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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

DEPARTAMENTO DE TEORIAS DA ARTE E MÚSICA

E SE DUCHAMP FOSSE BRASILEIRO?

SILVIA SOARES PINHEIRO

VITÓRIA
2015
SILVIA SOARES PINHEIRO
E SE DUCHAMP FOSSE BRASILEIRO?

Trabalho apresentado à disciplina de História


da Arte no Brasil como requisito para
avaliação.
Professor Diego Kern Lopes

VITÓRIA
2015
Introdução

Quando pensei em escrever sobre o assunto, ficava imaginando um Duchamp


nascido no Brasil e como isso teria influenciado em seu trabalho, e em como esse
Duchamp teria influenciado a arte no Brasil, porém, com o cuidado de não fazer com
que se tornasse esse uma narrativa de ficção, optei em apenas enquadrar o
momento de vida do artista no momento da arte brasileira dentro do mesmo período.
De início acreditava que me bastaria pesquisar sobre a biografia e a história da arte
no Brasil, mas à medida que fui avançando nas pesquisas encontrei tantos fatos
interessantes que me guiaram até chegar a esse trabalho final. Então, ao fim de toda
pesquisa, consegui coletar dados que encaixariam muito bem um artista como
Duchamp no cenário artístico brasileiro do início do século XX, assim como artistas
genuinamente brasileiros que não se duvidaria se eu mentisse dizendo que foram
companheiros de trabalho.
E se Duchamp fosse brasileiro?

Marcel Duchamp nasceu na cidade de Blainville-Crevon,


filho de Eugéne Duchamp e Marie-Caroline-Lucie Nicolle,
na França, próximo a Paris. Nesse mesmo período, em
Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, onde era situada
a capital federal, nobres fazendeiros dividiam espaço com
a antiga casa de veraneio da família real. Casarões
luxuosos, muitos ainda existentes, fazendas e uma certa
elite compunha a população da cidade. O Brasil era uma
recém república, a família real havia sido banida para a
França e Áustria-Hungria à bordo do vapor Sergipe. Os bens haviam sido
confiscados e leiloados.

Petrópolis seria um local bem similar à cidade natal francesa de Duchamp. Em, em
vez de estudar no Lycée Pierre Corneille, seria o Collegio Estrella: escola de
meninos em Petrópolis destinado a educação primária e demais matérias
necessárias para entrar no comércio e academias.

Em 1901 Duchamp recebe um prêmio com seus desenhos em aquarela. Sua


inspiração vem de seu irmão Jacques Villon, cujos traços queria imitar.

Jacques
Villon
Mulher
sentada em
uma cadeira
cerca de 1900
Aquarela e grafite sobre papel
Assinado inferior direito
20,5 x 13,5 cm
Galeria Louis Carré & Cia
Seus primeiros trabalhos retratam estilos Pós-Impressionistas, bem como técnicas
clássicas. De 1904 a 1905, ele estudou arte na Académie Julian, mas preferia jogar
bilhar do que assistir às aulas. Se fosse brasileiro, a única instituição onde poderia
estudar seria a Escola Nacional de Belas Artes, onde teria visto os trabalhos pós
impressionistas e aprendido mais sobre pintura com Eliseu Visconti. Este assumiu a
cadeira de pintura em 1907, e lá permaneceu até 1913, quando retornou à Europa,
tendo retornado ao Brasil apenas em 1920. Entretanto, nesse período foi contratado
para executar diversos trabalhos de decoração do Théatro Municipal do Rio de
Janeiro.
Em 1905, tendo obrigatoriamente que se alistar no serviço militar, Duchamp se
emprega em uma impressora, onde aprende tipografia e processos de impressão.
Porém, se fosse no Brasil, estaria no meio de uma revolta de operários das artes
gráficas contra a mecanização do ofício, inciada em 1903. Teria participado da greve
dos tipógrafos e participado da fundação da União Tipográfica de Resistência em
1909? Ou teria ele participado da Exposição de 1908, com as suas obras?
Pavilhão do Distrito Federal na Exposição de 1908, no Rio de Janeiro

Anexo
ao

Pavilhão de Portugal na Exposição de 1908, inteiramente dedicado às Belas Artes.

Adendo sobre a Exposição de 1908


A Exposição Nacional Comemorativa do 1º Centenário da Abertura dos Portos do
Brasil aconteceu no bairro da Urca, na cidade do Rio de Janeiro, então Capital
Federal, entre os dias 28 de janeiro e 15 de novembro de 1908.
Foi uma grande exibição de bens naturais e produtos manufaturados, oriundos de
diversos estados brasileiros. A exposição foi promovida pelo Governo Federal, com
a justificativa de celebrar o centenário da Abertura dos Portos (1808) e de fazer um
inventário da economia do país. Mas seu principal objetivo era apresentar a nova
Capital da República, urbanizada pelo Prefeito Pereira Passos e saneada por
Oswaldo Cruz, a diversas autoridades nacionais e estrangeiras.

Talvez fosse essa visão geral de progresso que tivesse então inspirado Marcel
Duchamp a criar mais tarde seus primeiros trabalhos “ready made”, como a roda de
bicicleta.
Será que as pinturas “Moinho de café” e “Moedor de chocolate” teriam sido
inspiradas na visão de
modernidade dessa
exposição?

Marcel Duchamp
Moinho de café
1911
Óleo e caneta sobre madeira,
33 x 12,7 cm

Marcel Duchamp
Moinho de chocolate nº2
1914
Óleo sobre tela,

Em 1913, ele se afastou dos círculos de artistas, devido a “um incidente em 1912
que [o] deixou ‘meio alterado” e tornou-se um bibliotecário no 'Bibliotheque Sainte-
Genevieve'.
“[...] quando trouxe o Nu Descendo uma Escada para os Independentes, e me
pediram para retirá-lo antes da abertura. No grupo mais avançado da época, havia
pessoas com escrúpulos incríveis, eles mostravam uma espécie de medo! [...]
acharam que o Nu não tinha a ver com a linha que já haviam previsto. O Cubismo
não tinha ainda dois ou três anos de existência, e eles já tinham uma linha de
conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo que deveria acontecer.
Eu achei muito ingênuo. Isso me esfriou a tal ponto que, como uma reação contra tal
comportamento, da parte de artistas que eu acreditava livres, arrumei um emprego.”
Ele, então, rompeu com a pintura e começou a trabalhar em experiências arte-
ciência e acabou fazendo '3 Standard Stoppages'.

Marcel Duchamp - 3 Standard Stoppages, 1913-14, madeira e vidro, dimensões variáveis - MoMA

"Esta experiência foi feita em 1913 para aprisionar e preservar formas obtidas através
acaso, através de minha chance, ao mesmo tempo, a unidade de comprimento: um
metro foi alterada de uma linha reta para uma linha curva sem realmente perder a
sua identidade como medidor, e ainda lançando uma dúvida patafísica1 no conceito
de uma linha reta como sendo o caminho mais curto de um ponto a outro.”

Em 1914, com o estouro da Primeira Guerra Mundial Duchamp se mudou para Nova
Iorque tendo sido recebido como celebridade. Embora tenha sido bastante
vantajoso, se fosse brasileiro nem precisaria ter se mudado, já que a participação
brasileira na guerra foi bastante tímida, e com seu final o Brasil teve um momento de
grande desenvolvimento econômico.
Mas foi em Nova Iorque que ele se encontrou com artistas de vanguarda como Man
Ray, Beatrice Wood e Katherine Sophie Dreyer. Já na mesma década de 1920, teria
ido a São Paulo e conhecido por aqui Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Mário de
Andrade, Flávio de Carvalho e provavelmente teria participado da Semana de arte
moderna de 22 com a obra Rotary Glass Plates, Precision Optics.

1 A 'patafísica, definida como a "ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as
exceções," foi criada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry, escritor, morto em 1907, autor de obras
como Ubu Rei e Dr Faustroll.
Frequentemente se expressa por meio de uma linguagem aparentemente nonsense, resultando em
um modo pessoal e anárquico de explicar o absurdo da existência.
Marcel Duchamp - Rotary Glass Plates, Precision Optics, 1920, Instalação - Yale Center for British
Art

Em 1923, ele não era mais um artista ativo. Seu principal interesse era o xadrez, que
ele estudou e queria seguir. No ano seguinte, ele foi visto ao lado de Man Ray,
jogando xadrez no filme, "Entr'acte" 2. Se fosse Brasileiro, teria sido ele o adversário
de Monteiro Lobato em A Barca de
Gleyre3?

2 Entr'acte é um curta-metragem francês de 1924 dirigido por René Clair, que estreou como um
entreato para a produção Relâche, do Ballets Suédois no Théâtre des Champs-Élysées , em Paris.
Relâche é baseado em um livro e com a direção de Francis Picabia , produzido por Rolf de Maré , e
com coreografia de Jean Borlin. A música, tanto para o ballet e o filme foi composta por Erik Satie .

3 A Barca de Gleyre foi o título escolhido por Monteiro Lobato (1882-1948) em 1944 para dar nome
ao volume de mais de 500 páginas que reunia parte de sua correspondência com o amigo Godofredo
Rangel (1884-1951), publicado pela Companhia Editora Nacional. Amigos desde os bancos da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, o escritor taubateano e o juiz – e
escritor bissexto – mineiro trocaram cartas assiduamente ao longo de quatro décadas. O nome
metafórico é inspirado na pintura “Le Soir” ou “Ilusões Perdidas”, de Marc-Charles-Gabriel Gleyre o
qual Lobato descreve ao amigo, comparando a pintura das “ilusões perdidas” com as projeções que
tece para as vidas de ambos. (MADEIRA, Monteiro Lobato, o enxadrista [internet] disponível em
http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/jogo/wagner.htm, acessado em 21 de junho de 2015)
O Dadaísmo foi acolhido pelo movimento modernista no Brasil. O desejo de
Duchamp de interpor humor em seu trabalho se encontra no dadaísmo, assim como
Flávio de Carvalho, contemporâneo do artista, cujas performances ousadas causam
discussão. Duchamp tem como exemplo seu “Grande Vidro” ou “A noiva despida por
seus celibatários”, obra que demorou oito anos para ser concluída (ou abandonada)
que, segundo ele próprio, foi um trabalho pessoal e que nunca esperava estar
exposto, pois pesava imensamente e dava um trabalho enorme para transportar.

Em 1935 publica seus “Rotoreliefs”, máquinas (toca discos) com discos contendo
grafismos que causam ilusões de óptica ao serem girados.
Estes rotoreliefs foram produzidos em uma edição de 500, e foram inicialmente
expostos ou colocados à venda na feira do inventor Concours Lépine. A Biblioteca
Guggenheim é a única biblioteca de Nova York, que ocupa este item raro.

E como se as palavras fossem discos girando, Mário de Andrade publica Ode ao


Burguês, no livro Paulicéia Desvairada:

“Eu insulto o burgês! O burguês-níquel,


o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
[...]
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
[...]
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…”

Em 1937 Getúlio Vargas deu um golpe de estado e instaurou uma ditadura, através
de um pronunciamento transmitido por rádio a todo o País.
Em seu primeiro governo a ditadura pareceu tolerar ou negligenciar a cultura de
protesto (música, cinema, literatura, artes plásticas) elaborada por artistas e
intelectuais que, através de sua arte e de seu humor, criticavam a censura e o
regime, incentivavam a rebeldia e denunciavam o terrorismo cultural. Entretanto,
momento seguinte, no ano de 1968, embora o gênero florescesse, acirrou-se a
censura e apareceram grupos paramilitares de direita ameaçando e, às vezes,
atacando manifestações artísticas.
Em 1946, Duchamp começa a trabalhar em sua última grande obra, 'Étant donnés”',
que consistia em uma mulher nua deitada de costas, com a mão segurando uma
lâmpada de gás em pano de fundo. A obra era vista através de um par de buracos
em uma porta de madeira. Ele é composto de uma porta de madeira velha, pregos,
tijolos, latão, folha de alumínio, aço grampos da pasta, veludo, folhas, galhos, uma
forma feminina feito de pergaminho, cabelo, vidro, prendedores de roupa de plástico,
tinta a óleo, linóleo, uma variedade de luzes, uma paisagem composta de elementos
pintados à mão e fotografadas e um motor elétrico alojados em uma lata de biscoitos
que gira um disco perfurado.

Marcel Duchamp - Étant donnés, 1946-1966. Técnica mista, 242.6 × 177.8 × 124.5 cm - Museu de
Arte da Filadélfia

Se Duchamp fosse brasileiro e encaixarmos esta obra em nosso contexto histórico,


creio que teria sido ela encarada como um protesto à censura estabelecida no país
pela ditadura.
Marcel Duchamp morreu em 2 de Outubro de 1968 em Neuilly-sur-Seine, França e
está enterrado no Cemitério Rouen, França. Seu túmulo traz o epitáfio, "D'ailleurs,
c'est toujours les autres qui meurent".
Em nosso país, a "crise-68" se manifestava e se aprofundava nesse mesmo mês,
chegando ao seu ponto mais agudo no dia 13 de dezembro, com a decretação do
Ato Institucional número cinco - o AI-5. O resto dessa história já conhecemos bem.
Outubro de 1968 : "Além disso, é sempre outras pessoas que morrem."
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- CABANNE, P. Marcel Duchamp: O engenheiro do tempo perdido, São
Paulo, Ed. Perspectiva, 2002.
- VITORINO, A.J.R., Máquinas e operários: mudança técnica e
sindicalismo gráfico, São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912, São Paulo,
Ed. Annablume, 2000.
- PEREIRA, M.S., Revista ARQTEXTO: A exposição de 1908 ou o Brasil
visto por dentro, Rio Grande do Sul, UFRGS, 2011.
- TIN, E., A Barca de Gleyre: Uma metáfora para a viagem epistolar de
Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, Campinas, FACAMP, s/d.
- Revista Aventuras Na História • Edição 58 (05/2008) • 1968: O Ano que
moldou o Mundo, Abril, 2008.

INTERNET
- Art &Technology - Marcel Duchamp - Chance and Indeterminancy, 2015.
Disponível a partir de:
http://creativegames.org.uk/modules/Art_Technology/Cage_Duchamp/ducham
p4.htm [Acessado em 21 de junho de 2015].
- The Famous People - Marcel Duchamp, 2015
Disponível a partir de: //www.thefamouspeople.com/profiles/marcel-duchamp-
2231.php [Acessado em 21 de junho de 2015].
- Memórias Reveladas - A ditadura, as artes e a cultura, 2015.
Disponível a partir de:
http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/campanha/censura-
nas-manifestacoes-artisticas/index.htm [Acessado em 21 de junho de 2015].

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