade de um povo, eterna esposa de guerrei-


ros e gcnitora de heró is: " mãe romana" por antonomásia uma vez
que, como declarava o Duce, "a mãe fascista é mãe romana", con-
sagrada "ao mais suave sacerdócio fem inino, ao iclílio que fecunda
e reforça a estirpe " _93
A carga ideológica de que era im·estida a figura materna, chave
do componente familiar do consenso fascista, consistia justamente
na ausência da mulher como sujeito político . Daí a hipervaloriza-
ção elos aspectos protetores e maternos que a representação, escri-
ta ou figurativa , sublinhou com particular evidência: "Deixe tua mãe
tranqüila: mesmo sem ser filiada, ela já está, ideal e dignissimamen-
re, entre as mulheres de nossa fé. Educa teus filhos para o trabalho,
para a religião, para o dever; dá a eles um exemplo cotidiano de sa-
crifício [ ... ] é dedicada ao campo, à família, aos seus deveres. [... ]
Que mais queres clela? "94 (fig. 33).

A queda do fascismo tornou necessária uma revisão geral elos


diferentes suportes sobre os quais se estruturava a ideologia elo re-
gime . No centro dessa operação encontravam-se as imagens que, e m
níve is diferentes e com v~hias linguagens, haviam permitido cons-
truir o edifício sobre o qual se apoiava o consenso do regime. Caí-
ram portanto, junto com o fascismo, os símbolos que haviam ce-
lebrado sua juventude eterna. Por isso, as imagens da juventude
tiveram a mesma sorte que outros símbolos do fascismo, destruídos
ou dispersos na queda do regime enquanto símbolos sub~titutivos
do próprio regime . Quando, ao contrário, o conteúdo tornava-o pos-
sível, as imagens foram recicladas c adaptadas a novas mensagens.
Então as image ns da esplendorosa juventude perdida do fascismo
caíram no esquecimento, condenadas pelo desprezo e pela ironia
como testemunho do estúpido repertório fascista.
Contudo, quando um incontestável estatuto cultural podia per-
mitir um redimensionamento daquelas mensagens que se tinham
introduzido dentro dos parâmetros protetores ela obra de arte, jus-
tamente esses mesmos parâmetros permitiram a remoção de roda
mensagem contingente e inoportuna, por meio da reafirmação do
próprio valor formal.
esse questionamento geral da experiência em que a imagem
fora protagonista, é por meio ela imagem da mãe que podemos eri-
contrar aquele elemento de continuidade que lhe permitiu passar
286 HISTÓIIIA LJOS }UI'E.VS

da "era fascista" para a Itália do pós-guerra. Perderam-se natural-


mente, e foram modificados, no percurso, muitos elementos que
haviam servido para caracreri;zá-la: a mãe perdeu definitivamente os
falsos brilhos da passada " romanidade", bem como os méritos tão
exaltados de sua " numerosa família " . Todavia permaneceu vivo o
valor de sua presença arquetípica de imagem materna protetora c
"sem farda": a " rnãe romana" tornou-se assim a " mamma", figura
onipresente na cultura literária, no cinema, na pintura dos anos do
pós-guerra.

NO TA S

( I) P. l\11. Bardi, " Giov:mi" , Giouentii Fascista (20 de janeiro de 1933), p. 7 .


(2) "La giovinezza e un símbolo" , Giuve11ttl Fascista (1 O ele feverc:: iro de
1932), p. 4.
(3) Ibidem.
(4) M. Morgagni, " La leva fascista 'certezza dei futuro ' ", Rivista 1/lustrata ele!
Popolo ei'Iwlia (abril de 1927), p. 5.
(5) "fio ritura nuova", Giovine=a! Organo Settimanale ele! Fascismo Giova-
ne el'ltalia, ano 1, n ? 2 (janeiro de 1924).
(6) Ibidem.
(7) N. O' Aro ma, " La voce della razza", Giovinezza! (9 de fevereiro de 1924).
(8) "li Duce ai giovani", Gioventu Fascista (1O de janeiro de 1933), p. I .
(9) E. 11. Gombrich, Simbolic images. Studies in the art of lhe Renaissance
(Lo ndres, Phaidon Press, 1972).
(I O) Sobre a política ela imagem do fasc ismo, ve r L. Malvano, Fascismo e poli-
fica elell'immagine (Turim, Bollati Boringhieri, 1988).
( 11 ) Morgagni " La leva fascista " , op. c iL
(12) D. Scifoni, " L'italiano nuovo", Gioventil Fascista ( I ~ de fevereiro de 1934).
( 13) M. Sarfani, " La seconda mostra del Novecento a i\lilano", Rivista lllus-
trata de! Popolo d'ftalia (abril de 1929), p. 42.
( 14) A. Pavo lini, ll Fascismo e /e Arti (relatório na 1 Assembléia da Corpora-
ção Fascista de Profissionais e Artistas da Região de Ravenna, 1935), p. 19.
(15) Gioventtl Fascista (7 de junho de 193 1), p. I.
(16) Catalogo generale delle illustrazioni dí propaganda- buon senso e tri-
cotare, organizado pelo Instituto Nacional de Propaganda Italiana, Florença (s .d .,
mas de 1926).
(17) D. Alfieri-L. Freddi, Mostra del/a Rivoluz ione Fascista (Bérgamo, Institu-
to Italiano de Artes Gráficas, 1933), p. 45.
(18) G . Nicodcmi, " La Piazza della Vittoria a Brcscia", Emporium 47 1 (março
de I 934), pp. 143-5 1.
(19) Rivista lllustrata de/ Popolo ei 'Jtalia (novembro de 1932), p. 63. Sobre
a grande escultura pública do regime. ver f. fergonzi , .\1.T. Roberto, La scultura
O M I TO DA ] UVé!VT UDE TRIINS.\ f /TIDO PELA 1.\!AGL\f, O FASQS..~JO ITAL/A/'.-0 287

monumentale negli anni de/ fascismo . Arturo Mar tini e il monumento ai duca
d 'Aosta (Turim, Allemancli, 1992).
(20) G. Bottai, " Esposizione del '42", Critica Fascista (dezembro de 1938),
p. 3, está em G. Bottai, Política fascista de/fe arti (Ro ma, Signorclli, 1940), p. 75.
(2 1) Sobre a utilização do símbolo co mo forma de auto-representação nacio-
nal na Europa (e nos Estados Unidos) durante os anos 30, ver M. Vaudagna (org.),
L 'estetica del/a política. Europa e America degli anni Trenta (Roma-Bari, Laterza,
1989); sobretudo as participações de G. L. Mosse, B. CartOsio, G. P. Brunetta e A.
Faeti abordam o tema do uso da imagem simbólica por parte elo nazismo c do fas-
cismo. Sobre o debate, ver a resenha da o bra escrita po r L. Malvano, " La política
per simboli" , L 'lndice dei Libri (março ele 1990), pp. 20-1.
(22) Sobre o E42, uma vasta esposição foi o rganizada em Roma, em 1987, pe-
lo Arquivo Central do Estado: E42. Utopia e scenario del regime, 2 v ois. (Marsilio,
Veneza, 1987).
(23) Idem, vol. 2, p. 315.
(24) O mesmo tema encontra-se numa esc ulru ra de 1930 (Balilla e Atleta) da
Mostra Regional da Toscana (op. cit., p. 316). Sobre a escultura para o E42, ver B.
Fattori in Il Me1·idiano di Roma (1 4 de feve reiro de 1943).
(25) ll lavoro- Le opere e i giorni, executado por Siro ni para a v Trienal,
de via simbolizar o " trabalho no tempo", da época mitológica à conte mporâ nea.
A pintura, destruída e m 1934, inseria-se na temática da Trienal, centrada na grande
decoração mural. Sobre Sironi, ver a recente exposição na Galeria Nacional de Arte
Moderna de Ro ma: Sironi 1885-1961 (Milão, Electa, 1993).
(26) Maraini fora nomeado presidente da Bienal em 192 7; de 1930 em diante
inicia uma política cultural que auspiciava laços mais estreitos entre a Bienal c as
exposições ligadas às estruturas do regime (mostras sindicais das regiões e nacio-
nais). Em 1932 substitui Oppo no cargo de comissário nacional do Sindicato de Belas-
Artes. Sobre Maraini, ver P. Spadini, " Antonio Maraini: la gestione della Biennalc
di Venezia e de! Sindacato Nazionale Fascista di Belle Arti. Primi risultati di una ri-
cerca d'archivio" , in E42. Utopia e scenario, op. cit., vol. 1, pp. 261 -5.
(27) A. Turati, "Il Partito per !'arte", Ct-itica Fascista (J 5 de fevereiro de 1929),
p. 68.
(28) A. Maraini, "Il ritorno dell'arte alia vita" , Rivista Jllustrata del Pop olo
d'Jtalia (fevereiro de 1936), p. 31.
(29) Sobre o Foro Italico, ver M. Piacentini, "Il Foro .Mussolini Ro ma", Archi-
tettul·a xu (fevereiro de 1933), pp. 65-74.
(30) !l Balilla (28 de fevereiro de 1929).
(31) C. De leva, " Formare nei giovani il carattere fascista", Gioventu Fascista
(20 de dezembro ele 1933).
(32) "Sfilare di corsa", Gioventu Fascista (10 de fevereiro de 1933).
(33) Ibidem.
(34) U. Cues ta, " La gioventü fascista ai servizio dello Stato", Gioventii Fascis-
ta '' ( I? de janeiro de 1934).
(35) Rivista Jllustrata de/ Popolo d'ltalia (janeiro de 1935), p. 13.
(36) G. Ruberti, "Lo sport nell'arte dei giorni nostri alia li Quaclricnnale ro-
mana" , Rivista Jllustrata de/ Popolo d'ltalia (abril de 1935), p. 36. No artigo sa-
288 11/STÔ RIA DOS JOVENS

lienta-se que, entre as quase mil obras presentes, somente umas setenta trataram
o tema proposto.
(3 7) Idem, p. 40.
(38) Sarfatti, La seccmda rnost1·a de/ No uecento, op. cir.
(39) O. I. Taddeini-L. Mercamc, Arte f ascista, arte per la massa (Roma, 1935),
p. 33 .
(40) Ibidem.
(41) Ruberti, " Lo sport nell'arte", op. cir., p. 37.
(42) 11 Bati/la (25 de julho de 1929).
(43) Ver, para a França, o ensaio ele M. Agulhon, Marianne au combat. L 'ima-
gerie et la symbolique republicaines de 1 789 à 1880 (Fiammarion, Paris, 1979).
(44) Riuista fllustmta de/ Popolo d 'l talia (dezembro ele 1936, p. 25).
(45) A Viuoria a/ata esculpiela por Libero Andreotti em 192R no frontão de
inspiração românica elo monumento de Piacentini q uer afirma r co m ênfase a pre-
sença da Itália fascista nos limites do território nacional.
(46) O gigantesco monumento, ele dcwiw metros ele altu ra, foi inaugurado
em 1928. Para seu modelo em gesso (Turim, Galeria de Arte .Mode rna) ve r !llauro
e il bronzo, catálogo ela exposição sobre a esc ultura comemorativa entre o século
XIX e xx (Turim, Circolo Ufficiali, 1990), p. 120.
(47) Alfieri-Fredd i, lv/ostra del/a Riuoluzione Fascista, op. cit., p. 96.
(48) Idem, pp. 2 16-8. A gigantesca escultura de cinco metros de altura, " cria-
ção de o usadia e de grandeza romana", fora realizada pelos escultores .Maiocchi c
Ru ggcri sobre um modelo ele Siro ni.
(49) Sala C, catálogo 1'r10stra del/a Rivoluzio ne Fascista , op. cit , p. 96.
(50) Rivista 1/lustrata del Popolo d'Jtalia (novembro de 1936), p. 28.
(51) A grande decoração foi e xecutada em 1935; objet.o de um recente restau-
ro, o afresco foi o tema de uma exposição sobre a pintura mural do regime: 1935
- Gli artisti dell'Unit,;ersità e la questio11e de/la piltura mura/e (U niversità elegli
Studi " La Sapienza", Roma, 1985).
(52) U. Cuesta, " Il destino delle Nazioni c Jcgato alia !oro potenza demografi-
ca", Giov&ntii Fascista (I 5 de junho de 1936).
(53) " Popolo in camicia nera", Gioventu Fascista (1<? de fevereiro de 1934).
(54) M amma e Bimbi ( I 0 de março de 1938).
(55) O. Baldi, " Le confide nze di una mamma di dieci figli", Mamma e Bimbi
(janeiro de 1939), p. I O.
(56) M. Pompei, Son contadino e me ne vartto (Roma, 1940), p. 68.
(57) 11 Balilla (18 de abril de 1929).
(58) O Prêmio Crcmona fora instituído em 1939 por iniciativa de Farinacci,
represen tante-chefe do P Nf da cidade de Crcmona c intérpre te da tendência dura
e an timodernista do regime. A participação ao concurso, anual, exigia o anonimato
do artista, que assinava com um pseudônimo, o u com um slogan "militante". O
concurso era estruturado com base nos temas di retamente ligados à " realidade his-
tó rica" da Itália fascista . A primeira edição incluía duas categorias: "Ouvindo-se pe-
Jo rádio um disc urso elo Duce" (Prêmio A) e " Estados de espírito criados pelo fas-
cismo" (Prêmio B). A "batalha do trigo" era o tema de 1940 e " A GIL" o de 1941.
A última edição, planejada para 1943 e não realizada, deveria ter tido por título " Do
sangue, a nova Europa" c previa uma participação direta de artistas alemães.
O .\1/TO D A }U\1EN1VDE mASSM/1'/DO Pt'V.IJL~GL\1: O FA5CJSJ10 ITAL/A,YO 289

(59) G. Piovcnc, " La mostra d clm Premio Cremona" , Primata (1 '?de julho
de 1941), p. 20.
(60) E. Gaifas .Jr., " li 111 Premio Cremona" , Emporium 506 (agosto de 19-41).
p . 90.
(61 ) idem, p. 92.
(62) Sarfatti, La seconda mostra del Nouecento, op. cit., p. 45.
(63) A respeito da elaboração do mito do " Duce", ver L. Passerini, Mussolini
immaginario (Roma-Bari, Laterza, 199! ). Sobre o papel da imagem como elemen-
to constitutivo deste mito, ver L. Malvano, " L' immagine di massa: il culto de! Du-
ce", Fascismo e politicc~ de!l'immagine, op. cit., pp. 62-70.
(64) Alfieri-Freddi, Mostra del/a Rivoluzione Fascista, op. cit., p. 178.
(65) O. Dinalc, " La Mostra dclla Rivoluzione", Gioventü Fascista (1 '? de mar-
ço de 1934).
(66) La giovinezza iJ un sim bolo, op. cit.
(67) Ibidem.
(68) M . Carli, "Benito Mussolini", Stile Futurista Oulho de 1934), p. 36.
(69) " La seminagione", ll Bati/la (18 de abril de 1929).
(70) Riuista Illustrata de! Popolo d '! falia (julho de 1939), p. 45.
(71) Tipologia formal que terá um sucesso especial na área futurista. Além ela
notória Sintesi pfastica dei Duce, ele Prampolini (c. 192 5), pode-se citar a escultura
ele Mino Rosso, exposta na Mostra da Plástica Mural de Gênova (1934). Célebre e
celebrada a Sintesi Piastica dei Duce, esculpida p or E. Michaelles, chamado Tha-
yath, é re produzida em página inteira na Riuista !llustrata de! Pop o/o d 'lta/ia , em
número ded icado à i\•lostra da Revolução Fascista (outubro de 1932), p. 14. Expost.a
na .Mostra Futurista de Berlim, de !934, e instalada na entrada da exposição, cau-
cionará a lin ha " modernis ta" d o fu turismo diante dos rigores formais nazistas (ver
G. Lista, "Futurisme et cubofuturisme", Cahíe,·s des Musées Nationaux 5 (se tem-
bro de 1980), p. 487.
(72) Morgagni, " La leva fascista" , op. cit., p . 6 .
(73) 6 . Orioli, " !1 partito e i bim b i" , Giouentü Fascista ( !5 de julho de 1935).
(74) O. Grcgorio, La Famiglía Fascista (junho de 1939), p. 24.
(75) lvlorgagni, " La leva fascista " , op. cit., p. 5.
(76) Gíovinezza. Organo del comitato Prouincíale O.N.B. Messina (i o de fe -
vereiro de !929). A lenda do " moleque" Giovanni Battista Perasso, chamado " Ba-
lilla" , faz deste precursor um personagem lendário que, em 1746, teria dado início
à revolta comra os austríacos, em Gênova.
(77) Ibidem.
(78) Morgagni, " La leva fascista", op. cit., p. 5.
(79) A. .Malatino, " Avanguardisti e Balilla, a noi!", Giovinezza (I'? de feverei -
ro de !929).
(80) Il Balilla ( 16 de julho de 1931 ).
(81) D. Calcagno, "Avangua rdopoli", Il Balilla ( ! 7 de setembro de 193 1).
(82) " Sane, forti e belle", La Giovane italiana (28 d e o utubro de 1927), p. 7.
(83) La Giouane Italiana (28 de outubro de 1927), p. 1.
(84) Jl Balilla (16 de julho de 193 !).
(85) ll lialilla (26 de d ezembro 1929).
290 11/STÓRIA DOS JOVESS

(86) "11 congresso d elle Massaie", La Giovane Italiana (28 de outubro de


1927). p. 2.
(87) V. Parisi, "Oonne e madri", La Massaia, Rivistafemminile illustrata per
/e modeme donne di casa {15 de janeiro de 1934).
(88) M. Morgagni, " Gioventu Italiana dei Lino rio", Rivista ltlustrata de/ Po ·
polo cl'ltalia Ou lho de 193 7), p . 5.
(89) Morgagni, " La leva fascista", op. Cil., p. 5.
(90) Ibidem .
(9 1) i\I. Pompei, " Tua madre donna fascista", Giovelllü Fascista (20 de junho,
1932), p. 5.
(92) Ibidem.
(93) M. Scaligcro, " La madre fascista", Gioventil Fascista (23·30 de março de
1932), p. I O.
(94) Pompei, " Tua madre donna fascista", op. cit. Sobre o papel da mulher
durante o fascismo, ver V. De Grazia, Le domw nel regime fascist a (Veneza, Mar~i ­
lio, 1993).

Tradu ção do italiano por Nilson Moulin


"SOLDADOS DE UMA IDÉIA":
OS j OVENS SOB O TERCEIRO REICH
Eric Michaud
"Abram caminho, velhos! ", lançaya em 1927 Gregor Srrasse,
o Chefe da Organização do partido nazisra. 1 "Caiam fora. velhos!"',
repetia em 1934 Baldur Von Schirach, o chefe dajll\·enrude do Reich.
"Só o que é eternamente jovem deve ter seu lugar 1 (Heimat) em
nossa Alemanha. " Mas era preciso compreender que "a juventude
é aticudc (Haltung)", e que "os homens inceriormente velhos são
a peste de um povo são", porque se opõem obsrinadamencc "a to-
da idéia nova" .2 Pois, sob o Terceiro Reich, ser " jovem" não re-
metia tanco a um grupo social, ou então a um momento do desen-
volvimento biológico do indivíduo. Ser " jovem" significava antes
de tudo a vinculação a uma idéia nova- Weltanschauung nacional-
socialista - que procurava encarnar-se na luta: "Aquele que mar-
cha nas fileiras da H ítler-]ugend não é um número entre milhões
de outros, mas o soldado de uma idéia"Y
Por essa razão, o combate que a ]uvemude hitlerista devia tra-
var não se inseria apenas no conflito ordinário das gerações; não
se- identificava apenas com a luta contra o "sistema de Weimar" que
antecedera a romada do poder por Hitler, em 30 de janeiro de 1933.
Esse combate inscrevia-se na história, mas não lhe pertencia: não
era mais que uma forma transitória do "eterno combate" travado
pela raça ariana pela pureza ele seu sangue, isto é, de sua Idéia. Hi-
tler escrevera em Mein Kampf: enquanto "todos os problemas ela
vida são limitados no tempo", "a questão ela manutenção ou da perda
da pureza elo sangue existirá enquanto houver homens".;
É nisso que a vida mais cotidiana dos jovens sob o Terceiro Reich
diferia da dos jovens italianos. Pois, se é verdade que Hirler e seus
292 !IISTÓRI.~ DOS JOVENS
ideólogos inspiraram-se nos modelos tão admirados da organização
fascista da juventude, com seus balilla e seus at;anguardísti,
afastaram-se deles singularmente pelo lugar central que atribuíam
ao racismo na formação do Homem Novo.
Porque essa tarefa de formação (Bíldung) e de educação (Er-
ziehung) cabia em primeiro lugar ao Estado racista ou "étnico" (uol-
kisch), a famíl ia e a escola iam pouco a pouco tornar-se lugares ou
instâncias secundárias, naturalmente subordinadas às organizações
paramilitares da juventude. Mas essa arregimentação geral na "Ju-
ventude de Estado" apenas se tornou efetiva às vésperas da guerra,
quando o terror havia terminado ele elaborar as leis e seus decretOs
de aplicação visando tornar obrigatória a entrada na HítleT-jugend.
Assim, a escola, embora fosse menos imediata e com freqüên-
cia menos controlável ideologicamente, continuava a ser - sobre-
tudo no início do novo regime - o único lugar em que o Estado
racista podia esperar deixar sua marca no conjunto elos jovens ale-
mães.
Sobre esse pomo, como em muitos outros, Mein Kampf teve
o valor de programa:
" O Estado racista terá atingido seu fim supremo de instrutor e de edu-
cador quando houver gravado no coração e no cérebro da juventude
a ele confiada o espíritO e o sentimento da raça. É preciso que nenhum
rapaz ou nenhuma moça venham a deixar a escola sem ter sido leva-
dos ao perfeiro conhecimento elo que são a pureza do sangue e sua
necessidade. Assim, terão sido estabelecidas as condições ela conser-
vação dos fundamentos raciais de nosso povo e com isso estará asse-
gurado o desenvolvimento posterior da cultura.
"De resto" [acrescentava Hitler], "do ponto de vista ela raça, a edu-
cação deve encontrar seu remate definitivo no serviço militar. Esse
tempo de serviço deve ser considerado como o último estágio da edu-
cação normal elo alemão médio. "5
Entre a autoridade declinante ela família e o novo " estilo de vi-
da" da nação que Roscnberg definia como o de uma " coluna em
marcha,6 a escola devia assegurar, então, um papel articulador na
formação desses jovens, cuja missão era dar corpo e realidade ao
"Reich ideal" (ideales Reich).
É assim que, em uma conferência de 12 de junho de 1933, AI-
freei Baumler, professor de filosofia e de pedagogia política na Uni-
versidade de Berlim, definia como soldado político o Homem No-
"SOI.TJADOS DF. l.".ltA TDÊ/.~· OSjOl"E.\5 505 O TEl/CEillO .'IEICH 293
vo que devia dar origem a um sistema de educação transformado:
" Por soldado político, entendemos um tipo: o tipo histórico do sol-
dado de hoje, o homem que sabe a quem obedece e por quem luta
- o homem que se sente o soldado de uma idéia concreta, o mis-
sionário de um dado histórico" . Esse sistema de " educação solda-
desca, dizia Baumler, "deve englobar todos os alemães, quaisquer
que sejam e quaisquer que sejam suas funçõ es''.
Por certo, tal concepção apenas adquiria seu sentido e seu al-
cance histórico a partir dessa pressuposição de que a Alemanha, pa-
ra assumir a essência ariana de sua "gcrmanidacle", devia realizar
o ideal espartano do qual era a herdeira natural: "Ao fazer do tipo
do soldado o fim de nossa educação, não fazemos mais que cum-
prir a lei que rege nossa essência.( ... ] A instrução técnica dada pelo
exército vem rematar a educação soldadesca do jovem" 7
O APRENDIZADO DA SELEÇÃO
É a partir de 13 ele setembro de 1933 que os estudos de " ciên-
cia racial" foram introduzidos nas escolas. Mas desde a lei ele 7 ele
·abril de 1933 sobre a "reconsti tuição da fu nção pública" (excluin-
do os judeus) e a submissão obrigatória dos docentes ao Führerprin-
zip (decreto de 11 de julho ele 1933), o racismo ganhava rapidamente
rodas as disciplinas: "O coroamento de todo o ensino nacional-
socialista da história consiste apenas em uma única coisa: a fideli-
dade ao Führer". 8
A partir elo momento em que se admitira que "a ciência, como
qualquer outro produto ela humanidade, é racial e condicionada pelo
sangue" ,9 tornava-se evidente que a Weltanschauung nazista devia
impregnar cada ensinamento para acostumar o aluno a distinguir o
que era útil à sua "raça" daquilo que a ameaçava . Mesmo a aprendi-
zagem elo cálculo podia mesclar-se intimamente ao aprendizado da
seleção racial, como o demonstra este problema colocado a cente-
nas de milhares ele alunos da escola primária (Volksschule):
Os judeus na Alemanha são de raça estrangeira. Em 1933, o Reich ale-
mão contava 66060000 habitantes. Entre eles havia 499682 judeus
praticantes. Qual porcentagem representavam eles? 10
Contudo, era durante as aulas ele "ciência racial" que os alu-
nos iniciavam-se realmente no que lhes era "racialmente estranho".
2_94 llfSTÓF?fA nos JOVENS
Embora os novos manuais ele Rassenkunde, assim como inúmeras
brochuras, refletissem as múltiplas e contraditórias concepções que
os ideólogos nazistas tinham das noções de "povo", ou de "nação",
possuíam em comum incitar o próprio aluno a reconstruir o mitO
racial pela imagem e pelo texto. Entre os exercícios propostos sob
a rubrica "Como podemos aprender a reconhecer a raça ele alguém" ,
um desses manuais pedia que se reunissem diversas descrições de
personagens " étnicos" , extraídas de poemas, ele romances ou ele
novelas. 11 O aluno devia então sublinhar os termos descrevendo ex-
pressões, gestos c movimentOs para deles tirar " conclusões sobre
o comportamento da alma da raça" e relacionéí-las com os " traços
físicos" da personagem. Em seguida, precisava " aplicar esse modo
ele observação às pessoas elo [seu] próprio círculo" . Caricaturas, car-
tazes de propaganda ou de publicidade para cosméticos, imagens
de grandes homens recorradas nas revistas , bustos e esculturas mo-
numentais eram utilizados para exercitar o aluno na distinção, à sua
volta, entre o judeu e o ariano por sua "maneira de andar, seu por-
te, seus gestos c seus movimentos quando fala" . 12
Assim , era seguido ao pé da letra o decreto do Ministério ela
Educação do Reich que instituía esse ensinamento " do qual serão
tiradas conclusões aplicáveis a todos os domínios da viela pública
e privada". Esse decreto, que visava levar os alunos a "cooperar ati-
vamente em tudo que possa reforçar o vínculo nórdico do povo
alemão" , reproduzia, ele próprio, quase literalmente a passagem de
Mein Kampf citada mais acima:
Tudo isso eleve ser posto em prática desde os primeiro anos escolares
para corresponder ao desejo do Führer, que exigiu que nenhuma crian-
ça, menino ou menina, seja, no fu turo, autorizada a deixar a escola
sem estar compenetrada da importância e da necessidade de um san-
gue puro (R. Min Amtsbl., 1935 S. 43 RU 11 C 5209).
Corresponder ao desejo do Führer era, portanto, a tarefa es-
sencial e constante de cada um, desde o autor do decreto - o mi-
nistro Bernhard Rust, membro do partido desde 1922 - até o alu-
no ela Volksschule, passando por seu professor. Corresponder ao
desejo do Führer era faze r profissão ele fé racista e o docente, nessa
tarefa cada vez mais controlada pelos jovens hitleristas, ficava pra-
ticamente em pé de igualdade com seus alunos mais zelosos.
A esses primeiros trabalhos, visando exercitar o olhar ela crian-
ça para " julgar rostos estrangeiros" , acrescentavam-se as sessões mais
' 'SOLDADOS DE ll.ll.~ IDÜ~ ": OS ]OVES S SO B O TERCEIRO RH/C/1 295
"práticas" ainda de mensuração da caixa craniana a que se entre-
gavam mutuamente os alunos, nas salas de aula . Tratava-se ora de
aprender a descrever "a expressão frouxa e dissimulada" de seus
camaradas judeus, ora de aprender a reconhecer os mais belos es-
pécimes da raça "nórdica" ou " ariana" (fig. 34). Mas a conformi-
dade a essas normas físicas não podia subtrair nenhum aluno à sus-
peita de seus camaradas: ' 'Evidentemente", escrevia Franz Lükc no
manual Das ABC der Rasse [O ABC da raça], " não se eleve confun-
dir raça e simples aparência. Raça significa alma. E existem homens
que apresentam exteriormente sinais reais de pertencer à raça nór-
dica, mas que são judeus pelo espíriro." 13
Assim, o corpo diz a verdade da alma, mas é mentiroso: tais
contradições constituíam o coração da ideologia nazista, porque per-
mitiam criar um clima de suspeita geral e logo de terror, penetran-
do no mais íntimo da esfera p rivada. Se qualquer um podia ser " ju-
deu pelo espírito" , a denúncia, em caso de dúvida, tornava-se um
dever sagrado que não poupava as famílias.
As múltiplas vexações e humilhações que eram inflingidas aos
escolares judeus (obrigação de sentar-se em bancos separados, in-
sultos, privação em público ela distribuição ele leite no recreio etc.)
cumpriam uma fu nção pedagógica: manter o ardor de cada um no
combate que devia ser travado pela Comunidade elo Povo (Volks-
gemeínschaft) para proteger-se do "antipovo" (Gegenvolk). E até 15
de novembro de 1938, data na qual os judeus foram declarados tem-
porariamente excluídos dos estabelecimentos de ensino (medida que
se tornou definitiva em 20 de junho ele 1942), cada aluno era enco-
rajado e vigiado, nessa luta "sagrada" , por seus camaradas da Hítler-
jugend, cujas camisas castanhas tornavam-se cada vez mais nume-
rosas nos bancos das salas de aula desde a primavera de 1933.
Era assim que a escola transformava-se no lugar de aprendiza-
gem de uma "seleção racial" entendida no sentido mais amplo: a
discriminação dos "judeus pelo espíritO" exigia uma mobilização
de todos os instantes, antes e depois da aula.
O jovem alemão, relatou Erika .Mann, fazia a saudação hitleris-
ta ele cinqüenta a 150 vezes por dia: ao deixar a casa familiar ele ma-
nhã, saudava com um " Hei! Hitler!" o "chefe da célula" com quem
cruzava na escada, seus camaradas encontrados na rua e o fiscal do
bonde; repetia essa mesma saudação transformada em lei com seus
professores, no começo e no fim de cada hora de curso, com o pa-
deiro ou com o dono da papelaria à saída da escola, com seus pais
J.
296 HISTóRIA DOS}OVE,\'S
quando voltava na hora do almoço. Quem não respondia com o mes-
mo " Hei! Hitler!" era culpado de um delito. Vizinho ou amigo, ou
mesmo parentes, ninguém escapava ao risco de uma denúncia. Se
por vezes alguns se deixavam tentar pela derrisão, pronunciando
" Drei Liter" ("três litros") no lugar de " Hei! Hitler" sabiam que es-
se desvio apenas perceptível não afetava seu Haltung (comporta-
mento) e não deixava transparecer nada de seu Stimmung, de seu
moral. 14
Contudo, porque a " idéia" do nazismo era simbolizada pela pes-
soa do Führer, a saudação hitlerista, com o braço direito erguido
(ou o esquerdo, em caso de invalidez), era bem mais que um ato
automático de fidelidade: era o sinal da aptidão ao combate perma-
nente que, desde a idade de dez anos, devia travar o soldado de unta
idéia. E depois que Rudolf Hess, na reunião do partido em Nurem-
berg, em 1934, lançara o slogan " Deutschlancl ist Hitler, Hitler ist
Deutschland", ela era ainda mais: a "saudação alemã" significava
não apenas a saudação do jovem alemão a Hitler, mas também sua
saudação por Hitler, o " médico do povo alemão" , o Salvador da
Alemanha cuja "visão" ou "idéia" do Reich eterno e puro um dia
se tornaria rcalidade .l5
Era para apressar esse dia que a criança colocava na prateleira
de seu quarro de dormir um busto de seu Führer (um modelo redu-
zido daqueles que reinaYam nas classes), a respeito do qual sabia,
desde que aprendera a ler, que ele "ama muiro as crianças " (fig. 35);
era para que se realizasse mais depressa a "visão" do Führer que
ela selecionava, entre os brinquedos de que se cercava, não solda-
dinhos, mas pequenos SA ou ss de chumbo, mapas de estado-maior,
tambores e bandeiras com as cores do nacional-socialismo (fig. 36).
"CORRESPONDER AO DESEJO DO FÜHRER "
A esse aprendizado escolar de uma seleção permanente que pre-
cisava exercer em seu círculo acrescentava-se, para o jovem alemão,
o aprendizado da concorrência no seio das organizações paramili-
tares da juventude: descobria ali que ele próprio constituía o obje-
tO de uma seleção rigorosa, exercida por seus superiores por meio
de múltiplas atividades cujo ca ráter de competição era fortemente
acentuado .
" SOI.DADOS DF. !".I/.~ IDtf.~ '" 05}0\"E..\"S SOB O TERCHRO /U;"/CH 29-
As juventudes Hitlerisras deviam ser, segundo seus dirigenres.
as verdadeiras " escolas da nação" . t6 De faro, tinham por função não
apenas suplantar a escola c a família em suas tarefas educativas, mas
também iniciar um processo de "educação permanente", no sentido
que Hitler dava a entender no discurso que fez às "suas" Hitler-]u -
gend em setembro de 1935, no congresso elo NS DAP em Nuremberg:
Nós começamos a educar este povo de uma maneira nova, a dar-lhe
uma educação que se inicia com a jm·emude para jamais terminar. No
futuro , o jovem homem passará de uma escola a outra. Isso começará
pela criança para terminar com o ,·elho combatente do movimento.
Ninguém deve poder dizer que ba~·erá para ele um tempo em que
estará entregue a si próprio. 1 -
Em 1938, quando estava ainda mais seguro ele seu poder, ele
terminou a enumeração dessas "escolas" sucessivas declarando mais
brutalmente: "(...] e por toda a sua vida eles não serão mais livres".l8
Assim, adquiria sentido a fórmula de Baldur von Schirach, para o
qual "a juventude é um comportamento" (eine Haltung):19 tratava-se
de retirar de cada um qualquer responsabilidade que não a de cor-
responder ao desejo do Fübre1; isto é, ele submeter e de infanrilizar
um povo inreiro a fim ele que permanecesse "eternamente jovem".
Era um novo "contrato social" selado com a Volksgemeinschajt,
por Hitler e pelo NSDAP, cuja águia simbolizava a "idéia eterpa" c
protetora (fig. 3 7): ele respondia pela segurança de cada um, se ca-
da um lhe consagrasse em troca a totalidade ele seu tempo e de seu
espírito a fim, como dizia Hitler, de garantir ao povo alemão uma
eterna juventude . .lvlais do que um contrato social, era, portanto, uma
espécie de novo pactO faustiano, mas sem prazo, que assim se deli-
neava entre um " povo" e seu Führer no papel- conscientemente
reprcsc~tado ou não - de Mcfisro.
No fim do ano de 1932, a Hitler-]ugend (HJ) tinha 108 mil mem-
bros; era pouco, comparado aos quatro milhões ele jovens que se
repartiam nas múltiplas associações ele caráter político, religioso, es-
portivo ou ele lazer. 2 1 Um ano mais tarde , ela contava 2 300000
membros, depois 3 500 000 em 1934 e 5 400 000 no fim do ano ele
1936. Esse crescimento maciço não resultou apenas do entusiasmo:
foi ames de tudo o resultado da ramada ele controle em Berlim, em
5 de abril de 1933, elo Comitê das Ligas (Bünde) de juventude ale-
mãs , com a dissolução daquelas que não se submetiam (no mesmo
298 IIISTÓRhl LXJS }01%\"S
mês, Schirach assume ilegalmente a direção da importante rede dos
albergues de juventude, os]ugendherberge); em seguida, resultado
da absorção das 600 mil Juventudes evangélicas c ou tras ligas pro-
restantes, proposta pelo ReichsbiscbofMüller c assinada em novem-
bro; enfim c sobretudo, foi efeito elas pressões sociais e políticas
c elas ameaças que pesavam sobre a vida profissional dos pais, as-
sim como sobre as atividades, escolares ou não, dos filhos. 21
Em junho de 1934, o sábado fora declarado "dia nacional da
juventude" : os jovens HJ eram dispensados elas aulas para cumprir,
ele uniforme, seu serviço "cívico", enquanto os outros deviam se-
guir "cursos ele política nacional " . Além disso, a quarta-feira fora
promovida a "dia da vigília". Mas sendo o enquadramento insufi-
ciente, a maior parte dos rapazes e moças vagava desocupada nas
ruas. De modo que esse "dia" foi substituído, em 1936, por duas
tardes semanais. Entrementes, tenclo sido formados numerosos qua-
dros graças à instituição das Führerschulen, essa nova disposição
reforçou a atração que podia exercer a HJ sobre uma juventude de-
sejosa de escapar às coerções escolares e familiares.
A HJ fora inicialmente colocada sob a tutela dos SA que nela se-
lecionavam muitos de seus recrmas (antes da tomada do poder, a
passagem ele uma organização a outra fa zia-se automaticamente na
idade de dezoito anos) . Mas depois que o expurgo ele 30 de junho
de 1934 pôs fim, brutalmente, à revolução "social" elo regime re-
presentada pelos SA de Róhm, Schirach ganhou sua autonomia c pre-
feriu fechar um acordo com a SS de Himmler: ele educaria seus jo-
vens para transformá-los em SS e colaboraria com estes últimos para
controlar, pela instituição de um serviço de patrulha (Streifendienst),
o conjunto ela juventude. 22 Ele escreveu, então, que a unificação
elos jovens devia faze r-se "por uma idéia, uma \fleltanschauung que
deverá ser vivida como uma lei da vida pela jovem geração. Só a
111", acrescentava ele, " é portadora dessa idéia" .23
Schirach colocara sua organização sob o signo desta frase elo
Führer: "Uma grande Idéia não pode ser levada ao seu objetivo se-
não quando uma organização sólida e rigorosamente disciplinada,
conduzida com uma dureza conseqüente, confere sua forma à \flel-
tanschautmg". 24 Ele sabia, desde o já amigo encontro deles nos cír-
culos wagnerianos de Bayreuth, que podia contar com o apoio de
Hitler. Na luta pelo controle da juventude que o opunha a Rust, mi-
nistro da Educação, não teve dificuldade em obter a assinatura do
Führer, do qual dependia diretamente, para a "Lei sobre a Hitler-
"SOUM n OS nF. U.lfA mfiA··, OSJOI'F.SS SOB O TERCEIRO RE/01 299
jugend" de 1 f! ele dezembro de 1936, estipulando que toda juven-
tude alemã estava doravante reunida no seio da HJ, e constituindo-a
em "Juventude de Estado" . Schirach podia então escrever: " O com-
bate pela unificação da juventude está terminado" . Ele sabia, no en-
tanto, que 40% elos jovens alemães mostravam-se refratários e ainda
lhe escapavam, mas esperava que viessem a aderir voluntariamen-
te. Não foi assim de imediatO, embora uma passagem pela HJ fosse
exigida para entrar na universidade e, desde novembro de 1935, para
chegar ao serviço público ou a cenas profissões liberais.
É apenas em março ele 1939, ou seja, mais de dois anos depois,
que foram assinados os decretOs ele aplicação da lei de 1936: então
se tOrnou obrigatório aos pais, sob pena de multa ou de prisão, de-
clarar aos responsáveis pela HJ seus filhos que atingissem o décimo
ano. As mesmas penas eram previstas para aqueles que tentassem
afastar seus filhos elo serviço da HJ - serviço que a polícia local es-
tava habilitada a fazer cumprir à força. 25
Essa coerção que se exercia com violência cada vez maior so-
bre a autoridade parenta! - em rodo caso, no ponto em que ela
ainda resistia à "vontade elo Führer" - teve como resultado des-
truir nos jovens toda instância de identificação privada, em favor
da imagem coletiva elo Führer. "Eu não tenho consciência! Minha
consciência se chama Aclolf Hitler" : essa fórmula famosa de
Goering26 não representava, afinal, mais que o termo ideal da Er-
ziehung pela qual os nazistas procuravam modelar o Homem No-
vo. A partir de então, tornava-se culpado aquele que havia seguido
as normas morais transmitidas pela autoridade familiar em vez ele
fiar-se na "vontade do Führer" e de corresponder ao desejo do Füh-
rer - " que ama muito as crianças" . Uma nova versão elo "impera-
tivo categórico no Terceiro Reich" foi elaborada a partir de 1936
por Hans Frank, chefe elo Direito do Reich: "A cada decisão que
tomar, diga a si próprio: 'Como o Führer decidiria em meu lugar?'" .
Ele iria reformulá-la em 1942: "Aja de tal maneira que o Führer, se
tivesse conhecimento de seus atos, os aprovasse" .27 Assim, o inte-
resse superior ela Volksgemeinschajt, representado pela vontade do
Führer, exigia muitas vezes que a criança travasse um combate con-
tra a autoridade paterna ou familiar. A política ela juventude condu-
zida pelo regime sabia geralmente tirar o maior proveito elos confli-
tos eclipianos.
O alistamento fazia-se na idade de dez anos: o Pfimpf ("garo-
to "), depois de haver passado por certas provas esportivas, entrava
300 HIS TÓRIA DOS ]OI'E.VS
no Deutsche jungvolk (DJ: "jovem povo alemão") por um período
de quatro anos, ao longo do qual o acompanhava uma caderneta
de notas indicando seus progressos físicos e ideológicos. A cerimô-
nia aconrecia todos os anos, no dia elo aniversário ele Hitler (20 de
abril), a fim de que cada um soubesse que "pertencia· ao Führer"
(fig. 38) . O menino prestava juramenro por ocasião ele uma "consa-
gração da bandeira":
Em presença deste estandarte de sangue, que representa nosso Füh-
rer, juro consagrar toda a minha energia e toda a minha força ao Sal-
vador de nosso país, Aclolf Hitler. Estou pronto a dar minha vida por
ele, e confio-me a Deus. 28
Era então que começava sua verdadeira educação, que devia levá-
lo a "pensar alemão", "agir alemão" 29 para identificar-se com o re-
trato ideal, tornado legendário, que Hitler lhe apresentava como
modelo :
O menino alemão elo futuro deve ser vivo e hábil, rápido como o gal-
go, resistente como o couro, duro como o aço de Krupp. Para que
nosso povo não desapareça sob os sintomas de degenerescência de
nosso tempo, devemos erguer um Homem Novo.3°
Portamo, era-lhe necessário, antes de tudo, endurecer seu cor-
po ("Teu corpo pertence à nação", "Tens o dever de estar em boa
saúde"): os exercícios físicos, cuja duração já dobrara nos novos pro-
gramas escolares, eram prescritos com fins de resistência c de com-
petição. Aos dez anos, devia percorrer to dos os dias de oito a dez
quilômetros a pé; aos treze anos, dezoito quilômetros, dos quais dois
terços, pelo menos, durante uma " longa marcha". " De início" , es-
creve Hcrmann Rauschning, "essas marchas passavam por uma es-
tranha mania elo nacional-socialismo. Foi apenas muito mais tarde
que se discerniu ali também uma vonrade sutil, que sabia muito bem
encontrar meios apropriados aos meus fins. [...] A marcha mata o
pensamento. A marcha mata a individualidade . A marcha é o rito
m~!gico insubstiruível, cujo mecanismo moldará a comunidade po-
pular até no subconsciente. [... ] O passo cadenciado faz entrar nos
corpos, por assim dizer, o sentimento da comunidade. "3 1
Era aos dez anos também que as meninas entravam na jung-
madet ÚM, literalmente: as "jovens Virgens"). No primeiro ano, me-
ninos e meninas deviam aprender os " Deuses e heróis dos genna-
nos" ; no segundo, os "grandes alemães" (de Frederico, o Grande,
" SOI.ThtnOS nr: (!.liA FnÉIA ··, OSJOI"E.YS SOB O TEi/.CEJ.~O i&ilOi 30/
a Bismarck); no terceiro, "Vinte anos de combate pela Alemanha··
(os "anos de luta" do nacional-socialismo); no quarto, enfim , ··Adolf
Hitler e seus companheiros de luta" .
Aos catOrze anos, os jovens entravam nas Juventudes hitleris-
tas (HJ) propriamente ditas; aos dezoito anos, outras estruturas do
partido os esperavam; Frente do Trabalho, SA ou ss. As moças per-
maneciam mais tempo no Bund Deutscher Madel (BDM: Liga das Mo-
ças Alemãs), pois a seção "Fé e Beleza" (Glaube und Schdnheit) as
retinha dos dezessete aos 21 anos para uma formação intensiva na
qual dominavam os exercícios físicos, as tarefas domésticas e, se-
gundo a fórmula de Schirach, "objerivos especificamente femini-
nos" cujo teor veremos mais adiame.
A formação ideológica dos catorze-dezoito anos prosseguia por
cursos versando sobre "o combate pelo Reich" desde os antigos
germanos até Hitler, passando pelas relações do imperador com o
papado; sobre "o povo e a herança do sangue", sobre "o espaço
vital", assim como sobre problemas referentes ao " futuro do Movi-
mento", à "obra elo Führer" ou à "Alemanha no mundo" ,32 Esses
temas eram desenvolvidos semanalmente nos centros da HJ, para on-
de eram enviados filmes com seus comem:-írios preparados; eles eram
retOmados pelas transmissões radiofônicas especialmente destina-
das à juventude, como a semanal ' 'Hora da jover11. nação" (Schirach
tomava a palavra às quartas-feiras às 20h 15), ou os Rundfunk-Morgen-
Faíern der li]. Mas eles p reenchiam sobretudo as páginas elas in-
contáveis publicações controladas pelo Gabinete de Imprensa e de
Propaganda ela HJ. Cada revista correspondia a uma categoria da ju-
ventude organizada: D er Pimpf, Die Hítlerjugend, que se tornará
]unge Welt, Das Deutsche Madel, Wille und Macht para os dirigen-
tes, Das ]unge Deutschland (mais diretamente "política"), jugend
und Heimat para os adeptos dos albergues ele juventude, Die]unge
Do1jgemeinschajt para os jovens camponeses etc. E esses mesmos
temas constituíam, enfim, a matéria das conferências dadas por oca-
sião dos acampamentos.
Esses acampamentos ocupavam um lugar importante na viela
das HJ: assumiam a herança da]ungendbewegung dissolvida, que fi-
zera seus membros descobrir, desde o início do século, os Wan-
dervogel ("pássaros migradores"), as montanhas e as gargantas das
profundezas da Alemanha, com suas tradições, seus ritos ancestrais
e seus cantos populares. Mas, sob a direção da HJ, haviam se tOrna-
do verdadeiros campos de treino militar, quer fossem semanais, quer
302 HISTÓRIA I)OSJOVENS
de longa duração (três semanas), quando decorriam em período de
férias. Com a hierarquia vertical de seus 32 títulos c graduações e
seu recorte geográfico em cinco seções, a própria estrutura da HJ
era calcada na de um exército. Todos os campos eram ornados com
o mesmo slogan: "Nós nascemos para morrer pela Alemanha" .33
O conjunto das atividades para os rapazes ali se ordenava como uma
preparação militar: treinamento em fo rmação aberta e cerrada, ca-
muflagens, emboscadas para o inimigo, proteção de uma coluna em
marcha, operações de batedores, montagem das tendas, cartografia,
exercícios de tiro, assim como todos os esportes capazes ele desen-
volver o senso elo desempenho. A duração elas marchas aumentava
com a idade, assirn como o peso do equipamento. Enfim, desejan-
do Goering fazer elos alemães um povo ele aviadores, a isso acres-
centavam-se cursos de vôo a vela e a motor, assim como a realiza-
ção de maquetes de aviões (fig. 39).
As moças da BDM recebiam uma fo rmação análoga, embora exi-
gindo um menor grau ele desempenho (fig. 40); além disso, deviam
adquirir " conhecimentos aprofundados ele socorro e salvamento " ,
de "primeiros socorros", de " defesa passiva" em caso de ataque
aéreo e de guerra química. Mas, ele todos os " objetivos especifica-
mente femininos" visados por Schirach, o mais essencial era, sem
dúvida, o aprendizado ela maternidade e ele sua função "vital" para
o futuro da jovem Alemanha.
Hitler o escrevera em Mein Kampf: "O fim ela educação femi-
nina deve ser, irrevogavelmente, a futu ra mãc".3-i Ele lembrava mais
uma vez às mulheres alemãs o dever de seu sexo no discurso que
fez em Nuremberg em 18 de setem bro de 1934: da mesma maneira
que, no campo de batalha, o homem deve dar prova de heroísmo,
" cada filho q ue (a mulher) põe no mundo é uma batalha que ela
trava pela sobrevivência de seu povo". 3; Em dezembro de 1938,
ele criava a Cruz da Mãe de Família, ela qual Himmler afirmava ser
a mais importante distinção do Grande Reich que viria: ele bronze
para quatro filhos, de prata para seis e de ouro para oito. Grego r
Strasser pedira, em 1926, que um di reito de voto m últiplo fosse con-
cedido às mães de família numerosa; embora essa sugestão ousada
de um "voto dos recém-nascidos" tenha sido esquecida, permane-
cia a idéia de considerar a maternidade como o equivalente do ser-
viço militar para os homens.36
Assim, era p reciso inculcar nas moças, o mais cedo possível,
seu dever com relação à raça. E, aí também, o que se ex igia delas
" SOWADOS LJE U.IIA WÉJA ". OS ]OI'ESS SOB O 7ECE.:"() .: :ncH 303
era corresponder ao desejo do Führer, como o ex pressava sem ro-
deios o slogan afirmando que deviam " dar um filho ao Führer ...
Era então que se tornavam verdadeiramente os "soldados de uma
idéia" , com a missão ele dar corpo e realidade ao " Reich ideal" . An-
tes de cada reunião de " unidades da BOM e ela HJ, por ocasião de
acampamentos ou de excursões, a chefe de grupo dirigia-se às suas
tropas: "Nem todas vocês podem encontrar um marido, mas todas
podem tornar-se mães" .3 7 Em 28 de outubro de 1935 foi oficialmen-
te instaurado o " casamento biológico", recomendando as relações
sexuais fora elos laços do casamento entre rapazes e moças unidos
pelo mesmo ideal de conservação da raça. Alguns meses mais tar-
de, mais de mil moças voltaram grávidas elo congresso do partido
que se realizara em setembro ele 1936 em Nuremberg. 38 Essa cifra
impressionante abala um pouco a idéia aceita segundo a qual o en-
quadramento paramilitar e esportivo dos jovens teria tido como re-
sultado desviar a libido de seus fins sexuais. Aos pais que permane-
ciam apegados aos valores morais tradicionais, as moças escreviam
por vezes cartas de advertência: se se indignassem ele que p udes-
sem dar tão cedo um filho ao Führer, elas os denunciariam imedia-
tamente por oposição à política de Bevolkerung, de povoamento
para o leste, que devia dar realidade ao "espaço vital" (Lebensraum.).
" De um ponto de vista nacional-socialista" , dissera o Reichsjugend-
führer Baldur von Schirach, "a juventude sempre tem razão." As-
sim, o Bun d Deutscher Madel (noM) foi bem depressa apelidado de
Bald Deutsche Mutter - "em breve mãe alemã". Ao onipresente
slogan que ordenava às moças " dar um filho ao Führer",
acrescentava-se o termo de Führerdienst - Serviço do Führer -
em nome do qual se designava comumente o " casamento biológi-
co". Do "ponto de vista" nacional-socialista, o Führer era, portan-
to, eviclemememe, o pai simbólico ele rodos esses filhos nascidos
sob o signo do ideal racional; era ele que' os gerava pela potência
da ''idéia nacional-socialista" e em virtude de sua "inabalável von-
tade". Quanto às mães solteiras, cujo número - a partir de 193 7,
sobretudo - crescia rapidamente, e que tiveram o direito, por de-
cretO especial elo Ministério do Interior, de ser chamadas de "Se-
nhora", faziam figura de heroínas habitadas pela "idéia nacional-
socialista", lutando na " frente elos nascimentos" para assegurar a
reprodução do " material humano" (Menschmaterial).
]04 HISTÓRIA DOSJOVF.NS
O INTERESSE, DO GERAL AO PARTICULAR
Não obstante, essa aplicação da política racial - na qual os jo-
vens constituíam a uma só vez o meio e o fim -produzia inúmeros
"efeitos adversos" que o "médico do povo alemão" não conside-
rára. O sacrossanto princípio, herdado dos "anos ele luta" c que pre-
tendia que "o interesse geral tem primazia sobre o interesse parti-
cular", ia ser posto à rude prova.
Assim, o " ano rural" (Landjahr), instituído por Rust para re-
conduzir as crianças às fontes vivas do mundo camponês, da mes-
ma maneira que o "serviço rural" (Lancldienst) que colocava as IIJ
no trabalho dos campos, fazia habilmente coincidir a ideologia Blubo
(Blut und Boclen: sangue e solo) com a necessidade de encontrar
uma resposta para a falta de mão-de-obra agrícola e para o êxodo
elos campos. Mas esses contatos forçados entre os mundos campo-
nês e operário ou estudantil suscitavam ora a incompreensão e o
desprezo, ora o declínio dos "valores da terra" diante do exemplo
dado pelos jovens citadinos. Uma pesquisa mostrava que a quase
totalidade dos jovens camponeses de dez a catorze anos desejava
viver na cidade,59 estigmatizada, no entanto, como sendo o cadi-
nho de rodas as degenerescências físicas e morais que atingiam a
Alemanha. Além disso, o domínio da HJ mostrava-se mais difícil nes-
se mundo camponês à medida que o tempo dado ao Führer era ne-
cessariamente tirado do trabalho na granja ou nos campos.
Por outro lado, a presença de acampamentos ele moças da BDM
na proximidade ele acampamentos de jovens elo Serviço elo Traba-
lho favorecia também a extensão, nos campos, da "frente dos nas-
cimentos" e cantava-se esta canção, em homenagem à organização
dos lazeres da Frente do Trabalho chamada Kraft durch Freude (KdF:
a Força pela Alegria): "Nos campos e nas moitas/ Perco a Força pela
Alegria" .40
Ao lado de uma espécie de "resistência passiva' ' limitada, que
se exprimia sobretudo através de um humor muitas vezes resigna-
elo, uma emancipação, mesmo relativa, dos jovens - e de cerras
categorias em particular: as moças, os jovens operários- era pos-
sibilitada, no entanto, nos primeiros tempos, pela autonomia ele prin-
cípio que lhes era dada: "A juventude deve ser guiada pela juventu-
de" (Schirach). Além disso, para opor-se ao " judeu-bolchevismo",
a imagem que a HJ e o Serviço do Trabalho davam ele si mesmos
era a de organizações destinadas a formar o povo alemão no "so-
''SO!.DA DOJ DE 1'.11.~ IDtf.~ O~ /Ol'ii.\~ SOB O TERCEIRO RE/C/1 ]05
cialismo" : o melhor meio de abolir as classes era habituar '"o filho
do direwr de fábrica e o jovem operário, o esrudame e o rrabalha-
do r agrícola a sentar-se sob o mesmo uniforme, à mesma mesa para
servir jumos o povo e a pátria" .41 O próprio Schirach consagrara
um capítulo imeiro de seu livro-programa sobre a HJ à questão do
''socialismo' ':
Uma úni.ca bandeira flutua diante das HJ. O filho do milionário e o fi-
lho do trabalhador usam um único e mesmo uniforme. Pois só a ju-
ventude é capaz de ser livre de preconceitos desse gênero, é capaz
de uma autêntica Comunidade; sim, a Juventude é o Socialismo. 12
Se é verdade que cenos filhos de " proletários" promovidos na
hierarquia das Juventudes hitleristas puderam, no começo do regi-
me, dar-se ao luxo de comandar os filhos da aristocracia c da bur-
guesia industrial, essa inversão da hierarquia social não durou mui-
to tempo: a partir de 1936, a direção do movimento escapava aos
jovens operários, aprendizes c empregados, para passar progrcssi-
vamcme às mãos dos jovens burgueses e aristocratas munidos de
diplomas. -i3
Foi a partir do mesmo ano que certa lassidão tornou-se percep-
tível nas HJ, quando muitas vezes as reuniões no núcleo da organi-
zação eram abandonadas para escapar à monotonia elas exposições
e "discussões " ideológicas. A partir do mesmo ano ainda, os em-
pregadores começaram a manifestar cena descon fiança com rela-
ção aos antigos quadros das IU à procura de trabalho : eles sabiam
que as responsabilidades no seio da juvemude de Estado eram in-
compatíveis com uma escolaridade " normal" e que os pequenos
fübrer eram geralmente maus alunos. Ademais, eram poucos os em-
pregadores que se alegravam com a idéia de contratar um delator
para sua empresa ou sua loja. Diante da amplitude dessa rejeição,
Rudo lf Hess, em nome elo Führer., fez o ministro da Educação esta-
belecer um decreto (junho de 193 7) que devia permanecer secreto.
Ele proibia que fosse inscrita nos certificados ou nos diplomas ele
conclusão ele estudos qualquer "observação sobre as atividades ele
uma aluno na NS DAP ou em uma de suas ramificações". -i 4
Quatro anos já se haviam passado desde que a educação fora
transformada: de acordo com o programa que Hitler traçara em Mein
Kampf, em vez de " limitar-se a fazer entrar nos cérebros a ciência
à exaustão", ela visava antes ele tudo " o bter, por uma criação a pro-
306 HISTÓRIA f>OS}Ol'T:SS
priada, corpos essencialmente sãos", "(vindo) a cultura das faculda-
des intelectuais apenas em segundo plano" .-~s Mas, para que essa
criação resultasse na formação de uma elire, 46 a HJ recebera como
missão organizar a seleção por meio de um conjunto de competi-
ções que deviam estimular os desempenhos esportivos e de discipli-
na ideológica elos jovens. Desde 1934, "ano da formação", estavam
ériaclas, tanto para os rapazes quanto para as moças, as Leistungab-
zeichen, as " insígnias de desempenho" 1 e 11, assim como a "insíg-
nia esportiva al~mã", cuja obtenção tornava-se o objetivo primeiro
de cada classe de idade recém-alistada. O termo Leistung (rendimen-
to, desempenho ou façanha), com a idéia de superação que com-
porra, invadia todos os discursos das HJ e das duas instituições que
constituíam seus principais prolongamentos: a ss de Himmlcr c a
Frente de Trabalho (DAr: Deutsche Arbeitsf1'0nt) de Robert Ley. Não
se lutava apenas pela melhor Leistung esportiva ou profissional, tes-
temunhava depois da guerra uma antiga .Füh,-ering das HJ, masca-
da "unidade" lutava também pela mais bela decoração, pelos me-
lhores coros, pelas melhores representações teatrais:
Esse combate incessante pela Leistung introduzia, já em tempo de paz,
um elemento de inquietação e de atividade artificialmente forçada na
,·ida dos grupos (... ]. A direção (Fübrerscbaft) de uma juventude as-
sim adestrada na ação c na Leistung desenhava pouco a pouco um es-
tilo bem singular de manager. Ela corria de uma ação a outra e fazia
correr seu "séquitO" (Gefolgschaft) de uma ação a outraY
Essa dinâmica competitiva estendia-se a todos os ramos elas or-
ganizações: desde 1933, a Frente de Trabalho - que substituíra os
sindicatos proibidos - instituiu um concurso profissional do Reich
(Reichsberufswett-kampf) destinado aos jovens aprendizes, operá-
rios, artesãos e empregados. "Os laureados eram tratados como cam-
peões dos jogos Olímpicos ou como os grandes atOres de cinema,
eram conduzidos com grande pompa a Berlim e fotografados ao la-
do de Ley e de Hitler em pessoa. " 48 A intensa propaganda que cer-
cava esses concursos (cuja importância era crescente) apresentava-os
como retletindo "a concepção social ista da seleção". Os jovens lau-
. reados beneficiavam-se muitas vezes com promoções reais: sendo
geralmente oriundos de meios modestos, reforçava-se o sentimento
de que o novo regime dava a cada um sua oportunidade, qualquer
que fosse sua origem social. Mas, desde que deixassem as Hitler-
]ugend pelo Deutsche-Arbeitsjmnt (em vez de continuar seus estu-
..SOLTMOOS DE (.'.1/A tDliA OSJOI'E.n SOll O TERCEIRO NEICH ]0 -
dos ou de entrar na ss), os "soldados de uma idéia" to rnavam-se
todos, segundo a fórmula de Robcn Lcy, "soldados do trabalho ..
cuja "ordem de marcha" era dada por Hitler e cuja "companhia
tem por nome D eutschland! " .-í') Essa versão nacional do '·socialis-
mo" , que glorifica espetacularmente suas poucas promoções ele
operários, contrastava evidentemente com a ráp ida ascensão dos
managers nos múltiplos apare lhos do poder ss. Mas por toda par-
te, desde o jungvolk até as ordens ela ss, corresponder ao desejo
do Fiibrer significava também que cada um entrava com seus ca-
maradas em uma relação de rivalidade amorosa para satisfazer esse
desejo. Assim era gerada uma dinâmica per versa com relação a essa
" idéia " primeira da qual cada um deveria ser o soldado: "o interes-
se geral tem primazia sore o interesse particular" (Gemeinnutz geht
vor Eigennutz). E fo i sempre em nome do interesse geral , simboli-
zado pela figura de Hitler, que fo ram encetadas todas as seleções,
mas também que se declararam as rivalidades mais ferozes que mi-
navam interiormente o regime.
O "SWIN G " CONTRA WAGNER
Mas de que natureza era, então, esse desejo do Fübrer? Com
to da a certeza, se ele mantinha tão bem em suas malhas a maior par-
te elos jovens, é porque estes compreendiam que eram seu objeto
privi legiado. Esse pacto mais que faus tiano que Hitler lhes propu-
nha (conservar a eterna juventude) tinha quase 9 milhões a aceitá-
lo, por bc.:m ou por mal, no início do ano de 1939. Qualquer que
tenha sido a parte da coerção - muitas vezes forte- nc.:ssa adesão
maciça, esta não poderia ser compreendida sem que fosse esclare-
cida a natureza propriamente material desse laço amoroso que unia
os jovens aos seu Führer.
Além do programa " de independência, de liberdade e ele feli-
cidade" proposto p or Hitler, "outra coisa nos seduzia", tcstc.:mu-
nhou depois ela guc.:rra uma jovem mulher, membro das H.J,
" revestindo-se para nós de um poder misterioso: a juventude desfi-
lando em fileiras cerradas, bandeiras flutuantes, ao som dos rufos
de tambor e elos cantos. Essa comunidade não tinha algo de inven-
cível? O que há ele surpreendente em que Hans, Sophie, e tOdos nós
logo nos encontrássemos engajados na juventude hitlerista? " .5° O
" poder misterioso" desse espetáculo era o de despertar em cada um
,
308 HISTÓRIA DOS JOVENS
o desejo de tomar parte nele C()mo em uma grande obra de arte co-
letiva, a que Wagner chamara de " a obra de arte comum elo futu -
ro", pela qual, e apenas por meio dela, podia sobrevir a Redenção
do povo inteiro:
Mais e melhor que uma religião envelhecida, negada pelo espírito pú-
blico, mais efetivamente e ele uma maneira mais arrebatadora que uma
sabedoria de Estado que há muito tempo duvida de si mesma, a Arte,
eternamente jovem, podendo encontrar constantemente em si mes-
ma e no que o espírito ela época tem de mais nobre um frescor novo,
a Arte pode dar à corrente das paixões sociais, que se desvia facilmen -
te para recifes selvagens ou para baixios, um objetivo belo e elevado,
o objetivo de uma nobre humanid;1de 51
"Aquele que pretende compreender a Alemanha nacional-
socialista eleve conhecer Wagner", declara o Führer.5 2 Dessa pai-
xão por Wagner (em Bayreuth, haviam se exercitado juntos na ela-
boração ele uma ôpera), devia nascer uma gigantesca e permanente
opereta militar que a Hitler-]ugend executava na escala ela nação .
Assim como controlava, desde 1934, rodos os guarda-roupas e ce-
nários elo Festival ele Bayreuth, como mandava desenhar, por Ben-
no von Arem, os trajes de noite dos oficiais ss, alterando-os três ou
quatro vezes, 53 Hitler mandara igualmente desenhar os trajes das HJ
(fig. '4 1), que ele fazia evoluir no palco de uma Alemanha da qual
se esforçava por remodelar o cenário inteiro.
Esses trajes, essas marchas e esses cantos, essa encenação per-
manente de uma vida coletiva heróica, ritmada pelas múltiplas fes-
tas nacional-socialistas, não constituíam, como se escreve muito hoje,
a parte mais espetaçular de uma propaganda mentirosa cuja função
teria sido camuflar uma realidade desastrosa. Assim como Baudelaire
- e é aí que reside a parte temível do nazismo -, Hitler c alguns
de seús próximos pensavam que "a idéia que o homem faz do belo
imprime-se em roda a sua aparência, amarrora ou alisa seu traje, har-
moniza ou retesa seu gesto, e mesmo insinua-se sutilmente, com o
o tempo, nos traços de seu rosro ", que "o homem acaba por asse-
melhar-se ao que desejaria ser". ' 4 Assim como a arte, a p ropagan-
da geralmente não tinha o papel de enganar ninguém; elas não mas-
caravam nem maquiavam nada: uma c outra tinham a incumbência,
de maneira bem mais radical, de transformar heroicamente o real.
Desde seu discurso sobre os plenos poderes, em 23 de março de
1933, Hitler sublinhara a posição central ela arte no novo regime:
..SOLDADOS DE (;.\(A IDÉI.~ · ·. QÇ]QI'EXS SOB 0 TERCEIRO REICII 309
"A atitude contemplativa dará lugar rapidamente ao heroísmo que
se imporá com força como o caminho daqueles que têm um desti-
no político". 55
Se, ele uma reunião a outra, Hitler não cessava ele repetir aos
"seus" jovens que eles representavam o futuro da Alemanha eter-
na, é que antecipavam a realização tOtal de sua "visão" c começa-
vam a dar corpo ao Reich ideal. Como o romântico Schleiermacher,
para quem "a maior obra de arte é aquela cuja matéria é a humani-
dade" ,56 Goebbels, o apóstolo do "romantismo de aço" , via na po-
lítica "a arte mais elevada", a que tinha a "alta responsabilidade de
formar, a partir da massa bruta, a imagem sólida e plena do povo" ;
e acrescentava imediatamente: "A missão da arte e elo artista não
é apenas unir, ela vai muito mais longe. É seu dever criar, dar for-
ma, eliminar o que é doente e abrir caminho para o que é são". 57
Isso supunha também o direito de violentar o material humano
(Menschmateria{) quando opunha resistência à sua transformação
segundo a " idéia".
Essa tarefa de seleção e de eliminação esteve no coração da
"idéia" nacional-socialista, assim como estava, desde a Renascen-
ça, no coração ela teoria ela arte e ela "idéia elo pintor" : era uma ta-
refa de purificação inseparável da produção ele uma beleza ieleaJ.58
É por isso que Hitler esperava, de "sua" juventude, que demons-
trasse o mesmo "fanatismo" que era, segundo ele, indispensável ao
artista: os "soldados de uma idéia", fossem escolares, aprendizes
ou camponeses, eram, todos, os artistas elo Reich eterno e, simulta-
neamente, encarnavam-no por seus trajes, seus gestos e suas vozes .
Eram convocados, portanto, para a mais nobre das tarefas, c era es-
sa nobreza que exercia sobre eles tanta atração. E essa tarefa era tanto
mais exaltante quantO o era em si mesmo o seu próprio fim, já que
tinha por objetivo a produção do Homem Novo:
"Mas, sobretudo" [dissera-lhes Hitler), " nós lhes pedimos, a vocês,
juventude alemã, que moldem o povo alemão do futuro e que sejam
por si mesmos um modelo para ele" .59
Ao convocar os jovens a tornar-se os artistas do povo alemão
e, simultaneamente, a ser a obra de arte que lhe serviria ele modelo ,
Hitler, conscientemente ou não, fazia seu um dos pressupostos mais
ousados da modernidade, segundo o qual o possível e o real muda-
ram ele posição. Ou, como escrevia Jan Parocka, "o possível não
é mais o que precede o real; torna-se antes, o próprio real em seu
j/0 HISTÓRIA DOS]OI'ESS
processo criador" .6o Mas- e aí residia o "arcaísmo" que Hitler her-
dava da teoria "clássica" ela arte - tratava-se antes de tudo, por meio
dessa representação da juventude, de sair da história para ganhar
a eternidade pela " Arte, eternamente jovem" (Wagner). " O modo
ele vida alemão está determinado com precisão pelos próximos mil
anos" :61 tal era, desde o ano ele 1934, q ue pusera fim à " revo-
lução'' , a nature2a ela juventude eterna que Hitler prometia à ju-
ventude, se ela fosse capaz de se autoproduzir como obra de arte,
exatamente como ele, seu Führer-artista, soubera criar sua própria
imagem imortal, cujos cabelos não branqueavam jamais. 62
O que o nazismo apresentava como um grande movimento de
autopmaução (Selbstgestaltung) da juventude alemã devia ser tam-
bém uma autopurificação: corresponder ao desejo do Führer era não
apenas engajar-se na auto-seleção pelos cantos, trajes, provas c mar-
chas; mas era também desejar-se a si mesmo mais puro, ou realizar
a pura essência de sua alma eterna pela eliminação ele toda altericla-
cle. Rosenberg, em O mito ao século XX, apresentava o modelo desse
amor-próprio que acreditara encontrar em Meister Eckhan: "Ser uno
consigo mesmo" .63
Contudo, o discurso nacional-socialista refletia também as re-
sistênc ias que se man ifes tavam no processo ele unificação pela e na
obra de arte eterna: o judeu, ou antes o " judeu pelo espírito" ,
obstinava-se sempre, dizia-se, em romper essa circularidade perfei-
ta do amor que, apenas ela, podia assegurar à raça sua eterna juven-
tude . Não bastara excluir a p rodução ela "obra ele arte comum elo
futuro" esse "demônio maleável ela decadência ela humanidade",
como o chamara Wagner,64 pois a contaminação atingira o próprio
corpo alemão. Desde 1938, um ideólogo da " biologia política" ad-
vertia a Volksgemeinschaft:
fioje ainda, como nas épocas precedentes, nossa vida amorosa é con-
tinuamente determinada por influências judias. Essas influências ju-
dias são, como vimos, particularmente evidentes na primeira juven-
tude, por meio do rompimento das barreiras entre os sexos.[...] Aquele
a quem o comportamento de uma moça virgem faz rir deve ser decla-
rado contra a m1tureza, assi m como aquele que pretendesse despre-
zar a bravura masculina ou o engajamento heróico, ou então, ainda,
os valores que, na construção do corpo do povo em seu aspecto mo-
ral desempenham um papel poderoso, e mesmo de destinação. [.. .]
Enquanto não tivermos aniquilado o judeu em nós mesmos, nossa so-
brevivência estará em discussão, o problema judeu não estar:í de mo-
do algum resolviclo.65
"SOLU.·WOS UE U.IJA ID ÉIA··, OS]OI'ESS SOB O TERCEIRO REICH ] li
Essa exortação a "aniquilar o judeu em nós mesmos" visava aqui.
essencialmente, os jovens que se reuniam em bandos muitas Yezes
informais, escolhiam seus próprios sinais de reconhecimento , suas
próprias músicas e seus próprios cantos , que "vagavam" mas não
marchavam e, na maior parte, tinham uma sexualidade muito livre.
É notório que os membros desses grupos - cujo número crescerá
consideravelmente com a guerra -, longe de corresponder ao de-
sejo do Führer, tenham apresentado, por sua aparência provocan-
te, um espetáculo com as formas mais " dissonantes" em relação ao
ideal de harmonia da grande obra de arte comum elo futuro.
Quando as HJ cantavam o inevitável Vorwarts! Vorwéirts! que
Baldur von Schirach escrevera e compusera para o fi lme Der Hi-
tlerjunge Quex:
Nossa bandeira flut ua diante de nós,
No futuro entramos um a um.
Manbamos por Hitler na noite e na miséria,
Com a bandeira da juventude, pela libet·dade e pelo pão.
Nossa bandeira flut ua diante de nós.
Nossa bandeira é o tempo novo,
E a bandeira nos conduz à eternidade.
Sim! A bcmdeim é mais que a morte/66
alguns, nos primeiros anos do regime, cantavam sobre uma melo-
dia antiga:
Somos criminosos em vosso Estado
E estamos orgulhosos de nosso crime.
Somos a juventude culpada de alta traição,
Em nós a se1·uidão se rompe [... ] .67
Depois de sua dissolução em 1933, as organizações de jovens
que dependiam dos sindicatos e elos partidos de esquerda e de ex-
trema esquerda haviam feito inúmeras tentativas para reconstituir-se
clandestinamente. Mas as prisões e os processos que se multiplica-
ram até 193 7 venceram pouco a pouco essa forma imediatamente
política de resistência. A partir do ano de 1938, uma vez clesmanre-
laclas as associações católicas, as hostilidades dos jovens se mani-
festaram cada vez mais pelos modos de vida radicalmente incompa-
tíveis com os objetivos do regime. Este, depois de haver destruído
todas as formas tradicionais de autoridade para assumir-lhes o mo-
nopólio, encontrava-se agora sozinho diante do " desejo" da juven-
312 11/STÓR/A VOS }OI'ENS
tucle .. a verdade, incapaz de captar em um único feixe e em seu
exclusivo proveito o conjunto dessas forças libidinais, suscitava-lhes,
ao contrário, a explosão e a dispersão rumo aos múltiplos modelos
que ele tentara reunir sob a denominação de " inimigo único", ou
de "judeu-bolchevismo".
Assim, em outubro de 1944, Himmler, chefe da ss e da polí-
cia, redigiu uma circular relativa à " luta contra as quadrilhas de
jovens"6s na qual era levado a d istinguir entre três categorias de
bandos marginais. Os de ~ará ter criminoso-anti-social", que se ma-
nifestavam por diversos deffiõs tais como a grosseria, as algazarras,
as infrações às regras de polícia, os roubos coletivos c os atentados
ao pudor. A segunda categoria apresentava um caráter de oposição
política, mas sem programa definido, que se manifestava p'irarcjei-
ção das HJ c elos deveres com a Volksgemeinschaft, indiferença com
relação ao curso da guerra, escuta das rádios estrangeiras, ataque
aos membros das HJ, lançamento de boatos, muitas vezes, pela pe-
netração nas organizações do partido nazista para ali introduzir "suas
atividades destrutivas " . A terceira categoria, enfim, era qualificada
por Himmler de "individualista liberal"': seus membros adotavam
os " ideais ingleses", a língua, o comportamento, os trajes ingleses;
preferiam o jazz e a música hot, o swíng etc. Vinham no mais das
vezes elas "melhores classes sociais" c procuravam apenas satisfa-
zer seus desejos, sexuais ou o utros, com excesso, o que os levava
rapidamente a um vivo conflito com a f(/eftanscbauung nacional-
socialista. Dois anos antes, Himmler já preconizara um tratamento
radical para os líderes desses bandos: sua opinião era que os cam-
pos de trabalho ou os campos de jovens eram insuficientes, e que
era preciso enviar "esses tipos e essas moças que não prestam pa-
ra nada" ao campo de concentração, a fim de que recebessem
" um corretivo" ames de ser vigorosamente postos no mais duro
trabalho" .69
Nos meios operários, os bandos recrutavam os jovens que ha-
viam deixado a escola aos catorze anos c ainda não podiam ser in-
corporados ao exército. Preferindo dispor livremente de seu tem-
po a dá-lo aos chefes elas Juventudes hitleristas que vinham das classes
superiores, esses jovens operários juntavam-se, entretanto, aos jo-
vens colegiais swing d~s classes abastadas em um mesmo ódio às
·HJ. No próprio seio das HJ, desenvolvia-se uma hostilidade que po-
dia tomar formas diversas, desde a adoção muito difundida elos "cal-
çados camponeses" (proibidos pelo regulamento por sua perigosa
"SOLD,1DOS DE UJIA IDÉIA '', OSJOI 'F.SS SOB O TERCEIRO REICH 313
evocação da Guerra dos Camponeses) até o espancamento dos pe- .
quenos chefes.
Dessas "_quadrilhas" ou "matilhas", ou ainda grupos "selva-
gens", uma das mais importantes, desde 1938, era a dos " Edelweiss
Piraten". 70 A polícia estimava, em 1942, que somavam, na região
elo Ruhr e do Reno, cerca ele 750 membros distribuídos em 28 gru-
pos em Düsselclorf, Duisburg, Essen e Wuppertal. Havia ainda os
"Kittelbach Piraten" de Düsseldorf ou os " Navajos" de Colônia. Em
1940, haviam sido julgados em Frankfurt a "oK-Gang" e o "Haar-
lem Club" , que existiam desde o início elo ano ele 1939 e que foram
seguidos pelo " Ohio Club" e pelo "Cotton Club". Em Munique,
os " Buschwolfe", com sua estrela ele sete pontas, cometiam rou-
bos coletivos, enquanto que o " Charlieblase" organizava encontros
. com meninas muito jovens nos abrigos. Em Hamburgo, a juventu-
de swing orgánizava imensos saraus dançantes; os rapazes usavam
cabelos compridos ("até 27 em", esclarecia um relatório de polí-
cia), as moças maquiavam-se - o que era proibido na 13DM - e tO-
dos usavam roupas consideradas extravagantes; uma sexualidade
" não inibida" ali era praticada, não tendo por objetivo " dar um fi-
lho ao Führer".
É bastante notório que o ideal ele reprodução da "raça criado-
ra" preconizado pelo nazismo tenha ·suscitadD maciçam~te uma
sexualidade "marginal" que se mostrava perigosa para a " realiza-
ção da Weltanschauung raCista" e, por outro lado, por motivos de
ordem moral opostos, a única manifestação de rua que o regime te-
nha conhecido.71
Enquanto com a guerra, a mobilização maciça dos rapazes e mo-
ças das HJ com fins militares, seu alistamento forçado nas tarefas agrí-
colas (2 milhões em 1.942) ou o deslocamento dos mais jovens para
os proteger dos bombardeios (800 mil em 1944) pareciam, ele ma-
neira· irreversível, dever arrancar ao controle dos pais e da escola
o conjunro dos jovens alemães, a oposição multiforme das inúme-
ras "quadrilhas", "gangues " e outras " matilhas" não traía apenas
o fracasso ela "visão" ele Hitler em realizar-se plenamente . .Mais pro-
fundamente talvez, e para além ele toda hostilidade propriamente
política à ditadura nazista, esses jovens pareciam rejeitar o regime
da Leistung, do desempenho e do rendimento . Eles "sabiam", à sua
maneira, que o desejo do Führer simbolizava essa fé em uma visão
do possível que não precede mais o real, mas que, dizia jan Patoc-
ka, "ames se torna o próprio real em seu processo criador". Nos
314 HISTÓRIA DOS JOVENS
primeiros anos do regime, essa perspectiva pareceu ser para muitos
uma promessa de libertação. Mas, pouco a pouco, ficou evidente
que esse processo criador entregava à mais extrema servidão aque-
les que a ele se submetiam. Exigia deles uma Leistung cada vez maior,
na qual deviam absorver-se por inteiro para dar à "visão do Füh-
rer" um caráter tangível e legitimá-la. Esse processo que fazia deles
os "soldados de uma idéia" exigia que a guerra se tornasse um esta-
do permanente, e que, assim, o processo criador se confundisse in-
teiramente com a negação que existe.
NO TAS
(1) G. Strasser, Kampfum Deutscbland (Munique, 1932), p. 171.
(2) B. von Schirach, Die Hitler-}ugend- ldee tmd Gestalt (Berlim, 19347,
pp. 18-19.
(3) Idem, p. 130.
(4) A. Hitler, Mein Kampf(Munique, 1940), p . 360; 1925 e 1927 para a 1~ ed.,
em dois vols.; Mon combat (trad. franc .]. Gaudefroy-Demombynes & A. Calme ttes,
Paris, 1934), p. 32 7. As referências a essas duas edições serão posteriormente apre-
sentadas como se segue: D 360, F 327.
(5) D 475-6, F 426-7.
(6) A. Rosenberg citado por H. Bauschning, Die Revolution des N ihilismus:
Kulisse u nd Wirklichkeit im Dritten Reich (Zurique, 1938), p. 77; La révolution
du nihilisme (nova ed., trad. de P. Ravoux eM. Stora, Paris, 1980), p . 102.
(7) A. Baumler, Miinrzerbund und Wissenschaft (Berlim, 1934), pp. 159-65.
(8) F. Flieder, in Nationalsozialistísches Bildungswesen (abril de 1937); cita-
do por E. Mann, Zehn Míllionen Kínde1~ Die Erziehung der ]ugend im Dritten Reicb
(Amsterdã, 1938); Dix millions d'enjants nazis (trad. de E. e R. Wintzen & D. Lu-
quer, Paris, 1988), p. 95.
(9) P. Lenard, professor de física da Universidade de Heidelberg, citado por
W. Shirer, Le Troisieme Reicb, des origines à la chute (Paris, 1963), vol. 1, p. 260.
(10) Cit. por E. Mann, op. cit., n~ 8, p. 166; segundo Deutschlands Níeder-
gang und Aufstieg - Bilder aus der Oberstuje der neuen Volksschule (Leipzig, 1936,
715':' mil).
(11) Por exemplo, Der hunzerpastor de W. Raabe (Berlim, 1963), p. 72: "Com
seus cabelos negros emaranhados, Moses ficava ali, constantemente ocupado em
dissecar a diversidade colorida da vida e em comprimi-la nos quadros de uma im-
placável lógica. Quanto mais acumulava conhecimentos, mais seu coração torna-
va-se frio [...]. " Citado por S. Friedlander, L 'antisémitisme nazi (Paris, 1971), p . 83 .
(12) Jakob Graf, Famílíenkunde und Rassenbiologie jü1· Scbüler (Munique,
1935 2), pp. 114-5; citado por George L. Ivlosse, Nazi culture, lntellectual, cultural
·and sociallife in the Third Reich (Nova York, 1981), p. 80.
(13) E. Mann, op. cit. , n? 8, p. 130.
(14) Idem, pp. 3 1-3.
··soLDriDOS DE t'.IIA JDtf.~ ' OS JO I'E,\'S SOB O TERCEIRO RFICH 315
(15) I. Karshaw, Hitler (Londres e Nova York, 1991 ), pp. 35 e 98·9. Ames do
almoço, exigia-se que as crianças de Colônia recitassem esta prece: "Führer. meu
Führer, tu que me enviaste o Senhor,/ Protege-me, vela por mim enquanto cu \'i·
ver!/ Tu salvas te a Alemanha da mais profunda miséria [...]"; citado por ] ohn To-
land, Adolj Hitler (trad. franc. , Paris, 1983), p. 394.
( 16) " Di e Sclmle der Nation ", in V611Jischer Beohacbter, 14 de setembro de
1935.
(17) N. H. Baynes, Tbe speechas oj Adolj Hitler (Londres-Nova York-Toronto,
1942), vol. I , pp. 542-3; A. Hitler, Príncipes d'actions (Paris, 1936), p. 104, suhli·
nhado por mim.
(18) Discurso feitO em Reichcnbcrg em 4 de dezembro de 1938, cit. por A.
Klõnnc,]ugend im Dritten Reicb, Dia flitlerjugend und ihre Gegner (Colônia, 19 52),
p. 30.
(19) 13. von Schirach, op. cit., n~ 2, p. 18.
(20) No fim da República de Weimar, a distribuição dos jovens no seio das
p rincipais ligas era a seguinte: 2 milhões nas ligas esporti vas, I milhão de católicos,
600 mil protestantes, 400 mil jovens sindicalizados, 90 mil socialistas e 45 m il co-
munistas (segundo A. Klünne, "Jugcnd im Drinen Reich ", in K. O. Bracher, M. Funke
& H.·A. j acobsen (o rgs.), Deutscbland 1933-1945. Neue Studiem zur natiomllso-
zialistiscben Herrscbajt (Düsseldorf, 1992), p. 223.
(2 1) J. Rovan, ·' Le 1« décernbre 1936" , in A. Grosser, Diz leçons surte na·
zisme (Bruxelas , 1984 [1976)), p. I 02 .
(22) Idem, p. 117.
(23) Baldur mn Schirach, op. c it., p. 34.
(24) 13racher, Funke & ]acobsen, op. cil., p. 226.
(25) H. C. Brandcnburg, Die GesciJicbte der H. I (Colô nia, 1968), p. 3 11 , e
J. Rovan , op. cir., pp. 104-5.
(26) Cit. por]. Fest, Les maftres du Troisieme Reicb (Paris, 1966), p. 93.
(27) Cit. por W. Shirer, op. cit., vol. 1, p. 279, e H. Arendt, éicbmann à féru·
salem. rapport sur la hanalité du mal (tracl. de A. Guérin, Paris, 1966), p. 153.
(28) Cil. por \Y/. Shirer, op. cit., vol. I, p. 262.
(29) Hitle r, in Klünne, op. cit., p. 30.
(30) A. Hitler, in Baynes, op. cit., p. 542, c Príncipes d 'actions, pp. 104-5.
(3 1) I I. Rauschning, Die Revolution des N ihilismus (1938). p. 77; trad. franc.,
p. 102.
(32) A. Klõnne, op. cit., p. 61.
(33) "Wir sind geborcn, für Deutschland zu sterbcn"; citado por P. D. Stachu-
ra, "Das Dritten Reich und die jugenderziehung: Die Rolle der Hitlcrjuge nd
1933· 1939", in Bracher, Funke & ]acobscn, NationalsuzialistísciJe D i/Jtatur.
1933·1945 - Eine Biltmz (Düsseldorf. 1986), p. 234, n . 46.
(34) Me in Kampj, D 460, F 413.
(35) Der Kongress zu Niirnberg, uom 5. bis 10. September 1934 (Munique,
1934), p . 170.
(36) O. Schoenbaum. Hitler 's social revolution, cfass and status in nazi Ger-
numy (::-IO\'a York, 1967). La révofution bmne- la société aflemande sous /e I!F
RciciJ (trad. J. Ewré, 1979), p. 218.
316 HISTÓRIA DOS}Ol!ENS
(3 7) Com a guerra, esses discursos tornaram-se mais constrangedores. Assim
se dirigia às suas alunas, em 1940, o diretor de uma escola secundária na Alsácia
anexada ao Reich: "É preciso, a partir de ago ra, que tomem consciência de que
são verdadeiras alemãs, e de que o dever principal da mulher alemã é dar o maior
número possível de filhos ao Führcr, um por ano, se ele o o rdenar. Para isto, não
há necessidade ne nhuma de ser casada, como lhes dizem os povos decadentes. Por-
tanto, não rejei te m os avanços dos rapazes e tenham - a partir de agora - relações
íntimas com eles, e com a maior freqüênc ia possível. Esse é o seu dever mais estri-
to" (cit. por Marc Hillcl, Au nom de la mce, Paris, 1975, p. 38).
(38) R. R. Thalmann, "Zwischer Muttcrkrcuz und Rüstungsbe trieb: Zur Rolle
der Frau im Orittem Reich", in Bracher, Funke & ]acobsen, op. cit., p . 205 .
(39) .M . Rumpf e H. Behringer, Bauerndo1j am Grol'stadtrand (Stuttgan c Ber-
lim, 1940), p. 398; cit. por O. Schoenbaum, op. cit., p. 225, que acrescenta (p. 230)
que, segundo o chefe das HJ encarregado do estudo, " isso demonstrava simplcs-
menr.e a força de atração do cinema, da moda c das outras seduções da cicia ele
grande" .
(40) W. Shircr, op. cit., p. 279.
(41) Cit. por O. Schoenbaum, op. cit., pp. 9 1-2.
(42) B. von Schirach, op. cit., p. 76.
(43) A. Klõnnc, op. cit., pp. 86-93 .
(44) E. iv1an n, op. cit. , pp. 268-72 .
(45) Mein Kampf, D 452, F 406.
(46) A formação política final dessa elite cabia a diversas instituições: as Ado!f-
Hitler-Schulen, as Napols (National-politiscbe Erziebungs-Anstalten) c, enfim, as
Ordensburgen que deviam fo rmar os oficiais ss (sobre essas escolas, ve r H. Ue ber-
horst, Elitefür Diktatur. Die nationalpolitiscben Erziebungsanstallen 1933-1945
(Konigstein, 1980).
(47) M. ~laschmann, Fazit - Mein 1\í'eg in der Hitlerjugend (Munique, 1979),
p. 153.
(48) O. Schoenbaum, op. cit., p'. 125.
(49) R. Ley, So/daten der Arbeit (M unique, 1938), p. 64.
(50) L Sc ho ll , Die W"feisse Rose (Frankfurt, 1953; trad. de J. Oelpeyrou, La Ro-
se Blancbe, Paris, 1953), p. 23.
(51) R. Wagner, L'art et la révolution (Paris, 1978), p. 62.
(52) Cit. por Peter Viereck, llletapolilics - From tbe Romantics to Hitler (No-
va York, 194 1), p . 132 .
(53) H. Himmlcr, Discours secrets, B. F. Smith & A. F. Pete rson (eds.) (trad.
de M.-M. llusson, Paris, 1978), p. 45 . Himmler acrescentava: "O Führcr sempre tem
razão, quer se trate de um traje de noite, quer de um bunker o u de uma auto-es trada
do Rcich" (p. 46).
(54) Charles Baudelaire, Curiosités estbétiques. L 'art romantique (ed. ele H.
Lemaitre, Paris, 1962), pp. 454-5.
(55) In Baynes, op. cit., 1, p . 568.
(56) Schleiermacher, Discours sur la relígíon à ceux de ses contempteurs qui
sont des esprits cultivés ( 1799, t rad . de I. J Ro ugé, Paris, "1 944), p . 232, fim do ter-
ceiro discurso.
''SOLDADOS DE /f.\ IA IDÉI.4 ··, OS JOl'EXS SOB O TERCEIRO .'IEJCJi JJ -
(57) Carta de Goebbels a Funw;ingler, publicada em Lokal·Anzeiger, I I de
abril de 1933, cit. por I !. 13renner, La politique artistique du national-socialisme
(rrad. de L. Stein berg, Pa ris, 1980), pp. 273-4.
(58) Ver E. Panofsky, ldea. Corztribution à l 'bistoire du concept de l'ancien-
ne tbéorie de /'art (I 924) (trad. de H. Joly . Paris, 1983).
(59) Discurso do I o de maio de I 936 em Berlim, in Baynes, o p . cit., I , p. '5 48.
(60)]. Patocka, L'art etle temps (trad. de E. Abrams, Paris, 1990), p. 359. Ele
acrescenta: "i\ primeira visra, nada parece mais desejável, mais exaltante que tal
perspectiva. Todos os grilhões sob os quais a humanidade t radicional gemera pare-
cem romp idos ou em vias de sê-lo. Entretanto, ao olhar mais de perto, o beneficiá-
rio dessa libertação não é o h omem enquantO tal, mas a produção" .
(6 1) A. Hitler no congresso do partido, em 15 ele setembro de I 934, Der Kon-
gress zu Nürnberg vom 5 . bis lO. September 1934 (M unique, I 934), p. 28.
(62) Em abri l de 1943, lamema va-se que as imagens de Hit.ler se houvessem
to rnado tão raras nas atualidades: "Uma imagem que lhes houvesse assegurado que
seus cabelos não estavam embranquecidos, como dissera o rumor, te ria agido so-
bre o comportamento dos compatriotas mais positivamente que todas as palavras
de exortação ao combate"; cit. por E. Jãckel, " Hitler uncl clie Deutschen", in Bra-
cher, Funke &Jacobsen, Nationafsoziafistiscbe Diktatur 1933·1945. Eine Bilanz,
op. c it.., p. 7'11 .
(63) A. Rosenberg, Der Mytbus des XX. }abrbunderts (Munique, I 941 [1930],
9l0i:me mille), pp. 234, 2 73, 394. .
(64) Cit. por L. Poliakov, Le mytbe aryen (Paris, 1987), p. 357.
(65) F. Hoffmann, Sittlicbe Entartung und Geburtenscbwzmd (Politischc Bio -
logie, f. 4 , Munique-Berlim, 1939), 5~ ed., pp. 78-9.
(66) In Uns gebt die Sonne nicbt u111er. Lieder der Hitler-}u{!,end - zusam-
mengestellt zum Cebraucb für Scbulen und Hitler-]ugencl vom Ober~(!ebiet \\'lest der
Hitler-]ugencl (Leipzig, 1934).
(67) Cit. por A. Klõnne, op. cit., p. 160.
(68) Ver M. 13urleigh & W. Wippermann, Tbe racial State, Germany 1933·
1945 (Cambriclge-Nova Yo rk-Melbourne, 1991), pp. 238·9.
(69) A. Klônne, jugend im Dritten Reicb, in op. cit., FF p . 23 7.
(70) Ver sobretudo Detlev Peuken , Die Edelweisspiraten. Protestbewegung
jugendlicber Arbeiter im Dritten Reicb. Eine Dokumentation (Colõnia, 1980).
(71) Em fevereiro de 1943, o Caufeiter da Baviera, Paul Giesler, fez em Muni-
que um discurso aos estuclanres da faculdade de medicina; dirigindo-se às estudan-
tes, fê-las saber que "elas não deviam continuar a perder seu tempo nas universida-
des; era preferível", acrescentou ele, " dar um filho ao Führer". Essas palavras, que
feriam uma moral católica profundamente enraizada em muitos estudantes, tive-
ram como resultad o espalhar nas ruas de Munique grupos escrevendo nos muros
" Abaixo Hitler" ou "Viva a liberdade!" e d istribuindo panfletos hostis ao nazismo.
Alguns desses estudantes, que pertenciam já há vários meses ao grupo clandestino
de " resistência passiva" Rosa Branca foram presos e e·x ecmados alguns dias mais
tarde (ver L Seholl, La Rose IJlanche, op. cit., p . 32 e passim).
Tradução do ji-ancês por Maria Lúcia Machado
A JUVENTUDE} METÁFORA DA jVJUDAlVÇA
SOCIAL. DOIS DEBATES SOBRE OS JOVENS:
A ITÁLIA FASCISTA E OS ESTADOS UNIDOS
DA DÉCADA DE 1950*
Luisa Passerini

CAMINHOS PARA UMA PESQUISA

A exploração de dois debates muito diferentes, especulares sob


certos aspectos, faz sentido no âmbitO de uma perspectiva de eles-
construção do conceiro de jovem que começa a impor-se na época
romântica e se consome com a morte do teenager a favor da ima-
gem da criança conforme se observou na década de 1980. Uma pe-
riodização interna desse período deveria ser articulada segundo os
lugares, mas partilharia pelo menos algumas datas: a década da vira-
da elo século, como ·fase determinante para a invenção da adoles-
cência, que retoma em termos psicológicos e sociológicos a idéia
da juventude como turbulência e renascimento, germe de nova ri-
queza para o futuro; força capaz de aniquilar a miséria do passado,
prometendo uma regeneração tanto individual quanto coletiva; a
década de 1960 como fase final daquele conceitO, incluindo os úl-
timos estertores - no que concerne à idéia de juventude - re-
presentados pelos·movimenros estudantis. No plano teórico, os es-
tudantes de 1968 polemizaram duramente contra as concepções
-sociológicas da revolta enquanto revolta juvenil, mas na prática e
na imaginação privilegiaram a figura do jovem andrógino em ver:
são masculina, rebelde à ordem existente e portador elo futuro, com
fé numa igualdade fundada no fato de pertencerem a uma mesma
classe de idade.

(*) Agradeço a Ivlario Isnenghi pela leitura crítica deste ensaio.


320 HISTÓRIA DOS JO VENS

O discurso sobre o jovem c o adolescente, compreendido en-


tre aqueles dois períodos, foi caracterizado principalmente pela ên-
fase no gênero masculino e nas classes médias, não porque tomasse
como objeto só aqueles jovens, mas por adotar sua imagem como
modelo privilegiado ( Para conseguir analisar o.discurso abrangente
da sociedade ocidental sobre ajuventude e a aqolescência em suas
variantes principais, convém preliminarmente passar pelas análises .
parciais de alguns momentos signlfidtivos. Ós debates aqui exami-
nados podem ser assim considerados porque então carregados de
.uma visão ideológica elo social que procedem tanta ela intenção de
construir elites no interior de um sistema totalitário como ele uma
intenção ele garantir a renovação pacífica das classes dirigentes nu-
ma sociedade democrática com alto grau de bem-estar e com a con-
vicção ele ser a nação-guia elos valores ocidentais. Em ambos os ca-
sos, ·depara-se com uma crise ele transmissão patrimonial vivida por
adultos que duvidam poder ver sua obra desenyolvida pelos suces- -...
sares naturais. No primeiro caso , atribuem-se aos jovens os pode-
res ele uma missão salvadora em relaç~o ao partido e ao Estado fas -
cista; no segundo, a capacidade de ser a força obscura e estranh~
que ameaça a corrida rumo a.9 progresso da sociedade americana.
Do ponto ele' vista metodológico, vários fatores, aentre os quais'
a discrepância das fontes - amplamente primárias na primeira par-
te e predominantemente secundárias na segunda - , impedem que
se considere este ensaio como o esboço de uma pesquisa compara-
da . Ele antes se configura como o núcleo ele um trabalho que ilumi-
na diversos momentos em países diferentes - onde o debate se rorna
interessante - , as etapas de dois percursos nacionais, embora eles-
contínuos, do discurso sobre o jovem. Também isso c01·responde
mais a uma intenção clesconstrutiva que ao clássico objetivo histo-
riográfico de uma suposta reconstrução. Assim, não pretendo suge-
rir com esta abordagem que o sistema democrático americano seja
diretamente comparável com o fascista e menos ainda assimilável
a ele, neni que o regime fascista tenha sido precursor em nível mun-
dial ele formas ele socialização modernizadora: o qu~ é verdadeiro
para a Itália, embora na modalidade ele uma moclernizaçao distorci-
da, não pode valer para os Estados Unidos .
(o fato ele que os dois sistemas partilhassem a matriz capitalista
e, mesmo que de modos diferentes, os valores do Ocidente, faz com
que haja semelhanças nas ideologias propostas para resolvei pro-
blemas diversos em contextos diferentes: é similar a ilusão ela recu-
/
As.{i.Q,IIIYJS 1-33 niferem-se ao <msaio de Laura Malvano; as figuras 3 4-41, ao ensaio de Hric JHicbaud.

1. lsti/11/0 Nazionale del/e Assicumz ioni, in NitJista Jllustrala dal Popolo d'ltalia, julho de 1~27, p. 1.
O dcbo "jovem ele idade e helo de corpo".
2. .fu/Jentude, juveutttde!, in Suem sanso e tricolore, catálogo organizado pdo lstituto Nazionale
di Propagand.a Iwlüllla, Florença, s.d., p. 27. A ··primavera ele beleza":
a vis<io idílica da ··força primordial da nova ll;ília".
3. D. [)azzi, T:mfascista. Urescia, praça ela Vitória, 1932. in Rivista Illustrata de! PofxJ!o d'Jtalia,
novembro de 1932, p. 63. A estamália romana a servi~·o do mito fascista.
tf. I. Griselli. O gênio do fascismo, Roma, E42, 1939. A csculmra deveria ter dominado
a grande exposiç<io romana do E42, não realizada por çausa da guerra.
5. M. Sironi, O traba/bo, Gênova, 1931, coleção pri vada. G r;1 ~:a:; à polissemia
da imagem, o efebo, símbolo da juvenrucle, será sucessivamente
"o l.rabalho", "o construtor", "o atleta" ...
6. D. l'onzi, O.ft.tsci.~mo em marcha, 1936. O rnusculoso atleta comparecer&
à x.x Bienal ele Veneza de 1936. símbolo redundante do "estilo fascista".
7. E. clcl Debbio, Fórum Itálico. Roma. 1929-32. Por meio da opm maJ!.mlln elo
regime, a celebrnÇ{io da '·ter<;eira Roma •· de i\lussolini.
nLLt L~ oducazinne fi~ica dBllB nostre camBra1B
t~ di f..ar~
iloJtt,.~l<~,r'
·rir ,.,,lc:.re
r~ ot(~~1t.t
'l• po"fJil•

t. 11:<1 .. u.
i lt' c•;]tl:lt'".-

;..-.mluY ~
;,ltt'J~(:Íi' ~
•fat..d.. lfl'"'J"

d Uft" ~m·
:o. s'U~1 tlch--
~.hh(lthl- Ih ·

nt<id(l:oJI••

H. Giove11fú Fascista, 30 d(: ab ril <k 1932. A "prática esportiva", "espetáculo de uma juv(:ntu<k forte
de espírito e de músculos" assumida enquanto modelo para a juventude fascista.
9. C. Carrà. O jogo de futebol, 1935, in Riuista l/lustra ta de! Popolo d'!talia, abril de 1935, p . 37.· A rigorosa
busca formal da pintura ele Carrà adaptada ao mito esportivo do regime, na n Quaclrienal romana.
10 . .11 educaçâo física de nossas camaradas, in La Picco/a Italiana, 14 de outubro <k 1928, p. 4.
"Sãs, fortes e belas": a educ<1ção física das Pequenas Italianas.
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tY>' ru••t b.•lrrr ~v.·r" ••J,.'llô ,v..ll·
11 wi ,.,d filO!"~ ...~.... õt RIJ(I ' " ' ·~.

11. Mamma l/alia, in I/ Balilla, 29 de: maio de 1930, p. 5.


12. M. Sironi, A espada que sustenta os pastores, in Rivisla Jllustrata de! Popolo d 'llalia,
dezembro de 1936, p. 25.
13. M. Marini, A Itália armada. Mostm da Revolução fascista , sala C, Roma, 1932, catálogo, p. 97.
14. L. Ore_<;tano, A vitória africana. in Nívista I/lustra/a de/ Popolo d '!talia, novembro ele 1936, p. 28.
).lasddo no -clima elo Império··, este monumemo. obra "de: um jO\·em artista do GtJF de Roma",
propõe aos jovens universitários um modelo moderno e fascista da 1ik(: clássica.
LA O I D I ATA "500 ..

15. A Jtiltbada ·5oo··. in Mâes e Fffbos. ouLUhro ele J93!:!. l'ul>licidade c ckmogr:llla.

fUIODJCO HEH51U ANHO IX ..


HUHUO O • lUOliO t9U • lCI t. f.
Sl'tO. IH A.!eONAM. f'OST. • ~~

·~

16. t>artida de colon()s ita/i(IIIOS, i n l·f-nnílitt Fasc ista, julho de 1942.


17. "Itálico" (M. lleltrami), A l/á/ia de pé - Uma família de colonos rmve no rádio do administrador
a palavra do Duce, 2 de outubro do ano XJJJ. Prêmio Cremona. 1939, n• 38.
um anista-militanre anônimo apresema uma epifania da ft:rtilidade camponesa.
18. M. Sironi, Ajamília. Roma, Galeria de Arte Moderna. 1929.
Os arquétipos eternos da "juvemude da estirpe".
20. F. Vecchi, O império salta
da cabeça do Duce. Rivista
!Ilustrara de/ Popolo d'Jtalia,
julho de 1959, p. 45.

19. Du-ce LJu-ce, Mostr<t ela Rc.:volw::tto Fascista, Roma. 1932, carMogo (cara).
A exposição foi a allrn1a~·ào da .. unidade csriritual Duce Itália Fascismo''.
21. E. Pramrolini. Síntese plástica do D11ce, c. 1926.
A attc a serviço da "etc.:rna juvt'nrude elo D1.1Ce ...
22. Os .filhos da loba, in Niuista Jllustrata de/ Popolo d'!tali{l, maio <.1~ 1935:
"Os rebentos da gigantesca forj:t dc luwdorcs··.
23. Rlimulo alimentado pela loba. in Rivistn 11/ustmtn de/ Popolo d 'lwlia,
abril ele 1936. p. 12. Os modelos mí1 kos.
2-!. "A dona ele casa rural Maria llaliani di l\lontignana (l'crúgia) com seus gêmeos ele cinco meses",
de lt De Fdici-L. (joglia. Storiafo to,qmjica de!fascL~nw, l.alerza, Kom:t Ba ri. 198:l. fig . 9:l.
/.-,~~~.-tt f.t /flr~f'.,fitoJ,I,..;,.,...~ (,·.,;.;.
.!! ...~.-; li # rJ..t ~,.. dt Kt. li. F"~'~ co(
~ ,_,....,,;., ,.I ,_,.,,. di k!{uu.. J; A.l<'í''14
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25. Os jitluros /)(I li/la. in li Balillu, 29 de :.tgosro de J 9l9.


p. 10. "Vigorosos rebemos de uma estirpe fecundíssima".
26. "A halilld' Fiat. in Giovelllti Fascista. 20 de abril
de 1932. ü fatídico lan~--amenlo da pedra do "heróico
garoto" e o l an~·ame nt o publicit;írio elo novo modelo Fim.

D. )\.)(J\1 df? ntnio: o pn~mio do f) uce ao bolilln,


in Rivisla !llus/ra/a de/ I'opolo d'ltnlin, maio de 1935.
() premio do Duce ao "pequeno .sokbtdn dn l.rMia".
11B~1it1
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1·:• oi titru t i.:O 1~U<) t' <41)1::\·ot.h" f r~ •!ln!+l~ ,... 1111 "'M J"'IA•II.:~u :
!n ."~~...d.!;l!!.'!-'!!...!:,!!:.'.!:~~-tn•lluo-. s; \•U.lo "'"
tli1Urt .,., r; ~1f~1tfl e ,.~ nlllt;:;lú ol• r .w\t tlil ll l ..t.dJ1i "'"'~
ChU ~~~ t.r.i.l .....:,_

2H. A guerra de Lio, in Jl Ualil/a, 30 ele tmtio de 1929.


I.i o, audaz c destemido balilla.
29. La l'iccola Italiana. 5 de revereiro de 1928, p. 16.
As "Pequenas Italianas". judiciosas c domésticas ··andorinhas da Itália".
30. As jouellS mães dedicadas, in La Picco/a Italiana, 14 de oumbro de 192H.
E', la macchina per cucire
ideara e costruita da ila-
liani. Bella, perfeita, rapida:
la macchina Necchi cuce,
ricama, rammenda. Pre -
[erite la per devere e nel

• HI
· vostro interesse .

' ..~.. _.
..,./

32. Osjllhos da Reuoluçiw, in Rívista lllustrata de! Popolo d'ltalia,


abril d<: 1935, p. 21.
33 ... Ancdiwr·· ( I .. Schi:l\·;~). Jlanbà de festn: XXI 7JJ de outubro.
Prêmio Cremona, 1939. n~ lOH. A imagem doméstica de uma família fascista
através da pintura de um ..artista militame· :mônimo.
31. A "instrucão racial'' (Rassenkwule)
na escola: csrolhc:!-se o semelhante
ADOLF HITLER (de "raça nórdico-ariana") c cxclui-~e
o diverso (o "não ari ano").
FüHRER KANZLER Foto Bilcle rcliensr Süddcutscl1<..:r Verlag.

DEUTSCHES REICH 35. Página de um livro de leitura :


"Adolf Hitler - Führcr- Chanceler-
REICHS- KANZLER Kdch alemão - O chanceler do Keich
HITLER .MAG DIE KINDER GERNE alemão Adolf llitler gosta das crianças
- Hei! Hider!". Srungart,
HEIL HITLERI Wihtcnbcrgischcs LandeBmuseum.
36. Ernil Dielmann, llitlmjunge, s.cl., M unique, Zemralinsrirur für Kunstgeschichte.
..
37. Canaz de propaganda: "A !':Sf'>AP rrotege
a Comunidade do povo. Compatriotas,
se precisarem de conselho c de ajuda,
diri jam-se à seção local".
Londres, Bibliotcc1 Wiener.

38. Canaz de propaganda. 1936;


"A juvcnmde serve ao Führer -
Todos os meninos de dez anos na H itler-jugcnd".
Coblcm:a, Rundesarchiv.
39. Oe~<tlhe de Ji.irgen Wcgcncr. jw·eltlude alemã, afresco. 1937.
J'vluniquc, Zt:nLmlinstirut für Kunstgcschichle.

\\'u l"'i.:.N.•::
\f'l4'fnn::-.r '1\,\(,..,rfultllr.
Bunbastrncht bqs BDm.

u-·~:!oirm~ 1..,.....- u.•"•··~


in e.n cnç.m.finfll . .. eDIJL
il'llln ollgrmtin•n $Qmmrdnlcht inbullllgmwinfll
Wlnttctl'ocM SommtttrCloehl

40. "Aprovamos a saudável cultura física", F. HofTmam1, "Sittlichc Entartung und


Gcbuncnschwund" IOegeneraçào moral c queda da natalidade],
4~ Caderno de /Jiologia Polílica, .Munique- Uerlim. 1939.
41.Uniformcs da Rml (Liga elas jovens Alemãs): Fübreri11 <.listriLal com uniforme comum
ele inverno; moça com un iforme comum ele verão; Fübrerin <.lisLriLal
com uniforme comum de verão. Londres, Biblioteca Wiener.
..t jt..T/i.VTUDE• .1/ETÃFORA D..t .IIL'D..tSC.-1 SOCI..tL ]2 1

peraçào de amigos valores, como a família, a comunidade, a pátria;


mas os conteúdos da ilusão variam, mesmo que as soluções técni-
cas se assemelham. Assim ,os dois sistemas se encontram na execra-
ção de tudo o que é estranho considerado como fator de alienação
e ruptura do elo social que esta implica. Mas no caso do fascismo
todas essas expressões não assumiam um significado pleno , parte
que eram de uma tentativa de modernização precária e inco mpleta,
num laboratório privado de recursos - entre estes, um nível míni-
mo de democracia - , para poder afirmar-se como empenho per-
manente. Ao contrário, no caso dos Estados Unidos expuseram-se
ao máximo rodas as comradições do Iluminismo, ao passo que o
debate sobre os jovens mostrava a crise profunda de um sistema de
valores e de valores negativos concebido como baluarte do Ocidente.
Se o debate na Itália fasci sta expõe as raízes da debilidade dos tota-
litarismos, o dos Estados Unidos na década de 1950 remete para uma
crítica da democracia ocidental e dos seus limites.

O DEBATE NA I TÁLIA FASCISTA

J:"ASCJSMO E J UVEN TUDE

O fascismo herdou da guerra a questão dos jovens, que acom-


panharia o regime durante os vinte anos em que dominou o país.
Mas a maneira de considerar a questão já se havia configurado em
pane ames da tomada do poder por Mussolini em 1922. A Primeira
Guerra Mundial e os anos imediatameme anteriores e posteriores
a ela marcaram de fato um momento importante para a afirmação
de certo conceito de juvemudc. Os movimentos juvenis do início
do século na Alemanha e na Inglaterra tinham posto em primeiro
plano a equação entre juventude e valores nacional-patrióticos e,
ao mesmo tempo, entre juventude c liberdade de toda a sociedade
burguesa e da família. Essas duas atitudes confluíram no entusias-
mo pela Primeira Guerra Mundial, que foi entendida como libera-
ção, pela o rdem existente, de novas energias que retomavam as tra-
dições abandonadas da terra pátria. 1
Também na Itália o esprit de corps, que em várias épocas ani-
mara os jovens das escolas e das universidades, assumiu naquele pe-
ríodo novo vigor, aquele de uma verdadeira consciência de gr'upo .
O intervencionismo teve uma função importante no processo: cs-
31.! 11/STCÍRIA UU) _/UI 'eSS

pecialmeme no sul, os estudantes foram o seu fulcro, movendo-se


em resposta a uma crise social c econômica. No final do período
de Giolitti, milhares deles fo ram obrigados a satisfazer-se com tra-
balhos inadequados às suas expectativas, origem social e grau de c ul-
tura (os estudantes universitários pertenciam em grande pane aos
vários segmentos da burguesia, enquanto os provenientes de clas-
ses sociais subalternas mal atingiam 7%. 2 Simultaneamente, os es-
tudantes rompiam progressivamente com a simpatia manisfesra.da
pelo movimento operário , enquanto o patriotismo da época do Ri-
surgimento degenerava em nacionalistpo. Convém lembrar que o
Partido Socialista naquele período esteve totalmente ausente ela vi-
da esco lar, desconfiando do movimento estudantil, ao passo que
só os ordinouistas de Turim mostravam sensibilidade e interesse em
relação àqucks temas e a quem os apoiava .
Assim, antes de serem objeto de poder, os estudantes foram su-
jeitos da agitação que o movimento fascis ta instrumentalizou e te n-
tou in terpretar. No imecliaro pós-gue rra, tratou-se sobretudo ele es-
tudantes provenientes da pequena burguesia urbana, submetida à
crise que atingia as categorias com renda fixa; de novo os seus mem-
bros mais jovens se encontraram expostos ao desemprego c ao su-
bemprego, o que era acentuado pela condição de ex-combatentes.
Tais processos se combinaram com a total clispon ib ilidaelc ele Mus-
solini para apoiar as reivindicações dos estudantes veteranos, seja
com o Popolo d '!talia, seja com a institu ição dos Fasci ele combate .
(O nascimento elas organizações juvenis fascistas coincidiu com a fun-
dação dos grupos fascistas (fa sei sansepolcristz) em 19 19, quando
se formaram as Vanguardas estudantis com a finalidade de enqua-
drar militarmente os estudantes; estes últimos participaram elas v io-
lências dos dois anos sucessivos ao lado dos esquadrões fascistas. 3/
Além dessa base social, a equação fascismo/juventude se baseava
na idade pouco elevada de muitos chefes fascistas: em 1922, Benito
.Mussolini tinha 39 anos, Halo Balbo, 26, Giuseppe Bottai c Dino Gran-
cli, 27, Robe rto Farinacci, trinta, Cesare Maria ele Vecchi , 38; o mais
velho elos " quadrúnviros " que conduziram a marcha sobre Roma
era Emílio ele Bono, que tinha emão 56 anos:4 Portanto, faziam par-
te da geração da guerra que, nos anos 1915-8, tinha enrre dezoito
e quarenta anos, tendo nascido nas duas últimas décadas elo século.
Mais precisamente, observava Camillo Pellizzi, os homens de ponta
que conduziram toda a ação fascista pertenciam às levas dos nasci-
dos entre 1890 e 1900.5 Mesmo que a adesão não tenha sido tão
A}LTESTI'DF:• .IIF.T.iFOR, l VA .1/CVASÇ.A SOOM 313

ampla como a propaganda quis fazer acreditar, o elemento juvenil


constituiu um componente relevante do período inicial do fascis-
mo:""'.os jovens com menos ele 21 anos representavam 25 % do mo-
vimento de 1921, ao passo que em 1924, entre 220 deputados fas-
cistas, 146 tinham menos ele quarenta anos .6
O fascismo utilizou esses dados geracionais para sustentar sua
identidade com o cornbatentisnzo * e com a pretensão ele represen-
tar in tato a geração da guerra , e até mesmo as aspirações da juven-
tude e m seu conjunto. Os combatentes não fascistas protestaram
contra tais falsificações, lembrando que na Associação de Combaten-
tes, que registrava 300 mil inscritos, em 1924, os fascistas consti-
tuíam a minoria. Mas a equação, embora arbitrária, foi violentamente
apoiada durante vinte anos, dado que os fascistas se arvoraram em
defensores da geração de combatentes " traída" pelo resultado ela
guerra.
Rclançava-se assim uma constelação de conceitOs c imagens já
presentes na história da culwra e uropéia, dando-lhe contudo uma
específica conotação fascista: a conexão juventude/guerra, com suas
decorrências - generosidade, sensibilidade inquieta e antecipado-
ra e, enfim , a morte heróica pela pátria. Tal conexão estivera muito
presente na literatura italiana durante as duas primeiras décadas do
século xx, oriunda do romantismo do século precede nte. Dos fu-
turistas a D'Annunzio, o tema foi trabalhado amplamente, fornecendo
materiais para o uso político que dele faria o fascismo. Por meio de
manipulações políticas do simbó lico, típicas do fascismo, o que era
um esteticismo de literatos iria transformar-se num mito prát ico ela
e ra de Mussolini. Luigi Russo definiu essa operação como uma mis-
tura de " triunfo e amesquinhamento prático do velho dannunzia-
nismo" c escreveu a propósito:
Se nos primeiros vinte anos do século todos desejavam ser poetas " jo-
vens" (giovini e não giovani porque D'Annunzio queria assim) (... )
Mussolini ordenou que a mílopéia dos estetas se transformasse em mi-
t'wgia ela política, c o jogo lite rário tOrnou-se sanguiua e sangrenta
realidade política. 7
Implícita naquela constelação achava-se outro atriburo do jo-
vem, a masculinidade, segundo o termo usado por Giovanni Papini

(')Depois da guerra de 19 14·8, combaielllismo se referia ao estado de espíri-


to que propiciou a criaç'io de associações de ex-combatentes. (N. T .)
324 HJST6Rft l DOS}Ol'liNS

como título de uma coletânea de seus escritos de 1915: a virilidade


era considerada intrinsecamente ligada ao belicismo e à.violência,
contraposta à comodidade, ao dinheiro e à "alma na poltrona". 8 Os
escritOres fascistas haviam de insistir sobre esse nexo, sobretudo
quando a guerra lhes ofereceu argumentos inatacáveis: nas trincheiras
seriam fundidas as três determinações - jovem, macho, guerreiro
- que seriam fundadoras da imagem elo Duce, idealizada a ponto
de conservar uma eterna juventude.
Os antifascistas contrapuseram às mitologias ela geração ela guerra
e dos jovens uma crítica que negava o próprio conceitO ele geração.
Por muito tempo, a esquerda considerou de fato, como escrevia ainda
em 1960 Norberto Bobbio, respondendo a uma pesquisa da revista
/l Pamdosso, que o termo indicava "uma situação sociológica e po-
liticamente pouco relevante' ', e que "os problemas políticos não
eram problemas ele geração, mas ele indivíduos ou de grupos" .9
Entretanto, se os fascistas evidenciaram os limites das categorias uti-
lizadas pelos fascistas, não se propuseram, na maioria elos casos,
fazer delas um uso diferente, atento à realidade social e à coerência
elos elementos míticos empregados. Muito raramente, observou Re-
nato Treves, os antifascistas que assistiram ao nascimento do fas-
cismo tiveram a sensação de pertencerem a uma geração: entre as
exceções, Piero Gobetti, que definiu o seu pertencimcnto a " uma
geração ele historiadores" e Alberto Cappa, que, em 1924, escreveu
para a editOra Gobetti um ensaio sobre o tema. 10
No caso dos que se tornaram antifascistas mesmo sendo "mais
jovens" que o fascismo, a questão se apresenta ele um modo diver-
so. Eles não podiam deixar de sentir-se parte ele uma geração, mas
tiveram simultaneamente a sensação de serem expropriados de um
. sentimento que fo ra proposto e manipulado pelo regime e por suas
organizações de massa. Durante mais de vinte anos, o fascismo pro-
clamou de_vários modós a .sua atenção privilegiada para a juven-
tude, tanto física quanto espiri tual, provocando sobreposições e
confusões entre os vários planos ele significado, que foram particu-
larmente penosas para aqueles que cresceram e se tornaram adoles-
centes durante a ditadura. A dramaticidade dessa experiência foi
relatada nas autobiografias dos muitos que passaram da aceitação
mais ou menos convicta elo fascismo às file iras do antifascismo e
da Resistência. 11
Como tantas vezes ocorre quando se trata de questões relati-
vas à ideologia e ao imaginário, o fascismo se desenvolve de manei-
.~jUVENTUDE, .lffiTÁFOR,l DA .lfUDA J\ 'ÇA SOCIAL 325

ra circular e repetitiva, que não exclui algumas transformações e mu-


danças. Para os jovens isso é especialmente óbvio. De um lado, en-
contramos a reiteração de temas e motivos conhecidos, do outro
assistimos a atualizações exigidas pelas circunstâncias e também a
degenerações ou agudizações do problema. O debate sobre os jo-
vens representa ele várias maneiras um dos temas por meio elos quais
a sociedade rct1ctia sobre si mesma quando não podia fazê-lo mais
abertamente. Constituiu também um momento de auto-reconheci-
mento dos jovens, embora sob as formas distOrcidas impostas pela
atmosfera fascista: u ma demonstração disso é o grande florescimento
de revistas juv~nis no período 1928-43, sobre as quais escreveram
mui tos que viriam a ser alguns dos mais interessantes intelectuais
e artistas do segundo pós-guerra. 12
O direcionamento político-organizativo que a questão dos jo- .
vens havia recebido na década ele 1920, durante o regime fascista,
exprimia a dupla tentativa ele levar adiante uma socialização to ta-
litária e de fo rmar eficazmente uma nova elite política. Em 1926 ,
fora criada a Opera Naziona!e Balilla (ONB), que tornou-se a G io -
ventú Italiana dei Littorio (G IL) em 1937, tendo passado para o con-
trole do partido mesmo quando fo i posta sob a o rientação do Mi-
nistério da Educação Nacional.~ Os meninos dos oito aos catorze anos
eram enquadrados nos balilla, os rapazes até dezoito, nos "vanguar-
distas "; as meninas dos seis aos doze ficavam nas "pequenas italia-
nas" e as moças dos treze aos dezoitO, nas "jovens italianas" (um
dos elementos de novidade reivindicado pelo regime era incluir as
mulheres em suas organizações juvenis). Tais organizações eram obri-
gatórias em rodas as prefeituras) o passo que organizações juvenis
alternativas, sobretudo as católicas, só podiam existir nos centros
com população inferior a 20 mil habitantes. O sistema não devia subs-
tituir a escola, mas estendia também às oficinas quando os jovens
entravam no mundo do trabalho . De qualquer modo, ele acabava
por colonizar inclusive a escola, dado que se esperava dos profes-
sores, sobretudo no primeiro grau, a mais completa colaboração. 13
\ A relevância do sistema de enquadramento juvenil deve ser ava-
liada não só em relação ao exterior, como meio para controlar e
canalizar os impulsos sociais, mas também do interior, como ins-
trumento de formação do aparato fascista: por exemplo, os Grupos
Universitários Fascistas (GUF), que reuniam os estudantes dos dezoito
aos vinte anoS; foram criados em 1920 e não fo ram nunca formal -
mente incluídÓs na ONB e na GI L, mas constituíam um grupo espe-
326 11/STÔR/,1 DOS.fO\'E.VS

cial do J~rtido sob o controle direto das secretarias nacionais e pro-


vinciais.)Desde o início ele 1927, as inscrições ao Partido nacional
fascista foram reservadas à "leva fascista" (depois reabertas várias
vezes, em ocasiões particulares), cujos componentes podiam ter aces-
so a ele ao completar dezessete anos. Uma cerimônia anual rituali-
zava a passagem: no dia 21 ele abril, tinha lugar o rito em que tOdos
os membros elas organizações juvenis davam um passo adiante nos
grupos classificados segundo a idade ou, eventualmente, para o par-
tido.14
A organização dos jovens e ra paramilitar, como indicavam os
nomes romanos das formações (centúrias, coortes, legiões); a místi-
ca da ação c ela violência cominuava a ser estritamente ligada à vi-
são da juventude em conexão com as idéias de virilidade e heroís-
mo. Arnaldo .Mussolini, em Anunonimenti ai gíovani e a! popolo
[Advertência aos jovens e ao povo) lembrava aos jovens italianos
" a máscula poesia ela aventura e do perigo" .15 As propostas que o
regime dirigia aos jovens eram assim altamente contraditórias quando
reiteravam os ideais de maternidade e assistência aos guerreiros, ofe-
recendo em simulrâneo formas emancipatórias nas organizações de
massa e no esporte. Os organizadores se preocupavam em "não afas-
tar muito a filhinha da família" c "não estimular grandes ilusões de
saber, mas sim guiar as alunas para que se tornassem boas donas ele
casa e mães exemplares" . E que mais ofereciam às adolescentes? Cur-
sos ele p uericultura, de higiene, ele economia doméstica, visitas aos
pobres e aos hospitais, e também bibliotecas, contos, sessões ele ci-
nema, recitais, passeios uma vez por ano, sem esquecer ginástica,
jogos, excursionismo, um pouco de atletismo. Mas quando se trata-
va de avançar ideais e modelos, não se podia fugir elo velho parado-
xo ele " entreter as mocinhas com nossas glórias passadas, o gênio
c o heroísmo italianos", campos em que lhes eram reservados só
papéis de segundo plano.
Os oito mandamentos que o fascismo propunha às meninas c
às jovens continham poucas novidades em relação à ordem exis-
tente. Certamente não o primeiro, que lhes recomendava "cumprir
o próprio dever de fi lhas, de irmãs, ele estudantes , de amigas, com
bondade, alegria, embora o dever às vezes seja cansativo", nem o
quarto: " obedecer com alegria aos superiores " ou o sétimo: "evi-
tar a vaidade supérflua, porém amar as coisas belas". Só o terceiro
mandamento - "amar o Duce que tornou a pátria mais forte e gran-
diosa" - dá um enfoque diverso também ao segundo - "servir
à Pátria como a maior de rodas as Nlãcs" - , conferindo ao senti-
mentO nacionalista u ma conotação pessoal e capaz ele acolher for-
mas ele erotismo sublimado. Outras instruções de dever cívico e mo-
ral - " ter coragem de opor-se a q uem aconselha o mal c ironiza
a honestidade" ou "educar o próprio corpo para vencer os esfor-
ços físicos e a alma para não temer a dor " - podiam aproximar-se
um pouco, seja nos exemplos ideais de donzelas heróicas, seja nas
práticas desportivas, daquelas paralelamente propostas aos homens,
mas sem conseguir modificar a contradição de fundo. O último man-
damento - "amar o trabalho q ue é vida c harmonia" - reiterava
um credo difuso, mas ao mesmo tempo não deixava de trazer à men-
te, pelo menos por associação, as normas que desencorajavam ou
impediam as mulheres ele executar determinados trabalhos. 16
A estruturação elo prescmc ensaio retlete as contradições ela Itália
fascista no que concerne às jovens: é significativo que elas apare-
çam tão pouco no debate político, não obstante sua forre presença
na imprensa fascista, no cinema, que cspelha a seu modo a proble-
nütica que aflora no .social. De fato escolhemos dois ângulos par-
ciais, dois pontos ele observação n um mesmo período, 1928-33, para
focalizar algumas imagens: a discussão em torno dos temas propos-
tos pela\ Crítica Fascista) oncle se concentravam as aspirações con-
fusas de renovação e rejuvenescimento do fascismo por meio ele
tomadas ele posições políticas sobr.c os jovens; e uma parte da(pro-
duçâo cinematográficà, como espelho - às vezes também deforn1an-
te, embora de outro modo ' - elo social, que mostrava {t sua maneira
as esperanças e temores dos jovens e sobre os jovens. O tenn.inus
a quo se impõe por si mesmo, no que concerne à história política,
não só no interior do fascismo, mas também nas suas relações com
os opositores potenciais, sobretudo quanto a uma oposição ainda
não formalizada, que poderia revelar-se em seguida particularmen-
te relevante. Antes de 1928, escreveu Aldo Capitini in Ant~fascis­
mo tra i giovani:J i
ainda não existia a pressão fascista sobre os jovens, que depois cres-
ceu e envolveu quase todos. Podíamos ser tranqüilamente, eu e ou-
tros amigos, o que éramos, a menos que não desenvolvêssemos uma
atividade nitidamente ant.ifascista .
O terminus ad quem é quase igualmente fácil de justificar: o
ano ele 1934 abre um período ele atuação do discurso fascista - com
as cclcbraçôes litoriais (um tipo ele estágios anuais que desemboca-
328 11/STÓRitl DOS }Ol't'.VS

vam em concursos sobre temas preparados durante o ano) e os tor-


neios agonais, com as escolas de preparação política c os cursos
especiais de formação para jovens fascistas - que acentua a dinâ-
mica in nuce do período precedente e aprofuncla as tensões. Estas
começaram a dar frutos nos anos 193 7-9. Vamos aqui nos ocupar
do período intermecli<írio, em que a evoJuç:Jo f<IScista esrá como que
suspensa, ponto ele articulação das décadas de 1920 e 1930, quan-
do aparecem na cena pública os jovens que não haviam participado
da Primeira Guerra Mundial nem da marcha sobre Roma e que, em
conseqüência, sentiam necessidade de lançar-se no cenário políti-
co, exprimir-se, ter seu lugar entre os que devem " fazer a Itália
maior" . 18 É um período em que se ampliam todas as ilusões fascis-
tas, que fenecerão nos cinco anos seguintes, em que atinge o máxi-
mo aquilo que Alfassio Grimalcli definiu como "a solidão dos jo-
vens" e em que a confusão das consciências alcançou o clímax. Nas
lembranças do segundo pós-guerra, aqueles anos são recordados
como um período de equívocos e ele certezas ilusórias: os jovens
acreditaram ser fascistas, enquanto acreditaram que o fascismo se-
ria algo diferente daquilo que era ele fato , isto é, uma superação elo
socialismo. 19 Muitos pagaram caro por insistir naquelas ilusões: é
o caso de Sigieri Minocchi, que foi " suicidar-se" na Líbia, saben-
do que era absurdo morrer por tal projeto ou, de Teresio Olivelli:
littore• da raça em 1939 (havia sustentado uma interpretação latina
e católica contra a nazista), que foi massacrado no campo de Hers-
bruck por ter feito a defesa elos judeus. Examinemos alguns aspec-
tos elo período central em que se formaram aquelas ilusões, para
tentar compreender sua gênese e seu uso.

''jOVENS, MENOS JOVENS, ]UVENÍ..'>SI.M0 " 20

A polêmica sobre os jovens foi armada, embora um tanto inde-


finida, porque seus contornos foram determinados pela formulação
forçada das oposições internas ao fascismo. O debate teve um pe-
ríodo ele intensidade máxima a partir de meados de 1928, quando
Giuseppe Bottai retomou em sua revista, Crítica Fascista, dois elos
inúmeros artigos sobre o tema que saíam de vez em quando na im-

(")Vencedor dos jogos liroriais, peça imponamc do arsenal de propaganda


fascista. (N. T.)
A j(JI'e,\ TU> F .IICTÁ FORA DA .II~'DAX(.A SOCIAL 329

prensa fascista, para lançar o provocarório slogan " Confiar às ge-


rações jovens o poder, todo o poder". 21 Bonai era então subsecre-
t:.írio do Ministério das Corporações, cargo que lhe fora confiado
por Mussolini, em 1926, quando tinha trinta anos; em 1929, passa-
ria a ser o ministro das Corporações, função que ocupou até 1932,
quando o próprio Mussolini o demitiu pelo seu " dinam ismo exces-
sivamente perigoso" e pela aversão que lhe demonstraram os in-
dustriais. 22 No p eríodo do debate, Bortai era, portanto, represen-
tante de pleno direito de uma geração que havia obtido com seu
empenho na guerra e na " revolução" postos de comando inusita-
dos para a idade. Ele próprio haYia lembrado, em 1926, que o fas-
cismo conseguira "romper com violência a monótona sucessão das
gerações" e antecipar a troca de uma geração por outra nos postos
de comando, em relação aos tempos da política tradicional, em "pelo
menos dois lustros". 23
O debate sobre os jovens tomou duas direções que freqüente -
mente se misturaram, tendo como seqüelas equívocos e irritações,
mas as divergências foram minimizadas pelo hábito de declarar-se
wralmente ele acordo, típico de um regime totalitário. Em primeiro
lugar, o debate foi em boa parte o eco ele descontentamentos que
diziam respeito em especial à " questão dos postos " . Conforme o
próprio Borrai perceberia, o sistema de determinação elas carreiras
cra um fulcro do poder mussoliniano, mesmo que, com o passar do
tempo, se revelasse de uma grande debilidade: a dcpendência do
desejo ou capricho elo chefe, o peso das intrigas e o cquilíbrio de
amores e ódios tanto entre os partidários quanto entre o Duce e seus
sequazes, a presença de muitos homines novi da política interrom-
piam as tradições que haviam regulado as carreiras políticas e intro-
duziam elementos de instabilidade, ao mesmo tempo em que abriam ·
muitas esperanças para arrivistas e ambiciosos de diferentes valo-
res. O título de um dos artigos q ue entrou na polêmica reflete esse
aspecto, eviden ciando também o caráter de investida que tinha o
assalto elos jovens aos postos de prestígio e de responsabilidade: "Car-
gos para os jovens ou jovens à carga", de Gian Paolo Callegari, cri-
ticava os " jovens de última hora, os mais furiosos", que saem ela
universidade com a fixação dos cargos e "se o conseguem (supo-
nhamos a vice-secretaria do trabalho noturno elo quarteirão dos fa-
bricantes de quinquilharias, como diria o amigo Longanesi) ficam
inflados como um dirigível, autoproclamando-se 'hicrarcas' ., .24
330 111.\TÓRhl DOS J()I'T:.VS

A interpretação de toda a polêmica somente sob esta luz era


certamente reducionista e não por acaso era sustentada por quem
recusava a carga de significados políticos e culturais no senr.ido ele
uma renovação do fascismo que Bottai queria dar à própria questão
dos " postos" . Como resumia Bibliografia Fascista (1929, n ':' 7), q ue,
de modo mais ou menos explícito, demonstrava insatisfação quan-
to às posições " ele sua Excelência Bottai", "os termos ela polêmica
se referem à renovação dos homens nos cargos dirigentes c à valo-
rização elos jovens fascistas" .2 '
Contudo, a questão elos jovens se prestava a suscitar outra, so-
bre a renovação interna do fascismo, ou melhor, esta tendia a
sobrepor-se àquela. Por trás e dentro da primeira polêmica, Borrai
e os seus colaboradores encontraram ocasião para formular críticas
à atuação elo regime fascista, em nome ele ideais atribuídos aos jo-
vens . Contribuíam assim para construir um mito da juventude ,
transformando-o num momento ela luta política, enquanto os jovens
eram usados como sujeitos simbólicos ele uma tarefa essencial ela
socicclac.le inteira e do partido único. Não é casual que se encon-
trem, nos mesmos artigos que tratam dos jovens, rons muito duros
a propósito da liberdade ele expressão e do estado da imprensa fas -
cista:
Hoje, todos sabemos a que se acha reduzida, principal mente nas pro-
víncias, salvo pouquíssimas exceçôes, a imprensa do Partido: é um
co ro inutilmcmc declamador e laudatório, passou a ser de uma mo-
notonia exasperante [.. .]26
[... ] tom rerrivelmemc uniforme da imprensa fascista, ela qual se tenra
eliminar q ualquer tendência ao raciocínio, à c rítica, àquela cliscórclia
concordante ela qual só podem nascer as convicções[ ... tanto que] as
c ríticas fundamentadas e plausíveis se transformam em mau humo r,
que, por vias subterrâneas, é canalizado como imriga, descrédito, ma-
ledicência siste mática e anônima, ironia grosseira c feroz, até que tu-
do regurgita numa inquietude difusa[ .. .arriscando faze r] da Itália viva
um amontoado de autômatos ames trados.27

Além de atacar os " zelado res do regime" , e "o coro declama-


dor e laudatório elas facçôes clomesricadas" ,28 Bottai c seu grupo
polemizavam também com os jovens excessivamente ansiosos por
cargos . Não era aos jovens tout court que devia ir " todo o poder",
mas sim àqueles que fossem de fato fiéis às características ele genc-
rosiclade belicosa, de dedicação, de "inquietúde" q ue cleviam re-
A j l I'F\'T/"DT .IIET.-íFORA D.~ .1/L'DAS(:A )()(.'tAL JJ J

presentar. O último termo era usado por Bottai em sentido positi-


vo, como característica própria dos jovens, mesmo que num país
·'jovem como o nosso " isso assumisse uma configuração bem dife-
rente da que podia ter na velha Europa insatisfeita.
Nessa segunda perspectiva, mais geral, a polêmica oferecia oca-
siões contínuas para dirigir críticas intensas ao desempenho do Es-
tado fascis ta e à configuração de poder em vigor. De tal modo, ad-
quiria mais sentido a provocatória afirmativa ele que era preciso dar
todo o poder às jovens gerações. Porém, evidenciava-se também
a preparação escassa da juvemude fascista; como escrevera com um
linguajar típico Emílio Settimelli em l 'lmpero,29 algumas experiên-
cias tinham sido feiras c muitas vezes o sucessor demonstrara ser
pior que o "chutado". Segundo Bottai, que assim reconduzia a pri-
meira ordem ele p roblemas ao segundo (ao passo que reduzir o se-
gundo ao primeiro era para ele já um sintoma da crise elo fascismo),
a chave para resolver o problema elos postos de comando estava
no Partido, elo qual era necessário afirmar o caráter essencialmente
político, evitando que se perdesse nos meandros de uma atividade
administrativa.
Com tal impostação era inevitável insistir na diferença entre "jo-
vens verdadeiros" e ''jovens falsos", dando origem a confusóes tí-
picas e a mistificaçôes elo modo de pensar c ele se exprimir fascistas
(os mortos que estão vivos, os ausentes que estão presentes, os jo-
vens que são velhos e os velhos que são jovens) e a muitas variantes
sobre o mesmo tema: os jovens não se distinguem pelo ato de nas-
cimento, mas pelo fato de exprimirem o espírito do fascismo; ~ 'jo­
vem em sentido político e nacional é aquele que fez a revolução",
" jovem é aquele que enfeita os seus anos com uma eficaz maturi-
clade fascista""; um fascista é fisicamente inapro para prevalecer nas .
disputas cleit~rais, dado que o fascismo é aristocrático. 3° Assim, o
debate se misturava também à questão de revalidar ao menos par-
cialmente o sistema eleitoral: certos cargos poderiam ser eletivos,
admitia Critica Fascista, quando alguém, logo contestado, conside-
rava até poder desejar o final ele um " suposto 'período ditatorial'
e o reLOrno ao 'métOdo normal', isto é, ao estado de liberdade" Y
Aquela que era definida como a geração ele Mussolini era cons-
tituída por aqueles que não tinham participado da guerra; portanto,
formara-se durante a própria era fascista e não podia contrapor-se
à geração precedente. A obrigação de colocar-se não em antítese,
mas em harmonia, tornava mais difícil a tarefa ele inovação atribuí- /
332 HISTÓRIA DOSJOVE.VS

da aos jovens. Uma geração encontrava-se no poder havia oito anos


- o que certamente não era um longo período de tempo - e toda
a classe dirigente fasc ista, escrevia Bottai, considerada em seu con-
junto, bei rava os trinta anos. A geração que começava a ocupar a
cena pública dizia - às vezes não só por carreirismo - que " um
homem de trinta anos deve ser colocado fora ele circulação". Era
a expressão usada por uma " revista de superjovens", L 'Uniuersa le
ele Florença, que Bottai considerava simplesmente como o achado
indicativo de um estado de ânimo, não de um estado ele fato32 -
um estado de ânimo, podemos acrescentar, vaga e genericamente
liquidatório em relação ao fascismo e aos seus valores. Aí residia a
especificidade do problema num regime de ditatorial: os jovens já
estavam no poder e os mais jovens deviam ser conquistados para
o poder de qualquer maneira, com a pro messa de participação ou
de contribuir para modificá-lo. Os jovens falsos , " q ue fazem po líti-
ca com certidões de nascimento ", contentavam-se com a primeira
p romessa, os jovens ele verdade, "que têm um~ atividade partidária
congruente, fora elo arrivismo concretizado por certificados ele con-
curso", esperavam algo ela segunda. Contudo, separados os jovens
em falsos e verdadeiros, era preciso admitir que havia também ve-
lhos velhos e velhos jovens, por exemplo, diante da nomeação ele
Giovanni Giuriati, " que passou dos cinqüenta anos e que, pelo es-
pírito e pela ação, é mais jovem que muitos de nós" .33
Aos que a acusavam de fomentar o mito da juventude, Critica
Fascista respondia que, ao contrário, os outros é que o sustenta-
vam, por causa de seus interesses, um " mito da experiência e da
velhice", a favor de gente q ue, pela mentalidade e p recedentes, ele-
veria ter sido substituída, mas era irremovível por p ossuir a carteira
fascista "conseguida naquela abençoada época do início de 1926
até aproximadamente a metade de 1927". A atiwde deles não teria
sido modificada, mas simplesmente reproduzida pelos jovens com
" manias sem fundamento de fazer forruna fácil" , associadas com
" po uca vontade de severa preparação e com uma atitude superfi-
cial que beirava a falta de pudor" .34
Da( emerge uma definição do mito que atribui aos jovens algu-
mas "características naturais", isto é, " o entusiasmo, a imp ulsivida-
de, a presteza e o fervor ativo" , a intuição, a audácia e o orgulho,
aos quais devem somar-se outras induzidas pelo fasc ismo: a capaci-
dade de dominar as próprias paixões, a cultura e a preparação polí-
tica. Aqui o debate se conecta com outro, que constituiu cada vez
AjU\ .E.VTI.'DF.. .\IF.TÁ FORA DA .\1/JDA NÇA S OCIAL 333

mais uma das obsessões mussolinianas, a polêmica sobre as caracte-


rísticas naturais do italiano "prático, desenvolto, intuitivo , inteligen-
te", mas pouco atento ao Estado, ao destino da Itália, à renovação
moraJ.3 5
Os defensores elo status quo se escandalizavam porque homens
ele 28 anos eram nomeados para as universidades e recebiam car-
gos diretivos no partido e nos jornais. Camilo Pellizzi, do Resto dei
Carlino,36 lançava um libelo contra o mito da juventude, lembran-
do que a juventude era mais uma pose elo que um mérito. Alessan-
dro Pavolini polemizava com Pellizzi, afirmando que um povo que
se renovava tinha mais necessidade de mitos elo que ele pão e di-
zendo que na realidade não se dera aos jovens o grande espaço que
se pretendia:
a juventude, os cabelos pretos, as peras no queixo à maneira de Balbo
são acolhidos com grandes sorrisos de simpatia nas primeiras páginas
dos jornais, mas quando se vai ao que interessa (.. .] fec ham-se educa-
clamente, sem barulho, as portas na cara ele um jovem.
Todos estavam de acordo sobre o mítico binômio " juventude
e preparação", que era tão difícil ele conseguir e tão difícil de con-
cretizar .37
No início ele 1930, Mussolini lançou Puntiferrni sui giovani,
que Critica Fascista recebeu como um encorajamento a suas posi-
ções, mas que eram formulados como·sempre ele um modo que se
prestava a várias interpretações. Os pontos básicos incluíam: 1) a
programática juvcnilidacle elo regime; 2) a preparação totalitária elos
jovens; 3) seu encaminhamento para o tirocínio político; 4) sua pre-
paração espiritual para o clima moral elo fasci'smo .3H Mas a fórmula
" com méritos pa rit~hios" introduzia no primeiro ponto uma condi- .
ção muito difícil de respeitar, por sua indeterminação, ao passo que
o princípio estabelecido no quarto item (saber obedecer para ad-
quirir o direito, ou melhor, o dever de comandar) caía nos lugares-
comuns habituais que eram alvo de um debate freqüente dos quais
ninguém discordava. Assim como todos concordavam com o cará-
ter totalitário que devia ter a educação da juventude (ponto 2), ex-
ceto divergir depois sobre as modalidades práticas c ideais que ele-
viam presidir o tirocínio político (ponto 3).
Uma vez mais a ambigüidade das formulações mussolinianas ser-
via para mediar e equilibrar diversas posições no interior do fascis-
mo, entre defensores e adversários ela "liberalização" , revisionistas
como Bottai ou Massimo Rocca c intransigentes como Ma l~t parte ou
Maccari. Mussolini não pretendia atribuir às novas gerações um pa-
pel de fato criativo, nem conceder um efetivo relevo político às suas
idéias c propostas; isso teria significado reabrir o debate político no
âmbito elo PNF, favorecendo a democratização do parriclo em vez
de submetê-lo ao Estado.39 A própria Critica Fascista, ao manifes-
tar alegria com a intervenção de Mussolini, devia reromar o tema
ela juventude biológica, considerada garantia insuficiente, c, portal!to,
o dos jovens de verdade/jovens falsos, sentindo necessidade de es-
pecificar que
Mussolini, afirmando que o regime "é e pretende permanecer um re-
gime de jovens'·, quis assegurar que a continuidade da Re,·olução fas-
cisra está confiada aos jon;ns, mas com a condição de que não se apa-
gue neles aquela ânsia de vontade, de criação, de concretude política
que justamente distingue os jovens de verdacle elos fa lsos jovens, isto
é, daqueles cuja idacle parece dar o clireitO a uma irresponsabiliclacle
tranqüila ....0
A revista ele Borrai devia então polemizar em duas fremes: as
oposiçi'ics internas ao aparato político e as solicitações sociais . Es-
tas últimas pressionavam muitas vezes a publicação a rechaçar a co-
biça dos ' ·jo\·ens velhos". aqueles elos cargos, como acomecia, por
exemplo, numa ··~ora de redação" dirigida a '·um jovem camarada
de j\lilào··, que propusera conceder a muiws velhos "o merecido
descanso" e faze r barreira contra a " cada vez mais crescente inva-
são das mulheres "; 11 na resposta, o camarada era acusado de con-
fundir o problema do comando com o da colocação profissional.
Formular o problema do comando de modo adequado ran1bém sig-
nifi cava, para Bottai e seus adeptos, teunir os jovens ele diferentes
segmentos sociais e sobretudo as instituições com as quais se rela-
cionavam. Tratava-se de fazer os universitários participarem do mun-
do do trabalho, o que em termos fascistas queria dizer, por exemplo,
que os GUF começavam a estabelecer convenções com as confede -
rações .sindicais. Era .sempre uma concepção organicista das relações
de poder, mas com aspectos estimulantes para a questão elos jovens,
c que se tentaria põr em prática na segunda metade da década de
1930.
i\ grande preocupação que acabou por unificar a rodos deveu-
se "àquele sentido ele estranheza" difundido entre os jovcns 42 c que
foi mais tarde evocado tão bem por aqueles que o tinham vivido
, \ .fl.-YF.ST/ .{)E .1/F.TAFOR;I Drl .l/I;Llri.YÇ 4 SOCIAL 335

depois da queda do fascismo, em geral não antes da segunda me-


tade da década de 1950 e início da década de 1960. De faro , só a
perspectiva histórica teria permitido a estes últimos entender a com-
plexidade dos processos pelos quais haviam passado. No início da
década de 1930, as co isa~ eram muitas vezes confusas c equívocas.
A própria formulação do problema em termos de geração e ra misti-
ficadora - pelos outros problemas que trazia à baila e também pe-
los que encobria·e deslocava- e isso explicava a desconfiança dos
anti fasci stas em 1:clação àqueles termos. Nesse sentido, é significati-
va a reação dura e corajosa de Luigi Russo a tOdo o debate , no mes-
mo janeiro de 1930: 43
Não somos daqueles que amam a juventude pela juventude. Quere-
mos os jovens só porque desejarnos tornar-nos o u ser homens r...J à
palavra jovem sempre agregamos um significado de falha e de imatu-
ridade; e se não i1os envergonhamos ela juventude, tampouco nos van-
gloriamos dela.
Seguem-se ex pressões de desprezo em relação àqueles que se
fazem passar "por eternamente jovem" - não ternos clificulclacles
em captar por trás ela definição o aparato elo juvenilismo mussoli-
niano e fascista -, exemplificaclos por Marinetti, que " para todos
os jovens ele cinqüenta anos canta o hino da juventude eterna" . A
referência a Mari netti é particularmente significativa, uma vez que
a tese ele Russo, que encontramos em sua rcdaboração mais tardia,
j:.í insistia a respeito da degeneração do mito literário e sobretudo
dannunziano ela juventude num mito político que justificava vio-
lências e abusos. Dentre os que usavam o mito degenerado, Russo
incluía "os energúmenos ela popularidade, apesar de cstar.em entre
os falsos aplaudentes, os taumaturgos da perpétua juventude, os in-
ventores ele estilos sempre novos e de novas especificiclacles, os se-
dutores de menores" , enquanto ironizava " o contemporâneo de 25
anos", que se contentava - em contraste com os ideais elo giouine
ele D'Annunzio - em assediar a redação ele um jornal ou de uma
editora, uma provedoria, uma prefeitura ou mesmo a direção ele um
hotd ou ele um colégio de moças, "qualq uer coisa, desde que hcm-
vesse algo para dirigir" . Assim se retornava ao princípio e "a mo-
desta conquista ele um lugar ao sol" ressurgia como o inevitávd re-
sultado do sistema ele poder fascista .
Em o utubro ele 1930, as discussões reativaram-se por causa ela
instituição dosFasci juvenis, q ue deviam representar um momento
336 HIST6RJA DOS]Ol'ENS

de preparação para a inscrição no partido . Bottai fo i contra, temen-


do que esses núcleos fascis tas juvenis se tornassem meras estruturas
de recrutamento, em vez de conseguir levar ao partido "o agudíssi-
mo espírito subversivo" elos jovens; na verdade, ele desconfiava ele
um partido de massas e da conseqüente burocratização, permane-
cendo fiel a uma concepção elo partido como grupo escolhido de
militantes conscientes.44
De qualquer modo, 1930 é um divisor de águas no debate so-
bre os jovens~ao passo que nos anos precedentes isso refletia o de-
sejo de normal izar a relação entre as gerações dos grupos armados
e as sucessivas, depois dos contragolpes da cr.ise econômica, os ter-
mos do p roblema entrelaçaram-se cada vez mais com os elo debate
sobre o corporativismo e a crise econômica.45 Também é o perío-
do em que começam a acentuar-se c a exprimir-se abertamente elo
lado fascista o reconhecimento da crise no plano espiritual e a en-
trega aos jovens das esperanças de regeneração elo primeiro perío-
do com grupos de choque. Naquele ano foi publicado o romance
de Mario Carli, L 'italiano di JV!ussolini,46 cujo protagonista provém
da experiência dos Fasci da praça San Sepolcro: seu fracasso em
rornar-se o homem novo e sua morte num aeroplano deixam como
única perspectiva para continuar sua ação o futuro do filho recém-
nascido, "italiano de amanhã" . Desconfiança e desilusão elos intran-
sigentes expressas pelo romance podiam estender-se à debilidade
da ideologia do "homem novo", que surgiu de forma recorrente
no fascismo, sempre associada à idéia ele jov~m.
Um pessimismo igualmente nítido é posto em foco pela troca
de críticas entre Ojetti e Bottai no início de 193 1, sobre os resulta-
dos da formação de uma classe dirigente fascista: Borrai havia cal-
culado seu contingente em cem-duzentas pessoas; Pellizzi, que in-
terveio logo depois, foi ainda mais drástico: "Eu diria até menos que
cem-duzentas pessoas" .47 O próprio Pellizzi esteve, alguns meses
depois, no centro de uma nova batalha sobre a questão dos jovens
com quatro cartas publicadas por Il Selvaggio e comentadas por Mino
Maccari.48 As cartas inseriam-se na contraposição entre esta revista
e a de Bottai: Il Selvaggio suspeitava que sua proposta de strapaese*
fosse identificada com a do "pequeno-burguês egoísta, charlatão e

(• ).Corrente literária (primeiro pós-guerra) que p rega va um retOrno às tradi-


ções regionais. Exaltava os valores " saudáveis" do campo, contrapondo-se a qual-
quer tipo de cosmo politismo. (N. T.)
A}CI'ESTL'DE. .1/ETÁFOR,\ n,t.II!.'DA.VÇA SOCIAl. 33 -

presunçoso", acusado de cortesania e de conservadorismo, alvo po-


lêmico de Critica Fascista. Também Pellizzi tomava posição con-
tra esta última, em particular contra Gherardo Casini, que em suas
páginas havia definido como "verdades específicas" suas descobertas
a propósito do corporativismo. No núr!lero seguinte, Pellizzi não
deixava de dar razão a Borrai -aliás, os dois tinham estado muito
próximos na década de 1920 - mas acabava implicando com os
jovens, afirmando que as simpatias deles tendiam para o comunfs-
mo c considerando que no período mais recente "nada contribuiu
para desenvolver nos jovens o sentimento da autonomia espiritual,
da liberdade". Algo como dizer que as esperanças de Bottai nos jo-
vens eram injustificadas e que, se estes se mexessem, não seria no
sentido de renovação do fascismo, mas sim fora dele.
Il Selvaggio mantivera uma posição nitidamente negativa Fente
aos jovens até o ano precedente; depois de 1930, tal :Hitude muda-
ra em parte, graças à perspectiva da chamada " terceira onda" de
jovens desejosos de unir-se à " revolução" .49 Devem ser integradas
nessa nova perspectiva as intervenções de Pellizzi e os comentários
do diretor, Mino Maccari. Porém, apesar das boas intenções, pare-
ce difícil discernir nos textos deles um modo pelo qual " os instin-
tos naturalmente subversivos elos jovens" consigam encontrar " uma
forma de transformação nobre c utilização para as finalidades fas-
cistas".
Também o debate direcionado pelas cartas de Pellizzi aponta-
va para o segundo universo de significados da polêmica sobre os
jovens e atacava a classe dirigente, que, conforme o estudioso, "não
só não existe no regime, mas nada indica que venha a formar-se":
a única realidade, lamentava Pcllizzi, consistia no faw de que havia
" começado a constiruir-se uma classe fechada ele funcionários polí-
ticos e corporativos", dado que o regime "resumia-se a três pala-
vras: Mussolini, grupos de choque (squadrismo), burocracia" . Em
tal clima político, não havia por que admirar-se elos resultados so-
bre os jovens, que
são educados para não duvidar nem discutir, e isso não é inteiramen-
te negativo; mas quando começam a querer pensar por si, verifica-se
claramente que não tem o caráter nem o treinamento para fazê-lo, sem
cair nas heterodoxias mais inúteis c ridículas; das quais passam, num
segundo momento, para uma atitude entre o abúlico e o hipócrita, den-
tro de uma disciplina superficial.
338 TI/STÓJ<IA V OS jOI'E.\'S

Abulia, hipocrisia, superficialidade. Atitucks que nasciam espon-


taneamente como resposta a propostas misrificadoras e irrealist.as
como aquelas que fazia o próprio Pellizzi ao falar do "fascismo co-
mo liberdade " (numa das cartas de Londres, em abril de 1932, sem-
pre para Il Selvaggio) . Essa posição impunha paradoxos e ex tremis-
mos que excluíam qualquer correspondência com a realidade: dentre
os primeiros resultava, por exemplo, que Bcnecletto Croce havia tor-
nado i/libera [não livre] a liberdade; entre os segundos surgia o prin-
cípio ela "substituição integral dos hierarcas" , "em sua maioria pa-
rados na psicologia de catorze anos atrás" .
O tom de Borrai era bem outro. Ele negava que fosse preciso
pôr a questão em te rmos tão dramáticos e nesse semiclo respondeu
à pesquisa que, em 1932, a revista Il Saggiatore dedicou à nova ge-
ração . Entre as perguntas estavam incluídas questões assim: se en-
tre os jovens era possível encontrar "uma atitude espiritual bem de-
lineada que [dessej um novo alento à c ultura e à vida"; a conclusão
era que existiam três geraçôes em desacordo: a pré-bélica, a do tempo
ela guerra c a nova do pós-guerra. ;o Mas Bottai excluía que tal de-
sacordo implicasse uma atitude liqüiclatôria contra o que fora feito
pelo fascismo no poder. A solução que ele propunha estava nos ter-
mos elo corporativismo :
as novas gerações poderão desempenhar uma grande tarefa passando
da fase atual de justaposição da organização política e ela organização
sindical-corporativa para uma outra ele integração e ele fusão em que
as instâncias de uma e de outra atuem jumas5 1
Essa p osição otimista era uma das contradições que caracteri-
zavam Borrai, mas também uma elas razões pelas quais muitos jo-
vens o consideraram uma personalidade-guia e foram atraídos pela
"revolução corporativa" . 52
Na realidade, não obstante diferentes avaliaçôes da figura de Bot-
tar, todos os intérpretes concordam sobre o fato ele que nem a ado-
ção ele uma política de rcvisionismo rota! teria logrado garantir a
sobrevivência çlo regime: por um lado, os jovens mais sérios e em-
penhados politicamente criticavam quase rodos os aspectos da rea-
lidade política, econômica e social;53 por outro, o próprio regime
demonstrar-se-ia incapaz de urna liberalização do partido e djj. ad-
ministração estatal.
Em 1933, Giulio Santangelo definia como "poeirenta" a polê-
mica sobre os jovens, e invocava a propósito " as afirmações claras
A.fi,TE.\'TITJF:, .1/ETAFOii~ V~ ,1/UV~.\'Ç:rt SOCIAL 339

do Duce" contra " as vagas dubiedades de sua excclt:ncia Bottai" .


Os dois concordavam em recusar como absurdas e ridículas as po-
sições daqueles que chegavam a substituir a luta de classes pela luta
de gerações, mas divergiam sobre todo o restante. Bottai havia irri-
tado o interlocutor ironizando sobre os "adesist~ls ele primeira hora"
e tinha até lançado uma de suas fórmulas sugestivas e provocató-
rias, garantindo que " o problema elos jovens é o problema central
do fascismo". A juventude como "condição especial elo espírito e
da consciência" continuava a ser para ele metáfora elas tarefas prin-
cipais de " formação moral, espiritual c política" do poder polír.ico
na Itália, ao passo que não eram dignos elo nome devido à idade
os "rapazes debilitados e tristes nas antecâmaras" .54
Um dos colaborâclores mais próximos de Bottai , Agostino Nas-
ti, insistia na polêmica, considerando preparados não mais do que
três-quatro jovens num grupo de aproximadamente cem universi-
tários que haviam participado das discussões sobre "Os jovens e o
regime" no Instituto Nacional Fascista de Cultura ele Roma. Segun-
do Nasti, viam-se neles os efeitos dos " discursos superficiais e re-
barbativos" a respeito elas " águias romanas, das estradas consula-
res, elas missões universais, da salvação ela civilização ameaçada",
que só ensinavam aos jovens " banal retórica jornalística" .55
Esses eram registros recorrentes em Critica Fascista, em cujas
p:-íginas lamentava-se freqüentemente ele que não havia mais "idéias.
Procuramos em vão por elas no grande pântano da retórica" . O pro-
blema aumentava de dramaticiclacle quando se referia ao futuro re-
presentado pelas novas gerações: "Queremos que também as crianças
se alimentem das fraudes que nos são preparadas pelos chamados
pensadores do fascismo?" , perguntava-se outro colaborador de Bot-
tai, Giuseppe Lombrassa,56 que devia admitir:
para vergonha nossa devemos confessar não ter a preparação, a cultu-
ra política de muitos jovens liberais ou socialistas de vinte anos atrás,
os quais conheciam profundamente, do ponto ele vista ele suas dou-
trinas políticas, é claro, os problemas políticos, sociais, econômicos
italianos e estrangeiros.
As imagens da juventude percebida como "frescura e força, en-
tusiasmo transbordante, exuberância" , e também como " invenção,
originalidade, criação", se contrapunham cada vez mais à realidade
descrita, em 1933, por Romano l3ilenchi, com tons autObiográficos:
" Falo ele nós que temos entre vinte e 24 anos e que somos chama-
340 HIST(') R!A DOS jO VIfNS

dos de diversas maneiras, rodas muito engraçadas: jovens, juvenís-


simos, promessas, aurorais etc."57
Segundo Bilenchi, os jovens não ouviam tudo o que se dizia
sobre eles, " desprezavam as discussões c, mais terrível ainda, igno-
ravam os que discutiam" . Os jovens desprezam tudo, insistia o au-
tor: ··criaram um outro me ne frego [csrou me lixando) novíssimo
e bastante cómodo", tanto que encontrar um emprego para lixar-
se de tudo tornou-se uma frase na moela. Em relação a esta análi-
se, a frase colocada pelo autor no final ele seu texto, embora em
boa-fé, parecia incongruente e postiça: " A nossa eleve ser uma viela
de fé e de emoções" .
Nos anos seguintes, por mais um dos típicos paradoxos fascis-
tas, a criação dos jogos Litoriais propiciaria ocasiões privilegiadas
para os jovens, em particular os universitários, e ao mesmo tempo
criaria uma situação da qual sairiam muitos antifascistas .ss Aquilo
que muitos tinham expresso no período 1928-33 sob a forma de
indolência e corrida aos cargos seria substituído nos anos seguintes
por sintomas precisos ele inquietação e renovação. Talvez ambas as
manifestações fossem sintomas de uma atitude que passava ela apa-
tia ao protesto, compreendendo a mesma ansiedade em relação a
antecedentes de wdo tipo: " A impossibilidade de ter mestres é uma
das condições essenciais de nossa juventude e quem sabe a prova
de sua índole revolucionária", escreveria Giaime Pintor, que nas-
cera em 19 19 c que lamenta va aprender com os coetâneos em vez
de fazê- lo junto aos mais velhos, naquela "ascensão progressiva"
que o levaria a formas novas de oposição e de antifascismo. 59

IMAGENS DA MODERNIDADE: OS JOVEN S NO CINEi\I!A 60

Paralelamente ao debate sobre os jovens no âmbito cultural e


político, a produção de fllmes italianos testemunha uma atenção cres-
cente pelo mesmo tema, embora, por razões intrínsecas à história
do cinema, os títulos se concentrem nos anos 1932-4.61 No cine-
ma, as figuras dos jovens são chamadas a representar dramaticamente
as novidades e as dificu ldades dos tempos, a crise própria da mo-
dernidade, a incerteza dos valores, a força da mudança e as perdas
que daí derivam. A equação entre jovens e modernidade é repre-
sentada de vários modos, mas é sobretudo a ambivalência do mo-
derno que se mani fes ta na bifurcação das escolhas que se oferecem
r1}U1'ES7CiJE. .lll:TÃFORA DA .1/UiJA.\'ÇA SOCIA L 341

aos jovens, numa espécie de terra de ninguém, ainda não hipoteca-


da. "Moderno" pode significar sem raízes e deslocado ou então re-
solutamente, " fascistamcme" decidido a mudar a si próprio e o mun-
do. Portanto, a temática dos jovens se manifesta antes de mais nada
por meio ele uma opção ele vida, que fre qüentemente contrapõe,
segundo estereótipos renovados pelo fascismo, o desperdício e a
dissipação e o compromisso de trabalho. A escolha se apresenta de
modo diferente para as personagens masculinas e para as femininas.
Todavia, mesmo no caso das primeiras, muitas vezes vemos agregar-
se figuras de mulheres, que se revelam determinantes em favorecer
ou definir as decisões existenciais ele seus companheiros.
Num dos filmes italianos de transição do cinema mudo para o
sonoro, Rotaie, de Mario Camerini, de 1929, um casal de jovens
apaixonados e sem trabalho é representado na paisagem tipicamente
moderna, expressionista, ela cidade noturna. Enquadramentos geo-
métricos, chaminés c trilhos que se cruzam, escritas luminosas ela
publicidade, que evocaram aos olhos dos críticos as lições do cubis-
mo e do futurismo, representam também o fundo mais adequado
para dois rebeldes, insatisfe itos com a ordem existente. O casal jo-
vem que tenta escapar das p ressões sociais, por meio da aventura
permitida por uma carteira que é achada, represema bem uma idéia
liminar da juvemude, como passagem carregada de utopias perigo-
sas. Mas as esperanças ele mudar revelam-se ilusórias e os trilhos,
como já antes as engrenagens do relógio, voltam à tela para lembrar
o destino, a promessa do futuro, a dureza das máquinas e a cegueira
de seus mecanismos, sem falar na conexão entre juventude e tec-
nologia. Uma família do povo encontrada no trem- mãe que ama-
menta, menino que oferece uma fruta à moça, pai vestido de traba-
lhador que aceita um cigarro elo jovem - propõe o modelo a ser
seguido. Nas escolhas oferecidas aos jovens, nes te como em outros
filmes, o povo é represcmado em sadia sujeira, forte c sorridente,
contrastando com os grevistas fracos e afetadamente elegantes; por
vezes, as imagens são muito belas, remetendo aos modelos de Siro-
ni, Carrà, Rosai, e indicam o esforço para encontrar uma relação com
a realidade sociai.62 Rotaie termina com uma multidão de operários
saindo da fábrica, dentre eles um jovem: a namorada, com outras
mulheres, vai ao encontro dele e juntos rumam para uma vida de
\ trabalho.
- "Moderno" pode também querer dizer indiferente a todos os
valores, novos e antigos, segundo um modelo ilustrado no roman-
342 flfSTÓRlil DOS }OI'E:\'S

cede Moravia de 1929, Os ind~ferentes , que foi criticado pelos de-


fensores do mito fascista da juvcntucle .6:; Aquele modo ele ser sig-
nificava, e não só para esses últimos, que 'os jovens não encontra-
vam no fascismo motivos para desdenhar a indiferença. Tratava-se
porém, observava o crítico fascista, de jovens abastados em ambiente
urbano, o único em que podiam surgir casos elo gênero. O cinema
retoma com freqüência tal argumento. Come le.foglie, de 1934, (tam-
bém este de Camcrini c extraído da comédia homônima ele Giusep-
pe Giacosa), contrapõe uma famíl ia ele alta sociedade e seus amigos
ao primo bom, trabalhador, honesto, generoso. Este último não apre-
senta o tipo físico do jovem: é gordo, mais adultO q ue jovem, sabe
falar inglês, mas o u tiliza no trabalho e não para dizer week-end, co-
mo fazem afetadamente os jovens esnobes coetâneos ele Nennele
(lsa Miranda). Esta sim é abertamente jovem e capaz de resgatar-se
do mau começo por meio da disponibilidade para o trabalho e do
amor pelo primo.
A tônica sobre o empenho profissional, que associa ricos e po-
bres, lembra uma continuidade dos valores capitalistas que o fascis-
mo confirma c acentua, mas neste caso sem marcas particulares. Ao
contrário, é interessante notar a polêmica potenciaf com o uso po-
lítico ela categoria de jovem, dado que o empenho civil exaltado
nesses filmes está muitO distante elo político; servem para os jovens
neles rcprcsenraclos as palavras com que Ugo Ojetti justificava os
seus conselhos a um amigo de vime anos:
o mais obscuro médico do interior que salva a viela de uma criança
o u o mais humilde cidadão que, com a fúria dos braços c da premoni-
ç;1o, multiplica o fruro dos campos fazem política mais saudável c di-
reta, istO é, fortalecem a nação melhor do que se fossem discursar ou
apíaudir num comício 6 1
Portanto ,(o trabalho estava no centro da troca de opinião que
ocorria em corno ela idéia de jovem fora e junto elo aparato fascista,
c a insistência sobre ela - que em geral reiterava a ordem consti-
tuída - podia às vezes ter um significado anticonformista, na me-
clida em que antepunha seus valores aos ela carreira políti~.
O cinema elo qual estamos falando foi considerado pouco fas-
cista e é sem dúvida diferente ela produção mais abertamente baju-
ladora do regime, não muito difundida. No interior desta última, con-
vém lembrar Camicia nera, de Giovacchino Forzano, c Acciaio, de
Walter Ructmann, ambos de 1933, e Vecci:Jia guardia, de Alessan-
A)L'l 'ES1'CDE. .1/ETÁFO//A DA .l JI,D d SÇA SOChl f. 343

dro Blasetti, ele 1934, Os três filmes colocam no centro as relações


entre as gerações, que passa a ser um problema crucial nos mo me n-
tos em que.: é importante e difícil promover uma transmissão que
interrompa a tradicional. Contra o fundo fortemente ideológico des-
ses filmes, a representação elo jovem passa por uma linguagem ex-
pressiva, densa de alusões simbólicas, apesar do realismo formal.
Para e ntendê-las é necessário conhecer a bagagem cultural elo fascis-
mo elos primeiros tempos c.: os significados que lhe foram atribuí-
dos naquele contexto: em Camicia nera, 6 5 os pântanos pontinos
constituem a paisagem, mas aludem também ao duplo saneamenro
da Itália, físico -geográfico e político-moral, anunciado por Mussoli-
ni em 1926, enquanto o protagonista é um ferreiro, ofício fatídico
num país em que o chefe é conhecido como "o fi lho do ferreiro ";
Acciaio rc.:presenta o drama de um jovem soldado (ela mesma tropa
em que servira Mussolini durante a guerra) que depois do serviço
militar não consegue reinserir-se na vida cotidiana.
Naqueles filmes abertamente ideológicos, a relação entre gera-
ções sempre se configura como relação entre ho mens, ao passo que
as mulheres são marginais e pouco marcadas: c.:m Camicia nera , tu-
do se dá entre o ferreiro e seu pai, entre o ferreiro e seu filho pe-
queno, que ele lava com afeto no domingo de manhã (a esposa é
quase inexistente, enquanto à irmã elo protagonista é confiado o so-
nho inútil ela emigração, sem êxiro); em Vecch ia guardia, Blasetti
ambienta em outubro de 1922 , entre greves generalizaelas, uma his-
tória ele três homens, símbolos de três idades na mesma família: o
velho doutor; o filho primogênito que volta da guerra , mestre e chefe
de uma tropa de choque fascista; o filho caçula, jovem vivaz e inte-
ligente, que será vítima dos vermelhos. As mulheres têm papéis ele
apoio , estereotipados: a mãe-esposa, de quem é preciso esconder
tudo para evitar-lhe angústias, a jovem pro fessora co rajosa que fica
noiva do chefe fascista, a menina a q uem o rapaz atribui a tarefa ele
costurar-lhe a faixa preta ele uma farda improvisada. É a geração cen-
tral , a elos homens que salvam a Itália da decadência, da corrupção,
da inércia dos poderes públicos e da prepotência elos socialistas; as
outras duas invejam o seu papel c tentam imitá-la inutilmente.66 A
figura elo jovem Mario alude às suas dificuldades de inserção - ca-
raCLeríslica da geração que, no início ela clécada ele 1930, estará no
centro elo debate sobre os jovens, ~ que sucumbe heroicamente,
enquanto o velho pai dá voz ao culto elos mártires morros pela pá-
tria: "Rumo a Roma, rumo a Roma ... Mario está aqui, venha conos-
co, rumo a Roma, rumo a Roma" .
]44 111.\TÔ R/A IJO.\ } O I 'E.\S

A rcferencia à juventude ganha sentido justamente em relação


à centralidade da relação emre pai e filho: nenhuma elas três gera-
ções representa literalmente o jovem, mas o apelo à juventude en-
volve rodos os três . Juventude como capacidade de ver além do
presente, de estar disposto para o sacrifício, para a guerra, para a
defesa da própria terra; juventude como generosidade contraposta
às preocupações mesquinhas ou de visão estreita ele quem quer emi-
grar. A contraposição pode ser entre personagens igualmente jovens,
mas armados de valores fascistas em níveis e modos diferentes: em
Acciaio,6- a luta entre os dois companheiros de fábrica pela mes-
ma mulher se decide a favor elo ex-combatente, impetuoso c aven-
tureiro, em detrimento do que faz mais poses e é descuidado, que
ficou em casa e antepôs os valores do sentimento à lealdade entre
companheiros de trabalho c gente ela sua idade. Nesse fi lme, as ima-
gens cl::ts fábr icas de aço Terni querem sublinhar a relação entre as
máquinas c a masculinidade, não como força bruta, n1as como in-
teligência; a juventude se afirma tranqüilamente como domínio ela
tecnologia. As cascatas c a água que corre - imagens que surgem
repetidamente na tela - reiteram sua afinidade com a juventude,
como símbolos ele poder, ele inevitabiliclaclc, mas também ele ener-
gia a ser utilizada para o trabalho, com a aceitação parcial elos leitos
ele rio preexistentes.
Terminada a pressão ideológica , as ca rgas simbólicas das ima-
gens surgem muito leves c a linguagem cinematográfica mostra s uas
incoerências: os fermentos realistas, bem como as tentativas de va-
lorizar a linguagem o ral e a vida cotidiana, se ressentem com a pro-
fusão de detalhes documentais. As contradições internas à ideolo-
gia contribuem para as dificuldades de representar o jovem como
figura cabalmente inovadora: o tema da escolha de um caminho na
vida acaba por mostrar a face da coerção: não há opções verdadei-
ras fora daquelas preestabelecidas pelo regime, ao passo que a pre-
tensão ele uma juventude difusa em todas as gerações graças à fé
fasc ista ("o mais jovem de todos" co ntinuava sendo Mussolin i) não
se presta a representações convincentes.
A sensibilidade que mostra o cinema diante do rema elas gera-
ções ilustra a relação com plexa de adesão/diferença quanro à ideo-
logia fascista que anima a produção cinemaLOgráfica. Por um lado,
temos a diferença, quase a esquizofrenia que divide a produção ideo-
lógica do cinema leve e '·de evasão" . Por outro lado, não podem
ser ignoradas as múltiplas conivências a propósito ele ideologias par-
.l j (' I "ES TC!It'. .l/ETrÍFO f(.-1 D.-1 .1 //D.-!S(.~l .>OC/, ll. 34.5

tilhadas, funcionais para a ordem social c política existente, como


aquelas até agora referidas a propósitO das conexões entre jovens
e crise existencial. De qualquer modo , é diferente a forma de tratar
dessas temáticas quando a intenção apologética é aberta ou nos fil-
mes que, ao contrário, sofrem e ao mesmo tempo incentivam as-
pectOs da ideologia dominante, embora ele manei ra program<ítica.
Dentre os filmes não fascistas, mas portadores de modo às ve-
zes contraditório ele ideologias fascisróides, são significativos Gli
uomini, che mascalzani, ele Camerini, 1932, e Trena papa/are, ele
Raffaelllo .Matarazzo, 1933. Em ambos, a juventude é representada
como uma estação suspensiva antes do compromisso na vida "sé-
ria"; portantO, os jovens, embora trabalhem e se ocupem de diver-
sas maneiras, podem permitir-se atitudes de abertura ou de burla;
todavia, parecem também capazes de inovar velhas formas de men-
talidade, de comportamento, ele relação entre os homens . Em Tre-
na papa/are, o comportamento inovador é representado por duas
mulheres jovens, a protagon ista Lina, que muda ele acompanhante
durante o passeio e retoma ao trem abraçada com aquele que aca-
bou de conhecer, e a personagem Maria, que, livre de um velho apai-
xonado, aceita a corte elo empregadinho desdenhado por Lina; em
ambos os casos, existe a vontade da moça de afirmar-se em opçôes
positiv::.ts em vez ele suportar o esquema preestabelecido.
Treno popolare foi recebido como ' 'um filme de jovens" , com
as "qualidades dos vinte anos: fresco r, simplicidade , interesse es-
pontâneo pelas coisas, sinceridade impulsiva ao relatá-las.ú 8 Mas é
sobret udo a fo rma expressiva, tão livre e í1uicla, com roques ingê-
nuos mas não isentos de ironia sobre o turismo de uma jornada " po-
pular " , que permite as inovações c que transmite a sensação ele cli-
ma novo , ele leveza não idiota. Daí resulta um quadro coerente no
plano expressivo que relativiza também o tema das diferenças en-
tre os jovens de fato jovens, como escrevia Crítica Fascista, c aqueles
pedantes, convencionais, temerosos elo novo (ambos representados
- o segundo de modo caricatura! - no film e) . Igualmente interes-
sante é o modo pelo qual aparece a contradição entre o plano ex-
pressivo e o plano ideológico em Gli uomini, che mascalzoni. Um
jovem mecânico - volta a conexão entre jovens e máquinas - , bri-
lhantemente personificado por Vittorio de Sica, parece ter mais von-
tade ele divertir-se com as moças que de trabalhar, contrariando a
imagem ele moderna e " laboriosa vitalidade" que impressionara os
críticos 69 Er!l a primeira vez que Milão aparecia na tela e a .!Vlilão
j -ió l//.'i1!ÍII/.·I !>(l.'i./(! 1'1' .\ .'

da fe ira de amostras, fo rmigando ele novos oficios, descobertas, tec-


nologias. Entre as frases de lançamento e ncontram-se referências a
"um filme moderno' ' , " uma história perfumada de juventude", am-
bientada na " mais significativa e complexa manifestação do traba-
lho". 70 "Modernas' · sào sobretudo certas enronaçôes da linguagem,
q ue inovam o gênero da comédia, " mostrando suas possibilidades
ele representação precisa e crítica da sociedade" 7 1 As açôes comuns
da vida cotidi ana tornam -se significativas : veja-se, por exemplo, o
modo como é mostrada a moça que sai de casa, compra o jornal,
vai romar o bonde. A incoerência entre a imagem ela jovem que fa z
mil trapalhadas e a da " laboriosa vi talidade" se resolve num final
q ue transforma o protagonista num apaixonado pela moça "séria"
e n um genro obediente. A figura d<l jovem funcio na enrào como sus-
tentação elo conjunto, mesmo que sob a forma ele protestO.
As imagens fem ininas jovens que o cinema apresenta nesses anos
ret1erem também , sob certos aspecros, os estereótipos ideológicos
aclotaclos e manipulados pelo regime . Alguns são simultaneamente
mais antigos c mais novos, como o elas moças terríveis: um coleti-
vo feminino, de moças tantas vezes muitO jovens e incliferencia clas,
como as colegiais, elas q uais se eleve temer as brincadeiras impiedo-
sas e irresistíveis. Versôcs fem ininas elo espírito goliarclesco ou fi-
gura do imaginário, encarnação de um feminino subversivo , peri-
goso, crescente, incontrolável, ainda não fortemente conotado com
uma sexualizaçào tradicional, mas sim genericameme irônico e m
relação ao machismo dominante? O filão, que será retomado no
segundo pós-guerra, é representado também, na década de 1930,
pelo exemp lo das empregadas de La telefonista, pelas colegiais ele
Vecchia guardía, que zombam do assessor social ista que pinta os
cabelos, pelas balconistas solidárias entre elas em detrimento dos
homens em Gli uomini, che rnascalzoní .
As escolhas que se apresentam às jovens mul he res são repre-
sentadas como ainda mais clram<1ticas e difíceis que as elos homens:
o tema do trabalho rimitas vezes é entrelaçado com o ela mat.ernicla-
cle vivida a sós . O primeiro filme sonoro italiano, ra can.zone
dell 'amore, de Gennaro Righelli, 1930, apresentado em sessão pri-
vada a J'v1ussolini, no Supercinema de Roma, c filmado também em
versão francesa e alemã, aborda o rema elo sacrifício e m nome de
uma maternidade entendida como escolha moral. A protagonista de-
cide cuidar de uma criança gerada pela própria mãe, recentemente
morta, e fruto de um amor tardio; renuncia ao estudo pelo trabalho
.~./{TE.YTIDE. .1/EdFOI<A DA .1/IDA.W:.-1 :iU0.·11. 347

e abandona o noivo sem explicar-lhe o porquê. O jovem a substitui


por lsa Pola, q ue personifica uma cantora caprichosa e leviana -
arquétipo elas " outras" de queni se diferencia a amada . Banalização
livre de uma novela ele Pirandello , o filme teve um enorme sucesso
de püblico e ele bilheteria, sem düvida graças ao antigo tema abor-
dado - a maternidade, valor supremo - ainda mais numa versão
que evitava o problema espinhoso da mãe solteira.
O estereótipo da jovem apaixonada e ingenuamenre não con-
formista é uma versão no feminino elas características ele entusias-
mo, disponibilidade e radicalismo atribuídas à juventude . A màe sol-
teira torna-se uma encarnação convincente elo mesmo c a política
fascista ele encorajar a nuternidacle em q ualquer condição incenti-
va sua representação imaginária extrema e triunfante. Contudo, a
tentativa de mudar o estigma tradicional imposto às mães solteiras
reflete a contradição, presente na idelogia fasc ista, entre um impul-
so para a modernização e as tendências mais conservadoras de um
clerical-fascismo fam iliar. Resultam ele tal contradição a sobrecarga
sentimental e a inverossimil hança ele muitas histórias, como La ccm-
zone dell 'amore ou La maestrina, de Guido J3rignone (l933). Este
ültimo era a transposição ele uma piece teatral ele Dario Niccodemi,
cuja estupidez foi atacada ele modo polêmico pelos jovens que par-
ticipavam elos Litoriais da Cultura e da Ane como exemplo ele sen-
timentalismo fác il e deseducativo para o povo. Mas o filme fora re-
cebido favoravelmente por 11 Popolo d'llalia , que havia elogiado
a " alta passionaliclacle" ele Andreina Pagnani, intérprete da profes-
sora .72 Ambientada numa aldeia da Itália central, e m 1910, a história
tem como protagonista uma jovem mulher que começa a trabalhar
na escola primária para a qual se transferira de Turim. Imediatamente,
é amacia pelas alunas c odiada pela diretora; traz uma imagem de
independência, quase ele autOnomia transgressiva numa It:Hia servil,
metaforicamente representada pelo lugarejo em que se desenvolve
a ação, cheio de invejas e intrigas, pronto para atirar-se contra quem
se diferencie e fuja ao rígido controle social. Na professora recém -
chegada, ivlaria, não se tole ra a sol idão vivida alegremente, tampou-
co sua auto-suficiência; todos preferem uma filha ilegítim a à soli-
dão, que elo ponro ele vista social é o verdadeiro objeta de estigma.
O elogio ela maternidade, mesmo fora do matrimônio, é acompa-
nhado por uma imagem da juventude feminina como forte e senti-
men-tal, solitária, capaz de grande devoção e carente ele afeto, con-
} 48 HIST<ÍIIf.; L>OS .fO l.F..\'5

traposta a um ambiente retrógrado e mesquinho, segundo os mó-


dulos elo melodrama .
O mesmo tema é evocado com muit.o maior sucesso expressi-
vo em T 'anzerà sempre, filme exemplar sob muitos pontos ele vis-
ta. O extraordinário início apresenta imagens que poderiam fazer
pensar numa propaganda ela ONMI (Opera Nazionale Maternita e In-
fanza): os recém-nascidos no hospital com as enfermeiras que dão
banho neles, passando talco de maneira ordenada, eficiente, afetuosa_
Esse incipit foi considerado " quase aclmidvel" por Nicola Chiara-
monte,73 com " as cenas da maternidade, aqueles corpinhos ainda
· úmidos ele trevas, ainda animais, empoados, pesados, catalogados,
e depois deles aquele rosto ele mulher ressentida c pesada" . O ros-
to é o ela protagonista, que teve uma menina no hospital, e suscita
a p iedade elas vizinhas por sua solidão. Um conde seduziu-a e dei-
xou-a, reaparecendo só cinco anos mais tarde, para ser então recu-
sado sem hesitações, com uma declaração ele independência con-
quistada: "Vivo do meu trabalho, sozinha com minha filha, e sou
feliz", uma espécie ele manifesto ela màc laboriosa. A idade dos pro-
tagonistas anela, segundo dizem eles, pelos 22-2 3 anos, mas aqui
também não ocorre uma caracterizção física elos jovens que os di-
ferencie ele modo nítido elos adultos, como acontecerá no cinema
da década ele 1950. A fita teve grande sucesso de público e de críti-
ca pela " humanidade sincera c pela excelente realização",74 e, com
efeito, equilibra inteligentemente os aspectos ideológicos e a narra-
tiva cinematográfica. A ambientação na cidade permite soluções nar-
rativas novas, à diferença do que acontecia com os filmes centra-
dos no contraste entre uma figura jovem e o ambiente estreito ela
pequena comunidade, seja em La maestrina, ao qual j~{ nos referi-
mos, seja em Acciaio, que contrapõe estaticamente a imagem ágil
de Isa Pola, disputada por dois homens, aos rostOs fechados c maus
das velhas que desaprovam. A cena final de T 'am.erô sempre expri-
me essa diferença com imagens apropriadas: a protagonista e um
empregado da mesma loja em que éla trabalha como balconista, am-
bos desocupados, caminham entre as buzinas da cidade no início
ela noite, prefigurando uma união mais humana e feliz, mais " mo-
derna", entre os dois sexos.
O cinema retlete a multiplicidade das opções que se apresen-
tam às jovens, no que concerne ao trabalho, que pode ser repre-
sentado como eventual ou temporário antes do casamento (Gli u.o-
mini, cbe mascalzoni; La telefonista) ou então uma opção de vida
rl./1 TESTI DE. .1/f.T.-íi-"Of(A D.1 .l/Cl.M.\"(..1 SOUri L 349

e ele autonomia pessoal (La maestrina; Vecchia guardia; T'amerõ


sernpre; La canzone dell 'amore). Também é verdade que neste se-
gundo caso as escolhas afetivas, em relação aos filhos ou ao homem
amado, colocam em segundo plano a opção profissional , mas não
a cancelam, conforme acontece no primeiro. A decisão fundamen-
tal é para as mulheres, aquela de interpretar a modernidade de
modo superficial ou num sentido profundo, como clisponibiliclacle
para uma bela viela ele roupas, cortejaclores e divertimentos, no pri-
meiro caso, ou então como uma autonomia que reformule a fem i-
nilidade tradicional, no segundo. La telefonista, ele Nunzio .Mala-
somma, 1932, apresenta de modo extremo esta alternativa, entre
as costureiras exigentes e petulantes como suas clientes e a telefo-
nista simples e honesta que acaba por conquistar seu diretor. Esses
lugares-comuns do imaginário recebem uma atualização inovadora
no contexto contemporâneo, enquanto a figuração do trabalho é
"suavizada, em certo sentido, 'feminilizacla', de modo a reduzir a
tensão, redimensionar a ameaça" representada pelo trabalho femi -
nino, repondo a novidade social no espaço elos valores notórios c
consolidados. 75
Portanto, o cinema interpreta os sentimentos de mal-estar e ele
mudanças difusos naqueles anos, a incerteza elos jovens e as inquie-
tudes da sociedade a respeito do desconhecido que eles represen-
tam. Sobre eles são projetadas muitas ilusões e muitos temores, co-
mo se fossem transformados no símbolo de possíveis alternativas
internas ou externas ao regime, que só amadurecerão mais tarde,
a partir de 1938-9. Também os antifascistas, nos primeiros anos da
década, tinham se entusiasmado com as esperanças provocadas pe-
la "nova geração". Giustizia e !ibertà, em 1932, noticiara o proces-
so contra os estudantes de Turim que haviam aderido ao movimen-
to, todos na faixa dos dezessete aos 25 anos, afirmando: " É a nova
geração que fala para a velha, cansada c humilhada, mostrando a
via da revolução" J6
O âmbito cultural continha tais fermentos ele modo mais com-
plexo e matizado que o político, mas testemunhava com maior ple-
nitude suas dimensões e a extensão a todas as classes sociais e aos
dois sexos.
:550 1/I., TciRI.I f)OSJOITXS

O CARÁTER ME TAFÓRICO DA IDÉIA DE JOVEJV!

O período fascis ta representa, quanto à questão dos jovens, um


Jano bifronre: por um lado, prevalece ainda a visão ela juventude
como fase preparatória para a vida adulta, mesmo que a impaciên-
cia dos jovens mine essa conccpçlo; por outro lado, surge aquela
moderna c pós-modcrna 7' de uma condiçào juvenil prolongada c
inquieta, emblema das crises da sociedade contemporânea. Tais con-
siderações valem sobretudo para a imagem elo jovem pertencente
às classes mais ou menos abastadas c cultas, c scrào estendidas pro-
gressivameme às classes trabalhadoras. O fascismo retoma o mito
vitalista do jovem sagrado e sábio por instinto, capaz de obedecer
e de combater, mas também de comandar e de governar, adaptando-o
para justificar e animar um aparato ele poder também éle jovem e
com pretensões absolutas .~) jovem é mct:Hora do fascismo ao mes-
mo tempo e m que é instrumento dele, uma vez que serve para dar:
a sensação de potência e força, ele fatalidade e ele determinação his-
tórica.
PortantO, o fascismo usa as representações literárias c conven-
cionais elos jovens, hem como se apropria das tradiç<)cs juvenis, em
particular goliardcscas, 7H para os seus fins , que vão da constituiçào
de uma elite política no sentido pl eno da palavra à simples transmis-
são de postos e de carreiras: I Em ambas as perspectivas , a operação
assume um caráter " modcnm ", enquantO introduz procedimentOs
deliberados e programados em componamenros que anterionnen-
te pertenciam à área ela socialização primária e relativamente espon-
tânea_79 Tudo isso perm ite oferecer respostas, embora autoritárias,
a exigências que se afirmam entre as duas guerras: a tendência a for -
mar grupos políticos, a importância de manifestações coletivas c ri-
tuais, a militarização, o predomínio da juventude masculina, a exi-
bição em público_ ~>o
Em relação a tais tentativas prolnovidas diretamente pelo regi-
me, a sociedade e suas expressões culturais na Itália entre as duas
guerras apresentam um quadro muito variado. Qualquer exemplo
elo cinema mostra que as aspiraçôcs elos jovens c sobre tudo elas jo-
vens rompem com a moldura montada pelo regit'ne. Enquanto o ci-
nema 1~1ais fortemente ideológico no sentido fascista insiste no pro -
blema das gerações entendido como relação e ntre machos , tendo
a política e a guerra como cemro, a produção -menos ligada a preo-
cupações ideológicas re-presenta as ine<;rtczas elos jovens diante elas
. . 1./1 T /.S TI"/JE. .11E7AI--clR.; DA .lf( /J.;.\ ( A :iOU.4L .$ 51

escolhas ele viela e elo trabalho. Neste segundo tipo ck cinemarogra-


fia surgem nitidamente as mudanças de ideais c ele comportamemo
em curso na existência elas jovens, para as quais são clcclinaclos os
cemas da solidão- muitas vezes não de modo negativo - , do tra-
balho, da materniclaclc, mas também elo consumo, da liberc.lac.le, c.la
diversão. O faro ele que o cinema tematizc só muito parcialmeme
(em relação ao que acontecerá em seguida) a figura física elo jovem,
isto é, ele tal modo que seja inconfundível com o aclulro, pode incli-
car que alguns processos acham-se apenas encaminhados e, em es-
pecial, está ainda no começo a identificação elo jovem com o corpo
jovem/li que será pred ominante no segundo pós-guerr::t.
Existe uma idéia de jovem comum a tais represemações que v~1o
sendo sobrcc.lctcrminaclas, enquanto reúne em si os problemas e as
preocupações da socicclaclc em seu conjunto . O jovem como con-
ceito simbólico revela-se o concentrado elas angústias ela sociedade
- elo desemp rego ao sem ic.\ o ele inutilidade ela viela - , mas torna-_
se também o modelo elo futuro, portanto, ameaça c esperança.
Acentua-se a sua fragíliclade, e nquanto depositário de valores que
a sociedade não soube realiz.a r e que o colocam numa posição ele
fronteira e ele crítica, mais ou menos egoísta, da existência . Os jo-
vens de carne c osso introjetam essas imagens, com um processo
iniciado no período entre as d uas guerras e levado a cabo no segun-
do pós-guerra. Na década de 1950, será accmuacla a insistência so-
bre o rema elo desvio, como loucura ela utopia representada pelos
jovens c degeneração do mal social que está neles. Na década ele
1960, irá prevalecer o elemento otimista, a representação ele um novo
universalismo , dos novos su jeitos capazes ele redesenhar o mundo
segundo critérios de liberdade c justiça. Duas faces sempre ligadas ,
conforme já mostra o debate na era fasc ista. Como fu ndo , a escol<l-
rização prolongada e sobretudo a for maçào de um mei·cado para
os jovens fornecerão as bases ele u ma verdadeira c própria c ultura
juvenil,HZ baseada numa clemocratiza.ção consumista c criadora ele
um nivelamento pelo menos exterior. A luta entre as geraçôes ter-
minará por parecer tão relevante quanto a lu ta ele classes, mesmo
no âmbitO elas posiçôes políticas de esquerda. En1 relação a rais mu-
danças, as imagens ela Itália fascista representam um momemo ao
mesmo tempo arcaico e amecipador, advertência de alguns aspec-
tos inseridos numa concepção do moderno como aceleraçào, ano-
mia, técnica e domínio.
352 1-1/S H JR/A DO.'i.f()l 'E.YS

.
A AMÉRICA DA DÉCADA DE 1950
.

NASCJJ\tiENTO DO "TE.tNAGER"

A dimensão da juventude como problema, presente nos Esta-


elos Unidos desde o final do século passado, tem uma etapa signifi-
cativa com a publicação,<em 1904, ele Adolescence, a obra elo psicó-
logo G. Stanley
,.... 1-lall, que anuncia a " descoberta " elo adplescenre
americano. ~-I ali insiste, atribuindo a essa faixa etária qualidades an-
titéticas retomadas ele Rousseau - hiperativiclacle e inércia , sensibi-
lidade social e aurocentrismo, intuição aguda e loucura infantil - ,
sobre a necessidade de eliminar pressões c condicionamentos que
levem os rapazes a uniformizar-se ao comportamento adulto, com
a finalidade de realizar rodas as possibilidades ela adolescência; esta
corresponcle - no plano ela história coletiva - ao período da p ré-
história, marcado por migrações em larga escala, porçanto representa
uma regeneração profunda, quase um novo nascimento . Esse gêne-
ro de fun damentação não impede Hall de conceber uma apologia
do treinamento militar como a atividade que melhor pode realizar
as potencialidades dos jovens e respeitar as especificidades dclcs.s.-1
No decorrer do séc ulo , o debate sobre a adolescência e a juventude
nos Estados Unidos iria mover-se entre dois pólos: por um lado, a
exigência de garantir liberdade e possibilidades ele autogoverno e,
por outro, a de uniformizar, coletivizar, restituir ao social os impul-
sos criativos juvenis.
Segundo diversos intérpretes, o processo que conduz à codifi-
cação ela adolescência como fase em si atingiu a maturação plena
Jogo após a Segunda Guerra Munclial.R4 Foi relevado o contraste en-
tre a aparente ausência de adolescentes no período bélico, quando
......
a tônica era colocacla nos jovens combatentes e nos adultos ou en-
tão nas crianças, e os anos imediatamente posteriores a 1945.s 5 É
desse ano um artigo de Elliot E. Cohen, publicado no New York
Times, que usava o termo teenager como parte da linguagem cor-
rente.Bó Mas só na década de 1950 o termo destilou wda a sua vi-
rulência e o debate sobre seus conteúdos e implicações generali-
zou-se. O ano de 1955 é apontado por muitos como um marco: a
geração envolvida deveria ser então a que havia nascido entre 1934
e 1940. É significativo que obras-símbolo para aquela geração te-
nham sido escritas na primeira metade da década de 1940, mas só

I
-
AJUl'ESTUDE. .1/ETÁf OHA D.-1 .l!UL!ASÇA SOCIAL 353

tenham ficado famosas uma década depois. Basta dar dois exemplos:
On the road, escritO por Kero uac em 1941, tendo como título ori-
ginal The bectt generation, foi recusado pelos editores até 1957,
quando foi publicado c tornou-se famoso (para horror de Kerouac,
todos começaram a usar o termo beat não no sentido original de
beatífico, mas para indicar desordem c delinqüência);Rebe/ without
a cause, romance escrito em 1944 por Robert Lindner, rornou-se
popularíssimo depois ele 1955, quando foi lançado o filme homôni-
mo com ]ames Dean c Natalie Wood (Cioventti bruciata na It~Wa,
.... j uventude transviada no Brasil).
Em 1950, o processo estava completo e a adolescência adquiri-
ra um estatuto legal e social, a ser disciplinado, regulamentado, pro-
tegido. Prova desse reconhecimento e sanção: uma série de imer-
venções governamentais, destacando-se a criação, em 1951, da Youth
Corrcction Division (tendo como base o Federal Youth Corrections
Act) para tratar e reabilüar os transgressores com idade inferior aos
22 anos; em 1953, surge o Subcomitê sobre a Delinqüência juvenil
do Senado e, em 1954, a seção para a delinqüência juvenil no âmbi-
to elo Children's Bureau do governo federal; a constituição, em 1961 ,
obra do presidente Kcnnedy, do Committee on Youth Employment;
e a promoção, por parte de agências governamentais, de múltiplas
iniciativas para o estudo e discussão do problema elos jovens, co-
mo o gral)de seminário sobre crianças e jovens organizado pela Ca-
sa Branca, em 1960,_com a participação de 7 600 delegados, sendo
que 1200 tinham ele dezesseis a 21 anos. H7 Esses 'á tos governamen-
tais refletem um modo de perceber _QS jovens comojnclivíduos pe-
~osos eara a sociedade e para si próprios c, ao mesmo tempo, ne-
cessitando ele proteção e de ·ajuda particulares; era inevitável q ue
acabassem por solicitar comportamentos que valorizassem tal con-
cepção ou pelo menos que tOrnassem muito di fícil pensar e definir
os fenômenos com que se ocupavam de modos alternativos. Kctt
. observou que a mentalidade que criou o delinqüente como tipo se
parece com aquela que criou o tipo do adolescente: primeiro, cer-
tas traços físicos e/ou mentais são definidos como próprio& elo tipo
e em seguida a definição é usada para explicar o comportamento
dos jovens. 88
Naquele período, teve lugar nos Estados Unidos um debate so-
bre os jovens que envolveu psicólogos, educadores, sociólogos,
funcionários escolares e judiciários·, e que continuou também na dé-
cada seguinte . O material do debate é interminável, porém bastam
354 11/S'f'ÓUM DOS JOI't'.V~

algumas referências a um a parte dele para encon trar elementos, sig-


nificativos para a nossa pesquisa sobre a juventude como metáfora
do social de um discurso q ue a sociedade conduzia sobre si mesma
e sobre as próprias inquie tucles. O interesse não está centrado só
no debate, mas também em seu inextricável entrelaçamento com
a realidade social e c ultural da sociedade americana. Os autores do
discurso eram de fato não só profissionais ela área social - psicólo-
gos, reformadores urbanos, educadores, conselheiros familiares -
e, em medida c rescente, jovens, mas també m pessoas com idades
c qualificações diversas, como testemunham as cartas aos jornais ou
os conteúdos dos relatórios de assistentes sociais. Nos prim eiros anos
da década seguinte, a atmosfera havia se alterado .e o debate come-
çava a mudar de to m: termos como " delinq üência juvenil " eram
substituídos por outros como "cultura dos jovens", que exprimiam
uma atitude dife rente, e ganhava fo rça em algumas universidades
c publicações a expressão da divergê ncia. Em 1968, o Chilclren's
Bureau foi reorganizado c perdeu p0der. Portanto, é possível situar
a virulência máxima do debate sobre os jovens entre 1950 e 1964,
o an o em q ue ocorreu a revolta na Universidade de Berkelcy e acen-
tuou-se a escalation da guerra no Vietnã.
Na década de 1950, apareceram teenagers diversos daqueles das
gerações precede ntes pelo número, riqueza e autoconsciência.
Tratava-se da primeira geração de adolescentes ame ricanos privile-
giados. mas sobretudo da primeira geração que apresentava uma coe-
são rão acentuada, um auto-reconhecimento enquanto comunida-
de especial com interesses comuns. A figura do adolescente que de
tal modo emergia era associada sobretudo à vida urbana c encon-
trava seu hábitat na high school - que parecia transformada n um
cosmo em si mesmo -, com os clubes, as atividades csponiv.is, as
sorm·ities e jraternities, os bailes, as fes tas e o utras atividades ex-
tracurriculares e lugares acessórios, como a drugst9re, o autom ó-
vel, o bar para jovens. Também te ndo como base a identificação
do jovem com o estudante da high schoot - então freqüentada pe-
la quase totalidade dos jovens de qualquer classe sociaJ89 -, a ado-
lescência parecia tornar-se mais um universo em si c acen tuava-se
uma rígida distinção dos papéis sociais por idade que segundo al-
guns não tinha comparação na história do país. Os jovens passavam
a i:naior parte do tempo na escola (mas també m no trabalho, por
causa das estruturas hierárquicas) e ntre eles e não com os açJ.ultos.
Contava sobretudo o peso diferente da interação: não era mais aquela
.-l}/YF.STrnF ltt"IÁFOR.~ D.~ .\trD. I\(~ ~OCL-11. 355

entre pais e filhos ou entre estudantes e professo res que ofereciam


significativos ganhos sociais, mas sim a interação entre pares. Num
estudo concebido na primavera de 1955 e que se tornaria um dos
textos ele referência do debate, o sociólogo )ames Coleman analisa-
va alguns traços ela emergente "subcultura adolescente na sociedade
industrial" e legitimava sua pesquisa com observações preocupadas:
esses jovens falam outra língua (... ) a língua que falam está se tornan-
do cada vez mais diferente e a sociedade adolescente está se tornando
mais fo rte nos subúrbios de classe média(... ] difunde-se entre os pais
a sensação de que o mundo dos teenagers seja uma coisa à parte 90
A " diferença" dos jo,-ens podia exprimir-se sob formas ele apa-
tia e passividade- aquela geração foi definida como " silenciosa'·
- ou então de rebelião aberta mais ou menos violenta . Em qual-
quer caso, dava origem a uma separação, a uma "alteridade" que
podia ser entendida como alienação ou como ah cridade. O caráter
de "alheios" atribuído pela cultura corrente aos jovens, e sanciona-
do por inúmeros escriws e debates de especialistas, dava uma cen-
tralidade ao adolescente que outras fig uras sociais e políticas tinham
tido no passado . Edgar Friedenberg, autor de estudos fundame n-
tais sobre os jovens no campo da psicologia, observou que o teen-
ager parecia ter substituído o comunista como objew de contro-
vérsia pública e ele previsão sobre o futuro da sociedade. Muitos
c
notaram que {oi adotada para os adolescentes uma terminologia que
acentuava a estranheza deles em relação à sociedade existente: "cas-
ta", " tribo", "subcultura", expressões derivadas dos estudos etna-
gráficos sobre povos " diferentes" do sujeito considerado central nas
sociedades ocidentais.91 O termo "subcultura" referindo-se aos jo-
vens teve um sucesso particular porque não parecia implicar um juízo
demasiado duro e ao mesmo tempo sublinhava as características de
subordinação e diferença. A posição do jovem como o "outro·' por
excelência, portanto particularmente significativa quanto aos con-
flitos sociais, tornava-o apto a transformar-se tanto no símbolo dos
subprivilcgiados quanto dos excessivamente privilegiados: desse pro-
cesso de simbolização encontram-se exemplos relevantes no cine-
ma, como veremos.
A análise de Friedenberg - que reencontraremos em seguida
- baseava-se num diagnóstico interessante: o que surgia como uma
acentuação da adolescência também representava seu fim, pelo me-
nos em termos tradicionais. O título de um de seus ensaios mais fa-
356 HIST6RIA DOS}OI'F.NS

mosos, The vanishing adolescent, publicado em 1959, aludia ao de-


saparecimento de uma faixa etária intermediária, então esmagada en-
tre a infância e uma precoce maturidade que levava os adolescentes
a serem cada vez mais cedo amantes, consumidores e membros de
vários comitês, enquanto se prolongava sempre mais o período de
formação e treinamento. O diagnóstico fo i aprovado por David Ries-
man, que escreveu a introc!Üção da nova edição do ensaio, em 1964.
Essa aprovação é uma pequena amostra de uma ampla convergên-
cia. Muitos elos textos sobre jovens eram baseados em textos socio-
lógicos genéricos, que deram o tom à década de 1950. Dentre eles,
sem dúvida A multidão solitária, obra çoletiva sobre a "mudança
elo caráter americano " - cujo autor principal era Riesman - se-
gun do a qual a sociedade americana passara a produzir indivíduos
heterodirecionados (em vez de voltados para a tradição ou, como
antes nos Estados Unidos, autocentrados) . Em con?eqüência( ensi-
nava às crianças que a unicidade da personalidade não ~e baseava)
mais em competências, em habilidades o,u no deseAvolvimento de
desejos próprios e ideais abstratos, mas \na satisfação das expecta-
tivas dos outros, portanto, na dependência ela, aprovação: de tal
modo, os indivíduos aprendiam a ser orientados '- numa socieda-
de caracterizada pela abundância econômica, pdlo burocratismo,
pela permissiviclacle - para a fruição passiva, o consumo, o con-
formismo. 92
Também Erik Erikson, cujo livro Chíldhoocl anel societyJora
igualmente importante no campo psicológico para formalizar a vi-
são da infância nos Estados Unidos, sustentava que o americano em
p rocesso ele crescimento defendia-se ela angústia aprendendo a não
se envolver. Este dado estava presente no diagnóstico ele Frieden-
berg: a adolescência tornava-se obsoleta pois a integração pessoal
não podia mais ser o velho ideal de maturidade, então irrealizável.
Os próprios adultos transmitiam aos adolescentes sua ansiedade e l
a falta ele clareza quanto aos papéis sociais.1A bola era assim devol-
vida aõs pais e professores , definidos como "indivíduos insuficien-
temente caracterizados'', transformados em seres anônimos por pro-
cessos que reduziam rodos à multidão ou à massa. Qs__paiS-l=t.aviam
mudado antes dos filhos, observavam os psicólogos, tentando con:
tudo tranqüilizar "o pai americano em mutação" sobre o fato ele
que qualquer opção educativa admitia alguma elasticidade. No final
da década, Erikson resume, durante um debate organizado pela re-
vista Daedalu.s, certos aspectos fundamentais ela discusão: ela era
"I
/
, J }C\ E.\7CDE .IIFTÁFORA VA .IICDASÇ.l WCIA L 357

conduzida po r pessoas pertencentes à " outra" geração, os que ti-


nham entre quarenta e cinqüenta anos; haviam sido evidenciadas
sobretudo as características de "alienação" da juventude, negligen-
ciando o fato de ela abranger também jovens tranqüilos, determi-
nados, competentes; as mulheres tinham ficado praticamente fora
do debate, seja como sujeitos, seja como objctos.93

AS DIFERENÇAS J UVENIS: RESPONSABILIDADES E REMÉDI OS

O problema de como enfrentar a " diferença" c a separação elo


universo dos adolescemes deu origem a dois filões principais do de-
bate : o que atribuía sua causa ao excesso ele perm issividadc da es-
cola e à crise dos valores tradicionais, sobretudo à " desintegração" ·
ela família; o que se preocupava em compreender, prevenir c insti-
i--.tucionalizar.
Faremos uma referência bre\·e ao primeiro filão, escolhendo co-
mo primeiro exemplo representativo de uma longa série ele estu-
dos o livro dos Hechinger, Teen-age tyranny, enquanto o segundo
fi lão , mais interessante para nossos fi ns, será objeto ele uma análise
um pouco mais detalhada. Já o título do livro de Grace e Fred Hé- - "'"":r
chinger - que leva em coma as análises de Coleman e Friedenberg,
mas que as utiliza para seus propósitOs - capta o sentido de temo r
difuso n.ã opinião pública e emergente das cartas dos pais ele teen-
agers para revistas e das entrevistas com estudiosos. "Tirania" ex-
prime o exagero dos termos do problema, estendido a toda a so-
ciedade:
a sociedade americana corre o risco de tornar-se uma sociedade ado-
lescente com critérios adolescentes e objetivos imaturos na cultura e
na informação [...] um crescimento para baixo em vez de para o allo.94
Os autores, que se declaram menos preocupados com a maior
liberdade dos jovens do que com a "abdicação aos direitos e privi-
légios dos adultOs em prol elos imaturos" , atribuem todos os p ro-
blemas à "doutrina p ermissiva da auto-expressão extrema", que fa-
voreceu no sistema educativo a equação individualismo-egoísmo,
gerando insegurança e fa lta de escopo. Os Hechinger insinuam que
os educado res americanos excecler~m -se em boa vontade, ao passo
" que, . talvez por reação à série de ditaduras fascistas e comunistas,
desacreditaram toda forma de leaclership. Os tons foram fo rtes: os
358 11/STÓNIA VOS}Ol "E.\:\
,...
primeiros anos de adolescência constiwíram-se num ·'império ins-
tiwcional' ', a subcultura adolescente é de tipo tribal e caracterizada
por múltiplas ·'aberrações" , o culto das cheerleaders nas escolas se-
. cundárias é " o bsceno", os ídolos do rock and rol! são "ckprimen-
tes". Mas o problema principal é o sexo: o coito é considerado obri-
gatório , sob pena de perda ele status, a partir elos dezesseis anos (a
idade em que, na maior parte elos estados, se admitia dirigir auto-
móveis, o que significava um lugar separado e íntimo) e aumentam
os casos de gravidez ele adolescentes da classe média branca.
A estratégia de restauração que resultava de posturas semelhan-
tes apontava para a intenção ele regenerar a família c seus valores.
]ames S. Coleman observara a respeito que tal intento corria o risco
de ligar demais o adolescente aos seus famil iares e apresentava o
problema do que aconteceria se a família fosse compÓsta por crimi-
nosos . Aparecia assim um dos espectros agitados mais freqüente-
mente no âmbito do debate : a delinqüência juvenil como forma de
cultura das classes " inferiores ", que estava conquistando áreas in-
defesas da classe média, isto é, os seus filhos mais sugestionaveis
e confusos. A receita de Coleman era mais sutil porque se baseava
no uso dos mesmos critérios adotados pela sociedade separada que
os adolescentes haviam criado para si a fim de fugir à dos adultos.
A grande investigação que fez sobre as high schools (em cinco cida-
des pequenas ou zonas rurais e cinco zonas urbanas ou suburbanas
de Illinois, que cobriam uma am pla gama social, dos fihos ele jar-
mers aos de altOs dirigentes industriais e aos jo vens de classe operá-
ria) tinha evidenciado o crescente distanciamento dos pais justamente
p or parte dos grupos que constituíam as elites entre os jovens esLU-
dantes e, ao mesmo tempo, sublinhava a desinformação dos adul-
tos sobre o modo como os filhos passavam o tempo. O sistema de
valores da sociedade adolescente acentuava a importância da apa-
rência por meio das roupas , popularidade, atrativos exteriores; os
mais populares de todos eram os jogadores de futebol ame ricano
e em geral os atletas, ao passo que mesmo os estudantes mais inteli-
gentes - sobretudo as moças- evitavam assumir a imagem de pri-
meiro da classe, que ameaçava fazer diminuir qualquer popu larida-
de. Tais valores "superficiais" eram encorajados também pelos pais,
desejosos ela " felicidade" elos filhos, embora por princípio preferis-
sem os antigos modelos dos jovens estudiosos e obedientes. Cole-
man revelava assim a esquizofrenia dos valores nos adultos e a in-
consistência de seus princípios cducativos. 95
A }t'l't.\7t"DE• .1/ET.iFOR,l Dtl .1/L'DASÇA SOCMI. j 59

O remédio proposto era retOmar a mesma competitividadc que


caracterizava a sociedade separada , da qual emergia um quadro im-
pressionante no que concernia à dureza das exclusões, as rígidas hie-
rarquias dos grupos- necessárias para a "autoproteção" -,a esca-
la social que refletia em pane as distinções de classe, mas praticava
cruéis discriminações de status. Como o atletismo havia oferecido
uma saída para a violência, assim deveria fu ncionar a competição
no campo dos estudos, colocando-a num plano não individual, mas
sim de grupo e de escola: era preciso instituir jogos intelectuais, com-
petições de problemas e de projetos científicos, concursos de mú-
sica, de teatro, de matemática , jogos de computadores para simular
problemas de carreira c estratégias de organização (do tipo daque-
les já em uso para treinar os managers), até possuir uma rede de
competições de grupo sistemáticas sobre todas as matérias.
Redescobria-sc nos Estados Unidos da década de 1950 uma re-
ceita muito parecida com aquela proposta pelos jogos litoriais da
década de 1930 na ltálià. Pensa\·a-se também aplicar o remédio àque-
le ponto especialmente dolorido que era representado pelos pro-
fessores , cada vez mais desmotivados por uma profissão cansariva
e difícil, com baixos salários e po uca estima social, que os colocava
na primeira linha de frente de uma luta desproporcional às forças
deles. Ao passo que os especialistas os acusavam de serem vítimas
de " uma passividade ansiosa de pequenos empregados"% ou ele ini-
bir a criatividade e premiar o conformismo, o cinema os apresenta-
va aterrorizados por bandos de adolescentes violentos e pn:varica-
dores, como no famoso Blackboardjungle [Sementes de violência]
(1955), que o embaixador Claire Booth Luce fez retirar elo Festival
de Veneza justamente por dar uma imagem de adultos sem nenhu-
ma autoridade. Também o problema dos professores poderia serre-
solvido, segundo Coleman, introduzindo a competição como base
para os salários, atribuindo aumentos aos D?-ais esforçados.
f Tornava-se evidente o círculo vicioso que caracterizava tanto
a hil;-ótcse de restauração quanto a reformista: as duas estratégias
tratavam ele reintegrar a sociedade adolescente na sociedade ameri-
cana, depois do diagnóstico de que a primeira se formara justamen-
te como reação à segunda. No debate inteiro, era freqüente morder-se
a própria cauda, um modo de proceder em círculo que revelava a
natureza projetiva ele muitOS pareceres - os jovens como lugar de
projeção ele temores e de desejos reprimidos - e a aspiração de voltar
a um ponto de partida sólido e notório. A tentativa de autotranqüi-
}60 lllSTÔR/;1 DOSJOl'F.NS

lização era contínua; muita da insistência sobre os jovens como con-


sumidores, novo e gigantesco mercado que se abrira à venda da Coca-
Cola, goma de mascar, balas, discos, roupas, cosméticos, acessórios
para carros e carros usados, podia ser transmitida, apesar dos tons
de escândalo, ao prazer secreto de ver confirmada a filosofia do con-
sumo que representava uma bíblia do bem-estar americano. Bruno
Carrosio relata vários exemplos de um modo de proceder que par-
tia de observações " negativas" para recuperá-las num "positivo"
racional e justificável, para convencer-se ele que jovens apáticos ou
rebeldes podiam transformar-se em dirigentes ativos e pais ele famí-
lia confiáveis; ou então para certificar-se, com raciocínio igualmen-
te significativo, sobre a capacidade elos jovens, que não mostravam
entusiasmo pela guerra, de serem bons soldados na Coréia. Os tons
tranqüilizadores dos artigos na Time, em 1951-2, escondiam o que
as revelações posteriores haveriam de trazer à luz, ou seja, a quebra
psicológica ele muitos jovens durante a guerra ela Coréia, que ocu-
para os anos de 1950 a 1953.97
Lembremos que a década era, não obstante o bem-estar cres-
cente e a proclamação ele destinos magníficos e progressistas para
os Estados Unidos como guia do mundo, a ela execução elo casal
Rosenberg (1953) e elas profundas angústias provocadas pela guer-
ra fria- que muitOs temiam se transformasse em conflito ativo, quase
certamente atômico, dentro ele poucos anos. Os teenagers que se
constituíam em sociedade separada eran1 também a primeira geração
que crescera com a bomba. Para eles eram habituais os exercícios
anunciados por uma sirene que interrompia as atividades escolares
a fim de prepará-los para eventuais ataques aéreos e a presença ele
refúgios at~micos nos bairros ricos. A veia subterrânea ele angústia
que minava a sociedade americana exprimia-se obscuramente na
questão dos adolescentes, mas continha em si o terror das guerras ,
frias e quentes, das tensões raciais e sex uais.9S
Em tudo isso inseria-se com naturalidade o debate sobre a de-
linqüência juvenil. Por um lado, tentava-se demonstrar uma com-
preensão crescente quantO às bases sociais do fenômeno, chegan-
do, durante o governo Kennedy, à aprovação pelo Congresso elo
Juvenile Delinquency anel Youth Offenses Control Act (1961), que
reunia as recomendações do comitê presidencial sobre a delinqüência
juvenil e os crimes elos jovens: a lei reconhecía que fatOres econô-
micos e sociais podiam ser a sua causa e autorizava a disponibiliza-
ção ele fundos para programas preventivos. Por outro lado, vinha
A}U I'E.YTUDE. JIETÁFORA DA J IUDAt\"ÇA SOCIM 36J'

sendo enormemente ampliada a concepção da delinqüência, graças


à ligação com a de adolescente: todo comportamento irregular e até
qualquer forma de linguagem não convencional, por exemplo, o
uso de linguagem obscena, eram classificados como inclinações à
delinqüência.99 Nos documentos do Subcomitê do Senado sobre a
Delinqüência Juvenil lia-se que " o gângster de amanhã é o tipo à
Elvis Presley de hoje". A subcultura adolescente que era considera-
da agressiva incluía o rock and roll, o uso de carros cujo motor fo-
ra envenenado e a carroceria modificada de modo a personalizá-la,
o corte de cabelo à Presley ou os cabelos longos, a roupa retoman-
do estilos afro-americanos, as gangues. A definição ele gangue era
excessivamente elástica e associava verdadeiros bandos ele vânda-
los que se dedicavam a violências e furtos com grupos mais pareci-
elos a clubes e associações.
A existência elas gangues, delinqüentes ou não, contrapunha-
se à elas organizações para adolescentes administradas por adultos,
como a elos escoteiros, mas os protagonistas do debate prestaram
pouca atenção às semelhanças que existiam entre os dois fenôme-
nos, como o uso ele uma gíria interna, a afirmação ele valores como
a lej ldade, a audácia física, a afirmação precoce ela maturidade. Al-
beli Cohen, em Delinquent boys: the culture oj the gang, tinha mos-
trado quanto a cultura da delinqüência era um modo de vida que
se tornara tradicional entre certos grupos da sociedade americana,
oriundos das clases "inferiores", mas em fase de extensão à classe
média por causa de erros na educação dos filhos. Cohen evidencia-
va que urna gangue delinqüente era de fato uma pequena sociedade
fechada, em que os valores eram conferidos segundo critérios opos-
tos àqueles vigentes na classe média, portanto uma espécie ele "con-
tramunclo" vinclicativo, caráter que con firmava sua dependência da
sociedade convencional. Em outro importante trabalho, Growing
up absurd, Paul Gooclman indicou que o caráter inacabado da re-
volução americana e a incapacidade da formação social estaduni-
dense em manter suas promessas geravam o niilismo dos jovens -
beatnik ele um lado e delinqüentes do outro - que equivalia a ou-
tros tantos desperdícios potenciais. lOO
~_opinião pública c os especialistas coincidiam em atribuir uma
parte relevante da responsabilidade pela ampliação da delinqüên-
cia juvenil aos meios de comunicação_je massa preferidos pelos jo-
vens, istO é, histórias em quadrinhos, rádio e cinema, enquanto a
televisão era a mídia preferida pelas famílias (seria possível listar en-
362 HISTÓR/rl DOS jOJ!J::NS

tre tais mídias também o telefone, instrumento primário de coesão


para os adolescentes, com irritação dos adultos). Em 1954, foi pu-
blicado o livro ele Frecleric Wcrrham , Seduction oj the innocent, IOI
segundo o qual a cultura de massa podia ser mais potente que a fa-
mília, a classe social, a tradição e a história. No mesmo ano, o Co-
mitê elo Senado ocupou-se do papel da história em quadrinhos na
delinqüência juvenil e os editores de tais publicações adotaram um
código ele auto-regulamentação para eliminar obsceniclacle, vulgari-
dade e horror elos gibis. A indignação era imensa em relação ao rá-
dio e ao cinema, mas também contra as revistas juvenis, que difun-
diam ou defendiam músicas capazes de dar coesão e iclcnticlacle à
cultura juvenil. Dentre estas era sobretudo significativo o rock and
roll e seus cantores, como Bill Haley e Elvis Presley, que haviam
absorvido a transgressão da música afro-americana, suas alusões à
sexualidade, recriando-as em outros estilos ele viela, em modos di-
versos de mover o corpo.
Seria o caso de perguntar se as reações virulentas à penetração
das formas afro-americanas de música (mesmo que mediadas: ele
Elvis Presley já se disse que mediava um estilo negro ele cantores
negros que já tinham imitado um estilo br:mco) 1o2 não eram for-
mas indiretas de resposta aos grandes problemas raciais que justa-
mente naquela década estavam sendo levantados. Data de 1954 a
decisão da Corte Suprema, denominada Brown v. Board of Ed~ca­
tion, que derrubou a doutrina ela instrução "separada mas igval"
e estabeleceu que a separação baseada na raça violava a emenda 14
da Constituição; ordenava-se às instâncias inferiores acelerar os pro-
cedimentos para ~clmitir ;1as escolas púbi.léas as crianças negras . As
conseqüências foram conflitos em série, sendo o mais famoso o que
ocorreu na escola ele Little Rock em Arkansas: quando, em 1957,
esta última tentou cumprir o que dispunha a sentença, encontrou
a oposição do governador, e tiveram de intervir pára-queclistas a
fim ele p ro teger os jovens negros que iam à escola. A tensão racial
explodia em v:üias regiões e em muitas áreas ela cultura norte-ame-
ricana ele modo subterrâneo, segundo formas típicas da época, que
exigiam que se exprimisse a inclinação diant~ de opções culturais
alternativas por meio da dissimulação. 1 03
- ---
11 ] UI!E.VTUDE. METÁFORA D.4 MUDANÇA SOCIAL 363

SEXO, GÊNERO E POLIMORFISMO CULTURAL

No decurso do debate sobre os jovens, o tema da sexualidade


e das diferenças de gênero surgia freqüente mente, embora não fos-
sem extraídas as implicações que emergiam das investigações e das
entrevistas. Um dos aspectos mais gritantes ele toda a produção so-
bre o tema é que as moças e as mulheres muitas vezes estão ausentes
ou mudas; este fato era reconhecido abertamente, como na inter-
venção de Erikson , já citada, mas considerado óbvio ou simples-
mente deixado em suspenso. Também os intérpretes que reconhe-
ciam tal ausência justificavam-na de modo apressado, garantindo que
as moças pareciam não fazer parte ele um problema que envolvia
sobretudo os jovens, seja porque sobre estes exerciam-se pressões
fortíssimas para que respeitassem o modo de vida americano, ao
passo que a maternidade era para as mulheres uma autojustificação
suficiente, seja porque as adolescentes não demonstravam uma cons-
ciência adequada das instituições em que se inseriam, como a esco-
la.104 Para Friedenbcrg, que também desenvolvia uma análise que
dava ao tema da repressão sexual relevância central, a posiç~) mar-
ginal que as mulheres ainda tinham na cultura c na burocracia ame-
ricana, sendo amplamente excluídas de papéis importantes, garan-
tia a elas uma "subjetividade maior" , uma liberdade maior e uma
imagem menos ameaçadora para a sociedade em seu conjunto.
Na realidade, o ponto crucial da análise de Friedenberg era o
diagnóstico de que o receio da homossexualidade por parte dos ma-
chos adultas punha os rapazes no centro do problema e deixava as
moças de fora. O estereótipo do teenager continha muitos elemen-
tos sexuais, do jeans muito apertado às atitudes provocatórias e à
idéia de copulação ininterrupta que lhes era atribuída; a sexualida-
de adolescente despertava conflitos eróticos nos adultos, que se mas-
caravam sob a forma ele preocupações. A atraçã'o reprimida se jun-
tava com o temor da desordem e da perda de: controle derivados
ela crescente democratização elas relações entre jovens e adultos, a
inveja sugerida pelo medo de envelhecer e pela constatação de que
os jovens tinham mais elo que seus pais jamais tivessem sonhado,
mas também autodesvalorização dos adultos derivada da constata-
ção ele que não haviãm obtido o que tinham esperado dos jovens.
Que a época fosse particularmente hostil às expressões de homoe-
rotismo masculino é confirmado pelas pesquisas recentes, que su-
blinham os diversos critérios de comportamento intragêneros: en-
364 HISTÓRIA DOS jOVENS

quanto às moças da década de 1950 eram permitidas muitas expres-


sões de afetividade física recíprocas (dançavam juntas, trocavam de
roupa ou vestiam-se do mesmo jeito), aos homens eram vetadas to-
das, exceto as geradas pela prática de esportes em comum. 105
Apesar do silêncio ou da tônica colocada no homossex ualismo
masculino, em muitos estudos da década de 1950, reuniram-se da-
dos importantes sobre o tema da diferença, que teria aflorado mui-
to mais tarde. Tais dados resultam particularmente interessantes num
olhar retrospectivo. De vários lados chegayam indicações sobre a
relevância do feminino para a questão que se vinha debatendo, tan-
to a respeito do conflito entre os sexos (segundo alguns, os jovens
machos ficavam confusos e desorientados pelas atitudes agressivas
das moças) quanto mais em geral, a propósito da "fe~1tn"ilizáção"
da imagem do adolescente. Esta se teria afirmado num lento P~.o­
cesso, desde o final do século até a década de 1950, até cÇmsidet?t
todos os jovens vulneráveis, passivos, desajeitados, q:uali(;lades an- .
tes atribuídas só às mulheres. Io6 Muitos dos intérpretes mais j)res-
tigiados, de Riesman a Whyte, concordavam com o fato de qüe os
papéis masculinos e femininos estavam se aproximando ,· sobretu-
do na classe média, o que era considerado óbvio em pesquisas co-
mo a de Coleman.
]ames Coleman descobriu que existia uma diferença notável en-
tre rapazes e moças: os primeiros praticavam muito mais esportes
e atividades ao ar livre, ao passo que as segundas ficavam com as
amigas, viam TV, liam, ouviam discos e sobretudo ocupavam-se de
atividades organizativas na escola, os incontáveis clubes e associa-
ções que animavam a vida das high schools na década de 1950. A
"popularidade" da moça junto ao outro sexo tinha uma importân-
cia comparável à' do atletismo para os homens e, como estes prefe-
riam a companheira " ativa" - organizadora e/ou cheerleader - à
" passiva", com boas notas e obediente aos conselhos dos pais e pro-
fessores, a moça das high schools de classe média era avaliada na
medida em que conseguia ser um~ réplica adolescente das mulhe-
res americanas adultas, com rodas as suas atividades organizativas,
dos clubes às associações religiosas e assistenciais. Enquanto nas high
schools freqüentadas pelos filhos da clase operária as boas notas eram
consideradas uma coisa mais de mulheres do que de homens, quanto
mais se subia na escala social mais as moças recusavam ser cataloga-
das entre os "estudantes brilhantes", embora muito inteligentes, pois
isso prejudicava sua popularidade; ao contrário, muitas escondiam
ti]UJIENTUDE, .\fF.TÃFORtl DA J /UDAM;.A SOCIAL 365

sua inteligência, deixando que as menos inteligentes fossem classi-


ficadas como as melhores estudantes. 107 A investigação de Cole-
man certamente era reveladora, embora não pusesse em xeque a
questão de uma pequena diferenciação dos papéis sexuais na classe
média, que permaneciam na realidade rigidamente separados por
a~pectos fundamentais como o trabalho doméstico, reservado às mu-
lheres.
Todos os participantes elo debate reconheciam, não necessa-
riamente com o mesmo horror expresso pelos Hechinger, que os
costumes sexuais haviam sofrido uma enorme mudança. Discutia-
se amplamente o novo uso do going steady, que instaurava a mo-
nogamia entre os muitO jovens; também aqui intervinham as teses
de Riesman, 108 segundo as quais a necessidade de segurança e de
afeto, mas-também a de combinar respeitabilidade e sexo, induzia
os jovens, desde muitO cedo, a buscar relações estáveis e, em segui-
da, a unir-se em matrimônios cada vez mais precoces. Em 1955, uma
revista católica lamentava que houvesse 1 milhão de teenagers ca-
sados e protestava contra a prática do going steady. Diminuía cons-
ta~temente a idade dos encontros amorosos: na década de 1950,
os 'rapazes da classe média praticavam o ritual do dating desde a
I
jwi,ior hígh schoo!, correspondente ao início elo segundo grau, co-
me'~ando com encontros de grupo (group dating). Os encontros in-
clu{am práticas como petting e necking, isto é, beijos, carícias, abra-
ços, considerados perfeitamente respeitáveis, ao passo que não eram
assim concebidas outras práticas que permitiam às moças permane-
cerem tecnicamente virgens (heavy petting). O coito pré-conjugal
vinha aumentando desde as décadas de 1920-30; no relatório Kin-
sey de 1953, 50% das mulheres admitia praticá-lo, mesmo que de
modo não explícito diante da família e da comunidade. No conjun- ·
to, tudo isso revelava que os comportamentos sexuais dos adoles-
centes de ambos os sexos tinham se aproximado e servia para foca-
lizar uma disputa mais ampla na sociedade norte-americana sobre
a liberação dos costumes sexuais. O sexo era exaltado e comerciali-
zado pelos meios de comunicação de massa, o sex appeal inculca-
do como um ideal a ser alcançado com esforço adequado e técni-
cas codificadas, ao mesmo tempo em que se discutia freqüentemente
sobre a frigidez feminina (a moda dos seios grandes e dos seios fal-
sos, produzidos e vendidos ~m grande quantidade, era só um exem-
plo das concepções mais difundidas do sex appeal). 10 9
366 HIS TÓ RIA DOS JOVENS

A subvalorização e a desvalorização das moças na década ele


1950 foi contestada por muitos escritos autobiográficos e por alguns
estudos recentes, que ao mesmo tempo indicam os grandes limites
da suposta liberalização. Foi mostrado que existiam gangues de mo-
ças, diferentes das masculinas e mistas, 110 mas sobretudo que a cul-
tura aparentemente andrógina continha na realiclacle uma forte con-
traposição entre os sexos. O corpo da jovem era dividido em partes,
mais ou menos acessíveis ao parceiro, segundo uma negociação que
fazia pensar nos movimentos da guerra fria.
A condição sexual se inscrevia num quadro de perspectivas pro-
fundamente contraditórias para as mulheres, às quais, em teoria,
abriam-se possibilidades ilimitadas, enquantO na realidade as únkas
saídas ele fato legítimas·continuavam a ser os destinos de mulheres
e mães. A necessidade de salvar as aparências a todo custo envolvia
não só as mulheres, sobretudo jovens: tOdos os adultos deviam ser
heterossexuais e casados, fingindo ser felizes . A fi gura-símbolo ela
época, escreveu Wini Breines, podia ser Rock Hudson, ídolo das
adolescentes por sua virilidade , mas homossexual, como foi tragi-
camente revelado quando morreu de AIDS na década de 1980; igual-
mente signitkativo o tema da canção do conjunto The Platters, The
great pretender, grande sucesso naquela altura, exprimindo a práti-
ca da dissimulação como único modo para.explorar novas possibi-
lidades ou então tornar-se abertamente rebelcles.1 1 1
A relevância da sexualidade na década de 1950 era também li-
gada à sua centralidade nos processos de rebelião; assim, em parte
resgatava-se o caráter obsessivo que ela assumia para a repressão dos
comportamentos femininos e o caráter coercitivo dos masculinos.
A sexualidade carregava-se de valor simbólico como algo,de autên-
tico, genuíno, real, em relação à "verdadeira vida" de que os jo-
vens e as jovens sentiam-se excluídos, oprimidos como eram por
um sentido ele irrealidacle e inconsistência do ambiente e de si mes-
mos: formas de liberdade sexual eram, sobretudo para as moças, mo-
dos ele exprimir a revolta, com as contradições c complexidade pró-
prias dos processos ele formação de identidade das adolescentes. Elas
exaltavam figuras masculinas improváveis no papel de marido, tipo
]ames Dean, Marlon Brando ou bs boêmios e beats que viviam no
Greenwich Village de Nova York, apesar do caráter sexista e ma-
chista de todos aqueles modelos. Estes últimos inspiravam-se na su-.
posta virilidade elas classes "inferiores", recusando a sexualidade
dos homens brancos de classe média. As moças desejavam ser quem
A ] I/11F.,\II"DF., .IIETÁ FORA DA .1/UDASÇA SOCIAL 36 7

propunha ou personalizava estilos alternativos de viver, embora aca-


bassem sendo suas gi·rlfriends. Por isso obtinham sucesso tipos com
aparência ambígua, com características andróginas como Presley e
Dean. 112
A atenção pelo gênero reintroduz a ambigüidade c a multiplici-
' clade na consideração dos jovens, nivelados e uniformizados por qua-
se todo o debate. Conforme foi dito, alguns autores consideram o
próprio debate, ou melhor, a forma que ele assumiu , uma expres-
são do conflito de gerações. Segundo Kett, o tom dominante fora
·excessivamente ideológico para refletir de fato as tendências sociais
c psíquicas da maioria dos jovens: "Pequenos grupos de adultos evi-
denciam as experiências de pequenos grupos de jovens e declaram-
nas arquetípicas e núcleos de futuras tendências". 11 3
O resultado era que o caráter principal ela condição juvenil fu-
gia constantemente elas análises dos especialistas: a percepção so-
cial nunca tinha expresso o polimorfismo que é o elemento mais
marcante ela experiência social dos jovens.
É significativo que alguns historiadores mais recentes, graças
ao uso de categorias e de posturas metodológicas inovadoras, co-
mo a dimensão micro-histórica e a categoria de gênero, tragam à
luz justamente aquele caráter. De maneiras diferentes, Graebncr, Brei-
ncs c Doherty sublinharam a multiplicidade elas culturas juvenis, as
diferenciações nelas presentes, tendo por base a etnia, o gênero, a
educação, a religião, a classe social e o bairro. Os adolescentes da
década de 1950 eram um grupo muito diversificado - insistem to-
dos esses autores - , com gostos e. valores contraditórios, c tam-
bém fortes conflitos internos. Mas ~ polimorfismo é algo mais que
a multiplicidade: é a disponibilidade para assumir diversas configu-
rações, incluindo aquelas que a própria cultura define como irre-
mediavelmente outra~. Talvez fosse justamente essa característica
que permitia aos jovens da década de 1950 romper pelo menos po-
tencialmente as barreiras de cor e de gênero, escolhendo ídolos que
escandalizavam os adultos porque " ambíguos", andróginos, com
estilos de comportamento "negros" ou mediados pelas classes " in-
feriores". A ruptura ocorria na maioria das vezes ele modo subter-
râneo, simbólico ou parcial - mas não menos significativo-, se-
guindo um impulso para encontrar identidades novas. Audre Lorde
exprimiu bem esse impulso em seu livro autobiográfico, " biomito-
grafia" de uma jovem lésbica e negra na Nova York daquele perío-
do: "as moças gays eram as únicas mulheres negras e brancas que
368 HISTÓRIA DOS]OVENS

conversavam no país, na década de 1950, fora da retórica .vazia do


patriotismo e dos movimentos políticos" . 11 4

"TEENPICS"

O cinema se confirma como fonte particularmente importante


para a história do discurso sobre a juventude, ou melhor, no caso
dos Estados Unidos da década de 1950, como fonte privilegiada.
"1::>
Por volta da metade da década;tomeça de fato a existir uma produ-
ção cinematográfica que não só adora os jovens e os adolescentes
como protagonistas e seus problemas como argumentos ele suas his-
tórias, mas dirige-se diretamente ao público dos teenagers. Antes
da metade desta década, um filme era um medium destinado a um
público heterogêneo e multigeracional; ir ao cinema era um ritual
para famílias, o que justificava severos controles sobre a moralida-de
das películas. O processo ele "juvenilização" elo conteúdo elos fil-
mes e do público ocorrido naquele período - e contemporâneo
ao declínio ela produção clássica de Hollywood - fez do cinema
consumido nas salas um medium juvenil, ao passo que a expansão
das áreas suburbanas incrementava o consumo, por parte dos adul-
ros, ele espetáculos televisivos e em seguida de videocassetes. Teen-
pic, abreviatura ele teenpicture, indica precisamente o filme desti-
nado aos teenagers. O fenômeno já deu lugar a boas filmografias
e hipóteses interpretativas interessantes. 115 Limitar-me-ei a destacar
alguns traços úteis para uma futura análise ela imagem do jovem e
da sua relevância visando uma eventual história do discurso sobre
a juventude nos dois últimos séculos no Ocidente.
À diferença do que acontecia no cinema fascista, a figura ju-
venil já está plenamente traçada ele modo autônomo daquele elos
adultos. A sua diversidade ele imagens exprime-se também ele várias
maneiras. On the waterfront (Sindicato de ladrões), ele 1954, u6
apresenta um Marlon Brando nitidamente mais jovem em relação
aos outros componentes ela gangue ela qual faz parte junto com o
irmão mais velho, e que é ele fato chamado por todos "o garotão".
Também é o único capaz de rebelar-se e denunciar um assassinato
elo qual foi cúmplice involuntário, arriscando ser massacrado, mas
conseguindo romper a apatia dos outros trabalhadores do porto ví-
timas de extorsão por parte da gangue. Ao lado dele aparece Eva
Marie Saint, com um belo contraste entre a donzela loura e religio-
Aj(IV!iNTUnFi, .11/ITÁFORA DA MUDA,\'ÇA SOCIAL 369

sa e o malandro de blouson no ir (a única cena do filme em que Bran-


do usa gravata é quando testemunha no processo contra a gangue).
Quando conta sua vida à moça - ele cresceu num orfanato, de on-
de fugiu, e é muito ligado ao irmão que o arrastou para a má vida;
podia tornar-se um campeão de boxe, mas a gangue havia compra-
do o resultado da luta - , ela observa: "Às vezes, as pessoas são más
porque não se consegue pegá-las pelo lado certo". Os dois jovens
destacam-se do ambiente que os circunda pela beleza, mas também
pelo contraste de "estilo" entre os dois, e o casal encarna exatamente
os sonhos dos adolescentes de que se falava no parágrafo precedente:
uma rapaz selvagem e arrogante, mas que é bom e vira de ponta-
cab~ça o mundo que vê, com suas injustiças, graças ao amor de uma
moça. O papel desta última é crucial, junto com o de um padre, pa-
ra provocar a conversão do alienado de sua pequena sociedade ile-
gal e separada dos grandes valores americanos da sinceridade, da
coragem, elo individualismo.
A história ele East oj Eden [Vidas amargas, 1955] abre-se com
um çenário típico de 1917, em Monrerey: casas e pedestres perten-
cem de modo muito evidente àquela época. Entre uma multidão ves-
, tida de escuro, as mulheres com chapéu e vestidos até os pés, os
homens de terno, gravata e colete, aparece ]ames Dean (Cal), que
veste jeans brancos, camisa esportiva clara e pulôver bege. Nada po-
deria distinguir sua roupa do teenager de 1955, ano em que Elia
Kazan dirigiu o filme, adaptado do romance de ]ohn Steinbeck. A
figura feminina que secunda o protagonista, a namorada do irmão
representada por Julie Harris, adota um estilo híbrido, mas que res-
peita a silhueta das moças da década de 1950, saia rodada larga e
comprida, com a cintura estreita que destaca o busto . A diversida-
de assim anunciada irá acentuar-se no decorrer da história, que di-
vide nitidamente bons e maus: dentre os primeiros o pai, "muito
puro" , e o irmão de Cal; entre os demais, o próprio Cal e a mãe,
que, não tOlerando a vida conjugal opressiva com um marido "que
a desejava só para ele", abandonou-o para tOrnar-se dona de um bor-
del muito rendoso. Com ela se parece o filho mau, que é criticado
pelo pai porque "nada lhe· interessa" e que rechaça as crenças do
pai: "Você pode fazer ele si mesmo o que quiser". Entre os dois gru-
pos, a moça atua como mediadora, e explica a origem de todo mal:
"É terrível não se sentir amado. É a pior coisa do mundo. As pes-
soas tornam-se pérfidas, violentas e cruéis" . Na realidade, Cal de-
monstra possuir mais espírito empreendedor que o pai e o irmão,
I
370 11/.STÓRIA DOS jOVENS

mas não é apreciado e como vingança revela a profissão da mãe aos


outros dois. O pai morre e o irmão pane para a guerra.
São evidentes os elementos que permitiam aos teenagers da épo-
ca identificar-se com Cal ou com a namorada do irmão, que o en-
tende e transgressivamente o ama. A história e o ambiente apresen-
tam tintas ·exageradamente fortes, sobretudo a figura da mãe,
considerando-se que estamos na década de 19 50, mas o clima trági-
co parece adequado para exprimir angústias obscuras ou indizíveis
justamente naquel-a década. Em 1955, no dia 30 de setembro, ]ames
Dean morreu aos 24 anos num acidente, destruindo o seu Porsche
na encruzilhada de uma estrada californiana. A sua morte e o modo
como se deu ratificariam uma diversidade significativa para muitos
adolescentes, sua paixão pelos carros e guiá-los desesperadamente.
As pequenas e grandes infrações na condução ocupavam um lugar
importante na lista ele ilegalidades que podiam levar à delinqüên-
cia juvenil.
Outro filme de]ames Dcan, Rebel without a cause (Juventude
transviada], lançado pouco antes de sua morre, constituía quase uma
intervenção no debate sobre jovens delinqüentes, mostrando que
na realidade os comportamentos irregulares deviam-se à infelicida-
de induzida por genitores fracos e incapazes ou indiferentes. Os ado-
lescentes viam-se obrigados a aceitar as regras e os rituais de uma
sociedade separada que pareciam com as leis de uma selva, c
fechavam-se em grupos ele amigos capazes de lealdade recíproca total.
A diversidade deles surgia em comportamentos que exprimiam de-
sespero, desgosto, apatia - veja-se a cena inicial elos três jovens que
se encontram de noite numa delegacia: um deles (Dean) está bêba-
do, ironiza, vacila, dá murros na escrivaninha; o outro (Sal Mineo),
com pele mais escura, cala-se obstinadamente e treme de frio (tanto
que Dean lhe o ferece a jaqueta para que se aqueça), enquanto o po-
licial fica sabendo que os pais são separados e pergunta com ar sé-
rio: "Já foi visitado por um psiquiatra?"; a namorada (Natalie Wood)
chora ao contar que o pai não gosta dela - talvez por isso seja a
girlfriend do chefe de uma gangue que rouba automóveis e os des-
trói em "rachas" . Também as imagens dos títulos - Dean que brinca
com um boneco mecânico que bate pratos, coloca-o para dormir
ao seu lado, encolhendo-se em posição fetal - aludem ao mesmo
tempo ao caráter infantil do protagonista e à vaidade e automatis-
mo da sociedade existente. Esta é muito criticada pelo comporta-
mento juvenil; embora as motivações para a rebelião sejam fluidas,
A }UVEo\TUDE.•1/ETÁFORA DA .1/UDA.VÇA SOCIAL 371

ligadas ao American way oj tije daqueles anos (a ausência da mãe


no dia do aniversário ou a proibição ele a moça usar batom), as pala-
vras que as acompanham põem em xeque toda a sociedade: " Gos-
taria que houvesse um só dia em que não me sentisse tão confuso
e não me envergonhasse de tudo" , declara Dean, e acrescenta: "Não
quero aprender a viver neste mundo"; "Minha vida é cheia de amar-
guras", confessa a moça e o companheiro tranqüiliza-a: "Não nos
sentiremos mais sozinhos, nunca mais" . O desenlace é marcado pela
morte de um dos três por um erro da polícia (o rapaz está armado,
mas a pistola descarregada): o pai promete a Dean que será "forte"
como o filho sempre desejou, a mãe agressiva e dominadora assu- .....l
me uma atitude mais serena e Dean forma liza sua relação com a na-
..
.....•

morada, dizendo ãos pais sem margem para réplica: "Esta é Julic:
I ·--
nós nos amamos". Toda a sociedade foi chamada à ordem pelos ado- ! ..;J
......'
lescentes, q ue impõem suas regras: afeto, respeito , independência
e direito de going steady .
A tarefa regeneradora é atribuída a figuras de rapazes, embora
. apoiados por companheiras devotadas e, à sua maneira, significati- "_)
vas. As figuras femininas jovens são menos numerosas e sobretudo
menos centrais na produção cinematográfica elo período. Onde apa-
recem, evidencia-se logo o sentido diferente que tem a imagem ela
adolescente na cultura americana da década de 1950. Em Picnic [Fé-
rias ele amor] (1955), um estereótipo de mãe frustrada e irritável de-
posita todas as esperanças na filha mais velha, ele dezenove anos (Kim
Novak), que brilha pela juventude e beleza entendida no sentido men-
surável próprio da época (cintura, quadris, seios), mas na certa não
por inteligência ou personalidade. A mãe aposta na eleição ela moça
como rainha de beleza na festa da comunidade, mas sobretudo num
possível casamento com o filho do magnata local. Com essa inten-
ção, dirige à filha perguntas esperançosas: "Não tenta avançar nun-
ca?", mas suas expectativas serão frustradas pela escolha ele Kim em
favor de um jovem desempregado e simpático (William Holden), que
parece encarnar o velho ideal americano do vagabundo generoso.
A jovem protagonista, petulante e " insípida", 117 que bem podia re-
presentar os sonhos de muitas teenagers, rebela-se contra um eles-
tino ele promoção social por meio do casamento e vai atrás do va-
gabundo; uma decisão que naquela atmosfera tinha certamente um
sentido de ruptura bem marcante. A sua imagem - vistosamente
sexual - é caracterizada pelo silêncio, que leva a um desenlace im-
previsto.
3 72 11/STÓRTII DOS JOVENS

Muito mais sutil é a sexualidade de Baby Doll, de 1956, adapta-


do de Tennessee Williams. Baby Doll (Carro! Baker) vai completar
dezessete anos, o mesmo número de suas pulseiras, mas já está ca-
sada com um tipo não muito atraente (Karl Malden) que prometeu
ao sogro esperar a maioridade da moça para consumar o matrimô-
nio. Na situação, picante por si mesma, insere-se um vizinho de ori-
gem siciliana (Eli Wallach) com o qual a moça inicia um jogo de per-
seguiçôes, brigas de brincadeira, pseudolutas corpo a corpo na grande
casa decadente, onde muitos móveis foram penhorados pelos cre-
dores. O ambiente é bem o do Sul, entre incêndios reais provoca-
dos por ciúmes e incêndios simbólicos dos sentidos. Baby Doll veste
o pijama que ganhou o seu nome e entrou na moda no mundo in-
teiro, porque era ao mesmo tempo prático e sexy. O erotismo que
triunfa no filme é feito de alusões, malícia, brincadeiras e cumplici-
dade; é o erotismo conexo com o riso, que é representado na "es-
pera e nas elipses". 118 A figura feminina que lembra abertamente
a infância - o marido observa Baby Doll enquanto ela chupa o de-
do num berço velho - associa inocência e pecaminosidade, expli-
citando un1 fascínio pelas adolescentes que devia suscitar um escân-
dalo semelhante ao do livro de Nabokov, Lolita, e a indignação do
cardeal Spellmann, em seu regresso da Coréia. O filme contrariava
os discursos virtuosos sobre a "imaturidade" das moças e exibia uma
figura típica do imaginário erótico masculino com toda a sua ambi-
güidade; também nessa versão, a jovem adolescente surgia particu-
larmente perigosa para a ordem da sociedade e _das mentes . Os pa-
péis atribuídos às jovens são assim sempre centrados no sexo e não
lhes conferem consciência aberta, mas sim uma habilidade secreta
para compreender e abrir seu próprio caminho em meio a mil peri-
gos. Não se vislumbram alternativas para serem sujeitos ativos fora
ela relação com o outro sexo, mais ou menos conjugal.
Os filmes citados - os dois primeiros dirigidos por Elia Kazan
e o terceiro por Nicholas Ray, o quarto por j oshua Logan e o quin-
to de novo por Kazan - dirigiam-se ainda a um público de v:hias
gerações, mesmo destacando como central a figura de jovens rebeldes
e dirigindo mensagens significativas sobretudo para os teenagers e
para aqueles que tinham a ver com eles. Mas existia uma vastíssima
produção destinada de modo exclusivo aos adolescentes, que pare-
cia a muitos adultos abominável ou incompreensível. Dentre eles,
o primeiro grande sucesso que excluía os adultos foi Rock around
the clock, que foi sustentado apenas pelo mercado adolescente c cujas
Aj/J\'J:~\7CDE. .IJETÁFORA DA .11/JDA.\"ÇA SOCJAJ. 373

projeções causaram agitação também na Inglaterra. O aparecimen-


to de um filme desse gênero numa sala do centro legitimaYa a sub-
cultura adolescente; era uma ocasião para a demonstração pública
de presença, identidade c solidariedade dos adolescentes. 11 9
A combinação de duas mídias importantes como os discos e o
cinema favoreceu o sucesso ele filmes baseados em canções famo-
sas como as de Pat Boone e Elvis Presley. Do pomo de vista da ima-
gem, este último é sem dúvida o mais significativo (o primeiro re-
presentava tão coerentemente o good boy que recusava-se a beijar
na tela), embora fosse importante a multiplicidade e o caráter con-
traditório das figuras simbólicas dado que o próprio público amava
personagens diversas como Dean, Boone e Presley. Este último in-
terpretou com segurança um modelo de revolta menos refinado que
o de }ames Dean, com raízes profundas no imaginário americano,
conforme mostra a permanência do culto por sua figura. O olhar
escuso com as pálpebras tantas vezes abaixadas, os lábios sensuais
e desdenhosos, os " quadris ondulantes" fizeram dele um símbolo
sexual. Mas a isso se acrescemava uma atitude de desafio frente ao
mundo da cultura c diante dos poderosos, pelo menos até 1958. Em
jailhouse rock [O prisioneiro do rock], de 1957, Presley sai ela ca-
deia onde descobriu seu talento para o canto e diverte-se em escan-
dalizar os pais da moça que o ajuda a gravar um disco e que o ama.
Não só lhes declara imediatamente sua proveniência da cadeia, mas
reage violentamente à discussão na casa deles sobre Brubeck, Len-
nie Tristano e outros jazzistas. Cortesmente indagado sobre sua opi-
nião, Elvis responde com brutalidade: "Não sei chongas do que es-
tão falando " , recusando qualquer papel fora do mercado, qualquer
mediação culta. Antes de transformar-se num simples "passatempo"
(depois de 1958), Presley é portador de uma mensagem de autono-
mia que poderia soar mais ou menos assim: "Sou o que sou e só
me dobro às leis do mercado, pois são úteis para mim" .

METAFÍSICAS DA JUVENTUDE

" A juventude está naquele centro onde nasce o novo", escre-


via Walter Benjamin, em 1914, e logo depois acrescentava: "Há
novamente uma geração que deseja superar a encruzilhada, mas a
encruzilhada não está em nenhum lugar" . 120 Hoje podemos acres-
centar que uma fase da metafísica da juventude em que estava imerso
374 f!ISTÓRTA DOSJOVENS

o próprio Benjamin, mesmo olhando mais adiante, esgotou-se. O


teenager morreu, declarou um especialista como Hebdige, porque
a sua figura perdeu peso ~amo no imagin:hio quanto no consumo;
outras imagens parecem mais sedutoras, por exemplo, a elas crian-
ças entre seis e nove anos. 12 1 Não existe uma juventude na encruzi-
lhada, riem, como havia intuíclo Benjamin, se vislumbra em nenhum
lugar uma encruzilhada definida, ao passo que o centro também se
volatilizou: o novo parece afastar-se rumo a um futuro distante ou
mergulhar em aspectos ignorados do social ou difundir-se na diás-
pora elas migrações e das culturas.
Portanto, temos razões para fazer uma história elas metafísicas
·da juventude e, tendo aliviado esta última ele seu peso, uma história
da condição juvenil. Deveríamos colocá-la no plural: condições ju-
venis, pois não há dúvida ele que a multiplicidade deverá ser uma ·
categoria determinante em tal empresa, junto com aquele polimor-
fismo cultural que os estudos recentes sobre os adolescentes ameri-
canos trouxeram à luz como conceito crucial para compreender o
status de jovem. Tal postura de estudo pode fazer parte do proces- .
so mais amplo com o qual a sociedade, chamando a si as projeçôes
antes lançadas sobre os jovens, chegue a produzir uma imagem de
si mesma mais auto-reflexiva ou pelo menos a criticar as ilusões de-
masiado fáceis de regeneração e os temores/desejos de apocalipse.
Também com esse fim seria interessante começar a analisar con-
tinuidades e rupturas na história das metafísicas da juventude. No
estágio dos trabalhos levantados pelo presente ensaio, a intenção
é certamente prematura, mas podem ser indicadas algumas linhas
de pesquisa: uma é a exploração dos antecedentes dos debates aqui
retomados; outra concerne à relação ele continuidade e ruptura en-
tre o tema da cultura juvenil na década de 1950 e as mutações polí-
ticas dos movimentos estudantis na segunda metade de 1960; 122
uma terceira poderia ser, enfim, a análise comparada do valor elos
vádos debates nos contextos socioculturais ele lugares e tempos di-
versos.

NOTAS

('I) Cf . G.L. Mossc, Le origini cullumli dei Terzo Reich (Milão, Mondadori,
1968), pp. 253-81; idem, Sessualità e nazíonalismo. Mentalità borghese e rispetta-
bilità (Roma-Bari, Laterza, 1984), pp. 68 e ss.; E.J Lecd, Terra di nessuno. Espe-
Aj/,l'f:.\7/JDE• .IIF.TÁFORA DA Jfl.'DASÇA SOCIAL 375

rienza beflica e idenlità personale nella prima guerra mondiale (Bolonha, li .\luli-
no, 1985), pp. 80 e ss.
(2) Cf. M. C. Giunrella, " I gruppi universimri fascisti nel primo decennio dei
regime", ll.\1ovimento di Liberaz ione in flalia XXIV (abril-junho de 1972), 10- ; F.
De Ncgri, "Agitazione c movimento studcnteschi nel primo dopoguerra Italia", Studi
storici, XVI (julho-setembro de 1975), 3.
(3) Cf. P. Nello, L 'avcmguarcllsmo giovanile alie or-igini dei fascismo (Roma·
Bari, Laterza, 1978), pp. 23 e ss.; M. Addis Saha, Gioventü italicma dei Littorio. La
stconpa dei giovani nel/a guerra fascista (Milão, Feltrinelli, 1973), cap. I.
(4) Cf. R. Gentil i, Giuseppe Bottai e la riforma fascista del/a scuola (Floren-
ça, La Nuova ltalia, 1979).
(5) Cir. de R. Trcves, " 11 fascismo c il problema dellc generazioni", Quaclerni
di Sociologia xm (abril-junho de 1964).
(6) C f. P. Nello, "Mussolini c Bouai: due modi diversi di conccpire l'educazio-
nc fascista de lia gioventu", Storia Contemporanea vm (junho de 1977), 2.
(7) Cf. !.. Russo, " I giovani nel vcnricinquennio fascista ( 1919·1944)", Belfa-
gor, 1 ( 15 de janeiro de 1946), 1.
(8) G. Papini, Maschilità (Vallecchi, Florença, 1932). Sobre a conexão entre
virilismo c fascismo Cf. L Passerini, Mussolini immaginario (Roma-Bari, L:ucrza,
1991), pp. 99 e ss.
(9) 11 paraclosso v (1960), 22.
(1 O) Grildrig, Le generazioni nel fascismo (Turim, Gobetti, 1924). Cappa iden-
tifica um problema que será crucial para o fascismo: o dos muito jovens que não
tinham participado da guerra e que, por isso, haviam se lançado na guerra civil,
constimindo porém uma ameaça para o fururo do fascismo, isso por estarem insa-
tisfeitOs com os resultados.
( 11) O debate na virada da década de 1950/60 expressou aquela problemática
em publicações, ciclos de testemunhos e de conférências. Cf. Dall'ant!f'ascismo alia
Resistenza. Trent 'anni di storia italiana {19 15-1945). lezioni con testimonianze
presentate ela Franco Antonicelli (Turim, Einaudi, 1961), c os dois volumes Fascis·
mo e antiftlscismo. Lezioni e testimonianze (Milão, feltrinelli, 1962). Particularmente
relevantes foram as discussões que se seguiram à publicação do livro de R. Zan-
grandi, llltmgo viaggio aura verso i/fascismo. Contributo alia storia di una gene-
razione (Milão, Garzanri, 1962).
Sobre a crise induzida pela guerra em jovens convictamente fascistas, saiu re-
centemente um documento de grande interesse, o epistolário de G. Pirelli, Un mondo
che crolla: lettere'1938-I943, organizado por~- Trantaglia (Milão, Archinto, 1990).
(12) C f. A. Folin & M. Quaranta (org.), Le ,·ivistegiovanili dei periodo fascista
(Treviso, Canova, 1977).
(13) G. Ge rmani, "Mobilitazione dall'alto: la socializzazione dei giovani nei
regimi fascisti (Ital ia e Spagna)" , idem, Autoritarismo, fascismo e classi sociali (Bo·
lonha, 11 l'vlulino, 1975); T. H. Koon, Believe ohey figbt. Política/ socialization of
youth in fascit ftaly 1922-1943 (Chapcl Hill, Londres, University o f Norrh Carolina
Press, 1985).
( 14) A primeira cerimônia do gênero teve lugar em 1932, corno lembra fidia
Gambeni que, naqÚela ocasião, tendo completado os 2Ianos, passou para o Parti·
do :--lacional Fascista (cf. Gli anni cbe scoltano, Milão, Mursia, 1978), pp. 179-80.
3 76 HIS7"6HJA DOS JOVENS

(15) A. Mussolini, Ammonimenti ai giovani e ai popolo (Roma, Libreria dcl


Littorio, 1931 ), p. 40.
(16} L. Collino, " Le organizzazioni giovanilí", in P. L. Pomba (org.), La civiltà
fascista i/lustrara nella dottrina e nelle opere (Turim, Utet, 1928). Sobre as mulhe-
res no pcriodo fascista, c f. M. A. Macciocchi, La donna nera (Milão, Feltrinelli, 1976);
P. Medini, Sposa e madre esempla1·e (Rimini-Florcnça, Guaraldi, 1975}; Nello, Mus-
solini e Bottai, op. cit., pp. 360 e ss.; V. De Gra:da, How fascism mled: ltr:rly,
1920-1945 (Berkeley, University of California Press, 1991).
(17) Edi7.ioni Célebres (Trapani, 1966), p. 38.
( 18} G. S. Spinetti, Dijesa di una generazione (Roma, Edizioni Polilibrarie,
1948), 121.
(19} U. Alfassio Grimaldi, "La generazionc scdotta e abbandonata", Tempo Pre-
sente, vm (janeiro de 1963), I ; R. Zangrandi, " I giovani e il fascismo", in Fascismo
e antifascismo , op. cit., vol. I.
(20) Título do artigo escrito por um dos mais próximos colaboradores de Bot-
tai, em Critica Fascista de I? de dezembro de 1930. Alude às três gerações que
passaram a constituir o fascismo e que se confrontavam no início dos anos 30.
(21) "Un regime di giovani", Critica Fascista (I ~ de junho de 1928).
(22) G. 8. Guerri, Giuseppe Bottai, unfascista critico (Milão, Fcltrinclli, 1976).
(23) Citado por Trcvcs, Il fascismo , op. cit.
(24) Critica Fascista (1 ~ de outubro de 1930).
(25) " Ancora sui giovani c il regime", Bibliografia Fascista, 7 (1929).
(26) G. Secreti, " I gio,·ani e il pani10", Critica Fascista (1 '? de agosto de 1928).
(27) G. Bouai, " li rcgno della noia", Critica Fascista (I 5 de agosto de 1928).
(28) "Un regime di giovani", Crítica Fascista ( I ~ de junho de 1928).
(29) Retomado por Bouai, idem.
(30) C. Pelizzi, "Aprire le finesrre", Critica Fascista ('I~ de setembro de 1929),
e a "Nota rcda zionale", no mesmo fascículo; Callegari, Cariche ai giovani owero
giouani a/la carica, op. cit.
(31) D. Montalto, " La libenà e i giovani", Critica Fascista (15 de agosto de
1929), criticado, por sua vez, por S. M. Cutclli, "Selezione, aurorità e libcnà", Cri·
tica Fascista (I? de setembro de 1929).
(32) G. Bottai, "Giovani e piu giovani", Critica Fascista ( I~ de junho de 1930).
(33) G. P. Callegari, "Elogio de! vccchio", Critica Fascista (1 5 de novembro
de 1930}.
(34) G. Sccrcti, " I giovani e il parti to", Critica Fascista ( I ~ de agosto de 1928).
(35) G. Secreti, " I giovani", Crítica Fascistc1 (1 '! de fevereiro de 1929).
(36) De 14 ele dezembro de 1928.
(37) " 11 f-ascismo c i giovani", Bibliografia Fascista (I929), 5·6; A. Pavolini,
"Viva i giovani", Critica Fascista (I '! ele março de 1929); "Ancora sui giovani e
il regime", BibliOl~rafia Fascista (I929), 7.
(38) Publicados autógrafos em Critica Fascista (I~ de fev-ereiro de 1930). So·
bre o relacionamento entre os jovens e Mussolini, mesmo no imaginário, cf. Passe·
rini, op. cit., pp. 184-208.
(39) Nello, Mussolini e Bottai, op. cit., p. 34 I.
(40) "Avvíamento alie resposabilità", Critica Fascista (1 '? de fevereiro de 1930).
A } UI'ENTUDE, METÁFORA DA JJUD&\'ÇA SOCIAL 3 77

(41) De 15 de fevereiro de 1930; a Nota sucedia o art igo de Domenico Mon-


talto, "L'avvenire, comributo al problema dei giovani".
(42) C. Di Marzio, "Giovani e piu giovani: comando e moralità", C1·itica Fas-
cista (15 de janeiro de 1930).
(43) L. Russo, "lo clico seguitando .. .", La Nuova !ta/ia (20 de janeiro de 1930),
depois Elogio delta polemíca. Testimonianze di vita e di cultura (191 R-1932) (Ba-
ri, Laterza, 1933), pp. 194 e ss.
(44) A. De Granel, Bottai e la cultura fascista (Laterza, Roma-Bari, 1978); cf.
também "Giuseppe Bottai e i! fallimento dei fascismo revisionista", Storia Contem-
pomnea vt (dezembro de 1975), 4, sobre Bottai na oposição, no período de 1922-6.
(45) L Mangoni, L 'imerventismo delta cultura. lntellettuali e riviste del fas-
cismo (Roma-Bari, Laterza, 1974), pp. 197-206; R. De Felice, Mussolini i/ duce, vol.
1, Gli anni del consenso 1929-1936 (Turim, Einaudi, 1974), pp. 232-44.
(46) M. Carli, L 'italiano di Mussolini. Romanzo dell 'era fascista (Milão, Mon-
dadori, 1930).
(47) "Gerarchia o burocrazia?", Critica Fascista (1 '? de maio de 1932).
(48) Canas e comentários publicados em 11 Selvaggio (30 de outubro de 1931 ,
30 de dezembro de 1931 ,31 de março de 1932, 1'.' de maio ele 1932).
(49) Mangoni, op. cit., p. 202.
(50) Jl Saggiatore III (janeiro de 1933), p. 439-
(5 1) " li binomio Fascio-sindacaro", Critica Fascista (15 de maio de 1933).
(52) Guerri, op. cit., pp. 136-7.
(53) Nello, Mussolini e Bottain, op. cit., p. 366.
(54) G. Bottai, " Funzione della giovemu", Critica Fascista (I '! de março 1933;
G. Santangelo, "Storia d i una polverosa polemica", Bibliografia Fascista (1933), 4.
(55) 1/8/1933.
(56) "Prima studiare poi discutere" (15 de fevereiro de 1931).
(57) As duas primeiras citações foram extraídas do editorial de Critica Fascis-
ta, " Compili di icri c di oggi", 15 de dezembro de 1931 , e elo artigo de R. de Mat-
tei, "Discorso sul me rodo", de 15 de fevereiro de 1931; a terceira de R. Bilcnchi,
" Indiffe renza dei giovani", Critica Fascista (15 de abril de 1933).
(58) U. Alfassio Grimaldi & M. Addis Saba, Cultura a passo romano . Stor.ie
e strategie dei Littomli del/a cutura e dell'arte (Feltrinelli, Milão, 1983); G. Lazzari,
llittorali del/a cultura e dell 'arte. lntellettuali e potere durante il fascismo (Ná-
poles, Liguori, 1979); Roi Rossi, "Come si formo nei littorali una opposizione gio- _
vanile ai regime", Jncontri, H (1954), 1-2. Podemos lembrar que nos litoriais, que
começaram em 1934, as mulheres só foram admitidas em 1939, em Trieste; o pri-
meiro volume citado nesta nota registra os lemas c as classificações (pp. 230 e ss.),
mas lembra que foram quase uma paródia das competições masculinas, pois incluíam
somente os testes escritos e não os orais, considerando a d iscussão como algo desa-
propriado para as mulheres.
(59) G. Pintor, Doppio diario 1936-1943 (Turim, Einaudi, 1978), p. 121 .
(60) Agradeço Paola Olivetti, elo Arquivo Nacional Cinematográfico de Turim,
por ter tornado possível a consulta das fontes fílmicas e por seus conselhos; Angelo
Galli, do Departamento das Disciplinas Artísticas da Universidade de Turim, por
sua colaboração para possibilitar a visão elos materiais.
3 78 11/STÓRIA DOS ]OVE/I'S

(61) O cinema italiano recobra-se da crise da década de 1920 no início da dé-


cada seguinte, graças também às diretas intervenções por pane do governo fascis-
ta. Cf. G. P. Brunctta, Cent'armi di cinema itctliano (Roma-Bari, Laterza, 1991), pp.
'1 66ess.
(62) Idem, p. 16 1.
(63) G. Lombrassa, " L'indiferenza male di moela", Critica Fascista (1 '! de ja-
neiro de 1930); "grave é o ceticismo, mas o estado ele total abjeção é a indiferença,
postura espiritual extremamente moderna [...] são os modismos estrangeiros, as poses
espirituais do nosso século, os vícios de uma civilização que se esfacela: todo aque-
le mundo bichado e grudem o de importação, que criam (sic] aquele tipo de ho-
mem desgastado e consumido que, em romance que causou muito barulho nos úl-
timos tempos, leva o nome de Michele (... ) Michclc só pode nascer e viver numa
grande cidade".
(64) Critica Fascista (15 de janeiro de 1931).
(65) O filme , que vencera o concurso do IStitu to Luce para o filme sobre o
decênio da "Revolução Fascista" , queria ser uma "síntese cinematográfica das vi-
cissitudes da Itália de 19 14 a 1932"; foi proje tado, em 23 de março de 1933, simul-
taneamente, em tOdas as cidades italianas e em Paris, Londres e Berlim.
A respeito do problema ele o quanto c de que modo o cinema italiano tenha
sido fascista, ver o interessante debate que se desen rolou no fim da década de 1970,
particularmente o volume organizado por R. Rcdi, Cinema italiano solto i/ fascis-
mo (Veneza, Marsilio, 1979).
(66) O filme não fora bem aceito pelas hierarquias do regime, para as quais
a representação do período das tropas de choque- mesmo que adocicada c deslo-
cada para a burla goliardesca (por exemplo, uma cena em que um só grandalhão
fascis ta faz um grupo de socialisras engolir alegremente óleo de ríci no e café; ou
aquela em que um barbeiro fascista corta meia barba do ávido parlamentar socia-
lista) - ainda parecia demasiado perigosa. Evidentemente, o que para nós parece
"tétrica e sombria exaltação", concretizada por meio das seqüências notu rnas mer-
gulhadas no preto, não bastava para aplacar as memórias e as jnquictudcs assi m des-
pertadas. Embora os anti fascistas sejam apresentados de modo desprezível c as con-
seqüências das greves sejam agigantadas de forma distorcida, o filme foi vetado pe-
la censura c só por intermédio do crítico Cerrado Pavolini, que o submeteu ao jul-
gamento do Duce em pessoa, a situação mudou. Mussolini abalou-se e ordenou que
o filme fosse exibido nas salas italianas e no exterior; desta forma o filme passou
também em Berlim, na presença de Hitler. Cf. A. Baldi in f . Di Giammatteo, Dizio-
nm·io universale de/ cinema (Roma, Editori Riuniti, 1984); cf. também a ficha orga-
n izada por P. Olivctti & F. Prono, Arquivo Nacional Cinematográfico da Resistên-
cia (1987).
(67) Acetato re presentou um enorme empenho para com uma obra de arte
fascista - argumento de Pirandello, músicas de Malipiero, colaboradores para o
roteiro Emilio Cccchi e Mario Soldati, intérpretes como lsa Pola - numa tentativa
de qualificar e desprovincianizar o cinema italiano. Cf. E. C. (E. Capizzi) in Di Giam-
matteo, op. cit., vol. 1, p. 6.
(68) Cf. F. Savio, "Ma I 'a more no ". Realismo, formalismo, propaganda e te-
lejoni biancbi nel cinema italia no di regime (1930-1943) (Milão, Sonzogno, 1975).
A jUVEN TUDE, .11ETÁFORA DA MUD,'- YÇA SOCIAL 3 79 -

(69) F. Sacchi, no COITiere delta Sera (12 de agosto de 1932), observava que
Camerini fugia do esquema de documentário, que reduzia esses ti pos de filmes a
coletâneas de cartões-postais de monumentos famosos.
(70) Savio, op. cit., p. 378. O filme foi o primeiro grande sucesso comercial
de Camerini e foi bem recebido na Primeira Mostra de Veneza, em 1932.
(71) Cf. G. P. Brunetta, Cinema italiano tra /e due guerre. Fascismo e politi-
ca cinematografica (Milão, Mu rsia, 1975), p. 53.
(72) Cf. Rossi, "Come si formo", op. cit., e 11 Popolo d'Italia (18 de abril de
1934).
(73) !ta/ia Letteraria (30 de abril de 1933).
(74) Cf. Savio, op. cit., p. 346.
(75) Cf. P. Ortoleva, Cinema e storia. Scene dal passato (Turim, Loescher,
1991), pp. 101 -2. O filme presta-se, de modo especial, a observações sobre a rela-
ção entre realidade e imagin<'irio a propósito do trabalho das mul heres; ele fora, de
fato, criticado pelos próprios jornalistas, segundo os quais o telefone automático
tornara anacrônicas as mediações entre telefo nistas e assinantes, elemento central
da trama.
(76) Quademi di Giustizia e Libertà, 3 Qunho de 1932), pp. 92-3.
(77) K. Keniston, Gio vani all'opposizione (Turim, Einaudi, 1972).
(78) Sobre as tradições e os costumes próprios à juventude, cf. J. R. Gillis,
I giovani e la storia (Milão, Mondadori, 1981).
(79) Germani, op. cit., p. 255 .
(80) M. Mitterauer, I giovan i in Europa dai Medioevo a oggi (Roma-Bari, La-
terza, 1991 ), p. 270.
(81) A respeitO deste tema, há contradições dentro do próprio fascismo. Quan-
do, no fim de 1931, a liderança do PNF passou de Giovanni Giuriati para Achille
Starace, Critica Fascista sentiu-se na obrigação de especificar: "Nós queremos, sim,
que a juventude saiba embraçar um mosquete, desfilar por três, encher de alegria
e de luminoso frescor, de camos e de juramentos nossas formações, mas também
que saiba dobrar as ágeis costas sobre um livro, ouvir em silêncio e meditar" (Com-
piti di ieri e di oggi (15 de dezembro de 1931 ).
(82) F. Rositi, "La cultura giovanile", in Jnformazione e complessità sociale
(Bari, De Donaro, 1978).
(83) G. Stanley Hall, Adolescence: its psychology and its relat-i ons to anthro-
pology, sociology, sex, crime, religion and education (2 vols., Nova York, 1904). ·
(84) ].F. Kett, Rites oj passage. Adolescence in America 1790 to the present
(Nova York, Basic Books, 1977), pp. 252 e ss.
(85) G. Paloczi-Horvath, Youth up in arms. A political and social world sur-
vey 1955-1970 (Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1971), p. 78.
(86) E. E. Cohen, "A teen-age bill of rights", New YMk Times Magazine
(7 de janeiro de 1945), cit. por T. Doherty, Teenagers and teenpics. Thejuvenili-
zation of American movies in tbe 1950's (Londres, Unwin Hyman, 1988), p . 67.
(87) Cf. "Chronology. Evenrs relating to the history of the health, education,
and welfare o f children and youth, 1933-1973" , in R. H. Bremner (org.), Children
and youth in America. A documentary history, vol. 3, 1933-1973 (Cambridge, Mass.,
Harvard University Press, 1974), pp. 1991-2.
(88) Cf. Kett, op. cit., p . 255.
380 f/ISTÓRIA DOS}OVENS

(89)]. Gilbert, A cycle of outrage. Amer·ica 's reaction to the juvenile delin-
quency in the I950s (Oxford, Oxford University Press, 1986), p. 18; enquanto na
década de 1930 somente 50% dos filhos da classe operária freqüentavam a bigh
school, no início da de 1960 a porcentagem passou a ser de 90%.
(90) J. S. Coleman, The adolescent society. TI)e sociallf(e of the teenager and
its impact on education (Glencoc, Frec Prcss, 1961, pp. 11 -3).
(91) E. Z. Friedenberg, The vanishing adolescent(Boston, Beacon Press, 1959,
nova ed., com introdução de David Riesman, 1964), p. 115 . Em outro estudo, Co-
ming oj age in America. Crowth and acquiescence (Nova York, Random House,
1963), Friedenberg compara a sociedade adolescente e o tratamento que recebe,
respectivamente, às colônias c ao colonialismo do século XIX (pp. 4 e ss.). Sobre
o conceito ele suhcultura em referência aos jovens, cf. M. Brake, The sociology oj
youth culture and youtb subcultures. Sex and drugs and rock ' n' mil? (Londres,
Rou tledge anel Kegan Paul, 1980), particularmente p. 7: "as subculwras partilham
elementos das mais amplas culturas ele classe, mas também são distintas delas. As
subculturas também têm uma relação com a cultura geral dominante que, devido
à sua penetração, particularmente sua transmissão pelos meios ele comunicação de
massa, é inevitável. Por exemplo, a subcultura dos hippies tem conexões - mas
se distingue dela por causa de seu caráter clesviante - com a cultura da classe mé-
dia progressista". Importante para a conceitualização, mesmo que referindo-se no-
tadamente à Grã-Bretanha, é D. Hebdigc, Subculture: The meaning of sty le (Lon-
dres, Methuen, 1979).
(92) D. Riesman, The lonely crowd (New Haven, Ya1c Univcrsity Prcss, 1950);
relevantes para o debate são também as obras de W. H . Whyte, The Organization
man (Nova York, Simon and Schuster, 1956), sobre a ética elas grandes corpora-
ções burocráticas que favorecem formas de identidade ele grupo, e de T. Parsons,
Essays in sociological tbeo1y (Nova York, Free Press, 1954), que inclui uma análise
sobre a idade e o gênero na sociedade americana contemporânea.
(93) E. H. Erikson, Childhood and society (Nova York, Nonon, 1950); o julga-
mento sobre o de bate está no prefácio a idem (org.), The challenge of youth (Gar-
de n City, N. Y., Anchor Books, 1965), publicado inicialmente em Daedalus, em
1961. A referência sobre relação entre psicólogos e pais foi extraída de D. R. Miller ·
& G. E. Swanson, Tbe cbanging American parent. A study in the Detroit area (No-
va York, John Willey, 1958).
(94) G. Hechinger & F. 1\·1. Hechinger, Teen-age tyranny (Nova York, William
Morrow & Co., 1962), pp. 10, 17, 18, 57.
(95) Cf. Coleman, op. cit., especialmente os caps. 3 e 4.
(96) O. Riesman, "Introdução" a Tbe vanisbing adolescent (ed. de 1964), p. 22 .
(97) B. Cartosio, Armi inquieti. Società media ideologie negli Stati Uniti da
Truman a Kennedy (Roma, Editori Riuniti, 1992), pp. 277-8.
(98) Sobre os anos 50 nos Estados Unidos, cf. P. A. Carter, Another part of
tbejifties (Nova York, Columbia University Press, 1983), e \YI . J-1. Chafe, The unfi-
nisbedjourney. America since Wlo1·ld ~Var fi (Nova York-Oxford, Oxford Univer-
sity Press, 1986).
(99) Cf. Ke tt, op. cit., p. 256.
A}UVE,\"TUDE, J!ETÁFORA DA JIUDA;\'ÇA SOCIAL 3 81

(100) A. K. Cohen, Delínquent boys. Tbe culture of the gang (Glencoe, Free
Press, 1955); P. Goodman, Gr-owíng up absur-d: p,·otJlems ofyoutb in the or-gani-
zed system (Nova York, Random llouse, 1960).
(I OI) F. Wertham, Seduction oj tbe innocent (Nova York, Rinhean, 19 54).
(1 02) N. George, Tbe deatb of rhythm artd blues, cir. de W. Breines, Young,
white and miserable. Gr-owing up f ema/e in thefifties (Boston, Beacon Press, 1992),
p . 158.
(1 03) Cf. l3reines, op. cit., pp. 125-6.
(104) Cf. T. Doherty, op. cir., p . 196; Goodman, op. cir., p. 13; Fricdenberg,
The vanisbing adolescent cit. (p. 5). Sobre a formação da identidade nas adolescen-
tes, cf. E. Douvan & ]. Adelson, The adolescent experience (Nova York, John Wil-
ley, '1966), baseado em duas investigações de caráte r nacional, de 1955·6, pp. 229-6 1.
Para a conceitualização é útil A. McRobbie & M. Nava (o rg.), Cender and genera-
tíon (Londres, .MacMillan, 1984), especialmente o ensaio de B. Hudson, " Femi nity
and adolescence" .
(1 05) W. Graebner, Coming oj age in Buffalo. Youth and authority in the
post-war era (Filadélfia, Temple Universiry Press, 1990), pp. 69 e ss.
(106) Cartosio, op. cir., p. 279; Kett, op. cir. , p. 6.
(107) C f. Coleman, op. cit., especialmente o cap. 6, "Beauty and brains as paths
tO success" .
(1 08) Cf. E. K. Rothman, Hands and hearts. A bistory of courtsbip in Ame-
rica (Nova York, Basic Books, 1984), pp. 301 c ss.
(109) Cf. Gilbert, op. cit., pp. 21 e ss.; Breines, op. cit., cap. 3.
(110) Graebner, op. cit., p. 52.
(11 1) Breines, op. cit., p . 125.
(112) Idem, p . 158; Doherry, op. cir., p. 89.
(113) Kett, op. cit., p. 4.
(114) A. Lorde, Zami: a new spelling of my nanze. A bíomythography (Free-
dom, CA, The Crossing Press, 1982).
(115) Acima de tudo o estudo de Doherty, op. cit., com rica filmografia, cujos
títulos são muitO difíceis enco ntrar na Itália. Cf. também .M. Wood, L'America e
i! cinema (Milão, Garzami, 1979), com menções autobiográficas sobre os modelos
masculinos no cinema dos anos 50, por exemplo às pp. 138 e ss.
( 116) Para informações sobre os filmes mencionados cf. Di Giammatteo, Di·
zionario op. cir.
(117) Idem, p. 784.
(118) Idem, p . 76.
(119) Doherty, op. cit. , p. 98
( 120) \\!. Benjamin, Metafísica delta gioventi't. Scritti 1910· 1918 (Turim, Ei·
naudi, 1982), p. 108.
( 121) "Morte dcl tecn-agcr. Incomro con Dick Hebdige" (org. Roberto Gatti),
Linea d'Ombra 53 (outubro de 1990), p. 57.
(122) De modos diferentes, vários intérpretes indicaram as continuidades: cf.
Kett, op. cit., p. 267; Gracbner, op. cit., p. 127; Breines, op. cit., pp. 13 e 201-2.
Trara-se de continuidades muitO problemáticas, como a entre as agitações das ban-
das da década ele 1950 e a revolta de Watts em 1960, ou a entre as rebeliões das
382 11/STÓR/A DOS jOIIEXS

moças em 1950 e o feminismo, sobre as quais os estudos existentes fornecem indi-


cações sugestivas, mas ainda não suficientemente fundamentadoras. Para estabele-
cer, de modo convincente, continuidades c rompimentos entre os fenômenos das
duas décadas, são necessários, em minha opinião, tanto uma pesquisa histórica su-
plementar quanto um novo exame das análises socioantropo16gicas sobre os novos
movimentos sociais.
Tradução do italiano po1· Nilson Moulin
~= -- ..... ~

·:

. ~uvent~de é ~~~ fase c~uci~l- que marc~ o início da

.
A mserçao def1n1t1va do 1nd1v1duo na v1da em so- ..
ciedade. É um momento de incertezas, de-procura, .
de aprendizado profis~ional, militar ou erótico. Apesar de
diversamente concebida, ela é, em qualquer sociedade; um
......

· momento de crise individual e coletiva e de empenho en-


tusiástico e sem reservas.
· · · Concebendo a juverrtudé como metáfora de mudança
social, os ensaios reunidos neste livro recuperam as ima-
gens do jovem na época moderna, e analisam a instaurg~ãô
do serviço mil_ itar, a juventude nas alde,ias ·franóe~as, ·_-à ·-
juventude operária,
.
os jovens nas. escolas 'européias, os
jovens .revolucionários europeus; -nias também sob o regime
fascista'ou o 111 Reich, e na América dos anos 50.
...
Este segundo volume de a História dos jovens aborda o
período-compreef1dido entre os séculos XVII e XX, comple-
o
tando panorama sobre a condição"dos jovens·'e as.con2.
· cepçõés de,juventude desenvolvi?Jós,rio primeire volume; ~,-
.... _ - - ~-- 'I • _. ' ' - • ' , ...

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