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A Grande Tela: curadoria e discurso crítico da pintura na década de 1980

Ivair Reinaldim
PPGAV/UFRJ

Aos acordes da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, tocando músicas


dos compositores Charles Yves e Eric Satie, bem como o Hino Nacional brasileiro, tinha
início no Pavilhão do Parque Ibirapuera, em 4 de outubro de 1985, a 18ª Bienal
Internacional de São Paulo. Iniciava-se também uma das grandes polêmicas da década
de 1980. A mega-exposição, sob curadoria de Sheila Leirner, então crítica de arte do
jornal O Estado de S. Paulo, poderia ter sido chamada de “Bienal da música
experimental”, destacando-se a presença de John Cage e a realização do “Happening
Cage”1; mas, justamente por colocar em xeque o propalado “retorno da pintura”, já
amplamente abordado por outras grandes exposições, como a Bienal de Veneza (1980) e
a Documenta de Kassel (1982), ficou conhecida como “Bienal da Grande Tela”. No
contexto cultural contemporâneo, se a 18ª Bienal foi vista como “enterro de uma
tendência”, por outro lado, nesse caso pouco se debateu sobre a relação entre discurso
crítico e prática de curadoria. Assim, nesse artigo pretendemos analisar tal relação, sem
a pretensão de esgotar o tema ou definir posições sectárias. Reconhecemos a
transitoriedade das respostas tanto quanto das perguntas.

Em consonância com a 16ª e a 17ª Bienais de São Paulo, edições que, sob a
curadoria de Walter Zanini, resgataram o prestígio internacional da exposição paulistana,
Sheila Leirner organizou a Bienal de 85 a partir do critério de afinidade de linguagens,
apresentando dois núcleos principais – o histórico e o contemporâneo – além de diversas
mostras especiais e eventos paralelos.2 Após passar pelo núcleo histórico, localizado no
primeiro pavimento do Pavilhão, o visitante chegava ao setor principal do núcleo
contemporâneo, no centro do segundo pavimento, compreendido por três longos
corredores, de 100 metros de extensão, por 6 metros de largura e 5 metros de altura.
Nessas paredes monumentais estavam expostas telas de grandes dimensões, com
pequena distância entre elas, de modo que cada uma sofresse interferência visual das
outras duas que as ladeavam, sugerindo ao observador, desse modo, a existência de
uma única pintura interminável. O projeto expográfico da “Grande Tela”, idealizado pelo
arquiteto Haron Cohen, em consonância conceitual com o discurso de Sheila Leirner,
misturava artistas internacionais, de considerável reconhecimento institucional e
mercadológico – entre eles alemães e italianos –, com a jovem produção brasileira de
pintura, sem que houvesse uma preocupação em identificar diferenças autorais ou
nacionais. Essa “nave principal” era seguida, paralelamente, por “naves laterais”, espaço
destinado às instalações, compreendidas nesse contexto como trabalhos em que os
artistas estavam preocupados com a investigação de novas linguagens. Vale lembrar
também que no terceiro pavimento havia mostras especiais dedicadas à videoarte e aos
suportes tecnológicos.

1
“Mais bem sucedido foi o ‘Happening Cage’ – a melhor coisa que aconteceu na Bienal no fim-de-semana.
Dispostos em pontos diferentes, pelos três andares do Pavilhão, grupos de músicos executavam, seguindo
um cronograma previamente organizado, peças de Cage. Algumas aconteciam simultaneamente, criando um
ambiente musical tipicamente cagiano (...). O compositor acompanhou o ‘Happening’. Passou por todos os
grupos, agradecendo aos músicos. Às vezes era interrompido, mas não estava disposto a conversar durante
a apresentação.” In: Gonçalves, Marcos Augusto. “A música deu o tom no Ibirapuera”. In: Folha de S. Paulo,
Ilustrada, 7 out. 1985, p. 19.
2
Entre as mostras, destacam-se “Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades”, “O Turista Aprendiz”,
“Máscaras da Bolívia”, “Entre a Ciência e a Ficção”, “Videoarte”, “Videoarte na Alemanha”, “Grupo Cobra”,
“Gravuras Cabichuí”, “Xilogravuras Populares”, etc., além de eventos paralelos relativos à música
experimental.
Fato é que a Grande Tela gerou polêmica capaz de eclipsar todos os outros
trabalhos expostos. A mesma iniciou-se a partir das reclamações dos artistas alemães –
Salome, Middendorf, Dokoupil, etc. –, fortemente competitivos em relação aos demais
artistas, durante a instalação de suas pinturas. Alegando a inadequação do espaço a
partir das dimensões dos trabalhos e a interferência ocasionada pela proximidade entre
as obras, ameaçaram debandar da Bienal. Por fim, ao retirarem algumas de suas
pinturas da parede, conseguiram arejar e dar certo destaque às que permaneceram. Por
outro lado, críticas levantadas pelos artistas brasileiros, menos ousados que os alemães
(e com menor “cacife”, diga-se de passagem), passaram praticamente despercebidas,
gerando apenas a seguinte resposta da curadora: “Vocês pintam e nós organizamos a
Bienal.”3 Assim, os espaços vazios passaram a representar a memória do choque, o
desconforto frente ao conflito entre a autoridade de quem cria e a autoridade de quem
organiza.

Analisando com certo distanciamento o partido assumido pela curadora, podemos


afirmar que esse foi compreendido como uma crítica não verbal ao modismo e à
“pasteurização” da pintura da década de 1980, mediante o processo de globalização
empreendido, principalmente, pelos meios de comunicação de massa. Para Agnaldo
Farias, por exemplo,

a idéia de solicitar ao arquiteto responsável uma museografia dessa natureza decorreu do


compromisso do curador de oferecer ao público ambientes críticos, subvertendo a sintaxe habitual
da montagem. No caso em questão o desejo de Leirner era transpor para a arquitetura um
comentário sobre a profusão de pinturas que estavam chegando ao prédio da Bienal, obras que
confirmavam o que ela já suspeitava: que a cena artística mundial estava tomada pela síndrome de
uma modalidade muito particular de pintura; que em todos os lugares, acompanhando a vaga do
neo-expressionismo alemão e da transvanguarda alemã (sic), produzia-se coisa muito semelhante:
pinturas de grandes dimensões, de tônica fortemente expressiva, “selvagem” ou “violenta”, como
eram denominados seus protagonistas alemães, ou ainda aquelas, como a da escola italiana, que
efetuavam releituras de pinturas das vanguardas modernas.4

Mas, de fato, podemos nos questionar se seriam essas as reais intenções de Sheila
Leirner ao idealizar a Grande Tela. Como a crítica compreendia o fenômeno de
revitalização da pintura no período? Quais os pressupostos teórico-conceituais que
nortearam o projeto? Como compreender a ação curatorial a partir de discussões acerca
da prática da curadoria na contemporaneidade? Estaríamos diante de uma curadoria
colaborativa ou autoritária?

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que se os curadores começam a ganhar destaque


internacionalmente por volta dos anos 70, no Brasil, é na década de 1980 que o termo
começa a ser empregado. Segundo Lisbeth Rebollo Gonçalves, a partir de entrevistas
realizadas com profissionais brasileiros do campo das artes visuais, há “dois momentos-
chave para a emergência do conceito de curadoria, ambos ligados à Bienal de São
Paulo”. O primeiro deles seria o das Bienais sob responsabilidade do historiador Walter
Zanini (1981 e 1983), destacando a 16ª edição, conhecida como “Bienal Conceitual”. O
segundo, perceptível nas edições realizadas por Sheila Leirner (1985 e 1987), “segundo
um projeto curatorial que é claramente compreendido pelo público especializado,
principalmente na mostra de 1985, que ela intitulou A Grande Tela.”5

3
Gonçalves, Marcos Augusto. Op. cit.
4
Farias, Agnaldo (coord.). Bienal 50 anos: 1951-2001. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2001, p.
208-9.
5
Gonçalves, Lisbeth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo:
Edusp: Fapesp, 2004, p. 113.
Na década de 80 o curador geral suplanta o papel que o diretor artístico desempenhava
nas edições anteriores da Bienal de São Paulo. Porém, a maior transformação estrutural
(e também conceitual) verifica-se quando Zanini substitui a organização da mostra a
partir das delegações nacionais – posição que ressaltava a referência direta ao modelo
geopolítico instituído pela Bienal de Veneza – pela divisão a partir da afinidade de
linguagens – em consonância com uma postura mais experimental da Documenta de
Kassel. Desse modo, a presença do curador marca também a mudança de paradigma
para a Bienal de São Paulo, tendo na Documenta, nos dizeres de Leirner, “uma aula de
como uma exposição deve ser feita em nossos dias”.6

Nesse contexto, a arte conceitual desempenhou papel importante na formação do papel


do curador na contemporaneidade. Para o crítico e artista Olu Oguibe, jovens curadores,
tais como Harald Szeemann, idealizador da importante mostra When Attitudes Become
Forms (Kunsthalle, Berna, 1969), “puderam imaginar, iniciar e realizar experiências
ousadas de curadoria porque os artistas já haviam fornecido os exemplos que
desafiavam a compreensão convencional da exposição e apresentação da arte.”7 Mas,
podemos compreender também que, ao mesmo tempo em que a arte conceitual diluiu as
fronteiras entre linguagens, foi responsável pela interpenetração das áreas de
especialização. Assim, artistas assumiram o papel de críticos e críticos, por sua vez,
passaram a produzir trabalhos que não necessariamente passavam pela prática da
escrita. Nesse sentido, Leirner afirma que:

O que aconteceu foi que o crítico, a partir de então, já podia dissolver as fronteiras que separavam a
criação artística. Não literalmente, como vinha fazendo até então. Mas artisticamente. Por quê?
Porque a mediação e a idéia passaram a ter maior importância do que o produto final. O crítico que
sempre usou conceitos para falar da mediação e do produto, quer dizer, dos elementos formais do
trabalho, o crítico passou a usar as idéias para falar quase apenas de idéias. No fim, o que o crítico
estava fazendo era o mesmo que o artista. Os dois fazendo arte e fazendo crítica.8

Sendo assim, poderíamos compreender a prática da curadoria como uma atividade


paralela à da crítica de arte ou, muitas vezes, uma atualização da última, em consonância
com as idéias que Frederico Morais já havia explicitado na década de 1970.9 É inegável
que a Grande Tela, como discurso curatorial, apresenta uma abrangência crítica superior
ao texto escrito para o catálogo da 18ª Bienal. Poderia ser compreendida, então, como
uma crítica não verbal. Mas também, “como uma obra em si”.10

A ênfase na pintura por parte de Leirner nasceu da exigência de uma circunscrição que
excluísse as linguagens da década anterior, segundo ela já devidamente abordadas e
exauridas nas duas últimas Bienais. O argumento para Grande Tela, então, é uma idéia
contida no texto “Framed: Innocence or Guilt?”, do crítico italiano Germano Celant,
publicado na revista Artforum, em 1982, e que Leirner já havia explicitado no texto para
catálogo da exposição 3x4 – Grandes Formatos (Centro Cultural Rio, Rio de Janeiro,
1983). Celant propõe que a pintura seja “pensada como um enorme rolo de pano
6
“Crise? No mundo, sim. Na arte, anuncia-se o futuro.” In: Leirner, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo:
Perspectiva: Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 86-7.
7
Oguibe, Olu. “O fardo da curadoria”. In: Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da UERJ, n. 6, Rio de
Janeiro, 2004, p. 16.
8
“Uma palestra”. In: Leirner, Sheila. Op. cit., p. 57.
9
Cf.: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. Curioso
apontar para o fato de que tanto Frederico Morais quanto Sheila Leirner desenvolveram experiências diretas
no campo da produção de artes visuais.
10
“Meio específico de enunciação crítica da arte e da cultura, a exposição de arte deve ser pensada não
como um simples dispositivo de amostragem de obras, mas como uma obra em si, unidade construída com
diferentes tipos de objetos, cujos significados estão além de sua mera soma, e que deve ser analisada em
suas particularidades discursivas e rituais. No limite, é possível falar em uma ‘arte de expor’.” Conduru,
Roberto. “Transparência opaca”. In: Concinnitas, n. 6, op. cit., p. 31.
diversificado, tecido numa única peça e desenrolado no tempo e no espaço”. Essa
superfície, segundo ele,

estendida sobre milhas e milhas, nunca aparece em mostruário, porque o que importa nos trabalhos
é o ritmo completamente desenvolvido do “todo” – ambos, o quadro e o ambiente –, incluindo a
seguinte progressão: pintura, moldura, parede, quarto, prédio, cidade, território, terra, universo.11

Desse modo, Leirner vislumbra na idealização de Celant para a Grande Tela uma relação
direta com sua concepção (romântica) de Grande Obra contemporânea ocidental, soma
das ações artísticas contemporâneas, a partir da incorporação da diversidade e da noção
de simultaneidade. Nesse sentido, mais do que a autoria individual, o que prevaleceria
para a curadora era a idéia de uma criação conjunta, de uma ação humana coletiva.

Uma das críticas endereçadas à generalidade compreendida no tema da 18ª Bienal, “O


Homem e a Vida”, é que ele era tão abrangente quanto “Deus e sua Época”.12 Ao
compreender a Bienal como um recorte da produção contemporânea (da época como um
todo) – e por isso, poderíamos supor, como sintoma do zeitgeist – a curadora se
destacaria pela capacidade privilegiada de reconhecer essa pluralidade de linguagens e
propostas, mas também de identificar de modo seletivo quais trabalhos individuais
representam da melhor maneira em seu conjunto a totalidade contemporânea.
Analisando a prática curatorial da Bienal de 1983, Leirner afirma:

Na minha opinião, esse método democrático real é decididamente o fator revolucionário dessa
exposição. Um aspecto que coloca em xeque todas as exposições de arte que se fazem no Brasil.
Porque hoje ainda se pensa que para uma exposição democrática é preciso mostrar tudo o que há.
Fazer uma feira aleatória, baseada num consenso duvidoso do que seja a pintura ou a escultura
brasileira. Quando de forma aparentemente paradoxal, uma mostra democrática é justamente
aquela que obedece a uma orientação firmemente discriminatória, crítica e inteligente. Uma
orientação que crie (...) correlativos críticos para o que está realmente ocorrendo no mundo da arte e
que cria prerrogativas para que haja diálogo entre os trabalhos.13

Na prática, há ambigüidade na ação de Sheila Leirner, entre um modelo de curador


corretor cultural, “mitificado como a figura com a varinha de condão” [e, de modo irônico,
Sheila Leirner usava uma varinha de condão como marca de sua ação curatorial], um
instrumento no processo de legitimação institucional e de validação mercadológica, e o
curador facilitador, que trabalha “como um colaborador cujas contribuições permitem a
realização e a efetivação do processo artístico”.14 Para ela, a Grande Tela constituía-se
mais como debate estético do que como discurso curatorial propriamente dito. Mas cabe
indagar em que medida as obras individuais têm seu sentido alterado ao se submeterem
a um discurso que é externo a elas, algo que tem caracterizado as mega-exposições
contemporâneas, como bem apontou o crítico Paulo Sergio Duarte.15 Se tomamos o
partido das obras, retiramos a capacidade crítica do curador, sua capacidade de provocar
reflexão; pelo contrário, ao concordarmos com a supremacia conceitual da curadoria,
corremos o risco de defender que obras de arte são veículos apropriados para
exemplificar idéias gerais. Não nos parece uma escolha que possa ser feita sem que haja
perdas; e muito menos que possa ser assumida sem debate. Julgamos, desse modo, que
a Grande Tela destaca-se como um caso exemplar, talvez por ser o primeiro em território

11
Celant, Germano apud Leirner, Sheila. “Grandes formatos: euforia e paixão”. In: Leirner, Sheila. Op. cit., p.
94. [grifo nosso]
12
Martino, Telmo. “Bienal: quilômetros de arte. Para caber tudo.” In: Jornal da Tarde, O Estado de S. Paulo,
23 ago. 1985, p. 22
13
“Arte na 17ª Bienal de São Paulo”. In: Leiner, Sheila. Op. cit., p. 212.
14
Oguibe, Olu. “O fardo da curadoria”. In: Concinnitas, n. 6, op. cit., p. 12-13.
15
Duarte, Paulo Sergio. “O espetáculo do fetiche”. In: Concinnitas, n. 6, op. cit., p. 36-7.
nacional, a discutir esses limites de ação e relação colaborativa. Cabe a nós estender
esse debate.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CONDURU, Roberto. “Transparência opaca”. In: Concinnitas, Revista do Instituto de


Artes da Uerj, n. 6, Rio de Janeiro, 2004.

DUARTE, Paulo Sergio. “O espetáculo do fetiche”. In: Concinnitas, Revista do Instituto de


Artes da Uerj, n. 6, Rio de Janeiro, 2004.

FARIAS, Agnaldo (coord.). Bienal 50 anos: 1951-2001. São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, 2001.

GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no


século XX. São Paulo: Edusp: Fapesp, 2004.

GONÇALVES, Marcos Augusto. A música deu o tom no Ibirapuera. In: Folha de S. Paulo,
Ilustrada, 7 out. 1985.

LEIRNER, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo: Perspectiva: Secretaria de Estado da
Cultura, 1991.

MARTINO, Telmo. “Bienal: quilômetros de arte. Para caber tudo.” In: Jornal da Tarde, O
Estado de S. Paulo, 23 ago. 1985.

MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1975.

OGUIBE, Olu. “O fardo da curadoria”. Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da Uerj,


n. 6, Rio de Janeiro, 2004.

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