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l1•,11111as
palavras em defesa do meu tema, porque alguns amigos
,1 h:iram que não valia a pena falar sobre isso. Um conhecido pintor
'11po tamente se encontram? Afinal, a arte não precisa ser para todos.
Matisse parece ter se perdido. Numa tela de dois metros e meio, ele con-
tornou alguns estranhos personagens com uma linha da espessura de
um polegar. Em seguida cobriu tudo com uma cor plana, definida, que,
embora pura, parece de muito mau gosto. Lembra as fachadas multico-
loridas das lojas de tintas, vernizes e produtos domésticos.
Cito esse caso meramente para indicar que Signac, um respeitado mo-
derno que havia anos estava na vanguarda, era naquele momento um
membro do público de Matisse, agindo tipicamente como tal.
Um ano depois, Matisse foi ao ateliê de Picasso para ver a sua pin-
tura mais recente, Les Demoiselles d'Avignon [fig. 100], atualmente
no Museu de Arte Moderna de Nova York. Essa obra constituiu,
agora sabemos, outra ruptura na arte contemporânea; e dessa vez foi
Matisse quem ficou furioso. O quadro, disse ele, era um ultraje, uma
tentativa de ridicularizar todo o movimento moderno. Ele jurou que
iria "afundar Picasso" e fazê-lo arrepender-se de seu embuste.
Parece-me que Matisse, naquele momento, estava agindo tipica-
mente como um membro do público de Picasso.
Tais incidentes não são excepcionais. Ilustram a regra geral de que,
s ·mpre que aparece uma arte realmente nova e original, aqueles
q11l·primeiro a d~nciam, e da maneira mais ruidosa, são os artistas.
( )livi:inwnt , porque são os mais engajados. Nenhum crítico, nenhum
111111•1111', 1d1 r:1j:1dopode igualar-se à paixão de um artista no repúdio.
q111·lt• q11(· ·x luíram Courbet, Manet, os impressionistas e os
24 1
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( :011 ·li10, porrnnto, que essa situação importa, sim, porque é
1:111!0 -rf>nicnquanto endêmica. Isto é, mais cedo ou mais tarde é um
prohl ·ma d' todos, eja artista, seja filisteu, e, portanto, vale a pena
l1·v:í-ln a sério.
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fig111· 1 t' n· ·o,iiH•·id:i, 110 1111•1;r1111 •,011101>fur1,:1doN n dl'i n l 1 pnr:,
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p ·dr:1 ·:1ir 11:1,íµu:1;o ülho scgu' os ·ír ·ulos ·xpondindo-s ', ~ ~ pr iso
uma forço d vontade dcliberad , quase pervcr a, para c ntinuar foca-
lizando o ponto do primeiro impacto - talvez porque seja muito pouco
recompensador. E pode ser que Matisse estivesse tentando fazer suas
figuras individuais desaparecerem para nós como aquela pedra afun-
dada, para que fôssemos forçados a reconhecer um sistema diferente.
O análogo na natureza para esse tipo de desenho não é uma cena
ou um palco em que formas sólidas estão dispostas; um análogo mais
verdadeiro seria um sistema circulatório, como o de uma cidade ou o do
sangue, em que uma obstrução em qualquer ponto implica uma condi-
ção patológica, como um coágulo sanguíneo ou um engarrafamento de
trânsito. E acho que Matisse deve ter percebido que "o bom desenho"
no sentido tradicional - isto é, a linha e o tom designando uma forma
sólida de caráter específico com locação concreta no espaço - teria ten-
dência a capturar e prender o olho, a estabilizá-lo numa concentração
de densidade, chamando então a atenção para os próprios sólidos; e
esse não era o tipo de visão que Matisse queria para suas pinturas.
Sorte nossa que não fomos sondados em 1906, or ue certamente
não estaríamos prontos para escartar os hábitos visuais que tinhãin
s1 o um os na contemp açao e ol5ras-primas ae fato e desfazer-
nÕsdeles, da noite para o dia, por causa de uma pintura. Hoje esse
tipo e anáYíséto;nou-se lugar-"Zomum, pÕrque uma enorme quanti-
dade de pinturas do século xx deriva do exemplo de Matisse. As for-
mas coloridas e fluidas de Kandinski e de Miró e todas aquelas pintu-
ras que vieram em seguida, representando a realidade ou a experiência
como uma condição de fluxo, devem seu parentesco ou sua liberdade
às permissões afirmadas nessa obra.
Mas em 1906 isso não poderia ter sido previsto. E quase se
suspeita de que parte do valor de uma pintura como essa advém em
retrospecto, à medida que seu potencial é gradualmente atualizado, às
vezes pela ação de outros. Mas quando Matisse pintou esse quadro,
Degas ainda estava vivo, com dez anos de vida pela frente. Certamente
ainda era possível desenhar com incisão e precisão. É natural que pou-
cos estivessem preparados para se unir a Matisse no tipo de sacrifício
que parecia implicado em sua linha ondulante. E o primeiro a aclamar
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11111111111111111111'1 ertrnde Stein. [N.T.)
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t.1 lor 111.i,111.111111 •,1•11
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l'c·jt-iç110 a ;ourber signifi ·n :1.p·nos qu ·, tendo seus próprios ideais,
d • 11:10csr:iv:1pr ·parado para acrificar as coisas que o pintor havia
posto de Indo. ourbet, como qualquer bom artista, perseguia a2enas
1wuspróprios objetivos positivos; os valores q~ descartara (por exem-
plo, a fantasia, "a beleza ideal") há muito haviam perdido, para ele,
sua virtude positiva, portanto não :onstituíam uma perda. Mas aind;
·ran, sentidos como perda por Baudelaire, que talvez imaginasse que a
fantasia e a beleza ideal todavia não tivessem se exaurido. E acho que
• i so que significa, ou pode significar, quando dizemos que uma pes-
soa, diante de uma obra de arte moderna, não está "com ela". Pode
simplesmente significar que, tendo uma forte ligação com certos valo-
res, ela não pode servir a um culto não-familiar no qual esses me~mos
valores são ridicularizados. ,.
~ essa, acredito, é a no~ação a maior parte do tempo. A arte
contemporânea está constantemente nos convidando a a2laudir a des-
truição de valores que ainda prezamos, enquanto a causa positiva,
no interesse da qual os sacrifícios são feitos, rar~te é cla@.;_De
modo que os sacrifícios aparecem como atos de demolição, ou de
desmantelamento, sem motivo algum - exatamente como, para Bau-
delaire, a obra de Courbet narecia..ser apenas um gesto revolucioná-
. .
no por s1 mesmo.
A ARTECONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÃO
DE SEU PÚBLICOJ 29
E, por fim, os alvos, alguns tricolores, outr intciramcnt • br,in-
cos ou inteiramente verdes, às vezes encimados por pequenas caixas
dentro das quais o artista havia posto modelos em gesso de partes
anatômicas reconhecidamente humanas.
Alguns outros temas surgiam em lances únicos - um cabide de
arame pendurado numa protuberância que se projetava de um campo
rabiscado de cinza. Uma tela, sobre a qual estava colada, face a face,
uma tela menor com chassis - o que se via eram as costas da tela menor;
e o título era Tela. Outra, chamada Gaveta, em que o painel frontal de
uma gaveta de madeira com seus dois puxadores projetados tinha sido
inserido na parte inferior de uma tela, tudo pintado de cinza.
Como as pessoas reagiram? Aqueles que tinham de dizer alguma
coisa tentaram encaixar esses novos trabalhos em um esquema histó-
rico. Alguns deram de ombros e disseram: "Mais dadá, já vimos isto
antes; depois do expressionismo vem o nonsense e a antiarte, exata-
mente como nos anos 1920". Um crítico hostil de Nova York viu a
exposição como parte de uma lamentável sucessão, mais um degrau
no esvaziamento sistemático do conteúdo na arte moderna. Um crítico
francês escreveu: "Não devemos gritar 'fraude' tão rápido". Mas ele
estava meramente aplicando as advertências do passado; seu senti-
mento era de que estava sendo enganado.
Por outro lado, um grande número de pessoas inteligentes de
Nova York respondeu com intenso entusiasmo, mas sem ser capaz
de explicar a fonte de seu fascínio. Um diretor de museu supôs que
talvez fosse apenas um sentimento de alívio em relação ao expressio-
nismo abstrato, demasiado visto nos anos recentes, o que o levava a
admirar Jasper Johns; mas tais explicações negativas nunca são ade-
quadas. Alguns pensaram que o pintor escolheu temas banais porque,
dados nossos hábitos de não atentar às coisas simples da vida, ele que-
ria, pela primeira vez, torná-las visíveis. Outros consideraram que o
atrativo daquelas pinturas residia no manejo primoroso dos próprios
rn ios e que o artista escolhera deliberadamente os temas mais banais
pa rn torná-los invisíveis, isto é, para induzir a concentração absolu-
l'fl n p nas na superfície sensorial. Mas isso não funcionava por duas
rn,-,, ·s. Priiueiro porque não havia concordância sobre se essas coisas
no 111, 1• fato, bem pintadas. (Um crítico de Nova York de compulsiva
11rigi11,lid:id disse que os temas eram bons, mas que a pintura era
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•: "I> ·111, ainda 'stou envolvido com o sonho".
l'.1111h'·111·I • s ·111'iaque um sonho antigo daquilo que a pintura tinha
,ido, 011 pod ria cr, havia sido cruelmente sacrificado - talvez por um
1ov(·111 nine.ladema iado impetuoso ou irreverente para já ter sonhado.
E 111lo isso se parecia muito com o sentimento de Baudelaire em rela-
1;:10a ;ourbet, de que ele tinha dado um fim à imaginação.
- -
Só restam objetos - signos feitos pela mão do homem que, na ausência
-
de homens, tornaram-se objetos. E Johns antecipou seu abandono.
Esses foram, então, alguns de meus pensamentos enquanto olhava
o quadros de Johns. E agora estou diante de uma grande quantidade
de questões, e certa ansiedade.
r que eu disse - teria sido encontrado nos quadros ou atribuí-
\ do a eles? Está de acordo com as intenções do pintor? Condiz com
34 1
,1 1• Jl('11('1H 111 d(• 111111111, 111•11•,o 11, p:ir 1 1111• 1\,11' 111111· q1w 111euN ,'t'1lli
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n1'1'( l0.? Nnn sei. Po, so Vt'I' q11 • l' ·s ·s q11,1dro • n~o par·-
1 1•111 111•t·1-s. ,11·i.1111 ·ntL· :1rt ·, :1qual é onh • ida por resolver problemas
1111dto 111:1is difí • ·is. Não sei se chegam a ser arte, se são importantes,
q1w L'll riv • no pas ado parece poder tanto me atrapalhar quanto aju-
d.11·. Sou desafiado a estimar o valor estético de, digamos, uma gaveta
1i :1d:1 numa tela. Mas nada do que já vi pode me ensinar como isso
il1•vt· ser feito. Estou sozinho com essa coisa e cabe a mim avaliá-la
11:1 :111sênciade modelos disponíveis. O valor que vou aplicar a essa
pode lançá-lo, pela qual sou agradecido. Sou deixado num estado de
incerteza ansiosa pela pintura, a respeito da pintura em geral, a respei-
to de mim mesmo. E acho que não há problema nisso. Na realidade,
de confio um pouco das pessoas que habitualmente, quando expostas
:1 novas obras de arte, sabem o que é importante e o que vai durar.
-----
A arte moderna sempre se P-rojeta numa zona de penumbra gnde,.J1e.-
_.valor está fixado. Ela sempre nasce na ansiedade, pelo menos
11hum
d ·sde Cézanne. Picasso disse certa vez que o que mais nos importa
~m Cézanne, mais do que suas pinturas., é sua ansiedade. Parece-me
uma função da arte moderna transmitir essa ansiedade ao especta-
dor, de modo que seu embate com a obra seja - pelo menos enquanto
ela é nova - um problema existencial genuíno. Como o Deus de
Kierkegaard, a obra nos molesta com sua absurdidade agressiva, assim
como Jasper Johns quando se apresentou a mim vários anos atrás. Ela
requer uma decisão na qual descobrimos algo de nossa própria qua-
lidade; e essa decisão é sempre um "salto da fé", para usar o termo
famoso de Kierkegaard. Como o Deus de Kierkegaard, que pede um
A ARTE CONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÃODE SEU PÚBLICO 1 35
sacrifício n Abra5o, violnndo todoH os padro ·s 111e,r•:1is,o q11:id1
o p.11·t·
ce arbitrário, cruel, irracional, exigindo nossa f ·, ao mesmo t ·111poqu •
não faz nenhuma promessa de recompensa futura. Em outras palavras,
-
é da natureza da arte contemporânea original apre~tar-se como um
risco de graves conseqüências. E nós, o público, incluindo os artistas, -
deveríamos ter orgulho de viver esse problema, porque nada mais nos
pareceria muito fiel à realidade; e a arte, afinaÍ, supõe~que seja um
-
espelho da vida. ----
Eu estava lendo o Êxodo, capítulo 16, que descreve a queda do maná
no deserto, e considerei que o trecho vinha a calhar:
1 , ,d.., i'llp. , ,. JEd. bras.: Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 2004).]
l >1•1u11•1
dt• lt•11•i,111
p11•,~•il'.t'III, p.11·r1t' pt•11,l'I l 01110o 111,111,1
1·1.i p,11 t'l ido
111111,1 ,1111·v111111·111por:111l·:1; 11110 :qw11:1s101· sv1' 11m t·1ivindo dt· l>r11,•
Mas o que decidiu a analogia com a arte moderna, para mim, foi
<.·sraOrdem: colher do maná todos os dias, de acordo com o que for
<.'omer, e não para conservá-lo como uma garantia ou investimento
1 ara o futuro, fazendo da colheita de cada dia um ato de fé.
A ARTECONTEMPORÂNEA
E A SITUAÇÂODE SEU PÚBLICO 1 37