Você está na página 1de 17

A AIi 11 1 l l N 11 M11( l l 1/\ N1/\ 1 /\ 1 il I l JN,..

/\() l l l (l I l J I' l'Jll11

Steinberg, Leo. “A arte contemporânea e a situação de seu público”


in Outros critérios: confrontos com a arte do século XX. Tradução
Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 21-37.

l1•,11111as
palavras em defesa do meu tema, porque alguns amigos
,1 h:iram que não valia a pena falar sobre isso. Um conhecido pintor

.ihstrato disse-me: "Oh, o público, estamos sempre nos preocupando


l oin o público". Outro perguntou: "Que situação é essa em que eles

'11po tamente se encontram? Afinal, a arte não precisa ser para todos.

( )11as pessoas a entendem, e desfrutam dela, ou não a entendem, e não


pr ·cisam dela. Qual é então o problema?".
Bem, vou tentar explicar o que penso que é essa situação e, antes
disso, de quem acho que é. Em outras palavras, vou tentar explicar o
que entendo por "o público".
Em 1906, Matisse expôs uma pintura que ele intitulou Alegria de
11iver[fig. 1], atualmente na Fundação Barnes em Merion, Pensilvânia.
Esse quadro foi, como hoje sabemos, uma das grandes rupturas na
pintura do século xx. O tema era um bacanal à moda antiga - figu-
ras nuas ao ar livre, espalhadas na relva, dançando, fazendo música
ou amor, colhendo flores etc. Foi o empreendimento mais ambicioso

Baseado na primeira das três conferências apresentadas no Museu de Arte Moderna


de Nova York, na primavera de 1960. Publicado originalmente como "Contem-
porary Art and the Plight of its Public", Harper's Magazine, mar. 1962. [Este
ensaio foi publicado no Brasil como "Arte contemporânea e a situação de seu
público", trad. Cecília Prada e Vera Campos Toledo, in Gregory Battcock (org.),
A nova arte (São Paulo: Perspectiva, 1975).)

A ARTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÃODE SEU PÚBLICO 1 21


do artista - a m:iior pint11rn qu • •1• jd h:wi,1 produzido - • 1·ixou :is
pessoas muito irada . O mais furioso de todo era Paul Signac, um
importante pintor moderno, vice-presidente do Salon des Indépen-
dants. Signac teria excluído o quadro do salão, e ele só foi exposto
porque naquele ano, por acaso, Matisse estava no comitê de monta-
gem, de modo que sua pintura não precisava se submeter ao júri. Mas
Signac escreveu a um amigo:

Matisse parece ter se perdido. Numa tela de dois metros e meio, ele con-
tornou alguns estranhos personagens com uma linha da espessura de
um polegar. Em seguida cobriu tudo com uma cor plana, definida, que,
embora pura, parece de muito mau gosto. Lembra as fachadas multico-
loridas das lojas de tintas, vernizes e produtos domésticos.

Cito esse caso meramente para indicar que Signac, um respeitado mo-
derno que havia anos estava na vanguarda, era naquele momento um
membro do público de Matisse, agindo tipicamente como tal.
Um ano depois, Matisse foi ao ateliê de Picasso para ver a sua pin-
tura mais recente, Les Demoiselles d'Avignon [fig. 100], atualmente
no Museu de Arte Moderna de Nova York. Essa obra constituiu,
agora sabemos, outra ruptura na arte contemporânea; e dessa vez foi
Matisse quem ficou furioso. O quadro, disse ele, era um ultraje, uma
tentativa de ridicularizar todo o movimento moderno. Ele jurou que
iria "afundar Picasso" e fazê-lo arrepender-se de seu embuste.
Parece-me que Matisse, naquele momento, estava agindo tipica-
mente como um membro do público de Picasso.
Tais incidentes não são excepcionais. Ilustram a regra geral de que,
s ·mpre que aparece uma arte realmente nova e original, aqueles
q11l·primeiro a d~nciam, e da maneira mais ruidosa, são os artistas.
( )livi:inwnt , porque são os mais engajados. Nenhum crítico, nenhum
111111•1111', 1d1 r:1j:1dopode igualar-se à paixão de um artista no repúdio.
q111·lt• q11(· ·x luíram Courbet, Manet, os impressionistas e os

1111 111q11,•, dos salões eram todos pintores; em sua maioria,


1.it111i~t11H

111111111 11,111111111,,.1, l 1,~ 11fi , necessariamente o pintor acadêmico


1111111ti, 1111111 11,1111111111,1 r r. h ·1° idn contra um novo modo de fazer
1'1111111 1 1111 111111 1111, 1,,11 d1· 11111l 111<; lo g sto. O líder de um movi-
111, 11111 11 11111,111111111, 111 11111 111d1· lic 1r ig11alm nte enfurecido com
11ovo dl'~vio, p<ll'lJlll' h11 prn1 'Ili-: coisns tao ·nfur"'dorns
11111 quanto .1
insubordinaç:10 ou a traiçüo uun1a <.:aua revolucionária. E penso que
foi ·ss' s ·nticlo d traição que deixou Matisse tão furioso em 1907
quando viu o que chamou de "o embuste de Picasso".
Não tem nenhuma utilidade esquecer que a contribuição de Matisse
para a fase inicial do cubismo - feita no auge de sua própria criativi-
dade - foi uma atitude de incompreensão absoluta e arrogante. Em
1908, como jurado do vanguardista Salon d'Automne, ele rejeitou as
novas paisagens "com pequenos cubos" de Braque - exatamente como,
por volta de 19 r 2, os triunfantes cubistas iriam rejeitar o Nu descendo
uma escada de Duchamp. Portanto, em vez de repetir que só os pintores
acadêmicos repelem o novo, por que não inverter a acusação? Qualquer
pessoa torna-se acadêmica devido em..relação,..a.Q...Ç
ue re·eita.
Essa academização da vanguarda está em processo contínuo. Foi
bastante notável em Nova York nos últimos anos. Não deveríamos então
descartar a distinção inútil e mítica entre - por um lado - os indivíduos
criativos, visionários, a quem chamamos artistas, e - por outro - uma
massa carrancuda, anônima, intolerante, a quem chamamos público?
Em outras palavras, minha noção 5:!~úblico é f~ncional. A pa,0-
vra "público", para mim, não designa algumas pessoas em particu-
lar; refere-se a um papel desempenhado pelas pessoas, ou a um papel
ao qual as pessoas são impelidas ou forçadas por uma determinada
expenencia. E so aqueles que estão acima da experiência deveriam ser
isenta os da responsabilidade de pertencer ao público.
Quanto à "situação", entendo aqui simplesmente o choque do
desconforto, ou o atordoamento, ou a raiva, ou o tédio que algumas
pessoas sempre sentem - e todas as pessoas algumas vezes sentem -
quando confrontadas com um estilo novo não-familiar. Quando eu
era mais jovem, ensinaram-me que esse desconforto não tinha nenhu-
ma importância, primeiro porque se dizia que só os filisteus é que o
experimentavam (o que é mentira), depois porque se acreditava que
era de curta duração. Esse último ponto certamente parece ser verda-
de. Ao que tudo indica, nenhuma arte ermanec;__e desconfortável ~o
muito tempo. De qualquer maneira, nenhum estilo desses últimos cem
anos manteve por muito tempo sua aparência inicial de algo inaceitá-
vel. O que poderia levar a suspeitar que a rejeição original de tantos
trabalhos modernos era mero acidente histórico.

A ARTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÂODE SEU PÚBLICO 1 23


No <.:0111<.:ço
d:1 de ·ndn lk- 1, o, Trtos portn vm, ·s do 11w l'l':í
então a vanguarda tentaram ar um 'nLOr :1 fovor do <: pr '8Sionismo
1

abstrato de outro modo. Sugeriam qL1ea vi lên ia crua e a ação ime-


diata que geravam essas pinturas situavam-nas além do âmbito da
apreciação da arte e tornavam-nas inerentemente inaceitáveis. E como
prova mostravam, com um satisfeito ranger de dentes, que pouquíssi-
mas pessoas compravam aquelas obras. Hoje sabemos que essa relutân-
cia inicial em comprar não passava do atraso normal de no máximo
dez anos. No final dessa mesma década, o mercado para a arte expres-
sionista abstrata estava, para espanto geral, muito ativo. Não havia,
afinal, nada inerentemente inaceitável em relação a tais pinturas. Elas
só pareceram ultrajantes durante um período, enquanto nós do públi-
co relutante estávamos nos restabelecendo.
Essa rá ida domesticação do ultrajante é o aspecto mais caracte-
rístico da nossa vida artística, e ;lapso de tempo entre o eh;- ~ce_-
~ido e os agradecimentos devolvidos torna-se progressivamente ~or.
Na escala atual da adaptação do gosto, leva cerca de sete anos para
um jovem artista de teQJ.peramento impetuo;o deixar de ser enfq~t
t~rrible e tor~11m.,estagjsta maduro - não tanto porque ele muda,
~as porqu:.,2. desafio que lança ao público é rapidamente assumla o.
De modo que o valor do choque de qualquer estilo contemporâ-
neo violentamente novo é logo exaurido. Em pouco tempo, o novo
parece familiar, em seguida, normal e elegante, e por fim, oficial. Não
há problema, vocês podem dizer. Nosso juízo inicial foi corrigido; se
nós, ou nossos pais, estávamos enganados a respeito do cubismo meio
século atrás, agora tudo mudou.
Sim, mas uma coisa não mudou: a relação de qualquer arte nova -
enquanto é nova - com o seu momento; ou, para formular de outra
maneira: todos os momentos nos últimos cem anos tiveram sua arte
ultrajante, de modo que toda era ão, a partir de Courbet, ex eri-
mentou o evido desconforto com a arte moderna. E nesse sentido
é bastante erra o dizer que o atordoamento que as pessoas sentem
a respeito de um novo estilo não tem grande importância, uma vez
qu -sse estado não dura muito. Na verdade dura; já está conosco há
um éculo. E a emoção da dor causada pela arte moderna é como um
ví ·i - uma necessidade tal para nós que sociedades como a Rússia
s vi ~ti a, sem nenhuma arte moderna ultrajante própria, nos parecem

24 1
,, 1111.ip1·11i1 ,•,1·1111d1•
p1•rtu .. El.11, 11110sol1·e1111·ss11 111sinl:11k p ·1't'llt', 1111
sno noss:1 condi ·i'ío normal
1111~11',l(,',IOp1·1·i<'>di·:1, ou 111:11-l·stur, (Jllt'
,pw 1·11rh:1mo dt: ":1 situa ·ão lo pt'.1blico".
( :011 ·li10, porrnnto, que essa situação importa, sim, porque é
1:111!0 -rf>nicnquanto endêmica. Isto é, mais cedo ou mais tarde é um
prohl ·ma d' todos, eja artista, seja filisteu, e, portanto, vale a pena
l1·v:í-ln a sério.

Quando um trabalho novo e aparentemente incompreensível aparece,


s ·mpre ouvimos falar do crítico perceptivo que o clamou de imediato
como uma "nova realidade" ou do colecionador que reconheceu nele
uma grande oportunidade de investimento. Deixem-me, por outro lado,
introduzir uma palavra em prol daqueles que não o entenderam.
Ao confrontar um novo trabalho de arte, essas pessoas podem se
sentir excluídas de algo de que supunham ser parte - uma sensação de
ser impedido ou destituído de alguma coisa. E é novamente um pintor
que melhor expressa isso. Quando Georges Braque, em 1908, viu pela
primeira vez Les Demoiselles d'Avignon, disse: "É como se devêsse-
~nos trocar nossa dieta usual J;l...Q.L.Jiwa
die.ta..de e tQpa e parafina". As
palavras importantes aqui são "nossa dieta usual", Não adiani;-dizer
a uma pessoa: "Olhe, se você não gosta da pintura moderna, por que
não a deixa em paz? Por que se preocupar com ela?". Há pessoas
para quem uma mudança incompreensível na arte, algo que realmente
desconcerta ou perturba, é mais como uma mudança drástica - ou,
melhor, uma redução drástica na ração diária da qual passaram a
depender -, como durante uma marcha forçada ou quando se está na
prisão. E, enquanto houver pessoas que pensam dessa maneira sobre
arte, é inútil saber que existem também certos esnobes cujos supostos
sentimentos mascaram uma indiferença real.
Sei que há um número suficiente de pessoas que ficam genui-
namente incomodadas por esses_deslocamentos que parecem mudar
o valor da arte. E isso deveria dar alguma dignidade ao que chamo
de "a situação do público". Há uma sensação de perda, de súbito
exílio, de algo deliberadamente negado - às vezes um sentimento de
que a cultura ou a experiência acumulada é desvalorizada de maneira
irremediável, deixando a pessoa exposta à miséria espiritual. E essa

A ARTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÃODE SEU PÚBLICO 1 25


cxp'ri~n ·ia po I • ntingir um artii-it;1<fr 1110<.Jo
11i11d:1111:iis d11ro qut :1
um amador. Essa ensação de perda ou de at rdoam ·nto d •masiadas
vezes descrita simplesmente como uma falha da apreciação estética ou
uma inabilidade para perceber os valores positivos numa experiência
~ov~. Mais cedo ou mais tarde, dizemos, a pessoa - se for capaz - vai
entender ou pôr-se em dia. Não há, porém, dignidade ou conteúdo
positivo em sua resistência ao novo.
_f1as2.!:!POnhamosque se descreva essa resistência como uma dificul-
dade de acompanhar os sacrifícios ou o ritmo de sacrifício deoutra pes:
soa. Vou tentar ~xplicar ~e errtêndo por ''sac;ifício" numa obra de
;;;-original. Penso novamente em Alegria de viver de Matisse, o quadro
que tanto ofendeu seus colegas pintores e críticos. Matisse abalou aqui
certas pressuposições habituais. Por exemplo, sempre se havia suposto
que, diante de uma pintura figurativa, se estava autorizado a olhar as
figuras nela, isto é, a focalizá-las uma por uma, da maneira que se dese-
jasse. As figuras pintadas, "ímãs para o olho" na frase de Giorgio Vasari,
ofereciam o bastante de uma aparente densidade para sustentar o olhar.
Portanto, a partir de toda sua experiência com a arte, uma pessoa sentia-
se autorizada a alguma recompensa agradável se focalizasse as figuras
pintadas, especialmente se essas figuras fossem pessoas alegres, mulheres
e nus. Mas nesse quadro, se olharmos as figuras distintamente, há uma
curiosa falta de recompensa. Há algo negado, pois as figuras não têm
coerência ou articulação estrutural. Seus contornos são traçados sem
atenção à presença ou à função do osso que está dentro, e algumas figu-
ras são isoladas por um pesado preenchimento escuro - aquelas linhas
"da espessura de um polegar" de que Signac se queixava.
Antigamente, a primeira reação teria sido exclamar: "Esse homem
não sabe desenhar". Mas temos os estudos preliminares do pintor para
as figuras individuais desse quadro - uma sucessão de desenhos esplên-
didos-, que mostram que Matisse foi um dos mais hábeis desenhistas
já surgidos. Apesar disso, depois de tantos esboços preparatórios, ele
·h ga, na pintura terminada, a um tipo de desenho no qual sua habi-
lid:ide parece deliberadamente mortificada ou sacrificada. Os pesados
contornos que circundam essas ninfas figuradas impedem qualquer
lll llt'rin.lização de volume ou densidade. Parecem drenar energia para
lnr.1 do núcleo da figura, fazendo-a irradiar no espaço em torno delas.
( )11 11lwz no sa visão é que seja desviada, de modo que, assim que uma

,,, 1
fig111· 1 t' n· ·o,iiH•·id:i, 110 1111•1;r1111 •,011101>fur1,:1doN n dl'i n l 1 pnr:,
i11Ht.11111•
11l'g11ir11111 sistvnrn l'Í1111i ·o l', 1 :111sivo.E 111:1is011 111·nos ·01110 v ·r unw
p ·dr:1 ·:1ir 11:1,íµu:1;o ülho scgu' os ·ír ·ulos ·xpondindo-s ', ~ ~ pr iso
uma forço d vontade dcliberad , quase pervcr a, para c ntinuar foca-
lizando o ponto do primeiro impacto - talvez porque seja muito pouco
recompensador. E pode ser que Matisse estivesse tentando fazer suas
figuras individuais desaparecerem para nós como aquela pedra afun-
dada, para que fôssemos forçados a reconhecer um sistema diferente.
O análogo na natureza para esse tipo de desenho não é uma cena
ou um palco em que formas sólidas estão dispostas; um análogo mais
verdadeiro seria um sistema circulatório, como o de uma cidade ou o do
sangue, em que uma obstrução em qualquer ponto implica uma condi-
ção patológica, como um coágulo sanguíneo ou um engarrafamento de
trânsito. E acho que Matisse deve ter percebido que "o bom desenho"
no sentido tradicional - isto é, a linha e o tom designando uma forma
sólida de caráter específico com locação concreta no espaço - teria ten-
dência a capturar e prender o olho, a estabilizá-lo numa concentração
de densidade, chamando então a atenção para os próprios sólidos; e
esse não era o tipo de visão que Matisse queria para suas pinturas.
Sorte nossa que não fomos sondados em 1906, or ue certamente
não estaríamos prontos para escartar os hábitos visuais que tinhãin
s1 o um os na contemp açao e ol5ras-primas ae fato e desfazer-
nÕsdeles, da noite para o dia, por causa de uma pintura. Hoje esse
tipo e anáYíséto;nou-se lugar-"Zomum, pÕrque uma enorme quanti-
dade de pinturas do século xx deriva do exemplo de Matisse. As for-
mas coloridas e fluidas de Kandinski e de Miró e todas aquelas pintu-
ras que vieram em seguida, representando a realidade ou a experiência
como uma condição de fluxo, devem seu parentesco ou sua liberdade
às permissões afirmadas nessa obra.
Mas em 1906 isso não poderia ter sido previsto. E quase se
suspeita de que parte do valor de uma pintura como essa advém em
retrospecto, à medida que seu potencial é gradualmente atualizado, às
vezes pela ação de outros. Mas quando Matisse pintou esse quadro,
Degas ainda estava vivo, com dez anos de vida pela frente. Certamente
ainda era possível desenhar com incisão e precisão. É natural que pou-
cos estivessem preparados para se unir a Matisse no tipo de sacrifício
que parecia implicado em sua linha ondulante. E o primeiro a aclamar

A ARTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÃODE SEU PÚBLICO 1 27


o quadro não foi u1t1pi11to1·,mns u111ai11e1tcur·0111 t~·111po dispo111vcl:
2
Leo Stein, o irmão de Gertrud , que de início, como todo mundo, nii.o
gostou do quadro, mas voltou várias vezes para vê-lo - e, algumas
semanas depois, anunciou que era uma grande pintura e a comprou.
Ele tinha evidentemente ficado persuadido de que o sacrifício nesse
caso valia a pe;a ~ vista de uma experiência nova e positiva que de
-
~ro modo não poderia ser vivenciada. --
Segundo me consta, o primeiro crítico a falar de um novo estilo na
arte em termos de sacrifício é audelaire Em seu ensaio sobre Ingres
ele menciona uma "retração das faculdades espirituais" que esse pintor
impõe sobre si para atingir algum ideal sereno e clássico - no mesmo
espírito, imagina ele, de Rafael. Baudelaire não aprecia lngres; sente que
toda imaginação e movimento são banidos de seu trabalho. Mas, diz ele,
"tenho percepção suficiente do caráter de lngres para sustentar que no
caso dele trata-se de uma imolação heróica, um sacrifício sobre o altar
daquelas faculdades que ele sinceramente acredita serem mais nobres
é mais importantes". E então, mediante um salto notável, Baudelaire
prossegue para acoplar lngres a Courbet, com quem ele também não
sabe muito o que fazer. O autor se refere a Courbet como "um trabalha-
dor potente, um homem de vontade temível e indomável, que alcançou
resultados que, para alguns, já têm mais atrativo do que os dos grandes
mestres da tradição rafaelesca, graças indubitavelmente à sua solidez
positiva e à sua indelicadeza imperturbável". Mas Baudelaire encontra
em Courbet a mesma peculiaridade de espírito de lngres, porque ele
também massacrou suas faculdades e silenciou a imaginação.

Mas a diferença é que o sacrifício heróico ofertado pelo senhor Ingres em


honra da idéia e da tradição da Beleza rafaelesca é efetuado pelo senhor
Courbet em nome da natureza externa, positiva e imediata. Em sua guerra
ontra a imaginação, eles obedecem a diferentes motivos; mas suas duas
v:1ri ·dades opostas de fanatismo os conduzem à mesma imolação.

11111d1•l.1ir1· r •j itou Courbet. Isso significa que sua sensibilidade era


111111111 ,1 do pintor? É pouco provável, pois a mente de Baudelaire

i-i,nn
11111111111111111111'1 ertrnde Stein. [N.T.)
1 1,1, ti,· i 1·1 ti, 11111Y
t.1 lor 111.i,111.111111 •,1•11
1vc•I,111o11~ .1d1il1,1q11c•1 d!'
( :11111IH'I, 'l'o111dw111 11;111,cho qlll' Hr111dl'lnirr,•011wlitt•r:110,poss:i St'I'
.ll 11•,,1do dv t ipir:111H•111c ·1:10s v:1lor ·s pl~í.sticosou visunit;. ua
i11s1·11sív
l'c·jt-iç110 a ;ourber signifi ·n :1.p·nos qu ·, tendo seus próprios ideais,
d • 11:10csr:iv:1pr ·parado para acrificar as coisas que o pintor havia
posto de Indo. ourbet, como qualquer bom artista, perseguia a2enas
1wuspróprios objetivos positivos; os valores q~ descartara (por exem-
plo, a fantasia, "a beleza ideal") há muito haviam perdido, para ele,
sua virtude positiva, portanto não :onstituíam uma perda. Mas aind;
·ran, sentidos como perda por Baudelaire, que talvez imaginasse que a
fantasia e a beleza ideal todavia não tivessem se exaurido. E acho que
• i so que significa, ou pode significar, quando dizemos que uma pes-
soa, diante de uma obra de arte moderna, não está "com ela". Pode
simplesmente significar que, tendo uma forte ligação com certos valo-
res, ela não pode servir a um culto não-familiar no qual esses me~mos
valores são ridicularizados. ,.
~ essa, acredito, é a no~ação a maior parte do tempo. A arte
contemporânea está constantemente nos convidando a a2laudir a des-
truição de valores que ainda prezamos, enquanto a causa positiva,
no interesse da qual os sacrifícios são feitos, rar~te é cla@.;_De
modo que os sacrifícios aparecem como atos de demolição, ou de
desmantelamento, sem motivo algum - exatamente como, para Bau-
delaire, a obra de Courbet narecia..ser apenas um gesto revolucioná-
. .
no por s1 mesmo.

Vou tomar um exemplo mais próximo, e de minha própria experiên -


eia. Em 19 58, um jovem pintor chamado Jasper Johns fez sua primeira
exposição individual em Nova York. Os quadros que ele mostrava -
produtos do trabalho de vários anos - eram enigmáticos. Cuidado-
samente pintados a óleo ou encáustica, eram variações sobre quatro
temas principais:
Números, correndo em ordem normal, fileira após fileira, até o
fim do quadro, em cor ou em branco sobre branco.
Letras, ordenadas do mesmo modo.
A bandeira norte-americana - não uma imagem dela, tremulante
ao vento ou heróica, mas espessa, rígida, o próprio motivo.

A ARTECONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÃO
DE SEU PÚBLICOJ 29
E, por fim, os alvos, alguns tricolores, outr intciramcnt • br,in-
cos ou inteiramente verdes, às vezes encimados por pequenas caixas
dentro das quais o artista havia posto modelos em gesso de partes
anatômicas reconhecidamente humanas.
Alguns outros temas surgiam em lances únicos - um cabide de
arame pendurado numa protuberância que se projetava de um campo
rabiscado de cinza. Uma tela, sobre a qual estava colada, face a face,
uma tela menor com chassis - o que se via eram as costas da tela menor;
e o título era Tela. Outra, chamada Gaveta, em que o painel frontal de
uma gaveta de madeira com seus dois puxadores projetados tinha sido
inserido na parte inferior de uma tela, tudo pintado de cinza.
Como as pessoas reagiram? Aqueles que tinham de dizer alguma
coisa tentaram encaixar esses novos trabalhos em um esquema histó-
rico. Alguns deram de ombros e disseram: "Mais dadá, já vimos isto
antes; depois do expressionismo vem o nonsense e a antiarte, exata-
mente como nos anos 1920". Um crítico hostil de Nova York viu a
exposição como parte de uma lamentável sucessão, mais um degrau
no esvaziamento sistemático do conteúdo na arte moderna. Um crítico
francês escreveu: "Não devemos gritar 'fraude' tão rápido". Mas ele
estava meramente aplicando as advertências do passado; seu senti-
mento era de que estava sendo enganado.
Por outro lado, um grande número de pessoas inteligentes de
Nova York respondeu com intenso entusiasmo, mas sem ser capaz
de explicar a fonte de seu fascínio. Um diretor de museu supôs que
talvez fosse apenas um sentimento de alívio em relação ao expressio-
nismo abstrato, demasiado visto nos anos recentes, o que o levava a
admirar Jasper Johns; mas tais explicações negativas nunca são ade-
quadas. Alguns pensaram que o pintor escolheu temas banais porque,
dados nossos hábitos de não atentar às coisas simples da vida, ele que-
ria, pela primeira vez, torná-las visíveis. Outros consideraram que o
atrativo daquelas pinturas residia no manejo primoroso dos próprios
rn ios e que o artista escolhera deliberadamente os temas mais banais
pa rn torná-los invisíveis, isto é, para induzir a concentração absolu-
l'fl n p nas na superfície sensorial. Mas isso não funcionava por duas
rn,-,, ·s. Priiueiro porque não havia concordância sobre se essas coisas
no 111, 1• fato, bem pintadas. (Um crítico de Nova York de compulsiva
11rigi11,lid:id disse que os temas eram bons, mas que a pintura era

\o 1
poh,·1·.) 1•'.,,•1111,1•g111Hlo 1111•.:11',
1 orq11c, S(' Joh11s tivcSSt' prct ·ndido q11 •
lil'll lt·1111fi ·nsSl' invis v ,1 por 111 ·io dn si111pl•s banalidade, certamente

11•ri:1rncnssndo- omo uma debutante que e pera ficar discreta usan-


do jeans num baile. Se o tema reticente fosse sua intenção, teria sido
m ·lhor pintar uma abstração comum, em que todos sabem que não se
d ·v questionar o assunto. Mas nesses novos trabalhos os temas eram
·smagadoramente conspícuos, mesmo que só devido a seu contexto.
1-1.ateada nos quartéis-generais, uma bandeira de Jasper Johns poderia
,nuito bem ter alcançado a invisibilidade; armado numa linha de tiro,
um alvo poderia passar despercebido; mas cuidadosamente refeitos
para serem vistos à queima-roupa numa galeria de arte esses· temas
causaram profunda impressão.
Parece que nesse primeiro embate com o trnbalho ~e Johns pou-
cas pessoas tinham segurança de como reagir, enquanto alguns dos
críticos mais avançados dignos de confiança aplicavam modelos de
vanguarda já testados - que pareciam subitamente envelhecidos e
prontos para serem descartados.
Minha reação inicial foi normal. Não gostei da exposição e de
bom grado a consideraria maçante. Contudo, ela me deprimiu e eu não
tinha certeza do porquê. Então comecei a reconhecer em mim todos
os sintomas clássicos de uma reação filistina à arte moderna. Estava
furioso com o artista, como se ele tivesse me convidado para um jan-
tar, só para servir algo incomestível, como estopa e parafina. Estava
irritado com alguns dos meus amigos que diziam ter gostado - mas
apreensivo com a suspeita de que talvez gostassem de fato, de modo
que eu estava realmente furioso comigo mesmo por ser·tão obtuso, e
com toda a situação por me desmascarar.
E, nesse meio-tempo, os quadros permaneceram presentes na
minha mente - agindo sobre mim e me deprimindo. Pensar neles me
dava uma sensação nítida de ameaça de perda ou privação. Havia um
em particular, chamado Alvo com quatro rostos [fig. 13]. Era uma
tela bastante grande consistindo apenas de. um alvo tricolor - verme-
lho, amarelo e azul - e, sobre ele, encaixados ·atrás de uma portinhola
de madeira, quatro modelos de um· mesmo rosto obtido~ do natu-
ral - ou melhor, da parte inferior do rosto, uma vez que a porção
superior, incluindo os olhos, havia sido excluída. O quadro parecia
estranhamente rígido para uma obra de arte e lembrava a objeçã◊

A [\RTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÂODE SEU PÚBLICO 1 31


de H:111tlelni1'l' t'l11 1·rl.11,•.10 1 1111',1I'~: "N.10 li.i 111111 1111.q•,111.11,111; por
tanto 1110 h~í111~1is 111ovi111 •nru". 11ml ·l'Ín :ilgulll Nig11il'i ·ado H1·r lil't1do
dali? Pensei como o rost humano n ·ssc qu:1dro pnr ·ci::iprofon;ido,
sendo brutalmente coisificado - e não em algum espírito aceitável de
protesto social, mas gratuitamente, ao acaso. Em dado momento, eu
queria que a pintura me desse uma sugestão repugnante de sacrifício
humano, de cabeças em conserva ou montadas como troféus. Então,
esperava, a coisa toda chegaria a parecer hipnótica e repelente, como
um signo primitivo de poder. Mas, quando olhei de novo, todo esse
romance desapareceu. Aqueles rostos - quatro iguais - estavam ali
reunidos não em razão de qualquer triunfo; estavam retalhados, cor-
tados logo abaixo dos olhos, mas sem sugestão de crueldade, mera-
mente para caber em suas caixas; e estavam amontoados naquela
prateleira no alto como mercadorias comuns. Mas isso era motivo
suficiente para ficar tão deprimido? Se eu não gostava dessas coisas,
por que não ignorá-las?
Não era tão simples assim. Pois o que realmente me deprimia era
o que eu sentia que esses trabalhos podiam causar a toda arte. As obras
de De Kooning e Kline, parecia-me, eram subitamente jogadas num
mesmo caldeirão çom Rembrandt e Giotto. Todos eles, subitamente,
se tornaram do mesmo modo pintores da ilusão. Afinal, quando Franz
Kline pinta uma faixa de tinta preta, essa tinta é transfigurada. Você
pode não saber o que ela representa, mas é ao menos a trajetória de
uma energia ou parte de um objeto movendo-se num espaço branco
ou contra ele. A tinta e a tela representam mais do que elas mesmas.
O pigmento ainda é o meio pelo qual algo visto, pensado ou sentido,
algo mais do que o próprio pigmento, é tornado visível. Mas aqui,
nesse quadro de Jasper Johns, sentia-se o fim da ilusão. O fim da mani-
ula ão da tinta como meio de trans ormação. Esse artista, se quer
alguma coisa tridimensional, recorre a um modelo de gesso e constrói
uma caixa para contê-lo. Quando pinta sobre uma tela, só pode pintar
o que é plano - números, letras, um alvo, uma bandeira. Tudo o mais,
parece, seria faz-de-conta, um jogo infantil - "vamos fingir que ... ".
L go, o plano é plano e o sólido é tridimensional, e estas são as evi-
dAncias, tratando-se de arte ou não. Não há mais metamorfose, não
há mai mágica do material. Isso me parecia a morte da pintura, !}!llil
parada brusca, o fim do caminhQ;_,

32 1
NIio ,n11
1
p11ilp1, 1111•,,..,1 ,v,l 11i11'1t",~.id11 1·111 ,,1110 d111, rntlH·
1 ido pi111111·1·s1hs1nllo:- (k Novn o,·I l'l':tl',i:1111:1 J:ispn .Jol111s.U,n
d1•l1·, "Sr isso lor pi111u1·:1,s ·ri:i 111 ·lhor ·u dc·is1ir". E o outro
dii>s\':
dl', H·, 1·1·sig11nd:11111·11t
1
•: "I> ·111, ainda 'stou envolvido com o sonho".
l'.1111h'·111·I • s ·111'iaque um sonho antigo daquilo que a pintura tinha
,ido, 011 pod ria cr, havia sido cruelmente sacrificado - talvez por um
1ov(·111 nine.ladema iado impetuoso ou irreverente para já ter sonhado.
E 111lo isso se parecia muito com o sentimento de Baudelaire em rela-
1;:10a ;ourbet, de que ele tinha dado um fim à imaginação.

Os quadros, então, me levaram a seguir ponderando e continuei a voltar


11 cl 'S. Gradualmente algo surgiu para mim, uma solidão mais intensa
do que tudo que eu tinha visto em imagens de mera desolação. Em Alvo
mm quatro rostos tive consciência de uma estranha inversão de valores.
( ;om desatenta desumanidade ou indiferença, o orgânico e o inorgânico
tinham sido nivelados. Um rosto desmembrado, multiplicado, cegado,
C-repetido quatro vezes acima do olhar impessoal de um "olho de boi" .3
"Olhos de boi" e rostos cegos - mas justapostos como que por hábito
ou acidente, sem nenhuma intenção expressiva. Como se os valores que
foriam um rosto parecer mais precioso ou eloqüente tivessem cessado
d existir; como se aqueles que pudessem manter e impor tais valores
simplesmente não estivessem por perto.
Em seguida, outra inversão. Comecei a me perguntar o que era,
11arealidade, um alvo e concluí que um alvo só pode existir como
11mponto no espaço - "ali", à distância. Mas o alvo de Jasper Johns
·stá sempre "aqui"; ele constitui todo o campo. Perdeu sua condição
d •finitiva de estar "ali". Prossegui, pensando sobre o rosto humano,
• cheguei à conclusão oposta. Um rosto só faz sentido quando está
"aqui". A distância, podemos ver o corpo de um homem, uma cabeça,
até um perfil. Mas, assim que reconhecemos uma coisa como um rosto,
ela não é mais um objeto, e sim um pólo numa situação de consciência
r ·cíproca; ela tem, como nosso próprio rosto, uma presença absoluta,

No original "bull's eye", literalmente "olho de boi". A expressão designa o círculo


central de um alvo. [Nota da revisora técnica, daqui em diante N.R.T.]

A ARTE CONTEMPORÂNEAE A SITUAÇÂODE SEU PÚBLICO 1 33


um "aqui". l'or1(11llo,o A/1111cu111,11111/ron1~lus d • Jnspn Joh11s t'il'
tua, certamente, urna estranha i11v·rsno, púr 1u ·ao, Ivo, qu • 11• ·ssita
existir a distância, foi concedida toda a pos ibilidade de presença, a
passo que os rostos são dispostos em prateleira .
E, mais uma vez, senti que o nivelamento dessas categorias, que
são os marcadores subjetivos do espaço, implicava um ponto de vista
totalmente não-humano. Era como se a consciência subjetiva, que é a
única capaz de dar significado ao "aqui" e ao "ali", tivesse cessado
de existir.
Comecei a entender então que todos os quadros de Jasper Johns
transmitiam uma sensação de espera desolada. A tela voltada para
a parede espera para ser desvirada; a gaveta espera para ser aberta.
Aquela bandeira rígida - será que ela espera para ser hasteada ou
reconhecida? Os alvos certamente esperam para ser atingidos por dis-
paros. Johns fez uma pintura usando uma cortina abaixada que, como
qualquer cortina no mundo, espera para ser levantada. O cabide vazio
espera para receber as roupas de alguém. Essas letras, nitidamente
dispostas, esperam para soletrar algo; e os números, ordenados como
numa tábua de aritmética, esperam para ser contados. Até aqueles
modelos de gesso parecem coisas temporariamente colocadas em pra-
teleiras para algum propósito. Apesar disso, quando se olha para esses
objetos, sabe-se com absoluta certeza que seu tempo passou, que nada
vai acontecer, que aquela cortina nunca será levantada, que aqueles
números nunca mais somarão e que o cabide nunca será vestido.
Há, em todos esses trabalhos, não simplesmente uma ignorância
do tema humano como em grande parte da arte abstrata, mas também
uma implicação de ausência, e - é isto que os torna mais pungentes - da
ausência humana num ambiente feito pelo homem. No fim, esses qua-
dros de Jasper Johns acabaram me impressionando como uma cidade
fantasma o faria - mas uma cidade fantasma de terrível familiaridade.

- -
Só restam objetos - signos feitos pela mão do homem que, na ausência
-
de homens, tornaram-se objetos. E Johns antecipou seu abandono.
Esses foram, então, alguns de meus pensamentos enquanto olhava
o quadros de Johns. E agora estou diante de uma grande quantidade
de questões, e certa ansiedade.
r que eu disse - teria sido encontrado nos quadros ou atribuí-
\ do a eles? Está de acordo com as intenções do pintor? Condiz com

34 1
,1 1• Jl('11('1H 111 d(• 111111111, 111•11•,o 11, p:ir 1 1111• 1\,11' 111111· q1w 111euN ,'t'1lli
11w1110 iltl, 0
n1'1'( l0.? Nnn sei. Po, so Vt'I' q11 • l' ·s ·s q11,1dro • n~o par·-
1 1•111 111•t·1-s. ,11·i.1111 ·ntL· :1rt ·, :1qual é onh • ida por resolver problemas

1111dto 111:1is difí • ·is. Não sei se chegam a ser arte, se são importantes,

1111 hnns, ou s' s u preço vai subir. E toda a experiênci_a de _pintura

q1w L'll riv • no pas ado parece poder tanto me atrapalhar quanto aju-

d.11·. Sou desafiado a estimar o valor estético de, digamos, uma gaveta

1i :1d:1 numa tela. Mas nada do que já vi pode me ensinar como isso
il1•vt· ser feito. Estou sozinho com essa coisa e cabe a mim avaliá-la
11:1 :111sênciade modelos disponíveis. O valor que vou aplicar a essa

pi11ruratesta a minha coragem pessoal. Aqui posso descobrir se estou


pn:parado para agüentar a colisão com uma nova experiência. Eu
!'SI a ria escapando dela ao ser extremamente analítico? Terei bisbi-
ll1otado conversas alheias? Ao tentar formular certos significados vis-
1os nessa arte, estariam eles destinados a demonstrar algo sobre mim
111 ·smo ou seriam experiência autêntica?

Essas questões não têm fim, e suas respostas não se encontram


,•111 estoque. É uma espécie de auto-análise em que uma nova imagem

pode lançá-lo, pela qual sou agradecido. Sou deixado num estado de
incerteza ansiosa pela pintura, a respeito da pintura em geral, a respei-
to de mim mesmo. E acho que não há problema nisso. Na realidade,
de confio um pouco das pessoas que habitualmente, quando expostas
:1 novas obras de arte, sabem o que é importante e o que vai durar.

-----
A arte moderna sempre se P-rojeta numa zona de penumbra gnde,.J1e.-
_.valor está fixado. Ela sempre nasce na ansiedade, pelo menos
11hum
d ·sde Cézanne. Picasso disse certa vez que o que mais nos importa
~m Cézanne, mais do que suas pinturas., é sua ansiedade. Parece-me
uma função da arte moderna transmitir essa ansiedade ao especta-
dor, de modo que seu embate com a obra seja - pelo menos enquanto
ela é nova - um problema existencial genuíno. Como o Deus de
Kierkegaard, a obra nos molesta com sua absurdidade agressiva, assim
como Jasper Johns quando se apresentou a mim vários anos atrás. Ela
requer uma decisão na qual descobrimos algo de nossa própria qua-
lidade; e essa decisão é sempre um "salto da fé", para usar o termo
famoso de Kierkegaard. Como o Deus de Kierkegaard, que pede um

A ARTE CONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÃODE SEU PÚBLICO 1 35
sacrifício n Abra5o, violnndo todoH os padro ·s 111e,r•:1is,o q11:id1
o p.11·t·
ce arbitrário, cruel, irracional, exigindo nossa f ·, ao mesmo t ·111poqu •
não faz nenhuma promessa de recompensa futura. Em outras palavras,

-
é da natureza da arte contemporânea original apre~tar-se como um
risco de graves conseqüências. E nós, o público, incluindo os artistas, -
deveríamos ter orgulho de viver esse problema, porque nada mais nos
pareceria muito fiel à realidade; e a arte, afinaÍ, supõe~que seja um
-
espelho da vida. ----
Eu estava lendo o Êxodo, capítulo 16, que descreve a queda do maná
no deserto, e considerei que o trecho vinha a calhar:

Quando se evaporou a camada de orvalho que caíra, apareceu na super-


fície do deserto uma coisa miúda, granulosa, fina como a geada sobre
a terra. Tendo visto isso, os israelitas disseram entre si: "Que é isso?".
Pois não sabiam o que era. Disse-lhes Moisés: "Isso é o pão que Iahweh
vos deu para vosso alimento. [...] Cada um colha dele quanto baste para
comer, um gomor por pessoa[ ... ]".
E os israelitas assim o fizeram; e apanharam, uns mais, outros
menos. Quando mediram um gomor, nem aquele que tinha juntado mais
tinha maior quantidade, nem aquele que tinha colhido menos encontrou
menos: cada um tinha recolhido o quanto podia comer.
Moisés disse-lhes: "Ninguém guarde para a manhã seguinte". Mas
eles não deram ouvidos a Moisés, e alguns guardaram para o dia seguin-
te; porém deu vermes e cheirava mal. [... ]
A casa de Israel deu-lhe o nome de maná. Era [...] [de] sabor como
bolo de mel.
Disse Moisés: "Eis o que lahweh ordenou: Dele enchereis um gomor
e o guardareis para as vossas gerações, para que vejam o pão com que
vos alimentei no deserto[ ...]. Arão o colocou diante do Testemunho para
s r conservado. 4

1 , ,d.., i'llp. , ,. JEd. bras.: Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 2004).]
l >1•1u11•1
dt• lt•11•i,111
p11•,~•il'.t'III, p.11·r1t' pt•11,l'I l 01110o 111,111,1
1·1.i p,11 t'l ido
111111,1 ,1111·v111111·111por:111l·:1; 11110 :qw11:1s101· sv1' 11m t·1ivindo dt· l>r11,•

li tl1w1·lil, 0111111·st·r u111:1li111L·ntodo th.:rno, 011 por ni11g11611·1H1s·-


1•,1111·ro1nprtT11dG-lo b ·111- pois ''n5o sabiam o qu ra". N ·111111 ·s1110
pot\Jllt' unta part • d 1• foi im ·diata11ente posta num museu - "· o
1•,11:1rdarcispara as vossas g rações"; tampouco porque o seu gosto
pn111:,11·ceu um. mistério, uma vez que a frase aqui traduzida como
" .1hor como bolo de mel" é na realidade uma suposição; essa palavra
li ·braica não ocorre em nenhum outro lugar na literatura antiga e
11i11gu,m sabe o que ela realmente significa. Daí a lenda de que o maná
1i11ha o sabor que cada um desejava; embora viesse de fora, seu sabor
11a hoca era invenção de quem o provasse.

Mas o que decidiu a analogia com a arte moderna, para mim, foi
<.·sraOrdem: colher do maná todos os dias, de acordo com o que for
<.'omer, e não para conservá-lo como uma garantia ou investimento
1 ara o futuro, fazendo da colheita de cada dia um ato de fé.

A ARTECONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÂODE SEU PÚBLICO 1 37

Você também pode gostar