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1!

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FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO
19ª Bienal Internacional de São Paulo
Fundação Bienal de São Paulo.
F981 m Mareei Duchamp. - São Paulo A Fundação:
1987.
96 p: 74 il. Ib.p. + colori.

Catálogo da exposição de obras de Mareei Du-


champ pertencentes à coleção de Arturo Schwarz,
de Milão, apresentada dentro da 19a. Bienal Interna-
cional de São Paulo, de 2 de outubro a 13 de dezem-
bro de 1987.
1. Dadaísmo2. Readymade3. Surrealismo4. Mar-
eei Duchamp 5. 19a. Bienal Internacional de São
Paulo I. Título.

CDD 759.0674
CDU: 7.036.7
Mareei Duehamp

19. a Bienal Internacional de São Pau

2 de outubro a 13 de dezembro de 1987

Pavilhão Eng. Armando de Arruda Pereira

Parque Ibirapuera - São Paulo - Brasil


PATRocíNIO OFICIAL

Governo Federal
Presidente da República José Sarney
Ministério da Cultura
Celso Furtado, Ministro
Fundação Nacional de Arte - Funarte
Ewaldo Correia Lima, Presidente
Ministério das Relações Exteriores
Roberto de Abreu Sodré, Ministro

Governo do Estado de São Paulo


Governador-Orestes Quércia
Secretaria de Estado da Cultura
Elizabete Mendes de Oliveira, Secretária

Prefeitura do Município de São Paulo


Prefeito Jânio Quadros
Secretaria Municipal da Cultura
Renato Ferrari, Secretário
19ª Bienal Internacional de São Paulo

Diretoria Executiva
Jorge Wilheim, Presidente
Eduardo de Moraes Dantas, 1. o Vice-Presidente
Mendel Aronis, 2. o Vice-Presidente
Áureo Bonilha
Thomaz Jorge Farkas
Carlos Eduardo Moreira Ferreira
Henrique de Macedo Netto
Fernando Roberto Moreira Salles

Secretário Geral Executivo


Luiz Norberto C. Loureiro

Comissão de Arte e Cultura


Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Presidente

Ana Maria de Moraes Beluzzo, Secretária


Luiz Paulo Baravelli
Maurício Nogueira Lima
Cláudia Matarazzo
Glauco Pinto de Moraes
Maria Alice Milliet de Oliveira
Aldir Mendes de Souza
Sheila Leirner, Curador Geral da 19 a BISP

Curador da Exposição Mareei Duchamp


Arturo Schwarz
Patrocínio Especial

BANCO DO BRASIL S. A.
Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 9
O Grande Vidro e os Readymades, Mesmo. 11
Cronologia de Mareei Duchamp .......... 69
Catálogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 78
Anexo I: Duchamp na Bienal ............. 82
Anexo 11: Níveis de Significado de
O Grande Vidro ....................... 85
Bibliografia selecionada ................. 90
Planta da Exposição .................... 91
índice ................................ 93

7
Apresentação
Sheila Leirner

A exposição "Mareei Duchamp", na 19. a Bienal


Internacional de São Paulo, reveste-se de muitos
significados. O primeiro deles, naturalmente, reside no
fato de que esta é a primeira vez em que o artista é
apresentado em nosso país, por meio de um conjunto
importante de obras, depois da meteórica passagem
do único trabalho "Jogadores de Xadrez" (1911) pela
II Bienal (1953-54), na sala dedicada ao Cubismo.
Trata-se, por outro lado, de uma oportunidade
muito especial para revermos o trabalho e o
pensamento do gênio das vanguardas históricas,
daquele que é uma das balizas da arte do nosso
século: exatamente agora comemora-se o centenário
do seu nascimento em Blainville. O que é, sem
dúvida, o coroamento dos esforços empreendidos
pela Diretoria Executiva da Fundação Bienal, pelo
corpo de curadores, pela Comissão de Arte e Cultura
e também devemos assinalar por Luiz Villares e
Walter Zanini, presidente e curador-geral da 16. a e da
17. a Bienal Internacional de São Paulo que, em 1983,
mantiveram os contatos preliminares com Arturo
Schwarz, estudioso e colecionador das obras de
Duchamp.
O significado histório desta exposição, todavia,
não é menos importante do que aquilo que ela
representa para a arte contemporânea e a tensão
"Utopia versus Realidade" sobre as quais
pretendemos provocar alguma reflexão. Na 19 a
Bienal Internacional de São Paulo, Duchamp
simboliza sobretudo uma profunda nostalgia daquilo
que a nossa geração não viveu e não viverá jamais.
Pois, para nós, perdeu-se para sempre aquele impulso
inovador, a Intransigência crítica, o radicalismo, onde
reside o poder revolucionário de choque e a surpresa
da vanguarda. Hoje, diante da obra de Duchamp
não há como negar a vanguanda não é mais
vanguarda, mas algo muito mais inócuo. Como num
vácuo da História, estamos alienadamente instalados
num turbilhão contraditório de estilos e
procedimentos.
Como um outsider da questão "Utopia versus
Realidade", Mareei Duchamp pode representar,
portanto, um profícuo momento de distanciamento.
Um hiato precioso por meio do qual, finalmente,
podemos estranhar o nosso presente e refletir com
franqueza sobre o curso que tomou a nossa história.

9
A Noiva Despida por Seus Celibatários, MesmolThe Bride Stripped Bare bV Her Bachelors, Even, 1958

10
o Grande Vidro e os Reac!Ymadest Mesmo
Arturo Schwarz

I. Introdução nos últimos trinta anos. Neo-realismo, happenings e


Fluxus, arte minimalista, body art, land art, arte
Foi somente em 1964 que Mareei Duchamp, com conceitual, arte povera, arte e linguagem, todas essas
77 anos, assistiu à primeira mostra individual até tendências encontram suas premissas teóricas nos
então dedicada a ele. Foi organizada pelo curador readvmades e sua justificativa epistemológica em O
dessa exposição para comemorar o cinqüentenário do Grande Vidro.
primeiro readvmade plenamente desenvolvido. A E mais, muito mais que isso, Duchamp restaurou a
retrospectiva itinerante foi inaugurada em Milão dignidade intelectual do artista; a liberdade de pensar
(Galeria Schwarz, junho de 1964), viajando, então, e agir, independente de qualquer princípio autoritário
para Berna (Kunsthalle, outubro e novembro), - obedecendo, porém, ao Princípio do Prazer -,
Londres (Gimpel Fils, dezembro e janeiro de 1965), numa extensão raramente atingida no passado, é
Eindhoven (Stedelijk van Abbe Museum, março- conseqüência direta da abordagem radicalmente nova
maio), Krefeld (Museum Haus Lange, junho-agosto) e da questão da natureza da obra de arte e das
encerrando-se em Hannover (Kestner Gesellschaft, determinantes de sua qualidade estética.
setembro de 1965). No ano seguinte, as portas da Esta exposição, que se concentra, pela primeira
Tate Gallery de Londres abriram-se, em junho de vez, naquilo que Duchamp considerava os momentos
1966, para a primeira grande retrospectiva de cruciais de sua atividade - os readvmades e O
Duchamp na Inglaterra. Grande Vidro -, procura evidenciar, também, o
Em 1969, Jindrich Chalupcky e eu apresentamos a humor de Duchamp e o sentido poético e conceitual
uma platéia tcheca a obra de Duchamp exposta na de sua aventura artística. Afinal, foi Duchamp quem
Galeria Spal de Praga. O Museu Israeli de Jerusalém confessou sua ambição de "colocar a pintura outra
levou adiante essa atividade divulgadora, abrigando vez a serviço da mente"3 e, quando emprega aqui a
uma mostra individual, em 1972, curada por Yona palavra mente, na verdade está pensando em termos
Fischer e eu. No ano seguinte, Anne d'Harnoncourt e da palavra francesa ésprit, "ésprit em todos os seus
Kynaston Me Shine organizaram a mais abrangente significados: intelecto, espírito, inteligência e
exposição sobre Duchamp até hoje realizada, que se humor" 4
inaugurou no Philadelphia Museum of Art (setembro- Os readvmades e La Mariée Mise à Nu par Ses
novembro de 1973), viajando para o M useum of Célibataires, Même (A Noiva Despida por Seus
Modern Art de Nova York e para o Art Institute de Celibatários, Mesmo), conhecida abreviada mente
Chicago. A França foi a última a prestar tributo a seu como O Grande Vidro, foram o resultado de um
eminente cidadão. Infelizmente, Duchamp já nos processo de pensamento que transpôs várias décadas
havia deixado dez anos antes, quando se inaugurou a e que foi ao mesmo tempo conceitual (as notas de
exposição - extremamente mal organizada por Jean Duchamp permitem acompanhar os passos de sua
Clair - no Museu Nacional de Arte Moderna de reflexão) e visual (O Grande Vidro foi precedido,
Beaubourg, em 1977. acompanhado e seguido de um grande número de
Por ocasião do centenário de nascimento de notas preliminares, estudos, esboços e itens
Mareei Duchamp (28 de julho de 1887), creio que o complementares) .
mais adequado para uma exposição de suas obras Consegui reunir para essa mostra todos os
seja ordená-Ias, finalmente, de acordo com a readvmades remanescentes criados por Duchamp:
perspectiva do próprio artista e não segundo as desde o primeiro, Roue de Bicvclette (Roda de
inclinações dos curadores - conquanto seus critérios Bicicleta), de 1913 (um readVmade "assistido"), ao
possam ser bem fundamentados. Na verdade, todas ultimíssimo Hommage à Caissa (Homenagem a
as retrospectivas realizadas até o presente tinham um Caissa), de 1966. Quanto a O Grande Vidro, foi
traço em comum: eram antológicas em vez de evidentemente impossível obter o empréstimo do
temáticas. Enquanto a primeira iniciativa era original, demasiadamente frágil para sair do
justificada no começo, quando se fazia necessário Philadelphia Museum of Art em viagem, mas
apresentar a um público mais amplo os principais apresentamos 74 itens, por intermédio dos quais
aspectos da atividade criadora de Duchamp, podemos acompanhar não apenas a gênese
atualmente esse não é mais o caso. Uma exposição iconográfica da opus magnum de Duchamp, como
antológica mergulha num oceano de itens ocasionais também os itens desenvolvidos a partir da idéia
e obras cruciais, perdendo-se de vista, assim, o original, visando a expandir seu significado para além
essencial e os elos sutis que interligam um trabalho a dos limites desta obra em particular.
outro. Para facilitar a percepção da continuidade histórica
Com respeito ao que tenha sido sua mais e temática entre cada item, a mostra foi organizada
significativa contribuição conceitual à arte do século em dois setores. A divisão, contudo, é meramente
XX, Duchamp não dá margem a dúvidas: "Não estou geográfica e por certo não conceitual. As duas
absolutamente seguro de que o conceito do principais correntes da atividade criadora de Duchamp
readvmade não seja a mais importante idéia individual não apenas correm paralelamente como também se
depreendida de meu trabalho".l Com respeito ao que fundem - fertilizando e enriquecendo o território de
considerava sua mais notável realização, foi cada uma. Ao discutir esses itens, temos sempre a
igualmente incisivo: "O Grande Vidro é o trabalho oportunidade de perceber o quanto O Grande Vidro e
mais singular e importante que já fiz" 2 os readvmades estão relacionados e o quanto é bela
Para verificar a extensão em que se justificava a sua interação.
convicção de Duchamp, basta lançar um olhar furtivo
sobre os movimentos que ocuparam a cena artística

11
11. A Noiva Despida por Seus estado mental da Noiva: Pudor Mecânico é um
epítome da nat[Jreza da Noiva, que em O Grande
Celibatários, Mesmo Vidro é representada como uma complexa maquinaria
"despida" de todas as conotações românticas.
Mesmo a modéstia assume um aspecto "mecânico" e
1. O Tema não sensual.
O título original em francês de O Grande Vidro -
André Breton chamou O Grande Vidro de "uma La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même -
espécie de grande legenda moderna"5 e contém um trocadilho que oculta todo o tema da obra
aparentemente não se poderia encontrar nenhuma - um caso de amor impossível entre uma virgem
definição mais apropriada. O tema dessa obra é uma pouco convicta e um ansioso celibatário. Basta
variação contemporânea de um dos mais antigos substituir même por seu homófono m 'aime e o título
mitos que originaram um tabu quase universal: o resulta em: A noiva despida por seus celibatários me
hierático incesto entre o Céu (princípio urânico ama.
feminino) e a Terra (princípio ctônico masculino) A utilização do trocadilho no título revela não
personificados aqui pelo Celibatário (Mareei apenas seu tema como também sua natureza
Duchamp) e pela Noiva (a irmã de Mareei: Suzanne). basicamente mítica. Como todos os mitos, este
Desde que o coniunctio físico jamais ocorreu - também envolve o emprego de uma linguagem
deixem-me esclarecer, desde já, que tal caso amoroso alegórica e simbólica, na qual os jogos de palavras e
não poderia materializar-se, visto que aconteceu num as metáforas ocultam o conteúdo real. Perceberemos,
nível puramente inconsciente - , foi substituído por ao discutir a seqüência de O Grande Vidro, que seu
uma atividade voyeurista que assistia à Noiva despida caráter fantástico e seu desenvolvimento incoerente
por seu Celibatário. "não analisável pela lógica" (nota 1)6 são, de fato,
Assim, o primeiro esboço preliminar (datado de típicos de mitos e situações oníricas em que as leis de
julho de 1912) do Vidro sugere, de saída, que o uma ordem aparentemente natural são ignoradas.
relacionamento sexual foi deslocado do nível físico Como Jung, a propósito, observou, "uma história
para o mental, desde que apresenta o subtítulo contada pela mente consciente possui um início, um
"Primeira Pesquisa para: a Noiva despida pelos desenvolvimento e um fim, mas o mesmo não é
Celibatários" e o título Mécanisme de la verdadeiro para o sonho. Suas dimensões no tempo e
Pudeur/Pudeur Mécanique (Mecanismo do 'no espaço são muito diferentes".7
Pudor/Pudor Mecânico). Como que visando a O subtítulo do Vidro, que o descreve como uma
compensar essa perda de tensão erótica, o prazer "máquina agrícola", é igualmente revelador, sendo
derivado do voyeurismo é acentuado pela modéstia da uma óbvia referência ao conceito tradicional da
Noiva. Esse título não é indicativo, tão somente, do agricultura como o casamento simbólico entre a Terra

!Jl
(,
A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo (A
Caixa Verde}/The Bride Stripped Bare by Her
Nu em Pé/ Standing Nude, 1911 Bachelors, Even (The Green Box), 1934

12
e o Céu; o ato de arar é quase sempre associado à pelo pedido de G leizes de "ao menos modificar o
semeadura e ao ato sexual. Chamar.o Vidro de título" quando Duchamp tentou expor seu Nu
máquina agrícola apresenta outras implicações ainda. Descendo uma Escada no Salom des Indépendants de
Os protagonistas desse casamento são vistos como 1912, e que o levou a retirar o quadro, embora este já
máquinas, e a desumanização, tanto da Noiva quanto figurasse no catálogo.
do Celibatário, tornar-se-á ainda mais aparente à Os objetivos fundamentais de Duchamp eram
medida que essas duas personalidades são discutidas. "uma distância do aspecto físico da pintura" e
Insistimos uma vez mais no fato de que a notável "colocar a pintura outra vez a serviço da mente" B
qualidade poética de O Grande Vidro reside "Estava interessado em idéias - não apenas em
precisamente no fato de seu criador ter sido levado produtos visuais. Queria colocar a pintura outra vez a
por forças e caminhos dos quais não tinha serviço da mente. E minha pintura foi, obviamente,
consciência. Falando acerca do ato criativo, declarou considerada, de imediato, como pintura 'intelectual e
certa vez: "Devemos, então, negar a ele [o artista] O literária'. Era verdade que me empenhava para
estado de consciência, no plano estético, sobre o que estabelecer-me o mais longe possível das pinturas
está fazendo ou por que está fazendo". E J ung físicas 'agradáveis' e 'atraentes'. Tal extremo foi visto
confirma que "é possível pintar quadros muito como literário. L .. ) Na verdade, até os últimos cem
complexos sem ter a menor idéia de seu real anos, toda pintura fora literária ou religiosa: estivera
significado".7a inteiramente a serviço da mente. Essa característica
foi perdida pouco a pouco no decorrer do último
2. Um rompimento radical com as século. Quanto mais apelo sensual uma pintura
tradições técnicas e iconográficas proporcionava - quanto mais animal se tornasse
mais era louvada. Foi bom ter aparecido a obra de
Em 1911, Duchamp, então com 24 anos, vivia em Matisse, pela beleza que proporcionou. Contudo,
Neuilly. É um ano muito importante. A partir desse criou uma nova onda de pintura física neste século ou
ponto, podemos observar o progresso de Duchamp, pelo menos incentivou a tradição que herdamos dos
da rejeição aos estilos e temas da vanguarda mestres do século XIX ... Essa é a direção para a qual
tradicional, nos limites do meio de expressão do óleo a arte deveria voltar-se: uma expressão intelectual ao
sobre tela, ao desenvolvimento de um conceito de invés de uma expressão animal. Estou farto da
pintura mais mental do que visual. Enquanto nos anos expressão 'bête comme un peintre' - 'burro como
anteriores a 1911 Duchamp desenvolveu sua arte um pintor"'.9
passando pelos vários estilos vanguardistas do O desejo de Duchamp de fugir dos aspectos
impressionismo, cézanismo e fauvismo, foi nesse ano físicos da pintura também explica sua rejeição ao
que o artista voltou as costas à vanguarda mais visivo. "Considerava a pintura como um meio de
recente, o cubismo, e deu início ao processo de expressão e não, em absoluto, como um objetivo
afirmação da própria personalidade por intermédio do completo de vida, do mesmo modo que considerava a
desenvolvimento de um estilo individual. Essa cor apenas como um meio de expressão da pintura.
libertação ficou evidenciada, inicialmente, em pinturas Não deve ser o objetivo último da pintura. Em outras
como Jeune Homme et Jeune Filie dans le Printemps palavras, a pintura não deveria ser apenas visiva, ou
(Rapaz e Moça na Primavera), Sonate (Sonata), retinia na; deveria estar relacionada à antiga questão
Dulcinée (Oulcinéia), À Propos de la Jeune Soeur (A de nosso entendimento ao invés de ser puramente
Propósito da Irmãzinha), Yvonne et Magdeleine visual ... "10 Em outra parte, Duchamp afirmou: "[O
Déchiquetées {/vone e Madalena Esfarrapadas} e impressionismo] de certo modo foi o início de um
Portrait des Joeurs d'Échecs (Retrato dos Jogadores culto devotado ao material sobre a tela - o pigmento
de Xadrez). mesmo. Ao invés de interpretar através do pigmento,
A elaboração de um estilo, contudo, não satisfazia os impressionistas gradativamente apaixonaram-se
inteiramente seu espírito não-conformista, e sua ânsia pelo pigmento, pela própria tinta. Suas intenções
por soluções novas levou-o a contradizer os cânones eram completamente visivas e dissociadas da
correntes também quanto aos temas. Em novembro utilização clássica da tinta enquanto um meio que
de 1911 incluiu em suas pinturas dois temas heréticos: visasse a um fim. Os últimos cem anos foram visivos;
a máquina e a nudez. Foi o mês de Moulin à Café até mesmo com os cubistas. Os surrealistas tentaram
(Moedor de Café), a primeira máquina de Duchamp e libertar-se, e o mesmo fizeram antes os dadaístas,
o antecessor formal do Broveuse de Chocolat mas infelizmente estes últimos eram niilistas e não
(Moedor de Chocolate). O nu teve sua primeira produziram o suficiente para comprovar seus pontos
elaboração no novo estilo em Sonata, no desenho de vista, que, a propósito, não precisavam provar
Encore à cet Astre (Ainda a esse Astro) - um estudo segundo sua teoria. Eu estava tão consciente do
para o Nu Descendo uma Escada, no qual a figura aspecto visivo na pintura que desejava encontrar
nua sobe ao invés de descer -, e posteriormente nas pessoalmente um outro veio de exploração. "11 Dois
duas versões do Nu Descendant un Escalier (Nu desses outros veios de exploração são os readvmades
Descendo uma EscadaJ. Concentrando-se no tema do e o próprio O Grande Vidro. Ambos os fenômenos
nu, Duchamp completou, na seqüência, alguns de resultam largamente da rejeição da noção de visivo ou
seus quadros mais importantes: Le Roi et la Reine retiniano. Duchamp nunca deixou de enfatizar a
Entourés de Nus Vites (O Rei e a Rainha Cercados de necessidade do comprometimento da mente tanto
Nus Velozes), Le Passage de la Vierge à la Mariée quanto do olho.
(Passagem da Virgem à Noiva), e, finalmente, Mariée A Noiva, pintada em Munique (agosto de 1912), é
(A Noiva). Essa última bem 'pode ser considerada uma a última pintura convencional de Duchamp. Marca, na
das obras primas de Duchamp - é o produto final de realidade, sua despedida do conceito de arte tal como
uma série de revoluções estilísticas que andavam pari compreendido na época. É considerada uma das
passu com uma rejeição dos temas tradicionais. A obras mais perfeitas de Duchamp. O artista, inclusive,
extensão em que o nu era considerado herético nas deve ter sentido que seria difícil a ele mesmo superá-
rodas vanguardistas é suficientemente evidenciado la. Deve ter estado bastante alerta aos perigos de se

13
repetir, de ceder ao poder inebriante do formalismo
puro e de aceitar a monotonia de um gênero, de um
gosto. A Noiva foi um triunfo de técnica e
sensualidade, o ponto mais alto que poderia alcançar
através da utilização dos meios tradicionais da pintura
enquanto veículo. Contudo, viera para rechaçar o
"retiniano" e não tinha a menor intenção de cometer
um suicídio criativo por meio da repetição. Tendo
esgotado as possibilidades de renovar-se nos limites
da pintura tradicional sobre tela, deu início à
conquista de um conceito inteiramente novo de arte.
Duchamp afirmou: "A partir de Munique, tive a
idéia de O Grande Vidro. Cortara relações com o
cubismo e com o movimento ao menos com o
movimento misturado com tinta a óleo. Não me
importava em dar continuidade a toda a tendência da
pintura. Após dez anos de pintura, estava entediado
dela ... "12 Assim, foi na volta de Duchamp a Neuilly,
em setembro de 1912, que a idéia de O Grande Vidro
enquanto tal começou a cristalizar-se. O primeiro
indício de utilização do vidro encontra-se no início de
uma série de notas dedicadas por ele a essa obra.
Aqui, embora O Grande Vidro ainda seja imaginado
como "uma grande tela na vertical", Duchamp
passou a considerar a utilização de elementos de vidro
para o "mais frio", que consistiria em três chapas
paralelas de vidro, perpendiculares à tela, separando o
Domínio da Noiva (metade superior) da Máquina
Celibatária (metade inferior), exatamente como no
Vidro final. A passagem das especulações teóricas
para a execução concreta pode ter-se originado de
uma banal experiência cotidiana. "A idéia veio por ter
usado um pedaço de vidro como paleta e de olhar Nu Descendo uma Escada/Nude Descending a
através deste para as cores do outro lado. Isso me fez Staircase, 1937
pensar em proteger as cores da oxidação, de modo a
evitar aquele desbotamento e amarelamento que
ocorre na tela."13 distintas, porém sendo um a réplica do outro ... " Mas
A antipatia de Duchamp pela tela enquanto fundo essa crua tradução plástica do velho conceito
também pode ter influenciado sua escolha, que é platônico de nosso mundo não ser nada senão o
sintomática sob outro ponto de vista ainda. O vidro é, microcosmo de um macrocosmo existente alhures não
ao mesmo tempo, um dos materiais mais duros era, evidentemente, bastante para o artista. Viu-se
existentes (somente o diamante e o ácido fluorídrico num território mais fértil quando lhe ocorreu que a
podem atacá-lo) e um dos mais frágeis. Reconciliava, superfície bidimensional de um espelho poderia servir
assim, duas tendências conflitantes de sua psique: de tradução prática da noção de uma infinitude
uma, que o levava a realizar uma obra que desafiaria tridimensional, o que o levou à idéia de que o
o tempo, e outra, que o levava a expor a mesma obra continuum quadridimensional é essencialmente o
à destruição, com o intuito de evitar que o observador espelho de um continuum tridimensional. Estava a um
descobrisse seu significado. passo da decisão de empregar o vidro transparente e
O desejo de diferenciar-se de outros pintores levou o espelho para a perspectiva quadridimensional. Essa
Duchamp a pensar na criação de uma obra mesma noção, de representar uma dimensão superior
quadridimensional, projeto que o levou a considerar a através e em termos de uma dimensão inferior,
utilização de cores e técnicas não convencionais para encontra-se na base das experiências ópticas às quais
criar caracteres não convencionais. Podemos traçar o se dedicaria posteriormente, criando efeitos
desenvolvimento do pensamento de Duchamp graças tridimensionais com objetos bidimensionais.
às notas que escreveu, algumas das quais foram Tendo-se decidido quanto aos materiais que
reunidas em La Bolte de 7914 (A Caixa de 1914) e, serviriam a seus propósitos, estava ainda inseguro
posteriormente, em La BOlte Verte (A Caixa Verde), quanto à maneira de utilizá-los. Um aspecto, porém,
de 1934; foram completadas por uma terceira série, estava perfeitamente claro: que O Grande Vidro,
publicada em 1966, intitulada Á l'lnfinitif (Ao ainda por ser executado, teria de marcar um
Infinitivo). Um exame desta última série revela um rompimento final e decisivo com toda a convenção do
grande número de notas dedicadas à quarta passado. Era seu objetivo conseguir "não pensar mais
dimensão, que não se encontram nas publicações que a coisa em questão seja um quadro". Pensou em
anteriores. Á l'lnfinitif permite-nos, portanto, defini-lo como um '''retardamento em vidro', como se
conhecer seus interesses intelectuais na segunda alguém dissesse 'um poema em prosa' ou 'uma
década do século. Duchamp explica, ali, que seu escarradeira de prata'''.
interesse na quarta dimensão era resultante de seu De 1913 em diante, Duchamp estendeu a noção
desejo de fugir da banalidade da rotina. dos materiais não convencionais a serem utilizados
Para o estabelecimento de uma perspectiva como objetos corantes. Desde o princípio, a idéia do
quadridimensional, pensou inicialmente em utilizar vidro é acompanhada por uma referência a materiais
"dois objetos 'similares', isto é, de dimensões como "líquidos, peças coloridas de madeira, aço,

14
reações químicas". Pensava em testar as Finalmente, o desnudamento da Noiva foi concebido
possibilidades do vidro esmerilhado, do vidro como sendo realizado por intermédio de uma espécie
transparente e do vidro colorido. Com respeito a imaginária de eletricidade - sua largura.
líquidos, considerou a possibilidade de uma essência Na Máquina Celibatária, técnicas e materiais não
transparente e incolor, e planejou toda espécie de convencionais aparecem ainda com maior freqüência.
experiências com muitos outros materiais, desde os A forma dos Tubos Capilares, que conduzem o gás
mais elementares até outros mais complexos, e com dos Moldes Machos às Peneiras, foi novamente
misturas inusitadas. Em 1915, pensou até mesmo em determinada, como nos Pistons de Corrente de Ar,
cultivar cores imateriais numa estufa, cada cor pelo acaso; foram desenhados segundo vários
encontrando-se "em seu estado óptico: perfumes(?) segmentos das Cerziduras-Padrão, cada qual feita de
de vermelhos, azuis, verdes ou cinza". Essa idéia acordo com a configuração assumida por um metro
levou-o a "cultivar" poeira e a utilizá-Ia como material de linha esticado horizontalmente e solto a um metro
corante, como fez em O Grande Vidro na parte das de altura. A qualidade não convencional das técnicas
Peneiras. e materiais é plenamente compartilhada pelas
De suas primeiras especulações teóricas à personagens da obra. Dentre os atores de O Grande
subseqüente realização prática de O Grande Vidro, Vidro, Duchamp menciona um Inspetor do Espaço,
Duchamp lutou para incorporar tantos meios novos um Mastigador de Revólver e um Operador de
de expressão quantos lhe fossem possíveis. No Gravidade.
Domínio da Noiva, a Inscrição do Alto (também O fato de as personagens, assim como as cores e
denominada Via Láctea) deveria ter o aspecto de um as técnicas do Vidro, não serem cdnvencionais
creme de barbear. Para obter "sobre uma superfície implica em que devam ser governadas por princípios
plana uma representação convencional dos 3 Pistons similarmente classificados. E, de fato, uma das
de Corrente de Ar", Duchamp pendurou um pedaço primeiras notas de Duchamp afirma que o Vidro está
quadrado de gaze diante de uma janela aberta e sujeito às regras do Regime de Gravidade -
fotografou-a assumindo diferentes configurações e Ministério de Coincidências ou, inversamente, Regime
formando imagens casuais sob a ação da corrente de de Coincidência - Ministério da Gravidade.
ar. No "Jogo do Barril", outrora popular, viu "uma Especifica, então, que os princípios ativos centrais do
'escultura' de destreza muito boa", o que o levou a Vidro são três: vento, destreza e peso (gravidade).
introduzir o elemento destreza na determinação da "Vento - para os Pistons de Corrente de Ar!
posição dos nove orifícios abertos logo abaixo da Destreza - para os orifícios! Peso - para as
Inscrição do Alto, na área dos Nove Tiros; esses Cerziduras-Padrão." Os movimentos do Operador de
orifícios correspondem aos pontos em que o Vidro foi Gravidade e da Noiva foram concebidos como sendo
atingido por fósforos mergulhados em tinta fresca e governados pelo "Princípio de Simetrias Subsidiadas".
lançados através de um canhãozinho de brinquedo. O Celibatário obedece ao" Adágio da Espontaneidade" e
mói sozinho seu chocolate. Na base da Noiva "há um
reservatório de gasolina do amor", cujo propósito é
abastecer "o motor com cilindros bastante frágeis",
cujos golpes controlam "o mecanismo", tradução
gráfica do impulso dos Celibatários para o
desnudamento, assim como do "desnudamento
elétrico" da Noiva. Essas novas leis, princípios e
fenômenos derivam da concepção do Vidro como a
representação de "uma realidade que seria possível
distendendo levemente as leis da física e da química"
- uma distensão que requer a invenção de uma
"física lúdica". Até mesmo o espaço e o tempo estão
sujeitos a leis distintas. O espaço, conforme já
mencionado, é quadridimensional, e a unidade de
medida é a Cerzidura-Padrão, que pode ser esticada.
Quanto ao tempo, o "Relógio de Perfil" mede uma
duração dotada de duas ou três dimensões. Duchamp
sustenta integralmente seu desejo de conseguir "não
pensar mais que a coisa em questão seja um quadro".
Podem-se reconhecer quatro estágios distintos na
gênese e desenvolvimento de O Grande Vidro, que foi
concretizado em Neuilly, antecipado em Munique e
Paris, e elaborado em Nova York. O primeiro estágio
começa em Neuilly, já em 1911, com Rapaz e Moça
na Primavera e termina em Munique, no verão de
1912, com a Noiva; tanto o enredo de O Grande Vidro
quanto a estrutura formal de suas drama tis personae
tomam forma. O segundo estágio começa em
Munique, no verão de 1912, onde Duchamp redige a
primeira de uma série de notas referentes a O Grande
Vidro, e termina em Nova York, em 1920, com
Témoins Oculistes (Testemunhas Oculistas). Durante
esses oito anos, cada elemento do Vidro foi objeto de
um ou mais estudos preliminares, abrangendo desde
esboços sumários a trabalhos inteiramente elaborados
Noiva/Bride, 1934 e independentes. O terceiro estágio consistiu na

15
Capa para "A /'Infinitif"/Cover for "A /'Infinitif", 1967

Pistão de Corrente de Ar/Draft Piston, 1965

16
realização dos projetos, estudos e notas dos anos é um símbolo do movimento rumo à totalidade
anteriores - seguindo-se da elaboração de O Grande cósmica, assim como o protótipo do hermafrodita, a
Vidro propriamente dito, iniciado no outono de 1915 síntese de ambos os sexos; e rJode, enquanto axis
em Nova York e abandonado, inacabado, em 1923. mundi, atuar como mediadora entre a Terra (Mulher)
Finalmente, o quarto estágio de O Grande Vidro e o Céu (Homem) .15 A árvore da pintura cresce a
assistiu à sua projeção em trabalhos que, de 1913 em partir de um círculo, ou melhor, de uma esfera
diante, desenvolvem, comentam e ampliam idéias e transparente de vidro, que aprisiona uma personagem
elementos desta obra. Esse período é o mais longo, assexuada, que lembra muito de perto o Mercurius,
haja vista que se estendeu até a morte do artista. freqüentemente representado no vaso alquímico.
Pode-se dizer, portanto, que O Grande Vidro é não Nessa esfera podemos, de fato, ser tentados a
apenas o trabalho mais importante de Duchamp - reconhecer um alambique, o vaso alquímico.
fato largamente aceito - como também o ponto Finalmente, logo abaixo da esfera de vidro
focal de toda sua obra, o ponto para o qual transparente do centro, há outra personalidade que
convergem todas as suas mais significativas repousa ao mesmo tempo no mundo do Celibatário
realizações anteriores, e do qual descendem suas mais (50/) e no mundo da Noiva (Lua!. Essa personagem
importantes realizações posteriores. participa de ambos os mundos, sendo a mediadora
entre eles e reconciliando em si mesma as
3. O desenvolvimento iconográfico contradições dos dois.
Essa personagem central é o epítome do
o quadro que antecipa diretamente o tema básico significado da pintura, que é a realização, a nível
do Vidro é Rapaz e Moça na Primavera, pintado em artístico, de três aspirações primordiais e
1911. Aquele ano assistiu a um florescimento da contraditórias somente na aparência, encontrando a
personalidade de Duchamp, quando seu processo de gratificação na estrutura do incesto alquímico: a ânsia
individuação viu-se fortemente acelerado. Duchamp de reconstituir a unidade original, o impulso rumo à
deve ter sentido a importância das motivações mais individuação e a aspiração da imortalidade. No tipo
profundas dessa pintura na solidificação de seu particular de relacionamento dos jovens, o
processo de individuação, visto que, alguns meses relacionamento real do par Irmão-Irmã substitui
depois, procurou realizar uma versão ampliada do gradativamente o relacionamento mítico do par
mesmo tema. Mas o primeiro impacto emocional, Herói-Virgem. O incesto é aqui vislumbrado como um
responsável por Rapaz e Moça na Primavera, meio de resolver as contradições da dualidade
provavelmente se dissipara ou não poderia ser masculino-feminino na unidade andrógina
captado novamente, e Duchamp, insatisfeito com reconstituída do ser primordial, dotado da eterna
essa segunda versão, abandonou-a inacabada. Três juventude e da imortalidade. É igualmente importante,
anos depois, voltou à tela e pintou sobre ela a porém, lembrar que a bissexualidade é a qualidade
Réseaux des Stoppages (Rede de Cerziduras), 1914. arquetípica do criador, enquanto o incesto alquímico é
Rapaz e Moça na Primavera não apenas antecipa o modelo mítico do estado no qual, depois de
o tema de O Grande Vidro como está imediatamente resolvidas todas as contradições, a individuação é
atrás deste em complexidade. O tema é sugerido alcançada e a criação torna-se possível.
tanto no duplo sentido do título - dois jovens "na Poderíamos chamar a atenção, nesse ponto, para
primavera" de suas vidas - e na atitude que esse par as extraordinárias semelhanças entre Rapaz e Moça
heróico-virginal assume na pintura: evidencia-se que na Primavera e seu modelo mítico - a tradicional
os dois estão sexualmente atraídos um pelo outro. representação do andrógino filosófico (o Rébus ou
Podemos notar que o Rapaz (o futuro Celibatário de Compositam de Compositis) , tal como pode ser visto,
O Grande Vidro) e a Moça (a futura Noiva) são pouco por exemplo, na ilustração em que o par incestuoso
diferenciados sexualmente e ambos têm os braços Irmão-Irmã encontra-se novamente no Sol e na Lua e
erguidos para o céu, formando a figura do Y, posição onde uma árvore cresce novamente entre eles,
indicativa de sua aspiração comum - a imortalidade dividindo-os e unificando-os.
- e de sua configuração física basicamente Não apenas a relação sexual jamais ocorre (como
andrógina. Essa é a posição do xamã que se proclama em O Grande Vidro), como sua mera intenção
imortal durante os rituais 14, como também a do acarreta a mais drástiéa das punições - a morte. É
Homem Cósmico na tradição esotérica. O signo Y esse o modelo de um dos tabus mais antigos e
personifica o conceito da imortalidade através da difundidos do mundo - o tabu do incesto.
ressurreição, assim como o conceito da "dupla" No Vidro, a Noiva também é chamada de Virgem,
personalidade andrógina. Os dois jovens encontram-se ou Pendu Femelle, e, de fato, ela parece pender do
em dois mundos separados, conforme indicam os dois céu. Isso pareceria indicar que os incestuosos
semicírculos dos quais emergem, com dificuldade, na sentimentos do Celibatário dirigem-se a uma irmã em
direção um do outro. O semicírculo onde está o vez de à mãe, sendo que esta hipótese pode
Rapaz irradia uma luz amarelada: bem pode ser um encontrar maior fundamento se lembrarmos que
símbolo do sol. O semicírculo da Moça é mais escuro muitas sociedades primitivas punem o incesto entre
e apresenta uma área branco-prateada - a Lua. irmãos com a morte por enforcamento.
Na tradição alquímica, de maneira similar, o par Para descobrir qual das três irmãs de Duchamp
incestuoso Irmão-Irmã é simbolizado pelo par Sol-Lua. teria sido objeto de seu inconsciente amor incestuoso,
Sua união (coniunctio oppositorum) reconstitui a devemos voltar à pintura Rapaz e Moça na Primavera.
unidade original do ser primordial, o imortal Parece bastante óbvio que essa pessoa seja o
Andrógino Hermético (Rébus). Podemos observar na receptáculo da obra. Basta apenas ler a dedicatória no
pintura que o encontro dos dois jovens parece verso da tela para conhecermos o receptáculo. A
simultaneamente sugerido e aprofundado por uma dedicatória de Duchamp diz: À toi ma chere
árvore cujos ramos crescem entre eles. A árvore Suzanne; a pintura foi o presente de casamento para
enquanto símbolo carrega uma grande variedade de sua irmã Suzanne. Ao escrever a dedicatória, deixou
significados: aqui apenas iremos ressaltar que a árvore um espaço extraordinariamente longo entre as

17
Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Plantai, 1913

18
palavras chere e Suzanne. Lembrando a paixão de
Duchamp por trocadilhos, é inevitável o ímpeto de
substituir a palavra chere ("querida") por seu
homófono chair ("carne"). Trata-se de uma
reafirmação da indivisível unidade física entre Mareei e
Suzanne, sendo esta, literalmente, a própria carne de
MareeI.
Esse quadro expressa os sentimentos de Duchamp
com respeito ao primeiro casamento de Suzanne. Ela
fora sua companheira e modelo favorita. Alguns anos
depois, quando Suzanne desposou seu segundo
marido, o pintor Jean Crotti, um amigo de Duchamp
vagamente parecido com ele, este encontrou uma
nova ocasião para expressar sua susceptibilidade a
essa segunda "traição" de Suzanne. Duchamp
escreveu de Buenos Aires dando-lhe instruções para
preparar o que poderia ser considerado seu presente
de casamento, o Readvmade Malhereux rReadvmade
Infeliz), de 1919. Confiou-lhe, assim, o mesmo poder
reservado, até então, exclusivamente a ele, o de criar
readvmades. O processo de identificação, porém, não
termina no título, que expressa a infelicidade de
MareeI. O destino desse readvmade é o mesmo que o
da Noiva - o de ser destruído por enforcamento.
A mais forte evidência sustentando a hipótese da
identificação Noiva-Irmã vem novamente de
Duchamp. Na inscrição de um livro dado a Ulf Linde
em 1962, a Noiva Despida é identificada como cette
temme affamée d'infamie en famile, um jogo de
palavras muito próximo ao igualmente revelador Une
nvmphe amie d'enfance. Não obstante o espaço de
quase quarenta anos separando esse trocadilho e a
dedicatória do livro, a irmã-ninfa-noiva ainda está
envolvida numa infamie d'enfance.
Depois de Rapaz e Moça na Primavera,
praticamente todas as obras de Duchamp até o final
do verão de 1912 estão ligadas a quatro temas
essenciais: retratos de família; nus; o Rei e a Rainha
(atravessados ou cercados por Nus Velozes); e a
Noiva. Os temas dessas pinturas são a expressão
formal de quatro tendências e aspirações
inconscientes: recordações e culpas de infância;
ressentimento e vingança; auto-realização (o retrato
do artista como um jovem); e a elevação de uma crise
pessoal à categoria de conflito mítico - o Jovem e a
Moça crescem, tornando-se o Celibatário e a Noiva. A
continuidade extraordinariamente lógica e formal dos
trabalhos desse período torna-se clara ao serem vistos
sob a seguinte luz: o Jovem da pintura de 1911 é, na
verdade, o Nu Descendo uma Escada; o Nu é
transfigurado no Rei atravessado pelos Nus Velozes; e
o Rei, por sua vez, torna-se o mítico Celibatário de O
Grande Vidro. Reconheceremos, de maneira similar, a
Moça da pintura de 1911 na Rainha cercada de Nus
Velozes, que, por sua vez, é transformada primeiro na
Virgem e depois na Noiva, que vemos na pintura
homônima assim como em O Grande Vidro.
Moedor de Café (1911), um óleo pequeno, é a
primeira pintura mecanoforme de Duchamp e antecipa
as duas versões do Moedor de Chocolate Glissiere
Contenant un Moulin à Eau en Métaux Voisins
(Moedor Contendo um Moinho de Água em Metais
Próximos), dois temas posteriormente incorporados a
O Grande Vidro.
Em Rapaz e Moça na Primavera, notamos a
relação entre os temas de Duchamp e a tradição
alquímica. Reconhecemos na esfera de vidro ao
centro da pintura um típico aparato alquímico de
destilação - o alambique; agora, no Moedor de Café, Detalhe: Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus
encontramos outro instrumento alquímico típico, o (Elevação),1913

19
moinho triturador. Podemos ver nisso a continuidade um escape, fosse num sonho noturno ou numa
do pensamento de Duchamp e a organização unitária fantasia que encontrasse expressão numa obra de
de seus símbolos. Ambos são instrumentos de refino arte. Duchamp confirmou estar absolutamente
- o alambique atuando quimicamente e o moinho cônscio do sentido chocante dessa pintura, assim
mecanicamente. Transmutam materiais brutos para como do sentimento de frustração que expressava.
sua forma sublimada, exatamente como Duchamp O nu da pintura é claramente andrógino, conforme
sublima seus impulsos sexuais em impulsos artísticos. sugere o desenvolvimento do peito e a característica
A moenda, que também é um símbolo da cópula, cor de madeira; sabemos que a madeira é um
carrega tradicionalmente o mesmo significado. substituto simbólico da mulher. Lembremos que
Se lembrarmos que o Moedor de Café antecipa o Duchamp gostava de assumir uma aparência
Moedor de Chocolate e que o comentário de andrógina; escolheu para si um pseudônimo feminino
Duchamp acerca do segundo é "o Celibatário mói (Rose), e um retrato feminino como seu "retrato de
sozinho o seu chocolate", encontramos uma compensação"19. Assumindo uma personalidade
confirmação direta do significado simbólico desse andrógina no Nu Descendo uma Escada, reforçou as
moinho. O significado do Moedor de Café está mais virtudes compensatórias desse quadro. O impulso
do que determinado aqui, na medida em que é unitário de sua psique foi gratificado e o incesto
também um subtítulo simbólico para o Celibatário e deixou de ser um passo necessário à conquista da
para a Noiva e uma antecipação da mecanização dos individuação. Outro aspecto de grande importância
dois protagonistas de O Grande Vidro. Essa deve ser ressaltado na pintu ra: esta pode ser
sobredefinição de seu simbolismo'é uma manifestação considerada a precursora dos Neuf Moules Malic
do movimento unitário da psique de Duchamp, que (Nove Moldes Machos), 1914-15, incorporados a O
busca conciliar as personalidades conflitantes de Grande Vidro. Inclusive, a multiplicação de Duchamp
Mareei e Suzanne num símbolo que deriva sua lógica na série de nus descendo escadas é similar à
dos traços comuns de seus personagens. Não é de multiplicação dos Celibatários de Nove Moldes
estranhar que Duchamp declarasse considerar o Machos, onde, conforme observado anteriormente, é
Moedor de Café "a pintura-chave de toda a sua novamente Duchamp quem está sendo representado.
obra" . Após terminar o Nu ... n, o 2, dois meses se
A pintura Jeune Homme Triste dans un Train passaram antes que voltasse ao trabalho. Com o
(Jovem Triste num Trem), 1911, é ainda outro ponto passar dos meses, o choque do casamento de
de partida, podendo ser considerada um estudo Suzanne foi atenuado. Em 1912, Duchamp pintou
preliminar incompleto que resultaria nas duas versões somente quatro telas, consideradas dentre as mais
do Nu Descendo uma Escada. A rubrica no verso da notáveis de sua obra: Nu Descendo Uma Escada n. o
pintura - Mareei Duchamp nu ... - não deixa 2, que acabamos de discutir, O Rei e a Rainha
dúvidas quanto à identidade do jovem triste, no qual Cercados de Nus Velozes e duas obras pintadas em
reconhecemos Duchamp nu. 16 Munique, Passagem da Virgem à Noiva e a célebre
O Nu Descendo uma Escada n. o 7 (1911) é o Noiva. Podemos, nesse ponto, acompanhar o
estágio intermediário entre o Jovem Triste ... e a processo pelo qual o Rapaz e a Moça crescerão até se
versão final e em formato maior do mesmo tema, Nu tornarem o Celibatário e a Noiva. O tema de O Rei e a
Descendo uma Escada n. o 2, pintado em janeiro de Rainha ... foi preparado por três esboços preliminares,
1912. Em Nu ... n. o 7, os lados direito e esquerdo são o primeiro dos quais intitula-se Deux Nus: un Fort et
novamen'te limitados com azul-prússia escuro; o Nu un Vite (Dois Nus: Um Forte e outro Veloz), Não
aparece confinado no espaço, como que reprimido, temos a menor dificuldade em reconhecer o Nu Forte
Opostamente, na versão final do Nu, .. , a figura à direita como o Nu Descendo uma Escada. O tema
emerge triunfante das formas que antes a restringiam formal é semelhante e a natureza andrógina do Nu
para afirmar sua presença expandida numa exibição (novamente o desenvolvimento da região peitoral)
pirotécnica de tons de pele, Enquanto nas duas chega a ser levemente acentuada, como que para
versões precedentes a atmosfera dominante é aplacar a ansiedade do Nu Veloz, à esquerda, no qual
pessimista, na medida em que um nu introvertido se o primeiro esboço do tema formal da Noiva é
retira para dentro de si mesmo, em Nu,., n. o 2 é um claramente identificável. Nesse desenho, o par
aspecto otimista e extrovertidamente exibicionista que Irmão-Irmã de Rapaz e Moça na Primavera torna-se o
prevalece. Alguém nu descendo uma escada é par Herói-Virgem, passando por outra transformação
claramente um exibicionista, e o exibicionismo ainda para tornar-se o par Rei-Rainha nos dois
"representa à perfeição um conflito da vontade, uma desenhos seguintes, intitulados Le Roi et la Reine
negação"17 (o grifo é de Freud). Sabemos Traversés par des Nus en Vitesse (O Rei e a Rainha
perfeitamente que Duchamp estava, de fato, Atravessados por Nus em Velocidade) e Le Roi et la
atravessando uma crise, na medida em que o impulso Reine Traversés par des Nus Vites (O Rei e a Rainha
incestuoso colidia com a condenação moral do Atravessados por Nus Velozes). O Rei e a Rainha, por
mesmo. Contudo, tal como todo símbolo onírico, este sua vez, passam por uma transformação final,
também é dmbivalente, sendo que a própria tornando-se o Celibatário e a Noiva no último esboço
ambivalência aponta o caminho para a superação do desta série: La Mariée Mise à Nu par les Célibataires
conflito. O estado de nudez também faz lembrar: (A Noiva Despida pelos Celibatários), que antecipa o
"Essa idade da infância, na qual o senso de pudor é título e o tema de O Grande Vidro.
desconhecido, [que] parece um paraíso quando vista A continuidade estilística do tema formal nesses
em retrospecto no futuro - e o paraíso em si nada quatro desenhos fundamenta suficientemente nossa
mais é do que a grande fantasia da infância individual. afirmação de reconhecer nas diferentes figuras dos
É por isso que no paraíso os homens estão nus e esboços as mesmas personagens - Mareei e
livres do pudor ... "18 Parafraseando Freud, Duchamp Suzanne. Notemos que o Rei e a Rainha do jogo de
poderia voltar àquele paraíso, onde o sentimento de xadrez são particularmente adequados para
culpa e o pudor são desconhecidos, sempre que a representá-los simbolicamente. A propósito, no xadrez
pressão do conflito aumentasse a ponto de requerer o rei é imortal: pode sofrer um xeque-mate mas

20
nunca ser morto, enquanto a raiz etimológica da extraordinária continuidade estilística na elaboração
rainha do xadrez pode reportar-se à palavra "virgem". do tema formal da Noiva que acabamos de examinar.
O fato de tanto o Rei como a Rainha nos esboços e Por sua vez, uma análise morfológica da Noiva de O
na pintura serem atravessados ou cercados por Nus Grande Vidro revelará que seus traços derivam de
em alta velocidade é indicativo de suas fantasias uma redução a uma síntese essencial da estrutura da
eróticas em comum. O simbolismo sexual da Noiva na pintura homônima. Um detalhe dessa
velocidade e de nus "voadores" é demasiadamente estrutura é da maior importância: logo ao centro,
conhecido para que o reforçemos, e Duchamp já podemos reconhecer um alambique - o clássico
enfatizara claramente o aspecto erótico dessas obras símbolo andrógino da alquimia. A natureza andrógina
em 1915. No terceiro desenho - Rei e Rainha da Noiva é confirmada mais além por outro fato:
Atravessados por Nus Velozes - aparece, pela Duchamp escreve que a coluna vertebral da Noiva é
primeira vez, o desenho de uma figura personificando "arbre-type", árvore-tipo, e podemos lembrar
um dos dois aspectos da psique de Duchamp. Essa novamente que a árvore é um símbolo típico da
personagem é vista saindo de uma fenda no Rei, bissexualidade. A Noiva, nessa pintura, personifica,
como que representando, a nível psicológico, a cisão assim, a realização dos desejos dos protagonistas de
provocada na psique de Duchamp à medida que a Rapaz e Moça na Primavera, a obra inicial que os
tendência narcisista e conservadora entra em conflito revelou. Outro detalhe dessa pintura serve também
com a impetuosidade da tendência erótica, que como confirmação para essa hipótese: podemos
finalmente vislumbra a realização de seu impulso no perceber que um fiozinho de líquido aparece entrando
sentido da unificação dos opostos. O fato de a pela abertura do alambique. Na tradição alquímica,
tendência narcisista prevalecer é mostrado aqui pelo essa operação representa o casamento alquímico - a
quarto esboço, no qual a união do Rei e da Rainha união do casal Irmão-Irmã. O casamento alquímico é
não mais é representada. A Rainha, inclusive, é vista representado, de maneira similar, em muitas gravuras
parada entre as duas expressões da personalidade alquímicas antigas, e mesmo na célebre pintura de
cindida do Rei. Bosch, Millennium (O Milênio), onde podemos
Poderíamos acrescentar também que o Rei e a perceber num detalhe um "corvo encapuzado
Rainha dessa pintura parecem realizar, num universo derramando, de uma garrafinha em seu bico, um
mundano, a felicidade de Adão e Eva no Paraíso fluido bruxuleante que cai dentro do ovário". Franger
(título defihitivo do quadro), na medida em que o comenta que esse é "um processo que, na linguagem
tema do Rei atinge aqui sua maturação plena, metafórica de Bosch, indica a celebração de um
enquanto a beleza austera da Rainha anuncia a casamento alquímico" 21.
perfeição formal dos dois quadros seguintes.
Passagem da Virgem à Noiva (1912) foi precedida 4. Estágios iniciais de O Grande Vidro
de dois estudos preliminares intitulados Vierge n. o 1
(Virgem n. o 1) e Vierge n. o 2 (Virgem n. o 2). No Acompanhemos agora os oito primeiros anos da
primeiro, o tema formal da Rainha é isolado, elaboração de O Grande Vidro.
enquanto no segundo esse tema passa por uma A parte inferior de O Grande Vidro, conhecida
elaboração maior; encontramo-lo plenamente como Máquina Celibatária, foi a primeira parte a ser
desenvolvido na personagem da esquerda, na versão planejada. Um óleo sobre cartão, executado no início
final do quadro. Os sentimentos ambíguos de de 1913, mas perdido desde então, foi seu primeiro
Duchamp com respeito à Virgem, prestes a tornar-se esboço.
uma Noiva intocável disputada por numerosos Essa parte da obra seria reelaborada depois, com
Celibatários, estão bem expressos pelo título desses todos os elementos colocados de forma precisa,
dois esboços, visto que em francês, como no alemão segundo a perspectiva clássica. Também em 1913,
a palavra prostituta recebe o eufemismo de "moça" num desenho a lápis com o mesmo título que o
ou "virgem" 20 Duchamp considerava Passagem da Vidro, A Noiva Despida por Seus Celibatários,
Virgem à Noiva como um estudo para a Noiva, que Mesmo, Duchamp esboçou o primeiro lay-out
em seu entender "era mais acabada e limpa". completo de O Grande Vidro, dessa vez incluindo
Adorava seu título ambíguo, pois "deve haver, é também a metade superior, o Domínio da Noiva.
claro, um double-entendre aí". Inclusive, a No desenvolvimento iconográfico do Domínio da
"passagem" refere-se não apenas ao fato de a obra Noiva, o primeiro elemento que encontramos é a
ser intermediária entre os dois desenhos da Virgem Noiva. À direita da Noiva está a Inscrição do Alto;
que a precederam e a pintura Noiva que vem em uma nota explica que esse elemento é uma "espécie
seguida, mas também ao tema da pintura, que é uma de Via Láctea cor da pele envolvendo, de maneira
descrição da passagem de uma jovem do estado irregularmente densa, os 3 Pistons". Estes são três
virginal ao matrimonial. Assim, no lado esquerdo aberturas retangulares, denominadas Pistons de
dessa pintura, reconhecemos claramente o motivo Corrente de Ar ou Redes, e permitem a obtenção da
estilístico da Virgem, que, ao passar para o lado Inscrição do Alto. Conforme já discutido
direito, evolui rumo à formulação estrutural da Noiva. anteriormente, estes foram criados por Duchamp
Ao mesmo tempo, Duchamp concebeu essa pintura tirando "três fotos de um pedaço de tecido branco".
como pertencente ao ciclo que deveria culminar numa Uma peça plana de gaze foi pendurada diante de uma
pintura ortodoxa sobre tela, e com o mesmo título janela aberta e, à medida que o ar penetrava na sala,
que o de O Grande Vidro. No verão de 1912, ele o tecido era "aceito e rejeitado pela corrente". O
ainda não concebera A Noiva Despida por Seus resultado dessas fotos (tiradas em 1914) foi uma série
Celibatários, Mesmo enquanto obra a ser executada de imagens casuais das deformações do quadrado,
sobre vidro. registradas fotograficamente com o intuito de obter
A Noiva (1912) é a pintura que traz a um clímax "sobre uma superfície plana uma representação
estético perfeito e adequado a série de pinturas que convencional dos 3 Pistons de Correntes de Ar".
tivera início quase um ano e meio antes, com Rapaz e Duchamp escolheu uma peça de gaze porque sua
Moça na Primavera. É a culminância daquela textura de reticulado regular ajudava-o a "evitar

21
"ma/e" (masculino). Duchamp fez questão de
enfatizar que os moldes eram bastante "machos",
embora suas formas ambíguas não contribuíssem em
nada para a identificação de seu sexo. Eis a
explicação de Duchamp para o fato de os Moldes
Machos se encontrarem num cemitério: "Dei esse
título aos dois primeiros estudos porque no final
pareciam um cemitério. Não é que eu tenha
pretendido que fosse um cemitério, mas ao mesmo
tempo os Moldes Machos não eram as formas em si;
estas se encontram em seu interior. Os Moldes eram
mais uma espécie de catafa/co ou esquife ( .. ). Para
simplificar as coisas, não pretendia detalhar cada
forma muito de perto e foi uma boa idéia utilizar o
Gás, que tomaria a forma de algo que eu não teria de
desenhar materialmente, pois a idéia da coisa era mais
importante do que o desenho em si, e o desenho de
um policial de verdade, muito detalhado, tomaria
tempo demais ... "
A forma dos Tubos Capilares, os canais de
comunicação dos Moldes Machos, derivou de 3
Stoppages-Étalon (3 Cerziduras-Padrão), 1913-14. Os
Tubos Capilares tinham uma dupla função; primeiro
levar o Gás para dentro dos Mo/des Machos, e depois
para fora destes até a abertura da primeira das sete
Peneiras. A forma desses tubos era, por um lado,
estritamente aleatória e, de outro, planejada de
maneira igualmente rigorosa, combinando uma
"pintura de precisão" com a "beleza da indiferença".
Encontramos aqui, uma vez mais, a combinação de
acaso e determinismo à qual Duchamp tantas vezes
recorreu. O acaso, de fato, desempenha um papel
Rapaz e Moça na Primavera/Young Man and Gir/ in importante na iconografia de O Grande Vidro.
Spring, 1911 Determina a forma dos Pistons de Corrente de Ar,
assim como a dos Tubos Capilares, e a posição dos
Nove Tiros. Duchamp já expressara anteriormente seu
qualquer jogo de luz". Seu plano original era fixar desejo de "fazer um quadro do acaso bem ou mal
diretamente sobre o vidro, com cola, as três formas sucedido". Para ele, o acaso era um tema altamente
reveladas nas fotos. Foi impossível, contudo, prender pessoal; na objetividade aparentemente completa do
a gaze ao vidro, e ele decidiu registrar sobre este acaso, via, paradoxalmente, uma espécie de
somente as formas externas dos três quadrados ou de determinismo subjetivo. De igual importância é o
preferência suas fotos. papel complexo desempenhado pelo número 3 no
O último elemento do Domínio da Noiva encontra- Vidro, onde se repete, como observou Duchamp,
se à direita da Inscrição do Alto, parcialmente coberto "como um refrão em duração". Há três elementos
por esta, numa área delimitada por um retângulo principais que governam o Vidro (vento, destreza e
perfurado por nove orifícios. Essa área é conhecida peso), e três princípios que o regulam (distenção da
como a dos Nove Tiros, pois Duchamp, utilizando um unidade de comprimento, o adágio da espontaneidade
canhãozinho de brinquedo, lançou um "fósforo com e o princípio da densidade oscilante); cada elemento,
um pingo de tinta fresca" em seu "alvo", de três por sua vez, é tributário do número 3, acima de tudo
pontos diferentes e três vezes em cada lugar. Cada por suas partes componentes. "O número 3
fósforo deixou uma marca de tinta sobre o vidro no interessou-me porque o utilizei como uma espécie de
ponto de colisão; nesses pontos o Vidro foi, então, arquitetura para o vidro." Quando indaguei a
perfurado. Duchamp a razão de sua predileção por esse número,
O primeiro elemento da Máquina Celibatária (parte comentou: "Para mim, é uma espécie de número
inferior do Vidro), localizado simetricamente em mágico, mas mágico não no sentido comum. Como
relação à Noiva, em cima, é o Celibatário, disse certa vez, o número 1 é a unidade, o número 2,
representado pelos Nove Moldes Machos. Cimetiere o casal e o 3, a multidão. Em outras palavras, vinte
des Uniformes et Livrées n. o 1 (Cemitério de milhões ou três é o mesmo para mim".
Uniformes e Librés n. o 7), 1913, é o primeiro desenho As Peneiras são os únicos elementos que não
a materializar esse conceito; esse esboço a lápis dá os foram precedidos por estudos importantes, mas
nomes e sugere a posição de oito dos Nove Moldes apenas por dois esboços a lápis. Levaram, todavia, a
Machos. O plano foi desenvolvido no ano seguinte uma das experiências mais inusitadas e interessantes
em Cemitério de Uniformes e Librés n. o 2, uma de Duchamp, Élevage de Poussiere (Criação de
heliografia em que as nove personagens aparecem em Poeira), 1920, executada em colaboração com Man
ordem inversa em relação às posições que irão ocupar Ray. Essa obra materializa um dos projetos de
na versão final. Essa terceira versão, conhecida como Duchamp: "Para as Peneiras do Vidro - permitir que
Neuf Moules Malic (Nove Moldes Machos), 1914-15, a poeira se acumule nesse trecho, uma poeira de três
é, por sua vez, um estudo preliminar do elemento de ou quatro meses." Assim, permitiu que o verso da
mesmo nome de O Grande Vidro. "Malic" é um Máquina Celibatária acumulasse poeira por alguns
neologismo cunhado por Duchamp e derivado de meses em seu estúdio de Nova York, chamando,

2L
então, Man Ray para fotografar o resultado. Uma vez
tirada a foto, a poeira foi cautelosamente removida do
vidro, exceto na região das Peneiras, onde foi
passado verniz sobre o pó para fixá-lo e perpetuar o
efeito cromático que criava sobre o outro lado do
vidro. Isso resultou na ênfase de um aspecto da
poeira, seu vínculo com o conceito do fluxo do
tempo.
Diversas notas e dois estudos antecipam as
Testemunhas Oculistas, que derivam seu tema formal
dos diagramas ópticos transferidos ao Vidro,
prateando-o. Duchamp pensou inicialmente em obter
o "efeito prateado" utilizando "vidro moído atrás do
qual coloca-se papel preto fosco". Algum tempo
,,-
depois, para testar a possibilidade de pratear o vidro,
/
I
planejOU "fazer um guarda-roupa espelhado ... para a
prateação". Mais tarde, pensou também na utilização
da ferrugem e de uma lente de aumento. Finalmente,
numa carta de 1919, menciona pela primeira vez sua
intenção de utilizar diagramas ópticos numa obra de
arte. Foi nesse período., durante sua estada de nove
meses em Buenos Aires, que Duchamp realizou o
pequeno vidro A Regarder (/'Autre Coté du Verre)
d'un Oeil, de Prés, Pendant Presque une Heure [Para
Ser Observado (do Outro Lado do Vidro) com um
Olho, de Perto, por Quase uma Hora}, 1918, em que
os quatro elementos de suas especulações anteriores
- diagramas ópticos, vidro prateado, ferrugem e
lente de aumento - participam da composição.
Mesmo que Combat de boxe (Luta de Boxe),
1913, tenha sido o primeiro elemento, juntamente
com o Moedor de Chocolate, a ser planejado para
inclusão em O Grande Vidro - deveria ter sido
inserido no topo das Testemunhas Oculistas -,
nunca chegou a ser utilizado ali, talvez porque
Duchamp estivesse insatisfeito com a peça ou por
jamais ter concluído o Vidro. O caráter abstrato desse
item exemplifica claramente a intenção de Duchamp,
após sua experiência em Munique, de substituir o
"desenho mecânico", seco e impessoal, pelo toque
artístico complacente e sensual. Depois da Noiva, do
ano anterior, estava bastante ciente do perigo de que
o resultado estético pudesse resultar numa
complacência do artista, levando, assim, à repetição.
A Luta de Boxe era a expressão gráfica da atitude
irônica de Duchamp com relação a esse tipo de risco.
Não obstante a inscrição exaustiva, porém absurda,
descrevendo as fases da disputa, ao observador é
dada a liberdade de imaginar o desenvolvimento desse
inusitado balé mecânico em que o solitário
protagonista robóide antecipa as mais pessimistas
previsões da ficção científica quanto a um futuro
inteiramente mecanizado. Esse pessimismo, contudo,
é aliviado pela introdução de um sentimento
estritamente humano - o erotismo - , haja vista que
a solitária figura não almeja derrubar um adversário
inexistente, mas desnudar a Noiva, como sugere a
legenda desse item. Talvez isso explique a definição
da Luta por Duchamp como "a romantização de uma
luta real".
O Moedor Contendo um Moinho de Agua em
Metais Próximos (1913-15) é o único antecedente do
Moedor em O Grande Vidro. É também o primeiro
trabalho de Duchamp em vidro. Com Moedor ... ,
Duchamp teve a oportunidade de ensaiar
praticamente todas as técnicas que utilizou mais tarde
em O Grande Vidro.
Moedor de Café/Coffee Mil!, 1921 A primeira tentativa de traçar as linhas de seu

23
o Grande Vidro/The Large Glass, 1965

24
desenho sobre o vidro, recobrindo-o de parafina e Quadro de Sombras Lançadas) possuem, na verdade,
gravando-o com ácido fluorídrico, não foi bem- uma característica em comum: todos têm relação com
sucedida. Mais tarde, explicou: "Achei que esticando o Celibatário. Sabemos que a psique de Duchamp
um fiozinho de arame poderia obter uma linha está empenhada aqui muito mais em reprimir os
perfeitamente reta. O fio, sendo bem maleável, era impulsos ativos do Celibatário do que os da Noiva.
muito fácil de ser trabalhado, e os resultados que
obtive correspondiam de perto às minhas
expectativas." Esse trabalho é um dos primeiros 5. Continuando O Grande Vidro
exemplos do interesse de Duchamp em chegar a uma
forma de expressão tão impessoal quanto possível. Os impulsos psíquicos que motivaram a elaboração
Do ponto de vista teórico, é provavelmente o mais fiel de O Grande Vidro não perderam força quando a obra
às austeras intenções de Duchamp e, do ponto de foi deixada em seu estado incompleto. Repetidas
vista formal, o mais acabado. vezes, e até o fim, Duchamp voltou a seus elementos
O Moedor de Chocolate foi o primeiro elemento a ou a sua história. Os readvmades, que discutiremos
ser executado para o Vidro. Foi precedido por duas sumariamente, dão evidências convincentes a esse
pinturas: Moedor de Chocolate n. o 1 (1913) e Moedor respeito. A maior parte de seus demais trabalhos
de Chocolate n. o 2 (1914). Pouco depois de seu relaciona-se, com freqüência, diretamente com o
regresso de Munique, Duchamp foi visitar seus pais Vidro sendo o mais importante a extraordinária
em Rouen e viu, na vitrina de uma loja daquela "escultura-construção" Étant Donnés: 1 - la Chute
cidade, um moedor de chocolate. A visão fascinou-o: d'Eau; 2 - le Gaz d'Éclairage (Sendo Dados: 1 - a
"0 lado mecânico influenciou-me, então, ou ao Cascata; 2 - o Gás de !luminação), 1946-66, na qual
menos aquele era também o ponto de partida de uma Duchamp trabalhou em segredo por mais de dez anm.
nova técnica. Não poderia lançar-me ao desenho ou à difundindo o mito de que após O Grande Vidro
pintura casual, esparramar tinta. Queria voltar a um não se empenhou em nenhuma atividade artística e
desenho completamente enxuto, uma concepção que se encontra atualmente no Philadelphia Museum
enxuta da arte, e o desenho mecânico era, para mim, of Art. Discuti essas criações em outra obra 25 e por
a melhor forma daquela arte enxuta ... Estava lutando razões de espaço não poderei voltar ao tema. Gostaria
pelo apuro e a precisão, não mais pelo trabalho de comentar, entretanto, a colagem de grande
manual ... Começava a apreciar a importância do importância À la Maniere de Delvaux (À Maneira de
acaso. este foi. o verdadeiro início de O Grande Delvaux), de 1942, o desenho para a capa do
Vidro. "22 catálogo First Papers of Surrealism, de 1942, e a série
O rompimento que essa pintura representava em de dezoito águas-fortes dedicadas a O Grande Vidro
relação às anteriores era mais do que conceitual que ocuparam os quatro últimos anos da vida de
personificando uma renúncia completa da abordagem Duchamp, de 1965 a 1968, e que, sendo sua última
subjetiva e romântica. Repudiava, também, a redução manifestação, bem pode ser considerada como seu
cubista da forma em figuras geométricas e a testamento espiritual. Todas as obras estão sendo
organização dinâmica das mesmas. As diferenças que exibidas aqui.
podemos perceber nas duas versões dão-nos uma À Maneira de Delvaux, feita para reprodução no
medida da evolução dos conceitos de Duchamp que, catálogo da exposição First Papers of Surrealism,
no curto espaço de um ano, que separa a primeira da mostra o reflexo num espelho dos seios nus de uma
segunda versão, deram um grande avanço no sentido jovem, obviamente a Noiva. A colagem circular,
do apuro enxuto e da precisão. inclusive, é inserida numa faixa semi-retangular de
Em fevereiro de 1923, Duchamp partiu para a papel prateado que representa claramente a Via
Europa, abandonando definitivamente O Grande Láctea do Domínio da Noiva, à esquerda da qual,
Vidro. "Nunca concluí O Grande Vidro, pois, ao como nesta colagem, está a Noiva. Além disso, essa
trabalhar nele durante oito anos, provavelmente me obra reproduz um detalhe do quadro Amanhecer de
interessei por outra coisa; também estava cansado. Delvaux, no qual o reflexo no espelho é o do peito de
Pode ser que subconscientemente jamais pretendesse uma das quatro personagens míticas metade
finalizá-lo, porque a palavra 'finalizar' implica uma mulher e metade árvore i que o rodeiam.
aceitação dos métodos tradicionais e toda a Lembremos que, em suas notas, Duchamp referia-se
parafernália que os acornpanha."23 Mas também é à Noiva como sendo "árvore-tipo". É bastante
importante lembrar que Duchamp não tomou, em provável que essa obra testemunhe a realização do
alguma data precisa, uma decisão consciente de parar impulso voveurista do autor.
de trabalhar no Vidro; em vez disso, começou a Como que para reforçar essa interpretação, a
perder o interesse nele, uma vez que a preocupação quarta capa do First Papers of Surrealism, desenhada
se dissipara. "Nunca foi uma decisão; posso pintar por Duchamp, mostra a área dos Nove Tiros, isto é, o
amanhã se o desejar. Não vejo a pintura, ou a idéia elemento do Domínio da Noiva onde seus desejos e
de pintura, ou do pintor ou do artista, atualmente, os do Celibatário finalmente se encontram.
como ajustáveis à minha atitude para com a vida. Em
outras palavras, a pintura para mim era um meio em The Large G!ass and Re!ated Works
direção a um fim e não um fim em si mesma ... A
pintura era apenas um instrumento. Uma ponte a As dezoito águas-fortes realizadas por Duchamp
transportar-me para outro lugar. Onde, não sei. Não para ilustrar os dois volumes de The Large Glass and
saberia, porque seria tão revolucionário em essência Related Works foram concebidas e elaboradas num
que não poderia ser formulado."24 período de quatro anos. Constituem-se no mais
É difícil aceitar por inteiro a explicação de extenso conjunto de ilustrações dedicado por ele a
Duchamp, sendo muito provável que seu abandono um livro até então. Sete das nove águas-fortes do
da obra tivesse também por base motivações Volume I apresentam os sete elementos mais
inconscientes. Os quatro elementos ausentes importantes de O Grande Vidro. A oitava e a nona
(Tobogã, Luta de Boxe, Malabarista da Gravidade e águas-fortes mostram a obra tal como existia antes de

25
Criação de Poeira/Dust Breeding, 1920, prova de negativo fotográfico, 1964

26
Testemunhas Oculistas/Oculist Witnesses, 1920

27
quebrar-se, em 1927, e como seria seu aspecto caso
tivesse sido completada.
No Volume 11, Duchamp fixou-se no tema dos
Amantes. Nessas nove águas-fortes, encontramos a
continuação da odisséia da Noiva e do Celibatário,
interrompida em O Grande Vidro num momento
crucial exatamente antes de seu encontro. A
ordem cronológica em que as nove águas-fortes
foram feitas, entretanto, não corresponde à ordem
lógica da história. Mas, como que para enfatizar o
relacionamento entre a história dos amflntes nesta
série e a história da Noiva e do Celibatário em O
Grande Vidro, a última água-forte, Morceaux Choisis
d'Apres Courbet (Detalhes Selecionados Segundo
CourbetJ, remete-nos de volta ao último episódio
narrado em O Grande Vidro o momento em que o
Celibatário espia a Noiva a desnudar-se. Aqui, o
Celibatário aparece sob forma de um pássaro, um
falcão que observa a jovem a livrar-se de sua última
peça de roupa. Uma outra água-forte mostra A Noiva
{Finalmente] Despida . . Cinco dentre as outras
mostram os amantes em vários amplexos amorosos:
Morceaux Choisis d'Apres Rodin (Detalhes
Selecionados Segundo RodinJ, Le Bec Auer (O Bec
AuerJ, Morceaux Choisis d'Apres Ingres, I e 1/
(Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I e IIJ, e
Apres /'Amour (Depois do Amor). O fato de somente
o acaso ser responsável pelo encontro dos amantes é
enfatizado na água-forte Roi et Reine (Rei e RainhaJ.
Na primeira água-forte da série, Morceaux Choisis
d'Apres Cranach et Relâche (Detalhes Selecionados
Capa para o Catálogo "Primeiras Cartas do Segundo Cranach e RelâcheJ a água-forte que
Surrealismo"/Cover for the Catalog "First Papers of encerra a história encontramos os dois amantes no
Surrealism", 1942 Paraíso. Fizeram amor, estão conscientes de sua

28
nudez e logo serão expulsos do Jardim do Éden. indicando estarem dormindo. Pode ser uma
Vamo-nos deter, agora, em cada uma das nove reminiscência do poema Eternal Siesta, de Laforgue,
águas-fortes do Volume II de The Large Glass and que Duchamp ilustrou em 1912. No poema de
Related Works. Laforgue, o amante é solitário, mas aqui, 55 anos
depois, une-se à parceira num abraço carinhoso. O
Detalhes Selecionados Segundo Cranach e Relâche fato de os amantes estarem dormindo é também
(dezembro, 1967) significativo. A mitologia e os escritos esotéricos
tornaram familiar o conceito de que, quando o tabu
Na maior parte das águas-fortes desse grupo, do incesto é infringido impunemente, um dos dois
pode-se notar uma atitude mental comum. Duchamp parceiros freqüentemente não se encontra em seu
utiliza imagens da mesma forma como se utiliza das estado normal de vigília (está dormindo, ou bêbado,
palavras em seus trocadilhos. Certo detalhe de como no caso de Osíris e de Lot).
alguma pintura, escultura, ou mesmo de um anúncio
é isolado de seu contexto, combinado a um ou mais Detalhes Selecionados Segundo Rodin (janeiro, 1968)
detalhes de uma fonte diferente, resultando numa
nova imagem. Por vezes, como no caso de Detalhes Esta água-forte é inspirada pela célebre escultura
Selecionados Segundo Rodin, apenas um detalhe é O Beijo de Rodin. A mão foi aqui removida do lado
alterado, sendo, contudo, suficiente para investir uma externo da coxa, como no original, para o lado de
'obra antiga de um frescor provocante. A água-forte dentro. "Afinal", comentou Duchamp com um
representa uma seqüência do balé Relâche (1924) de sorriso, "essa deve ter sido a idéia original de Rodin.
Picabia, com música de Eric Satie, no qual Duchamp É um lugar extremamente natural para se colocar a
personificou o Adão da pintura Adão e Eva de mão".
Cranach. Duchamp viu essa pintura pela primeira vez
em 1912 durante sua estada em Munique, quando O Bec Auer (janeiro, 1968)
trabalhava em A Noiva.
Três diferentes fontes iconográficas podem ser
Depois do Amor (dezembro, 1967) encontradas nessa água-forte. A primeira, que
confere a ela seu título, é o bec auer - um tipo
A foto de um anúncio foi o ponto de partida dessa especial de lampião de gás, que a mulher na água-
água-forte. Deve-se notar que Duchamp utiliza apenas forte aparece segurando. Esse lampião pode ser visto
um detalhe fotográfico e nunca um desenho quando a num dos primeiros desenhos de Duchamp. O homem
fonte iconográfica é uma propaganda. Uma diferença deitado de costas foi desenhado a partir de um
entre o retrato original e a água-forte é notável: na anúncio, e a mulher nua de uma outra fonte ainda. O
água-forte os olhos dos dois amantes estão fechados, papel do gás (identificado com o

Detalhes Selecionados Segundo Cranach e


"Relâche"/Morceaux Choisis d'Apras Cranach e
"R elâche ", 1967 Depois do Amor/Apras l'Amour, 1967

29
1'1. D.

Detalhes Selecionados Segundo Rodin/Morceaux d'Apres Rodin, 1968

30
1),
h,l),

Detalhes Selecionados Segundo Ingres I/Morceaux


o Bec Auer/The Bec Auer, 1968 Choisis d'Apres Ingres I, 1968

Celibatári%uchamp em O Grande Vidro) já foi anúncio fotográfico, A Noiva sendo despida aparece
discutido, O que é significativo na água-forte é o ajoelhada na atitude de uma menina recebendo a
duplo papel do lampião de gás: por um lado ilumina o Primeira Comunhão, A identificação da Noiva com a
local da ação, emprestando-lhe veracidade, mas, por menina é evocativa da personagem feminina em
outro, a consciência do que se está passando induz a Rapaz e Moça na Primavera, O véu da Primeira
mulher a manter uma distância - de um braço - Comunhão é identificado com o véu nupcial, e é
entre ela e o substituto simbólico do Celibatário: O completamente transparente, "A noiva finalmente foi
bec auer! Bec auer é também foneticamente despida aqui", comentou Duchamp, com um sorriso
reminiscente de "be aware" ("estar atento", em satisfeito, ao examinar as provas dessa água-forte,
inglês), Finalmente, o bec auer remete Duchamp de
volta à sua juventude, a um período em que não Detalhes Selecionados Segundo Ingres, II (fevereiro,
havia nenhuma terceira pessoa a intervir, 1968)

Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I (janeiro, A mulher deriva de uma das banhistas de O Banho
1968) Turco de Ingres; e o homem, do Édipo de Édipo e a
Esfinge, também de Ingres, Em O Banho Turco, o
O homem deriva da figura à direita na pintura de seio da mulher é acariciado por mão feminina,
Ingres, Virgílio Lendo a Eneida para Lívia, Otávia e sugerindo um relacionamento homossexual entre as
Augusto, A mulher deriva da figura central tocando duas personagens, Aqui, é Édipo quem acaricia o seio
alaúde em Banho Turco de Ingres, Virgílio tem, na da mulher, Nesta água-forte, a mulher ocupa a
história, o papel do iniciador, A mulher é a favorita do mesma posição da esfinge feminina na pintura, Além
Sultão (é a única a tocar um instrumento musical), A das óbvias implicações freudianas resultantes da
identificação de Duchamp com Virgílio é clara: sua identificação de Duchamp com o Édipo da pintura,
assinatura na gravura em cobre foi latinizada para emergem analogias mais sutis entre Marcel e S uzanne
Marcellus O, A identificação da mulher com Suzanne e os dois protagonistas da pintura de Ingres - Édipo
também é clara; lembremos que todas as irmãs de e a Esfinge, Num artigo de grande interesse, "Sur
Duchamp tocavam instrumentos musicais, A atitude Oedipe", Gérard Legrand examinou o fundo
de Virgílio na água-forte, segurando a extremidade do mitológico e psíquico das duas personagens da
alaúde em forma de falo, é evocativa sob mais de um pintura de Ingres, apontando que a esfinge feminina é
aspecto, manca, tal como Édipo,26 Isso pode indicar uma
relação irmão-irmã ou mãe-filho, na medida em que
A Noiva Despida", (fevereiro, 1968) esse aspecto físico é comum a ambos, Mais
importante ainda é o fato de a esfinge ser a
Nesse caso a fonte iconográfica é novamente um componente feminina de Édipo, "a projeção, o

31
A Noiva Oespida .. ./La Mariée Mise à Nu .. , 1968

32
j

( M.D

Detalhes Selecionados Segundo Ingres IIIMorceaux


Choisis d'Apres Ingres 11, 1968 Rei e RainhalKing and Oueen, 1968

espelho invertido (o enigma) de sua personalidade". Rei e Rainha (março, 1968)


Numa água-forte gravada por volta de 1820 por um
artista desconhecido, Édipo mata a esfinge e a corta Nessa água-forte, o detalhe central - o acúmulo
longitudinalmente ao meio com um golpe de espada, de dados - deriva do cartaz desenhado por
revelando, assim, que "ele e sua vítima têm o mesmo Duchamp em 1925 para o campeonato de xadrez de
perfil!" (tbid.) Isso aponta para o caráter bissexual de Nice. As figuras superior e inferior derivam do Rei e
Édipo. "Édipo representa o hermafrodita sem jamais Rainha do xadrez que Duchamp desenhou para seu
conseguir tornar-se." (tbid.) Mais adiante, "Édipo é o Xadrez de Bolso. Os amantes - o Rei e a Rainha -
homem; ele possui a esfinge-Jocasta (sua estão separados pelo acaso (e pelo acúmulo de
componente feminina). A diferença psicanalítica entre dados).
ser e ter simboliza, como sabemos, a diferença entre
o processo narcisista (em que a criança busca uma Detalhes Selecionados Segundo Courbet (março,
identificação com o objeto desejado) e o processo 1968)
analítico (em que a criança busca a posse do objeto
desejado). As obras posteriores de Freud sugerem a A mulher é A Mulher de Meias Brancas de
perspectiva pessimista do processo analítico que, Courbet. Duchamp simplesmente acrescentou o
afinal, é apenas um estratagema do processo pássaro, que é o voveur da situação. "É um curioso",
narcisista, do qual a fabulosa e típica realização é o explicou Duchamp, "e, além disso, é um falcão, o
Hermafrodita ( ... ). Édipo não esquece o desejo que em francês sugere um jogo de palavras [faucon
narcisista que o remete de volta à 'irrealidade' (. .. ). = "mulher falsa"; "falsa vulva"]; assim, aqui
Com a Esfinge, ele alcança, por um momento, um podemos ver uma mulher falsa e outra verdadeira."
equilíbrio perfeito, destruído pelo instinto de morte
oculto sob o instinto de vida: não pode satisfazer-se,
como outros homens, através do 'sonho' de possuir a
Mãe, nem pode tê-Ia - sob a forma de Jocasta
'isento de perigo'" (tbid.) À luz destas observações, e
pelo que foi dito no capítulo 3 sobre a obra Rapaz e
Moça na Primavera, a escolha por Duchamp do
modelo para essa água-forte parece lon"ge de ser
casual.

33
\

M. D.
I
I
\1
V\\

Detalhes Selecionados Seundo Courbet/Morceaux Choisis d'Apres Courbet, 1968

34
6. A Mecânica de O Grande Vidro Celibatário, enquanto este é introduzido nos Moldes
Machos.
O Moedor de Chocolate, cuja Baioneta apóia as
Examinemos, sumariamente, a mecânica de O Peneiras, ilustra um dos traços principais da
Grande Vidro, o funcionamento de seus elementos. personalidade do Celibatário, que "mói sozinho o seu
No Domínio da Noiva (metade superior do Vidro), a chocolate". N o fim das chapas das Peneiras, um
Noiva transmite seus comandos, um letreiro tríplice, mármore deveria ser suspenso como um pingente
aos Celibatários (cuja expressão é o gás), através dos junto à extremidade das alças das Peneiras.
3 Pistons de Corrente de Ar. Os 3 Pistons de Corrente O complexo significado de todos esses elementos
de Ar são envolvidos pela Via Láctea, que é a é acentuado pelo fato de serem ambivalentes; o
expressão gráfica das três "florações" da Noiva. A aspecto mecânico da Noiva é enfatizado em toda
área conhecida como a dos Nove Tiros é o trecho em parte, e a analogia com um automóvel é
que os desejos da Noiva se encontram com a freqüentemente ressaltada. Seu Traje, cuja
expressão dos Celibatários. Os desejos destes transparência acentua a qualidade erótica, preenche
deveriam ter encontrado sua expressão gráfica num três funções correlatas no Vidro: na extremidade
Quadro das Sombras Lançadas, formado pelo reflexo esquerda, atua como o "esfriador" que discutimos
no espelho da Escultura de Gotas. acima; na extremidade direita, é responsável pelo
Na metade inferior do Vidro, batizada por Efeito Wilson-Lincoln nas Testemunhas Oculistas; no
Duchamp de Máquina Celibatária, um gás (cuja meio, indica o Horizonte do Vidro. Este último
origem é desconhecida) é lançado nos Moldes aspecto permite a Duchamp subverter as leis da
Machos dentro da forma dos nove Celibatários. O perspectiva clássica, deixando indeterminado o
Gás escapa dos Moldes através dos Tubos Capilares, espaço do Vidro. O desnudamento da Noiva é
onde é congelado e cortado em pedaços reluzentes e, resultado de uma "floração" que envolve, assim, três
então, convertido numa névoa semi-sólida. Os Tubos estágios distintos, ou seja, o desnudamento pelo
Capilares levam os Pedaços Reluzentes até a abertura Celibatário, o desnudamento imaginativo da Noiva e o
da primeira Peneira. Sugados pela Bomba-Borboleta, choque entre os desejos do Celibatário e da Noiva
os Pedaços passam pelas sete Peneiras, a colisão dos dois rituais anteriores. Quanto à
condensando-se, no processo, numa suspensão Inscrição do Alto, não é somente um meio pelo qual a
aquosa. Esse líquido é despejado no Tobogã e se Noiva transmite "comandos, ordens e autorizações"
"espatifa" em sua base. por intermédio do fluxo de letras que formam suas
Os borrifos formados pela queda da suspensão mensagens ao Celibatário; o subtítulo Via Láctea
aquosa são canalizados para um escoadouro por um lembra sua semelhança com nuvens, uma
Peso Móvel com nove furos que direcionam o fluxo combinação de água e gás, o que indica a natureza
dos Borrifos às Testemunhas Oculistas. As Tesouras andrógina e o papel conciliador desse elemento, tal
controlam o ímpeto dos Borrifos ao saírem das como é confirmado por outros detalhes. A função dos
Testemunhas Oculistas. Alguns desses Borrifos irão 3 Pistons (ou Redes) é transmitir as mensagens da
formar, então, a Escultura de Gotas, que passará pelo Noiva somente depois que estas tentam ser postas
Efeito Wilson-Lincoln. O reflexo das gotas passa pelo "numa espécie de 'código' triplo ... ". Seu papel
Traje da Noiva e é refletido para cima, na direção do poderia ser comparado com o do censor que, no
Domínio da Noiva, para formar o Quadro das processo onírico, camufla os anseios inconscientes e
Sombras Lançadas mencionado antes. A energia reprimidos que procuram uma satisfação. O último
cinética dos outros Borrifos é transformada em elemento do Domínio da Noiva é a área dos Nove
energia luminosa ao passar pelos Diagramas Ópticos, Tiros, que leva a uma conclusão a viagem dos desejos
o último elemento, que deveria possuir uma lente, da Noiva. O exercício de apontar para um alvo com
cuja posição no Vidro, contudo é apenas indicada por um canhãozinho de brinquedo implica claramente em
um círculo. que o alvo é identificado com a Noiva e a região
Essa lente deveria focar o feixe de energia apontada seu Domínio não deixa dúvidas
luminosa no Mármore de Combate, que, sob esse quanto à identidade da pessoa a que se destinam os
impacto, seria forçado a subir, colidindo finalmente tiros. Um complexo mecanismo governa o encontro
no topo e colocando, assim, em movimento o da Noiva e do Celibatário, assegurando que nenhum
mecanismo da Luta de Boxe, cujos dois êmbolos se contato entre os dois é possível.
movimentam para cima e para baixo, erguendo e Se os desejos da Nóiva devem transpor muitos
soltando o Traje da Noiva e realizando seu obstáculos antes de alcançarem a região em que se
strip-tease. confrontam com os desejos do Celibatário, a jornada
O Operador de Gravidade, cujas três pernas se deste último é ainda mais atormentada. Uma nota de
apóiam no Traje da Noiva, encontra seu equilíbrio ao Duchamp caracteriza admiravelmente a psicologia dos
tombar pelo strip-tease da Noiva, e experimenta Nove Moldes Machos, e revela que o Celibatário
dificuldade em deter a queda de uma bola que está possui uma forte inclinação narcisista (um espelho
balançando sobre a bandeja que segura. O Traje da reflete para si sua própria complexidade) e um
Noiva, além de atuar como um prisma que desvia complexo de castração (ele é atravessado por um
para o alto o reflexo das gotas, funciona também plano imaginário, num ponto que Duchamp denomina
como um Esfriador Nervurado, que freia as cálidas o ponto do sexo). Tal como a Noiva, os Moldes
atenções do Celibatário; o Traje indica, além disso, o Machos também são investidos de implicações
Horizonte Ideal do Vidro. míticas; seu subtítulo, inclusive, é Eros Mattrix (Matriz
O Moinho de Água é ativado por uma Cascata, de Eros), e Eros foi sempre representado na
enquanto a Carreta é posta em movimento também iconografia clássica como andrógino. Uma matriz,
por meio de uma série de complicados recursos também pode ser entendida como o "negativo" a
mecânicos. Em seu movimento de vaivém, a Carreta partir do qual se obtém um molde "positivo"; matriz e
controla a ação das Tesouras e entoa as litanias molde são antitéticos, exatamente corno, na
ouvidas no Cemitério de Uniformes e Librés pelo Gás mitologia, Eros e Narciso. Além disso, o número de

35
o Grande Vidro Completado/The Large Glass Completed, 1965

36
Moldes, nove, aponta para o caráter ambivalente do direção à Noiva ... com demasiada rapidez!"
Celibatário, sendo o nove um símbolo de fertilidade Alternando ocos e sólidos, as Peneiras se constituem
(ligado ao número de meses do período de gestação num canal que nem é inteiramente livre nem
humana), enquanto sabemos que os Moldes são inteiramente obstruído. Finalmente, ao passar pelas
todos acéfalos, portanto castrados. No curso de seu Peneiras, o Gás é destituído da maior parte de suas
trajeto a partir do nascedouro, a Matriz de Eros, na características, ocorrendo simultaneamente, contudo,
qual o Gás de Iluminação é lançado numa imagem de o processo inverso de ajudá-lo a recuperar sua
Narciso, vemos que o Celibatário não apenas se priva personalidade; na verdade, o Gás, em sua passagem,
de seu caráter "másculo" (malicl, como perde, atravessa o mesmo processo de identificação, visto
também, seu estado e condição físicos, desde que que os furos das Peneiras "deveriam dar, sob a forma
apenas sua imagem refletida irá, finalmente, encontrar de um globo, a figura dos Moldes Machos". As
a Noiva. Peneiras, nesse ponto, tal como os Moldes Machos
Os Tubos Capilares e as Peneiras possuem são matrizes. Outros elementos, inclusive alguns que
basicamente a mesma função, a de conduzir o Gás de
Iluminação, e, em ambos os casos, o Gás se defronta
com a castração, durante ou ao término da jornada.
Nos Tubos Capilares, a identificação "máscula" é
contra balanceada pela castração, exatamente como
nas Peneiras o Gás é transformado num "líquido
denso" e em vapor, novamente uma combinação de
Ar (Narciso) e Água (NoivaJ. Tudo isso sugere que
esses elementos também possuam a função de
obstruir a jornada do Celibatário. Finalmente, os
Tubos Capilares - que devem ser identificados com os
filetes das 3 Cerziduras-Padrão - não são vazados,
de modo que seria praticamente impossível ao Gás
atravessá-los; os Tubos deveriam permitir facilmente a
passagem do gás, mas são sólidos, ou
demasiadamente delgados. Quanto às Peneiras, estas
coletam o Gás liberado pela boca dos Tubos, que
"tendem a elevar-se". Também "forçam os Pedaços
Luminosos a tomar uma direção que, de outro modo,
não seguiriam", observa Duchamp; "os Pedaços
vindos dos Tubos Capilares tenderiam a elevar-se em

mo Detalhe: Os Nove Moldes Machos/The Nine Malic Moulds,


A Noiva/The Bride, 1965 1965

37
faltam, pretendem ajudar o Celibatário a recuperar sua
personalidade original.
Nas Testemunhas Oculistas, as contradições
básicas da psique do Celibatário são reconciliadas
após serem, inicialmente, acentuadas. Aqui, a jornada
do Celibatário chega a um fim; é daqui que o Gás
pode testemunhar a Noiva sendo despida e alcançar,
eventualmente, seu domínio, mesmo que apenas
como uma imagem refletida. Esse complexo
mecanismo é também baseado nas funções e ações
ambivalentes do Traje da Noiva, que, por um lado,
separa a Noiva do Celibatário e, por outro, é
responsável pelo encontro de ambos. Sob esse
aspecto, o trajeto do Celibatário também parece
motivado pelo esforço da psique dissociada em
reconquistar sua própria unidade. Não podemos
deixar de notar que as Testemunhas Oculistas
também funcionam como Testemunhas Oculares, e
que a Testemunha Ocular é, obviamente, um disfarce
transparente do voveur. Escotofilia (observação
sexual) e exibicionismo são dois aspectos antitéticos
da mesma tendência ambivalente.
O mecanismo completo que realiza o
desnudamento da Noiva contribui para pôr em
movimento a maquinaria da Luta de Boxe, ligando,
assim, o desnudamento com o tempo. Duchamp
enfatizou a importância do elemento tempo ao referir-
se a seus readvmades; é impossível ficar indiferente à
sua analogia entre o readvmade e o ato amoroso -
em ambos os casos, "o importante" é o tempo.
Duchamp chamou o Vidro de um "Retardamento em
Vidro", e o readvmade também pode ser visto como
criado "com toda sorte de retardamentos".
Moinho de Agua/The Water Mill, 1965 Finalmente, o Vidro é também a história de um
encontro entre a Noiva e o Celibatário, da mesma
forma que o readvmade é um encontro entre seu
criador e a criação. É como se Duchamp almejasse
equacionar os dois atos criadores envolvidos no amor
e na arte. O título de uma estrutura fálica, realizada
em 1951, é a epítome desse conceito: Objet-Dard
(Objeto-Dardo), onde também se lê Objet d'Art
("Objeto de Arte", "Obra de Arte").
A ambivalência de todos os elementos do Vidro
não é meramente uma expressão da estrutura real da
psique - estrutura aominada pela polaridade -
nem reflete apenas o conflito entre repressão e
satisfação de desejos. Antes, deveríamos ver nessa
ambivalência uma característica fundamental de todos
os mitos e de suas virtudes terapêuticas. A repetição
que encontramos do mesmo tema fundamental é um
dos aspectos essenciais da função catártica do mito.
A habilidade mitopéica de Duchamp, que encontra
sua realização máxima no Vidro, legou-nos uma das
obras mais úteis do pensamento ocidental.
"Gostamos de imaginar que algo que não
compreendemos não nos ajuda sob aspecto algum",
observa Jung, "mas nem sempre é assim ... Por seu
caráter numinoso, o mito tem um efeito direto no
inconsciente, independente de ser compreendido ou
não. "27

Moedor de Chocolate/The Chocolate Grinder, 1965

38
Esquema de O Grande Vidro, segundo Arturo Schwarz

DOMíNIO DA NOIVA
(metade superior do Vidro)

1. Noiva (ou Pendu


Femelle = "Enforcado
Fêmea", Virgem,
Esqueleto). 2. Traje da
Noiva. 3. Região do
Esfriador Nervurado
(placas isolantes). 4.
Horizonte. 5. Inscrição do
Alto (ou Via Láctea). 6.
Pistons de Corrente de Ar
(ou Redes). 7. Nove Tiros.
8. Região do Quadro das
Sombras Lançadas. 9.
Região da Imagem
Refletida da Escultura de
Gotas. 10. Operador de
Gravidade (também
chamado Treinador,
Manipulador, Vigilante ou
Encarregado de
Gravidade).

MÁQUINA CELIBATÁRIA
(metade inferior do Vidro)
11. Nove Moldes
Machos (ou Matriz de
Eros) formando o
Cemitério de Uniformes e
Librés. 11 a. Soldado. 11 b.
Policial. 11 c. Lacaio. 11 d.
Entregador do Grande
Magazine. 11e. Ajudante
de Garcom. (ou "Cacador
de Caft;"/11f. Padre. 11g.
Agente Funerário (ou
Coveiro!. 11 h. Agente
Ferroviário (ou Chefe de
Estacão!. 11 i. Guardião da
Paz íou Agente de
Segurança!. 12. Tubos
Capilares. 13. Região da
Cascata. 14. Moinho de
Água. 14a. Roda-d'Água.
14b. Carreta (ou Trenó, ou
Patim). 14c. Patins do
Trenó. 15. Moedor de
Chocolate. 15a. Tripé Luís
XV Niquelado. 15b.
Roletes. 15c. Gravata. 15d.
Baioneta. 15e. Tesouras.
16. Peneiras (ou
Guarda-Sóis, em cujo
interior estão os Declives
de Drenagem). 17. Região
da Bomba-Borboleta. 18.
Tobogã (ou Saca-Rolhas,
ou Declive de Fluxo!. 19.
Região dos Três Choques
(ou Borrifosl. 20. Peso
Móvel com Nove Furos.
21. Testemunhas
Oculistas. 21a, b e c.
Diagramas Ópticos. 21 d.
Lente (deveria ser uma
lente de aumento com
foco nos Borrifosl. 22.
Mármore de Combate. 23.
Luta de Boxe. 23a.
Primeiro Êmbolo. 23b.
Segundo Êmbolo. 24.
Região da Eiócultura de
Gotas. 25. Região do
Efeito Wilson-Lincoln.

39
As Peneiras/The Sieves, 1965

40
111. Os Readymades igualmente na base da atitude de Duchamp com
respeito aos objetos comuns (readymades). Aqui,
1. A base teórica novamente, o processo pode estar relacionado ao
físico ou, de maneira mais abstrata, ao contexto
o mesmo impulso que fez Duchamp rejeitar as lógico do objeto. O deslocamento do contexto físico é
convenções na pintura levou-o mais longe ainda, a alcançado através da mudança do ângulo visual a
especulações e revisões ligadas às convenções sociais partir do qual o objeto é normalmente percebido e do
e à linguagem. isolamento de seu meio habitual. Esse é o princípio
Suas especulações teóricas sobre a linguagem operante em Roda de Bicicleta, de 1913 (o garfo está
encontraram um importante canal em seu jogo e de cabeça para baixo e preso a uma banqueta de
trabalho com as palavras a nível fonético - sua cozinha), Porte-Bouteilles (Porta-Garrafas ou Secador
preocupação com o trocadilho. Na verdade, o de Garrafas), de 1914 - para ser observado preso ao
primeiríssimo trocadilho publicado de Duchamp (no teto, como o Porte-Chapeau (Porta-Chapéus) e o
391 de Picabia, julho de 1921) revela a ligação íntima Trébuchet (Armadilha) - um cabide de parede preso
vista por ele entre a renovação da linguagem e a ao chão - ambos de 1917.
exploração da palavra enquanto som. Temos aqui um O deslocamento do contexto lógico usual é
exemplo concreto da maneira pela qual as novas alcançado rebatizando o objeto, com o novo título
relações gramaticais seriam estruturadas isento de qualquer relação óbvia com o objeto, tal
foneticamente. "Se o que se deseja é uma regra como este é normalmente considerado. Esse processo
gramatical: o verbo concorda com o sujeito em é exemplificado em Pharmacie (Farmácia), de 1914:
consonância; por exemplo, le negre agrit, les negres gravura popular de uma paisagem à qual Duchamp
ses s'aigrissent ou m'aigrissent etc." Na atividade de acrescentou duas minúsculas figuras; em In Advance
Duchamp, trocadilhos e readymades constituem of the Broken Arm (À Frente do Braço Quebrado, de
expressões de uma mesma atitude psicológica; em 1915, originalmente uma pá para neve); em Pulled at
seus trocadilhos ele redime a palavra do lugar-comum Four Pins (Estirado a 4 Alfinetes - expressão
e exibe sua beleza por intermédio de um idiomática francesa que significa "bem-vestido"), um
deslocamento mais ou menos abstrato. Para a revista ventilador de chaminé, em lata, não pintado; e em
de André Breton, Littérature, Duchamp concebeu um Fontaine (Fonte), 1917, um mictório de louça de
trocadilho em que atacava a idéia de literatura, banheiro público masculino.
equacionando-a a camas e rasuras: Lit et Rasures. Duchamp teorizou esse processo ao falar da
Nesse caso, a palavra é removida de seu contexto necessidade de encontrar novos títulos e rótulos para
lógico original e colocada inusitadamente em um readymade. Disse-me, também, que a prática de
justaposição a algo diferente. dar nome aos readymades derivou de seu desejo de
O mesmo processo de deslocamento está acrescentar ao objeto um "colorido verbal". Afirmou

Apolinere Esmaltado/ Apolinere Enameled, 1916-17, réplica de 1965

42
Farmácia/Pharmacy, 1914, reprodução de 1941

43
explicitamente: "Para mim, o título era muito desnudamento da Noiva. O enigmático projeto de
imj:lortante". O relacionamento entre trocadilhos e uma "pintura de freqüência" o levou a pensar em
readvmades fica mais claro ainda quando lembramos termos de "d uração plástica", e não em termos de
que o readvmade, por vezes, é um trocadilho em estética plástica, o que pode ser considerado um
"projeção tridimensional". Armadilha (TrébuchetJ é, prelúdio às suas especulações acerca da música e às
assim, um exemplo não apenas de deslocamento possibilidades de uma escultura musical. Apesar do
físico, como também de deslocamento lógico, na caráter abstrato dessas idéias, elas aparentemente
medida em que a própria palavra é um trocadilho do levaram Duchamp ao Erratum Musical (Errata
termo de xadrez, foneticamente idêntico, trébucher, Musicaf), de 1913. A obra, uma composição musical,
significando, em francês, "tropeçar". O trocadilho é foi seu primeiro trabalho com o acaso; sua teoria era
também utilizado nos títulos de Apolinare Énameled a de Lewis Carrol!, com intervalos musicais em
(Apolinare Esmaltado), 1916-17; de L.H.O.O.O. substituição às palavras. Em 1914, menos de um ano
(readvmade "corrigido" feito em 1919: reprodução da após ter-se questionado quanto à possibilidade de
Mona Lisa com barba e bigode rabiscados a lápis), fazer obras que não fossem obras de arte, Duchamp
com um irreverente jogo de palavras no título, cujo se dispôs a examinar a noção de "Nominalismo
sentido está na maneira de ler rapidamente o nome Pictórico" - o conceito de que a existência da
das letras I, h, o, o, q, em francês: elle a chaud au definição não implica a existência do definido -
cul - "ela tem fogo no rabo"; e Fresh Widow (Viúva nesse caso, que a existência da palavra "arte" não
Fresca), 1920, trocadilho com "french window" implica a existência da arte em si. Redigiu notas sobre
("janela francesa"). Os trocadilhos, como a poesia, o relacionamento entre O Grande Vidro e o
abalam os pressupostos básicos de uma realidade readvmade, onde o Vidro é utilizado como a pedra de
estática e imutável, visto que estão voltados ao toque para a diferenciação entre o readvmade e o
equacionamento de duas realidades distintas. objet-trouvé comum. Como extensão e corolário da
Após alcançar resultados no nível verbal, rejeição de categorias idênticas e opostas,
Duchamp passou a procurar por algo que levasse a considerava importante que nem o readvmade nem o
resultados em nível físico. Formulou inicialmente a Vidro fossem um objet-trouvé. Sua semelhança reside
questão indagando a si mesmo de que modo seria no fato de ambos possuírem a mesma qualidade
possível perder "a possibilidade de reconhecer negativa.
(identificar) dois objetos similares", sendo que essa O primeiro readvmade foi escolhido em 1913; o
possibilidade foi concebida primeiro como puramente ano da aplicação do acaso em Errata Musical e da
mental. Do abalo da capacidade de reconhecimento extensão desse princípio a 3 Cerziduras-Padrão foi
do similar passou ao abalo do reconhecimento de também o ano da Roda de Bicicleta. A palavra
categorias opostas, abolindo, assim, as pOlaridades "readvmade" não foi cunhada antes de 1915, pouco
tradicionais, como direita e esquerda ou interno e depois da chegada de Duchamp a Nova York A
externo. Um paradigma dessas noções teóricas pode descoberta desse novo meio de expressão, ou não-
ser visto em WhV Not Sneeze Rose Sélavv? (Por Oue
Não Espirrar, Rose Sélavv?), de 1921, uma gaiola de
passarinho abarrotada com 152 pedaços de mármore
cortados em forma de cubos de açúcar. Ao levantar a
gaiola, fica-se chocado ao constatar que é bem mais
pesada do que o suposto.
Essa atitude de indiferença, primeiro com respeito
a categorias similares e depois com respeito a
categorias opostas, levou Duchamp a uma posição
descompromissada quanto ao aspecto estético de
uma obra de arte, para a qual reclama a "beleza da
indiferença" e sua atitude mais genérica de não-
envolvimento e suspensão de julgamento. Isso implica
uma falta absoluta de dogmatismo, que Duchamp
expressou com perfeição numa fórmula: "Não há
solução porque não há problema. "28 Encontramos
esse pensamento expresso por Ludwig Wittgenstein:
"Na realidade, os problemas mais profundos não são
problemáticos" já que "a solução do problema da
vida é vista no desaparecimento desse problema. "29
André Breton lembra uma anedota notável que
demonstra o modo pelo qual Duchamp estava
verdadeiramente preparado para viver segundo suas
idéias: "Vi Duchamp fazendo algo de extraordinário:
lançou uma moeda para o alto e disse, 'coroa, sigo
esta noite para a América; cara, fico em Paris'. Não
havia nada de indiferença envolvido, é certo que
preferia infinitamente ir ou ficar ... "30
Em 1913, as dúvidas de Duchamp levaram-no a
perguntar "Será possível fazer obras que não sejam
obras de 'arte'?" Deu a si mesmo uma resposta
afirmativa, elaborando uma variedade de projetos de
obras dotadas da "beleza da indiferença". Assim, fez
planos para o uso da amplitude elétrica numa obra de
arte e o plano encontrou sua realização no Errata Musical/Musical Erratum, 1913, reprodução de 1934

44
expressão, todavia, não levou Duchamp a perder
nada de seu poder de autocrítica. Estava bem alerta
para a armadilha do fácil. "Mas logo percebi o perigo
de repetir indiscriminadamente essa forma de
expressão e decidi limitar a produção anual de
readvmades a um número reduzido." Essa limitação
foi apenas uma dentre as regras estabelecidas por ele
visando a preservar sua liberdade de produção. O
readvmade tinha de ser planejado "pará um momento
por vir (tal dia, tal data, tal minuto) ... Uma espécie de
encontro marcado". Mais ainda, o Readymade
precisava trazer uma inscrição que "ao invés de
descrever o objeto, como num título, pretendia
transportar a mente do espectador em direção a
outras regiões, mais verbais". 31
Foi uma legenda, a propósito, a primeira coisa
descoberta por Duchamp quando decidiu, em janeiro
de 1916, considerar o Woolworth Building um
readvmade. Como, todavia, por um motivo ou outro,
jamais chegou a encontrar a frase que procurava, o
Woolworth Building não pode ser considerado mais
do que um readymade latente. Peigne (Pente)
recebeu seu nome em 1916, um ano depois de o
artista ter concebido um plano para "classificar pentes
por seu número de dentes". Em 1915, propôs
novamente o uso do pente como um "controle
proporcional ( ... ) de outro objeto também formado de
elementos menores", e de investigar a possibilidade
de uma projeção geométrica do pente no espaço; o
título desta nota, Reco-Reco, anuncia o
semi-readvmade de 1916 intitulado A Bruit Secret
(Com Barulho Secreto). Duchamp retorna a esse
tema, alguns anos mais tarde, com um plano de
"fazer um readvmade com uma caixa contendo algo Roda de Bicicleta/Bícvcle Wheel, 1913, réplica de 1
irreconhecível pelo som e soldar a caixa". Em outras
notas, desenvolve idéias que, futuramente, também
seriam formuladas por Christo, em seus A noção revela algo da qualidade do humor
"empacotamentos" de pontes e edifícios, e por constantemente em atividade no trabalho de
Arman, em suas "acumulações". Duchamp planejou Duchamp. E não esqueçamos que o autêntico humor
fazer acumulações de "elementos sim'ilares (stretcher - nas palavras de N imzovich, um grande teórico do
kevs)" ou de "esponjas"; sua idéia de fazer "um xadrez, como o próprio Duchamp - "normalmente
quadro doentio de um readvmade doentio" está contém mais verdade interior do que a mais séria das
ligada ao Readvmade Infeliz, de 1919, o livro de seriedades".33
geometria que seria pendurado no balcão de sua irmã O sentido no qual Duchamp empregou o termo
Suzanne. Seus projetos de "comprar um par de "readvmade" é ao mesmo tempo mais amplo e mais
pinças de gelo como um readvmade" e de fazer estreito do que o sentido assumido pela palavra desde
experiências com a qualidade cortante de lâminas de então. André Breton foi dos primeiros a tentar
barbear jamais foram levados adiante. fornecer-lhe uma definição precisa. Para ele, os
O trajeto da tela para o readvmade foi apenas a readymades eram "objetos manufaturados
primeira metade de um giro completo. Duchamp promovidos à dignidade de objetos (obras) de arte
pensa agora no "readvmade recíproco" - "o uso de através da escolha do artista." 34 Essa definição,
um Rembrandt como tábua de passar roupa." Essa porém, é ainda um tanto genérica em excesso, visto
idéia foi fruto de um desejo "de expor a antinomia que não dá conta de todas as variações e subgêneros
básica entre a arte e os readvmades". E, para fechar passíveis de existência dentro do gênero principal do
o círculo, observa: "desde que os tubos de tinta readvmade. É necessário não tanto faz,er uma
utilizados por um artista são manufaturados e definição, mas, antes, uma série de definições.
produtos readvmade, devemos concluir que todas as A grosso modo, o readvmade pode ser definido
pinturas do mundo são Readymades 'assistidos'. "32 como qualquer entidade comum e elaborada que,
Mas, voltando a Rembrandtr uma observação final unicamente em razão de ter sido escolhida pelo autor,
deve ser feita à luz da noção de Duchamp da "beleza e sem sofrer nenhuma modificação, é consagrada
da indiferença" e à luz de sua atitude radical de não como uma obra de arte. Duchamp enfatizou a
comprometimento. Se a obra de arte e a obra de importância do fator escolha quando, pouco depois
"não-arte" são essencialmente uma, e se o objeto de ter sido acusado de plágio por um grupo de
comum pode ser elevado. e lançado à atemporalidade críticos, por ter exposto Fonte na Society of
por intermédio da escolha do artista, o inverso Independent Artists de Nova York, em fevereiro de
também deve ser verdadeiro. Uma operação 1917, escreveu: " O fato de o Sr. Mutt [pseudônimo
igualmente válida seria retirar um Rembrandt, ou de Ouchamp na ocasião] ter ou não feito a Fonte com
qualquer outra obra de arte, da parede, e transformá- suas próprias mãos, não tem a menor importância.
lo em algo corriqueiro - algo sujeito ao uso, à Ele a ESCOLHEU. Apanhou um elemento da vida
mudança e à destruição final. comum, colocou-o de modo a eliminar seu significado

45
Secador de Garrafas/Bottle Drver, 1914, réplica de 1964

46
utilitário sob o novo título e ponto de vista - criando redigidas notas em pedacinhos de papel e depois
um novo pensamento para aquele objeto" 35 Essas sorteadas (como na receita de Lewis Carrol para
poucas frases sintetizam admiravelmente o significado Alice, em que as notas musicais tomam o lugar das
de sua atitude para com os readymades. O primeiro palavras). A composição musical resultante seria
objeto da obra de Duchamp a encaixar-se em sua cantada por Duchamp e suas duas irmãs mais jovens,
definição é o Porta-Garrafas (ou Secador de Garrafas) Yvonne e Magdeleine. A música, segundo a tradição
de 1914. esotérica, é o substituto alegórico da síntese das
A Roda de Bicicleta, de 1913, pertence mais à polaridades, ou a união dos opostos, em primeiro
categoria do readymade "assistido". Esse tipo de lugar som e silêncio, mas também Terra e Céu e, por
objeto surge quar,do a intervenção do autor restringe- extensão, homem e mulher. Desde os tempos mais
se à mudança do ângulo a partir do qual um elemento remotos, a música desempenha um papel essencial na
é normalmente percebido, mas sem transformar ou realização de cerimônias sacras e ritos esotéricos.
modificar de modo algum o objeto. Outro exemplo Podemos ver, à luz dessas duas observações, a Errata
desse tipo de obra seria a Fonte de Duchamp, de Musical como o precursor vocal de O Grande Vidro
1917, ou o Noel Cacodylate, de Picabia, de 1920, um que, afinal, é também a representação de uma
cordão de sapatos colado a uma tela. O termo cerimônia sacra em que duas polaridades arquetípicas
readymade "assistido" é também aplicável a estão envolvidas: a Virgem (personificada aqui pelas
composições nas quais a intervenção do autor irmãs de Duchamp) e o Celibatário. Do ponto de vista
consiste na elevação do objeto à enésima potência. técnico, a utilização do acaso na criação de uma obra
Se Duchamp tivesse levado a cabo as idéias que de arte teria uma aplicação ainda maior no Vidro.
expressou, nas notas 58 e 59, as.obras resultantes Em verdade, Duchamp, no mesmo ano, começou
pertenceriam a esta categoria. Sua idéia era fazer a a trabalhar num projeto intitulado "acaso enlatado": 3
acumulação de "elementos similares (stretcher keys)" Stoppages-Étalon (3 Cerziduras-Padrão), trabalho que
ou de "esponjas", para serem comprados na rua 10 levaria aos Tubos Capilares, um detalhe-chave da
de Nova York. Essas explicações dadas por Duchamp Máquina Celibatária de O Grande Vidro.
prenunciam, de certo modo, as "acumulações" feitas Duchamp considera esta obra um dos pontos de
desde então por Arman. A idéia essencial é que o guinada de sua vida. "Não foi uma obra de arte
objeto deve ser acrescido a si mesmo, até o momento importante em si, mas para mim abriu o caminho - o
em que uma massa crítica esteja formada, até o caminho para fugir daqueles métodos de expressão
momento em que o último acréscimo determine o que tradicionais por longo tempo associados à arte." De
Hegel chama de passagem da quantidade para a fato, nada poderia estar mais distante do conceito
qualidade. O readymade "retificado" é outra versão tradicional de arte. Duchamp tomou uma grande tela
do gênero obtido quando o autor "retifica" um retangular e pintou-a de maneira uniforme em azul-
readymade. Exemplos: Farmácia (1914); L.H.O.O.Q. prússia. Cortou, então, três pedaços de um metro de
(1919); o Trophée Hypertrophique de Max Ernst linha branca do tipo usado em cerzidura invisível
(1919); Presente de Man Ray (1921) e Suprématie (stoppage em francês, daí o título dessa obra).
Commerciale de Picabia (1922). Colocando-se acima da tela e esticando a linha,
Obtém-se um readymade "retificado e imitado" deixou que esta caísse sobre a tela de uma altura de
quando o autor repete e corrige um readymade. um metro. A forma assumida pelo fio ao encontrar a
Exemplos: _Cheque Tzanck (Cheque Tzanck, 1919), tela foi preservada, fixando-o com verniz. A
Belle Haleine, Eau de Voilette (Bom Hálito, Água de experiência foi repetida três vezes. Duchamp cortou,
Violeta ou Água de Veuzinho, 1921); Obligations pour a seguir, a tela em três faixas retangulares, cada qual
la Roulette de Monte-Carlo (Compromissos para a com seu fio, e colou as faixas em três placas de
Roleta de Monte-Carlo, 1924). vidro.
Finalmente, um "semi-readymade" é obtido 3 Cerziduras-Padrão, definido por Duchamp como
quando o autor elabora uma montagem, que é uma "o metro reduzido", tinha um duplo propósito: criar
combinação de readymades mais ou menos "uma nova imagem da unidade de comprimento" e
modificados: Por que Não Espirrar? .. (1921). O obter uma espécie de "acaso enlatado". As formas
próprio Duchamp emprega esta definição com acidentais assumidas pelas três linhas foram
respeito a Com Barulho Secreto (1916): "Já feito no projetadas na Rede de Cerziduras (1914), constituída
readymade das placas de cobre e do rolo de corda" de nove linhas. Essas linhas, isto é, um fio para cada
Os trocadilhos são tão importantes na obra de um dos Moldes Machos, fornecem, assim, os
Duchamp que podem ser considerados como uma contornos utilizados no tracejo das formas dos Tubos
forma de readymade. O gênero a que pertencem Capilares do Vidro.
esses trabalhos pode ser definido como readymade A idéia de criar uma nova imagem da unidade de
"retificado e pintado", e não deve ser esquecido que comprimento, encaixa-se no projeto de organizar as
muitas das obras de Duchamp são a identificação leis e princípios do Vidro numa "física lúdica"
plástica de um trocadilho - Apolinere Enameled, segundo a qual o Vidro poderia existir como "uma
L. H. O. O. Q., Fresh Widow, La Bagarre de A usterlitz, realidade tornada possível através de uma ligeira
Bell e Haleine ... etc. - ou a projeção futura de sua distensão das leis da física e da química".
realização, como em In Advance of the Broken Arm A Roda de Bicicleta foi elevada ao status de obra
(Á Frente do Braço Quebrado). de arte no decisivo ano de 1913, e podemos
reconhecer, na roda e em seus raios os antecedentes
formais, respectivamente, dos tambores do
2. Os Readymades e O Grande V ro: contemporâneo Moedor de Chocolate n. o 7 e das
lígações veladas e desveladas linhas que percorrem os tambores do Moedor de
Chocolate n. o 2, de 1914. Ambas as obras
Errata Musical, de 1913, é o primeiro e único constituem-se, conforme mencionado acima, nos
exemplo de exploração do acaso a resultar no que primeiros estudos do elemento homólogo do Domínio
pode ser denominado um readymade musical: foram do Celibatário. O utra relação, mais sutil, pode ser

47
Três Cerziduras-Padrão/Trais Stoppages Etalon, 1913-14, réplica de 1964

Três Cerziduras-Padrão/Trais Stoppages Etalon, 1913-14, réplica de 1964

48
estabelecida entre este readymade e o detalhe no
Vidro, se percebermos que, nos dois casos,
encontramo-nos diante de uma "Máquina
Celibatária": lembremos que o herói do Vidro "mói
sozinho o seu chocolate" (nota 140), exatamente do
mesmo modo que andar de bicicleta é uma atividade
solitária.
Diz-se normalmente que o artista se revela a si
mesmo na criação; muitas realizações literárias de
destaque são autobiográficas e, com igual freqüência,
importantes retratos são auto-retratos dissimulados.
Quando Duchamp pede que Porta-Garrafas (ou
Secador de Garrafas), de 1914, À Frente do Braço
Quebrado, de 1915, Porta-Chapéus, de 1917, e Air de
Paris (Ar de Paris), de 1919, sejam observados
pendendo (do teto), faz com que estes compartilhem
do destino do Celibatário (cuja pena por transgredir o
tabu do incesto é a morte por enforcamento) e da
Noiva, que é definida como o "pendu femelle",
identificando inconscientemente, assim, esses
readymades com o Celibatário de O Grande Vidro.
Em 1914, um ano após escolher o readymade
"assistido" Roda de Bicicleta de 1913, Duchamp
escolheu o primeiro readymade "retificado",
Farmácia. No transcorrer de uma conversa gravada,
comentou comigo: "Era ainda a idéia de utilizar algo
existente, mas já diferenciado do outro readymade
que vem um pouco depois, chamado Porta-Garrafas,
que era um objeto manufaturado transformado em
readymade. Farmácia foi manufaturada somente a um
determinado nível. Foi feito por algum artista
desconhecido, que executou uma série de paisagens
como modelo para escolas de arte. U ma paisagem
invernal noturna. Era uma gravura comercial Porta-Chapéus/Hat Rack, 1917, réplica de 1964

Á Frente do Braço Quebrado/In Advance of the


Broken Arm, 1915, réplica de 1964 Ar de Paris/Paris A ir, 1919, réplica de 1964

49
reproduzida em centenas de cópias, possuindo, Duchamp explicou-me que "haveria um verbo, um
assim, o mesmo caráter de um objeto manufaturado, sujeito, um complemento, advérbios e tudo
no sentido da existência de um grande número deles, perfeitamente correto, enquanto tal, enquanto
da mesma forma que existe um grande número de palavras, mas, nessas sentenças, significado era algo
pás de neve no mundo. que precisava ser evitado ( ... ), o verbo pretendia ser
"Schwarz - Por que acrescentou os dois uma palavra abstrata atuando sobre um sujeito que é
elementos? um objeto material; forma o verbo faria a frase
"Duchamp - Para torná-Ia uma farmácia. parecer abstrata. A construção era muito dolorosa,
"Schwarz - U ma referência aos frascos nas num aspecto, pois, no minuto em que pensava de
janelas das farmácias? fato num verbo a acrescentar ao sujeito,
"Duchamp - Sim. Além disso, aquela paisagem freqüentemente enxergava um significado, e tão logo
tinha, na verdade, outra fonte, outra raison d'être, via um significado riscava o verbo e o modificava, até
que emergiu numa viagem a Rouen. Vi aquela que, trabalhando ao longo de um número
paisagem na penumbra dentro de um trem, e no considerável de horas, o texto finalmente podia ser
escuro do horizonte havia algumas luzes, pois as lido sem nenhum eco do mundo físico ... Esse era seu
casas estavam iluminadas, o que me deu a idéia de ponto principal".
colocar aquelas duas luzes de cores diferentes, verde Freud, citando R. M. Meyer, lembra-nos que "é
e vermelha, para criar uma farmácia ou, ao menos, impossível compor nonsense intencional e
aquilo me deu a idéia de farmácia ali mesmo no trem, arbitrariamente", ressaltando que "nada há de
de modo que, quando cheguei a Rouen, no dia arbitrário ou indeterminado na vida psíquica", desde
seguinte, fiz o trabalho a partir da gravura comercial que existem "processos mentais altamente
que encontrei." organizados dos quais a consciência não possui o
Novamente em 1914, Duchamp escolheu o menor conhecimento" 37 Assim, dificilmente causará
Porta-Garrafas, que é seu primeiro readymade no surpresa o fato de Duchamp ser incapaz de reprimir a
sentido completo da palavra, na medida em que não emergência de pensamentos interligados.
foi modificado em nenhum aspecto. Esse item foi Mesmo com o esforço de "evitar qualquer eco do
comprado por Duchamp na loja de departamentos mundo físico", pelo rompimento do padrão lógico das
Bazar de I'Hôtel de Ville pouco antes da eclosão da sentenças, o inconsciente, com sua tenacidade e
Primeira Guerra Mundial. É seu primeiro readymade lógica peculiares, fazia-se presente à mais leve
no sentido completo da palavra, visto que não foi provocação ou relaxamento de censura. É
modificado em nenhum aspecto. O objeto foi perdido interessante notar que os esforços de Duchamp
quando, em 1916, Duchamp pediu, de Nova York, a resultaram numa técnica literária original, que
Suzanne e sua cunhada, que retirassem os pertences encontrou uma expressão renovada, alguns anos mais
de seu estúdio na rue Saint-Hippolyte. O óbvio tarde, na poesia surrealista. Contudo, apesar de o
simbolismo fálico não precisa ser enfatizado, mas é objetivo ser idêntico em ambos os casos (isto é, o
interessante notar que a multiplicação dos cabos, rompimento da seqüência lógica da frase), os
lembrando falos em ereção, encontra paralelo na caminhos que levam a esse fim têm pontos de partida
multiplicação da imagem por Duchamp em Nu distintos. Com os surrealistas, a censura ao
Descendo uma Escada e Nove Moldes Machos. Um consciente é deliberadamente dominada, num esforço
porta-garrafas preenche sua função apenas quando as para alcançar, a nível inconsciente, linhas
mesmas são inseridas nos cabos. O porta-garrafas de indisfarçadas de pensamento; com Duchamp, as
Duchamp jamais recebeu suas garrafas, de modo que linhas inconscientes de pensamento que buscam
esse item parece simbolizar o status celibatário de formulação devem disfarçar-se para dominar a
Duchamp. censura imposta pelo consciente.
Estirado a Quatro Alfinetes, de 1915, foi o primeiro O processo psíquico por trás da técnica de
readymade, escolhido por Duchamp na América, Duchamp corresponde intimamente ao processo
pouco depois de sua chegada a Nova Y ork. Ele básico da vida onírica. Em ambos os casos, o
meramente acrescentou um "colorido verbal", o conteúdo lAtente deve ser disfarçado para dominar a
título, a um ventilador comum de chaminé. O título é censura do consciente. O que torna único o texto de
a tradução literal da expressão idiomática francesa Duchamp é o fato de combinar e conciliar as
"Tiré à 4 épingles", que se refere a alguém muito contradições do devaneio em vigília e do sonho.
bem-vestido. Duchamp era conhecido por sua Consciente e inconsciente parecem dar as mãos no
elegância e o fato de que um ventilador de chaminé que ele uma vez chamou de "um pequeno jogo entre
movimenta-se com o vento pode levar-nos a 'eu' e 'mim'''38
conjecturar que aqui, novamente, o readymade é uma (Para uma decodificação completa do texto dos
alusão disfarçada a sua pessoa: os ventos da guerra postais, veja o meu The Complete Works ... , págs.
realmente determinaram a direção de seu exílio. O 457-460 )
ano seguinte, 1916, foi um dos mais produtivos da O fato de Duchamp na época ser um recém-
vida de Duchamp - cinco readymades foram chegado à América pode ter contribuído para seu
escolhidos e um sexto começado. interesse na exploração das possibilidades que a nova
O primeiro é um readymade impresso, língua poderia oferecer enquanto "colorido verbal"
Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1916 (Encontro novo para seus readvmades. Inclusive, os nomes ou
do Domingo, 6 de Fevereiro de 1916). Duchamp certa títulos da maior parte dos itens escolhidos durante
vez confidenciou a Lebel que gostava de justapor sua primeira estada em Nova York são, também,
"pedacinhos de diferentes artes (por exemplo, escrita experiências lingüísticas nas quais o francês e o inglês
e desenho) sem conexão alguma entre si (ou o menos (duas cores complementares?) são empregados
possível)" 36 Rendez-vous ... apresenta uma das livremente, em justaposições absurdas. É o caso de
primeiras aplicações desse processo à escrita. As Peigne, A Bruit Secrer, ... Pliant ... de Voyage
palavras que formam as frases desse pequeno texto (UnderwoodJ, Apo/inere Énameled e Fresh Widow.
em francês não têm "conexão alguma entre si". A inscrição no pente nada tem a ver com o

50
Encontro do Domingo, 6 de Fevereiro de 1916 .. ./Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1916... ,1916, reprodução de 1941

51
próprio pente, exatamente como as partes (Conversa gravada entre Duchamp e o autor.)
componentes da inscrição não guardam relação
alguma entre si. Essa dissociação trabalha em dois Em Com Barulho Secreto, de 1916, as palavras
níveis e em três dimensões. Temos, assim, mais um inscritas no subtítulo (P.G. Ecide Débarassé - Le
exemplo da prática freqüente de Duchamp de associar Desert. f. urnis. ent/as haw. v. r. cor. ésponds), nada
elementos que nada têm entre si; é uma prática que, mais eram do que "um exercício de ortografia
quando aplicada à linguagem, tem na imagem poética comparada (inglês-francês). Os períodos devem ser
seu produto final. Três notas da Caixa Verde substituídos (com uma exceção: débarrassé [e]) por
antecipam esse item; a primeira se refere de modo uma das duas letras das duas outras linhas, mas na
mais geral ao fato de Duchamp tê-lo datado com mesma vertical em que o período - inglês e francês
grande precisão "planejado para um momento por vir são misturados sem fazer nenhum 'sentido'. Existem
(tal dia, tal data [17 de fevereiro de 1916] tal hora e ainda três setas que indicam a continuidade da linha
minuto [11 :OOJ), 'para inscrever um readymade'" da placa inferior com a outra [superior], ainda sem
(nota 54). As duas outras notas dão conta, mais significado". (Carta de Duchamp ao autor.)
especificamente, do próprio pente: "Classificar pentes Duchamp identifica ... Pliant .. de Voyage (.
por seu número de dentes" (nota 56), e com a Dobrável. .. de Viagem, que possui o subtítulo
possibilidade de utilizar o pente seja enquanto Underwood), de 1916, com uma saia (a da Noiva?) e
"controle proporcional" sobre outros objetos ou como deveria ser exposta num local um pouco alto para
ponto de partida para outras criações (nota 57). Essa induzir o observador a inclinar-se e ver o que está
nota data de setembro de 1915 e antecipa a oculto pela cobertura. Não há nada por baixo,
materialização final do projeto em cinco meses. obviamente. Isso está de acordo com a visão expressa
por Duchamp, "são os observadores que fazem o
Para Duchamp, o Pente era uma "observação quadro."39
acerca do infinitesimal". Outra idéia envolvida nesse item é a da criação de
"Duchamp - Os dentes de um pente não são, uma escultura "leve": uma escultura que possa
realmente, um aspecto importante na vida comum. mudar de forma segundo o desejado, ou também de
Ninguém jamais se importou em considerar o pente um modo incontrolado, escapando, assim, do aspecto
de um tal ângulo. Em outras palavras, quando você estático e congelado da escultura tradicional.
olha para um pente e olha para seu cabelo, você o Duchamp comentou para o autor: "Você tem aqui
utiliza ou não, mas o número de dentes do pente não uma outra vítima da gravidade".
é realmente importante ... Fiquei impressionado por Finalmente, Linde notou que, em La Bolte-en-
essa falta de importância e; assim, a fiz importante Valise (Caixa-em-Va/ise), o modelo em miniatura
para mim ... Suponho que alguns pentes tenham 20 desse item encontra-se ao lado da reprodução do
dentes, alguns 29 ou 28, e essa diferença me levou a detalhe de O Grande Vidro conhecido como Traje da
pensar na classificação dos pentes por seu número de Noiva. "Considerando que a função da Noiva é
dentes, o que é divertido, ou, ao menos, é uma ironia produzir 'u nidades alfabéticas', seria possível enxergá-
como afirmação ... Em muitos pontos pode haver la como uma datilógrafa - e a cobertura ... Dobrável
também um dente quebrado, e isso torna diferente o ... de Viagem (ou Underwood) poderia ser sua roupa.
relacionamento espacial entre dois dentes. Poderia ser Agora, existe apenas um trabalho de Duchamp em
quase comparado a uma secção áurea quando numa madeira (under wood), e este é o 3
relação diferente de comprimento de linhas. Isso é Cerziduras-Padrão. Não é mais uma evidência
sempre muito artificial, mas sempre fui atraído pelo sustentando a visão de que o Traje da Noiva
artificial. representa as três placas de vidro vistas de perfil"40
"Schwarz - Não entendo o relacionamento entre Como mencionado por Linde, as três placas de vidro
o Pente e o Reco-Reco, numa de suas notas [57]. de 3 Cerziduras-Padrão são under wood, porque a
"Duchamp - Bem, o Reco-Reco é um brinquedo caixa de croquê que as contém é feita de madeira.
de criança que faz barulho ao ser girado, e o pente Além disso, a aparência das placas, quando vistas na
torna-se um gerador de espaço, espaço gerado pelos caixa, é muito semelhante àquela das três placas de
dentes. vidro que constituem o Traje da Noiva em O Grande
"Schwarz - Como o cabo do Moedor de Café. Vidro.
"Duchamp - Sim, mas mais que isso, porque o Em fevereiro de 1917, Duchamp enviou um
eixo estaria na extremidade do pente, no lado oposto mictório de louça de banheiro público masculino,
dos dentes, e estes descreveriam uma série de Fonte, para uma exposição organizada pela Society of
círculos que não seriam, de fato, absolutamente nada Independent Artists, Inc., na Grand Central Gallery de
além de um pente em curvas diferentes. Não seria Nova York. A idéia ocorreu-lhe no curso de uma
mais um pente plano, mas um pente curvo. Todas conversa com Arensberg e Joseph Stella, e os três
essas coisas nunca foram mais além do que a saíram imediatamente para comprar o objeto. Tudo o
observação que escrevi ali. Mas há uma possibilidade, que Duchamp fez foi alterar o ângulo de percepção
como falei, de gerar espaço a partir de uma superfície desse objeto, datando-o e assinando R. Mutt 1917 no
plana. Pode-se conseguir com qualquer superfície." lado superior direito, de modo que, para que a

Pente/Comb, 1916, réplica de 1964

52
Com Ruído Secreto/With Hidden Noise, 1916, réplica
de 1964 Caixa-em- Valise/ La Bolte-en- Valise, 1941

Dobrável de Viagem/Traveller's Folding Item, 1916,


réplica de 1964 Caixa-em- Valise/ La BOfte-en- Valise, 1941

53
FontelFountain, 1917, réplica de 1964

assinatura fosse lida, o objeto teria de ser invertido ao Assim, desde o início, houve uma interação de Mutt,
invés de ficar em sua posição usual. A comissão um homenzinho gordo e engraçado, e Jeff: um
organizadora, à qual ele pertencia, colocou o objeto sujeito alto e magro ... Queria qualquer nome antigo.
num local em que dificilmente seria visto, e Duchamp E acrescentei Richard ["sacola de dinheiro", na gíria
desistiu. "Duchamp conta como Walter Arensberg, francesa]. Não é um nome para uma pissotiere.
sabendo do incidente, foi até a Independent Show e Entendeu? O oposto de pobreza. Mas nem tanto
pediu para ver 'a Fonte de R. Mutt'. Os funcionários assim, apenas R. Mutt"41 Duchamp enfatizou que a
chamaram os organizadores. Os organizadores razão de sua escolha "originou-se da idéia de fazer
disseram que nunca tinham ouvido falar da obra. 'Sei uma experiência ligada com o gosto: escolher o
mais do que isso', disse Arensberg. Sua afirmativa objeto que menos chance tinha de agradar. Um
seguinte deixou pasmos os organizadores seus mictório - poucos imaginam que haja algo de
colegas. 'Quero comprá-Ia', disse calmamente. Ainda maravilhoso num mictório. O perigo a ser evitado está
assim, não conseguiram encontrá-Ia. Logo em no deleite estético" 42
seguida, Duchamp e Man Ray, procurando A observação de Duchamp, em 1914, "Tem-se
minuciosamente, descobriram o ofensivo objeto atrás apenas: o mictório por fêmea e vive-se em função
de uma divisória. Chamaram Arensberg, que tirou seu dele" (nota 88) revela a motivação latente em sua
talão de cheques e anunciou que a compraria em escolha de 1917, apontando a castração simbólica
confiança. 'Preencham vocês mesmos o cheque', auto-erótica do mictório e suas implicações
disse ele, pedindo, então, que o mictório fosse trazido hermafrod itas.
e carregado à vista do público, ao longo da galeria Trébuchet (Armadilha), de 1917, pode ser
repleta de gente. Sua coleção de Duchamp, considerado um "trocadilho tridimensional", um
possivelmente a maior do mundo, enriqueceu-se de termo utilizado inicialmente por Duchamp em 1949
um item. Na porta, enquanto Duchamp e Man Ray com referência a uma obra de A rp 43 Dessa vez,
estavam parados, segurando a nova aquisição como empregou um termo do xadrez, trébuchet (oferecer
se fosse uma Afrodite de mármore, Arensberg virou- um peão na esperança que o oponente possa ser
se e, em seu calmo tom de voz, anunciou seu "derrubado"), para definir um cabide que prendeu ao
desligamento da Society of Independent Artists." piso de modo que as pessoas pudessem tropeçar
O pseudônimo adotado por Duchamp pretendia (trébucher). Um pequeno trecho do Ulisses, de
reforçar o valor da escolha· "Mutt vem de Mott Joyce, pode iluminar as motivações internas latentes
Works, nome de um grande fabricante de nesse readvmade: "Ter-lhe-ia servido perfeitamente se
equipamentos sanitários. Mas Mott era muito tivesse tropeçado por acidente em algo
próximo, de modo que o alterei para Mutt, baseado propositalmente, usando seu salto alto francês para
nas 'tiras' diárias 'Mutt e Jeff' que apareceram na fazê-Ia parecer alta e levar um belo tombo. Tableau!
época, e com quem todos estavam familiarizados. Teria sido uma apresentação muito encantadora a ser

54
Armadilha/Trébuchet, 1917, réplica de 1964

testemunhada por um cavalheiro como aquele" 44 cordas, ao balcão de seu apartamento; o vento
Na pintura Tu m' (Tu m') percebem-se as sombras passaria pelo livro, escolheria os problemas, arrancaria
lançadas por dois readymades (a Roda de Bicicleta e fora suas páginas e as rasgaria. Suzanne pintou uma
o Porta-Chapéus), assim como o de um saca-rolhas. pequena tela sobre o tema: Le Readymade Malhereux
Assumindo que o saca-rolhas poderia ser também um de Marcel (O Readymade Infeliz de Marce/). Foi tudo
readymade, escrevi a Duchamp pedindo informações. o que restou do objeto, visto que o vento o dilapidou.
Duchamp respondeu: "Pode-se considerar a sombra A idéia de introduzir o conceito de feliz e infeliz nos
do saca-rolhas como um readymade, em vez do Readymades me pareceu divertida, e a chuva, o vento
próprio saca-rolhas. Nenhuma inscrição no saca- e as páginas a voar também eram uma idéia
rolhas. Data: os seis primeiros meses de 1918". divertida"45 Exposto, assim, à intempérie, "o trabalho
Esse é o elemento mais imaterial da obra de sofreu seriamente os fatos da vida" .46
Duchamp. Tão imaterial quanto o emprego da "Sabia que cairia chuva, que o vento sopraria e
amplitude elétrica numa obra de arte (nota 39). Caso que o livro se sentiria infeliz por estar ao ar livre
não tivesse sido utilizada na pintura Tu m', nenhum daquele jeito" (para o autor). Já discutimos a
de seus traços teria restado. U ma nota da Caixa identificação de Duchamp com sua criação, e o fato
Verde sugere a importância desse item: os planos de de que o estado desse readymade sugeria os
fluxo do Tobogã, um detalhe não realizado de O sentimentos de Duchamp à época, assim como seu
Grande Vidro, deveriam ser na forma de um saca- desejo de relembrar S uzanne da intimidade maior de
rolhas (nota 118). seus tempos escolares. A escolha do presente por
O Readymade Infeliz, de 1919, era um livro Duchamp salvou-se de assumir um caráter pouco
didático de geometria pendurado do lado de fora de condizente com sua atitude não romântica, tanto pelo
uma janela pela irmã de Duchamp, Suzanne. O toque de humor, evidenciado por esse trocadilho
original foi destruído e suas dimensões não estão tridimensional com o conceito da geometria espacial,
registradas. A primeira referência indireta a esse item como pelo interesse idêntico em desacreditar "da
pode ser encontrada no projeto de Duchamp para seriedade de um livro repleto de princípios" 47
fazer um "quadro doentio de um readymade doentio" A relação de L.H.O.O.Q. de 1919 (uma
(nota 61). O projeto foi concretizado quando reprodução comum da Mona Lisa de Leonardo, à qual
Duchamp encontrava-se em Buenos Aires. Com a Duchamp acrescentou, a lápis, um bigode e um
intenção de fazer um presente de casamento para sua cavanhaque), com a Noiva de O Grande Vidro pode
irmã Suzanne, que acabava de se casar, em abril de ser sintetizada numa prática popular de Argos, em
1919, com o pintor dadaísta Jean Crotti, Duchamp que as noivas costumavam colocar uma barba postiça
escreveu-lhe para Neuilly dando instruções para a em sua noite nupcial (Plutarco, As Virtudes da
preparação desse presente de casamento. "Ela Mulher). O acréscimo da barba e do bigode à
deveria prender um livro de geometria, através de reprodução não era apenas um gesto iconoclasta;

55
L.H.O.O.Q., 1919, réplica de 1964

56
enfatizava, novamente, a predileção de Duchamp pelo Um artista normalmente começa com tinta, tela ou
indeterminado. Suspeita-se, com freqüência, que a qualquer outra superfície, e pincéis. Neste caso, algo
Mona Lisa seja o retrato de um jovem; Duchamp, já existente (uma janela) é utilizado c.omo ponto de
acrescentando barba e bigode, transforma a Mona partida para o que poderia tornar-se uma série
Lisa num travesti "com fogo no rabo". Pouco depois, infindável de variações sobre o tema básico (na
Duchamp escolheu para si próprio um pseudônimo verdade, somente uma única variação foi feita sobre o
feminino (Rose Sélavy). O trocadilho desse nome, o tema da janela: La Bagarre d'Austerlitz [Tumulto em
momento em que foi escolhido (logo após o término Austerlitz}). Duchamp disse ao autor: "Em vez de ser
da Primeira Guerra Mundial), as muitas implicações considerado um pintor, gostaria, naquela ocasião, de
derivadas desse gesto, tudo tende a confirmar o fato ser imaginado como um fenêtrierf" A última palavra,
de que mesmo os atos mais simples de Ducnamp um neologismo intraduzível, deveria transmitir a idéia
guardam em si um conteúdo maior do que o aparente de um "janeleiro" - não um artífice de janelas, mas
à primeira vista. alguém preocupado com os possíveis
Para pagar a seu dentista, Daniel Tzanck, pelo desenvolvimentos pelos quais uma janela pode passar.
tratamento recebido, Duchamp deu-lhe uma versão Em resposta a uma pergunta colocada por Serge
bastante aumentada e pessoal de um cheque com a Stauffer, Duchamp escreveu que era guiado pela
soma exata devida. Essa questão teve para Duchamp "idéia (sempre) de fazer algo que não pudesse ser
um aspecto não meramente humorístico, mas chamado de quadro (nesse caso, 'fazer janelas')."
também um grande significado enquanto gesto. O Resumindo, nas próprias palavras de Duchamp: "Algo
estudo preliminar do cheque mostra a maneira como que já existe (não necessariamente um objeto
foi cuidadosamente planejado e desenhado. manufaturado) serve como ponto de partida para
Posteriormente, comprou de volta esse cheque do elucubrações". O simbolismo da castração nesse item
dentista, por uma quantia superior àquela pela qual fica claro se lembramos que o termo coloquial francês
fora desenhado. Como foi ressaltado por Michel para guillotine é "janela". Assim, essa "janela
Leiris, isso é também uma forma irônica de afirmar francesa" pode ser uma metáfora da vagina dentata,
que o valor comercial de uma obra de arte deriva que pode ser reconhecida num detalhe da Noiva de O
enormemente, em nossos dias, da assinatura do Grande Vidro. Janelas, evidentemente, são símbolos
artista 48 sexuais ambivalentes. Freud percebeu que
Fresh Widow, de 1920, pode ser considerado um representam os orifícios do corpo. Nesse sentido, o
trocadilho dimensional (Fresh Widow / French tema da castração, nesse item, é enfatizado não
Window!. O trocadilho, porém, não termina no título. apenas pelo significado manifesto da janela (a
Estende-se da esfera verbal para a plástica. O couro guillotine) , como também pelo simbolismo latente da
preto e polido sobre os painéis da janela induz o janela (o órgão sexual). O adjetivo fresh (fresco),
observador a acreditar que o ambiente para o qual a então, define perfeitamente um órgão sexual
janela se abre esteja às escuras, um ardil repetido em masculino que não se detém diante do incesto e que,
Por Que Não Espirrar, Rose Sélavy?, em que as portanto, sofre a penalidade reservada aos
peças de mármore dão a ilusão de serem torrões de transgressores desse tabu - a castração.
açúcar. A idéia subjacente a esse processo é, O fato de Fresh Widow ser o primeiro item da
obviamente, a mesma que está por trás da metáfora obra de Duchamp a ser assinado com um
poética. pseudônimo feminino parece confirmar o simbolismo
Aqui, Duchamp fornece mais evidências de seu da castração no trabalho. A origem desse
desejo de romper completamente com toda ortodoxia. pseudônimo e a razão da nova grafia de Rose com

/ 11J

t t

l/f:
Cheque Tzanck/Tzanck Check, 1919

57
Por Que Não Espirrar, Rose Sélavy?/Why Not Sneeze Rose Sélavy?, 1921, réplica de 1964

erre duplo (adotado pela primeira vez em 1921 no gaiola com cubos de açúcar chama-se Por Que Não
Tumulto em Austerlitz) foi discutido em meu The Espirrar ... ? e, obviamente, o título parece estranho,
Complete Works ... , págs. 587-88. na medida em que não há, realmente, relação alguma
Pqr Que Não Espirrar, Rose Sélavy?, de 1921, foi entre cubos de açúcar e um espirro ... Inicialmente, há
encomendado por Dorothea Dreier, irmã de Katherine o hiato da dissociação entre a idéia de espirrar e a
S. Dreier. Duchamp recebeu carte blanche, de outro idéia de ... 'Por que não espirrar?' pois, afinal, você
modo não teria aceito a incumbência. Contudo, a não espirra deliberadamente; normalmente você
gaiola de pássaros não agradou a nenhuma das irmãs espirra à revelia. Portanto, a resposta à pergunta 'Por
Dreier, que pediram a Duchamp que a vendesse. que não espirrar?' é simplesmente que você não pode
Cerca de três anos depois, Walter Arensberg adquiriu espirrar por querer! E, depois, há o aspecto literário,
esse item por 300 dólares, soma que havia sido paga se é que posso chamar assim ... mas 'literário' é uma
por Dorothea Dreier, que recebeu, então, seu dinheiro .palavra tão idiota ... não quer dizer nada ... mas, de
de volta. qualquer modo, há o mármore com sua frieza, e isso
Os cubos de mármore parecem torrões de açúcar, significa que você pode até dizer que está com frio,
de modo a perder-se "a possibilidade de reconhecer por causa do mármore, e todas as associações são
dois objetos similares" (nota 31), têm também permitidas" 49
"densidade oscilante" (nota 130); quando se ergue a Em Bom Hálito, Água de Violeta/Veuzinho, de
gaiola, esta, surpreendentemente, é bem mais pesada 1921, Wanted/$2000 Reward (Procurado/$2000 de
do que se teria imaginado, "é verdadeiramente essa Recompensa), de 1923, e em Compromissos Para a
densidade oscilante que expressa a liberdade da Roleta de Monte Carlo, de 1924, a foto de Duchamp
indiferença" (nota 130). A "liberdade da indiferença" é o ponto de partida para um readymade "retificado"
é um tema a que Duchamp retoma com freqüência; Nos três casos, a referência ao Celibatário de O
nesse caso, é também representado pelo ponto de Grande Vidro é bastante clara.
interrogação ao fim da sentença na base da gaiola. A Bom Hálito ... , é um exemplo de combinação de
gaiola incorpora, também, um termômetro, a ser um readymade "assistido" e "retificado" com um
utilizado para medir a diferença de temperatura entre "trocadilho tridimensional". O ponto de partida foi o
os frios cubos de mármore e os torrões de açúcar, rótulo de um vidro de perfume (Rigaud, Paris),
mais quentes. Contém, além disso, um osso de siba trazendo as palavras un air qui embaume. Quando
(molusco marinho, também chamado sépia, do qual Duchamp e Man Ray concluíram seu trabalho nesse
se obtém uma tinta escura usada em artes plásticas), rótulo, pouco restou do original, exceto o desenho
para deixar claro que se trata de uma gaiola onde se geral. Un air qui embaume foi substituído pelo
colocam passarinhos ou outros animais. trocadilho Belle Haleine/Eau de Voilette, e as iniciais
Numa entrevista à televisão francesa, Duchamp de Rigaud pelas de Duchamp (R.S.: Rrose Sélavy)
fez o seguinte comentário acerca de sua obra: "A vistas num espelho ("retorno espelhado"), e o

58
Um Cartaz Dentro de Um Cartaz/ A Poster Within a
Poster, 1963 Rrose Sélavv, 1939

endereço original (Paris) foi estendido, tornando-se


Nova York/Paris. O retrato no rótulo original foi
substituído por uma foto, feita por Man Ray, de
Duchamp vestido de mulher. A reprodução dessa
colagem foi utilizada na capa do New York Dada em
1921 e como substituto do rótulo original num
legítimo frasco de perfume Rigaud.
Este item é o primeiro no' qual Duchamp aparece
fotografado sob esse disfarce de mulher, e surgiu
poucos meses depois de Fresh Widow, primeiro item
assinado por Duchamp com seu pseudônimo
feminino.
Desse ponto em diante, veremos freqüentemente
Duchamp disfarçado de mulher. Além das obras
descritas neste Catálogo, há diversas outras
oportunidades em que ele pôs em evidência essa
inclinação. Por exemplo, o "retrato imaginário" que
escolheu para si em First Papers of Surrea/ism é o de
uma velha senhora. Em um de seus trocadilhos,
alterou a fórmula usual de conclusão de cartas em
francês, Mes salutations tres distinguées para Mes
salutations tres Mistinguett, adotando a identidade da
célebre atriz do music-hall.
Numa foto tirada em 1921, o cabelo de Duchamp,
na parte de trás da cabeça, aparece cortado numa
forma de estrela - um estilo que lembra a tonsura
dos padres católicos. O corte de cabelo é um
substituto simbólico da castração. O destino de
Sansão, a calvície dos hierofantes egípcios, a tonsura
dos padres católicos e monges budistas são
exemplares nesse aspecto. As motivações
psicológicas da escolha de Duchamp por um
pseudônimo feminino, e sua propensão para adotar
Obrigação de Monte Carfo/Monte Carfo Bond, 1924 uma identidade feminina também pode ser

59
conseqüência de um sentimento inconsciente de
culpa (quando está envolvida a castração), assim
como do esforço para alcançar uma personalidade
integrada, em termos junguianos, de realizar a
individuação, quando está envolvida a androginia. Em
Compromissos Para a Roleta de Monte Carla, o
Celibatário assume um aspecto de fauno, enquanto
que no Procurado ... , além de ser um transgressor da
lei, também assume, novamente, uma identidade
feminina (a última linha do cartaz especifica que o
criminoso é também conhecido como Rrose Sélavy).
Porte, 11, Rue Larrev (Porta, Rua Larrev, 11), de
1-927, é outro item que ilustra a "liberdade da
indiferença" de Duchamp e sua rejeição às soluções
precisas. "Não há solução porque não há problema."
Jean van Heeckeren e Jacques-Henry Lévesque
comentaram esse item pela primeira vez em 1933:
"No apartamento que Marcel Duchamp construiu
inteiramente por conta própria, há, no estúdio, uma
porta de madeira natural que dá para o quarto.
Quando essa porta se abre para que se entre no
quarto, fecha a entrada para o banheiro; e quando
aberta para que se entre no banheiro, fecha a entrada
para o estúdio; está pintada de branco num dos
lados, como o banheiro. 'Uma porta deve estar aberta
ou fechada', pareceu-me sempre uma verdade
insofismável; mas Duchamp conseguiu construir uma
porta que ficava ao mesmo tempo aberta e
fechada" . 50
Portas, em geral, representam uma ambigüidade
fundamental, uma síntese de chegadas e partidas.
Duchamp observou que a porta deriva seu nome de
Jano, de dupla face. 51
E 8achelard observou que há dois seres na porta.

l
:1
I
II11
J

Fechadura de Segurança com Colher/Verrou de Porta: Rua Larrev, lI/Doar: 11, Rue Larrev, 1927,
SOreté à la Cuiller, 1957 réplica de 1963

60
Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1943 Homenagem a Caissa/Homage to Caissa, 1966

"O homem é aberto apenas parcialmente ... A Porta! d'Échecs (Retrato de Jogadores de Xadrez), de
A porta é todo um cosmos do É dezembro de 1911, onde e Raymon
sua imagem primitiva, a origem de um devaneio em são novamente retratados. No ano
que os desejos e as tentações se acumulam, seguinte, um Rei e uma Rainha de xadrez míticos são
tentações de revelar as dimensões mais profundas do o tema de uma série de esboços que culminaram
ser, desejo de conquistar todos os seres reticentes ... numa das de Duchamp, O Rei e a
E, então, para que e em direção a quem as Rainha Cercados de Nus Velozes, de 1912,
portas? para o mundo dos homens ou para atualmente no Philadelphia Museum of Art.
o mundo da solidão?"52 O significado Em agosto de 1952, durante o banquete da
fundamentalmente andrógino da porta que não está Associação de Enxadristas do (New YorkState Chess
nem aberta nem fechada ainda mais claro se Association), Estado de Nova York, Duchamp
tivermos em mente o simbolismo sexual de portas e declarou: "Objetivamente, um jogo de xadrez parece
quartos. muito com um desenho a com a
Três de seus últimos readymades - os dois diferença, contudo, de que o jogador de xadrez pinta
Xadrez de Bolso, de 1943 e e Hommage à com formas em preto e branco já preparadas, ao
Caissa (Homenagem a Caissa), de 1966, retomam um invés de inventar formas, como no caso do artista. O
tema de sua juventude. desenho assim formado sobre o tabuleiro não possui,
Uma de 1904 de Villon, mostrando aparentemente, nenhum valor artístico visual, sendo
Marcel jogando xadrez com sua irmã Suzanne, é uma mais parecido a uma partitura musical, que pode ser
evidência de que a paixão de Duchamp por esse jogo tocada repetidas vezes. A beleza no xadrez não
começou bem cedo. Tinha dezoito anos em 1904, parece uma experiência visual, como é a pintura. A
mas suas lembranças datam sua primeira partida de beleza no xadrez está mais próxima da beleza na
xadrez com a idade de treze anos, quando seus poesia; as peças de xadrez são o alfabeto de madeira
irmãos simultaneamente a pintura e o que dá forma a pensamentos; e esses pensamentos,
xadrez. embora configurando um desenho visual no tabuleiro,
Jogadores e peças de xadrez são um tema expressam sua beleza de maneira abstrata, como um
constante na obra de Duchamp. Uma de suas poema. Na verdade, acredito que cada jogador de
primeiras e grandes pinturas, a maior que já executara xadrez experimenta uma mistura de dois prazeres
até então, La Partie d'Échecs (O Jogo de Xadrez), de estéticos, .primeiro, a imagem abstrata, afim da idéia
1910, retrata seus dois irmãos jogando uma partida no poética da escrita e, segundo, o prazer sensual da
jardim de Villon em Puteaux. Durante o mês de execução ideográfica daquela imagem nos tabuleiros.
outubro de 1911, seis estudos preliminares abriram o A partir de meu contato pessoal com artistas e
caminho para as duas pinturas a óleo Les Joueurs jogadores de xadrez, cheguei à conclusão pessoal de
d'Échecs (Jogadores de Xadrez) e Portrait de Joueurs que, enquanto nem todo artista é um jogador de

61
xadrez, todo jogador de xadrez é um artista". xadrez é "socialmente mais puro do que a pintura,
Esta última afirmação, de que todo jogador de pois não se pode ganhar dinheiro com o xadrez".55
xadrez é um artista, remete-nos de volta a uma Em outra ocasião, enfatizou: "0 xadrez não possui
tendência básica na obra de Duchamp, responsável nenhuma destinação social. Isso é o que para mim é
por seu envolvimento com os readymades e os especialmente importante".56 Tanto quanto o fato de
conceitos correlatos de supressão das distinções entre que "ao fim do jogo você pode anular a pintura que
arte e vida e entre o artista e o leigo. Podemos está fazendo".57 Estas últimas palavras antecipam
perceber aqui, novamente, a força da dupla inclinação toda a tendência da arte moderna que encontrou um
de Duchamp por categorias indiferenciadas e por de seus primeiros expoentes depois da guerra, em
atividades criativas que ampliam o conceito tradicional Tinguely, e sua escultura autodestrutiva exposta nos
de arte. Essa atitude pode, também, derivar do estilo jardins do Museum of Modern Art, de Nova York,
de vida não restrito e não restritivo de Duchamp - março de 1960. A atividade de Duchamp, é claro, tem
um estilo determinado pela consciência da servidão coerência com sua indiferença, desde muito tempo
imposta ao indivíduo pelas obrigações sociais. A declarada, às formas tradicionais da arte.
contestação global de Duchamp a essas obrigações O fator tempo é tão importante no xadrez como
dirige-se contra categorias pré-constituídas, seja no na alquimia ou nos escritos esotéricos. No xadrez, o
plano prático ou semântico. simples fato de o Branco ter o movimento inicial,
Vimos que os readymades e O Grande Vidro são o determina toda a estratégia do jogo - agressiva para
resultado final da intenção de Duchamp de afastar-se o Branco, defensiva para o Preto. A perda de um
do aspecto físico da pintura, na crença de que esta lance, de um andamento, pode facilmente levar à
deveria ser posta novamente a serviço do derrota. Na alquimia, o problema da conquista da
pensamento. Para Duchamp, o xadrez bem pode ser Pedra Filosofai se reduz à procura dos meios para
o melhor exemplo dessa forma livre e desinteressada acelerar o ritmo evolutivo natural do chumbo. O
de arte mental. "Há uma finalidade mental implícita alquimista está convicto de que se dando ao chumbo
quando se olha para a formação das peças sobre o o tempo adequado, este eventualmente irá
tabuleiro. A transformação do aspecto visual em "transformar-se" em ouro. Os ensinamentos mais
massa cinzenta é o que sempre acontece no xadrez e esotéricos estão novamente ligados ao tempo, na
deveria sempre ocorrer na arte. "53 "A imaginação do medida em que a doutrina almeja mostrar o caminho
movimento ou do passo é o que produz a beleza para a duração infinita da vida humana. O xadrez
nesses casos. Está completamente em nossas massas pode ser, então, uma espécie de projeção secular, no
cinzentas. "54 O jogo de precisão envolvido no xadrez plano lúdico, das disputas míticas e dos jogos sacros
é um aspecto da "beleza da precisão", que Duchamp freqüentes nos escritos esotéricos.
advoga para a arte. E, nesse aspecto, o xadrez O xadrez enquanto arte (que é ao mesmo tempo
também pode ter fornecido a resposta afirmativa à um jogo para iniciados) fornece o modelo metafórico
pergunta de Duchamp: "Será possível fazer obras que ideal para a vida e a obra de Duchamp.
não sejam obras de arte?" A capa desenhada por Duchamp para o catálogo
Percebemos a relutância de Duchamp em buscar o da exposição Le Surrealisme en 1947, assim como
lado utilitário de suas atividades. Podemos ver nessa para o Couple of Laundress's Aprons (Par de Aventais
atitude outro ponto de contato entre o xadrez e os de Lavadeira), de 1959, lembram nova e
readymades. Em ambos os casos, o resultado da inequivocamente a Noiva e o impulso exibicionista do
atividade criadora não deveria ter nenhuma destinação Celibatário. No primeiro caso, o peito róseo de
social, nem garantir retorno financeiro algum. O espuma e borracha (de um jogo de readymades

p
DE
()[

Capa para o Catálogo "Le Surréalisme en 1947"/Cover for the Catalog "Le Surréalisme en 1947"

62
Par de Aventais de Lavadeira/Couple of Laundress's Aprons, 1959

Agua e Gás em todos os Andares/Water & Gas on


Every Floor, 1958 Bouche-Evier, 1964, edição de 1967

63
"falsos") é acompanhado da injunção Priere de
toucher, que o Celibatário não pode levar a cabo no
Vidro, desde que se encontra separado da Noiva por
três faixas paralelas de Vidro que separam a Noiva do
Domínio do Celibatário (haverá uma alusão tripla, nas
três faixas de Vidro afiadas, à espada de Tristão que o
separa de Iso Ida ?)
No Par de Aventais de Lavadeira, os dois
protagonistas da saga de O Grande Vidro, engajam-se
numa enérgica atividade exibicionista.
Os três últimos readymades de nosso interesse
ampliam as características dos três elementos-chave
do Domínio do Celibatário. Gilet (Colete), de 1958, foi
preparado para um leilão em benefício do poeta
surrealista Benjamim Péret. O colete, com listras
vermelhas e pretas, é o típico libré usado por ".
camareiros e sua forma lembra um dos Moldes
Machos do Celibatário no Cemitério de Uniformes e
Librés.
O segundo readymade, Eau et Gaz à tous les
Étages (Água e Gás em todos os Pavimentos), de
1958, é o fac-símile das piacas esmaltadas que
costumavam ser afixadas na França, no início do
século, nos novos edifícios, indicando a existência
dessas duas comodidades. Somos novamente
remetidos de volta ao tempo em que o desejo do
Celibatário pela Noiva é despertado. Além disso, água
e gás de iluminação têm papel dos mais importantes
no Vidro. Água é a força motora do Moinho d'Água,
cuja função é ativar as castradoras tesouras no alto
do Moedor de Chocolate. O Celibatário viaja pelos
Tubos Capilares sob forma de gás de iluminação, a
caminho da área dos Nove Tiros, onde seus desejos
encontrarão os da Noiva. As sete manchas de Quatro Readymades/Four Readymades, 1964

Bouche-Évier (Boca-Pia), de 1964, lembram


vagamente a configuração dos nove tiros no Vidro.
Se nos lembramos que a função dessa rolha era a de
impedir o escoamento da água para fora do chuveiro
de Duchamp, percebemos que o Celibatário almeja,
inconscientemente, impedir que a água chegue ao
Moinho.
Ao ler as provas de The Complete Works ...
Duchamp exclamou: "De fato, em toda minha vida,
como você acertadamente ressaltou, não fiz mais que
uma obra, O Grande Vidro". (pág. 140) Tentei, com
essas observações preliminares, demonstrar essa
afirmação e evidenciar a notável continuidade da
atividade criadora de Duchamp.

P.S. Mareei Duehamp: o


Homem, Mesmo
No início dos anos 50, eu tinha um sonho
inquietante ligado a alguém que nunca encontrara
fisicamente, mas que perseguira meus pensamentos
pelos dez anos anteriores. Compartilhei minha visão
com aquela pessoa, e Duchamp respondeu
prontamente, embora eu lhe fosse um completo
estranho na época.
Começou, assim, um relacionamento que me
levou, em 1956, a começar a trabalhar num projeto,
concluído dez anos depois, com um ensaio publicado
em 1967 numa edição limitada, ilustrado por uma
extraordinária série de águas-fortes. Quando Harry
Abrams lançou a edição comercial, em 1969, Mareei
nos deixara havia um ano.
Estirado a Quatro Alfinetes/Tiré à Quatre Epingles,
As obras e as palavras de Duchamp persistiram
1959

64
mundo de lógica polarizada; colocado entre os
ditames das falsas antinomias, recusava-se a fazer
uma escolha definitiva entre valores mutuamente
exclusivos, preservando, assim, sua independência
espiritual. A vida continuamente nos coloca em
situações alternativas, entre duas portas em que em
ambas se lê Entrada e em nenhuma se lê Saída.
Duchamp inventou a porta que não está nem aberta e
nem fechada.
A inconsistência é mais praticada do que
proclamada. Fez-me a seguinte observação certa vez:
"Veja, não quero ficar preso a nenhuma posição.
Minha posição é a ausência de uma posição, mas, é
claro, não se pode nem falar a respeito; no instante
em que você fala estraga todo o jogo." Prosseguindo,
agora discutindo arte, acrescentou: "A pintura é uma
linguagem própria. Não se pode interpretar uma
forma de expressão com outra forma de expressão."
Embora o que tenha sido dito aqui dê a impressão
de que, em sua atividade artística ou poética,
Colete/Waistcoat, 1958 Duchamp tivesse uma atitude livre, não é preciso
lembrar que, quando sua imaginação criadora estava
em meus olhos e povoaram minha mente desde 1942 em funcionamento, nada era deixado ao acaso ou à
- tinha dezoito anos e começava a observar obras de improvisação. Até mesmo a escolha de um
arte com a surpresa de Alice no País das Maravilhas. readvmade era regulada por normas estritas e sujeitas
La Phare de la Mariée, de Breton (que lera muitos a um complicado ritual; isso para não mencionar as
anos antes de sua primeira publicação na edição de centenas de notas e estudos preliminares que
1935 do Minotaure) , foi minha primeira iniciação nos precederam e acompanharam a elaboração de O
Mistérios de MareeI. Grande Vidro.
Mencionei alhures o modo como a observação de Ser um poeta, para Duchamp, era, no mínimo, tão
Bachelard sobre a alquimia enquanto uma ciência de importante quanto ser um artista. Personificou, com
celibatários, de iniciados, levou-me a verificar se, num mais consistência do que qualquer outro artista que
mundo pragmático, prosaico e fragmentado como o eu conheça, o conceito do homo faber em sua
nosso, uma avenfura irracional, poética e holística conotação mais abrangente de poeta, artista e
ainda poderia ser vivida. Cheguei à conclusão de que artífice; três palavras que, a propósito, eram
ninguém senão Duchamp poderia ser seu herói; sinônimos perfeitos na antiga Grécia (poietes
nenhuma obra senão O Grande Vidro poderia alcançar designava tanto o artífice quanto o poeta, exatamente
a complexa transparência da Pedra FilosofaI. como demiurgàs era ao mesmo tempo o artista e o
Trabalhei, ao longo de anos, próximo a Mareei e poeta) e na India Sânscrita (Karaka refere-se ao artista
experimentei algumas das emoções mais e ao artífice). D uchamp consegu iu transceder o poeta
enriquecedoras que uma amizade pode oferecer. Ele e o artista no demiurgo que, unicamente por sua
era, sob todos os aspectos, um maitre-à-penser; para decisão, pode salvar da banalidade o objeto pronto
mim era mais ainda, ouso dizer que era um guru, no (readvmade) e comum, e elevá-lo ao nível de uma
sentido indiano da palavra. Ele, evidentemente, não obra de arte.
gostaria de ser chamado assim, e certamente não se A arma favorita de Duchamp para destruir
considerava nem um nem outro. absolutos e certezas era o humor; ser humorístico era
Sua simplicidade era um modo de ser; a modéstia outra maneira de reafirmar sua liberdade, de defender
nunca foi uma "pose" para ele, mas sim algo natural o individualismo. Uma pessoa "séria" é uma pessoa
como sua respiração. Era generoso e compreensivo; consistente e a consistência leva ao fanatismo,
se você lhe expunha algum problema, ele se enquanto a inconsistência é a fonte da tolerância.
interessava verdadeiramente, participava e tornava-se Através do amor, Duchamp aboliu, também, a
imediatamente perceptivo. Seu conselho podia não diferença entre o que possui uma qualidade estética e
ser sábio e sua preocupação jamais seria visceral. o que não possui. Sua "ironia de afirmação" levou
Ainda assim, suas maneiras eram discretas, na mesma naturalmente à "beleza da indiferença".
medida em que seus sentimentos eram secretos. Mantinha um agudo senso de humor em todas as
O calor de sua amizade desafiava o tempo, a circunstâncias - mesmo em sua morte. Uma última
distância e diferenças ideológicas. Duchamp lembrança. A noite de 1. o de outubro de 1968 foi
sobreviveu a Picabia e Breton, que, juntamente com particularmente agradável - ele jantara em sua casa
Man Ray, foram seus mais antigos amigos. Em ambos em Neuilly, na companhia de Man Ray e de Robert
os casos, encontrou as palavras mais tocantes para Lebel. Aconteceu súbita e calmamente, pouco depois
lembrar suas partidas. Numa cópia de um livro que de seus convidados terem ido embora. Estava pronto
dedicou a Man Ray, escreveu: "A Man, en éternelle a recolher-se e seu coração simplesmente parou de
amitié" ("Para Man, com eterna amizade") e, nesse bater à uma e cinco da manhã. Encontrei-o, naquela
caso, a palavra éternelle não soava afetada. manhã, deitado em sua cama. Belo, nobre e sereno.
Uma atidude constante de tolerância, de não Apenas levemente mais pálido que o normal. Um
comprometimento, de inconsistência alegremente sorriso brando nos lábios. Parecia feliz por ter
aceita - que Keats definiria melhor como pregado sua última peça na vida, saindo à francesa.
"capacidade negativa" - era o resultado de seu
anseio exigente e imperioso de liberdade. Duchamp Milão, junho de 1987
estava ciente de que o mundo dos valores não é um Arturo Schwarz

65
Notas
1. Citado em meu The Complete Works of Mareei 18. Idem, págs. 238-39.
Ouehamp (Nova York, Harry Abrams, 1969, 19. Veja o catálogo First Papers of Surrealism.
pág. 39), daqui em diante abreviado: The Coordinating Couneil of French Relief Societes,
Complete Works ... Inc., Nova York, 14 de outubro-7 de novembro
2. Idem, pág. 143. de 1942, não paginado.
3. James Johnson Sweeney, "Eleven Europeans in 20. DURAND, op. cit., pág. 116.
America", The Museum of Modem Art Bulletin 21. FRANGER, Wilhelm. The Millennium of
(Nova York, XIII, n.os 4-5,1946, pág. 20). Hieronymus Bosch. Londres, Faber and Faber,
4. Marcel Duchamp entrevistado por Laurence Gold 1952, pág. 138.
em "A Discussion of Marcel Duchamp's Views 22. SWEENEY, op. cito
on the Nature of Reality ... ", tese de 23. Marcel Duchamp, citado por I<atharine I<uh, op.
doutoramento não publicada, Princeton cit., pág. 81.
University Press, 1958, pág. 111. 24. Marcel Duchamp, citado por William C. Seitz,
5. "Le Phare de la Mariée", em Minotaure (Paris, 11, "What's Happened to Art? .. ", Vogue (Nova
6, inverno de 1935, pág. 9). York, nO 4, fevereiro de 1963, pág. 113).
6. DUCHAMP, Marcel. Notes and Projeets for the 25. The Complete Works ... , op. cito
Large Glass. Seleção, organização e introdução 26. LEGRAND, Gérard. "Sur Oedipe", L'Arehibras
de Arturo Schwarz (Nova York, Harry Abras, (Paris, nO 3, março, 1968)
1969). 27. JUNG, C.G. "On the Psycology of the Trickster
7. JUNG, C.G. Man and His Symbols. Londres, Figure", in The Trickster, de Paul Radim (Nova
Aldus Books, 1964, pág. 28. York, BeU Pub·lishing Company, 1956, pág. 207).
7a. Idem, The Arehetyps and the Colleetive 28. Citado por H.P. Roché em seu artigo "Souvenirs
Uneoneious. Londres, Routledge & I<egan Paul, sur Mareei Duchamp". La Nouvel/e NRF. (Paris,
1959, pág. 352. I, nO 6, junho de 1953, pág. 1136)
8. Sweeney, op. eit., pág. 20. 29. Tractatus Logico-Philosophicus, 4003
9. Idem, págs. 20 e 21. 30. BRETON, André. "Marcel Duchamp", in
10. De "Uma Conversa com Marcel Duchamp e Littérature (Paris, NS, n. ° 5, outubro de 1922,
James Johnson Sweeney", entrevista dada no pág. 9).
Philadelphia Museum of Art, que constituiu a 31. O primeiro esboço dessa palestra foi publicado em
trilha sonora de um filme de 30 minutos feito em Art and Artists (Londres, I, nO 4, julho de 1966,
1955 pela NBC. Trechos adaptados e traduzidos pág. 47). Minhas citações são extraídas de um
para o francês por Michel Sanouillet em texto definitivo e não publicado entregue a mim
Marehand du Sei (Paris, Le Terrain Vague, 1959, por Duchamp.
págs 149-61). 32. Ibid.
11. I<UH, Katharine. The Artist's Voice. Nova York, 33. Citado por Philip Hereford em Aron Nimzovich,
Harper & Row, 1962, pág. 89. My System (Londres, G. Bell & Sons, 1929,
12. Marcel Duchamp, citado por Calvin Tomkins em pág.6).
The Bride and the Bachelors (Nova York, The 34. BRETON, A. Op. cit., pág. 7.
Viking Press, 1965, pág. 24). 35. DUCHAMP, Marcel. "The Richard Mutt Case", In
13. Idem, págs 29-30. The Blind Man PBT (Nova York, nO 2, maio,
14. ELlADE, Mircea. Le Chamanisme et les 1917, pág 5).
Techniques Archaiques de l'Extase. Paris, Payot, 36. LEBEL. Op. cit, pág. 165.
1949, págs. 122-25. 37. FREUD, S. Psychopathology of Everyday Life.
15. Ver ELlADE, Mircea. Pattems in Comparative Harmondsworth, Penguin Books, 1942 págs.
Religion. (Cleveland, Meridian Books, 1949, 148, 150 e 154 .
págs. 265-330) e DURAND, Gilbert. Les 38. I<UH, Katharine. Op. cit, pág. 83.
Structures Anthropologiques de /'Imaginaire 39. SCHUSTER, Jean. "Marcel Duchamp, Vite",
(Paris, Presses Universitaires de France, 1963, entrevista em Le surrealisme, Même (Paris, n. °
págs. 365-72). 2, 1957, pág. 143).
16. LEBEL, Robert. Mareei Ouchamp. Com capítulos 40. LINDE, Ulf. "MARiée CELibatalre", in Marcel
por Marcel Duchamp, André Breton e H.P. Ouehamp/Ready-Mades etc. Milão, Galeria
Roché. Tradução de George H. Hamilton Schwarz, 1964, pág. 60.
(Londres e Paris: Trianon Press, 1959; Nova 41. HAHN, Otto. "Passport n. ° G255300", entrevista
York: Grove Press; Cologne: DuMont em Arts and Artists. (Londres, I) 4, julho, 1966,
Schauberg Verlag). Label escreve que pág. 10.
"Duchamp admite reconhecer a si próprio no 42. Idem, "Marcel Duchamp", entrevista a L 'Express
trem para Rouen" (pág. 9). E, para Pierre (Paris), nO 684, julho de 1964, pág 22.
Cabanne, Duchamp confirmou que o nu aparece 43. DUCHAMP, Marcel [33 Criticai Notes], em
fumando um cachimbo para indicar sua Col/ection of the Société Anonyme: Museum of
identidade (Pierre Cabanne, Entrétiens avee Modem Art (New Haven; Yale University Art
MarcelOuchamp, Paris, P. Belfond, 1967, pág. Gallery, 1950, pág 69).
55). 44. JOYCE, James. Ulvsses (1922) (Londres; The
17. FREUD, S. The Interpretation of Oreams. Bodley Head, 1960, pág 468)
Londres, G. Allen & Unwin Ltd., 1937, pág. 45. CABANNE, Pierre. Entrétiens avec Marcel
240. Ouchamp (Paris; Pierre Belfond, 1967, págs

66
111-12).
46. JANIS, Sidney e Harriet. "Mareei Duchamp, Anti-
Artist", em View (Nova York, V, 1, março,
1945, pág. 24),
47. HAHN, Otto. 1966, op. cit., pág. 10.
48. lEIRIS, Michel. "Arts et Métiers de Mareei
Duchamp", em Fontaine (Paris, n. o 54, 1946,
pág. 191).
49. DROT, Jean-Marie. "Jeau d'Échecs avec Mareei
Duchamp", entrevista não publicada, que
constituiu a trilha sonora de um filme realizado
para a Televisão Francesa (ORTF), 1963.
50. VAN HEECKEREN, Jean. "la Porte de
Duchamp", em Orbes (Paris, 11,2, 1933, pág.
XIV).
51. DURAND. Op. cit., pág. 312.
52. BACHElARD, Gaston. La Poétique de /'Éspace
(1957) (Paris; Presses U niversitaires de France,
1961, págs. 200-01).
53. GOlD. Op. cit., pág. VIII.
54. CABANNE, Pierre. Opc cit., pág. 24.
55. AVEDON, Richard. Observations (Nova York;
Simon & Schuster, 1959, pág. 55).
56. CABANNE, Pierre. Op. cit., pág.24.
57. THARRATS, Joan-Josep. "Mareei Duchamp",
entrevista em Art Actuel International
(lausanne, n. o 6, 1958, pág. 1).

67
68
Cronologia de Mareei Duehamp
Arturo Schwarz

1887. Henri-Robert-Marcel Duchamp nasce, a 28 influência do último Manet une-se ao intimismo de


de julho, em Blainville, cidade próxima a Rouen, filho Bonnard. Começa a fazer ilustrações para jornais
do tabelião Justin Isidore Duchamp (1848-1925), e sua humorísticos como Le Rire, Le Sourire e Le Courrier
mulher, Lucie Caroline Nicolle. É sobrinho de Émile Français, Continua a colaborar nesses jornais até
Frédéric N icolle (1830-1894), conhecido pintor e 1910, recebendo dez francos por trabalho de um
gravador que estuciava com Meryon. Seus dois quarto de página. Ilustrar não é, efetivamente, algo
irmãos mais velhos também eram artistas: Gaston que o satisfaz, e para fugir a isso aventura-se nas
(1875-1963) abandonara seus estudos de Direito para mais diversas atividades artísticas.
dedicar-se à pintura em 1894, adotando o pseudônimo 1908. Em julho transfere-se para Neuilly, onde
de Jacques Villon - em homenagem ao poeta que viverá até outubro de 1913, Suas pinturas dessa
tanto admirava, François Villon - e Raymond (1876- época, como Peônias em um Vaso, são influenciadas
1918), que se tornaria um importante escultor cubista, pelos intimistas (especialmente Bonnard, Vuillard,
sob o pseudônimo de Raymond Duchamp-Villon. Manguin e Othon Friesz, que expõem no Salon
Enquanto as duas irmãs mais jovens, Yvonne (1895- d'Automne), Em Casa Entre as Macieiras é dominante
) e Magdaleine (1898- ), não eram artistas, a a influência dos fauves.
mais velha, Suzanne ('1889-1963), era pintora e se 1909. Toma parte nas reuniões dominicais de
casaria com o pintor dadaísta Jean Crotti, artistas e poetas, que começam a ocorrer no jardim
1893-1896. Duchamp guarda vívidas lembranças do estúdio de Raymond Duchamp-Villon. Além dos
dos brinquedos que ele e Suzanne compartilhavam. três irmãos Duchamp, freqüentam esses encontros
Construíam caminhõezinhos de madeira para fazê-los artistas como Albert Gleizes, Henri Le Fauçonnier,
rodar pelas rampas do jardim de Blainville, Freqüenta Roger de la Fresnaye, Fernand Léger, Jean
a escola em sua cidade natal e obtém o Certificat Metzinger, Francis Picabia e outros, assim como
d'Études Primaires em 1896, poetas e críticos: Apollinaire, Gabrielle Buffet, Olivier
1897. Aprende latim com o padre da paróquia, Hourcade, Pierre Reverdy, Maurice Raynal, Georges
preparando-se para entrar no Liceu. Em outubro é Ribemont-Dessaignes etc. Pinta o Portrait de Yvonne
admitido como interno na École Bossuet, em Rouen, Duchamp (Retrato de Yvonne Duchamp), no qual
para seguir os cursos do Lycée Corneille. retoma as cores mais escuras como reação às
1902, Duchamp tem quinze anos quando começa primeiras experiências com os fauves e à incursão no
a pintar. As primeiras telas, Paysage à Blainville intimismo de Bonnard, duas tendências que, todavia,
(Paisagem em Blainville), Église à Blainville (Igreja em deveriam incidir sobre suas obras também nos anos
81ainville) e Jardin et Chapelle à Blainville (Jardim e futuros, Recebe pela primeira vez um convite para
Capela em Blainville) sofrem a influência do expor no Salon dos Indépendants, onde apresenta
impressionismo. dois trabalhos, um dos quais é Paysage, de 1908, e
1903. Dedica-se ao desenho, Esboça retratos dos no Salon d'Automne, para o qual manda três
membros da família. pinturas, entre elas Nos Rochedos, A tela classificada
1904. Em julho obtém o Baccalauréat de como Veules (Ég!ise) no catálogo do Salon
Philosophie no Lycée Corneille de Rouen. Em outubro d'Automne é provavelmente aquela conhecida hoje
vai ao encontro dos irmãos em Paris e passa a viver como Saint-Sébastien (1909), esboço a óleo que
com Jacques Villon. Estuda na Academie Julien por representa uma escultura na fachada da igreja em
um ano apenas, até junho de 1905 (cansado das Veules-Ies-Roses. Tanto Paysage como
lições acadêmicas, passava mais tempo no bilhar do Saint-Sébastien sugerem uma tendência à pintura
que nas salas de aula). Pinta o Portrait de Mareei fauve mais contida que nas obras precedentes.
Lefrançois (Retrato de Mareei Lefrançois), sua 1910. Duchamp vê as primeiras pinturas de
primeira obra de reação ao impressionismo, Cézanne em casa de Vollard e familiariza-se com
1905. Duchamp alista-se como voluntário no alguns dos melhores exemplos do estilo fauve. Em
Exército, para usufruir os últimos meses de validade novembro, no Salon D'Automne encontra Picabia;
de uma lei que concedia redução do tempo de serviço que lhe é apresentado por Pierre Dumont, um amigo
militar (de três anos para um) aos doutores, pintor de Rouen. É a época das mais importantes
advogados e artesãos. Começa a trabalhar com um obras juvenis de Duchamp, que passa do
gravurista, ficando assim em condições de provar à impressionismo à pintura fauve para em seguida
Comissão de Exame Militar que tem direito à isenção, adotar influências de Cézanne e abandoná-Ias pouco
distribuindo gravuras que pessoalmente reproduzira de tempo depois, numa rápida sucessão de estilos que já
algumas águas-fortes de seu avô. A família Duchamp demonstra seu irrequieto espírito de pesquisa.
transfere-se para Rouen, onde residirá Duchamp parece divertir-se pintando quadros à la
ininterruptamente até 1925, ano da morte do casal. maniere de, exercitando-se dessa forma em cada
1906. Em outubro recomeça a pintar em Paris, estilo antes de descartá-lo. Nu assissur un Tonneau
1907. Duchamp não tem preocupações (Nu Sentado em um Tone/) é um trabalho
financeiras, pois o pai lhe manda 150 francos por moderadamente fauve; em Nu aux Bas Noirs (Nu de
mês. (Todos os filhos recebem a mesma quantia e Meias Pretas), Bateaux-Lavoir, Portrait en Buste de
tudo o que lhes era dado seria descontado da parte -Chauvel (Retrato a Meio-Busto de Chauve/) e Nu
que lhes caberia como herança.) Pinta Maison Parmi Rouge (Nu Vermelho), a influência fauve torna-se
les Pommiers (Casa Entre as Macieiras) e Maison dans cada vez mais forte até culminar nesta última obra.
le Forêt (Casa na Floresta), primeiras obras que Diferentes intensidades de fauvismo estão presentes
mostram alguma influência fauve. Em Dans les Écueils no Portrait du Docteur Dumouchel (Retrato do Dr.
(Nos Rochedos), pintado na costa da Normandia, a DumouchelJ em que se pode notar certa influência do

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fauvismo de Van Dongen, e em Femme Brune (Nana) relação ao tema quanto ao estilo pictórico. Sua última
ou Col/ant Vert (Mulher Morena [NanaJ de Corpete obra, A Noiva, é um triunfo de técnica e de
Verde), onde é clara a influência de Matisse. A de sensualidade, o mais alto ponto que teria alcançado
Célanne é evidente tanto no Portrait du Pere du empregando os meios tradicionais da pintura,
Artiste (Retrato do Pai do Artista) como em La Partie compreendida precisamente como meio. Tendo
d'Échecs (O Jogo de Xadrez), sua maior tela até o exaurido as possibilidades de renovação nos limites da
momento. O Retrato do Dr. Dumouchel é o terceiro e pintura sobre tela tradicional, inicia a conquista de um
último trabalho da série de retratos psicológicos que conceito de arte absolutamente novo, procurando
realiza no período. Como sustentáculo ao uso que "colocar, uma vez mais, a pintura a serviço da
Duchamp faz da cor, neste quadro ainda mais mente". E, quando Duchamp usa aqui a palavra
violento que o dos fauves acentua-se também "mente", pensa na palavra francesa "esprit", na
notavelmente o caráter cerebral. Paradis (Paraíso), totalidade de seus significados: intelecto, espírito,
onde Dumouchel representa Adão, fornece a ponte humor". Duchamp pensa na pintura como "um meio
que levará Duchamp desses três retratos pSicológicos de expressão, jamais como única razão de vida, do
aos três alegóricos que executará no início do ano mesmo modo como penso que a cor é apenas um
seguinte. meio de expressão na pintura, e não deveria ser seu
1911. Neste ano e no seguinte Duchamp pinta último escopo. Em outras palavras, a pintura não
praticamente todos os seus quadros a óleo mais deveria ser apenas visiva para a retina; deveria
conhecidos. relacionar-se com a matéria cinzenta de nosso
Nos anos anteriores expressava-se através dos intelecto, em vez de ser apenas endereçada para o
mais variados estilos vanguardistas do sentido físico da visão". No outono faz uma viagem
impressionismo, do fauvismo e do "cézanismo". com Apollinaire, Picabia e Gabrielle Buffet Picabia.
Agora volta as costas à mais recen·te escola, o Escreve a Rota Jura-Paris, primeira nota da série
cubismo, e começa a manifestar a própria reunida em 1934 na BOlte Verte (Caixa Verde). Essas
personalidade, desenvolvendo um estilo notas referem-se a um ponto de partida
absolutamente individual. La Buisson (A Moita), completamente novo para a arte, dizem respeito a
Bapteme (Batismol. Courant d'Air sur les Pommiers uma forma de arte mais mental que visual, que será
du Japon (Corrente de Ar nas Macieiras do Japão) materializada nos readvmades e em O Grande Vidro.
são as primeiras composições da trilogia de caráter Em companhia de Apollinaire e Picabia assiste à
alquímico que antecede em poucos meses o mais representação, em Paris, da obra de Raymond
significativo quadro alquímico de Duchamp, Jeune Roussel, Impressions d'Afrique.
Homme et Jeune Filie dans le Printemps (Rapaz e 1913. Duchamp transfere-se de Neuilly para a
Moça na Primavera). Outras importantes telas deste capital francesa, onde passa a viver numa casa ainda
ano são Sonata, Les Joueurs d'Échecs (Jogadores de em construção. Durante o verão permanece na
Xadrez), Portrait des Joueurs d'Échecs (Retrato dos Inglaterra, em Hern Bay, onde continua as pesquisas
Jogadores de Xadrez), Dulcinea, (Oulcinéia), Yvonne dos readvmades e de O Grande Vidro. Essas
et Magdaleine Dechiquetées (Yvonne, e Magdaleine pesquisas encontram manifestação prática no Erratum
Esfarrapadas). À propos de la Jeune Soeur (A Musical (Errata MusicaIJ, seu primeiro e único
Propósito da Irmãzinha), Mou/in à Café (Moedor de readvmade musical; na Roue de Bicvclette (Roda de
Café), a primeira "máquina" de Duchamp e claro Bicicleta), seu primeiro readvmade "assistido", que já
antecedente do tema de Broveuse de Chocolat aparece nos estudos iniciais para O Grande Vidro
(Moedor de Chocolatel. Duas pinturas da trilogia do (esquema a lápis sobre tela); e em La Machine
auto-retrato em nu concluem a rica produção deste Cé/ibataire (Máquina Celibatária) planta e desenho
ano: Jeune Homme Triste dans un Train (Jovem da metade inferior de O Grande Vidro. Pinta também
Triste num Trem), Nu Descendent un Ésca/ier n. o Moedor de Chocolate n. o 1, primeiro estudo do
(Nu Descendo uma Escada n. o 1), que serão elemento central de A Máquina Celibatária, e esboça
seguidas, um mês depois, em janeiro de 1912, do o Cimetiere des Uniformes et Livrées (Cemitério de
famoso Nu Descendant un Esca/ier n. o 2. Uniformes e Librés), isto é, Neuf Moules Ma/ic du
1912. Em janeiro Duchamp pinta Nu descendo uma Grand Verre (Nove Moldes Machos do Grande Vidro).
Escada n. o 2; em maio Le Roi et la Reine Entourés de Esboça Combat de Boxe (Luta de Boxe), para um
Nus Vites (O Rei e a Rainha Cercados de Nus detalhe não realizado de O Grande Vidro. No outono,
Velozes), em julho e em agosto, em Mônaco, Le Maurice Davanne, tio de Picabia, ajuda Duchamp a
Passage de la Vierge à la Mariée (Passagem da obter o posto de bibliotecário na Bibliothéque Saint-
Virgem à Noiva) e La Mariée (A Noiva). Essas quatro Geneviéve. Duchamp fica portanto livre para
obras pintadas em rápida sucessão constituem o ápice concentrar-se em suas atividades artísticas, que
formal e temático da série iniciada um ano antes com resultavam em obras não vendáveis. O Nu Descendo
Rapaz e Moça na Primavera. A extraordinária uma Escada n. o 2 torna-se um motivo de escândalo
continuidade lógica e formal das obras desse período no Armory Show em Nova York. Apollinaire publica
torna-se clara quando considerada sob o seguinte Les Peintres Cubistes, primeira avaliação profética a
aspecto: o Jovem do quadro de 1911 é, efetivamente, respeito de Duchamp: "O papel de reconciliar a arte e
o Nu Descendo uma escada: o Nu é transfigurado no o povo provavelmente será desempenhado por um
Rei de O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes; e artista como Marcel Duchamp, desligado de
o próprio Rei tornar-se-á o Cé/ibataire mítico de O preocupações estéticas tradicionais e interessado nas
Grande Vidro. Identicamente, reconheceremos o coisas da mente".
ambíguo Jovem de 1911 na Rainha de O Rei e a 1914. Toda a produçãQ deste ano diz respeito ou
Rainha Cercados de Nus Velozes, que, por sua vez, aos readvmades ou a O Grande Vidro. Compra numa
irá transformar-se primeiro na Virgem e depois na casa especializada em artigos para artistas, em
Noiva que vemos na pintura homônima e em O Rouen, três reproduções de uma paisagem invernal
Grande Vidro. O ano de 1912 assinala para Duchamp assinada por um artista desconhecido "da pior
a superação das tradições da vanguarda, tanto em espécie" (Duchamp), acrescenta dois pequenos

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personagens, um vermelho e um verde, dá à assinatura, e. Pliant.. de vovage (.. Dobrável. de
reprodução o nome de Pharmacie (Farmácia), põe Viagem), também chamado Underwood. Torna-se
data e assinatura. É seu primeiro readvmade membro fundador da Associação dos Artistas
"retificado". Alguns críticos vêem nessa obra a Independentes em Nova York. Nixola Greely-Smith
possibilidade de uma referência "ciumenta" ao cita uma entrevista com Duchamp e Crotti no The
casamento de sua irmã Suzanne, ocorrido em 1911, Evening World (Nova York, 4 dE: abril de 1916, pág.
com um farmacêutico de Rouen, pois Duchamp nutria 3), Participa - com quatro trabalhos de pintura e
pela irmã uma possessiva afeição. Compra no Bazar dois readvmades - da Mostra de Arte Moderna nas
do Hôtel de Ville, em Paris, um porta-garrafa. No anel Bourgeois Galleries, em Nova York, Participa com
inferior Duchamp grava um texto, e põe data e Gleizes, Metzinger e Crotti, da mostra The Four
assinatura na obra. Este é seu primeiro readvmade no Musketeers, na Montross Gallery de Nova York,
sentido completo da palavra: Porte-Boutei/le Encontra Katherine S, Dreier.
(Porta-garrafas, ou Secador de Garrafas). Completa 1917, Escolhe ou completa outros quatro
os Trois Stoppages-Étalon (Três Cerziduras-Padrão) readvmades: Apolinere Enameled (Apolinere
começados no ano anterior e trabalha neles para Esmaltado), iniciado um ano antes; Fontaine (Fonte),
obter ainda uma outra variação sobre o tema do um mictório de louça de banheiro público masculino;
readvmade. Concebe idéias e esboços para O Grande Trébuchet (Armadilha); Porte-Chapeau
Vidro, escolhe um desenho e dezesseis notas (Porta-Chapéus!. Constrói uma Sculpture de Vovage
manuscritas, que fotografa para obter três séries (Escultura de Viagem) cortando em pedaços toucas
completas que são colocadas em uma caixa comum de banho ·coloridas unidas ao acaso e amarradas a
para chapas fotográficas: La BOlte de 1914 (A Caixa cordinhas que seriam depois estendidas nos cantos de
de 7914!. Completa duas importantes telas que são seu estúdio, Pretendia preencher toda a área do
estudos preliminares para os elementos do Domaine aposento com essa estrutura, Desliga-se da Society of
du Célibataire dans le Grand Verre (Domínio do Independents Artists quando Fonte (o mictório),
Celibatário no Grande Vidro): Moedor de Chocolate assinado com o pseudônimo R, M utt - sua
n. o 2. (tela final sobre o tema do Moedor de contribuição à primeira mostra - é recusado, Edita,
Chocolate, resultante de quatro estudos preliminares em colaboração com Henri-Pierre Roché e Beatrice
do mesmo anol; e Réseaux de Stoppages (Rede de Wood, as duas primeiras publicações protodadás
Cerziduras), estudo para os Tubes Capil/aires (Tubos americanas: The Blind Man (que dura dois números) e
Capilares) que se dividem nos Nove Moldes Machos. Rongwrong.
Segundo e,studo para os Nove Moldes Machos. 1918, Primeiros sete meses em Nova York, Pinta
Cemitério de Uniformes e Librés n. o 2. Pistão de Tu m'(Tu m'}, seu último trabalho a óleo, para a
Corrente de Ar: fotografia para um detalhe de biblioteca de Katherine Dreier, Embarca para Buenos
Inscription du Haut (Inscrição do Alto), que, por sua Aires, onde chega em meados de setembro, Joga
vez, é um elemento do Domínio da Noiva, a metade xadrez furiosamente e desenha peças para os
superior de O Grande Vidro. Eclode a guerra. tabuleiros, Estuda um outro detalhe, sempre em
Duchamp é dispensado do serviço militar por vidro, para O Grande Vidro: À Regarder (/'Autre Coté
apresentar distúrbios cardíacos. du Verre) d'un Oeil, de Pres, Pendant Presque une
1915. Primeiros seis meses em Paris, onde Heure - Para ser observado (do outro lado do vidro)
completa suas duas primeiras obras em vidro, os com um olho, de perto, por quase uma hora, Morrem
Nove Moldes Machos e o Traineau (Trenó) - que Raymond Duchamp, irmão do artista, e Guillaume
serão detalhes da Máquina Celibatária em O Grande Apollinaire.
Vidro. Chega a Nova York no dia 15 de junho. Walter 1919, Primeiros seis meses em Buenos Aires,
Pach vai esperá-lo e apresenta-lhe Walter e Louise Completa uma série de peças para xadrez e
Arensberg, com os quais estreita uma amizade que Stéréoscopie à la Main (Estereoscópio Manual), No
durará a vida inteira. Compra duas enormes chapas dia 14 de abril, Suzanne Duchamp casa-se em
de vidro para começar a trabalhar em O Grande segundas núpcias com Jean Crotti. Duchamp manda
Vidro. Escolhe os dois primeiros readvmades à irmã, em Neuilly, seu presente de núpcias:
americanos: Pulled at Four Pins ou Tiré à 4 Épingles Instruções para fazer o Readvmade Malheureux
(Estirado a Quatro Alfinetes), um ventilador de lareira (Readvmade Infeliz!. Volra para a França no começo
em lata, e An Advance of the Broken Arm ou En de agosto, Celebrado o Armistício em novembro,
Avance du Bras Casé (À Frente do Braço Quebrado), embarcaria de novo para Nova York, no mês
um removedor de neve em ferro galvanizado. Cunha seguinte, Em Paris vê ainda uma vez Picabia, Pierre
o termo readvmade. Encontra outros exilados de Massot e Georges Ribemont-Dessaignes. Primeiro
franceses: Picabia, Jean Crotti, Albert Gleizes etc. encontro com André Breton e outros poetas do grupo
Primeiro encontro com Man Ray e outros artistas e da vanguarda (dadaísta àquela época, surrealista em
poetas americanos. Primeira entrevista: "A Complet 1924): Louis Aragon, Paul Éluard, Philippe Soupault,
Reversal of Art Opinions by Marcel Duchamp Jacques Vaché - que têm o hábito de reunir-se no
Iconoclast", in Arts and Decoration (Nova York, V, Bar Certa, Encontrará Benjamin Péret e Jacques
nO 11, set. de 1915, págs. 427-28 e 4421 Alfred Rigaut na segunda metade do ano seguinte. Durante
Kreymborg e Frederick Macmonnies citam entrevistas a breve estada em Paris elabora ainda três
com Duchamp em periódicos: Boston Transcript, readvmades: L.H.O,O,Q" (jogo de palavras cujo
Current Opinion e New York Tribune. Participa de sentido está na maneira de ler rapidamente o nome
uma mostra coletiva na Carrol Gallery, Nova York. das letras em francês: elle a chaud au cul - "ela tem
1916. Escolhe e elabora quatro readvmades: fogo no rabo"), reprodução da Mona Lisa à qual
Peigne (Pente), trocadilho com a palavra francesa acrescenta, a lápis, bigode e cavanhaque; Cheque
"dente", À Bruit Secret (Com Ruído Secreto) - Tzanck (Cheque Tzanck), ampliação de um cheque
presente para os Arensberg - , Scene de Bataille dado a seu dentista; Air de Paris (Ar de Paris), uma
(Cena de Batalha), um afresco no Café des Artistes ampola de vidro contendo ar de Paris, que leva de
em Nova York, no qual Duchamp apõe sua presente a Walter Arensberg, Elabora um trabalho de

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fotografia: Tonsure (Tonsura), o primeiro exemplo da trabalho sobre Duchamp no encarte da revista
bodv-art: um auto-retrato que é a contraparte de Littérature, (Paris, n.o 5). No encarte de dezembro,
L. H. O. O. Q. Aquela obra antecipa o pseudônimo da mesma publicação, Breton escreve um outro
feminino Rose Sélavy, que Duchamp assumirá no ano importante ensaio, desta vez dedicado ao jogo de
seguinte. palavras de Duchamp, "Les Mots sans Rides".
1920. Chegá a Nova York nos primeiros dias do Publica a matéria "Pode uma Fotografia Ter
ano. Em abril funda, com Katherine Dreier e Man Significado como Obra de Arte?", em resposta a uma
Ray, a Société Anonyme, Inc., que realiza 84 mostras pesquisa promovida pelo jornal Mónuscripts (Nova
até 1939, além de promover numerosas conferências e York, n. 4, dezembro de 1922, pág. 2). Na gráfica,
editar publicações. Em 1941 toda a coleção seria trabalhando em Some French Moderns Savs McBride,
doada à Yale University Art Gallery. Assume o encontra Mary Reynolds, que se tornará sua amiga e
pseudônimo de Rose Sélavy (em meados do ano companheira por muitos anos. Instala com o exilado
seguinte Duchamp escreverá Rose com dois erres, francês Léon Hartl, uma pequena tinturaria, que
Rrose). Elabora duas diferentes variações de fechará seis meses depois.
readvmades: Fresh Widow (que em inglês significa 1923. Decide abandonar A Noiva Despida por
"viúva fresca" e é um trocadilho com a expressão Seus Celibatários, Mesmo, isto é, O Grande Vidro, em
French Window = "janela francesa") e Elevage de seu "estado de inacabado". Para sublinhar o aspecto
Poussiere (Criação de Poeira), uma fotografia de O espectral de sua presença na arte, projeta o
Grande Vidro, que jaz horizontalmente com áreas readvmade "retificado" Wanted/S 2000 Reward
cobertas de poeira. Constrói sua primeira máquina (Procura-se, 2.000 Dólares de RecompensaJ. Em
óptica a motor: Rotative Plaque Verre (Optique de fevereiro embarca para Bruxelas. Entra no clube local
Précision) - Chapa Rotativa de Vidro (Óptica de de xadrez. Toma parte no primeiro importante torneio
Precisão) - e tenta, com a ajuda de Man Ray, da Europa, em Bruxelas, classificando-se em terceiro
produzir seu primeiro "filme em relevo", baseado no lugar. Volta para Paris, onde se fixa até 1942, embora
princípio do anáglifo (figura que combina duas faça algumas viagens ocasionais a outros países
imagens obtidas de pontos de visão diferentes e europeus, ligadas a sua atividade enxadrística; três
impressas em cores contrastantes de modo a visitas aos Estados Unidos (1926-27,1933-34 e 1936).
produzirem ilusão de profundidade quando vistas Desenha os Disques avec Spirales (Discos com
através de óculos com essas cores). Esboça Témoins Espirais), estudos preliminares para cinco dos dez
Oculistes (Testemunhas Oculistas) sobre papel- Discos Ópticos que aparecerão no filme Anémic
carbono que será usado para transferir o desenho Cinéma (1925-26).
para o Grande Vidro. Entra no Marshall Chess Club, 1924. Em janeiro Duchamp entra para o clube de
onde por quase quatro anos joga xadrez toda noite, xadrez de Rouen. Participa de numerosos
quando se encontra em Nova York. Volta a Paris na campeonatos e torneios: em agosto vai para
segu nda metade do a no. Estrasburgo para o campeonato francês; em setembro
1921. Parte para Nova York no início de janeiro. para Rouen, onde obtém o primeiro lugar no
Produz dois outros readvmades: Belle Haleine, Eau de campeonato da Alta-Normandia. Projeta a Obrigações
Violette (Bom Hálito, Água de Violeta), - trocadilho para a Roleta de Monte Carlo, destinada aos
com Belle Heleine ("Bela Helena" ou "Bom Hálito"), defensores de seu sistema para roleta, com o qual
e com Eau de Violette ("Água de Violeta" ou "Água "não se ganha nem se perde". Esboço para Rotative
de Veuzinho") - , colagem fotográfica feita em Demi-Sphere (Optique de Precision) - Rotativa Semi-
colaboração com Man Ray, que deveria ser usada Esfera (Óptica de Precisão), guache branco sobre
como etiqueta para um frasco de perfume; e WhV not papel negro. Aparece com Man Ray no filme de René
Sneeze Rose Sélavv? (Por que não Espirrar, Rose Clair, Entracte, projetado durante o intervalo do balé
Sélavv?), 152 cubos de mármore em forma de torrões Relâche, de Picabia e Satie. Em dezembro personifica
de açúcar com um termômetro e um osso de siba, ou o Adão do quadro de Cranach Adão e Eva (Eva era
sépia (molusco marinho de que se obtém uma tinta personificada pela senhorita Bronsdorff) no
escura) em uma gaiola de passarinhos. Ainda com Tableau-Vivant de Brogna Perlmutter preparado para
Man Ray publica, em abril, o único número do New Cinésketch de Picabia. Publicação de dezesseis jogos
York Dada. Em maio volta a Paris, onde se encontra de palavras, a maior seleção surgida até aquele
com Man Ray. Elabora La Bagarre d'Auster/itz !O momento, na última página da capa de The
Tumulto de Auster/itz}, variação sobre o tema de Wonderful Book - Reflections on Rrose Sélavv, de
Fresh Widow. Assina o trabalho de Picabia, Oeil Pierre de Massot (Gráfica Ravilly, Paris-Passy).
Cacodeleto, com um jogo de palavras, do qual deriva 1925. Desenha o cartaz para o campeonato
o ,erre duplo em Rrose Sélavy. Assina o manifesto francês de xadrez, que ocorreria em N ice, em
dada, Dada Souléve Tout. Primeiros jogos de palavras setembro. No decorrer desse torneio conquista o
publicados em 391 de Picabia (Paris, nO 15, julho de título de campeão da Federação Francesa de Xadrez.
1921, página 4). De Nice vai para a Itália: Florença, Roma, Anticoli
1922. Volta para Nova York. Continua a trabalhar Corrado (vilarejo internacionalmente conhecido como
em O Grande Vidro. Intensifica sua atividade de local de veraneio de artistas). Completa a segunda
enxadrista, tornando-se membro da equipe de xadrez máquina óptica, a Semi-Esfera Rotativa (Óptica de
do Marshall Chess Club e campeão da Metropolitan Precisão), para Doucet. Morrem a mãe e o pai de
League. A 29 de novembro joga contra Capablanca. Duchamp.
Executa a paginação para uma coleção de trabalhos 1926. Em janeiro participa do torneio de xadrez
de crítica de arte de Henry McBride, Some French entre as equipes de Notre-Dame e de Rouen. Em
Moderns Savs McBride. Inicia experiências com a lei maio faz breve viagem à Itália, visitando Milão e
da probabilidade dos números, que antecedem a obra Veneza; em setembro participa de uma competição a
Ob/igations pour la Roulette de Monte Carla quatro, em Nice, tendo como adversários Renaud,
(Obrigações para a Roleta de Monte Carla), de 1924. Halberstadt e Railly. Participa da realização do filme
André Breton publica o primeiro e fundamental Anémic Cinéma, em colaboração com Man Ray e

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Marc Allegret. Em novembro retorna a Nova York Quinta Olimpíada de Xadrez em Folkestone. Traduz
para preparar a primeira mostra de Brancusi. para o francês uma obra clássica da literatura
Permanece lá até fevereiro de 1927, fazendo apenas enxadrística, Comment /I Faut Commencer une Partie
uma pequena viagem para Chicago, onde prepara a d'Échecs, de Znosko-Borovsky. Em outubro embarca
mostra de Brancusi no Arts Club daquela cidade. Pela para Nova York para organizar uma segunda mostra
primeira vez O Grande Vidro é exposto, na de Brancusi, inaugurada a 17 de novembro na
International Exhibition of Modern Art organizada pela Brummer Gallery. O periódico Art News (Nova York,
Societé Anonyme no Brooklin Museum. Na viagem XXXII, n. o 7, novo de 1933, págs. 3 e 11) publica:
de retorno à casa do proprietário, O Grande Vidro é "Marcel Duchamp, de Volta à América, Concede
quebrado. Duchamp só o repararia parcialmente dez Entrevista", artigo de Laurie Eglington.
anos depois, em 1936. Sob o nome de R rose Sélavy, 1934. Volta para Paris. Lança La Mariée Mise à Nu
escreve e edita 80 Picabias, sob a forma de um par ses Célibataires, Même (A Noiva Despida por
volante que serve de introdução a um Seus Celibatários, Mesmo) sob o título geral de BOfte
catálogo de obras de Francis Picabia - aquarelas e Verte (Caixa Verde), embalagem contendo 93
desenhos pertencentes a Duchamp, vendidas em documentos (desenhos e notas manuscritas) usados
leilão no Hôtel Drouot, em Paris. na elaboração de O Grande Vidro.
1927. Retorna a Paris. Picabia apresenta-o a Lydie 1935. Rotoreliefs (Rotorrelevos - Discos Ópticos),
Levassor-Sarrazin, com quem se casa a 8 de julho, série de seis discos de papelão com desenhos
divorciando-se em janeiro do ano seguinte. coloridos nos dois lados, é exposta no Concurso
Permanece em Paris até 1942, quando partirá para os Lépine, sendo "surpreendentemente ignorados",
Estados Unidos. Constrói a Porta que tanto pode segundo nota H. P. Roché. O "Phare de la Mariée",
estar fechada como aberta, ao mesmo tempo. 1e André Breton, primeira análise de O Grande Vidro
1928. Nos seis anos seguintes se ocupará de Duchamp, aparece no encarte de inverno de
exclusivamente do xadrez. Em janeiro vence o torneio Minotaure (Paris, n. o 6). Duchamp desenha-lhe a
de Hyere; em junho participa do Torneio Internacional capa. Desenha também uma capa para Ubu Roi de
de Paris. Em julho e agosto, na qualidade de membro Alfred Jarry. Participa da Primeira Olimpíada
da equipe francesa, joga na Segunda Olimpíada de Internacional de Xadrez por correspondência, como
Xadrez em Haia, classificando-se em segundo lugar. capitão da equipe francesa. A olimpíada dura quase
Em setembro segue para Marselha e participa do quatro anos e termina com a vitória de Duchamp pela
Sexto Campeonato da França, classificando-se em mais alta contagem individual (nove pontos sobre
sétimo lugar. Organiza, com Alfred Stieglitz, uma onze). No mesmo ano concluirá um outro torneio de
mostra de Picabia na Intimate Gallery de Nova York. xadrez por correspondência, da FS B, classificando-se
1929. Visita a Espanha com Katherine Dreier. em primeiro lugar (nove pontos sobre onze), sem
Participa do Torneio Internacional de Paris. perder nenhuma partida. É a última vez em que
1930. Em fevereiro, participa do Torneio Duchamp se empenha em um torneio internacional na
Internacional de Nice, obtendo o nono lugar. Em maio Europa.
joga no torneio de Paris; em julho encontra-se em 1936. Duchamp desenha capas para La Septiéme
Hamburgo, onde participa da Terceira Olimpíada de Face du Dé, livro de poesias de Georges Hugnet, e
Xadrez como membro da equipe francesa, que inclui para encartes especiais dos Cahiers d'Art (Paris, XI,
o melhor jogador da época, Alekhine. Joga contra nOs 1 e 2). Parte para Nova York e em julho e agosto
Frank Marshall, campeão dos Estados Unidos, encontra-se em casa de Miss Dreier, em West
obtendo meio-ponto de empate, decisivo para a Reding, dedicando-se a consertar partes de O Grande
classificação da equipe francesa. Louis Aragon Vidro, estilhaçado em 1927. Faz breve viagem à
escreve sobre Duchamp na Peinture au Défi (Galerie Califórnia para visitar os Arensberg, em Hollywood.
Goemans, Paris, 1930). Volta para Paris em setembro. Seis de suas obras são
1931. Participa, em março, de um Torneio de expostas na mostra Fantastic Art, Dada, Surrealism,
Xadrez em Nice. Em julho integra a equipe francesa, organizada por Alfred H. Barr Jr. no Museum of
juntamente com Alekhine, na Quarta Olimpíada de Modern Art de Nova York.
Xadrez de Praga. Torna-se membro do Comitê da 1937. Em março começa a escrever uma coluna
Federação de Xadrez Francesa e delegado desse sobre enxadrismo no diário parisiense Ce Soir, dirigido
comitê na Federação Internacional de Xadrez (FIDE), por Aragon. Projeta a porta de vidro para a Galeria
posto que ocupará por sete anos. Gradiva de André Breton. Desenha a capa do encarte
1932. Escreve, em colaboração com Vitaly de inverno de Transition, de Nova York. Primeira
Halberstadt. uma importante contribuição à literatura individual no Arts Club de Chicago.
enxadrística sobre finais de partida, L 'Opposition et 1938. Prepara 1.200 sacos de carvão para serem
les Cases Conjuguées sont Reconciliées; (Edmond suspensos no teto, sobre um braseiro, na Exposition
Lancei, Bruxelas, capa desenhada por Marcel Internationale du Surréalisme na Galerie des Beaux-
Duchamp). Em maio participa, com a equipe francesa Arts de Paris, onde ele expõe também Rrose Sélavy,
do clube de xadrez parisiense Caissa, de uma partida manequim feminino em tamanho natural, vestido com
via rádio contra o Clube Argentino de Xadrez, em roupas de Duchamp (a parte inferior do corpo está
Buenos Aires. Em agosto vence o Torneio de Xadrez nua). Prepara para a galeria londrina de Peggy
de Paris, derrotando Znosko-Borovsky, um dos mais Guggenheim, Guggenheim Jeune, mostra de
importantes enxadristas europeus. Em setembro escultura contemporânea, escolhendo obras de Arp,
obtém o quarto lugar no campeonato francês Brancusi, Calder, Duchamp-Villon, Pevsner e outros.
realizado em La Baule. Encontra Raymond Roussel no 1939. Publica Rrose Sélavy (Paris, GLM), primeira
Café de la Régence, famoso ponto de encontro dos antologia dos jogos de palavras de Duchamp.
enxadristas parisienses. Desenha a capa de Hebdomeros, de Giorgio De
1933. Em junho realiza seu último importante Chirico, e da Anthologie de /'Humaur Nair, de André
torneio de mesa: como membro da equipe francesa Breton. Eclode a Segunda Guerra Mundial.
(com Alekhine, Betheder, Kahn e Voisin) participa da 1940. Instalado em Paris, dedica a maior parte do

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tempo a completar um projeto iniciado em 1935: Por Surrealismo, na Galeria Maeght. Desenha também a
ou de Mareei Duchamp ou Rrose Sélavy, conhecido capa do catálogo. Volta a Nova York antes da
também como La Boí'te-en-Valise (Caixa-em-Valise), abertura da mostra. É entrevistado por James
museu portátil de Duchamp, contendo cópias em Johnson Sweeney - "Eleven Europeans in America"
miniatura e reproduções em cores de suas obras mais - para The Museum of Modem Art Bulletin (Nova
significativas. André Breton publica Anthologie de York, XIII, nOs 4 e 5,1946, págs. 19-21).
/'Humour Noir (Paris, Editions du Sagittaire), onde, 1947. Passa todo o ano pensando e sonhando
num breve ensaio, introduz uma seleção dos jogos de com o Étant Dones = 1 - La Chute d'Eau; 2 - Le
palavras e dos aforismos de Duchamp. Gàz d'Eclairage (Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 -
1941. Em maio desenha Bigode e Barba de O Gás de Iluminação!. Exerce intensa atividade de
L. H. O. O. Q., um pochoir feito para uma poesia de enxadrista.
Hugnet. Publica seu museu portátil Por ou 1948. Faz um esboço para o catálogo Through the
de Mareei Duchamp ou Rrose Sélavy. Vai para Big End of the Opera Glass, mostra coletiva com
Sanary-sur-Mer. trabalhos de Joseph Cornell, Mareei Duchamp e Yves
1942. Em maio embarca para Nova York via Tanguy na Julien Levy Gallery, Nova York. Vence o
Casablanca. Passa três semanas em Casablanca em torneio de Classe A da Associação de Enxadristas do
um acampamento, dormindo no chão do banheiro. Estado de Nova York
Chega a Nova York no início de junho, após uma 1949. Completa a pequena combinação iniciada no
breve estada nas Bermudas. PeggyGuggenheim e ano anterior - Sendo Dados, o Gás de Iluminação e
Max Ernst dão-lhe as boas-vindas em Staten Island. a Cascata. O nu desta combinação é o estudo em
Em Nova York encontra muitos amigos surrealistas e escala menor para a Noiva em Sendo Dados: 1 - A
imediatamente começa a trabalhar com eles Com Cascata; 2 - O Gás de Iluminação. Na mostra Arte
Breton organiza a mostra das Primeiras Cartas do do Século XX, da coleção de Louise e Walter
Surrealismo. Faz os preparativos da mostra Dezesseis Arensberg, no Instituto de Chicago, foram incluídas
Milhas de Barbante, a compilação e a capa do trinta obras de Duchamp, a maior coleção até aquela
catálogo, para o qual elabora uma colagem A la data. A contribuição de Duchamp para seu círculo
Maniere de Delvaux (À Maneira de Delvaux). Peggy internacional de amigos-artistas de vanguarda é citada
Guggenheim apresenta-o a John Cage. no artigo "The Western Round Table on Modern Art
1943. Trabalha para a exposição de La Part du (1949)" publicado em Modem Artists in America
Diable, de Denis de Rougemont, na vitrine da Livraria (Primeira Série, ed. Bernard Karpel, Roberto
Brentand. Desenha Achiquier de Poche (Xadrez de Motherwell, Ad. Reinhardt; Nova York, Wittenborn
Bolso), projeta a capa da VVV (Nova York, n. Os 2 e Schultz Inc., 1951, págs. 27 a 37).
3, março de 1943), revista surrealista publicada por 1950. Executa Not a Shoe (Nenhum Sapato),
Breton e Max Ernst; executa a combinação Allégorie pequena escultura, primeiro estudo para o cinto da
de Genre - George Washington (Alegoria de Gênero escultura Coin de Chasteté (Cinto de Castidade) que
- George Washington), sua participação no concurso seria realizada em 1954. Cria a Feuille de Vigne
organizado pela revista Vogue para um retrato de Femelle (Folha de Videira Fêmea), pequena escultura
George Washington. Assina o manifesto La Parole Est em gesso galvanizado, que planeja dar de presente a
à Péret, datado de 28 de maio, juntamente com Man Ray. Viaja para Paris. Retorna a Nova York.
André Breton, Charles Duits, Max Ernst, Matta, Yves Publicação de Collection of the Societé Anonyme:
Tanguy e em nome de outros dezoito surrealistas para Museum of Modem Art, 7920. Yale University Art
apresentar o prefácio de Benjamin Péret a sua Gallery, que compreende 33 notas críticas que
Anthologie des Mythes, Légendes et Contes escreveu entre 1943 e 1949, referentes a muitos
Populaires d'Amérique (Paris, Albin Michel, 1960). artistas representados na coleção.
1944. Primeira mostra dos irmãos Duchamp na 1951. Dedica a maior parte do tempo a Sendo
Yale University Art Gallery. Desenha Tabuleiro de Dados: 1 - A Cascata; 2 - O Gás de Iluminação.
Xadrez de Bolso com Luva de Borracha. Primeiro Cria o Objet-Dart (Objeto-Dardo), escultura em gesso
desenho da Mariée (Noiva) que ele planeja ser a parte galvanizado em forma de falo, com uma costela de
central da obra que na época intitula Étant Donés le chumbo. Essa escultura situa-se entre o objet trouvé e
Gaz d'Éclairage et la Chute d'Eau (Sendo Dados o o readymade. Na época imagina colocá-Ia diretamente
Gás de Iluminação e a Cascata), na qual trabalhará de sob o peito da Noiva em Sendo Dados: 1 - A
1946 a 1966. Cascata ... , onde serviria para pendurar uma pele de
1945. Desenha a capa do número especial da vaca. Participa do Torneio de Xadrez do Estado de
revista Wiewdedicado a ele (Nova York, V, nO 1, Nova York.
março de 1945); e do catálogo da mostra de Man Ray 1952. Dá uma palestra na Associação dos
Objetos do Meu Afeto, na Julien Levy Gallery, abril Enxadristas do Estado de Nova York sobre três
de 1945. Projeta a vitrine para Arcane 17 de B reton, aspectos principais do jogo de xadrez. O texto foi
no Gotham Book Mart, e para Le Surréalisme et la transcrito por Arturo Schwarz em seu The Complete
Peinture, na Livraria B rentand. Works of Mareei Duchamp, pág. 68. Uma carta de
1946. Começa a trabalhar em Sendo Dados: 1 - Duchamp sobre O Grande Vidro é citada por Eleanor
A Cascata, 2 - O Gás de Iluminação, hoje no Bitterman em Art in Modem Architecture (Reinhold,
Philadelphia Museum of Art, que absorverá a maior Nova York, pág. 152). Escreve o prefácio para o
parte de sua atividade criativa pelos vinte anos Catálogo da mostra da coletânea de Katherine Dreier
seguintes. Em fevereiro passa a fazer parte do Clube (falecida em março deste ano). Esse prefácio serviria
de Xadrez London Terrace. Desenha outras duas de orientação para a mostra da Yale University Art,
capas: para o catálogo Tentação de Santo Antão e que se realizaria em dezembro.
para a coletânea de poesias de Breton, Young Cherry 1953. Executa o esboço do catálogo Dada
Trees Secured Against Hares (Nova York, Wiew 1976-7923 (Sidney Janis Gallery, Nova York). Passa o
Editions, 1946) No verão volta para Paris, onde, em verão em Blaswood (Minnesota), onde desenha o
colaboração com Breton, organiza a mostra O Clair de Lune sur la Baie à Blaswood (Luar Sobre a

74
Baía de Blaswood), uma das duas fontes para a seria publicado em 1959, constituindo-se no mais
paisagem no fundo de Sendo Dados: 1 - A Cascata; completo estudo sobre Duchamp realizado até aquela
2 - O Gás de Iluminação (a outra fonte é o primeiro época. É publicado o Marchand du Sei, Écrits de
trabalho de Duchamp, Paisagem em Blainville, de Mareei Duchamp (compilação realizada por Michel
1902). No artigo de Henry-Pierre Roché, "Souvenirs Sanouillet, Paris, Le Terrain Vague), a mais completa
sur Mareei Duchamp" são citados trechos de uma coleção de escritos de· Duchamp. Laurence S. Gold
conversa com Duchamp (La Nouvelle Revue entrega os originais da tese de doutoramento: A
Française, Paris, I, nO 6, junho de 1953, págs. 1.133- Discussion of Mareei Duehamp 's Views on the Nature
38). of Reality and Their Relation to the Course of His
1954. Produz o Coin de Chasteté (Cinto de Artistic Career (Princeton University, 1958, págs.
Castidade), escultura em duas partes que se encaixam XVIII-54). "La Letre de Mareei Duchamp a Tristan
- um cinto de gesso galvanizado e uma base de Tzara (1921)" é publicada por PAB (Pierre André
resina de prótese dental - para dá-Ia como presente Benoit), em Ales (Gard). Concede entrevista a Alain
de núpcias para Alexina (Teeny) Sattler, com quem Janffroy, "". II n'Est pas Certain que je Revienne à
Duchamp se casaria ainda em janeiro. É a terceira La Peinture", a propósito da publicação de "Mareei
parte da trilogia de esculturas eróticas iniciada com a Duchamp" de Robert Lebel em Arts (Paris, nO 694,
Folha de Videira Fêmea e o Objeto-Dardo. Passa a pág. 12). Concede entrevista a Jean-Josep Tharrats:
viver no apartamento anteriormente ocupado por Max "Mareei Duchamp", em Art Actuel International
Ernst. Ainda em janeiro, morre Walter C. Arensberg, (Lausanne, n. o 6, 1958, pág. 1). Jean Crotti, o pintor
amigo e protetor de Duchamp. O Philadelphia dadaísta marido de Suzanne Duchamp, morre a 30 de
Museum of Art expõe a coleção de Walter e Louise janeiro.
Arensberg, que compreende 43 obras de Duchamp, 1959. Transfere-se para o Greenwich Village.
entre elas muitas das mais significativas, como O Colsalités, desenho a pena e a lápis, fornece um novo
Grande Vidro. Expõe pela primeira vez na Itália, em destino à saga de O Grande Vidro. Produz With my
uma mostra na Galeria Schwarz, em Milão. Michel Tongue in my Cheek (Com a Língua no Ro:;to) auto-
Carrouge publica Les Maehines Célibataires (Paris, retrato em desenho e escultura; Torture-Morte
Arcanes). Entrevista com Michel Sanouillet: "Dans (Tortura-Morta), molde realista da planta de um pé
I'atelier de Mareei Duchamp", em Les Nouvelles humano com moscas mortas que faz sátira ao gênero
Littéraires (Paris, n. o 1.424, 16 de dezembro de 1954, natureza-morta, demonstrando o "poder do cavalete
pág 5). como instrumento de tortura", e Sculpture-Morte
1955. James Johnson Sweeney: Uma conversa (Escultura-Morta) - duas esculturas executadas para
com Mareei Duehamp ... , entrevista no Philadelphia um livro projetado por Robert Lebel. Cria o Couple de
Museum of Art, que constitui a trilha sonora de um Tabliers (Par de Aventais), readymade feito para a
filme de 30 minutos de duração, produzido no mesmo edição especial do Catálogo da Exposition
ano pela N BC e apresentada pela primeira vez na Internationale du Surréalisme, 1950-1960, organizada
televisão americana no programa Elderly Wise Men, por André Breton e Mareei Duchamp na Galerie
em janeiro de 1956. Uma carta de Duchamp a André Daniel Cordier, em Paris. Produz Pulled at Four Pins,
Breton é publicada em Medium (Paris, nO 24, jan., água-forte executada para ilustrar uma seleção de
pág. 33). Em La Parisienne (Paris, nO 24, jan., págs. quatro poesias de um velho amigo de Duchamp,
63-69), aparece um artigo de Henry-Pierre Roché, Pierre de Massot, Tiré à 4 Épingles, publicada por
"Vie de Mareei Duchamp", que cita vários trechos de PAB (Pierre André Benoit) em Ales (Gard). A
uma conversa mantida pelo autor com o artista. entrevista "Mareei Duchamp Speaks", com George
1956. Desenha Veste (Paletó) para a capa de H. Hamilton e Richard Hamilton, é transmitida pela
Modem Art USA, de Rudi Blesh (recusada pelo BSC, no terceiro programa da série Art, Anti-Art,
editor, Alfred A. Knopf). Esse livro cita trechos de incluindo comentários de Charles Mitchell.
algumas entrevistas com Duchamp. 1960. Desenha a capa para o Catálogo Surrealist
1957. Duchamp desenha a capa para Jaeques Intrusion in the Enehanters' Domain, exposição
Villon, Raymond Duchamp-Villon, Mareei Duehamp, realizada na Gallerie d'Arcy, Nova York, dirigida por
Catálogo de uma importante mostra de Duchamp e André Sreton e Mareei Duchamp, e organizada por
de seus irmãos no Solomon R. Guggenheim Museum, Edouard Jaguer e José Pierre. Laurence D. Steefel Jr.
Nova York. Cria Gilet (Colete), em lã verde, com os entrega os originais da tese de doutoramento "The
cinco botões contendo as letras do apelido da mulher Position of La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires,
de Duchamp, Teeny. No ano seguinte faz outros dois Même (1915-1923) in the Stilistic and Iconographic
coletes semelhantes, um para a mulher do filho de Development of the Art of Mareei Duchamp"
Teeny (Sally), Paul Matisse, e o outro para o poeta (Princeton University, 1960, pág. 423). Entrevista com
surrealista Benjamin Péret. Participa de um ciclo de Duchamp citada por Mareei Jean em The History of
debates sobre arte realizado no Hotel Shamrock- Surrea/ist Painting (Londres, Weidenfeld &
Hilton com a palestra "The Creative Act". Integram o Nicholson). Dokumentation über Mareei Duchamp,
evento personalidades como William C. Seitz, mostra no Kunstgewerben Museum de Zurique,
moderador, e outros palestrantes, como Rudolph Catálogo com textos de Max Sill, Hans Fischli, e
Arnheim e Gregory Bateson. O texto de Duchamp é Serge Stauffer. The Bride Stripped Bare by Her
publicado em Art News (Nova York, LVI, nO 4, 1957, Bachelors, Even, primeira tradução completa de
erroneamente datado de 1956, pág. 28-29). Dá George H. Hamilton da Caixa Verde (Londres, Percy
entrevista a Jean Schuster ("Mareei Duchamp, Lund, Humphries & Co.; Nova York, Wittenborn).
Vite"), publicada em Le Surréalisme, Même (Paris, Participa do simpósio "Devem os Artistas Freqüentar
nO 2, 1957, págs. 143-145). a Universidade?", no H ofstra College, Hempstead,
1958. Desenha a capa para o Catálogo da mostra Nova York.
Le Dessin dans l'Art Magique, da Galeria Rive DroTte, 1961. Anagrama para Pierre de Massot, guache
em Paris. Colabora na parte gráfica de Sur Mareei em papel negro coberto de papel encerado, gravado
Duchamp de Robert Lebel (Paris, Ed. Trianon), que com os contornos de um mictório público (executado

75
para ser vendido em leilão em benefício de Pierre de publicada pela Galeria Schwarz, Milão. Reflet du
Massot). Rébus, água-forte feita para Surrealism Miroir (Reflexo do Espelho), Pulled at Four Pins
Between the two Wars, volume segundo da série (Estirado a Quatro Alfintttes), águas-fortes de dois
"The Forerunners of the Avant-Gard", Milão, Galeria readymades, respectivamente a Fonte de 1917 e Tiré
Schwarz, 1965. Em novembro, a Wayne State a 4 Épingles de 1915. Como o último desses
University confere a Duchamp o título ad honorem de readymades foi perdido antes que fosse fotografado,
doutor em letras. Frank R. Brady: "Duchamp, Art and a água-forte é sua única reprodução existente.
Chess", em Chess Life (Nova York, XVI, n. ° 6, junho Bouche-Évier, tampão de chumbo executado para a
de 1961, págs. 168-69). Herbert Crehan: "Dada", banheira do apartamento de Duchamp em Cadaqués
trechos de uma entrevista com Duchamp em (Espanha). Horloge à Profil (Relógio de Perfil),
Evidence (Toronto, n. O 3, págs. 36-38). Duchamp dá "dobrável" em papel fino que desenvolve um
uma palestra no Philadelphia Museum COllege of Art, elemento da Caixa Verde, feito para ser inserido na
"Were do We Go From Here", outra no Museum of edição numerada de La Double Vue - Suivi de
Modern Art de Nova York: "Apropos of Readymade". L'lnventeur du Temps Gratuit, de Robert Lebel (Paris,
Publicação de The Artíst's Voice: Talks with Le Soleil Noir). Jeu d'Échecs avec Mareei Duchamp,
Seventeen Artists (Nova York and Evanston Harper & filme de Jean-Marie Drot, produzido para a televisão
Row) de Katharine Kuh, que traz importante francesa em 1963, obtém o primeiro prêmiO no
entrevista com Duchamp nas págs. 81-93. Festival Cinematográfico de Bérgamo. Entrevistas
1962. Profere conferências sobre seu trabalho no com Duchamp citadas por Alain Jouffroy em seu livro
Mount Holyoke College (Massachusetts) e na Norton La Révolution du Regard (Paris, Gallimard). Otto
Gallery em Paim Beach (Flórida). Hahn publica uma entrevista com Duchamp no
1963. Aimer Tes Héros (Amar Teus Heróis), rébus L 'Express (Paris, n.o 684). Louis Goldaine e pierre
desenhado que acrescenta novo capítulo à saga de O Astier publicam entrevistas com Marcel Duchamp no
Grande Vidro. Desenha o manifesto para a mostra do volume Ces Peintres vous Parlent (Paris, Éditions du
cinqüentenário do Famous International Armory Temps, pág. 46). Conferência "Apropos of Myself"
Show. Exposição individual na Galeria Burén, no Vity Art Museum de Saint Louis.
Estocolmo. Na mesma época, Ulf Linde publica o 1965. Pistão de Corrente de Ar, gravura positiva
ensaio Marcel Duchamp. Desenha o manifesto e a sobre celulóide, obtida da única fotografia existente
capa para o Catálogo de sua primeira importante feita em 1944 por Duchamp para determinar a forma
retrospectiva no Art Museum de Pasadena (114 de um dos Três Pistões de Corrente de Ar em O
peças). William C. Seitz: "What's Happened to Art?", Grande Vidro. Executa uma série de nove águas-
entrevista com Duchamp na Vogue (Nova York, n. ° fortes - sete das quais mostram detalhes de O
4, fevereiro de 1963, págs. 28-29). Profere a Grande Vidro e duas O Grande Vidro e O Grande
conferência "Apropos of Myself" no Baltimore Vidro como seria se fosse completado - para ilustrar
Museum of Art (Maryland) e na Brandeis University "The Large Glass and Related Works", volume I, de
Waltham (Massachusetts). Man Ray publica seu Arturo Schwarz. "Not Seen and - or Less Seen of
Self-Portrait (Boston e Toronto, Little, Brown and - by Marcel Duchamp - Rrose Sélavy 1904 a 1964",
Company, 1963; Londres, André Deutsch), que traz a mais importante retrospectiva de Duchamp jamais
muitas referências a Marcel Duchamp. Morte dos organizada em uma galeria particular até aquele
irmãos de Duchamp, Jacques Villon e Suzanne momento, Cordier & Ekstrom, Inc., Nova York. Calvin
Duchamp. Tomkins: The Bride and the Bachelors: the Heretical
1964. Colabora na preparação e na publicação de Courtship in Modem Ar (Nova York, The Viking
Marcel Duchamp - Readymades etc. de Arturo Press). Duchamp concede uma entrevista à televisão
Schwarz, Catálogo para sua primeira retrospectiva alemã por ocasião de sua retrospectiva no Kestner-
européia, com 108 trabalhos, na Galeria Schwarz em Gesellschaft, Hannover. Essa entrevista constitui a
Milão. Essa mostra será depois exibida na Kunsthalle trilha sonora do filme de quinze minutos Marcel
de Berna; na Gimpel Fils de Londres; no Museum Duchamp, dirigido por Günter Tovar, transmitido em
Haus Lange di Krefeld e no Kestner Gesellschaft, outubro de 1965 pela NordClieustscher Rundfunk,
Hannover. Por ocasião do cinqüentenário do primeiro Hamburgo. Hans Richter cita algumas entrevistas com
readymade, Duchamp projeta e manda executar, em Duchamp no seu Dada: Art and Anti-Art (Londres,
colaboração com a Galeria Schwarz, uma edição Thames & Hudson, págs.87-99 et passim; Colônia,
assinada e numerada de catorze de seus mais Dumont Schauberg, 1964).
importantes readymades em tamanho natural, sobre a 1966. Completa Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 -
base de um esquema tírado de fotografias do original O Gás de Iluminação, no qual trabalhara nos últimos
perdido ou, existindo o original (em sete casos), sobre vinte anos. Hommage a Caissa (Homenagem a
a base de fotografias, cópias, dimensões e Caissa), um tabuleiro de xadrez normal, em madeira,
informações dadas pelo proprietário da obra. A edição anunciado em uma edição de trinta exemplares
era limitada a oito exemplares assinados e numerados. assinados (da qual apenas foram feitos quatro), cujo
Dois exemplares - não postos à venda - foram desenho é semelhante ao pavimento do Sendo
reservados para Duchamp e para Schwarz. Eis a Dados: 1 - A Cascata ... Dore Ashton: "An Interview
relação dos catorze readymades escolhidos por with Marcel Duchamp", em Studio Internacional
Duchamp para essa edição comemorativa: Roda de (Londres, vol. 171, n.o 878, págs. 244-247). Número
Bicicleta, Três Cerziduras-padrão, Saca-Rolhas, especial dedicado a Duchamp de Art and Artists
Pente, Com Ruído Secreto, Á Frente do Braço (Londres, I, n.o 4), que compreende "Apropos of
Quebrado, ... Dobrável ... de Viagem, Apolinere readymades" (1961) e uma entrevista com Otto Hahn.
Enameled, Fonte, Porta-chapéu, Armadilha, Ar de "The Almost Complete Works of Marcel Duchamp",
Paris, Fresh Widow, Por que não Espirrar, Rose primeira retrospectiva de Duchamp na Inglaterra, na
Sélavy?, Quatro Readymades e Certificad de Lecture Tate Gallery. Duchamp profere uma conferência na
(Certificado de Leitura), duas litografias para 11 Reale noite da inauguração. Rebel - Readymade, filme de
Assoluto, coletânea de poesias de Arturo Schwarz Tristam Powell produzido pela BBC. Morte de André

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Breton. Duchamp exprime sua emoção em duas estereoscópico a lápis azul e vermelho, são suas duas
entrevistas, uma a André Parinaud, publicada em últimas obras. Mareei Duchamp morre a 2 de
Arts-Loisirs (Paris, nO 54, out., 1966, págs. 5-7), e outubro, em Neuilly. É sepultado no jazigo da família,
outra a Jean Schuster, transmitida pela ORTF no monumental cemitério de Rouen. Na tumba, de
francesa a 19 de outubro. conformidade com seu desejo, foram gravadas as
1967. Detalhes Selecionados Segundo Cranach e seguintes palavras: "D'ailleurs c'est toujours les autres
Relâche e Apres L 'Amour, as duas primeiras águas- qui meurent" ("Aliás, são sempre os outros que
fortes de uma série de nove, completada no ano morrem"). Publicação da obra de Octavio Paz, Mareei
seguinte, para ilustrar The Large Glass and Related Duchamp ou le Château de la Pureté (Paris, Galerie
Works, volume 11, de Arturo Schwarz. As dezoito Givaudan). "Mareei Duchamp, Mine de Rien", artigo
águas-fortes que Duchamp fez para ilustrar os dois de Denis da Rougemont que relata uma série de
volumes de The Large Glass and Related Works conversas com Duchamp durante a última estada em
foram concebidas e elaboradas em um espaço de Lake George (Nova York) em 1945, in Preuves (Paris,
quatro anos. São as mais importantes séries de XVIII, n.o 204, fev. de 1968, págs. 43-47);
ilustrações que jamais dedicou a um livro. Para o pensamentos de Duchamp são relatados por De
segundo volume Duchamp concentrou-se no tema Rougemont no Journal d'une Époque, 1926-1946
dos Amantes. Nestas nove águas-fortes encontramos (Paris, Gallimard). Entrevista para a BBC feita por
a continuação da odisséia da Noiva e do Celibatário, Joan Bakevell para o programa Late Night Line Up,
interrompida em O Grande Vidro em um momento por ocasião da conferência de Arturo Schwarz no
crucial - justo antes que se encontrassem. Para ICA, de Londres, "The Large Glass and Related
sublinhar a relação entre a históri.a dos amantes nessa Works".
série de águas-fortes e a história da Noiva e do 1969. Primeira retrospectiva de Duchamp
Celibatário em O Grande Vidro, a última água-forte, organizada 'na Tchecoslováquia por Jindrich
Detalhes Selecionados Segundo Courbet, remete ao Chalupeckye Arturo Schwarz na Galeria Spal, Praga.
último acontecimento narrado em O Grande Vidro: o Publicação do ensaio Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2
momento em que o Celibatário espia a Noiva que se - O Gás de Iluminação - Reflections on a New York
despe. Aí o Celibatário aparece sob forma de ave, um by Mareei Duchamp, de Anne D'Harnoncourt e
falcão que observa a jovem senhora enquanto ela se Walter Hopps, primeiro estudo monográfico sobre o
liberta da- última peça de roupa. Uma outra água-forte environment secreto de Duchamp, montado em julho
mostra a Noiva (finalmente) toda nua ... Outras cinco no Philadelphia, M useum of Art.
mostram os amantes em vários abraços: Detalhes The Complete Works of Mareei Duchamp, de
Selecionados Segundo Rodin, Le Bec Auer, Detalhes Arturo Schwarz (publicado por Harry Abrams, Nova
Selecionados Segundo Ingres I e /I e Depois do York, e por Thames 8- Hudson, Londres). Notes and
Amor. O fato de que apenas o acaso é responsável Projects for the Large Glass, escolhidas e ordenadas
pelo encontro dos amantes é destacado na água-forte por Arturo Schwarz, que também escreveu o prefácio
Rei e Rainha. Na primeira água-forte da série, (Harry Abrams, Nova York, e Thames 8- Hudson,
Detalhes Selecionados Segundo Cranach e Londres). O encarte n.o 4 de Art in America é
"Relâche", a água-forte que conclui a história - os dedicado a Mareei Duchamp.
dois amantes se encontram no Paraíso. Tinham feito 1971. Primeira retrospectiva da obra de Duchamp
amor, estavam cientes de sua nudez e dali a pouco em um museu italiano: Galleria Civica D' Arte
seriam expulsos do jardim do Éden. "Os Duchamps", Moderna, Palazzo dei Diamanti, Ferrara, Catálogo de
primeira retrospectiva de Duchamp na França: Musée Arturo Schwarz.
des Beaux-Arts de Rouen e Musée d'Art Moderne de 1972. Primeira retrospectiva da obra de Duchamp
Paris, Catálogo com texto de Bernard Dorival. Pierre em um museu israelense: The Israel Museum,
Cabanne: "Entretiens avec Mareei Duchamp" (Paris, Jerusalém, Catálogo de Yona Fischer e Arturo
Pierre Belfond; tradução inglesa, Londres, Thames 8- Schwarz. "Mareei Duchamp: 66 Creative Years
Hudson, e Nova York, The Viking Press, 1971). Á From the First Painting to the Last Drawing",
f'/nfinitif (The White Box) traduzido por Cleve Gray Catálogo para a primeira mostra da coleção completa
(Nova York, Cordier 8- Ekstrom), coletânea de notas de Vera e Arturo Schwarz (compreendendo mais de
inéditas a respeito de O Grande Vidro. "Mareei 200 obras) realizada conjuntamente pelas Galerias
Duchamp Maintenant e lei", entrevista de Robert Schwarz, e L'Uomo e l'Art, Milão.
Lebel em L'Oeil (Paris, n.o 149, maio, 1967, págs. 18- 1973. Abre-se a mais importante retrospectiva de
23, 77). A Coleção Mary Sisler (90 peças mais Duchamp organizada até o momento, no Philadelphia
miscelânea) é apresentada na Nova Zelândia e na Museum of Art; no Museum of Modern Art, Nova
Austrália, começando na City Aukland Art Gallery. A York, e no Art Institut of Chicago, sob a direção de
mostra viajará até 1968, passando por outras cinco Anne D'Harnoncourt e Kynaston McShine. O
galerias australianas. Catálogo, uma monografia, reúne textos de David
1968. Cheminée a Cadaqués (Lareira em Antin, Anne D'Harnoncourt, Richard Hamilton, Robert
Cadaqués), duas vistas estereoscópicas do projeto de Lebel, Lucy R. Lippard, Kynaston McShine, Octavio
Duchamp para um atalho que deveria ser construído Paz, Michel Sanouillet, Arturo Schwarz, Lawrence D.
em sua residência de verão de Cadaqués, e Cheminée Steefel Jr. e John Tancok.
anaglyphe (Lareira Anaglífica), desenho

77
Catálogo

Parte um: "A Noiva Despida por Seus Celibatários, 14. Capa para o Catálogo Primeiras Cartas do Surrea-
Mesmo" e trabalhos relacionados lismo/Cover for the Catalog First Papers of
S urrea/ism, 1942
1. Nu em Pé/Standing Nude, 1911 Brochura, 52 páginas ilustradas, 26,6 x 18,4 cm
Tinta da índia e carvão, 62,5 x 47,8 cm (estudo) SCR n. ° 313
SCR* n. o 161 15. A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mes-
2. Rapaz e Moça na Primavera/Young Man and Girl mo/The Bride Stripped Bare bV Her Bachelors,
in Spring, 1911 Even, 1958
Oleo sobre tela, 65,7 x 50,2 cm Fotografia de O Grande Vidro colorida a mão por
SCR n° 162 Duchamp, 30,8 x 21,2 cm
3. Moedor de Café/Coffee Mil!, 1921 SCR n° 345
Água-forte de Marcel Duchamp e Jacques Villon 16. A Noiva/The Bride, 1965
a partir do Moedor de Café/Coffee Mil!, 1911, de Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
Duchamp, 18 x 8 cm (placa), 25,5 x 20,3 cm (fo- 25 cm
lha) S C R n. ° 382 a, b, c
Não catalogada 17. A Inscrição do Alto/The Top Inscription, 1965
4. Nu Descendo uma Escada/Nude Descending a Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
Staircase, 1937 50cm
Reprodução colorida do Nu Descendo uma Esca- SCR nO 383 a, b, c
da, n. o 2/Nu Descendant un Escalier n. o 2, 1912, 18. Os Nove Moldes Machos/The Nine Malic
35 x 20cm Moulds, 1965
SCR nO 414 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
5. Noiva/Bride, 1934 25 cm
Água-tinta de Marcel Duchamp e Jacques Villon S C R n. ° 384 a, b, c
a partir de A Noiva/La Mariée, 1912, de Du- 19. O Moinho de Água/The Water Mil!, 1965
champ, 49,5 x 31 cm (placa), 65 x 50 cm (foíha) Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
Não catalogada 25cm
6. Noiva/Bride, 1937 SCR n. o 387 a, b, c
Reprodução colorida de A Noiva/La Mariée, 20. Moedor de Chocolate/The Chocolate Grinder,
1912, de Duchamp, 33,8 x 19,5 cm 1965
SCR n. O413 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
7. Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Plan- 50cm
ta), 1913, reprodução de 1934 SCR n. o 388 a, b, c
Reprodução impressa em azul, 25,5 x 31,1 cm 21. As Peneiras/The Sieves, 1965
SCR n. o 198a Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
8. Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Eleva- 25cm
ção), 1913, reprodução de 1934. S C R n. ° 385 a, b, c
Reprodução impressa em azul, 25,5 x 31,1 cm 22. A Testemunha Oculista/The Oculist Witnesses,
SCR n. o 198a 1965
9. Pist[o de Corrente de Ar/Draft Piston, 1965 Agua-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x
Cópia positiva sobre celulóide para determinar a 25cm
forma de um dos Três Pistões de Corrente de Ar S C R n. ° 386 a, b, c
em O Grande Vidro, 1914,29,9 x 23,7 cm 23. O Grande Vidro/The Large Glass, 1965
SCR n. 0379 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50 x
10. Criação de Poeira/Dust Breeding, 1920, prova de 33cm
1964 S C R n. ° 389 a, b, c
Prova do negativo original da fotografia de Marcel 24. O Grande Vidro Completado/The Large Glass
Duchamp e Man Ray, 24 x 30,5 cm Completed, 1965
SCR n. Os 269,269 a Água-forte colorida sobre papel pergaminho japo-
11. Testemunha Oculista/Oculist Witnesses, 1920 nês, 50 x 33 cm
Lápis sobre o avesso de papel carbono, 50 x 37,5 SCR n. O390
cm 25. O Grande Vidro e Trabalhos Relacionados/The
SCR n. ° 270 c Large Glass and Related Works (Vol. I), por Artu-
12. A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo ro Schwarz, 1967
(A Caixa Verde!/The Bride Stripped Bare bV Her Livro ilustrado com nove águas-fortes originais
Bachelors, Even (The Green Box!, 1934 (acima citadas) e 144 reproduções de notas e es-
Placa de uma cor e 93 documentos reproduzidos tudos preliminares, de Duchamp, para O Grande
em colotipia, guardados na Caixa Verde, 33,2 x 28 Vidro, 42,2 x 25 cm
x 2,5 cm SCR nO 395
SCR n. ° 293
13. À Maneira de Delvaux/ln the Manner of Delvaux,
1942
Colagem: folha de estanho sobre papelão e foto,
34 x 34 cm
SCR n. 0312 * Schwarz Catalogue Raisonné

78
26. Capa para À l'lnfinitif/Cover À l'lnfinitif, 1967 39a. Farmácia/Pharmacv, 1914, réplica de 1945
Reprodução em off-set de 79 notas referentes a O Readymade retificado colorido a mão por
Grande Vidro, guardadas em uma caixa de plexi- Duchamp, 22 x 15,6 cm
glass com lU mal reprod uçãoido i Planador Contendo 40. Secador de Garrafas/Bottle Drver, 1914, réplica
um Moinho de Àgua/Glider Containing a Water de 1964
Mill na capa, 33,3 x 29 cm Readymade: ferro galvanizado, 64,2 cm
SCR n. 0393 SeR nO 219 d
27. Detalhes Selecionados Segundo Cranach e "Re- 41. Estirado a Quatro Alfinetes/Pulled at Four Pins,
lâche"/Morceaux Choisis d'Aprês Cranach et 1964
"Relâche", 1967 Água-forte, 64 x 46,5 cm (única representação
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 do readymade Pulled at Four Pins, 19151
x 32,5 cm SeR n. ° 372 a
S e R n. o 398 a, b, c 42. À Frente do Braço Quebrado/In Advance of t.'7e
28. Depois do Amor/ Aprês /'Amour, 1967 Broken Arm, 1915, réplica de 1964
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 Readymade: madeira e ferro galvanizado, 132
x 32,5 cm cm
S e R n .o 399, a, b SeR n° 233 c
29. Detalhes Selecionados Segundo Rodin/Mor- 43. Encontro do Domingo, 6 de Fevereiro de
ceaux d'Aprês Rodin, 1968 1916 ... / Rendez-vous du Dimanche 6 Février
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 1976... , 1916, reprodução de 1941
x 32,5 cm Readymade verbal: texto datilografado sobre
S e R n. o 400 a, b um bloco de quatro cartões postais, 24,2 x 14,3
30. O BecAuer/The BecAuer, 1968 cm
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 SeR nO 236
x 32,5 cm 44. Pente/Comb, 1916, réplica 1964
SeR n.o401 a, b, c Readymade: aço cinza, 11,6 x 3 x 0,3 cm
31. Detalhes Selecionados Segundo Ingres li Mor- SeR nO 237 b
ceaux Choisis d'Aprês Ingres I, 1968 45. Com Ruído Secreto/With Hidden No/se, 1916,
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 réplica de 1964
x 32,5cm Semi-Readymade: bola de barbante contendo
SeR nO 402 a, b, c um objeto com ruído secreto entre duas placas
32. A Noiva Despida ... / La Mariée M ise a Nu ... , 1968 de latão, 12,9 x 13 cm, sustentadas por quatro
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 parafusos, 11,4 cm
)( 32,5 cm SeR n. o 238 b
S e R n. o 403 a, b, c 46. Dobrável de Viagem/Traveller's Folding Item,
33. Detalhes Selecionados Segundo Ingres IIIMor- 1916, réplica de 1964
ceaux Choisis d'Aprês Ingres 11,1968 Readymade: capa de máquina de escrever
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 Underwood, 23 cm
x 32,5 cm seR n° 240 b
S e R n. ° 404 a, b, c 47. Apolinêre Esmaltado/ Apolinêre Enameled, 1916-
34. Rei e Rainha/King and Queen, 1968 17, réplica de 1965
Água-forte sobre papel pergaminho Japonês, 50,5 Readymade retificado: cartão e propaganda
x 32,5 cm pintada em folha-de-flandres, 24,5 x 33,9 cm
S e R n. ° 405 a, b, c SeR n. o 243 b,c
35. Detalhes Selecionados Segundo Courbet/Mor- 48. Fonte/Fountain, 1917, réplica de 1964
ceaux Choisis d'Aprês Courbet, 1968 Readymade assistido: mictório masculino em
Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 louça 62,5 cm
x 32,5 cm SeR n.O 244 d
e
S R n. ° 406 a, b. c 49. Armadilha/Trébuchet, 1917, réplica de 1964
Readymade assistido: porta-casaco preso ao
Parte dois: Os readymades chão, 11,7 x 100 cm
SeR n.O 248 a
36. Errata Musical/Musical Erratum, 1913, reprodu- 50. Porta-Chapéus/Hat Rack, 1917, réplica de 1964
ção de 1934 Readymade assistido: porta-chapéu suspenso
Readymade musical: tinta sobre papel com pauta no teto, 23,5 x 14 cm (diâmetro da base)
musical, 31,2 x 24,2 cm SeR n.O 249 a
SeR nO 196 b 51. L.H.O.O.Q, 1919, réplica de 1964
37. Roda de Bicic/eta/Bicvcle Wheel, 1913, réplica de Readymade retificado: lápis sobre reprodução
1964 de Mona Lisa, 33,2 x 25,5 cm
Readymade assistido, 126,5 cm SeR n o 261 e
SeR n. o 205 e 52. Cheque Tzanck/Tzanck Check, 1919
38. Três Cerziduras-Padrão/Trois Stoppages Etalon, Imitação do Readymade retificado: impressão
1913-14, réplica de 1964 em vermelho com borracha, 21 x 32,2 cm
Assemblage montada no interior de caixa de SeR n. ° 263.
madeira, 129,2 x 28 x 23 cm 53. Ar de Paris/Paris Air, 1919, réplica de 1964
seR n. o 206 c Readymade: ampola de vidro de 50 cc, 13,3
39. Farmácia/Pharmacv, 1914, reprodução de 1941 cm
Reprodução colorida do Readymade retificado, SeR nO 264 c
22,2 x 16,2 cm
SeR n. o 208 b

79
54. Viúva Fresca/Fresh Widow, 1920 66. Água e Gás em Todos os Andares/Water &
Semi-Readymade: miniatura de janela-francesa Gas on Everv Floor, 1958
pintada de verde-claro, com as vidraças Imitação de Readymade: Inscrição em branco
cobertas com couro preto, 77,5 x 45 cm sobre placa esmaltada azul imitando os cartazes
(janela), 10 x 53,3 x 1,5 cm (base) afixados nas casas-apartamentos da França, no
SCR n. o 265 b começo do séc. XIX, 15 x 20 cm
55. Por que Não Espirrar, Rose Sélavv?/WhV not SCR n. o 347
Sneeze Rose Sélavv?, 1921, réplica de 1964 67. Par de A ventais de Lavadeira/ Couple of
Semi-Readymade: 152 cubos de mármore em Laundress's Aprons, 1959
forma de torrões de acúcar, com termômetro e Imitação de Readymade retificado: tinta de
osso de siba, em uma pequena gaiola de tinturaria sobre um pequeno pedaço de pano
pássaros, com quatro barras de madeira, 11 A x branco, 20,5 x 19,8 cm (figura feminina), 20,3 x
22 x 16 cm 17,7 cm (figura masculina)
SCR n. o 274 b 68. Estirado a Ouatro Alfinetes/Tiré à Ouatre
56. Um Cartaz Dentro de um Cartaz/ A Poster Épingles, 1959
Within a Poster, 1963 Água-forte original a partir do Readymade
Reprodução do Readymade retificado, verbal sobre o título em inglês Pulled at Four
Procura-se, 2.000 Dólares de Pins, 1915, 11,5 x 11,5 cm
Recompensa/Wanted, $ 2,000 Reward, 1923, SCR n. ° 357
87,5 x 69 cm 69. Ouatro Readvmades/Four Readvmades, 1964
SCR n. 0363 Litografia original a partir de quatro
57. Obrigação de Monte Carlo/Monte Carlo Bond Readymades realizados entre 1913-1917, 32 x
1924 23,2cm
Imitação de Readymade retificado: Litografia SCR nO 367
colorida com foto de Marcel Duchamp por Man 70. Certificado de Leitura/Certificat de Lecture,
Ray, sobre papelão, 31 x 5 x 19,5 cm 1964
SCR n. Os 280, 280 a, b Litografia original, 32 x 46,5 cm
58. Porta: Rua Larrev, 17 /Door: 17, Rue Larrev, SCR n. o 368
1927, réplica de 1963 71. Reflexo do Espelho/Mirrorical Return, 1964
Fotografia colorida, em tamanho natural, do Água-forte original a partir do Readymade de
ambiente onde foi instalado o Readymade 1917,26,5 x 19,5 cm
assistido, montada sobre madeira, 250 x 100 cm SCR nO 370 a
SCR n. o 291 b 72. Bouche-Évier, 1964, edição 1967
59. Rrose Sélavv, 1939 Readymade: tampão de chumbo feito para a
Brochura, 20 páginas não numeradas, 16 x 12 banheira do apartamento de Duchamp, 0,5 cm
cm x 7,5 cm (diâmetro)
SCR n. ° 308 SCR n. o 371 b
60. Bigode e Barba de L.H.O.O.O./Moustache and 73. L.H.O.O.O. Barbeada/L.H.O.O.O. Shaved,
Beard of L. H. O. 0.0., 7947 1965
Desenho feito como frontispício para um poema Readymade: reprodução da Mona Lisa, 8,8 x
de Georges Hugnet, intitulado "Marcel 6,2 cm
Duchamp", 9,5 x 14,6 cm (página inteira) SCR n. ° 375
SCR n. 0310 74. Homenagem a Caissa/Homage to Caissa, 1966
67. Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1943 Readymade: tabuleiro de xadrez de madeira, 48
Readymade retificado: tabuleiro em couro, x 48 cm
celulóide, alfinetes, 16 x 10,5 cm SCR nO 391
SCR nO 318 75. Caixa em Valise/La Boite-en-Valise, 1941
62. Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1961-64 Caixa dentro de valise de cartão contendo:
Segunda série de tabuleiros sobre plástico réplicas em miniatura, fotografias e reproduções
magnetizado (eliminam a necessidade dos coloridas das obras de Duchamp, 40,7 x 38,1 x
alfinetes), 15 x 12 cm 10,2 cm
63. Capa para o Catálogo "Le Surréalisme en Moderna Museet de Estocolmo
7947"/ Cover for the Catalog "Le Surréalisme
en 7947"
Brochura, 146 páginas ilustradas, 23,5 x 20,5
cm
SCR n. ° 328
64. Colete/Waistcoat, 1958
Readymade retificado: flanela listrada em
vermelho e preto, 60 cm
SCR n" 342 b
65. Fechadura de Segurança com Colher/Verrou de
Sareté à la Cuiller, 1957
Fotografia original do Semi-Readymade: colher
fixada em uma fechadura, 24 x 18 cm
SCR nO 343

80
L.H.O.O.O. Barbeado/L.H.O.O.O. Shaved, 1965

Bigode e Barba de L.HO.O,O./Moustache and Beard of L.HO.O.O., 1941

81
Duchamp na . nal
Em março de 1949, o Museu de Arte Moderna de
São Paulo, promotor das primeiras bienais, é
inaugurado oficialmente com a exposição DO
FIGURATIVISMO AO ABSTRACIONISMO. Essa
mostra, cuja organização ocupou quase todo o ano
de 1948, previa, em seu projeto inicial, a participação
de artistas dos Estados Unidos e da Europa. A
seleção dos trabalhos vindos dos Estados Unidos
estava a cargo de Mareei Duchamp, Sidney Janis e
Leo Castelli, mas, por divergências quanto às verbas
de seguro das obras, a representação americana não
veio. A carta de Mareei Duchamp aqui reproduzida,
que pertence ao acervo do Arquivo Histórico da
Fundação Bienal de São Paulo, insere-se no contexto
de organização dessa primeira grande exposição feita
pelo MAM, sob presidência de Francisco Matarazzo
Sobrinho e direção de Léon Degand
V.d'H.

82
Tradução

210 West 14th Street


New York City

5 de Agosto de 1948.

Senhor

Recebi sua amável carta de 19 de Julho e o senhor


sabe como eu que o sr. Castelli já havia respondido a
quase todas as suas perguntas.
Espero que o senhor esteja satisfeito com a forma
que toma a exposição de São Paulo.
De minha parte, devo dizer que as cerca de
quarenta telas que o sr. Janis, Castelli e eu
escolhemos formam um conjunto bastante
representativo do movimento abstrato dos Estados
Unidos. Acrescentamos ainda, aqui e ali, alguns semi-
abstratos para tirar a monotonia de certo rigor
teórico.
Além dos Mondrian, Miró, Tanguy e Matta,
muitos pintores americanos quase desconhecidos fora
dos Estados Unidos se impõem por seu valor e eu
lamento muito que o sr. Castelli, que reuniu com
tanto amor esse conjunto, não esteja em São Paulo
para apresentá-lo com conhecimento de causa.
Com todos nossos votos de um grande êxito,
queira receber, senhor, a certeza de meus melhores
sentimentos.
Mareei Duchamp

83
Diagrama de O Grande Vidro, segundo R. Hamilton

AURÉOLA DESENVOLVIMENTO CINEMÁTICO HALO DA NOIVA TiTULO INSCRiÇÃO DO ALTO VIA LÁCTEA

UNIDADES ALFABÉTICA'"

CAIXA DE CARTAS PISTONS DE Transmite as ordens do


FILETES GRADE TRIPLA
CORRENTE DE AR enforcado femea

NOIVA
ÁRVORE-TIPO
MÁQUINA A VAPOR
I VESPA

ICILlNDRO SEXUADOI
I organiza a pressão atmosférica
se-ereta a essência de amor por osmose
controla as centelhas do magneto-desejo
TIROS

ESQUELETO
ENFORCADO FÊMEA r--------,
VIRGEM I GAIOLA I contém a massa de filamentos
_______ ..J

motor com
cilindros bem fracos

RESERVATÓRIO

de essência de amor
r- --- - - ---,
I I
I OPERADOR DE I
VESTES DA NOIVA HORIZONTE GRAVIDADE

I ...
ESFRIADOR PLACAS EFEITO WILSON LlNCOLN I LUTA DE BOXE
NERVURADO ISOLANTES I I
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Cf! UJ õ-
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3 co Qj,
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C1J C _ TESOURAS CONTROLA OS BORRIFOS
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oro::;::::;. DA NOIVA
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Cf!

3C1J TESTEMUNHAS
DC '" (f> OCULISTAS
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co TUBOS CAPILARES

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solidificam e misturam o gás de paletas transformadas em suspensão líquida espalhada
iluminação
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CEMITÉRIO DE UNIFORMES E LlBRÉS
CASCATA :BOMBA:
MOLDES MACHOS
MATRIZ DE EROS
gás de iluminação.
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PATINS
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84
Níveis de Significado de. O Grande Vidro

Obra buscada por mais de uma dezena de anos, o passo decisivo: em 1968, no catálogo da exposição
cujos elementos iniciais aparecem desde 1912, e "A Máquina Vista no Fim da Era Mecânica", K.G.
deixada "definitivamente inacabada" em 1923, O Pontus Hulten divulgava as pesquisas de Ulf Linde. O
Grande Vidro provocou, mais do que qualquer outra ponto de partida de sua tentativa era a curiosa
obra plástica do século XX, uma massa de analogia, temática e formal ao mesmo tempo, que se
comentários críticos, destinada, também esta, a encontra entre um desenho preparatório de O Grande
permanecer em estado de definitivo inacabamento. Vidro, intitulado, a Noiva Despida por seus
Examinaremos a seguir as diversas "chaves" Celibatários, datado de 1912, e uma ilustração tirada
usadas comumente pelos críticos: de um tratado de alquimia de Solidonius e publicada
em 1964 por Eugene Conseliet no seu Alchimie
Esoterismo
(Alquimia), mostrando dois homens desnudando uma
André Breton, em 1935, em Phare de la Mariée Virgem. O despojamento da Virgem, da futura Noiva,
(Farol da Noiva),foi o primeiro a tentar uma definição é a ilustração da perda de cor que a prima matéria do
de O Grande Vidro: "Troféu de uma caça fabulosa alquimista sofre nas operações de liquefação e
por terras virgens, nos confins do erotismo, da transmutação. Como conseqüência, assim como O
especulação filosófica, do espírito de competição Grande Vidro alquímico é a produção de ouro pelo
esportiva, das últimas descobertas das ciências, do casamento filosófico de um elemento viril, seco - o
lirismo e do humor". Ele também inicia uma enxofre - com um elemento feminino e volátil - o
interpretação: "Nós nos encontramos aqui em mercúrio - geralmente representados
presença de uma interpretação mecanicista, cínica, do respectivamente por um Rei vestido de vermelho e
fenômeno amoroso: a passagem da mulher do estado por uma Rainha vestida de branco, assim O Grande
da virgindade ao estado de não-virgindade, tomado Vidro seria a representação dessa Grande Obra, que
como tema de uma especulação de natureza não superpõe o Domínio da Noiva, o mercúrio, ao
sentimental - como se um ser extra-humano Domínio dos Celibatários, o enxofre.
estivesse tentando imaginar esse tipo de operação" Em 1976, entretanto, Ulf Linde, consultando o
A contenção de Breton, sua vontade de manuscrito original de Solidonius, na Biblioteca do
permanecer fiel - não obstante sua própria Arsenal, em Paris, e constatando o quanto ele
concepção do Amor e do prodigioso - ao divergia da versão reproduzida por Canseliet,
temperamento seco e cínico de Duchamp, contrastam modificou seu ponto de vista e apresentou uma
com a idéia que o próprio Breton faz da poesia, análise muito mais convincente das ligações que
assimilada da alquimia, como testemunha o Segundo Duchamp poderia ter estabelecido com o saber
Manifesto do Surrealismo, de 1929: "Eu peço que se alquímico (Cf. Linde, Ulf, L'Ésoterique, vol. 111).
observe bem que as pesquisas surrealistas apresentam Arturo Schwarz publicaria em 1968 sua
CIma notável analogia, no seu objetivo, com as monumental monografia, Sem ter conhecimento da
pesquisas da alquimia: a pedra filosofai não é nada tese de Ulf Linde, ele desenvolvia por sua vez uma
mais do que aquilo que deveria permitir à imaginação explicação de O Grande Vidro que deriva amplamente
do homem assumir a responsabilidade por uma da alquimia e dos arquétipos de Jung.
ruidosa vingança sobre todas as coisas". Entretanto, Um elemento freudiano, ou pseudofreudiano, no
é apoiando-se de alguma forma nessa poética de entanto, se acrescentou: a hipótese ( ... ) de uma
Breton e, portanto, surrealizando Duchamp, que os atração incestuosa de Marcel Duchamp por uma de
comentaristas seguintes vão recorrer à alquimia para suas irmãs, a mais velha, Suzanne, Era isso que ele
"explicar" O Grande Vidro. acreditava ver no quadro de 1912, Rapaz e Moça na
Em 1958, Michel Sanouillet, em seu prefácio para Primavera, onde o jovem anteciparia os Celibatários e
o Marchand du Sei (Mercador de Sa/), retoma por a jovem a Noiva de O Grande Vidro. Na tradição
sua vez a comparação com a alquimia: "Uma idéia, alquímica, ressaltava ele, o casal incestuoso
uma palavra, duas semicolcheias, uma desarmonia de Irmão/Irmã simboliza o casal SollLua. Sua união
cores, desde que sejam inventadas, bastam para reconstitui a unidade original do ser primordial, o
desencadear um verdadeiro processo de transmutação andrógino hermético, imortal. O título de O Grande
( ... ). Assim o homem importante nos aparece como Vidro, "La Mariée Mis à Nu par Ses Célibataires,
este alquimista cuja obra (. .) pode operar essa Même", "A Noiva Despida por Seus Celibatários,
transmutação", (o grifo em como é nosso). Mesmo", tornava-se então: "A Noiva Despida por
No ano seguinte, em 1959, Robert Lebel vai um seus Celibatários, M8 Ama" (Même = M'Aime), título
pouco além: "Vendo-se um homem que se fecha em de uma história de amor impossível entre uma esposa
segredo, que obedece visivelmente a uma regra, que semicomplacente e um celibatário. A expressão da
se ocupa com trabalhos estafantes dos quais toma o qual se serve Duchamp, nas notas da BOlte-Verte
cuidado de não se vangloriar nem aproveitar e que ele (Caixa Verde), para designar o Vidro, "máquina
subitamente abandona sem motivo aparente - não agrícola" tornava-se a de um casamento simbólico
será razoável estabelecer uma ligação entre ele e as entre o Céu e a Terra. Schwarz transpunha daí a
indagações filosóficas?" (Bibl. nO 67, págs. 74-75). conjunção dos opostos (coniunctio oppositorum) , a
Da imagem poética passou-se à conjectura. O tom androginia alquímica, a quase todos os aspectos da
permaneceu prudente e interrogativo, mas o que não produção de Marcel Duchamp: da nuvem da Via
era ainda mais que pura imaginação entrou no campo Láctea, na qual coexistem harmoniosamente o gás
do possível: Duchamp não teria sido, de uma forma masculino e a água feminina, até a Mona Lisa
autêntica, um iniciado? ornamentada com bigodes masculinos, e até a porta
Nove anos mais tarde, um historiador de arte dará da casa da Rua Larrey n. o 10, que, por ser ao mesmo

85
tempo aberta e fechada, revelava seu caráter Os Celibatários tornam-se os "celi-battiori", os
andrógino ... "batedores celestes", os cônjuges celestes da Virgem.
As comportas dando passagem à polissemia As Testemunhas Oculistas, compostas de três
simbólica, o crítico de arte americano Nicolas Calas, elementos em elipse (comparadas a auréolas ou a
em 1969, em um artigo da revista Art in America, nimbos), aos quais se acrescenta um disco, compõem
retomava a tese de Ulf Linde, mas a enriquecia, ou a quatro figuras para estabelecer os quatro
complicava, introduzindo um tema que daí por diante Evangelistas. Estes quatro elementos heterogêneos
iria fazer furor: o Tarot. O autor podia assim escrever: (3+ 1) tornam-se, todavia, três, se os juntarmos aos
"Mesmo que não se encontre, na Caixa-Verde, Nove Moldes Machos, compondo assim os Doze
nenhuma menção ao jogo do Tarot, Duchamp Apóstolos.
certamente deve tê-lo tido em mente ... "; e ele via em Por que "oculistas", se interroga Calves, em lugar
cada figura do Vidro a configuração de uma carta: no de "oculares"? Porque eles são as testemunhas
Carro, uma alusão à Carta do Carro; na roda do oculares do oculto: "testemunhas ocultistas".
moinho, a imagem da Roda da Fortuna; na Mulher Indo além dessa iconografia religiosa assim
Enforcada (Pendu Feme/le, ou Enforcado Fêmea), a "desviada", Calvesi tenta em seguida definir o
Carta do Enforcado etc. conteúdo hermético, identificá-lo por sua vez, e,
Essa hermenêutica encontrava um vértice depois de Schwarz, com os elementos alquímicos. A
provisório no ensaio de um outro americano, Jack Noiva é seguramente Maria, a Virgem, a Esposa. É a
Burnham, "O Significado do Grande Vidro", que a água mercurial dos filósofos, quer dizer, a água
revista VH 101 publicaria em francês em 1972. Burn depois de ter sido purificada dos enxofres com os
retomou a alquimia e o Tarot, a eles acrescentando quais ela se casou em sua mina. O desnudamento é a
um novo ingrediente: a Cabala, transformando operação pela qual ela reencontra sua virgindade, que
Duchamp em gnóstico: "A mensagem do Vidro está a libera das escórias do casamento corporal para
contida por inteiro no valor dos números do título. A prepará-Ia para o casamento espiritual. É a passagem
soma das letras até o primeiro corte - "A Noiva do negro para o branco: o branco da sublimação ou
Despida por" é 18. Na seção seguinte, ". .seus da depuração. A Via Láctea é, desde então, o "leite
Celibatários, Mesmo", essa soma chega a 19. Dezoito da Virgem", o metal vivo sublimado. "A Árvore-Tipo"
reproduziu os 18 mistérios do Tarot, a Lua que da qual fala Duchamp a propósito da Noiva, não é
governa o período de ruína completa. Sabendo-se que outra senão a "arbor philisophica" ao longo da qual
a Lua é fêmea e controla os poderes das forças da se inscrevem as operações sucessivas da
água, Duchamp liga esse Mistério à Noiva. Dezenove, transmutação. Não nasce ela, diz Duchamp, em
por outro lado, significa os primeiros passos da "ramos cobertos de geada de níquel e platina"? Ora,
regeneração física através do Sol viril. níquel e platina são metais brancos.
Com essa tirada Burnham acreditava também Falta o "mesmo" do título, o obstáculo imprevisto
descobrir através da decifração desta obra - que para todas essas exegeses. Como Burnham, Calvesi
seria, diz ele, inteiramente numerada pelos Tarots e chama então a Cabala em seu socorro. Segundo o
pelas letras do alfabeto hebraico uma escatologia ocultista Enel, diz ele, "A letra MEM (no alfabeto
de toda a arte do Ocidente, desde suas origens até a hebraico) é o princípio feminino, passivo, símbolo de
arte de hoje: a simbologia dos quatro elementos na água. É a raiz MA, a matéria passiva, coisa da qual e
obra de Duchamp anunciaria as correntes mais atuais pela qual tudo se faz: é a água. Por outro lado, MA
da arte de agora: a earth art e a land art. Assim ele expressa a mulher, a mãe. É a primeira palavra
interpretava a figura dos "Nove Tiros" como uma articulada pela criança em quase todas as línguas". O
profecia de Duchamp: "É preciso perceber neste que Duchamp teria querido dizer, falando de sua
processo a mais crucial fase de sua atividade "Noiva Despedida por Seus Celibatários, Mesmo",
cabalística, porque ela significa a longa viagem em seria: "A Virgem Maria Transportada às Nuvens por
direção ao Kéther, a reintegração da cultura Seus Batedores Celestes, MEM" ..
completamente submetida durante um período de
dois mil anos. Simbolismo

Religião Marcados por uma linha mais historicista, mais


atentos às diferenças de tempo, um certo número de
Desde 1951, Harriett e Sidney Janis encaravam O comentadores tentou restituir a obra de Duchamp ao
Grande Vidro como a figuração abstrata de uma clima particular de sua época, ou seja, o Simbolismo.
moderna Ascensão da Virgem; a parte inferior Octavio Paz, em Le Chateau de la Pureté (O
representaria "o mundo secular e suas motivações", a Castelo da Pureza), lembra o quanto Duchamp amava
parte superior "o reino do mecanismo interior e do Mallarmé e aproxima assim O Grande Vidro da
espírito interior". poética mallarméana. O Nu Descendo uma Escada
Um quarto de século mais tarde, o historiador de seria a ilustração da descida de Igitur, e O Grande
arte italiano Maurizio Calvesi retomava essa tese. Vidro o equivalente do Un Coup de Dés, "à procura
Segundo ele, o título da obra "A Noiva Despida ... " de significação." Toda a obra duchampiana, enfim,
deve ser interpretado como "Maria (a Virgem) seria na sua recusa de encarnação sensível alguma
transportada às nuvens ... " A partir daí, Calvesi se coisa de muito próxima da liberdade mÇlllarméana.
entrega a uma leitura sistemática de seus diversos John Golding, em um ensaio recente, lembra
elementos. igualmente a importância que tinham tido, aos olhos
Os três quadrados brancos que se inscrevem na de Duchamp, poetas como Laforgue e Mallarmé, ou
nuvem (Os Pistons de Correntes de Ar da Via Láctea) escritores formados pelo clima simbolista como Jarry,
são a Santíssima Trindade. Para evocar esta nuvem, Apollinaire e Roussel, e um pintor literário, enfim,
Duchamp não fala de "coroa", de "auréola"? A como Odilon Redon. Desse modo ele aproxima, de
forma de paralelepípedo do Carro, na parte inferior, maneira convincente, certos temas do Vidro, como
não é senão uma representação do sepulcro vazio da hermafroditismo e esterilidade, e seu tom geral, uma
Virgem. Tanto mais que ele recita "litanias". irônica desesperança, de uma obra como Herodiade.

86
Esquema de O Grande idro, segundo Jean Suquet

- - - - - - - - - - 1 1 1 1 . Carro
la. Roda d'Água (ou Moinho
de Àgua)
1b. Pinhão (eixo do Moinho
de Àgua)
- . . " ('Ali 1c. Alçapão Abrindo Sobre o
Subsolo
1d. Roldana de Queda
1e. Revolução da Garrafa de
Licor Bénédictine (Cascata)
1f. Patins de Trenó

- -- - 19. Carreta
2. Cemitério de Uniformes e
Librés (ou Matriz de Eros)
2a. Padre
2b. Entregador do Grande
Magazine
2c. Policial
2d. Soldado
2e. Guardião da Paz
21. Agente Funerário
2g. Lacaio

A j 2h. Ajudante de Garçom


("Caçador de Café")

!
2i. Agente Ferroviário ("Chefe

la!!
de Estação")
3. Tubos Capilares
4. Peneira
5. Moedor de Chocolate

ij
5a. Tripé Luís XV Niquelado
5b. Roletes
5c. Gravata
5d. Baioneta
la! = I!i 6. Grandes Tesouras

1d
o: Noiva
7a. Anel de Suspensão do
Enforcado-Fêmea

14
! 14
7b. Encaixe-Rótula
7c. Cabo conduzindo a

i!
matéria com filamentos
1e 7d. Vespa
3 8. Via Láctea (carne)
9. Pistons de Corrente de Ar

u;O l
10. Bomba-Borboleta
11. Tobogã (ou Declive de
6 Fluxo)
12. Região dos Três Choques
(ou Borrifos)
13. Horizonte - Vestes da
Noiva
13a. Ponto de Fuga da
Perspectiva do Celibatário
13b. Região do Efeito Wilson-
Lincoln e 9 Buracos
14. Luta de Box
15. Testemunhas Oculistas
16. Diagrama Óptico (Lupa-
Lente da Kodak)
17. Nove Tiros
18. Operador de Gravidade
18a. Tripé
19 18b. Haste
Estabilizador

: Viagem do Gás de
Iluminacão
__ : Linguagem da Noiva

87
É ainda à "explicação" simbolista que se pode Estética e Filosofia
ligar o ensaio de Michel Carrouges, "Les Machines
Célibataires" ("As Máquinas Celibatárias"), escrito em Já se disse que o processo artístico de Mareei
1950, mas publicado somente em 1954. Carrouges vê Duchamp é parecido com o do filósofo, que esse
no Vidro, que superpõe um conjunto "maquinal" artista filosofa enquanto trabalha sua obra.
a Máquina Celibatária e um conjunto "orgânico" Concomitantemente, ao falar sobre o fenômeno da
a Noiva entre os quais se estabelecem relações criação artística, muitas inteligências do mundo
completas de atração, de recusa, de gozo e de morte, moderno e do século XX também construíram
o protótipo estrutural de outras máquinas fantásticas discursos no âmbito da filosofia. É o caso de
aparecidas, em literatura essencialmente, mais ou pensadores como os alemães Nietzsche, Schelling e
menos no mesmo momento, entre 1880 e 1920: Le Adorno, os franceses Sartre, Bachelard, Merleau-
SOrmale, de Alfred Jarry, as maquinarias maravilhosas Pontye Michel Foucault, o argentino Jorge Luis
inventadas por Matial Canterel no parque de Locus Borges e o mexicano Octavio Paz. Deste último é o
Solus, de Roussel, a Eve Future, de Villiers de L'lsle- importante ensaio Mareei Duchamp ou O Castelo da
Adam, o leito de suplício de A Colônia Penal, de Pureza (Editora Perspectiva, coleção Elos, São Paulo,
Franz Kafka etc. Nessa aparição de máquinas 1. a edição, 1977), que ilumina o próprio discurso
fantásticas onde se entrecruzam o erotismo e a contemporâneo sobre o significado da criação artística
morte, o ateísmo e a mistagogia, e especialmente ao introduzir o conceito de mito crítico/mito da
neste "grande totem" que é O Grande Vidro, ele vê crítica. Eis alguns trechos que explicitam esse
a mitologia essencial de nossa época. conceito no livro: "O Renascimento foi o princípio da
dissolução da grande Idéia greco-cristã da divindade,
Psicanálise
a última fé universal (no sentido restrito do termo:
Já vimos a importância das teorias de Jung nas igual à comunidade de povos europeus e eslavos,
intepretações de Arturo Schwarz. Menos amável é a igrejas do Oriente e do Ocidente). Certo, a fé
interpretação de René Held, que explica O Grande medieval foi substituída pelas imponentes construções
Vidro "pelos aspectos psicopatológicos evidentes da da metafísica ocidental mas, a partir de Kant, todos
personalidade de Duchamp, antes de mais nada esses edifícios desmoronaram e desde então o
colocada sob o signo da neurose obsessiva" e que pensamento foi crítico e não metafísico. Hoje temos
assegura: "O que permitiu a tantos autores diferentes crítica e não idéias, métodos e não sistemas. Nossa
dizer tantas coisas diferentes em relação às ( ... ) única Idéia, no sentido reto deste vocábulo, é a
elucubrações duchampianas de O Grande Vidro é o tato Crítica. O Grande Vidro é pintura de idéias porque
de que se pode projetar com a maior facilidade não (. .. ) é um mito crítico. Mas se fosse unicamente isso,
importa o que sobre uma tela transparente onde se seria só uma obra a mais e a empresa teria fracassado
encontra preparado não importa o que prestes a parcialmente. Sublinho que também e sobretudo é o
receber as ditas projeções". Mito da Crítica: a pintura da única idéia moderna.
Contrasta com essa resistência em ver o Vidro Mito Crítico: crítica do mito religioso e erótico da
outra coisa além de um ardil a importância dada a O Noiva Virgem em termos do mecanicismo moderno e,
Grande Vidro na problemática desenvolvida por simultaneamente, mito burlesco de nossa idéia da
Deleuze e Guattari, no Anti-Oedipe: a máquina ciência e da técnica. Mito da Crítica: pintura-
celibatária no interior de uma economia libidinosa monumento que conta um instante das
sucederia à máquina paranóica e à máquina transformações da Crítica no mundo dos objetos e
miraculosa para "formar uma nova aliança entre as das relações eróticas. Ora, do mesmo modo que a
máquinas desejosas e os corpos sem órgãos para o pintura religiosa implica que o artista, inclusive se é
nascimento de uma nova humanidade ou de um anti-religioso, creia de alguma maneira no que pinta, a
glorioso organismo". Essa nova máquina pintura da Crítica exige que ela mesma e seu autor
desenvolveria um prazer automático, "como se o sejam críticos ou participem do espírito crítico. Como
erotismo 'maquinal' liberasse outros poderes Mito da Crítica, O Grande Vidro é pintura da Crítica e
ilimitados" . crítica da pintura. É uma obra voltada sobre si
Várias outras explicações apareceram mesma, empenhada em destruir aquilo mesmo que
recentemente, menos preocupadas em geral com uma cria. A função da ironia aparece agora com maior
interpretação livre do que com uma volta ao texto de clareza: negativa, é a substância crítica que impregna
Duchamp e, por conseqüência, caracterizam-se por a obra; positiva, critica a crítica, nega-a e assim
ser mais rigorosas e metódicas. Pode-se citar o ensaio inclina a balança para o lado do mito. A ironia é o
de Jean Suquet, Le Guéridon et la Virgule, e o de elemento que transforma a crítica em mito.
Jean-François Lyotard, no catálogo das "Máquinas "Não é ilícito chamar O Grande Vidro de o Mito
Celibatárias", que vêem nas engrenagens do Vidro a da Crítica. É um quadro que faz pensar em certas
recorrência a uma maquinaria sofisticada de espaços obras que anunciam e revelam o mundo moderno,
com n dimensões". O recurso neste caso à filosofia sua oscilação entre o mito e a crítica. Penso na
pré-socrática põe em evidência que, curiosamente, epopéia burlesca de Ariosto e no Quixote, que é uma
nenhum lingüista se debruçou ainda seriamente sobre novela épica e uma crítica da épica. Com estas
a obra de Duchamp, apesar de ele ter mostrado um criações nasce a ironia moderna; com Duchamp e
vivo interesse por tudo aquilo que resulta dos jogos outros poetas do século XX, como Joyce e Kafka, a
de linguagem (Roussel, Brisset etc.) e aquilo que o ironia se volta contra si mesma. O círculo se fecha:
positivismo lógico anglo-saxão chama de significado fim de uma época e começo de outra. O Grande
do significado" (meaning of meaningJ. Vidro está na fronteira de um e outro mundo, o da
"modernidade" que agoniza e o novo que começa e
Textos extraídos do Catálogo L 'Oeuvre de Mareei que ainda não tem forma. Daí sua situação paradoxal,
Duchamp, organizado por Jean Clair, Centre National semelhante à do poema de Ariosto e ao romance de
d' Art et de Culture Georges Pompidou/ Musée Cervantes. A Noiva .. continua a grande tradição da
National d'Art Moderne, Paris, 1977. pintura do Ocidente, interrompida pelo aparecimento

88
da burguesia, o mercado livre de obras artísticas e o
predomínio do gosto. Como a dos "religiosos", esta
pintura é signo, Idéia. Ao mesmo tempo, Duchamp
rompe com esta tradição. O Impressionismo e demais
escolas modernas e contemporâneas continuaram a
tradição do ofício da pintura, embora tenham
extirpado a idéia na arte de pintar; Duchamp aplica a
crítica não só à Idéia mas ao próprio ato de pintar: a
ruptura é total. Situação singular: é o único pintor
moderno que continua a tradição do Ocidente e é um
dos primeiros que rompe com o que chamamos
tradicionalmente arte ou ofício de pintar. Dir-se-á que
muitos artistas atuais foram pintores de idéias: os
surrealis1;as, Mondrian, Kandinsky, Klee e tantos
outros. É certo, mas suas idéias são subjetivas; seus
mundos, quase sempre fascinantes, são mundos
privados, mitos pessoais. Duchamp é, como
Apollinaire o adivinhou, um pintor público. Não faltará
quem assinale que outros artistas também foram
pintores de idéias sociais: os muralistas mexicanos.
Por suas intenções a obra destes pintores pertence ao
século XIX: pintura-programa, algumas vezes arte de
propaganda e outras veículo de idéias ( ... ) sobre a
história e a sociedade. A Arte de Duchamp é
intelectual e o que nos revela é o espírito da época: o
Método, a Idéia crítica no instante em que reflete
sobre si mesma - no instante em que se reflete
sobre o nada transparente de um vidro. L .. ) A
moderna beatice que rodeia a pintura e que nos
impede de vê-Ia, é apenas idolatria pelo objeto,
adoração por uma coisa mágica que podemos apalpar
e que, como as outras coisas, pode vender-se e
comprar-se. É a sublimação da coisa em uma
civilização dedicada a produzir e consumir coisas.
Duchamp não padece desta cegueira supersticiosa e
sublinhou com freqüência a origem verbal, isto é,
poética, de sua obra ( ... ).
"( ... ) A história da pintura moderna desde o
Renascimento até nossos dias, poderia descrever-se
como a paulatina transformação da obra de arte em
objeto artístico: trânsito da visão à coisa sensível. Os
readymade foram uma crítica tanto do gosto como do
objeto. O Grande Vidro é a última obra realmente
significativa do Ocidente; e o é porque, ao assumir o
significado tradicional da pintura, ausente na arte
retiniana, dissolve-o em um processo circular e assim
o afirma. Com ela termina nossa tradição. Ou seja:
com ela e diante dela deverá começar a pintura do
futuro, se é que a pintura tem um futuro ou o futuro
há de ter uma pintura." (Octavio Paz, Mareei
Ouchamp ou o Castelo da Pureza.)

89
Bibliografia Selecionada

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LEGRAND, Gérard. André Breton en Son Temps, Ed.
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90
Planta da Exposição

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------1
I

• ..

-"'-- .: I

II
I
I

111 8i I
I
I
____________________________________________________________________________________________________________________________________________ ...1I

ANDAR TÉRREO

91
índice

íNDICE

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 9
O Grande Vidro e os Readymades, Mesmo ........ 11
I. Introdução ................................. 11
11. A Noiva Despida por seus Celibatários, Mesmo. 12
1. O tema ................................. 12
2. Um rompimento radical com as tradições
técnicas e iconográficas ................... 13
3. O desenvolvimento iconográfico ........... 17
4. Estágios iniciais de O Grande Vidro ......... 21
5. Continuando O Grande Vidro .............. 25
The Large Glass and Related Works ...... , .. 25
Detalhes Selecionados Segundo
Cranach e Relâche .................... 29
Depois do Amor ...................... 29
Detalhes Selecionados Segundo Rodin .. 29
O Bec Auer .......................... 29
Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I 31
A Noiva Despida ....................... 31
Detalhes Selecionados Segundo Ingres, 1131
Rei e Rainha ......................... 33
Detalhes Selecionados Segundo Courbet 33
6. A Mecânica de O Grande Vidro ............ 35
111. Os Readymades ............................ 42
1. A base teórica ........................... 42
2. Os Readymades e O Grande Vidro: ligações
veladas e desveladas ..................... 47
P.S. - Mareei Duchamp: o Homem, Mesmo ... 64
Notas ..................................... 66
Cronologia de Mareei Duchamp .............. 69
Catálogo .................................. 78
Anexo I: Duchamp na Bienal. ................ 82
Anexo 11: Níveis de Significado de O Grande
Vidro ...................................... 85
Esoterismo .............................. 85
Religião ................................. 86
Simbolismo ............................. 86
Psicanálise .............................. 88
Estética e Filosofia ....................... 88
Bibliografia selecionada ...................... 90
Planta da Exposição ......................... 91
Edição do Catálogo

Editores - Copytexto Serviços Editoriais S/C Ltda.:


Maria Otília Bocchini (coordenação)
Marcos Gomes
Paulo Gusmão

Concepção Gráfica e Programação Visual


Milton Medina

Documentação e Catalogação
Ivo Mesquita

Preparação e Adaptação do Texto


Marcos Gomes

Secretaria Editorial
Beatriz Carolina Gonçalves (coordenação)
Elisa Marcia Pinto Braga

Pesquisa
Monica Ester Struwe Razuk
Mônica Raisa Schpun

Revisão de Texto
Cássio de Arantes Leite
Crivo Editorial Ltda.
Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP
Márcia Accioli Gatto
Vania Marino Veballos

Tradução
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Thaís R. Manzano
Vera D'Horta
Zilda Abujamra Daeir

Serviços Editoriais Auxiliares


Ana Maria de Castro
David Fernandes da Silva
Márcia Regina Vanzo Sanches
Salime Aoum

Fotografia
Attilio Bacci
Enrico Cattaneo
Glória Flügel (reproduções)

Capa
Milton Medina - sobre Fresh Widow (1920), obra
de Rose Sélavy (Marcel Duchamp), réplica de 1964.
SRC nO 265b.

Uma realização da Fundação Bienal de São Paulo

COMPOSiÇÃO,
FOTOLITOS E IMPRESSAO
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