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ARQUIVOS HISTORICOS ~~NOA ~"::\n

f'UNDACAO UltNAL ~AO PAULO

Volume rn
CATÁLOGO DE ARTE INCOMUM
XVI BIENAL DE SÃO PAULO
16 de outubro a 20 de dezembro de 1981

Pavilhão Armando Arruda Pereira


Parque Ibirapuera
São Paulo - Brasil
PATROCÍNIO

Governo Federal
Ministério de Educação e Cultura - Funarte
Ministério das Relações Exteriores
Secretaria de Planejamento da Presidência da República

Governo do Estado de São Paulo


Secretaria de Estado da Cultura

Prefeitura Municipal de São Paulo


Secretaria Municipal de Cultura
XVI BIENAL DE SÃO PAULO

Diretoria Executiva

Luiz Diederichsen Villares Presidente


Giannandrea Ma tarazzo 1.o Vice-Presidente
Antonio Sylvio da Cunha Bueno 2.° Vice-Presidente
Robert HeHey Blocker
Roberto Duailibi
Paulo Nathanael Pereira de Sousa
Pedro Paulo Poppovic
David Zeiger t

Conselho de Arte e Cultura

W aI ter Zanini Presidente


Ulpiano Bezerra de Menezes
Paulo Sérgio Duarte
Esther Emílio Carlos
Donato Ferrari
Luiz Diederichsen Villares
Casemiro Xavier de Mendonça

Exposição de Arte Incomum

Curador Geral da XVI Bienal de São Paulo W aI ter Zanini


Curador da Exposição Internacional
de Arte Incomum Victor Musgrave
Curador da Exposição Nacional
de Arte Incomum Annateresa Fabris
Relações Internacionais Josette Balsa
A BIENAL E OS ARTISTAS INCOMUNS

Oxalá a exposição Arte Incomum, uma das manifestações da XVI Bienal,


possa atingir os objetivos para os quais foi proposta: despertar de forma
ampla a atenção do público para uma produção altamente criativa, à mar-
gem do sistema da arte cultural, assim como trazer incentivo à sua pesqui-
sa e preservação no meio brasileiro. Muito embora a exigüidade do tempo
disponível para a sua organização impedisse maior número de contatos no
exterior e no próprio país e, do mesmo modo, a solução de algumas dili-
gências complexas, conseguiu-se reunir exemplos preciosos de expressões
reveladoras de cosmogonias absolutamente pessoais para esta mostra.

Não houve da curadoria da Bienal qualquer intenção de provocar confron-


to entre duas realidades antagônicas: as tendências contemporâneas da
arte, participantes dos Núcleos da Bienal, e as obras e a documentação da
Arte Incomum, embora se possa saber de antemão que as ilações serão
inevitáveis por parte dos visitantes das exposições. Por Arte Incomum,
entendem-se aqui múltiplas manifestações individuais da espontaneidade
de invenção não-redutíveis a princípios culturais estabelecidos. Por outras
palavras, ainda, a produção de seus autores é independente dos padrões
habitualmente reconhecidos na síndrome da artisticidade, opondo-se a es-
pécie marginal de sua mensagem às características reguladoras da ativida-
de profissional.

Deveu-se a Jean Dubuffet, em meados da década 40, a tomada de cons-


ciência e o interesse pelas obras realizadas por "obscuros iluminados, pri-
mitivos ou iletrados mais ou menos delirantes" - para retomar as pala-
vras de um catálogo dos anos 60 - às quais ele deu o nome art bruto
Todo um domínio da instauração humana, diversificada no uso de mate-
riais e técnicas absolutamente distintas da arte apoiada nas normas consa-
gradas pela história da arte e monopolizadora das atenções dos museus
de arte, tomava aos poucos lugar ao sol, mas não raro acoimada de "arte
patológica". Sua presença peculiar afirmou-se não apenas em relação às
categorias da arte de erudição, mas também no contraste com as valoradas
visões da arte ingênua ou semiculta, com sua narrativa plácida e anedótica,
assimiladora de repertórios populares, freqüentemente de fácil agrado do
público, dos colecionadores e muito úteis aos marchands, diferenciando-se
ainda l' art brut de outras classes de arte, como as originárias das conser-
vadoras e hieráticas culturas africanas e oceânicas. As obras de art brut,
coletadas ao longo do tempo pelo autor de Asphyxíante Culture, acham-se
hoje no importante Museu de Lausanne e os conceitos que as qualificam,
Dubuffet os reserva ciosamente para objetos e representação de uma esco-
lha determinada.

Para a exposição Arte Incomum, a Bienal conectou uma produção de


ordem diversificada, cujos autores, sejam eles doentes mentais ou indiví-
duos desatados dos contextos normais da visualidade, sabem fazer fluir da
lógica de seus mundos inconscientes uma grande força libertária. Sem dú-
vida esse poder espiritual não poderia materializar-se se lhes faltasse o
apoio de um "reservatório de saúde moral" (para lembrar uma frase de
André Breton aludindo à arte dos pacientes). Aproxima-os a predisposi-
ção para atingir harmonias transcendentes, emanadas das forças vitais de
uma qualidade misteriosa de percepção agonística.

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As dimensões atingidas pela exposição podem ser aferidas por presenças
célebres como as de Adolf Wülfli, Aloi'se, Müller, Scottie Wilson, Le
Facteur Cheval e outros artistas, e pela inclusão de alguns poucos mas
significativos outsiders brasileiros, como Eli Heil, G.T.O. e Antônio Po-
teiro, além dos grupos de internados do Engenho de Dentro e do Juqueri.

Para que a exposição alcançasse suas finalidades contou a Bienal com a ~


clarividente curadoria de Victor Musgrave, no plano internacional. O es-
tudo de artistas incomuns brasileiros foi entregue à competente orienta-
ção da Professora Annateresa Fabris. Mas deveu-se muito ao interesse
incansável de Josette Balsa - desde que esta curadoria propôs a realiza-
ção da exposição, com apoio do presidente da Fundação, Luiz Diederich-
sen Villares, e do Conselho de Arte e Cultura da entidade - o mérito de
levar adiante as articulações indispensáveis. Agradecimentos por diversas
naturezas de colaboração e por atenções prestadas endereçam-se a pessoas
e entidades, aqui se tornando necessário enunciar especialmente os nomes
de Jean Dubuffet, Michel Thévoz, Clovis Prévost, Leo Navratil, Nise da
Silveira, Paulo R. Rossi, Esther Emílio Carlos, Mafalda Caminada, Maria
Prado e Paulo Fraletti, assim como o Museu de Imagens do Inconsciente
(Rio de Janeiro), a Fundação Catarinense de Cultura, a Funarte e o Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

Walter Zanini
Curador Geral da XVI Bienal
Agosto de 1981

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THE BIENNALE AND OUTSIDER ART

One sincerely hopes the Outsider Art exhibition, one of the manifestatíons
of the XVI Biennale, achieves the objectíves for which it was proposed:
to awaken extensively the attentíon of the public to a highly creative
productíon, on the fringe of the cultural art system, as well as incentiva te
its experimentation and presentation in the Brazilian panorama.
Although the limitation of time available to the organization impeded
a greater number of contacts abroad and in the country itseH, as well as
the settling of some complex assignments, one was able to gather
precious examples of deeply revealíng expressions of absolutely personal
cosmogonies for thís display.

There was no intention on the part of the curatorship to provoke a


confrontation between two antagonistic realities: the contemporary
trends of art, participating in the nuelei of the Biennale, and the works
and documentation of Outsider Art, although it is possible to know
beforehand that the conelusions on the part of the visitors to the
exhibition will be inevitable. As Outsider Art, is understood here to be
various individual manifestation of the spontaneity of invention not
reducible to established cultural principIes. In other words, the works
produced by its authors are independent from the standards habitually
recognized in artistic cireles, opposing the marginal features in its
message to the realístíc characteristícs of the professional activity.

Jean Dubuffet, in the mid-forties, awakened the conscience and interest


for the wo:rks of artists he called "enlightened obscure, primitive or
illiterate more or less delirious - accordingly to the words of a
catalogue issued in the sixties - whích he named Art Brut. A whole
doma in of human establishment, diversified in the use of materiaIs and
techniques absolutely distinct from the art based on the principIes
consecrated by the history of art and monopolizing the attentions of the
museums of art, distinguishing itseH, but not seldomly charged as
"pathologícal art". I ts singular presence established itseH not only in
relation to the categories of peculiar erudite art, but also in contrast
with the valued visions of naive or semi-cultured art, with its placid and
anecdotic narrative, the absorber of popular repertoires, frequently
pleasurable to the public, to collectors and very useful to marchands,
I' Art Brut still differentiated itseH from other types of art as the ones
that originated from the conservative hieratic African and Oceaníc
cultures. The works of Art Brut, collected over a long spell of time by
the author of Asphyxiante Culture, are in the famed Lausanne Museum,
and the concepts that qualify them, Dubuffet jealously reserves for a
special purpose with a determined end.

For the exhibition of Outsider Art, the Biennale thought out a


production of a diversified order, whose authors, be they either mentally
síck or individuaIs apart from the normal contexts of visuality, know
how to make flow from the logíc of their unconscious minds a great
libertarian force. No doubt this spiritual power would not be able to
materialize if they lacked the support of a "reservoir of moral health" (to
recall André Breton's phrase alluding to the art of patients). What
brings them elose together is the predisposition to reach transcendental

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harmonies, stemming from vital forces of a mysterious quality of
agonistic perception.

The dimensions reached by the exhibition can be determined by the


presence of such distinguished personages as Adolf Wolfli, Alolse,
Müller, Scottie Wilson, Le Facteur Cheval and other artists, and by
inclusion of a few but significant Brazilian Outsiders, such as Eli Heil,
G.T.O. and Antônio Poteiro, besides groups of patients from the
Engenho de Dentro and Juqueri mental hospitaIs.

To meet the exhibition's objectives the Biennale relied on the lucid


curatorship of Victor Musgrave, in the international sphere. The study
of Brazilian Outsider artists was assigned to the competent orientation
of Professoress Annateresa Fabris. We are indebted to the untiring
interest of Josette Balsa - from the time of the proposing of the
exhibition by this curatorship, supported by the Foundation's president,
Luiz Diederichsen Villares, and by its Art and Culture Council - the
merit of carrying out the indispensable articulations. We are grateful
to persons and entities for the various kinds of collaborations and
attentions given, being necessary to stress, especially, the names of Jean
Dubuffet, Michel Thévoz, Clovis Prévost, Leo Navratil, Nise da Silveira,
Paulo R. Rossi, Esther Emílio Carlos, Mafalda Caminada, Maria Prado
and Paulo Fraletti, as well as the Museu de Imagens do Inconsciente
(Rio de Janeiro), the Fundação Catarinense de Cultura, the Funarte
and the Museu de Arte Contemporânea de São Paulo.

Walter Zanini
General Curato r of the XVI Biennale
August/1981

(Versão de Laurence P. Hughes e Mário José de Araújo)

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APRESENTAÇÃO

Eis uma arte sem precedentes. É uma viagem órfica às profundezas da


mente, plena de surpreendentes incidentes, transbordante de emoções e
sentimentos, e no entanto disciplinada pelos mais altos recursos técnicos.

É como se de súbito deparássemos com uma raça secreta de gigantes cria-


tivos, habitantes de uma terra que sempre soubemos existir, mas da qual
só havíamos recebido pequenos sinais ou vislumbres. Talvez sejamos le-
vados a pesquisar sua obra com humildade, pois eles parecem ter penetra-
do nos mais profundos e misteriosos recessos da imaginação, e de uma
forma que os surrealistas teriam invejado.

Despojado das informações históricas e das normas culturais, o espectador


precisa confiar em sua própria percepção e sensibilidade. Para alguns, isso
talvez seja uma experiência desconcertante; para outros, o princípio de
uma exultante peregrinação ao inesperado. No momento em que grande
parte da arte contemporânea repousa letárgica na bela armadilha de suas
próprias obras, os Outsiders bradam com júbilo e vigor: "Somos explora-
dores - vamos aonde o homem jamais pôs os pés. Sigam-nos, os que tive-
rem coragem!" Mas quem são os Outsiders? O que realizam eles?

O termo é impreciso, por não referir-se a nenhum movimento ou escola.

Os Outsiders não podem ser rotulados, pois cada um deles é um. Na reali-
dade, melhor seria chamá-los Insiders, se tivéssemos de dar-lhes um nome.
Sente-se que não se situam à margem da arte, mas em seu centro, exata-
mente à beira das fontes de criatividade cujas forças enigmáticas cavalgam
qual cavalheiros do Apocalipse, sem no entanto pretenderem dominar
essas forças. É a viagem que lhes interessa. Acena-lhes um destino supre-
mo e desconhecido, e em seu caminho expressam a magnitude de suas
visões variadas e avassaladoras.

Na exploração incessante dos colossais territórios que se estendem ao


infinito diante de sua imaginação, muitas vezes trabalhando, como Wülfli,
praticamente até a hora da morte, fazem com que muitos artistas oficial-
mente reconhecidos pareçam apenas artistas ocasionais. Sente-se que eles
podem dispor à vontade daquilo que o poeta Robert Graves chamou de
"transe poético" - um estado criativo de total absorção em si mesmos,
de total obscurecimento do mundo exterior. Os homens de Porlock teriam
tido dificuldades com eles. Não teriam van Gogh, Bosch e todos os gran-
des Outsiders (em termos culturais) admirado e respeitado como irmãos
os que hoje chamamos Outsiders? A Outsider Art começou a ser iden-
tificada e individualizada por Jean DubuHet, há pouco mais de 30 anos.
Ele começou a procurar e colecionar obras dessa arte, desenvolvendo um
conjunto de critérios que a diferenciassem de outras formas de arte. Deu-
lhe o nome de Art Brut.

Entre outras coisas, DubuHet estabeleceu que a Art Brut era feita por
indivíduos sem condicionamento cultural, sem assistência profissional e
sem conhecimento algum das tradições e da história da arte. Dizia ele:
"( ... ) trabalho executado por pessoas desprovidas de cultura artística,
para quem a mimese, ao contrário do que ocorre com os intelectuais, de-
sempenha função muito pequena ou nenhuma, de modo que seus criadores

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retiram tudo (temas, escolha de materiais, meios de transposição, ritmos,
formas de escrever, etc.) de suas próprias profundezas e não dos estereó-
tipos da arte clássica ou da arte do momento. Temos, pois, uma operação
artística 'quimicamente pura' ( ... ) trata-se, portanto, de arte que nasce
da invenção pura e que de modo algum baseia-se em processos mais pró-
ximos aos do camaleão e do papagaio, como costuma ocorrer com a arte
cultural" .

Aproximadamente na época em que Dubuffet começava a identificar o


fenômeno da Art Brut} tomei conhecimento da obra de Scottie Wilson,
que era sempre definido como "ingênuo" ou "primitivo moderno", o que
me parecia um tanto incorreto. O artista ingênuo tende a ser tranqüilo e
muitas vezes acomodado. Suas canhestras tentativas de reproduzir a vida
e a natureza podem dar à obra um encanto razoável, mas seu desejo de
agradar e de ser aceito por seus iguais e pelo mundo da arte oficial o
exclui definitivamente do universo subversivo dos Outsiders. O ingênuo
não muda: ele termina como começou. Já a visão de Scottie expressava-se
em fase após fase, inteiramente diferentes umas das outras. As freqüentes
referências e implicações de caráter social também estão ausentes da obra
dos ingênuos. Quando Scottie dizia que o poeta William Blake amaria
seus trabalhos, sabia o que estava falando. Construía um cosmo onde se
travava uma batalha entre o mal e a inocência, entre o feio e o belo, e
onde por fim sobrevive a bondade. Essas lutas épicas são típicas na obra
de muitos Otttsiders. As idéias sobre Blake provavelmente tinham um
caráter puramente intuitivo. Também é interessante e importante obser-
var que dois dos artistas britânicos mais originais e cheios de imaginação,
Scottie Wilson e Francis Bacon, não tiveram educação formal. Cada um de-
senvolveu suas próprias técnicas e idéias, mas Bacon possuía uma cultura à
qual sempre se encontram referências em sua obra. Nesse sentido, os
fundadores de Die Brucke} em 1905 - Kirchner, Schmidt-Rotluff e
Heckel - , eram artistas autodidatas. Não é de estranhar que só agora
comecem a ser mais aceitas suas fortes imagens emotivas. O que Dubuffet
denomina "cultura asfixiante" parece ter gerado uma máquina enorme
para perpetuar a esterilidade incestuosa.

Deve-se também diferenciar a Arte Incomum da Arte Tribal, com a qual,


em alguns casos, parece assemelhar~se, embora de formas diferentes. É
possível que nesse caso a memória racial desempenhe alguma função. Mas
é apenas uma possibilidade. A arte tribal, por mais que às vezes pareça
bizarra aos olhos dos ocidentais, é na realidade uma arte conservadora,
por seguir formas e técnicas tradicionais transmitidas de pai para filho. E
não se diz isso para negar a sua força, naturalmente.

A terceira importante categoria da qual urge diferenciar nitidamente a


Outsider Art inclui os desenhos, as pinturas e outros trabalhos produzi-
dos por pacientes de hospitais psiquiátricos, através de intermediação de
um arte-terapeuta. Na coleção de Art Brut reunida por Dubuffet, hoje
abrigada em museu próprio em Lausanne, pouco mais de 40% dos traba-
lhos são de pacientes desses hospitais. No começo do século, alguns pio-
neiros da psiquiatria, como o Dr. Hans Prinzborn, notaram que alguns
dos pacientes produziam trabalhos que, considerados à luz de qualquer

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padrão, eram obras de arte espantosamente originais e tecnicamente per-
feitas. Esses trabalhos surgiam espontaneamente, fora do processo de te-
rapia através da arte. A partir de então, essas pessoas passaram a ser
descobertas por outros psiquiatras, como o austríaco Leo Navratil, de
Klosterneuburg. Nota-se de imediato a diferença entre essa obra e a volu-
mosa "arte" terapêutica, que, vista em quantidade, começa a tornar-se
um tanto monótona em termos de tema e conteúdo. E também está presen-
te o desejo de agradar e satisfazer às expectativas do terapeuta. Não se
pode concluir de modo algum que, sendo doente mental, o indivíduo
também pode ser artista (e muito menos um artista de talento), assim
como não se conclui que, sendo saudável, uma pessoa pode ser artista.

Numa exposição realizada .recentemente em Paris, no Musée d'Art Mo-


derne, entre cerca de setenta Outsiders, não havia uma só pessoa que fosse
ou já tivesse sido paciente do hospital psiquiátrico. Estavam presentes
Madge Gill, Buighes, Chichorro, Lesage, Ratier, Verbena, Scottie Wilson
e outros. E, da mesma maneira, em grandes mostras e coleções de "arte
psiquiátrica" vistas nos últimos tempos, não encontrei um só Outsider.

Dubuffet observou que, ou não existe o que se denomina arte patológica,


ou então toda arte é patológica. Remmo MüIler-Suur, outro psiquiatra
pioneiro, afirmou, por exemplo, que a arte de Wi::ilfli não é psicótica, mas
"um desenvolvimento do material que compõe o tema de sua psicose".
Dubuffet considera Wi::ilfli um dos maiores artistas de todos os tempos,
com o que só se há de convir.

Quando se crê que a Art Brut tem a ver com a arte dos loucos, não se
compreendeu o conceito básico dessa arte. Trata-se de uma manifestação
criativa espontânea de formidável intensidade, muitas vezes perturbadora
por expressar as profundezas ocultas da psique, o Outsider que há dentro
de todos nós, de uma forma que a arte profissional não faz. E é uma arte
essencialmente destituída de estereótipos culturais.

Entre os Outsiders, existem aqueles que apenas expressam uma visão ori-
ginal. Wi::ilfli, Scottie e outros grandes Outsiders não se incluem entre
eles, pois criaram vastas cosmogonias próprias, universos totais com que
o espectador, magnetizado pela força atordoante de seu instrumental téc-
nico e assombrado por ecos atávicos, torna-se inevitável e emocionalmente
envolvido.

Falei no feio e no belo, mas na realidade as obras de Art Brut transcen-


dem esses conceitos, ou até nem os levam em conta. Esses trabalhos fun-
cionam como uma revelação de potencial oculto e um desafio à idéia de
que só o nobre e o pitoresco são temas dignos do artista. No trabalho
inédito de Jill Dow, "Dubuffet e a Art Brut)), afirma-se: "Criou-se o
conceito de Art Brut em oposição à estrutura hierárquica do mundo artís-
tico, que, para Dubuffet, é mantido por um sistema educacional abortivo,
uma conspiração entre artistas, críticos, intermediários e compradores, e
uma falsa santidade em museus e galerias. A Art Brut desafia a atual
ausência de atividade de produção de imagens na vida da maioria das pes-
soas, que deixam essa tarefa a cargo de um punhado de especialistas, e

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que são incentivadas a isso pelas exigências de uma sociedade de consulÍlO
cuja arte, projetos e diversões se reduziriam a nada se cada indivíduo
passasse a exercer seu próprio potencial criativo".

Procuramos apresentar uma mostra que não seja um exercício acadêmico,


não tentamos articular perspectivas históricas (por não existirem) e resis-
timos - embora, talvez, não totalmente - à tentação de fazer compara-
ções culturais, o que trairia o espírito da invenção "quimicamente pura".
Contudo, acaso os Outsiders não hlam em vozes que nos tocam o âmago?
Poder-se-á olhar para Ramirez sem experimentar o inescrutável sentido
de mistério próprio de todas as grandes obras de arte?

As fáceis interpretações freudianas ou junguianas ocorrem à mente e logo


desaparecem. As obras permanecem invioladas. A exultação rebelde de
Schoder-Sonnenstern, o desespero cauterizante de Marshall, a delicadeza
e a graça de Oswald Tschirtner provocam reação total, sem preconceitos.

No trabalho desses grandes criadores, está nitidamente ausente o proces-


so de desumanização que torna árida grande parte da arte contemporânea.
Ausentes também estão as subvenções e o duvidoso apoio oficial. Esta-
mos diante de uma redescoberta do poder e da extensão da imaginação,
que permanece vitoriosamente viva.

Victor Musgrave
Curador Internacional

(Tradução de Aldo Bochini Neto)

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PREFACE

Here ís an art without precedent. It offers an orphic journey to the


depths of the human psyche, filled with amazing incident, overspilling
with feeling and emotion yet always disciplined by superlative
technical resources.

It is as íf we have abruptly stumbled upon a secret race of creative giants


inhabiting a land we always knew existed but of which we had received
only glimmers and intimations. We may well feel impelled to survey
their work with an appropriate humbleness for they seem to have
penetrated the most profund and mysterious recesses of the imagination
in a way that the Surrealists would have envied.

Bereft of historícal guidelines and cultural norms the spectator must rely
on his own perceptions and sensibilities. For some this may be a
disconcerting experience, for others the beginning of an exultant
pilgrimage into the unexpected. When so much contemporary art is bland
and supine in the well-crafted chains of its own making, the Outsiders
give a great and joyous shout: "We are artists, we are explorers, we go
where no man has trod before. Follow us íf you dare!"

Who, then, are the Outsiders, and what is it they have achieved?

The generic name is imprecise. It describes no movement, no school.

The Outsiders resist convenient labelling, for each is an individual.


Indeed, Insiders might be a better name for them íf one has to be found.
There is a feeling that they stand not on the margins of art, but at its
centre, at the very verge of the sources of creativity whose enigmatic
forces they ride like Apocalyptic horsemen without any desire to tame
them. It is the journey that concern them; an unknow, ultima te
destination beckons and on their way to it they express the magnitude of
their varied and mortal visions.

Ceaselessly quarrying the imperial terrítories that stretch for ever before
their mind's eye, working often, like Wülfli virtualIy to their dying
moment, they make many official artists look like part-timers. One feels
that they can call forth at will what Robert Graves has called "the
poetic trance", a creative state of utter self-absorption in which the
exterior world 1S blanked out. Men from Porlock would have had a hard
time with them. Would not van Gogh, Bosch and alI the other great
cultural outsiders have admired them and respected them as brothers?
Outsider Art first began to be recognised and isolated by Jean Dubuffet
somewhat more than thirty years ago. He began to search for it and to
collect it and evolved a set of cri teria to differentiate it from other
forms of art. He called it Art Brut or U nadulterated Art.

Dubuffet laid down, among other things, that Art Brut was made by
individuaIs free from cultural conditioning, professional instruction and
any knowledge of the traditions and history of art. To quote:
" ... work executed by people free from artistic culture, for whom
mimesis, as opposed to what happens to intellectuals, plays líttle or no
part, so that their creators draw up everything (subjects, choice of

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materiaIs, means cf transposition, rhythms, way of writing, etc.) from
their own depths and not from the stereotypes of classical art or of
modish art. We have here a 'chemically pure' artistic operation ... this,
therefore, is art springing fram pure invention and in no way based, as
cultural art constantly is, on chameleon or parrot-like processes".

At about the time that Dubuftet had begun to isolate the phenomenon of
Art Brut I had become acquainted with the work of ScottieWilson,
who was always described as a 'naive' or 'modern primitive'. This
seemed to me quite wrong. The naive artist tends to be comforting and
often cosy; his maIadroit attempts to copy fram life and nature can Iend
his work considerabIe charm, but his desire to please and to be accepted
by his peers and the ofticial art world excludes him for ever from the
subversive universe of the Outsider. The naive artist does not change;
he ends as he began, while Scottie's vision expressed itself in phase
after phase which are completely diftereht. The frequent social
comments and implications are also lacking from the work of naives,
and when Scottie said that Blake would love his work he knew that he
was about. He was constructing a cosmos in which a battle is fought
between innocence and evil, beauty and ugliness, and in which goodness
ultimately survives. These epic struggles are typically to be found in the
work of many outsiders. His ideas of Blake were probably purely
intuitive. It is also interesting and relevant that two of the most original
and imaginative British artists, Scottie Wilson and Francis Bacon, were
both untaught. Each evolved his own vision and techniques, but Bacon
possessed a cultural background to which work continually alludes and
refers. In this connection the founders of Die Brucke in 1905, Kirchner,
Schmidt-Rotluft and Heckel, were self-taught artists. No wonder their
powerful, emotive images are only now beginning to achieve growing
acceptance. What Dubuftet calls "asphyxiating culture" seems to have
engendered a huge machine to perpetuate incestuous sterility.

The distinction must be made, too, between Outsider Art and tribal
art which it, on occasion, seems to resemble, although in indirect ways.
There is perhaps, a possibility that race memory could play a part here.
But it is only a possibility. Tribal art, however bizarre it may sometimes
appear to Western eyes, is actually a conserva tive art because it follows
traditional forms and techniques handed down from father to sono
To say this is not to deny its power.

The third important category from which Outsider Art must be sharply
separated includes the drawings, painting and other works produced by
mental patients via the intermediaryship of an art therapist. In the
Art Brut collection which Dubuftet built up and which is now housed in
its own museum in Lausanne little more than forty per cent consists of
the product of mental patients. Ear1y in this century psychiatric pioneers
such as Dr Hans Prinzhorn realised that occasionally patients in their
care were producing what by any standards were staggeringly original
and technically consummate works of art. Their works were
spontaneously generated and did not go thraugh the art therapy processo
Such people have since been discovered by later psychiatrists such as

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Dr Leo Navratil of Klosterneuburg in Austria. Their work is immediately
distinguishable from the vast amount of therapeutic 'art' which, seen in
quantity, begins to become somewhat monotonous in theme and content.
There is also present a desire to please and satisfy the expectations of
the therapist. It does not in any way follow that because an individual is
mentalIy disturbed he can also be an artist, let alone one of outstanding
talent, just as it does not follow that because a person is sane
he toa is an artist.

In a recent exhibition at the Musée d' ArtModerne in Paris of some


seventy Outsiders not a single one was or had been a mental patient. They
included Madge Gill, Buighes, Chichorro, Lesage, Ratier, Verbena,
Scottie Wilson and others. Likewise, at large exhibitions and colIections
of 'psychiatric art' seen in the last twelve months I was unable to find
a single outsider.

Dubuffet has observed that there is no such thing as pathological art,


or else alI art is pathological. Hemmo Müller-Suur, another pioneer
psychiatrist, made the distinction that Wülfli's art is not psychotic but
"rather a development of the material which forms the theme of his
psychosis". Dubuffet regards Wülfli as one of the greatest artists
of all times, and with this one can only concur.

If it is thought that Art Brut is consonant with the art of the insane then
the basic concept of what is implied by it has not been grasped. It is a
spontaneous creative eruption of remarkable intensity, often disturbing
because it expresses the hidden depths of the psyche, the outsider that
is buried within all of us, in a way that professional art does not, and it
is essentially free from cultural stereotyping.

Among the Outsiders there are those who cannot be said to do more
than express an original vision. Wülfli, Scottie and all the realIy great
practitioners surpassed this. They created vast cosmogonies of their own,
total universes with which the spectador, mesmerised by the stunning
power of their technical devices and haunted by atavistic echoes, becomes
inevitably and movingly involved .

I have spoken earlier of beauty and ugliness but in point of fact the
works of Art Brut transcend such concepts, or rather do not even
consider them. Their effect is one of illumination, they come as a
revelation of concealed potential and a challf>ngc to the idea that only
the picturesque and the noble are suitable subjects for the artist. To quote
from Jill Dow's unpublished manuscript "Dubuffet and Art Brut",
"the concept of Art Brut was formed to oppose the hierarchical structure
of the art world, which, according to Dubuffet is maintained by an
abortive educational system, a conspiracy between artists, critics, dealer
and buyers, and a false sanctity in museums and galIeries. Art Brut
challenges the lack of image-making activity in the lives of the majority
of people today, who leave it to a handful of experts, and are encouraged
to do so by the demands of a producer-consumer society whose art,
design and entertainment would grind to a halt if each individual were
to exerci se his own creative potential."

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We have tried to present an exhibition which is no academic exereise, we
have attempted no historical perspectives because none exist and we have
resisted, though not, perhaps, totally, the urge to make cultural
comparisons, which would be a betrayal of the spirit of "chemically
pure" invention. Yet do not Outsiders speak in voices which move us to
the core? Can one gaze at a Ramirez without feeling the inscrutable
sense of mystery that all great works of art possess? The easy Jungian
and Freudian interpretations enter the mind and steal away. The works
remain inviolate. The rebellious jubilation of a Schroder-Sonnenstern,
the cauterising despair of Marshall, the delicacy and wit of Oswald
Tschirtner invoke total response without preconceptions.

In the work of these great originators the dehumanising process which


invests so much contemporary art with its aridity is conspicuously
lacking. Lacking, too, are the grants in aid and the doubtful backing of
offieial attention. What we survey is a rediscovery of the power and
extent of the imagination which remains triumphantly alive.

Victor Musgrave
International Curator

18
COSMOGONIAS OUTRAS

Em 1933, São Paulo é chocada por uma exposição inusitada - desenhos


de crianças e loucos - organizada por Flávio de Carvalho no quadro de
manifestações polêmicas do Clube de Artistas Modernos. Ataque frontal
aos métodos e à estética da Escola Nacional de Belas Artes, a mostra é
também uma ocasião para criticar o medíocre gosto da classe média, que,
centrado em cenas de amor/procriação, repele o "anormal" por colocar
em crise seu sistema de valores, por revelar o que há de mais profundo
no homem e na natureza: o "( ... ) demoníaco, mórbido e sublime", "o
que há de raro, burlesco, chistoso e filosófico no pensamento, alguma
coisa da essência da vida" 1.

o desafio de Flávio de Carvalho, que já tinha um precedente nos estudos


sobre a expressão artística dos alienados, iniciados em 1925 por Osório
César, interessa de perto às nossas considerações sobre arte incomum,
pois, mesmo sem desenvolver a pesquisa sistemática encetada por Du-
buffet a partir de 1945, o artista brasileiro lança uma série de idéias
que reencontraremos nos escritos sobre a arte bruta.

Sem querer chegar a afirmar que o Brasil é pioneiro nesse tipo de pes-
quisa, torna-se necessário lembrar, no entanto, a polêmica de Flávio de
Carvalho, uma vez que, pelo menos em duas frentes, ela antecipa a poste-
rior campanha de DubuHet em prol da arte não-cultural: quando afirma
"a importância psicológica e filosófica da arte do louco e das crianças",
quando se opõe às "paredes opressoras e asfixiantes da Escola de Belas
Artes que, corrigindo e polindo, procuram sempre impor aos alunos a
personalidade freqüentemente mofada e gasta dos professores" 2.

É bem verdade que Dubuffet radicaliza a postura perante a chamada arte


"anormal", negando essa adjetivação, pejorativa a seu ver, e afirmando a
absoluta igualdade do "são" e do "louco", pois o que lhe interessa é uma
obra pessoal, criada fora de toda influência das artes tradicionais, que
exprime um universo próprio, o qual seja uma "contestação de todas as
imagens do mundo exterior apresentadas pela cultura" 3. Em outros ter-
mos, essa mesma preocupação está presente em Flávio de Carvalho, quer
quando chama a atenção sobre as forças do inconsciente, reveladas pela
arte "anormal", quer quando rechaça a correção "ritualística" que con-
verte em rotina o que era espontâneo, primacial.

Talvez o verdadeiro ponto de encontro entre o artista brasileiro e Du-


buffet se dê no plano da contestação do ensino formal, que tolhe e asfixia
toda expressão criadora para adaptá-la a regras preestabelecidas, para ne-
gar o papel da individualidade.

O que Flávio de Carvalho havia dito a respeito da Escola de Belas Artes


aparece também nos escritos a respeito de seu colega francês, que desen-
volve uma verdadeira diatribe contra a figura do professor, "o qual é por
definição uma pessoa que não se mostra animada de qualquer gosto cria-
tivo, e deve dar o seu louvor de forma indiferente a tudo o que nos
prolongados desenvolvimentos do passado prevaleceu" 4.

Se a verdadeira criação não é "o que prevaleceu", o que é a arte? É o que


desconhece a cultura artística, o mimetismo, a mentira cultural; o que é

19
reinventado pelo criador a partir de seus próprios impulsos subconscien-
tes; o que é espontâneo, imediato, íntimo, pessoal; o que faz vir à tona
os "1va ores se1vagens ,,5.. Essa expressa0
- nao
- deve ser, entretanto, conf un-
dida com a chamada "arte ingênua" que, apesar de ser fruto de pessoas
simples, mostra respeito pela "arte cultural", tenta imitá-la, deseja parti-
cipar de seu mundo 6.

A reflexão de Dubuffet tem um paralelismo com certas afirmações de


Antônio Poteiro que, embora se declare primitivo, estabelece uma linha
demarcatória entre suas obras e aquelas dos demais primitivos: o desejo
de romper com os esquemas preestabelecidos, de negar a história, de
opor-lhe um mundo que não foi aprendido nos livros, mas recriado, reela-
borado a partir das próprias dúvidas, das próprias indagações, contrasta
com a repetição temática, com o medo de desagradar que refreia a livre
expressão de muitos artistas que poderiam ser altamente criadores em sua
espontaneidade 7.

Poteiro é, sem dúvida, um artista portador duma cosmogonia própria,


revelada quer por seus temas transgressores da história (Adão e Eva no
Brasil, São Francisco montado no porco, a Virgem e Madalena crucifica-
das, Madalena amante de Cristo, a santa ceia no inferno, Deus balança,
Cristo maracujá, a arca de Noé povoada só de animais, como se o ser
humano não merecesse a salvação), quer pelo tratamento a eles conferido,
que desconhece hierarquias e faz conviver no mesmo espaço animais, san-
tos, homens acumulados iterativa mente em verdadeiras montagens, quase
a repetir o primeiro gesto da criação do mundo. Se o contato diuturno
com o barro é talvez o elemento mais expressivo dessa metáfora da cria-
ção, o artista fornece-nos um outro índice de sua vontade de dar vida a
U11!- novo mundo, a um mundo próprio, quando, referindo-se a Adão e
Eva no Brasil, se coloca como o primeiro pintor da humanidade. Num
tom quase bíblico, declara: "E o primeiro pintor foi o Poteiro, que era
primitivo" 8.

o mundo singular de Poteiro, fruto de sonhos, mas mais freqüentemente


daquelas camadas profundas da psique que Jung denomina de inconsciente
coletivo, revela-nos uma riqueza imaginativa e criadora que o leva a bus-
car incessantemente formas através das quais possa extravasar a própria
ânsia de moldar novas realidades, de contar a própria verdade, não raro
crítica e caricatural, tingida dum salutar erotismo, abeberando-se nas for-
ças na turais primárias, não-disfarçadas em prol do formalismo social.

Se a presença do elemento circular é recorrente na obra de Poteiro, o


mesmo pode ser dito do "trabalho feio" 9 de G.T.O., cujas estruturas
evocam quase sempre a roda ou a mandala, independente do aspecto for-
mal de suas toscas esculturas em madeira, que guardam as marcas do
canivete, do formão, mesmo quando o artista as considera acabadas. Suas
formas nascem diretamente da madeira, sobre a qual G.T.O. registra o
desenho preliminar, respeitando a natureza peculiar da matéria-prima,
procurando adaptar-se a seus pontos de resistência, de maleabilidade.

Sem ter nunca tido nenhum tipo de formação ou de experiência artística,


G.T.O. começa a esculpir suas intrincadas composições em 1965, sob o

20
impulso dum sonho obsessivo, no qual se via moldando a madeira. A par-
tir desse momento, tomam corpo estranhos seres arquetípicos, acorrenta-
dos, entrelaçados, superpostos, que parecem nascer um do outro, encer-
rados em círculos, pirâmides, que os delimitam formal e existencialmente.
Um profundo sentimento religioso perpassa a obra de G.T.O., cioso de
sua originalidade criadora, de sua autodidaxia: "( ... ) eu invento tudo,
eu sou criador. Nem no sonho eu não tive professor; quem me ensinou
fazer estas coisas foi eu mesmo, mas eu desco];,ri que podia fazer isso foi
no sonho" 10.

Acreditando mais na criação do que na técnica, atualmente o artista dedi-


ca-se às "coisas da imaginação", pois o sonho recorrente terminou. Mas,
de vez em quando, há uma volta ao estado onírico, a cujo chamado con-
tinua a obedecer para dar vida a mais uma figura arquetípica, a mais um
inquietante ser primitivo, que nos faz esquecer o artista quase tragado
pelo mercado.
Se G.T.O. está preso na "gaiola do êxito", como nos diz Carlos Drum-
mond de Andrade Jl, um caso diametralmente oposto é representado por
Eli Heil, simbiose extrema de criador e criatura. Dona duma sensibili-
dade agudíssima, duma inventividade sem limites, a artista catarinense
criou um verdadeiro universo indissolúvel, no qual a presença das obras
de ontem é condição indispensável para a criação de hoje e de amanhã.
Não quer isso dizer que Eli Heil busque na produção precedente estímu-
los, estilemas, fórmulas. Ao contrário, recusa-se a fazer o que já fez, uma
vez que para ela o trabalho artístico é um contínuo "renascer", é um
"abrigo das maravilhas" 12 que não se podem repetir, sob pena de perder
seu encanto.
o apego de Eli Heil à própria obra como um cosmos tem outras explica-
ções, que devem ser buscadas em sua intensa religiosidade, em sua psique
voltada como uma antena a captar as vozes sofridas da humanidade, em
sua concepção da criação artística como uma outra forma de dar à luz,
como um verdadeiro parto. A existência da arte é uma prova irrefutável
da existência de Deus, que escolhe determinadas pessoas para que se des-
velem todas as belezas do mundo. Essa missão, no entanto, é difícil par-
que o artista se faz portador dos sofrimentos alheios, concentrados no ato
da criação, doloroso como o nascimento duma criança. Por essa associa-
ção profunda com o parto, Eli Heil não pode separar-se de suas criatu-
ras. Como ela mesma escreve no "Testamento Artístico": "( ... ) eu sou
a varinha mágica que os criou, deu vida; perdê-los era a mesma coisa que
perder a varinha e não criar mais (. . . )" 13 •
Definindo-se "um carretel de linha se desfazendo sem parar" 14, a artista
não se fixa em técnicas determinadas, é irredutível a qualquer classifi-
cação estilística, porque conhece e obedece a um único imperativo: o da
criação constante, que jorra em continuidade de seu inconsciente, dando
vida a um universo mágico e de densa expressividade, povoado de reta-
lhos do cotidiano, de visões fantásticas, de múltiplas metamorfoses, que
nos remetem a outras realidades, ora míticas, ora fantasmagóricas, em
que o dado de fato é utilizado pàra logo em seguida ser negado em sua
concreticidade.

21
Cores, formas, faturas em perpétua mutação constituem o universo sin-
gular de Eli Heil que, desde que descobriu fortuitamente a arte (1962),
não consegue refrear sua necessidade criadora, aquele "monstrinho doce"
que "constrói e não destrói", aquelas mãos que "trabalham sem parar",
aquela inspiração permanente: "( ... ) Sou como um olho de água nos
morros, que as pessoas não conseguem contê-lo, tapa um lado, ele aparece
noutro lugar; quer dizer, termina uma criação, vem outra, outra, outra
sem parar ( ... ) " 15 .

A construção constante dum mundo que, para artistas como Antônio Po-
teiro, Eli Heil, se manifesta sobretudo em estruturas bi e tridimensionais,
pode adquirir caracteres arquitetônicos como na Casa da Flor, obra de
Gabriel dos Santos, que a construiu entre 1912 e 1923, acrescentando-
lhe até hoje novos elementos, todos cuidadosamente datados. A partir
dum sonho que tivera quando criança, Gabriel dos Santos molda seu
universo fantasmático, servindo-se de materiais pobres - detritos cultu-
rais (cacos de louças, garrafas), elementos naturais trazidos pelo mar
(búzios, conchas), amalgamados em formas plásticas de rara eficácia esté-
tica, que mais uma vez vêm confirmar a existência de forças criadoras em
todo ser humano. Se não acreditarmos nesse lastro criativo, como pode-
remos explicar a obra desse humilde salineiro quase iletrado, que se
revelou um arquiteto espontâneo de rica inventividade, fugindo do banal
com suas combinações cromáticas, com aquela floração de louça que pon-
tilha a casa e o quintal, com as várias soluções construtivas bizarras e ao
mesmo tempo funcionais, que transformam um espaço convencional num
mundo de faz-de-conta?

Enquanto para Gabriel dos Santos a Casa da Flor é uma espécie de retiro,
no qual o artista pode ficar só com Deus, para Jakim Volanhuk, o Simi-
tério do Adão e Eva) ambiente dos mais inusitados e provavelmente sem
precedentes, parece revestir-se dos caracteres dum ato de expiação em
prol da humanidade. Concebido inicialmente como Museu de Jesus
(1939), o Simitério do Adão e Eva começa a ser construído em 1952,
após uma visão mística de seu autor, que acreditou ter encontrado o corpo
de Abel ao deparar com a "terra perfumada" no quintal de sua casa.
Guiado por uma leitura original do Gênese, Volanhuk coloca o Paraíso
terrestre no Brasil, num território compreendido entre a Amazônia e a
Praça da Sé (São Paulo), e dá início à construção de seus túmulos (Adão,
Eva, Cristo, Abel - o deste último tem a configuração dum barco tal
como o mundo), para os quais usa pedras ritualisticamente purificadas
antes da entrada no chão sagrado do "simitério" 16. Ao elemento da cria-
ção, contrapõe-se o verdadeiro movente da construção de Volanhuk: a
anunciação do Apocalipse, documentada através duma série de pinturas,
fruto de visões (Deus e Diabo) e da leitura da Bíblia (a descrição acurada
do dragão com sete cabeças e dez chifres; o arcanjo Miguel; Babilônia; a
guerra até a destruição final da terra pelo fogo). O "simitério" é um ato
de expiação, pois Volanhuk, em sua visão agônica, não chega a entrever
a nova Jerusalém, esperando com sua ação deter o fim inevitável da
humanidade.

Nesta rápida resenha de alguns artistas incomuns brasileiros, resta ainda


a referência a dois acervos fundamentais - o do Museu de Imagens do

22
Inconsciente e o da Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri, isolados
do contexto anterior não para aplicar uma distinção entre sadio e doente,
mas para poder analisá-los em sua especificidade de métodos de trabalho.

Se a atomização do acervo da Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri


dificulta um estudo mais aprofundado de suas realizações, é inegável que
entre os freqüentadores do empreendimento de Osório César estão pre-
sentes verdadeiras personalidades criadoras, como Sebastião, com suas
visões religiosas, enriquecidas por um colorido denso e dramático; Farid,
com suas peculiares perspectivas em três planos sucessivos; Aurora, que
funde desenho e escrita numa curiosa mistura de realidade, passado e
fantasia; Albino, cuja obra se caracteriza por fecunda simbologia freudia-
na, composição harmoniosa, colorido sóbrio; António Sérgio, ora abstra-
to, ora figurativo, sempre em busca de intensas harmonias cromáticas,
podendo-se afirmar que em sua produção plástica tudo tende à cor.

Bem diferente é a fortuna crítica dos artistas do Museu de Imagens do


Inconsciente, que mereceram estudos dum Sergio Milliet, dum Mário
Pedrosa, o qual encontrou um termo específico para definir suas expres-
sões plásticas - "pintores da arte virgem" 17, querendo com ele designar
a ruptura com qualquer convenção representativa, com qualquer critério
na turalista / fotográfico.

E, de fato, o que caracteriza as obras de Adelina, Carlos, Emygdio, Fer-


nando, Isaac, Octávio Ignácio e Raphael é a busca de expressões genuina-
mente próprias, a configuração de universos particulares, irredutíveis a
qualquer denominador comum, apesar da presença constante do elemento
mitológico, analisável em termos de inconsciente coletivo.

Um dos exemplos mais significativos nesse sentido é constituído pelas


metamorfoses (animal, vegetal, mineral) de Adelina, de formas quase tos-
cas, dum cromatismo de acordes freqüentemente inusitados ou fortemen-
te acentuados, mas de grande valor expressivo.

Ao contrário de Adelina, a obra de Carlos caracteriza-se por uma sábia


construção compositória, em que a simetria e o espacialismo são motivos
dominantes. Cria um universo denso de símbolos e de significações arca-
nas - do mito dionisíaco às cidades fantásticas, usando cores chapadas,
distribuindo as figuras na tela e/ou no papel de maneira a criar parale-
lismos, balizas espaciais quase rigorosas que, no entanto, não destroem a
primeira impressão de absoluta liberdade da composição, fazendo avançar
e recuar os planos de acordo com sua geometria secreta.

Pintor por excelência, Emygdio constrói seus quadros com cores vibran-
tes, com contrastes cromáticos violentos, mas equilibrados por passagens
harmoniosas. Sua pincelada é densa, a matéria é espessa. A composição
desenrola-se quase toda no primeiro plano, sem grandes preocupações
com a profundidade, com a perspectiva. O desenho é conciso, de traços
incisivos, enquanto a forma é definida pelo cruzamento, pelo entrechoque
das pinceladas, que criam uma impressão de dinamismo e vitalidade.

23
A vasta produção de Fernando tem como denominador comum a busca
do espaço cotidiano, conseguida através duma série de processos ordena-
dores: enquadramentos de números, letras e figuras; mandalas; estrutu-
ras celulares; naturezas mortas; interiores, etc. Às vezes, sua composição
poderá parecer caótica, mas se trata de uma falsa impressão, pois Fer-
nando estrutura suas obras com precisão, exatidão, embora não revele
qualquer constrição. O colorido é vibrante, intenso, ou ritmado pelo jogo
de claro-escuro, e se associa a uma pincelada densa, espessa, que faz da
matéria um dos protagonistas principais de seus quadros.

No caso de Isaac, é difícil, até mesmo impossível, determinar um estilo


dominante: a expressão varia muito num mesmo período, indo dó figura-
tivo ao abstrato. Elemento a ser destacado é seu sutil sentido colorístico,
traduzido pelo equilíbrio entre massas cromáticas, cores contrastantes.

Entre os artistas do Engenho de Dentro, Octávio Ignácio e Raphael re-


presentam a expressão eminentemente gráfica. Autor dum desenho pre-
ciosista, requintado, muito atento aos detalhes, o primeiro. Lúdico,
luxuoso, o desenho do segundo é dominado por uma linha sóbria, concisa,
que freqüentemente reduz as formas a seus índices mais significativos
para desestruturar a figura e recriá-la em planos superpostos, delicada-
mente ritmados, negadores do mundo das aparências. Raphael trabalha
quase exclusivamente com o nanquim, mas quando utiliza a cor, apesar
de jogá-la violentamente no papel, obtém resultados harmoniosos.

A análise deste último conjunto de autores demonstra de maneira cabal


que Dubuffet tem razão quando nega qualquer validade às distinções
baseadas em categorias psicológicas radicais. As noções de normal e anor-
mal desaparecem diante desses universos criativos variados, sem nenhum
parentesco com estilos e categorias preconcebidas, pois cada artista soube
construir um mundo próprio, uma linguagem própria, buscada nas forças
mais secretas do ser.

Para explicar essas visões particulares, essas formas que parecem desafiar
a história por representarem imagens desde sempre presentes no homem,
seria mais fácil recorrer à terminologia estilística corrente. Mas que sen-
tido teria falar em gótico, barroco, expressionismo, fauvismo, primiti-
vismo, art nouveau, e assim por diante, se o que devemos buscar nessas
expressões é o gesto primeiro, é a gênese da criação, que não hesita em
sujar suas mãos de barro e tinta, em trabalhar com os instrumentos mais
rudimentares, em inventar novas técnicas, porque o que importa é trans-
mitir ao mundo a própria mensagem, de qualquer maneira, em: qualquer
suporte?

Embora os artistas apresentados nesta seleção sejam quase todos conhe-


cidos e tenham uma participação no mercado que parece desmentir a idéia
duma visão espontânea, pessoal, não se pode desconhecer uma das gran-
des peculiaridades da cultura brasileira: seu constante contato com aque-
las manifestações consideradas "primitivas", "ingênuas", "populares",
que dificilmente conseguem subtrair-se à imissão no circuito artístico
urbano. Esse elemento, no fundo, é circunstancial, porque não se pode

24
pretender, nos dias de hoje, uma pureza edênica, uma total imunidade à
CULTURA. O que importa ressaltar nesses artistas é como, apesar do
mercado, tenham conseguido manter uma visão própria, um frescor e uma
ânsia de criação que fazem passar para um segundo plano os holofotes da
publicidade.

Se não aceitarmos essas circunstâncias, se quisermos a todo custo encon-


trar o artista íntegro e integral, deveremos, então, recorrer àquela divisão
entre normal e anormal, que acabará por negar a força da criatividade
latente em todo indivíduo e da qual os artistas incomuns se fazem porta-
vozes pelos caminhos da recusa e do sofrimento.

Annateresa Fabris
Curadora da Exposição Nacional de Arte Incomum
j Flávio de Carvalho, "A única arte que presta é a arte anormal", Diário de São
Paulo, 24 set. 1936.
2 Flávio de Carvalho, "Recordações do Clube dos Artistas Modernos", RASM, São
Paulo, (1), 1939, SP.
3 Jean Dubuffet, Cultura asfixiante (Lisboa, 1971), p. 105.
4 Id.) 16.
5 Dubuffet, Prospectus et tous écrits suivants (Paris, 1967), I, p. 201, 202, 212, 210.
6 Id., 217
7 Entrevista à A. Goiânia, 29 jul. 1981.
8 Id.
9 Depoimento à A. Divinópolis, 1.0 ago. 1981.
10 Apud: Marcio Sampaio, "GTO - Primeiras estórias", Minas Gerais (Suplemento
Literário), VII (293),8 abro 1972, p. 3.
11 G.T.O. e a crítica, Centro de Artesanato Mineiro, Belo Horizonte, 1979.

12 Depoimento à A. Florianópolis, 20 jul. 1981.


n Eli Heil, "Meu Testamento Artístico". Florianópolis, 19 jul. 1980.
14 "Eli Heil, A obsessão de criar", Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 ago. 1971.

15 Apud: Adalice M. de Araújo, Mito e magia na arte catarinense (Curitiba, 1977),


p. 151.
16 Depoimento de Maria Prado à A. São Paulo, 13 jun. 1981.
17 Mário Pedrosa, Dimensões da arte (Rio de Janeiro, 1964), p. 105-15.

25
OUTSIDER COSMOGONIES

In 1933, São Paulo is shocked by an unusual exhibition - drawings


executed by children and mentalIy-handicapped individuaIs -
organized by Flávio de Carvalho within the series of polemical
manifestations set forth by the Clube de Artistas Modernos. A fierce
attack to the methods and aesthetics of the Escola Nacional de Belas
Artes, the display also represents an opportunity to criticize the mediocre
predilection of the middle-class, which, centered on love/procreation
scenes, rejects the "abnormal" for bringing its system of values to a crisis,
and for revealing the deepest insights of man and nature: "( ... )
demoniac, morbid, and sublime", "that which is rare, burlesque,
humorous and philosophical in thinking, something out of the
essence of life" 1.

Flávio de Carvalho's chalIenge, which already had been preceded by a


study on the artistic expression of alien people, initiated in 1925 by
Osório César, is particularly interesting to our considerations on Outsider
Art, since the Brazilian artist, even not developing the systematic
research carried out by Dubuffet from 1945 onwards, launches a series
of ideas we will reencounter in the essays on Art Brut.

Without affirming to be Brazil pioneer in this kind of investigation, it is


necessary to recalI, however, Flávio de Carvalho's polemics, since, in at
least two fronts, it anticipates Dubuffet's folIowing campaign in support
of non-cultural art: when stating "the philosophical and psychological
importance of the art of the insane and children", when opposing
"the oppressing and asphyxiating walIs of the Escola de Belas Artes,
which, by correcting and polishing up, always aim at imposing on the
students the professor's frequently musty personality" 2.

It is very true that Dubuffet radicalizes his attitude in the face of the
so-calIed "abnormal" art, denying such naming, depreciative in his
point of view, and affirming the absolute equality of the "sane" and the
"insane", since what interests him is a personal achievement,
conceived apart from any influence of traditional art, expressing a
universe of its own, presenting an opposition to alI images of the
outside world set forth by culture" 3. In other aspects, this same concern
is present in Flávio de Carvalho, either when he attracts attention
towards the powers of the unconcious, revealed by "abnormal" art, or
when he rejects the "ritualistic" correction which turns into routine
what was spontaneous, primaI.

Perhaps the real intersection between the Brazilian artist's and


Dubuffet's ideas is in the opposition to formal education, which
restrains and asphyxiates every creative expression to adapt it to
pre-established rules, to deny the role of individuality.

What Flávio de Carvalho had said concerning the Escola de Belas Artes,
also appears in the writings of his French colIeague, who casts a sound
diatribe against the teacher-stereotype, "who is, by definition, one
who doesn't show keeness towards any creative effort, and must
indifferently express his praise to all that prevailed within the prolonged
developments of the past" 4.

26
If the true creadon Ísn't "that which prevailed", what is art? It is that
which is not acquainted with the artistic culture, the mimesis, the
culturallie; that which is re-invented by its creator out of his own
subconscious impulses; that which is spontaneous, immediate, intimate,
personal; that which makes surface the "untamed values"s. This
expression mustn't, however, be mistaken for the so-called "naive art"
which, in spite of originating from simple people, shows respect
towards "cultural art", attempts at ímitating it, wishes to participate
ín its world 6.

Dubuffet's reflexÍon places itself parallel to some affirmations of


Antonio Poteiro who, although claiming to be prímitive, traces a
demarcation line between his works and the works of other primitive
artists: the will to sever the links with pre-established schemes, to
. deny history, to oppose to it a world that was not apprehended ín the
books, but re-created, reelaborated from actual doubts, from actual
questioning, contrasts with thematic repetition, with the fear of
displeasing that curbs the free expression of many artists who could be
highly creative in their spontaneity 7.

Poteiro is, no doubt, an artist who bears a cosmogony of himself, set


forth either by his history-transgressing themes (Adam and Eve in Brazil;
Saint Francis rides a píg; The Virgin and Madelein crucified; Madelein,
Christ's lover,' The Holy Supper in Hell,' Godswings; Passion-fruit
Chríst; Noah's ark peopled only by animals, as if mankind didn't deserve
salvation), or by the treatment conferred to them, which is not
familiar with hierarchies, and whích places sharing the same space
animaIs, saints, men accumulated interactively in actual mountings,
nearly repeating the first gesture of creation of the world. Being the
continuous handling of clay, perhaps, the most expressive element of
this metaphor of creation, the ar1Íst provides us with another indication
of his will to give life to a new world, to a world of his own,
when, referring to Adam and Eve in Brazil, he presents himself as
mankind's first painter. In an almost bíblical tone, he declares: "And
the first painter was Poteiro, who was primitive" 8.

Poteiro's singular world, stemmed from his dreams, but more frequently
from the deep layers of psyche which Jung calls collective
unconcious, discloses an imaginative and creative abundance that leads
him to íncessantly search ways through which to express his own
eagerness to shape new realities, to tell his own truth, not seldomly
criticaI and caricatural, tinted by a healthy erotism, soaking himself in
the prime natural powers, not disguised so as to shore up
social formalismo

If the presence of the circular element is recurrent in Poteiro's works


the same can be said concerning G.T.O.'s "ugly work"g, the structures
of which almost always remind the wheel or the mandala, independently
from the formal aspects of his rough wood-carvings, which keep the
scars left by the artist's pocket knife or chisel, even when he declares
them finished. G.T.O.'s mouldings are born straightly from wood, where

27
he sketches the preliminary outline, respecting the peculiar nature of
the raw material, trying to adapt himself to its resistance and
malleability points.

Having never had any kind of artistic formation or experience, G.T.O.


starts to carve his intricate compositions in 1965, under the impulse
of an obsessive dream, in whieh he saw himself shaping wood. From this
moment on, strange archetypal beings take shape; chained, entangled,
overlaid, seeming to be born one from the other, locked in circles,
pyramids, whieh delimit them formally and existentially.

A deep religious feeling is registered throughout the works of G.T.O.,


who is aware of this creative originality, of his selftaughtness:
"( ... ) I invent everything, I am creator. Not even in my dream I had
a teacher; I taught myself to make these things, but it was in my dream
I found out I could to it" 10.

The artist, believing more in creation than in technique, presently


dedicates himself to the "things from imagination", for the recurrent
dream is over. There is however, on occasion, a return to the oneirie
state, whose call he continues to observe to give lHe to one more
archetypal figure, to one more disturbing primitive being, that make us
forget the artist almost swallowed up by the market.

If G.T.O. "is jailed in the cage of success", recalling Carlos Drummond


de Andrade's words 11, a diametrically opposite case is represented by
Eli Heil, extreme simbiosis of creator and creature. Showing an
extremely sharp sensibility, an unlimited inventiveness, the artíst from
Santa Catarina created quite an indissoluble universe, where the
presence of yesterday's works is an indispensable condition for today's
and tomorrow's creation. This doesn't mean that Eli seeks in the previous
production stímuli, styles, formulae. On the contrary, she refuses to do
what she has already done, since, to her, the artistic work is a continuous
"rebirth", "a shelter of the wonders" that cannot repeat themselves,
under the risk of losing their enchantment 12.

Eli Heil's fondness towards her own work as a cosmos presents further
explanations whieh must be sought in her intense relig-iosity, in her
psyche, ready, as an antenna, to piek up the long-suffering voices of
humanity, in her conception of the artistie creation as another form of
giving birth, as an actual delivery. The existence of art is an undeniable
proof of God's existence, who designates certain persons to disclose for
themselves all the wonders of the world. This mission, though, is
demanding, since the artist turns himself in to bearer of other people's
sufferings, centered in the act of creation, painful as the birth of a
child. Due to this profound association with birth, Eli Heil cannot set
herself apart from her creatures. As she herself writes in the "artistie
testament": " . . . I am the magie wand that created them, that gave
them lHe; losing them would mean losing the wand and not being able
to create anymore. . . " 13 .

28
Defining herself "a lining spool undoing itself continually" 14, the artist
doesn't stick to the use of standardized techniques, remaining irreducible
to any stylistic classification, for she knows and follows one single
rulíng: the one of constant creation, that continually flows from her
unconcious, giving life to a magic and densely expressive universe, filled
with images of everyday life, with fantastic visions, with multiple
metamorphosis, which convey ourselves to other realities, now mythical,
then phantasmagorial, in which the actual element is used to be,
soon afterwards, denied as concrete.

Colours, forms, doings in perpetuaI mutation make up the singular


universe of Eli Heil's who, since fortuitously discovering art (1962),
cannot restrain her creative necessity, that "sweet little monster that
constructs and doesn't destroy", those hands that "work without
stopping, that permanent inspiration: . .. I'm like a water spring on the
. hills, that people cannot hinder; closing one side, ir comes out in
another; that is, after creation, there is another, another,
another, non-stop. .. "~ .

The constant construction of a world that, for artists like Antonio


Poteiro, Eli Heil, manifests itself principally in bi and tridimensional
structures, may acquire architectural features as in Gabriel dos Santos'
work Flower House (Casa da Flor), which the artist constructed
between 1912 and 1923, and to which he has been adding new
elements up to today, all of them carefully dated. Qut of a dream he
had as a child, Gabriel dos Santos shapes his phantasmagorial universe,
making use of valueless materiaIs _. cultural debris (fragments of
broken crockery and bottles), natural elements brought by the sea
(cowries, shells), amalgamated in plastic forms of rare aesthetic efficacy,
which once again confirm the existence of creative powers in every
human being. If we don't believe this creative ballast, how will we be
able to explain the works of this humble, almost illiterate saltminer, who
proved himself to be a richly inventive, spontaneous architect, stepping
away from corny creativeness with his chromatic combinations, with
that crockery flowering speckling the house and the yard, with the
several bizarre constructive solutions and, in the meantime functional,
which turn a conventional space into a make-believe world?

Meanwhile the Flower House (Casa da Flor) is a kind of refuge to


Gabriel dos Santos, where the artist can be alone with God, to Jakim
Volanhuk, Adam and Eve)s Cemetery (O Simitério do Adão e Eva), most
unusual environment which was probably never thought out before,
seems to contain the features of an expiation act on humanity's behalf.
Conceived initially as Jesus) Museum (1939), Adam and Eve)s Cemetery
began to be set up in 1952 following a mystical vision of its author,
who believed he had found Abel's body when coming across perfumed
earth in the yard of his house. Guided by an original reading of
Genesis) Volanhuk places the terrestrial Paradise in Brazil, on a territory
between the Amazon and Praça da Sé (São Paulo) and initiates the
construction of tombs (for Adam, Eve, Christ, and Abel, whose grave
portrays the configuration of a boat such as the world) for which he uses

29
ritualistically purified stones before entering the cemetery's holy
ground 16. To the creation element there opposes itself the real drive
behind Volanhuk's construction: the announcement of the Apocalypse,
registered through a series of paintings, inspired by visions (God and
Devil) and by the reading of the Bible (the accurate description of the
seven-headed ten-horned dragon; Archangel Michael; Babylon; the
war till the final destruction of the Earth by fire). The cemetery is an
expiation act, since Volanhuk, in his anguished vision, doesn't get to the
point of foreseeing the new Jerusalem, hoping by his move, to avoid
the inevitable collapsing of humanity.

In this quick survey on some Brazilian outsider artists, we are still to


refer to two significant lots - sheltered by the Museu de Imagens do
Inconsciente and the Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri,
kept apart from the previous context not to support a distinction
between healthy and sick, but to analyse them according to the
specificity of their working methods.

If the atomization of the production load of the Escola Livre de Artes


Plásticas do Juqueri makes difficult a deeper insight into its
achievements, it's undeniable that among the participants of the
undertaking carried out by Osório César there are quite creative
personalities, as Sebastião, with his religious visions, enriched by adense
and dramatic colouring; Farid, with his peculiar perspectives in three
successive planes; Aurora, who blends drawings and writings in a queer
mergíng of reality, past and fantasy; Albíno, whose works are
characterízed by a fertile Freudían symbology, harmoníous composition,
austere colouring; António Sérgio, now abstract, then figurative,
always searchíng intense chromatic harmonies, and in whose plastic
production, one míght affirm, all tends to colouring.

Quite different is the crítical fortune of the Museu de Imagens do


Inconsciente artists, whose works werefocussed by Sérgio Milliet, and
Mário Pedrosa, who found a specific term to define their plastic
expressions - "vírgin art painters" 17, with whích he tried to designate
the breaking away from any representative convention, from any
na turalistic / photographic crí terion.

And, what actually characterízes Adelina's, Carlos', Emygdio's,


Fernando's, Isaac's, Octávio Ignácio's and Raphael's works is the search
for genuinely personal expressions, the configuration of particular
universes, irreducible to any common denominator, despite the constant
presence of the mythological element, susceptible of being analysed in
terms of the collective unconcious.

One of its most outstanding examples is set forth by Adelina's


metamorphoses (animal, vegetal, mineral), with almost rough forms of
a chromatism containing frequent1y unusual or heavily stressed chords,
but portraying great expressive vigour.

Opposite to Adelina's, Carlos' works are characterized by a wise


composition technique, where symmetry and spatialism are prevailing

30
motives. He creates adense universe of symbols and arcane signHicates -
from the dionysian myth to fantastic cities, using downright colours,
distributing the figures on screen andj or on paper so as to create
parallelism, nearly rigorous space boundaries which, however, don't
destroy the first impression of absolute freedom of composition, making
the planes advance and retreat according to their secret geometry.
A talented painter, Emygdio constructs his pictures in vibrant colours,
with violent chromatic contrasts, but balanced by harmonious passages.
His brush stroke is dense, his matter is thick. His composition takes
place almost completely in the foreground, without worrying much
about profundity, about perspective. The drawing is concise, of incisive
tracing, meanwhile form is defined by the crossing, by the coIlision of
the brush strokes, which create an impression of dynamism and vitality.

Fernando's vast production portrays as common denominator the


search for the quotidian space, obtained through a series of ordering
processes: framing of numbers, letters and figures; mandalas; cellular
structures; stilI lHe scenes; interiors, etc .... At times his composition
is likely to Iook chaotic, but that's a faIse impression, since Fernando
structures his works with precision, exactness, although he doesn't
reveal any constriction. The colouring is vibrating, intense, or
cadenced by the light-dark game, and associates itseIf to adense, thick
brush stroke, which turns matter jnto one of the main protagonists
of his paintings.

As to Isaac, it is difficult, even impossible, to determine a prevailing


style: his expression varies considerably within one same period,
spanning from figura tive to abstract. The outstanding eIement is his
cunning colouristic sense, expressed by the balance between chromatic
masses, contrasting colours.

Among the Engenho de Dentro artists, Octávio Ignácio and Raphael


represent the eminently graphical expression. The forme r is author of a
polished, affectedly refined drawing, being very attentive to details.
Ludicrous, Iuxurious, the latter's drawing is ruled by a concise, austere
line, which frequently reduces the forms to their most significant
eIements to disrupt the figure and re-create it in overlaid planes,
delicateIy cadenced, denier of the world of appearances. Raphael works
almost excIusiveIy with India ink, but when using colour, in spite of
throwing it violently on paper, he achieves harmonious results.

The analysis of this last group of authors demonstrates throughly


that Dubuffet is right when denying any validity to the distinctions
based on radical psychological categories. The notions of normal and
abnormal disappear before these varied creative universes, without any
relationship with styles and previously conceived categories, since every
artist knew how to construct a world of his own, a language of his
own, taken from the most secret powers of his seIf.

To explain these particular visions} these forms which seem to defy


history, for they represent images always present in man, it would be
easier to resort to the actual stylistic terminology. But what sense

31
would it make to speak about gothic, baroque, expressionism, fauvism,
primitivism, art nouveau and so forth, if what we should search for
in these expressions is the primaI gesture, the genesis of creation,
that doesn't hesitate in dirtying its hands with clay and ink, in utilizing
the most rudimentary instruments, in inventing new techniques, for
what matters is to transmit to the world the actual message, no malter
how, through the use of any material?

Although almost all artists introduced in this survey be known and


share a participation in the market that seems to deny the ide a of a
spontaneous, personal vision, one cannot ignore one of the chief
peculiarities of Brazilian culture: its constant contact with those
manifestations considered "primitive", "naive", "popular", which can
hardly avoid the urban artistic circuito This element is, in reality,
circumstantial, because one cannot, nowadays, aspire to an edenic purity,
to a total immunity to CULTURE.

What is important about these artists is that they have, despite the
market, managed to sustain a vision of their own, an exuberance
and eagerness towards creation without concerning themselves with
the spotlights of publicity.

If we don't accept-these circumstances, if we wish, at any cost, to


find the righteous, complete artist, we shall need to resort, then,
to that division between normal and abnormal, which will end up
denying the power of latent creativity in every individual and of
which the outsider artists tutn themselves into spokesmen through the
paths of refusal and suffering.

Annateresa Fabris
National Cura to r
1 Flávio de Carvalho, "A única arte que presta é a arte anormal", Diário de São
Paulo, set. 24, 1936.
2 Flávio de Carvalho, "Recordações do Clube dos Artistas Modernos", RASM, São
Paulo, (1), 1939, s.p.
3 Jean Dubuffet, Cultura asfixiante (Lisboa, 1971), p. 105.
4 Ditto, 16.
5 Dubuffet, Prospectus et tous écrits suivants (Paris, 1967), I, p. 201, 202, 212,
210
6 Ditto, 217.
7 Interview to A. Goiânia, jul. 29, 1981.
8 Ditto.
9 Statement to A. Divinópolis, aug. 1, 1981.
10 Apud: Márcio Sampaio, "G.T.O. - Primeiras estórias", Minas Gerais (Suple-
mento Literário), VII (293), apr. 8, 1972, p. 3.
11 G.T.O. ea crítica, Centro de Artesanato Mineiro, Belo Horizonte, 1979.
12 Statement to A. Florianópolis, jul. 20, 1981.
13 Eli Heil, "Meu Testamento Artístico", Florianópolis, jul. 19, 1980.
14 "Eli Heil, A Obsessão de Criar", Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, aug. 6, 1971.
15 Apud: Adalice M. de Araújo, Mito e Magia na arte catarinense (Curitiba, 1977),
p. 15l.
16 Maria Prado's Statement to A. São Paulo, jun. 13, 1981.
17 Mário Pedrosa, Dimensões da arte (Rio de Janeiro, 1964), p. 105-15.

(Versão de Mário de Araújo)

32
LUGAR AO INCIVISMO

Em nossa época, como em outras, determinadas vias de expressão, favo-


recidas pelas modas ou pelas circunstâncias, acabam por prevalecer; de-
terminadas formas de arte acabam por receber, excluindo todas as outras,
atenção e consideração; enfim, elas são erroneamente olhadas como as
únicas fundamentadas, como as únicas possíveis. Abre-se um canal para
o qual convergem logo todos os artistas, sem ter consciência de seu cará-
ter específico e perdendo de vista o fato de que se oferecem inúmeras
outras vias, todas igualmente admissíveis. É tão grande o poder de atra-
ção desse estreito sulco que constitui o lugar da arte cultural, que as
produções que se servem de outros caminhos não são mais percebidas,
parecem ultra-sons. Elas são relegadas a uma condescendente rubrica de
arte das crianças) dos primitivos e dos loucos, que implica uma falsa
idéia de um balbuciar desajeitado ou aberrante, no início do caminho que
leva à arte cultural. O caráter comum que alguns acreditam perceber em
todas as produções reunidas nessa rubrica é ilusório. Essas obras só têm
. em comum o fato de ignorar o estreito e arbitrário sulco por onde passa
a arte habitual e de traçar livremente seu percurso nos imensos territórios
que o grande caminho da cultura deixou periclitar a ponto de esquecer
que eles existem.
A impressão de uma diversidade da arte cultural e de uma uniformidade
de todas as formas de arte que lhe são estranhas tem por origem uma
ilusão ótica, uma falta de distanciamento em relação aos hábitos adquiri-
dos. Com o nariz demasiadamente metido nesses hábitos, a perspectiva é
falseada e tudo o que se afasta deles parece nebuloso. Na realidade, é a
arte cultural que é específica e uniforme; as outras formas de arte ofere-
cidas apresentam uma diversidade infinita.
Iniciadas em 1945, as coleções de Art Brut são constituídas por obras de
pessoas estranhas ao ambiente cultural e resguardadas de sua influência.
Os autores dessas obras têm, em sua maioria, uma instrução rudimentar.
Em outros casos, conseguiram, ou por perda de memória ou por uma
disposição de espírito fortemente contraditória, libertar-se do magnetis-
mo da cultura e reencontrar uma fecunda ingenuidade.
Acreditamos, contrariamente à idéia clássica, que os impulsos da criação
artística, longe de serem privilégio de indivíduos excepcionais, abun-
dam em qualquer um, mas são comumente refreados, alterados ou con-
trafeitos, pela preocupação de ajustamento social e de deferência aos
mitos herdados. Acreditamos, diga-se de passagem, que a própria arte
cultural se ressente dessa deferência; que ela também, na maioria das
vezes, é condicionada e contrafeita. O objetivo de nosso empreendimento
é a busca de obras que escapam, o mais possível, a esse condicionamento
e que partem de posturas de espírito verdadeiramente inéditas, profun-
damente diferentes daquelas às quais estamos acostumados.
Se os pressupostos "dons" atribuídos aos "artistas" estão, no nosso en-
tender, profusamente espalhados, são raros, ao contrário, extremamente
raros, aqueles que têm a ousadia de exercê-los em toda sua pureza e
liberdade, e subtrair-se, dessa forma, ao condicionamento social - ter,
ao menos, um bom distanciamento em relação a ele. É necessário observar
que essa libertação implica um humor a-social, uma postura que os
sociólogos chamarão de alienada. Entretanto, é esse humor que nos parece

33
ser a própria mola de toda criação e invenção - o inovador é, por essên-
cia, alguém que não se contenta com o que se contentam os outros, e
assume, portanto, uma postura de contestador.
Deixemos que os moralistas dêem sua opinião sobre o caráter meritório
ou repreensível do não-conformismo, que se preocupem com o que possa
servir ao bem público ou prejudicá-lo, pois isso, certamente, não é tarefa
nossa. Estaríamos, entretanto, inclinados a pensar que a presença de opo-
sitores aos valores recebidos é, em toda coletividade, muito salutar; mas
não é este o momento de desenvolver esse ponto de vista.
Quanto a nós, desejosos de produções que escapam às normas e abrem
novos caminhos para a arte, orientamos uma parte de nossas pesquisas
para determinados setores onde existem as melhores possibilidades de
se encontrarem indivíduos bastante recalcitrantes, em todos os campos,
às convenções sociais e bastante animados do humor de alienação neces-
sário. Isso nos levou a pesquisar as obras daqueles que, por muito tempo,
foram designados pelo termo alienados e que, tomados de um forte indi-
vidualismo e tendo levado mais longe que os outros suas conseqüências,
foram declarados inaptos à vida social e internados em asilos. Encontra-
mos alguns casos (raros, na verdade) de obras extraordinariamente in-
ventivas e, a observação faz-se necessária, mais lucidamente acabadas, das
mais metodicamente construídas e administradas que conhecemos.
Seja porque as pesquisas foram feitas por nós nesses setores mais fáceis
(os a-sociais aí se encontram em maior número do que em outros lugares
menos disfarçados), seja porque os lazeres ociosos que aí reinam, assim
como a solidão e a privação de qualquer tipo de festa, são fatores favorá-
veis à produção de arte, chegou-se, enfim, à conclusão de que uma boa
parte das obras recolhidas - mais ou menos a metade - é a daqueles
que a polícia e os psiquiatras denunciaram como anti-sociais e desprovi-
dos de cidadania.
Seria bem errôneo, entretanto, deduzir que as obras apresentadas - e,
não menos que as outras, aquelas cujos infelizes autores estão internados
em centros psiquiátricos - possam ser justificadas por um olhar que lhes
confira um caráter patológico. É exatamente contra isso que protestamos,
contra a deplorável idéia de não se levar em consideração nada daquilo que
pensam, dizem ou produzem esses indivíduos, uma vez declarados pelos
médicos diferentes do tipo tido como normal na cidade. É provável que a
questão da loucura deva ser inteiramente reconsiderada e desde o início,
e sem outro critério que não o social. Sem dúvida, a cidade, de seu próprio
ponto de vista, está constituída de modo a eliminar os perturbadores,
expulsar e desconsiderar todos os que pretendem questionar a convenção
social e se recusam a ajustar-se aos imperativos que constituem a cultura
da nação. Os funcionários do Estado estão encarregados de inculcar e
impor essa cultura a todos os membros da coletividade e de declarar doen-
tes e indignos os que se' opõem. Nosso ponto de vista, entretanto, não é
da mesma natureza, a partir do momento em que estamos justamente em
busca de produções de artes estranhas à arte cultural e fruto de modos de
pensar livres dos mimetismos nos quais se fecha - e se cega - a cultura.
Quanto ao resto, e de todo modo, a noção de uma arte patológica, que
se opõe a uma arte sã e lícita, parece-nos de todo sem fundamento; não
somente em virtude daquilo que uma definição de normalidade apresenta

34
de arbitrário e de ocioso, mas também porque as formas de afastar-se dela
são bem diferentes e só por absurdo poderiam constituir um todo: seria
como dividir a botânica em duas categorias, uma englobando a camélia,
e a outra, todos os outros vegetais. Há vários motivos para ser preso e
levado ao asilo, como, por exemplo, não pensar bastante ou pensar de-
mais, não ter imaginação ou desenvolvê-la a tal ponto que seja conside-
rada excessiva; e fazer de uma ou de outra categoria - do demasiado
ou do muito pouco - uma única categoria, não tem sentido algum.
O que se espera da arte não é, sem dúvida, que seja normal. Espera-se,
ao contrário - e isso dificilmente será refutado - , que seja o mais pos-
sível inédita e imprevista. Espera-se, também, que seja extremamente
imaginativa. Por isso, fazem rir as acusações feitas a algumas obras de
serem demasiado imprevistas ou imaginativas e sua conseqüente relega-
ção ao departamento de uma arte patológica. O melhor, o mais coerente,
. seria dizer, para terminar, que a criação de arte, não importa onde surja,
existe sempre em todos os casos patológicos. No final das contas, o ho-
mem normal, na acepção do funcionário do Estado, trabalha no escritório
ou na fábrica e, aos domingos, vai ao estádio ou assiste à TV; não lhe
passa pela cabeça fazer quadros. E muito menos, se ele se aventurar
nesse campo,' fazê-los de forma diferente à recomendada.
Nosso único desejo de encontrar obras representativas da ctlaçao cere-
bral, surgidas com toda espontaneidade e ingenuidade em sua pureza
bruta (com isso queremos dizer: imune às polarizações da cultura, aos
mimetismos da arte cultural), nos levou a conduzir nossas pesquisas -
ao menos uma parte delas - pelo lado daqueles que são, por excelência,
os campeões do não-ajustamento, os porta-estandartes do pensamento
pessoal e não-condicionado, os grandes adeptos do imaginário e os gran-
des refutadores de todo dado inculcado. Uma parte apenas, entretanto,
pois logo veremos que as obras apresentadas são, como dissemos, em igual
medida, também de autores cujo status social é irrepreensível e cujo bom
equilíbrio mental não poderia ser incriminado. Veremos também que não
h:=\ entre as produções destes e aquelas de supostos doentes nenhuma dife-
rença de equilíbrio que possa motivar uma abordagem de uns e de outros
com olhos diferentes.
Expressemos, para terminar, todo o nosso pensamento, mesmo que ele
possa parecer subversivo. Não somente nos recusamos a reverenciar ape-
nas arte cultural e a considerar menos admissíveis que as suas as obras
que aqui apresentamos, mas reputamos, ao contrário, que estas últimas,
fruto da solidão e de um puro e autêntico impulso criativo (onde não
interferem preocupações de competição, de aplauso e de promoção so-
cial), são, por esse motivo, mais preciosas que as produções dos profissio-
nais. Após uma certa familiaridade com essas florações altamente febris,
tão total e intensamente vividas por seus autores, não podemos subtrair-
nos à sensação de que a arte cultural, ao lado delas, parece, em seu con-
junto, fútil jogo de sociedade, falaciosa ostentação.
Jean Dubuffet
(Texto introdutório à exposição das coleções de Ar! Emt realizada no Musée des
Arts Décoratifs, em Paris, em 1967. Figura no Tomo I de Prospectus e! tous écrits
suivants) Ed. Gallimard, 1967.)
(Tradução de Mariarosaria Fabris)

35
A EXPERIÊNCIA DO ENGENHO DE DENTRO

Quando se fala em ateliê de pintura instalado num hospital psiquiátrico,


de ordinário supõem-se duas alternativas.

Tratar-se-ia de um setor de terapêutica ocupacional onde os doentes fariam


cópias de estampas vulgares, tentariam reproduzir objetos colocados dian-
te de seus olhos, decorariam vasos, cinzeiros, etc., sempre sob a orientação
de um técnico. A criação espontânea seria habitualmente cerceada.

Ou tratar-se-ia de anexo a um serviço de psicoterapia analítica, no qual


as pinturas seriam utilizadas como ponto de partida para associações vet-
bais, aceito o critério de que as imagens constituem, segundo Freud, meio
muito imperfeito para as representações tornarem-se conscientes. Seriam
apenas dados para a busca dos elos intermediários que são as recordações
verbais. Só através dos elos verbais o material reprimido, simbolizado
nas imagens, chegaria ao consciente.

Esta posição de psicanálise ortodoxa permanece atual.

Claude Wiart, da direção do Centre d'Étude de l'Expression (Paris),


utiliza a pintura como medium. Ele escreve, em 1980: .. , "será neces-
sário que a pessoa que pinta venha a falar. Se utilizamos a pintura é jus-
tamente porque o doente se encontra numa situação em que, devido a
inibição neurótica ou a fechamento esquizofrênico, não pode falar" 1.

Muitas vezes nos perguntam se seguimos essa diretriz no ateliê do Museu


de Imagens do Inconsciente.

No nosso ateliê a pintura não é um medium, tem valor próprio, não só


para pesquisas referentes ao obscuro mundo interno do esquizofrênico,
mas também no tratamento da esquizofrenia.

Atribuímos grande importância à imagem em si mesma. Se o indivíduo


que está mergulhado no caos de sua mente dissociada consegue dar forma
às emoções, representar em imagens as experiências internas que o trans-
tornam, se objetiva a perturbadora visão que tem agora do mundo, estará
desde logo despontencializando essas vivências, pelo menos em parte, de
suas fortes cargas energéticas.

A experiência mostra que a pintura poderá mesmo ser utilizada pelo pró-
prio doente em tentativas para reestruturar a ordem interna. Daí a fre-
qüência do aparecimento, na pintura de esquizofrênicos, de agrupamentos
simétricos mais ou menos rudimentares e de imagens do círculo, confi-
gurações das forças instintivas de defesa da psique, que se opõem à dis-
sociação e ao caos.

Ver-se-á também o doente recorrer à pintura como a um verdadeiro ins-


trumento de trabalho que o ajuda a discriminar os objetos do mundo
externo deslocados de suas posições utilitárias pelas explosões internas,
a lutar pela reconquista do espaço cotidiano e reconstrução da realidade.

A pintura dos esquizofrênicos é muito rica em símbolos e imagens que


condensam profundas significações e constituem uma linguagem arcaica

36
de raízes universais. Linguagem arcaica, mas não morta. A linguagem sim-
bólica desenvolve-se em várias claves e pautas, transforma-se e é trans-
formadora.

Um dos objetivos principais de nosso trabalho é o estudo dessa lingua-


gem. Não nos preocupamos em fazer o debulhamento da imagem simbó-
lica, ou dissecá-la intelectualmente. Nós nos esforçamos para entender a
linguagem dos símbolos colocando-nos na posição de quem aprende (ou
reaprende) um idioma. Procuramos ir até o doente. É essa a nossa inten-
ção, quando estudamos os símbolos e seus paralelos históricos, seguindo
rotas descobertas por C. G. Jung.

A fim de dar uma idéia do que pode acontecer na condição denominada


ordinariamente esquizofrenia, citaremos Fernando: " ... o mundo das
imagens mudei para o mundo das imagens mudou a alma para outra coisa
as imagens tomam a alma da pessoa".

São raras as verbalizações explícitas. Aquele cujo campo do consciente foi


invadido por conteúdos emergentes das camadas mais profundas da psi-
que estará perplexo, aterrorizado ou fascinado por coisas diferentes de
tudo quanto )pertencia a seu mundo cotidiano. A palavra fracassa. Mas
a necessidade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva
o indivíduo a configurar suas visões, o drama de que se tornou persona-
gem, seja em formas toscas ou belas, não importa.

Se o ambiente do ateliê for livre de toda coação, se o doente encontra aí


suporte afetivo e em outros o desejo de aproximação, inicia-se não raro
um processo movido por forças intintivas de defesa em luta contra cor-
rentes poderosas que se movem na direção das funduras do inconsciente.
Decerto essas forças autocurativas são derrotadas muitas vezes, entretanto
não se apagam de todo, mesmo nos casos mais graves.

Será preciso estar de antenas ligadas e conhecer algo da linguagem dos


símbolos para acompanhar o processo que se desdobra em séries de ima-
gens, tornando "visível o invisível".

Os sonhos observados em séries, diz C. G. Jung, revelam surpreendente


continuidade significativa na estrutura e tom emocional. Exatamente o
mesmo acontece na expressão plástica dos psicótícos examinada em séries,
tomando-se em conta que, na produção da psique dissociada, os conteúdos
do inconsciente apresentam-se muito mais tumultuados e imbricados uns
nos outros, as imagens são mais estranhas e arcaicas que nos sonhos.
Entretanto, se dispusermos as pinturas em séries não será necessário pos-
suir paciência extraordinária para apreender o fio que lhes dá sentido.
Esta é a lição aprendida na escola viva que é para nós o ateliê de pintura.

Octávio, depois de sair de surto psicótico, veio freqüentar o ateliê do


museu, em regime de externato. Seus desenhos e pinturas mostram o
desenvolvimento de um processo psíquico que tende a aproximar opostos
em violento conflito, através de imagens de cavalos. Nesta exposição da
Bienal podem ser vistos quatro cavalos pertencentes a uma série de mais
de trezentos, desenhados por Octávio.

37
o cavalo é conhecido em psicologia como representante de impetuosos
impulsos animais existentes no homem. De fato, os impulsos instintivos
eram fortes em Octávio, e também fortes eram suas aspirações espirituais.

Mas o importante é que ele sabe por intuição que "o cavalo pode achar
o caminho quando o cavaleiro perde a cabeça" (comentário do autor).
Há momentos em que pretende sacrificar o animal, entretanto logo desco-
bre que será preferível alimentar e conversar com o cavalo. Numerosos
desenhos revelam as relações ambivalentes entre o homem e o animal.
Depois de avanços e recuos, Octávio põe asas no cavalo. O processo psí-
quico desenvolve seu dinamismo por intermédio da criação de imagens
simbólicas. "O símbolo é o mecanismo psicológico que transforma ener-
gia".2 Assim, a objetivação de imagens simbólicas no desenho e na pintura
poderá promover transposições de energia de um nível para outro nível
psíquico. O cavalo de Octávio passa à condição de bípede. Adquire asas,
simbolizando aspirações de superar forças da natureza. E empunha uma
lâmpada, símbolo da consciência que busca lançar luz sobre os movimen-
tos em curso na obscuridade do inconsciente. "Não é fácil colocar asas
no bicho", diz Octávio. Numerosos desenhos seus dão testemunho desse
labor.

As irrupções do inconsciente às vezes são de tal maneira violentas que o


ego fica estilhaçado e, nesses períodos, o trato com os conteúdos invasores
é muito difícil. A pintura em tais ocasiões ajuda, pois será possível proje-
tar as imagens internas, sempre intensamente vivas, pintando-as.

Em decorrência do avassalamento do consciente pelo inconsciente o indi-


víduo perde o contato com a realidade e desadapta-se no meio onde vive.
É internado nos tristes lugares que são as instituições psiquiátricas. O
ateliê de pintura será um oásis, se aí o doente tiver a liberdade de expri-
mir-se livremente.

Em meio à efervescência dos conteúdos do inconsciente, um motivo acaba


ressaltando, um tema vem impor-se.

Assim, na produção plástica de Adelina serão encontradas formas abstra-


tas, círculos reunindo agrupamentos de elementos dispostos com menor
ou maior regularidade, seres os mais bizarros. Entretanto, um tema dei-
xa-se apreender: Adelina metamorfoseia-se em vegetal, fugindo ao encon-
tro ao mesmo tempo desejado e temido com o homem, encontro proibido
pela mãe. Nessa exposição da Bienal podem ser vistas três dentre suas
numerosíssimas metamorfoses vegetais, evocadores do tema mítico de
Dafne. Representando repetidamente, e sob vários aspectos, a vivência de
sua metamorfose em flor, essa vivência foi perdendo a concreta realidade
que impunha a Adelina um estado de ser extremamente perturbador. Foi
um longo trabalho sua desvinculação do vegetal. Séries de pinturas permi-
tem que se torne visível esse processo desdobrado em complicados movi-
mentos de descida e subida.

Os internados em hospitais psiquiátricos que têm o recurso de usar a lin-


guagem plástica como meio de expressão, os artistas "brutos", os margi-

38
nais de vários gêneros e de várias artes, constituem uma enorme família.
Há decerto grandes distâncias e diferenças entre eles, mas certo paren-
tesco, algo muito afim os aproxima. Se procurarmos esse denominador
comum, encontraremos que estão sempre presentes nesses indivíduos con-
tatos peculiares, em graus mais ou menos intensos, com a psique, incons-
cientes, incomuns para as pessoas bem adaptadas às normas sociais. Os
pintores ingênuos formam outra família. São movidos pela tendência a
empatizar com os objetos do mundo externo, neles encontrando prazer e
inspiração, enquanto os membros daquela outra família voltam-se para
representações interiores, por mais inquietantes que sejam.

Os esquizofrênicos acham-se sob o domínio de representações interiores


tão intensas que "o sonho torna-se para eles mais real que a realidade
externa" 3. Na experiência dos marginais, as visões e os sonhos desem-
penham papel muito importante, entretanto não se apoderam deles com-
pletamente, deixando sempre uma faixa para a realidade externa.

Ferdinand Cheval, funcionário dos correios na França, em sonho, viu-se


construindo um palácio ideal. Somente quinze anos mais tarde iniciou
o trabalho de edificação de seu palácio de acordo com a imagem sonhada.
A imagem havia permanecido presente como vívida realidade e serviu-lhe
de modelo durante mais de trinta anos, o longo tempo que levou desen-
volvendo a complexa arquitetura desse monumento erguido nas proximi-
dades da aldeia francesa de Hauterives.

No Brasíl, a meio caminho entre São Pedro d'Aldeia e Cabo Frio, Gabriel
dos Santos, trabalhador braçal, construiu a Casa da Flor, a partir de um
sonho que teve na infância. Lançou as bases concretas de sua casa onírica
aos 20 anos de idade e através da vida inteira trabalhou para erguê-la e
decorá-la fantasmagoricamente, usando para isso os objetos mais diversos.
Agora, aos 86 anos, ele diz: "Eu faço isso por pensamentos e sonhos.
Eu sonho pra fazer e faço" 4.

Scottie Wilson, nascido em Glasgow, transpõe para seus desenhos visões


do mundo fantástico de sua imaginação, visões reais para ele, como tam-
bém o são as imagens de seus sonhos. O mundo externo não o atrai, nem
para sugerir-lhe modelos inspiradores de seus desenhos, nem para sedu-
zi-lo a mudar sua modesta maneira de viver em decorrência de lucros
obtidos pela venda das obras de sua atividade criadora.

Percorrendo o livro Outsider Art de R. CardinaIs, encontramos muitos


outros homens e mulheres que se sentiram impelidos imperiosamente a
dar forma às imagens de sonhos sonhados, quer no sono que na vigília.
Geraldo Teles de Oliveira (GTO, como é conhecido) diz: "Eu fui peguei
a sonhar ( ... ) e eu tava durmindo e fazendo essa arte em matéria no
sonho com a maior facilidade". Seu primeiro trabalho "ninguém conheceu
e foi só pelo sonho. É uma igreja que nem sei explicar que santo é, é tudo
desconhecido". Seus trabalhos são esculpidos sobre madeiras muito resis-
tentes. Os principais têm forma circular, são as "rodas vivas", onde se
movem figuras de significações opostas: "Eu tenho que pôr de tudo aí
dentro na minha arte, bom e mau, mau e bom, porque tem de tudo" 6.

39
o sonho leva esse caboclo mineiro, analfabeto, a espaços internos profun-
dos, talvez até a divindades arcaicas ("santo desconhecido") e ao próprio
centro ordenador da psique (seI!), o qual, sendo uma totalidade, inclui
necessariamente aspectos luminosos e escuros 7.

Uma maravilhosa marginal é Eli Heil, de Santa Catarina. Eli diz: "Vomito
criações". Vivenda a imaginação efervescente como algo que pertence a
outrem, a um "monstrinho doce" habitante de seu cérebro: "A imagina-
ção dele é tão grande que faz sofrer, gritar, criar, tanto que cheguei à
conclusão que vomito criações".

Na sua tese, A.M. de Araújo 8 refere-se à intensa vibração das pinturas de


Eli, a seres estranhos que povoam sua obra e passam por múltiplas meta-
morfoses, ao predomínio de rodopiantes configurações concêntricas, ao
fascínio que emana de suas criações, reconhecendo em tais imagens as
marcas de origem das produções surgidas dos estratos mais profundos do
inconsciente.

Mas o notável é que esses conteúdos, emergidos das profundezas da psique


com ímpeto tão violento, não arrebentem Eli, ego consciente. Eli continua
a cuidar da casa, dos filhos, a comunicar-se com o mundo externo. Não
submerge no grande oceano da psique coletiva. Talvez isso aconteça por-
que pintando incessantemente ela consiga captar imagens possuidoras de
fortes cargas energéticas, retirando-as do grande turbilhão. E porque repe-
tidamente configura em imagens circulares as forças instintivas de defesa
da psique que se opõem ao caos (mandalas). Aliás, Eli sabe que a atividade
artística é para ela "o remédio essencial".

Cada um desses indivíduos - esquizofrênicos e marginais de vários gê-


neros - possui suas peculiaridades, mas todos têm contato íntimo com
as forças nativas, brutas, virgens, do inconsciente. Que hajam alcançado,
fora dos cânones estabelecidos, dar forma artística a visões, sonhos, vi-
vências nascidas dessas forças primígenas, eis um dos mistérios maiores
da psique humana.

Nise da Silveira
I Cl. Wiart - FoI art? Folle therapie?
Psychologie Medicale 1980, 12, 1.
2 C. G. Jung - C.W. 8, 45.
3 C. G. Jung - C.W. 4, 120.
4 A Casa da Flor, Secretaria de Educação e Cultura, Estado do Rio de Janeiro, 1978.
5 R. Cardinal - Outsider Art.
Praeger Publishers, New York, 1972.
6 Lélia Coelho Frota - Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros, FUNARTE, 1978.
7 C. G. Jung - C.W. 9ii, 64.
8 Adalice M. Araújo - Mito e Magia na Arte Catarinense
Universidade Federal do Paraná, 1978.

4Q
A ESCOLA LIVRE DE ARTES PLÁSTICAS DO ]UQUERI

Estudante interno do Hospital do Juqueri (Franco da Rocha), em 1923,


dois anos depois, já formado, Osório César distingue-se pela publicação
de A Arte Primitiva nos Alienados, lançando as bases de uma filosofia de
trabalho com os doentes mentais, voltada simultaneamente para a cura, o
conhecimento do mundo interior do paciente, a habilitação para uma pro-
fissão ligada à expressão artística.

Dessa crença nas qualidades terapêuticas da manifestação criadora, nasce


a Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri, cujo único critério norteador
é a espontaneidade, quer sob forma de grafitos, quer quando adquire
aspectos mais consoantes com a expressão artística tradicional: pintura,
desenho, modelagem, artesanato.

Terapia e estética imbricam-se de maneira complexa nos estudos de Osório


César, que percorre o hospital em busca de pacientes "dotados" para
submetê-los a um teste, por ele descrito em 1957:
"Há um teste para verificar a vocação artística do doente. Às vezes, ela é
inata, e não se desenvolveu na vida normal por falta de condições mate-
riais. Por intermédio do teste vamos encontrar, em alguns doentes, gran-
des artistas" 1.,

Apesar de, na mesma entrevista, Osório César denotar uma franca preo-
cupação com a preparação do paciente para a vida egressa, os últimos
termos da descrição do teste de aptidão são bem claros - o pioneiro da
pesquisa da expressão psicopatológica no Brasil acredita na existência
de um manancial criador, freqüentemente castrado ou embotado pela so-
ciedade, e que vem à tona no surto esquizofrênico, quando o artista está
liberto das amarras com o mundo exterior, reduzido agora à realidade
circunscrita do pavilhão.

O surgimento de um universo autístico é o que interessa de perto aos


estudos e à prática da Escola Livre de Artes Plásticas, pois, longe de
relegar ao esquecimento a produção espontânea do paciente, Osório César
fascina-se com seu mecanismo de destruição/recriação do mundo, perce-
bendo nessas realizações valiosos contributos para penetrar em sua psique,
para apreender visões originais da vida: "( ... ) Na realização de seus tra-
balhos, os doentes mentais decompõem a realidade em combinações arbi-
trárias, alterando, assim, as normas de nossas representações visuais. Cons-
tróem um mundo novo de representações e de imagens, adaptando-o a
seu modo" 2.

Por alterarem as normas das representações visuais corriqueiras, os traba-


lhos dos internos do Juqueri são freqüentemente comparados às realiza-
ções da arte contemporânea, em especial ao surrealismo, com o necessário
distinguo: enquanto no alienado a simbologia brota espontaneamente, no
artista de vanguarda ela é fruto de uma busca intencional rumo ao primi-
tivo e ao infantil, no afã de negar a racionalidade ocidental, uma tradição
técnica e figurativa secular que parece tolher qualquer tentativa de cons-
ti tuição de novas linguagens.

Sem elos com a história, com o métier, sem nenhuma obrigação de respei-
to ou rebeldia ao patrimônio cultural existente, o doente mental passeia

41
livremente ao longo da trajetória da arte, dando vida a quatro tipos bási-
cos de expressão:
1- desenhos rudimentares, de caráter simbólico e estereotipado;
2 _.- arte simbólica e decorativa;
3- manifestações primitivistas, de rica simbologia freudiana;
4- representações acadêmicas.

Os trabalhos do primeiro grupo apresentam pontos de contato com as


expressões de certos povos primitivos, com a arte marajoara, com o de-
senho automático do indivíduo normal, com a garatuja infantil. Os dese-
nhos do segundo grupo, de caráter geométrico, definido, evocam o pri-
meiro gótico, a antiga pintura japonesa, a arte negra centro-africana, a
cerâmica da Ilha de Marajó. No terceiro grupo, aparecem técnicas mais
sofisticadas, tais como o desenho sombreado, a pintura a óleo, a aquarela,
a escultura, expressivamente próximas do primitivismo africano e da arte
popular. O quarto grupo, o menos interessante sob o ponto de vista
clínico e estético, lembra a arte acadêmica por seu caráter predominante-
mente realista 3.

São ns obras do primeiro grupo que se aproximam das expenencias de


vanguarda por terem em comum a expressão do primitivo, do infantil.
Esses dois caracteres levam Osório César a exaltar o novo na manifestação
artística do alienado, seguindo os estudos de Porciúncula Morais, para
quem a verdadeira arte atual é a das crianças e, por extensão, dos primi-
tivos e dos doentes mentais, pois, por desprezar a terceira dimensão, é
"francamente futurista" 4.

Pautando-se pelas idéias de Freud, com quem chega a corresponder-se na


década de 20, Osório César analisa a produção plástica dos internos do
Juqueri nos termos de uma simbologia eminentemente sexual e, embora
aponte em seus escritos a presença de imagens e configurações recorrentes
nas mais variadas culturas, não se aproxima da formulação junguiana do
inconsciente coletivo, acreditando que as semelhanças entre a cerâmica
marajoara e determinadas expressões européias e asiáticas se deviam à
emigração para a América de uma raça desconhecida, oriunda do conti-
nente euro-asiático, misteriosamente desaparecida.

Quando, em 1950, participa do I Congresso Internacional de Psiquiatria,


em Paris, levando obras para a Exposição de Arte Psicopatológica, Osório
César destaca a presença de pelo menos dois verdadeiros artistas, isto é,
de pacientes que haviam chegado à configuração de um estilo - Sebas-
tião, cuja expressão lembra, às vezes, Rouault, e Albino, presente, no ano
anterior, na exposição A Arte Bruta Preferida às Artes Culturais, sob pseu-
dônimo de "o desconhecido de São Paulo" 5.

Defensor incansável da artisticidade da produção plástica da Escola Livre


do J uqueri, Osório César organiza inúmeras exposições (cerca de 5 O) ,
entre as quais podemos destacar o Salão de Arte dos Alienados (1942),
paralelo à Segunda Semana de Arte Moderna, a I Exposição de Arte do
Hospital do Juqueri, apresentada no Museu de Arte em 1948, várias mos-
tras no Clube dos Artistas e Amigos da Arte, na Galeria Prestes Maia,

42
todas com o objetivo de levar ao público uma expressão considerada mar-
ginal, de desmentir idéias preconcebidas e de afirmar a dignidade humana
do paciente.

Apesar de todo o interesse em divulgar essa produção através de exposi-


ções, livros, artigos e conferências, Osório César não pôde mantê-la reuni-
da, de modo a formar um corpus coeso (em 1942 vislumbra um Museu
de Arte para São Paulo com uma seção de arte dos alienados), e hoje ela
se encontra esparsa em várias coleções particulares, o que dificulta o estu-
do dos alcances da Escola Livre de Arte Plásticas do Juqueri, uma "escola"
que jamais existiu como tal por não haver quem ensinasse e quem
aprendesse.

Caberia, mais tarde, a Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico D. Pedro


rI, no Rio de Janeiro, empreender um longo e paciente trabalho de coleta
e classificação do material produzido na seção de Terapêutica Ocupacional
(a partir de 194,6), que resultou na fundação do Museu de Imagens do
Inconsciente (1952), o único acervo orgânico existente no Brasil dessas
manifestações tão peculiares em sua criatividade.

Annateresa Fabris
1 "A arteterapia transforma loucos em exímios artistas plásticos", Correio Paulistano,
São Paulo, 11 set. 1957.
2 Osório César, "A arte dos loucos", A Gazeta, São Paulo, 5 set. 1951.
3 Osório César, "A expressão artística no alienado", Separata do Boletim de Psicolo-
gia, São Paulo (21/24), 125-37.
4 Ibid., 13l.
S Robert Volmat, L'art Psycopathologique (Paris, 1956), p. 12-3.

43
A INSPIRAÇÃO ARTÍSTICA ENTRE OS NORMAIS
E OS ALIENADOS

No homem normal, certas intoxicações exógenas, como por exemplo as


que se originam das bebidas alcoólicas, produzem um estado particular de
excitação mental, em virtude da ação estimulante sobre a circulação cere-
bral que elas ocasionam. E não são só as intoxicações exógenas que pro-
duzem esse estado fisiológico particular, mas também as endógenas, como
por exemplo determinados processos febris que excitam os centros ner-
vosos, acarretando, por vezes, o desencadeamento da atividade incons-
ciente.

A inspiração artística provém das mais profundas camadas do inconscien-


te. Já antes de Cristo, os filósofos e os próprios poetas gregos diziam
estar a inspiração poética sob a influência de um poder superior e divino.

Platão considera a obra de arte como um acontecimento realizado num


outro plano de realidade. É o que encontramos em certos trechos dos seus
diálogos. Mas o melhor exemplo que podemos ter nesse sentido é o da
descrição do poeta, que Sócrates dá em Íon: "Porque todos os bons poe-
tas, tanto épicos como líricos, compõem os seus belos poemas não por
arte, mas porque estão inspirados e possessos. E assim como os foliões
coribantites, que quando dançam não estão em seu juízo, assim também
os poetas líricos não estão em seu juízo quando compõem os seus belos
versos, mas quando, caindo sob o poder da música e do metro, estão ins-
pirados e possessos; tal como as Bacantes, que extraem leite e mel dos
rios quando estão sob influência de Dionísius, mas não quando estão de
juízo perfeito. E a alma do poeta lírico faz o mesmo, como eles próprios
dizem: porque eles nos dizem que extraem canções de fontes melífluas,
colhendo-as nos jardins e nos vales das Musas, como as abelhas, esvoa-
çando de flor para a flor. E é verdade. Porque o poeta é uma coisa leve
e alada e sagrada, e não há nele invenção enquanto não estiver inspirado
e fora dos seus sentidos, e enquanto o seu espírito esteja nele; enquanto
não atingir este estado, é impotente e incapaz de pronunciar os seus
oráculos". Consideravam a inspiração, pois, como uma atividade fora da
personalidade consciente do poeta. Desse critério participaram também
os artistas e os poetas depois de Cristo que nos deram as mais famosas
obras de literatura mundia1.

Shelley, por exemplo, dizia que a "poesia atuava de uma maneira divina
e desconhecida, mais além e por cima da consciência".

Assim, a inspiração poética, como aliás toda inspiração artística, tem sido
até agora atribuída a uma espécie de visão interior. Essa visão é como se
fosse um sonho acordado. Ela vem do recolhimento, da abstração do mun-
do exterior e se projeta no consciente como um mundo imaginário sem
que seja solicitado pelo artista.
Qualquer indivíduo pode passar, no seu recolhimento, por esse estado de
rêverie sem que possa tirar proveito para a criação artística. Mas o poeta,
o artista se prevalecem desse estado e dele arrancam a inspiração para
produzir, às vezes, obras eternas de arte.
O processo da criação artística pela inspiração tem pois analogia com os
sonhos e com certos atos psicológicos do subconsciente ligados ao êxtase
místico, às visões e às alucinações hipnagógicas.

44
Também nas moléstias mentais, como na psicose maníaco-depressiva (fase
de agitação maníaca), na paralisia geral (fase de excitação) e nas síndromes
esquizofrênicas paranóides, encontramos por vezes uma forma particular
e bastante curiosa de criação artística. Esse processo de criação artística
vem quase todo ele do inconscien te.

A expressão artística nesses doentes está cheia de símbolos que se espa-


lham em suas produções numa disposição associativa paralógica.

Para a análise dessas obras empregam-se os métodos psicanalíticos, os


únicos capazes de explicar o conteúdo significativo da rica simbologia que
eles encerram.

Como nos sonhos, também nas obras de arte encontram-se os dois elemen-
tos primordiais que servem de base para a orientação psicanalítica do seu
estudo: o conteúdo manifesto e o conteúdo latente.

o primeiro é o que aparece imediatamente na produção do artista, é a


paisagem, a descrição clara e compreensível da estrutura externa do seu
pensamento, o segundo plano de sua obra. O segundo é o nódulo, o tema
obscuro, subjetivo, camuflado, do enredo, que representa a significação
real da personalidade do autor. Ele se exprime pela abstração, pela sim-
bologia estilizada. É a parte da obra de arte que o público não compreen-
de porque é hermética, fechada aos profanos. Vem do inconsciente, é in-
fantil e por vezes traz toda a carga dos desejos não-realizados.

É freqüente observar-se em certos doentes mentais hospitalizados um


grande impulso para o desenho, para a escultura e a poesia. A explicação
desse fato é atribuída a dois fatores: um interno e outro externo. O inter-
no corresponde à própria psicose. O doente se afasta do mundo exterior e
cria um mundo seu, onde vive autisticamente. O externo está ligado ao
ambiente circunscrito do pavilhão e à falta de atividade manual do doen-
te. A exteriorização do conteúdo psíquico nas psicoses, principalmente
nas psicoses esquizofrênicas, se expressa por sinais e símbolos particula-
res, incompreensíveis ao observador, sem uma análise profunda desses
elementos.

Na realização de seus trabalhos artísticos, os doentes decompõem a reali-


dade em combinações arbitrárias, alterando assim as normas de nossas
representações visuais. Constróem um mundo novo de representações e
de imagens, adaptando-o a seu modo. O ritmo e a estilização são marcan-
tes nessas obras. A estilização de seus desenhos assemelha-se à das crian-
ças e à dos primitivos. O ritmo é estereotipado.

Por vezes encontramos obras de grande valor e motivo, sobretudo em


certos poemas de esquizofrênicos, como este que transcrevemos aqui:

Aqui onde a Miséria os lares triunfais,


Por sempre assentou e não sai nunca, nunca mais;
Lar que já foi, também, do amor e da Ventura
E agora o é da Dor, da Morte e da Loucura;

45
Tumba de vivos onde a vida ainda se encerra,
Por só mostrar não ser o homem apenas terra;

Catacumba inda aberta, ou cova ou mausoléu,


Para aqueles que só esperam pelo céu;

Aqui, alfim, onde a alma ouve do pobre louco


A voz de Deus e a Deus se volta a pouco e pouco;
Dia e noite se não distinguem para ninguém:
E o reinado da treva, ante-sala do além:
Pavoroso, dantesco albergue da ilusão,
Lar dos Órfãos do Amor, da Vida e da Razão!

Este poema foi escrito em 1932 num dos Pavilhões do Hospital do Ju-
queri por um doente esquizofrênico. E notável a emoção que ele apresen-
,ta. Percebemos logo o sentimento que lhe vai na alma, ao descrever o
manicômio. O seu pessimismo, a sua desilusão é tão grande que ele vê o
hospital como um "pavoroso, dantesco, albergue da Ilusão", ou então
como "um mausoléu para aqueles que só esperam pelo céu".

Osório César

Folha da Noite) São Paulo, 25 de janeiro de 1948

46
A ARTE DOS LOUCOS

As produções gráficas e plásticas nos alienados apresentam, ora concep-


ções originais, harmoniosas de desenho, de cor e de composição, verdadei-
ras obras de arte, ora concepções grosseiras, falhas, incoerentes, estereoti-
padas, revelando feitio pueril. Contudo, na maioria das vezes elas estão
cheias de representações extravagantes, simbólicas, criadas pela imagina-
ção do doente, as quais constituem elementos preciosos para o estudo de
seus delírios. Essas manifestações artísticas são ricas em símbolos que
representam toda a vida interior do alienado, suas reminiscências infantis,
projeções de suas alucinações e de seus desejos ocultos. Na análise dessas
manifestações, dessas obras ricas em símbolo, empregam-se muitas vezes
métodos psicanalíticos, que são aconselháveis para a decifração da simbo-
logia que encerram. Na realização de seus trabalhos, os doentes mentais
decompõem a realidade em combinações arbitrárias, alterando, assim, as
normas de nossas representações visuais. Constróem um mundo novo de
representações e de imagens, adaptando-o a seu modo.
-
A arte entre esses doentes é profundamente mágica, da mesma maneira
que a dos primitivos, em conseqüência de sucederem, na psicose, proces-
sos regressivos que reconduzem o alienado a períodos anteriores ao seu
desenvolvimento. Sendo, pois, a arte dos alienados obra de pesquisa,
deverá ser tratada e discutida por psiquiatras, a fim de não se incorrer em
precipitados conceitos que têm levado os neófitos, aos trambolhões, às
buraqueiras freqüentes da incompreensão e da intolerância. A obra de arte
no alienado é sincera e perfeitamente equilibrada dentro de seu mundo
artístico. A concepção primaríssima de que "os loucos não tem consciên-
cia" deriva de erro crasso, de atraso oriundo daquele falso conceito que
identifica o alienado com um pobre ente humano que não faz outra coisa
a não ser praticar atos desordenados, violentos, com indivíduos que pas-
sam a dizer somente coisas desconexas dentro do hospital em que vivem.
Já dizia Esquirol que falar de um louco é, para o vulgo, falar de um homem
que se entrega aos atos mais extragavantes, sem motivo, sem combina-
ções prévias, sem premeditação ... Esse conceito, pois, felizmente não é
verdadeiro. E quem já esteve em contato com esses doentes, quem com
eles já lidou ou conversou atentamente, ouvindo as suas curiosas queixas,
notou, certamente, que dentre eles há um grande número que possui racio-
cínio lógico, linguagem correta e imaginação muitas vezes exuberante. O
insano também não é um ser desafeiçoado e sem iniciativa pelas coisas da
arte. Da mesma maneira que no indivíduo normal, a imagem formada no
cérebro do alienado cria, em determinados casos, uma atitude estética
bem curiosa. O processo da criação artística pela inspiração tem analogia,
freqüentemente, com os sonhos e com certos atos psicológicos do subcons-
ciente, ligados ao êxtase místico, às visões e às alucinações hipnagógicas.
De muita valia para o estudo e a comparação de obras de arte entre os
alienados foram as exposições efetuadas em nossos Museus de Arte. Lá
foram apresentados interessantíssimos trabalhos realizados pelos insanos.
Exposições dessa ordem trazem uma grande contribuição para aqueles
que estão de há muito afeitos a essas pesquisas e também para aqueles
outros que desejam sincera e honestamente dedicar-se a tais estudos.
Osório César
A Gazeta} São Paulo, 5 de setembro de 1951

47
A ARTE É UM ANTIDESTIN0 1

"Estou inteiramente convencido de que qualquer pessoa, sem qualquer conhecimento ou


habilidade especiais, e sobretudo sem não sei quantas pretensas aptidões inatas, pode
dedicar-se à arte, com todas as chances de ser bem-sucedida".
Jean Dubuffet

Ao incluir obras de Arte Incomum na XVI Bienal de São Paulo, os


organizadores desta exposição enfrentam um desafio que o próprio Du-
buffet definiu corno urna contradição 2.
Corno colocar ao lado da arte cultural, resultante de um processo histórico
de formação, urna "não-arte" 3, representada por obras afastadas da tradi-
ção, do ensino codificado, que não permitem o jogo crítico da comparação?
Corre-se o risco então de desvirtuar a obra incomum, anexando-a ao
museu - no sentido mais amplo da palavra - , sendo este corno "um
império que vai submetendo províncias urna após outra" 4. O artista
incomum constitui o último território ainda não colonizado, antes de
tornar-se, talvez, apenas "um vestígio de urna faculdade de invenção
desapareCl'd a ,,5 .
Para evitar essa normalização do artista incomum, deve-se considerar
cada obra corno um universo fechado, sem referências a aprendizagens,
escolas ou modas. Na exploração abissal de seu "eu mais interior" 6, o
artista incomum cria na solidão, num grau insuportável de solidão, quase
no autismo.
A coerência de seu universo estético é aquela do própno indivíduo, em
sua irredutível e enigmática originalidade. Corno decifrar essas obras sem
recorrer a classificações dentro das categorias institucionais? Corno evitar
a identificação com algum dos" ismos" elaborados pela crítica de arte?
A solução adotada na apresentação das obras foi urna tentativa de colocar
cada artista em seu contexto peculiar, de reconstruir histórias únicas:
fichas biográficas, citações de diários, cartas, entrevistas, anotações de
devaneios, de delírios, são elementos que situam o impulso criador no
quadro de vidas quase sempre rotineiras, medíocres, áridas. A "vontade
de criar" 7 surge de repente, compulsiva, obsessiva, manifestando-se em
obras cujo magnetismo ultrapassa as fronteiras de nossa sensibilidade,
tolhida pelos condicionamentos culturais.
Pressentimos seu poder subversivo ao perceber uma ruptura na corrente
de filiações que constitui uma história da arte. Transcendendo culturas e
contraculturas, o artista incomum expressa a vitória do indivíduo sobre
as forças coletivas a que chamamos destino.

Josette Balsa
1 André MALRAUX, Les voix du silence, Ed. Gallímard, Paris, 1951, p. 637.
Carta de Jean Dubuffet à Fundação Bienal de São Paulo, 06/07/1981.
3 Michel RAGON, CNAC - Magazine, Paris, julho-agosto 1981, p. 14, Paris-Paris,
1937-1957, quando a pintura realista se volatiza.
4 André MALRAUX, L'Intemporel, Ed. Gallímard, Paris, 1976, p. 338.
5 Michel THÉVOZ, L'Art Brut, Ed. Skira, Geneve, 1975, p. 211.
6 O nome MYRNINEREST, que aparece nos desenhos de Madge Gill, talvez signifi-
que mine innerest self, segundo Roger Cardinal, Outsider Art, Londres, 1972.
7 Expressão criada por André Malraux, lembrando a "vontade de poder" de Nietzche,
L'Intemporel, p. 329.

48
WOLFLI, ALOISE, MÜLLER

As convenções nos levam a crer, cada vez mais, que por definição, artista
é aquele que recebeu educação artística acadêmica. Esse não é o caso de
Wülfli (1864-1930), Alolse (1886-1964) e Müller (1865-1930), que
foram diagnosticados como esquizofrênicos e passaram muitos anos in-
ternados em hospitais psiquiátricos suíços, onde começaram a desenhar.
A complexidade, a força de imaginação e a intensidade de sua arte são
extraordinárias. Wülfli, o de maior talento entre os três, é artista, escritor
e compositor de uma tal perfeição que, a princípio, o observador não tem
a menor consciência de que ele não teve instrução alguma e de que era
bem simples o ambiente em que vivia. Nenhum dos três tinha conheci-
mentos de história da arte ou de padrões estéticos aceitáveis, além de
desconhecerem a técnica artística.

Embora Wülfli e Müller não tivessem praticamente nenhuma instrução, am-


bos conseguiram superar suas graves privações sociais e de alguma forma
aprenderam a ler e escrever. Os desenhos dos três artistas são bastante or-
ganizados, e os de Wülfli denotam espantoso grau de informação. Não são
artistas ingênuos, nem amadores, e seus métodos de trabalho revelam uma
seriedade e uma dedicação geralmente atribuídas ao profissional. Atualmen-
te, seus quadros são muito procurados, mas é quase impossível obtê-los.

Aos poucos, arte-terapeutas, psiquiatras, médicos, artistas, especialistas em


história da arte e outras pessoas começam a voltar sua atenção para o valor
da arte dos que não tiveram instrução e se mantêm isolados da sociedade.
Lamentavelmente, muitas de suas obras foram destruídas ao longo dos
anos, mas felizmente algumas se salvaram. Grande parte dos melhores
trabalhos pertence hoje a coleções, sendo as mais conhecidas (na Europa)
a Guttman-Maclay (Londres), a Newham (Londres), a Morgenthaler
(atualmente no Bem Kunstmuseum), a Prinzborn (Heidelberg) e a Collec-
tion de l'Art Brut (Lausanne).

O Musée de l'Art Brut abriga uma coleção singular, formada de pinturas,


desenhos, esculturas e objetos feitos por pessoas que vivem à margem da
sociedade e, em alguns casos, fora dela: doentes mentais, prisioneiros e
pessoas solitárias - os que rejeitaram os condicionamentos sociais e cul-
turais ou não conseguiram adaptar-se a eles. A iniciativa da formação des-
sa coleção partiu do pintor Jean Dubuffet, que cunhou a expressão art
bruto Sua própria arte é famosa pelo emprego de materiais e figurações
rudimentares. Como fundador da coleção, ele tornou-se defensor dos que
fogem às influências culturais e sociais e cuja alienação resultante acaba
sendo fonte e não privação de inspiração criativa.

Em 1945, Dubuffet começou a procurar sistematicamente por toda a Suí-


ça obras de arte que se ajustassem à definição de art bruto Escolheu a
Suíça por causa do apoio e do entusiasmo que lá encontrou, especialmente
de Walter Morgenthaler, psiquiatra da Clínica de Waldau, onde Wülfli
recebia tratamento. Morgenthaler dera muito incentivo à arte de Wülfli,
e posteriormente contribuiu para evitar que seus quadros se perdessam
ou danificassem. Escreveu também uma importante monografia sobre
Wülfli, Ein Geisteskranker als Künstler (Um Doente Mental como Artis-
ta), publicada em 1921. O trabalho foi recebido com desaprovação por

49
seus colegas, por dar o nome e exibir fotografias do paciente. A pri-
meira exposição de art brut - uma mostra coletiva - foi organizada em
1947, em Paris.

o interesse despertado pela exposição permitiu que Dubuffet lançasse a


Compagnie de l'Art Brut, em 1948, com o auxílio de André Breton, Jean
Paulhan, Michel Tapié e outros. Em Place à l'Incivisme (Lugar ao inci-
vismo), introdução ao catálogo da exposição do Musée des Arts Decoratifs
de Paris, em 1967, Dubuffet explica que "o objetivo do empreendimento
é a busca de obras que escapam o mais possível aos condicionamentos cul-
turais e que partam de posturas de espírito verdadeiramente inéditas".
E, mais adiante: "( ... ) Não fomos buscá-los nas escolas, mas entre os
homens comuns ( ... ) a criação em seu estado mais puro, liberta de todos
os compromissos que alteram os mecanismos nas produções profissionais".

, Muitas obras da Collection de l' Art Brut foram produzidas por doentes
mentais, em muitos casos diagnosticados como esquizofrênicos. Wülfli,
Alolse e Müller receberam tratamento para esquizofrenia, e sua arte revela
algumas características encontradas na arte de outros artistas esquizofrê-
nicos. O psiquiatra Leo Navratil, autor de Schizophrenie und Kunst (A
Esquizofrenia e a Arte), relaciona quatro elementos comuns entre esqui-
zofrênicos criativos: tendência a impor formas humanas sobre objetos
inanimados; estilização; deformação, especialmente da figura humana; e
o freqüente uso de símbolos. A estilização 1 é motivada pela necessidade
de formular e consolidar uma taquigrafia visual, de condensar vários ele-
mentos em uma só imagem. Depois de estabelecido um estilo narrativo,
ele raramente se altera. Em alguns casos, essa característica coexiste com
numerosas formas ornamentais e decorativas que se repetem - uma com-
pulsão de preencher os espaços com sombras feitas de linhas entrecruza-
das, por exemplo. O uso da cor varia segundo os materiais disponíveis e o
estado mental do indivíduo. O Dr. Alfred Badee afirma que o paciente está
mais bem adaptado quanto mais violentas forem suas cores. Isso é confir-
mado pela comparação entre as primeiras e as últimas obras de Wülfli e
Alolse e, em parte, pelo trabalho de Müller, cujo tom é mais suavizado.
Mas a cor geralmente tem efeito decorativo, não objetivo formal.

O método de trabalho do esquizofrênico é bem específico. Ele não realiza


pesquisas e muitas vezes parece trabalhar contra a vontade. Em alguns
casos, afirma que obedece a "vozes" que lhe dizem o que fazer. Conta-se,
por exemplo, que Alolse conversava baixinho com suas "vozes" enquanto
trabalhava. Mas isso pode ter sido apenas uma maneira que ela teria in-
ventado para fugir ao ridículo. Ao artista esquizofrênico, não interessam
a massa e o volume. Suas figuras não têm sombras - o que se poderia
explicar como indício da ausência de contato do artista com o mundo exte-
rior. Seu simbolismo é muitas vezes ininteligível, mas a familiaridade com
sua obra permite a decifração dos temas e, em alguns casos, a observação
de tendências comuns a vários artistas. Contudo, tais pormenores não de-
vem ser interpretados como preocupações formais típicas de uma escola
com objetivos e influências comuns, pois uma visão desse tipo seria inexata
e enganosa. As tentativas de se definirem influências ou determinarem da-
tas são frustradas pela natureza altamente individualista dos quadros.

50
A exposição nos convence a encarar sem preconceitos o potencial artístico
do outsidel e a questionar a natureza da criatividade, a educação artística
convencional e os motivos das tendências profissionais e comerciais da
moda nas artes visuais. Os artistas outsiders (termo usado por Roger Car-
dinal para os alienados), por exemplo, raramente buscam o reconhecimen-
to público e sua obra quase nunca é realizada com o autor pensando em
eventuais compradores. Não há motivos evidentes para que Wolfli, Alolse
e Müller começassem a desenhar já quase na velhice, e continuassem a de-
senhar até a morte. Presume-se que não se teriam dedicado à arte se não
tivessem sido internados em hospitais psiquiátricos; mas não se consegue
explicar o despertar de sua criatividade. Não há dúvida de que o ato de
desenhar desempenhava um papel terapêutico, podendo-se deduzir que
para essas três pessoas a arte representou uma forma de autoterapia, exi-
gida pela natureza de suas respectivas doenças mentais e possibilitada pelo
desaparecimento das exigências e coerções impostas pela vida normal. O
ambiente ge um hospital psiquiátrico pode ser triste e desagradável, mas
permitiu que eles dedicassem todo o tempo que quisessem à sua arte.

Wolfli, Alolse e Müller usaram de forma extraordinária seus recursos in-


ternos e as circunstâncias externas, criando um mundo alternativo ao que
lhes impusera dor e sofrimento e ao qual não conseguiam adaptar-se. Com
relação aos materiais, tinham de se arranjar com o que estivesse disponí-
vel, usando papel grosseiro, muitas vezes amassado ou rasgado, e os lápis
ou crayons que pudessem ganhar de médicos, enfermeiros ou parentes.
Dentro da limitação desses materiais, formaram uma cosmogonia comple-
xa e convincente. O universo que descobriram para si mesmos estava lon-
ge do ideal (Wolfli vestido de Santo Adolfo Ir sofreu muitos contratem-
pos), mas era um universo em que tinham uma identidade e era uma
forma de pertencerem a algum lugar.

Bridget Brown
1 O tratamento estilizado dos olhos é comum aos três artistas: Wülfli dá a suas
figuras olhos que muitas vezes parecem máscaras; os personagens de Alolse têm
olhos ovais de cor invariável, geralmente azul, sem pupilas ou íris. Os olhos dos
personagens de Müller às vezes são desenhados a um só tempo de perfil e de
frente. .
2 Dr. Alfred Bader (psiquiatra), in Insania Pingens - Petits Maztres de la Folie,
1961.
3 Roger Cardinal, Outsider Art, Londres, 1972.

(De Another W orld: W olfli, Alo'ise, Müller, Glasgow, 1978)

(Tradução de Aldo Bocchini Neto)

51
Artistas Incomuns
apresentados na
Exposição de Arte Incomum
da -
XVI BIENAL DE SAO PAULO

52
Adelina

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1916. 4. SEM TÍTULO, 1953


Vive no Rio de Janeiro. Óleo sobre tela, 46 x 38 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

Obras apresentadas:
5. SEM TÍTULO, 1960
1. SEM TÍTULO, 1951 Óleo sobre papel, 45,5 x 31,8 cm
Lápis de cera sobre cartolina, 37,5 x 56 cm Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
6. SEM TÍTULO, 1973
2. SEM TÍTULO, 1953 Óleo sobre papel, 35,5 x 24 cm
Óleo sobre tela, 46 x 38 cm Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

3. SEM TÍTULO, 1953 7. SEM TÍTULO, 1973


Óleo sobre tela, 47 x 39 cm Óleo sobre cartolina, 36,6 x 28 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

53
Albino

Nasceu na Itália, em 1896. Era camponês. 6. SEM TíTULO, s.d.


Faleceu em 1950. Lápis e lápis de cor sobre papel, 21,8 x 15,4 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo

Obras apresentadas: 7. SEM TíTULO, s.d.


Lápis e lápis de cor sobre papel, 14,8 x 21,2 em
1. SEM TíTULO, s.d. Coleção Paulo Fraletti, São Paulo
Lápis e lápis de cor sobre papel, 21,6 x 16 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo 8. SEM TíTULO, s.d.
Lápis e lápis de cor sobre papel, 14,8 x 20,1 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo
2. SEM TÍTULO, s.d.
Lápis e lápis de cor sobre papel, 21,6 x 16 em 9. SEM TíTULO, s.d.
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo Lápis e lápis de cor sobre papel, 19 x 14,9 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo
3. SEM TíTULO, s.d.
Lápis e lápis de cor sobre papel, 20,5 x 16,1 em 10. SEM TíTULO, s.d.
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo Lápis sobre papel, 18 x 14 em
Coleção Mafalda Caminada, São Paulo
4. SEM TíTULO, s.d.
11. SEM TÍTULO, s.d.
Lápis e lápis de cor sobre papel, 20,1 x 14,7 em
Lápis sobre papel, 13,6 x 18,1 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo Coleção Mafalda Caminada, São Paulo

5. SEM TíTULO, s.d. 12. SEM TÍTULO, s.d.


Lápis e lápis de cor sobre papel, 19 x 14,8 em Lápis sobre papel, 17,8 x 13,8 em
Coleção Paulo Fraletti, São Paulo Coleção Mafalda Caminada, São Paulo

1. SEM TíTULO, s.d.


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Ceeato

54
Alo'ise

Alolse nasceu em Lausanne, Suíça, em 1886. Era uma criança 2. IFIGÊNIA EM ÁULIS (N.o 146)
inteligente, apaixonadamente envolvida nos estudos secundários, O EFEITO DO QUADRO
em especial nas aulas de música. Não se casou, e trabalhou como 46 x 23,5 cm
professora primária em vários internatos, mudando-se para a Coleção Mme Spoerri
Alemanha em 1911, onde trabalhou como governanta. Seu último
emprego foi no Palácio de Potsdam, cuidando das filhas do 3. O PAPA CHURCHILL CONSTRUTOR (N.o 164)
capelão do Imperador Guilherme lI. Esse contato com o clero e 20,5 x 27,5 cm
a realeza fica evidente nos desenhos que realizou em seus últi- Coleção Mme Spoerri
mos anos.
4. FESTA DE EMPERLAR EM LONDRES (N.o 184)
FACE DUPLA
Obras apresentadas: 42 x 59,5 cm
Coleção Mme Spoerri
1. FESTA DAS COLHEITAS (N.o 149)
MANY KISSIS UNDER THE MISSELSTONE
20,5 x 56 cm
Coleção Mme Spoerri

Em 1913, a iminência da guerra forçou a volta de Alolse casal, um personagem ou uma parte do personagem, fosse
à Suíça, onde seu comportamento começou a apresentar dis- homem ou mulher, um objeto ou parte do objeto . Era uma
túrbios e atos ocasionais de violência. Descuidou da aparên- qualquer das heroínas - Cleópatra, Maria Stuart, Maria
cia, dizendo atender a um chamado religioso, pôs-se a es- Antonieta num balanço de jardim - , ou todas ao mesmo
crever ardentes cartas de amor ao imperador alemão, que tempo.
vira certa vez num desfile em Potsdam, e a falar de um con-
trato de casamento com um pároco que conhecera. Defendia Essa nova fluidez de seu ser, essa liberdade característica de
o pacifismo de forma tão desordenada que, em 1918, foi quem nada mais tem a perder parll; o mundo real, concedeu-
internada no Asilo de Céry, em Lausanne. Da agitação, ela lhe um papel central e onisciente no mundo imaterial de sua
saltou diretamente para a apatia, dizendo ser uma pessoa fantasia. Foi pelo desenho que ela conseguiu a realização
sem integridade, rejeitada por todos à sua volta. A medicina dessa cosmogonia pessoal. A partir de 1919, começou a exe-
concluiu que se tratava de um caso de esquizofrenia, e Alol- cutar desenhos minúsculos a tinta ou lápis, como ilustrações
se foi transferida para o Asilo de La Rosiere. de um texto escrito em letras miúdas: "Apanho papel nas
latas de lixo e faço meus rabiscos no banheiro". Aos poucos,
Ela começara a desenhar e a escrever logo após a internação o formato aumentou. Em geral, usava papéis que achava por
no hospital, mas foi só a partir de 1941 (com 55 anos de acaso, papel de embrulho amassado, às vezes rasgado e cui-
idade) que passou a dedicar-se com afinco aos desenhos. Até dadosamente costurado como colcha de retalhos.
sua morte em 1964, no hospital, Alolse dedicou-se, com
perseverança e muita energia, ao desenho e à tarefa de pas- Seu maior desenho, hoje numa coleção particular, que ela
sar roupas hospitalares, trabalho que lhe havia sido confiado. chamou (.{ cloisonné de théa tre" (tela de teatro), é arrumado
e costurado de forma meticulosa, e tem 14 metros . São cenas
o desenvolvimento da vida de Alolse como esquizofrênica e e quadros que representam as viagens de sua vida amorosa
sua descoberta de direções novas e enriquecedoras têm início delirante, culminando, depois de muito sofrimento, no amor
a partir de sua internação no hospital e morte para o mundo espiritual de Eros e Psique.
da normalidade.
A cena muitas vezes é de uma teatralidade estática, mas car-
Inicialmente, viveu expenencias que se manifestam nos es- regada de ilações representadas por pequenas figuras hiero-
critos do período. Decorridos dois anos, esses textos forma- glíficas semi-ocultas num medalhão, numa jóia ou num tecido
. vam uma cosmogonia pessoal coerente e bem elaborada. da vestimenta de um dos pro·tagonistas . Os sentimentos e os
Trancada num hospital psiquiátrico, isolada pela doença, ela impulsos são despertados por figuras insubstanciais de ta-
nitidamente sofreu uma espécie de morte psicológica, en- manho intermediário, por exemplo, querubins, cavalos etc.
trando em delírios e desespero: "Je déplore ma situation Deve-se ter em mente que Alolse adorava teatro e ópera, e
d'épave de la conflagration universelle, je ne peux décrire que na juventude desejava ser cantora. No hospital, muitas
ma misére matérielle et morale" (Deploro meu desamparo vezes era ouvida cantando ao estilo de ópera. Todas as suas
no incêndio geral deste mundo. Não posso descrever meu pinturas podem ser consideradas como imenso teatro infinito ,
sofrimento moral e material). Mas superou seu desalentO e, como a dramatização da identidade que ela escolheu e de-
após alguns meses no hospital, apareceram em seus escritos senvolveu.
os princípios de uma nova vida de dimensões cósmicas.
A partir do conceito católico da Santíssima Trindade (a uni-
dade na pluralidade) estabeleceu a inventiva idéia de uma Jacqueline Porret-Forel
trindade alternativa consubstanciaI. Sua personalidade, am-
pliada pela esquizofrenia, pôde assim adquirir uma nova uni- (De Another World: Wolfli) Alotse) Müller) Glasgow, 1978.)
dade e uma certa morte. Podia prescindir da antiga Alolse,
não a aceitando mais. Era simultânea ou alternativamente a
Criação inteira, tudo o que pintasse ou dramatizasse - um (Tradução de Aldo Bocchini Neto)

55
SPHINX, MARIE STUART

SCHWARZ

56
Nasceu em Santa Cristina da Pose (Portugal), em 1925. Obras apresentadas:
Filho de ceramista, desde criança teve contato com a "arte do
barro". Foi ferreiro, garçom, cozinheiro, cisterneiro, de 1. O PRESÉPIO NA 1974
"meia-colher" e "guarda-noite" até conseguir dedicar-se exclusi- Óleo sobre duratex, 70 x 91 em
vamente à cerâmica e, mais recentemente, à pintura.
Vive em Goiânia. 2. SÃO FRANCISCO DE 1975
Óleo sobre aglomerado, 91 x 91 em

3. O TATU E O 1976
L1tOQ1~atla, 40 x 55,5 em

1978

5. ADÃO E EVA NO 1979


Óleo sobre 186 x 278 em

1981
x 106 x 73,8 em

x em

As idéias vêm à noite e, às vezes, na hora em que estou fa- A visão do é que eu não aCl~edlto
zendo a peça. Às vezes, começo a fazer uma peça e acabo em história. Eu sempre a história. Você
fazendo outra. A idéia do quadro Adão e Eva no Brasil ficou um livro e, no fim, não dá uma explicação exata:
muitos anos em mim. Agora tenho um quadro na cabeça meio do caminho. A história Cristo começa aos 33 anos
6 anos, mas não tenho tempo para fazer: Deus fazendo a e os outros anos o que ele foi? Então a história nunca é exa-
pomba, o homem branco; o capeta fazendo o urubu, o ho- ta que nem esta palhaçada que a mulher foi feita da costela
mem preto e no fim o homem destrói tudo. Tenho outro do homem. Não tem cabimento. Eles falam
quadro: Hitler nascido em Uberlândia Minas Gerais. Uber-
J
que veio Moisés. Mas que época que veio
lândia é uma cidadinha que tudo que é melhor no mundo que veio Moisés? É uma confusão que eles
existe lá. É um povo orgulhoso, muito cheio de si e racista. conta algum detalhe, mas o íntimo, a coisa profunda U-U.1;o;'-''-"11
Morei lá 6 anos. É uma terra que tem clube dos brancos e sabe. Nem a própria Bíblia está na profundeza da coisa.
dos negros, praça dos brancos e dos negros. Quero pôr Hi-
tler como filho de uma lavadeira mulata. Quero frustrar teve tanta de:sco1bert que acho que essas
todo mundo: porque diz que Hitler nasceu na Áustria, mas
no meu quadro vai nascer em A crítica está no
Hitler e analisando Uberlândia porque não existe o racismo:
nós somos tudo do mesmo sangue.
Quando ponho o diabo criando o homem negro,
racismo: quero dizer que o diabo teve o mesmo
Deus. Tudo o que Deus fez, o diabo fez, o
mas ao contrário. É um problema Eu, por \-A'_1.LlIU1V fica
gosto mais de fazer a bunda do que a frente porque a
tem mais volume.

Fiquei conhecendo dois pintores em Siron e Cleber. Co- povo puro, sem malí-
mecei a freqüentar o ateliê deles: nessa sem contato com esse nosso. Eu sou ...,1-,'-",,+-"'"
como pintava quadros. uma escultura mas j á morei em São tenho uma vivência
u'-.L.1.allU.l.<t,

olhou para a escultura, não sei o que ele viu e muito


teiro, você é pintor. Ficou muitos mim pureza não sou
pintar e eu falando não, eu nunca pintei, como muito muito ca1:01tco gente
pintar. De tanto teimar, me deu pincéis, que comecei traz um pouquinho gente, mas não é que a gente é.
a pintar. Explicação: tudo para mim por acauso. Pensava O íntimo da pessoa ninguém '-'-'l.HH_'-'- Van
que ia fazer meus potinhos o resto vida. O Siron era
me ajudou uns 2-3 anos: me tela e meus falta um parafuso. Sou um
negócios que o povo não em minha fui para a clínica, tenho os
carregar, senão já tava ...
Você quando quer jogar um troço para fora, te dá aquela nhas namoradas, elas rasgavam e jogavam na minha cara por-
agonia, aquela ânsia, você não dorme à noite enquanto não que, decerto, não prestava. Como aviador, foi só de passa-
faz o negócio. Eu tava querendo fazer isso (refere-se ao díp- geiro. A primeira viagem de avião foi só de passageiro. A
ti co da própria vida) e não tinha tela, não tinha tela, não primeira viagem de avião foi 5 anos atrás. . . Não queria ser
tinha nada. Eu fiquei tão desesperado que cheguei perto do poteiro. Então, a vida da gente é uma merda. É aquele pe-
Siron um dia porque não tinha dinheiro para comprar as nico que está lá em cima, que cai em cima da minha família.
telas. Depois que pintei, acalmei. O começo: meu pai era Nada que a gente pensa acontece. Cada pinguinho que tem
um homem bem burguês, meio sistemático, gostava de tudo ali no quadro é um rolo que tenho na vida. Não queria ser
certinho, de muito respeito e eu não gostava desse esquema.
Queria farra, queria cachaça, queria liberdade. Com 16 anos poteiro e fiquei com o nome de Poteiro. Quer dizer: para
saí de casa e não voltei mais. Voltei agora quando ele mor- mim, tudo foi o contrário. Queria ser Antônio Poeta, An-
reu, há 3 anos. O outro quadro: tenho minha casa, tudo tônio Cantor, Antônio Aviador, acabei sendo Antônio Po-
arrumadinho e eu com as minhas noivas. Neste quadro fina- teiro. Mas se eu fosse, por exemplo, Antônio Cozinheiro ou
lizava a vida, a outra parte da minha vida porque eu sempre Antônio Cisterneiro, seria pior ...
pensava na adolescência ser cantor, aviador ou poeta. Como
cantor, não passei de ser cantor de serenata e boteco. Como (Trechos da entrevista concedida por Antônio Poteiro a
poeta, fiz muita poesia, mas algumas que dava para as mi- Annateresa Fabris, a 29 de julho de 1981, em Goiânia.)

3. O TATU E O POTE, 1976


Foto: Walter Soares

5. ADÃO E EVA NO BRASIL, 1979 (pormenor)


Foto: Walter Soares

,8
6. A TRANSFORMAÇÃO DO HOMEM, 1980
Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

7. ARCA DE NOÉ, 1981 9. O CARNAVAL, 1981


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

59
Não foram encontrados dados.

Obras

x46cm
lV.UUét.lua Lamlna,da, São Paulo

Roberto Cecato
Aurora

Nasceu em 1902.

Obras apresentadas:

1. MAGIA
cm

4. SEM TÍTULO, s.d.


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

61
I gnacio Carles-T olrá

Eu nasci em Barcelona (Espanha), a 15 de dezembro de 1928.


Ao findar a Guerra Civil Espanhola, freqüentei a escola comer-
13. ° BICHO MAU, 1976
cial e o colegial. Aos 28 anos, por não suportar mais a falta de 14. SEM TíTULO, 1976
liberdade, deixei a Espanha. Em 1958, fui para Zurique e depois,
em 1959, para a Alemanha. Foi nessa época que comecei a 15. FIGURA, BICHO, PÁSSARO E MONTANHA, 1976
pintar, sem nunca ter tido aula, seguindo os conselhos que Jean
Dubuffet sempre deu, ou seja, procurando inventar, porque, 16. DOIS BICHOS, DE CABEÇA GRANDE ETC., ETC., 1976
afinal, a criação tem de ser, antes de mais nada, invenção. Desde
1960, trabalho e vivo em Genebra. Para ganhar o pão, trabalho
na tipografia de uma organização internacional. Meu trabalho
17. AMEAÇA PARA ° NÚMERO 1, 1977
não me atrai de modQ" algum e, para distrair-me, jogo (mal) tênis 18. OS DOIS BICHINHOS, 1978
e, de vez em quando, desenho ou, em menor medida, faço pe-
quenas esculturas que considero mais "objetos variados" que 19. À ESQUERDA, À DIREITA, 1978
qualquer outra coisa. Gosto de misturar as técnicas e de traba-
lhar em série; quando termino uma série, não gosto de voltar 20. SEM TíTULO, 1979
atrás e fazer as mesmas coisas. Expus minhas teorias numa obra
intitulada V oilà) da qual só tirei 125 cópias. Como muitos pinto- 21. SEM TíTULO, 1980
res, participo de exposições, mesmo se não gosto de fazê-lo. Para
pintar, tenho de estar triste ou sentir raiva, mesmo que isso, às 22. ROSE MARIE NO PARAíSO, 1980
vezes, não seja uma condição sine qua nono
23. ROSE MARIE NO PARAíSO, 1981
(Tradução de Mariarosaria Fabris)
24. ROSE MARIE NO PARAíSO, 1981

Obras apresentadas: 25. ROSE MARIE NO PARAíSO, 1981

1. BICHINHO, 1964

2. BICHINHO, 1964 Pequenas esculturas:

3. BICHINHO, 1967
1. HOMENAGEM A "NOBODY" , 1975
4. BICHINHO, 1967
2. EM DIREÇÃO DE TORTILLA FLAT) 1976
5. BICHINHO, 1967
3. MINHA LOIRA ERA UMA MORENA, 1976
6. PÁSSARO DE BICO GRANDE, 1970
4. ASSIM É, 1981
7.MY ENGLISH TEACHER, 1974
5. ELA TINHA RAZÃO, 1981
8. MY ENGLISH TEACHER, 1974
6. POIS SIM!, 1981
9. MY ENGLISH TEACHER, 1974
7. CHEGA DE SOFRIMENTO INúTIL, 1981
10. MY ENGLISH TEACHER, 1974
8. A TERRíVEL DOENÇA, 1981
11. MY ENGLISH TEACHER, 1974
9. DE TODAS AS CORES, 1981
12. DRÁCULA ACARICIANDO UM BICHO, Série "AS
CALÇADAS", 1975 10. NADA ENGRAÇADO, 1981

62
63
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1910. 6. SEM 1974
Faleceu no Rio de Janeiro, em 1977. óleo sobre 67 x 77 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

Obras apresentadas: 7. SEM s.d.


óleo sobre papel, 75,5 x 56,2 cm
1. O PLANETÁRIO DE 1947 Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
Óleo sobre 37 x 55 cm
do Museu do Inconsciente
s.d.
2. SEM 1949 76 x 56 cm
Óleo sobre papel, 48 x de Imagens do Inconsciente
Coleção do Museu de .L i H "F,'_i "'> do Inconsciente

3. SEM 1949 cm
Óleo sobre 60 x 73 cm JLHl.aÕ'_H" do Inconsciente
do Museu de .LU'."'F,'_U.> do Inconsciente

4. VÊNUS DAS
cm
óleo sobre .U.ua>Ó'_H" do Inconsciente
do

5. SEM 1952 11. SEM


Óleo sobre 40 x 63 cm óleo sobre
do Museu de .J.lJ.l.aF',\_H" do Inconsciente do
'-JU.JlLL"'.tJ -'-H'.UF,'~.u.> do Inconsciente

Poesias

Deixae que sois Verdade Em tres cruses entre~la(;aClaS


Crucificando ha mensage Call11ntleWJS ha conaandar
Em delirios esperanças sera sua esquecida
Em esquecer é morrer te diser e nunca mais ver

Quantas ha rezar Oh crus de relampidos


Deixae em mente guardar ce me queres diser
sonhar Viver morrer Cer o copo humano
sois ha verdade de nacer Vivas ce podes Viver

O mascarado ha almentar Oh Deus


Dises ho que pode cer Disceste em amar
Uma mascara ha esconder Pensando Vivias morrer
De rotos láios aparecer De uma serpente ha 1'Y'I(.... rrlPt'

Vaete embora não me torures


Oh alma lijojeiras embriageiras
Porque não ce engana ao morrer
De uma mascara retroceder

Vivas ou meu amor Duello são cem eS1JaClaS


Mores ce não co:nhlece~r Do mundo sombras negras
Do Panno ha cair
De uma mascara te cobrir "VJlHLJLct também morrer
5. SEM TíTULO, 1952
Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

65
Emygdio

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1895. 3. UNIVERSAL, 1948


Vive no Rio de Janeiro. Óleo sobre tela, 104 x 108 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

Obras apresentadas:
4. SEM TíTULO, 1967
1. CARNAVAL, 1948 Óleo sobre papel, 33,2 x 48 cm
Óleo sobre tela, 100 x 96 cm Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

2. ODISSÉIA, 1948 5. SEM TíTULO, 1971


Óleo sobre tela, 68 x 55 cm Óleo sobre cartolina, 36,4 x 55,2 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

5. SEM TíTULO, 1971


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

66
Facteur Cheval (Ferdinand Cheval)

Nasceu em 1836, em Charmes-sur-l'Herbasse, na França.


?m 1867 iniciou seu trabalho de facteur (carteiro) e, em 1878, Uma carta
Instalou-se em Hauterives, onde, como carteiro rural, percorria
largas distâncias a pé. No ano seguinte, encontrou em seu cami- Um dia do mês de abril de 1897, ao fazer minhas entregas
nho a pedra com a qual iniciaria a construção de seu P alais I déal de carteiro rural, um quarto de légua antes de chegar a Ter-
(Palácio Ideal). Sozinho, Cheval constrói todo o palácio, num sanne. Eu estava andando bem depressa, quando meu pé
trabalho de 34 anos. Entre 1914 e 1922 constrói seu próprio esbarrou em algo que me fez rolar alguns metros mais adian-
túmulo. te. Quis conhecer a causa daquilo. Surpreendi-me muito ao
Faleceu em Hauterives, em 1924, aos 88 anos. ver que eu tinha feito sair da terra uma espécie de pedra, de
forma tão bizarra e ao mesmo tempo tão pitoresca, que olhei
em volta de mim. Vi que ela não estava sozinha. Peguei-a e
o Palácio Ideal do Facteur Cheval ergue-se em Hauterives enrolei-a no lenço e levei-a cuidadosamente comigo, prome-
uma aldeia daDrôme, no sudoeste da França. Foi em 1879
tendo a mim mesmo que aproveitaria os momentos que meu
que esse simples carteiro rural começou a edificá-lo, aos 43 trabalho me deixasse livres para fazer uma provisão delas.
anos, após ter esbarrado no caminho, de volta de suas entre-
gas, em "uma pedra trabalhada pelas águas e pela força dos
A partir desse momento, não tive mais sossego, manhã e
tempos" de uma forma tão bizarra e pitoresca que lhe reavi-
noite.
vou o sonho de construir que trazia em si. Um sonho ao qual
Saía para procurar; às vezes percorria 5/6 quilômetros e,
o F acteur Cheval consagrou "33 anos de um árduo labor",
quando o meu carregamento estava eu levava nas cos-
para que se tornasse realidade: "um monumento único no
mundo, trabalho de um único homem, trabalho de gigantes". tas.

Comecei a abrir uma cavidade, na qual me pus a esculpir


Desejo e vontade de encantamento, esse poema em pedras
em cimento toda espécie de animal. Em seguida, com as mi-
fala do trabalho de um "homem do povo, camponês e filho
nhas pedras, comecei uma cascata. Levei dois anos para
de camponeses", para achar e dar, contra as forças do obs-
construí-la. Uma vez eu mesmo estava eS1Jarltado
curantismo, um sentido à sua vida: deter a passagem do
com o meu trabalho. Criticado pela gente do lugar, mas en-
tempo e sublimar um destino difícil, materializar o melhor
corajado pelos visitantes estrangeiros, não desanimei.
de si e oferecê-lo à posteridade. Uma afirmação de si, des-
mesurada, arraigada no viver das contradições, preocupações
e ideais de uma sociedade camponesa em plena mutação. O Havia feito novas descobertas de pedras, umas mais bonitas
Facteur Cheval recolheu, dessa forma, ao seu redor e em seus que as outras. Em Saint-Martin-d'Aout, em Treigneux, em
encontros cotidianos, materiais, citações, referências para Saint-Germain, espécie de pequenas bolas redondas. Pus-me
construir esse "palácio imaginário, templo da Natureza tem- a trabalhar.
plo hindu e túmulo egípcio", imagem mítica no pon'to de
encontro entre ele mesmo e os outros, um país sem cortes Comecei uma gruta e uma segunda cascata, de modo que a
nem fronteiras, onde as oposições se anulam, intemporal minha gruta se encontra entre duas. É o que forma todo o
"palácio ideal" que, por sua vez, convida ao encontro e a~ ambiente do monumento. Levei mais 3 anos para acabá-lo.
s?nho, ao t~abalho e à reflexão: "pare viajante, é aqui a úl- Cada vez mais encantado com meu trabalho' em seguida
tI.ma moradIa; transeunte, escreve teu nome, saberemos que veio-me a idéia de que, com as minhas pequ~nas bolas re~
VIveste: criatura, vem admirar aqui a natureza; aqui grandes dondas, encontradas em Saint-Germain, em Treigneux como
e pequenos virão reunir-se na fraternidade eterna; no campo em Saint-Martin, poderia construir para mim um túmulo,
do trabalho, eu espero meu vencedor; de um sonho tirei a cujo estilo seria único no mundo, e fazer-me enterrar na ro-
rainha do mundo; esse rochedo dirá um dia muitas coisas' o cha à moda dos reis Faraó, e cuja forma seria a egípcia. Co-
s~lco aberto pelo ~eu tr~balho permanecerá aberto no ~lo­ mecei a cavar a terra e na terra formei uma espécie de roche-
noso ?a~sado de ~lllha VIda e no infinito viverei ainda, após do e nesse rochedo cavei alguns sepulcros. Esses sepulcros
meu ultImo suspuo; a um coração valente, nada é impossí- estão cobertos por lajes que podem ser removidas quando
vel; deus, pátria, trabalho". se quiser, fechados por uma porta de pedra e uma segunda
de ferro. Sobre esse rochedo subterrâneo erigi o monumento,
cuja largura é de doze pés e o comprimento de 15. O monu-
Uma obra-prima de paciência, "panteão de um herói obscuro
mento é sustentado por 8 muralhas, a forma de suas pedras
e dos humildes curvados nos sulcos", vestígio e clamor de si,
é das mais pitorescas. As fachadas do levante, assim como
escrita esclarecedora contra o malogro, o esquecimento, a
as do norte, são sustentadas cada uma por 4 colunas, que
morte, que o Facteur Cheval dedica "à fraternidade entre os
suportam os denteados do monumento. No meio, uma linda
povos": aqui "as fadas do Oriente vêm fraternizar com o
coroa de pequenas pedras, feita com pequenas bolas redon-
Ocidente" .
das. Mais em cima, a gruta da Virgem Maria; os 4 Evange-
listas, dois de cada lado. Um calvário com Anjos sustentando
Um monumento ameaçado, exemplar, cujo sentido tem de coroas, assim como alguns peregrinos. Mais para cima, uma
ser procurado pelo lado sagrado, mas que, atualmente, o tem- segunda coroa com a Urna mortuária, acima da urna um pe-
po desgasta e apaga cada dia mais. queno Gênio. Esse monumento tem mais de 30 pés de altura.

Clovis e Claude Prévost Chega-se ao topo por uma escada em caracol. Eu trabalhei
mais 7 anos para acabá-lo, trabalhando noite e dia.
Entre aspas: citações do Facteur Joseph Ferdinand Cheval
Carregando minhas pedras nas costas, às vezes por 15 quilô-
(Tradução de Mariarosaria Fabris) metros, na maioria das vezes à noite.

67
Fachada noroeste do Palácio Ideal

Inscrição o fim de um sonho

Esboço da fachada leste do Palácio Ideal, em torno de 1981


Foto: Clovis Prévost
Pormenor do da fachada leste do Ideal
Foto: Clovis Prévost

Fachada norte. Adão, Pai do gênero humano


Foto: Clovis Prévost

Fachada leste. Base dos rtês e as três múmias


Foto: Clovis Prévost
Sempre para preencher meus momentos de lazer e para dar Queira receber, Senhor Lacroix, a expressão de meus pro-
simetria ao resto do monumento, quis acrescentar-lhe um fundos respeitos.
templo hindu, cujo interior é uma verdadeira gruta. E essa
gruta forma várias outras menores, e nessas pequenas grutas Acrescento a isso, acreditando que poderá ser-lhe útil, o com-
eu deposito fósseis que encontro na terra. primento total do monumento. É de 23 metros, sua largura
em determinados pontos é de 12 metros, a altura varia tam-
A entrada está guardada por um grupo de animais, como: bém entre 6, 9 e 11 metros, a forma inteira desse trabalho
urso, serpente boa, crocodilo, leão, elefante e outros animais é apenas um único bloco de rochas que tem cerca de 600
desse tipo, sempre achados na terra, assim como alguns tron- metros cúbicos de pedras no total.
cos de árvores.
Tudo foi construído pela mão de um só homem.
Do outro lado, 3 grandes gigantes e duas múmias; tudo em
estilo egípcio, assim como, mais em cima, encontramos 2 Seu humilde servidor,
figueiras de barbárie, palmeiras, oliveiras e um aloés. Che-
Ferdinand Cheval, ex-carteiro de Hauterives
ga-se ao topo da torre por uma escada em caracol. Na en-
trada dessa escada estão 4 colunas de forma barbárica. Levei
Esta carta não datada e inédita provavelmente endereçada
mais 4 anos para construir esse templo hindu. Sempre com
por Ferdinand Cheval ao Arquivista provincial André La-
a mesma coragem e perseverança, há 2 anos comecei uma
croix no outono de 1897, foi sem dúvida redigida por seu
galeria do lado ponente, com hecatombes de cada lado, de
filho Cyrille. (A.D.D. F 54/4)
12 pés quadrados, que comunicam seja com o templo hindu,
seja com o túmulo. Acima das hecatombes e da galeria acha-
Meus caros Leitores Permito-me mais uma vez de dizer-lhes
se um terraço muito amplo de 22 metros de comprimento.
que após ter terminado meu Palácio de Sonho aos setenta e
É possível alcançá-lo também por escadas, com a única fina-
sete anos de idade e 33 anos de trabalho obstinado Senti-me
lidade de permitir aos visitantes dominar todo o monumento
ainda bastante corajoso Para ir Construir Meu Túmulo no
à vontade.
Cemitério da Paróquia. Lá Trabalhei ainda 8 anos de um
Árduo Labor, tive a Felicidade de Deus Ter-me Dado saúde
Os turistas este ano foram numerosos, muito mais que nos
para Poder terminar aos 86 anos de idade O Túmulo chama-
anos anteriores, e todos vão embora encantados com meu
do o Túmulo do Silêncio e do descanso sem Fim.
monumento; eles admiram sobretudo o trabalho e a perse-
verança com que me dediquei a esse conjunto maravilhoso
Seu gênero de Trabalho torna-O Muito original quase único
que se chamará, espero: Único do mundo. Lá se vão 18 anos
no mundo; na realidade é A originalidade que faz sua Be-
que eu trabalho e preciso ainda de 2 anos para terminar o
leza.
interior e o exterior, e meu sonho terá durado 20 anos.
Esse Túmulo acha-se a Poucos quilômetros Da Aldeia de
Comecei esse trabalho gigantesco aos 43 anos de idade. Eu Hauterives. Numerosos visitantes vão visitá-Lo após terem
não servi o governo como soldado, mas o servi quase 30 anos visto meu Palácio de sonho e voltam aos Seus Países encan-
como carteiro. tados contando isso a Seus amigos seguramente, Parte de um
Conto de Fadas é A verdadeira realidade Tem que ser visto
Não importa o nome que eu der ao meu trabalho, rogo-lhe, Para Poder Acreditar é também Para A eternidade que eu
senhor, de dar-lhe por sua conta um nome de conjunto ou quis vir Tudo será ... descansar no campo da Legalidade
detalhado, como julgar conveniente. O senhor pode achá-lo Deus Pátria Trabalho
melhor do que ninguém. Faço questão de relembrar-lhe que
as despesas de correspondência, ou outras, correrão todas (Transcrição de um manuscrito de Ferdinand Cheval- 1924.)
por minha conta. Agradeceria muito se o senhor pudesse me
avisar. (Só foi usada a pontuação quando estritamente necessária
para a compreensão do texto. Na parte final, o texto em
Estou muito contente de que queira me enviar uma pequena francês está quase incompreensível, portanto tentou-se uma
biografia pelo que terei pelo senhor um sincero reconheci- in terpretação.)
mento por todo o trabalho a que se deu por minha causa.

Mariarosaria Fabris)
Parid

Nasceu em 1917. 2. SEM TÍTULO, s.d.


Nanquim e guache sobre papel, 37,5 x 52,4 cm
Obras apresentadas: Coleção Mafalda Caminada, São Paulo

1. SEM TÍTULO, s.d. 3. SEM TÍTULO, 1952


Guache sobre papel, 31,5 x 23 cm Lápis de cor sobre papel, 29,8 x 20,5 cm
Coleção Mafalda Caminada, São Paulo Coleção Mafalda Caminada, São Paulo

71
Fernando

Nasceu em Aratu (Bahia), em 1918. 4. SEM TíTULO, 1953


Vive no Rio de Janeiro. Óleo sobre tela, 33 x 41 em
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

5. SEM TíTULO, 1968


Óleo sobre papel, 48,5 x 32,2 em
Obras apresentadas: Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

1. SEM TíTULO, 1952 6. DRAGÃO, 1968


Óleo sobre papel, 56,3 x 76 em Óleo sobre papel, 33,7 x 49 em
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

2. SEM TíTULO, 1953 7. SEM TíTULO, 1970 .


Óleo sobre tela. 46 x 60,5 em Óleo sobre papel, 47,6 x 32,5 em
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

3. SEM TíTULO, 1953 8. SEM TíTULO, s.d.


Óleo sobre tela, 32,7 x 40,7 em Óleo sobre papel, 56 x 75,5 em
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

Antes havia a pedra lapidada: no meio dela está a estrela, Em cima da estrela se desenham círculos e em cima dos cír-
mas quem lapida a pedra tira todas as estrelas. culos, borboletas ou margaridas.

A estrela grande é difícil de fazer, mas ela existe. Só se po-


dem fazer estrelas pequenas, mas elas não formam a estrela
grande.

A estrela grande pode ser dividida em pedaços, mas os peda-


ços não existem antes da estrela. A estrela existe antes de (Depoimento recolhido por Annateresa Fabris, a 29 de Ja-
tudo. neiro de 1976.)

2. SEM TíTULO, 1953


Foto: José Augusto VarellalJosé Roberto Ceeato

72
Madge Gil!

Nasceu em 1882, na zona leste de Londres. 3.20297, 1954


Internada num orfanato aos nove anos, mais tarde foi mandada Tinta colorida sobre papelão, 63,5 x 50,8 em
para o Canadá, para trabalhar no campo. Voltando a Londres, Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)
casou-se e teve quatro filhos, dos quais sobreviveram dois ape-
nas. Em 1919, começou a produzir complexos desenhos à tinta, 4.20295, 1954
sobre papelão ou morim não-tratado, alegando inspiração de um Tinta colorida sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
guia espiritual chamado Myrninerest. Parte de sua obra é intei- Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)
ramente abstrata, há trabalhos com elevado grau de formalização
e a maioria é composta de evocações obcecantes de uma presença
feminina. Produziu centenas de quadros, alguns do tamanho de 5.17731, 1954
cartões postais, outros com dez metros de comprimento, até sua Tinta colorida sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
morte, em 1961. Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)

Os trabalhos de Madge Gill não têm título. São identificáveis 6. 17738, 1954
pelos números que há no verso de todos eles. Dois são longas Tinta colorida sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
peças de morim pendentes, presas a uma fina peça de madeira. Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gállery (Eric Estorick)
Não precisam de moldura, pois simplesmente ficam dependu-
rados. 7. 17720, 1951
Tinta preta sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)
Obras apresentadas:

1. 17557, 1954 8. 11598, 1954


Tinta sobre morim, 221 x 79 em Tinta colorida sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick) Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)

2.7688, 1954 9. 100A, 1951


Tinta sobre morim, 261 x 79 em Tinta preta sobre tábua, 63,5 x 50,8 em
Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick) Coleção Sevenarts Ltd, Grosvenor Gallery (Eric Estorick)

6. 17738, 1954 3.20297, 1954


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

73
G.T.O. (Geraldo Telles de Oliveira)

Nasceu em Itapecerica (Minas Gerais), em 191.3. 2, SEM TÍTULO, s,d.


Após ter trabalhado na lavoura, foi ajudante de guarda-sanitário, Madeira, 57,2 em
rodante, fundidor, funileiro, até começar a esculpir em 1965, Coleção Augusto Rodrigues, Rio de Janeiro
impulsionado por um sonho recorrente,
Vive em Divinópolis (Minas Gerais), 3. SEM TíTULO, s.d,
Madeira, 168 em
Coleção Augusto Rodrigues, Rio de Janeiro

4. SEM TÍTULO, s.d,


Madeira, 183,7 em
abras apresentadas: Coleção J acques van de Beuque, Rio de Janeiro

1. SEM TÍTULO, s.d. 5. RODA DA VIDA, 1970


Madeira, 94,6 x 52 em Madeira, 103,3 x 84,6 em
Coleção Augusto Rodrigues, Rio de Janeiro Coleção J acques van de Beuque, Rio de Janeiro

4. SEM TÍTULO, s.d.


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

74
5. RODA DA VIDA, 1970 (pormenor)

75
] ohann Hauser

Nasceu em Bratíslava, Tchecoslováquia, em 1926. Obras


É analfabeto, apenas escreve seu nome e algumas letras. Durante
a guerra foi com sua mãe para a Áustria. 1.
maníaco-depressivo, foi internado no hospital de de cera sobre 40 x 25,5 em
em 1943. Começou a desenhar há 20 anos
produtivas coincidem com as maníacas.
Vive ainda internado em Klosterneuburg.
2, '-'1-.LLJ.J.-'Y.U. 1969
em

3. LEÃO OU 1969
sobre 30 x 40 em

1971
e 30 x 40 em

5 . NAVE ESPACIAL CÁPSULA


1969
e de cor sobre 30 x 40 em

6. 1966
O autor, em 1980 vermelha,
Foto: Heinz Bütler

5. NAVE ESPACIAL E CÁPSULA DE 1969

76
1. MULHER, 1969

'----------------- ' ---'----

77
Eli Heil

Nasceu em Palhoça (Santa Catarina), em 1929. 8. IMAGEM, 1977


Autodidata, começou a pintar após ter visto o quadro de um Técnica mista sobre papel, 42 x 49,5 cm
amigo. Em constante experimentação, desenvolve atualmente Coleção da Artista
sessenta e uma técnicas, que rompem, em grande parte, com os
parâmetros tradicionais da representação artística. Em julho de 9. ANIMAL VERDE, AZUL, AMARELO, 1977
1980, redigiu seu Testamento Artístico. Técnica mista sobre tela, 18 x 23,5 cm
Vive em Florianópolis. Coleção da Artista

10. ANIMAL CARREGANDO A CASA, 1977


Obras apresentadas: Tinta acrílica sobre tela, 49,5 x 59,4 em
Coleção da Artista
1. CURRAL, 1964
Óleo sobre tela, 70,8 x 80,4 cm 11. QUEM SOU EU, 1977
Coleção: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de Técnica mista sobre papelão especial
São Paulo Coleção da Artista
2. MAR, 1966 12. MEU DENTISTA CAMPOLINO, 1979
Nanquim e tinta para tingir sapato sobre papel, 27,6 x 36,8 cm Óleo sobre tela, 39,8 x 59,5 cm
Coleção: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de Coleção da Artista
São Paulo
13. MORRO DESFIADO, 1979
3. MORRO, 1967
Técnica mista sobre papelão especial, 27,5 x 36,5 em
Óleo sobre tela, 60 x 70,5 cm
Coleção da Artista
Coleção da Artista

4. PEDAÇO DO MORRO, 1974 14. FEITO NA PRAIA


Técnica mista sobre papelão, 21,2 x 29,9 cm Tin ta acrílica e cera sobre papel, 19,5 x 43,8 em
Coleção da Artista Coleção da Artista

5. PÁSSARO VOMITANDO, 1976 15. O ANIMAL E A DANÇARINA, 1980


Técnica mista sobre papelão, 31,5 x 43,5 cm Técnica mista sobre papel-cartão, 24,5 x 44,2 cm
Coleção da Artista Coleção da Artista

6. QUEM ÉS TU, 1977 16. MANCHA VIVENTE, 1980


Técnica mista sobre papelão especial, 52 x 33 cm Óleo sobre tela, 49,5 x 69,5 cm
Coleção da Artista Coleção da Artista

7. MEUS ANIMAIS QUERIDOS, 1977 17. MANCHA VIVENTE, 1980


Técnica mista sobre papel, 34,5 x 47 cm Técnica mista sobre courvin, 19,5 x 25,5 cm
Coleção da Artista Coleção da Artista

Testamento Artístico de obras de artes, que pretendo retribuir, cada mês pagarei
com obras de artes (não o acervo) a quantidade do aluguel,
Muitos sofrimentos existem lá fora, às vezes me sinto pe- doando obras. Em seguida comprando a casa para instalar o
quenina, mas também não tenho culpa, que a minha sensi- meu museu insolúvel, então darei os dez painéis para serem
bilidade é tão grande, que todos os órgãos do meu corpo se coolcados nos órgãos públicos. Ficarei com dois para o acer-
transformam, num simples fio de tecido de aranha, que ao vo, mas farei o resto que complete os dez painéis, assim que
tocá-lo se desmancha com facilidade. eu tenha lugar para fazê-los. Quando eu morrer o Museu fi-
Como sofri para fazer este mundo! como guardei com cari- cará naquele lugar insolúvel para sempre ou em outro lugar)
nho para não haver separação entre eu e ele! só vendia por mas que seja insolúvel num lugar só.
necessidade. Fui tentada muitas vezes para vender. Qual na- Deus escolheu este fiapo de pessoa no morro de Santa Ca-
da, no fundo estava escrito, reservado para o amor; aquele tarina, foi, porque ele quer, que eu fique aqui e cumprir o
amor que não se deixa levar, por meras palavras como: você meu desejo.
não vende porque é egoísta, você poderia ser a mulher mais De geração em geração não precisam lembrar de mim e sim
rica se quisesse, eu compro tudo, eu troco minha mansão de minhas obras de arte e amá-las intensamente como eu
por isso tudo. Acontecesse isso tudo, queiram entender ou amei e amo.
não; era a morte, porque eu sou a varinha mágica que os
criou, deu vida; perdê-los era a mesma coisa que perder a (Trechos do Testamento Artístico) redigido a 19 de julho
varinha e não criar mais. de 1980.)
Tenho loucura pelas coisas sublimes da vida, mas também
sou tão certa, que a loucura corre atrás do certo e não pega Avião
nunca. Por isso, tudo que vou escrever deve ser de acordo
e cumprido à risca com o meu desejo. Eu queria ser um avião,
Peço que me salve junto com as obras de artes alugando uma Ou uma visão secreta,
casa para mim. Para apanhar no ar,
Senhores o preço não tem importância, diante da imensidão O fantasma, que me cerca.

78
5. PÁSSARO VOMITANDO, 1976

12. MEU DENTISTA CAMPOLINO, 1979

79
o fantasma é um anjo; Respondam? para, que eu possa me conformar mais.
Brilha como brilha um avião; Acho mesmo, que estou lamentando pelos outros,
Os dois vivem no ar, Porque este mundo, está todo enfeitado,
E eu? sustentando um mundo no chão. De laços vermelhos, amarelos e amarronzados
Sangue, pus, corações amargurados,
O avião me ajudaria a carregar! E eu tenho, tanto fôlego para soprar,
O fantasma, lindo das criações; Sangue para dar, Pus para limpar e coração para amar.
Que, são as entranhas das nuvens
Recompondo nas minhas orações
Mancha vivente
Avião! Avião! ...
Leva e traz aquela esperança! Eu sou mancha vivente
Quero, colocar o meu mundo na balança Viva na mente
Para saber, que preço alcança O corpo não sente
Mas sei que sou gente.
O preço do amor?
O preço da loucura? Solta no ar
Ou preço da alma pura?! Alma para amar
Que, no mundo de hoje, censura. Olhos para chorar
Boca para gritar
Gente! Gente! Gente!
o grito por socorro Só tenho colorido na mente
Mancha na minha frente
Espalha o teu grito, até a sombra do passado; Eu sou mancha vivente.
Deixa, renascer, renascer, Ora sou gente,
Só assim, poderás sobreviver. Ora sou toda uma vida
O teu grito será tão profundo, Uma depressão de repente
Que até no fim do mundo, Viro mancha colorida
És capaz de vencer. Posso estar numa parede limpa
Tudo renasce sofre; Posso estar até numa parede suja
Por isso estás sofrendo; Esquecendo o mau trato da vida
A forma do teu útero, Para que da vida não fuja.
É a mesma forma do teu coração. Que bom ser mancha vivente
Pelo menos por enquanto
Criar eu quero; minha mente
A cria me dá vida; esquece por um minuto o que sente.
Eu se não crio, O desabrigo de tudo que está em minha frente.
Viro mancha deprimida.
(Boi de mamão) Florianópolis, (2), jul. 1980)

A passagem de uma crise


Depressão
Ontem, quase fui pelos ares;
Como um tufão em altos mares; Hoje mais uma vez que depressão!
Hoje, estou lenta e calma, A vida desaparece e desejo a escuridão
Quase, sem alma, Não gosto desse momento
Por causa de um remedinho, Olho ao céu e peço ao vento
Deixou meu cérebro quietinho; Soprar a minha mente para o firmamento
Amanhã, sei, que, devagarinho, Pedir a Deus de volta o bom senso
Lá vem ele de mansinho, Quando penso que estou melhor
Aos meus ouvidos borbulhar! A morte mais violenta chega ao meu redor
São bolhas por todos os lados, Imploro choro lembrando dos entes queridos
Verdes, amarelados, azuis, avermelhados, Então revivo e deixo que ela volte só
Dando o grito criador; Depois comecei a pintar
Bichos, gentes, flores, laços arreganhados, No centro uma cara rodeada de fios coloridos
E ainda, acima de tudo me olham, São todos emblemas dos gritos
Com olhos arregalados; Quando me sinto em perigo
Volta a tensão, agonia, confusão, O vermelho a depressão agressiva
Passo, novamente por um tufão. O amarelo o pus da dor não dolorida
O roxo o pé no cadafalso
O azul as preces que faço
Minha mente chora por mim O branco paz finalmente do tempo
Me levando mais um bom pedaço.
Os loucos não pensam, e eu, penso demais;
Quais os verdadeiros loucos? Eli M. Heil

80
Isaac

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1906. 2. SEM TíTULO, 1961


Faleceu no Rio de Janeiro, em 1966. Guache sobre papel, 32,2 x 49,5 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

3. ÁRVORES E UMA SOMBRA QUALQUER, 1961


Guache sobre papel, 32,7 x 49 cm
Obras apresentadas: Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

1. SEM TíTULO, 1956 4. SEM TíTULO, 1962


Óleo sobre tela, 52 x 62 cm Óleo sobre tela, 61 x 50 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

l. SEM TíTULO, 1956


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

81
Jaime

Jaime Fernandes nasceu em 1900, na freguesia do Barco, Covi- 21. SEM TÍTULO, s.d.
lhã, em Portugal. Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
Era trabalhador rural. Aos 38 anos, foi internado no Hospital
Miguel Bombarda. 22. SEM TÍTULO, s.d.
Aí faleceu, em 27.03.1968, após 31 anos de internamento. Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
Jaime começou a desenhar já depois dos 60 anos. Grande parte
da sua obra perdeu-se. 23. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em

24. SEM TÍTULO, s.d.


Obras apresentadas: Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
1. SEM TÍTULO, s.d. 25. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográficas sobre papel, 25 x 32,5 em Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
2. SEM TÍTULO, s.d. 26. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográficas sobre papel, 25 x 32,5 em Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
3. SEM TÍTULO, s.d. 27. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 25 x 32,5 em Esferográfica sobre papel, 22 x 33 em
4. SEM TÍTULO, s.d. 28. SEM TÍTULO, s.d.
Lápis sobre papel, 32 x 44 em Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
5. SEM TÍTULO, s.d. 29. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 32 x 25 em Esferográfica sobre papel, 16 x 25 em
6. SEM TÍTULO, s .d. 30. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em Esferográfica sobre papel, 12 x 16 em
7. SEM TÍTULO, s.d. 31. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 32 x 25 em Esferográfica sobre papel, 12 x 16 em
8. SEM TÍTULO, s.d. 32. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 32 x 25 em Esferográfica sobre papel, 12,5 x 16,5 em
9. SEM TÍTULO, s.d. 33. SEM TÍTULO, s.d.
Lápis sobre papel, 32 x 25 em Esferográfica sobre papel, 16 x 25 em
10. SEM TÍTULO, s.d. 34. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 32 x 25 em Esferográfica sobre papel, 48 x 31 em
11. SEM TÍTULO, s.d. 35. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 25 x 16 em Esferográfica sobre papel, 35 x 48 em
12. SEM TÍTULO, s.d. 36. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 13 x 18,5 em Esferográfica sobre papel, 31,5 x 22 em
13. SEM TÍTULO, s.d. 37. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 21x 27 em Esferográfica sobre papel, 31,5 x 22 em
14. SEM TÍTULO, s.d. 38. SEM TÍTULO, s.d.
Esferográfica sobre papel, 15 x 11,5 em Esferográfica sobre papel, 22 x 31 em

15. SEM TÍTULO, s.d. 39. SEM TíTULO, s.d.


Lápis sobre papel, 21 x 6 em Esferográfica sobre papel, 16 x 24 em

16. SEM TÍTULO, s.d. 40. SEM TÍTULO, s.d.


Lápis sobre papel, 21 x 6 em Lápis sobre papel, 30 x 21 em
17. SEM TÍTULO, s.d. 41. SEM TÍTULO, s.d.
Lápis sobre papel, 21 x 6 em Esferográfica sobre papel, 32 x 14 em

18. SEM TÍTULO, s.d. 42. SEM TÍTULO, s.d.


Lápis sobre papel, 25 x 32 em Esferográfica sobre papel, 43,5 x 14 em

19. SEM TÍTULO, s.d. 43. SEM TÍTULO, s.d.


Lápis sobre papel, 25 x 32 em Esferográfica sobre papel, 34 x 22,5 em

20. SEM TÍTULO, s.d. 44. SEM TíTULO, s.d.


Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em Lápis sobre papel, 32 x 25 em

82
45. SEM TíTULO, s.d. 49. SEM TíTULO, s.d.
Lápis sobre papel, 19 x 42 em Mercuriocromo sobre papel, 15 x 10,5 em
46, SEM TíTULO, s.d.
Lápis sobre papel, 25 x 32 em 50. SEM TíTULO, s.d.
47. SEM TíTULO, s.d. Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em
Esferográfica sobre papel, 32 x 19 em

48. SEM TíTULO, s.d. 51. SEM TíTULO, s.d.


Esferográfica sobre papel, 25 x 32 em Esferográfica sobre papel, 22 x 34 em

Os desenhos de Jaime

Todos temos os nossos terrores, todos temos os nossos fan- forma, pelo seu ritmo, pela organização da cor, a eXlgencia
tasmas. Se fôssemos capazes de lhes dar forma, de lhes dar de como se situar e relacionar naquele espaço imaginário.
um corpo quando nos encontramos sitiados pela angústia,
talvez eles se figurassem com aquelas presas poderosas agar- Uma terapêutica sensível proporciona-lhe, avançado já na
radas à terra, aqueles bicos encurvados lá no alto sobre nós, trágica noite, os instrumentos: o lápis de cor, a esferográfi-
aqueles olhos frios e fixos saindo do fundo da noite, como ca, o papel. O mesmo que se oferece a uma criança para que
acontece ver-se nalguns desenhos de Jaime. Nós, os do lado ela, em alegria e jogo, imagine o que conhece. A obra de
de cá da razão, possuímos disciplinas e somos ensinados a Jaime, o que vai ficar de Jaime, inicia-se assim na revelação
usá-las como armas para esconjurar os fantasmas moldados do primeiro risco idêntico àquele com que se maravilha uma
na alucinação e nos medos. Jaime não tinha. Foi despojado criança ao traçá-lo pela sua mão. Só que nada saberemos,
delas e, como um guerreiro sozinho no campo de morte, de- quanto a Jaime, se a alegria verdadeiramente o tocou. En-
sarmado e nu, travou com eles o seu desesperado combate trevemos, porém, a gravidade aceite por ele no jogo que lhe
de trevas. foi proposto. O acaso terapêutico vai tornar-se um veículo
de criação, o despertador de concreto, uma interposição en-
.:p3:ra mim, e para entender os desenhos de Jaime, é preciso tre o submergir abúlico da vontade e o reapareéimento do
compreender primeiro que muito do que lhe pertence nos ser. Porém, o despertar desse concreto será, cada vez mais,
pertence. Ele habita esse outro lado negro do espelho, esse a penetração do mundo obscuro das imagens tutelares do seu
outro lado que nunca olhamos, que queremos ignorar ser desvairio, a evidência cada vez maior de uma mitologia ob-
também uma face refletora e iluminada por outra luz que, sessiva. E também cada vez mais o desenho se fará como
cruamente, projeta a nossa imagem solitária e instável. É desenho, se inventa, se aprofunda, se constrói por si mesmo.
assim que Jaime é um nosso irmão e lembro-me que já al-
guém, antes de mim, o chamou por esse nome. Sem o ser por Não há nisto nenhuma contradição. O desenho de Jaime não
falsas culpas que tenhamos, por reverência moral, por temer é uma referência mecânica, não é teste de um estado mental,
o drama ou o outro lado do espelho. apenas. É sobretudo uma posse de realidade, uma explosão
estruturada e, angustiosa e furtiva embora, é a realidade em
É assim porque é puro. É .assim, porque o seu combate com Jaime. Desenhando, Jaime possui; ao criar formas, identifi-
o demoníaco é uma inconsciente busca da verdade, um tra- ca. A relação (ou choque) entre o submundo concentracio-
balho tremendo de humanizar as forças que o arrastam para nário e o mundo exterior, aberto, mas só existindo na des-
o não-existir, que o amarram, hora a hora, por fora do tempo continuidade da memória, é o cerne, parece-me, da obra de
à sua própria ausência. Jaime desenha o rosto, a figura dos Jaime, o que o faz corporizar aparições tanto quanto dese-
monstros tutelares que envolvem, vigiam e dominam em to- nhar, transfigurando-os, seres que numa ternura hibernada
dos os instantes a sua vida centrípeta. Fazê-lo terá sido o afagam, assim recuperados, os destroços que acostam da ou-
mergulho por dentro do terror ou o esforço para conhecer- tra vida que nele constitui o passado em permanente desfile
lhe a cara num ato irreprimível, doloroso e exaustivo em desfocado, confuso e inagarrável.
que o temer e o conhecer têm a mesma equivalência? A vida
interior de Jaime, invisível na sombra que o adormece, iso- O que terá sido a tensão deste homem frente ao assalto dos
lado do mundo dos homens na asfixia hospitalar tem, em si, seus fantasmas e o esforço de ericontrar em si próprio forças
um secreto intransponível. Nenhum código de serviço dispõe para se apossar deles pela imagem, o esforço de trazê-los pa-
de poder sobre este secreto para ir mais longe do que aflo- ra o espaço imaginário por ele próprio criado, de inscrevê-los
rá-lo. Há nele mistério e há nele também dignidade. Uma e no seu próprio espaço concreto, afinal? Alguma coisa de
outra coisa dão-lhe aquele distanciamento próprio ao que magnífico, alguma coisa de grande. Diria que os seus dese-
existe como que só por si, por si mesmo sustentado, vivendo nhos, que o delírio espreita, submetem, mais do que são
outro horizonte do ser, suspenso, ambíguo e indefinível. submetidos. A trama laboriosa, paciente, do prodigioso ar-
tífice do lápis, prende os demônios na própria teia onde eles
Talvez por tudo isso, nos desenhos de Jaime, à dispersão se tecem. No jogo de os prender, de os significar dentro de
labiríntica e errante dos sentidos na sua simbólica imediata um espaço elaborado, muito do seu terrífico deixa de o ser.
da libido, se oponha uma concentração conduzida, ordenada, Jogo de vida ou de morte no silêncio trágico, absoluto e
verdadeiramente uma construção. Um espaço imaginário sim, irreversível. Por isso estes desenhos nos comovem tão pro-
mas em que cada elemento, além do premente pretexto sim- fundamente. Nada neles é aleatório ou ocupação inconse-
bólico do seu aparecimento, tem, sobretudo, pela decisão da qüente. Cada figura é uma identificação, uma formulação

83
luminosa, uma estrela destacada no caos que amordaça a sua aves queridas do seu passado rústico, os homens poderosos
mente. que dominam o seu cercado mundo terreno, o corpo centáu-
rico onde se geram e os cavaleiros. No silêncio,
Jaime tem a percepção, parece-me, do obstáculo, qualquer 1"""<'''''''1'' num lento de lm~nrlmlQe
coisa de imponderável, mas presente, que se opõe à conclu- .LU'>,--,,,,,,_,,,,,, a enorme sabedoria unidade de to-
são do desejo. Talvez uma oculta noção de liberdade irrea- modo ele é o e por esse modo
lizável. Há desenhos seus em que isso se pressente ainda
que, aparentemente, o que parecem dizer a aproximação
à linguagem do real comum. Num deles, que figura uma ca- Do mais secreto seu secreto, a escrita de Jaime é a veri-
bra, esta flete a cabeça preparando a marrada, mas um traço ficação do Discurso automático que
vertical forte como que paralisa o movimento; noutro, o vÍsualizando a oralidade num discurso
mesmo traço forte pode ler-se também como o limite do es- de forma e extremamente ordenado
paço físico das evoluções dos peixes que enchem completa- destino semântico se
mente a folha de papel. São dois desenhos extraordinários pel~slstefJlCla tonal e car)1'1c:ho
pelo que têm como intensidade de observação e de invenção
gráfica e como esta para além da recuada obser-
vação mnemônica do a um latente conteúdo simbólico.

Invenção é uma adequada ao desenho co-- às vezes


mo poucas vezes se pode aplicar a quem desenha. apenas para a minha
porque o fantasmático e os graus do delírio partilhem a pa- reflexões de
lavra habitualmente, mas, sobretudo, porque Jaime tudo ti- Morreu.
rou de si, antes do desenho nada sabia de isto
tragédia do não viria nunca a a
Sirvo-me para seu elogio, necessa1'1O e
conhecer. Assim, o desenho começa nele pelo princípio co- aSSilTI podia jl11gar si, fundo de si r. r ... n .... H1

mo se nunca tivesse acontecido. Jaime aprende sem aprender,


da trágica sabia afinal
faz. O desenho tem nele o toque mágico da criação que igno-
seres e coisas, que os homens da razão ot'StJln8ld8lmente
ra tudo o que já foi feito por conter nela um essencial do
se esforçam por separar. Mas dir-se-ia que da sua não-morte
que é preciso fazer.
ele teria um indício, uma iluminação.
Por isso, Jaime iguala outros criadores, raros até, e o seu
desenho alheio a qualquer sabedoria é, em si, a sabedoria Nós podemos agora garantir a Jaime que também o sabemos,
do desenho. Mas Jaime é também a inocência. Sabedoria e que tal indício era já a verdade enunciada. Excluído do mun-
inocência são os dois contrários que Jaime torna unos numa do dos homens a ele regressa e, finalmente, entendem-no. O
experiência humana que tem por fundo o drama da solidão que nos pertence, a ele pertence também.
e do afastamento da vida. As mesmas bocas, os mesmos
olhos, unem no mesmo reino os fantasmas, os animais, as Fernando de

Foto: José Augusto Varella !.José Roberto Cecato .


Foto: José Augusto VarellalJosé Roberto CeCato

Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecatu Foto: José Augusto VarellaIJosé Roberto Cecatu

85
Heinrich Anton Müller

"Nascido em Boltigen, perto de Berna, Heinrich Anton Müller 3. BELO OSSO E SEU FILHO, 1917-1924
viveu no Cantão de Vaud, onde trabalhava como podador de vi- Nanquim, lápis de cor e lápis sobre cartão, 80 x 72 cm
nhas. Pouco se sabe de sua família e infância, mas acredita-se
que aprendeu sozinho a ler e escrever. Por volta de 1903, inven- 4. COMPOSIÇÃO COM GALHADA DE VEADO, 1917-1 924
tou um aparelho extremamente engenhoso para podar vinhas, Giz, lápis de cor e lápis sobre cartão, 81 x 55,5 cm
mas infelizmente roubaram-lhe a idéia e a exploraram comercial-
mente. A frustração resultante provavelmente contribuiu para o 5. SENHORITA MARIANA. PAPAI PAPA-DEFUNTO,
colapso de sua personalidade, do qual foi tratado desde 1906 1917-1924
até a morte, no hospital psiquiátrico de Münsingen, no Cantão Guache e giz sobre lápis em cartão recosturado, 78 x 59 cm
de Berna. Segundo os psiquiatras de Münsingen, Müller tinha
delírios de grandeza e complexo de perseguição, assinando-se 6. CABEÇA DE HOMEM, 1917-1924
"Deus" ou "1'Éternel" e referindo-se à esposa como "la vierge Guache, giz e lápis, 79 ,5 x 44,5 cm
Divine". No hospital, seu comportamento tornou-se mais contro-
lado. A partir de 1912, dedicou-se a desenhos e invenções, espe- 7. UM BARRY, 1917-1924
cialmente às relativas ao moto-contínuo. Construía aparelhos Lápis e giz sobre cartão com borda costurada, 83 x 44 ,5 cm
enormes, cuja única função visível era multiplicar e expandir o
movimento, produzindo energia sem utilização alguma. E cavou 8. NOSSO PADEIRO, 1917-1924
um buraco no jardim, dentro do qual costumava ficar sentado Giz e lápis sobre cartão, 78 ,5 x 43 ,5 cm
por mui tas horas." 1
9. HERMINE, 1917-1924
Obras apresentadas: Guache, giz e lápis, 79 ,5 x 44 ,5 cm

1. FIGURA COM CABRA E RÃ, 1917-1924 10. MEU PORCO SE CHAMA RAFI , 1917-1924
Giz preto e giz branco sobre lápis em cartão, 80 x 55 ,5 cm Giz, pena e nanquim sobre lápis em cartão, 81,5 x 133 cm

2. ROPS AMANTE, BISCAUME, 1917-1924 11. CASA ÁRVORE E FIGURA, 1917-1924


Giz, pena e nanquim sobre lápis em cartão, 77 x 99 cm Guache e giz sobre cartão, 87 x 114,5 cm

"Müller desenhou esporadicamente entre 1917 e 1927. A nos desenhos e nos impressionantes (e laboriosos) manuscri-
princípio, trabalhou com papel de embrulho, que às vezes tos de Heinrich Anton, nem um só traço escapou à atenção
costurava para obter uma folha maior. De um modo geral, ou foi feito ao acaso. Tudo indica que ele se esforçou, com
só usava lápis grosso de carpinteiro, preto ou azul, e dava muita lucidez, por produzir objetos excepcionalmente estra-
os realces com pastel branco. Em alguns casos, molhava seus nhos. Buscou o estranho acima de tudo. Era uma obsessão;
desenhos, dando-lhes um aspecto de afresco. era sua maior alegria. Talvez a característica fundamental da
"alienação" seja esse desejo de realizar o perversamente in-
Seu método de representar as figuras é desconcertante. Ele comum, juntamente com a intoxicação gerada pelo avanço
associa elementos altamente realísticos a certas abstrações contínuo em direção ao definitivo. E se for o caso de se falar
audazes, mudando continuamente a escala e alterando ines- em doença, com relação a Müller, deve-se dizer que seu mal
peradamente o ponto de vista . é a um só tempo sintoma e medicamento. Por nada ele ma-
nifestava tanto amor quanto por sua loucura . Era sua razão
Parece que ele deseja retratar o personagem de uma efígie de viver, e nada o deleitava mais do que projetá-la em folhas
ou de um amuleto, tal como é entendido e usado em práticas vivas de papel, que depois pregava na parede e contemplava.
mágicas, deformar suas figuras, brincar com semelhanças, Nada o satisfazia mais do que compor (com grande habili-
aproximar-se do modelo e de repente afastar-se dele, como dade e extremo carinho) as imagens que lhe confirmassem a
que para testar o poder da imagem. Ele usa maliciosamente direção a seguir e garantissem seu avanço . Diante de um ho-
nossos reflexos de leitura para nos conduzir inconscientes a mem que vive com tanta satisfação, acaso poderíamos falar
aberrações . Há uma certa ambigüidade que questiona os prin- em doença que precisa ser curada? Que remédio lhe propor-
cípios da representação, a começar da suposta realidade do cionaria uma realização tão perfeita quanto ao que ele des- ~
objeto." 2 cobriu sozinho, cultivando com amor sua própria estranheza
- um remédio que, ao invés de se transformar em obstá-
Alguns desenhos de Müller têm textos no verso, e um exem- culo, transporta todo o seu ser para a mesma dimensão?" 3
plo notável é République La Libre: "( . .. . ). Extraordinário
nesse texto - fato que sem dúvida origina sua excepcional Michel Thévoz
força racional - é que ele não flui simplesmente da pena
de um homem que não dominava seus pensamentos : é redi- 1 L'Art Brut, Fascículo 1 (publicado pela Compagnie de l'Art
gido de forma intencional, com muito controle e apuro. Isto Brut, Paris, 1964)
se revela com a descoberta de um pedaço de papel de em- 2 Michel Thévoz, Art Brut, Editions Skira

brulho rasgado, com um fragmento de texto corrigido, onde 3 Jean Dubuffet, L'Art Brut, Fascículo 1 (publicado pela Com-

várias palavras foram riscadas e substituídas por outras, tu- pagnie de l'Art Brut, Paris, 1964)
do com a caligrafia de Heinrich Anton. Nota-se claramente
que as correções visavam a substituição das palavras origi-
nais por outras mais inesperadas e desconcertantes . Trata-se TEXTOS DE HEINRICH ANTON MÜLLER
de um exemplo extraordinário de como era consciente a ela-
boração desses textos curtos, e de como o autor tinha plena Com exceção de République La Libre, transcrito por Jean
consciência de sua singularidade. Parece-nos evidente que , Dubuffet , os textos de Müller eram desconhecidos até re-

86
centemente. Um levantamento rápido - e certamente in- « Ah V iens ma Belle . .. »
completo - revelou a existência de outros textos no verso
de seus desenhos da Coleção Prinzhorn de Heidelberg, e da Ah vem minha bela para meus braços e beija-me, e iremos
Clínica Psiquiátrica da Universidade de Berna. e vem minha beleza andaluza, vem e me deixa desposar-te
e sejas a minha bela a bela adormecida
e vem minha bela vem para meus braços e beija-me
Os textos de Müller dividem-se em dois grupos: por um la- Ah sej as a bela. . . que eu busco com um sorriso fingido
do, textos completos de redação cuidadosa, como Républíque e vem para meus braços vem e beija-me
La Libre; por outro lado, fragmentos, visivelmente rascu- Ah minha bela sejas o encanto e a beleza que eu amo
nhos e projetos, como Ah viens ma belle . .. Ah vem para meus braços minha bela vem e beija-me.

Esses textos foram reproduzidos neste catálogo como exem- E sej as minha beleza e minha grandeza com um sorriso
[fingido
plos. A versão original, em francês, contém vários erros de
o encanto de tua beleza e espalha sobre mim nossa vida de
ortografia. A pontuação de Müller foi mantida.
[sofrimento e esperança.
Vem minha bela para meus braços' e beija-me
Vem minha bela para meus braços e beija-me.
République La Libre
Ah vem minha bela em teu sorriso e tua beleza o certo
A república Livre, Parcialmente Despedaçada ou o Passo em [sonho secreto
Falso do Sonâmbulo Adormecido. É um choque absoluto de tua afeição e harmonia será reunido num emblema de
incompreensível e sem relação com nós mesmos, é um se- [ triunfo.
gredo, raça contemplativa às vezes eles têm várias idéias A beleza me disse que eras de Zorigny e que tinhas um
barrocas lêem a sorte também parecem magos são altos e [ sorriso
magros como os ingleses altos e magros têm idéias imagino- como o de uma Fada. Que alguém poderia tornar-se ...
sas. Nem todos são loucos mas dificilmente precisariam ser
de qualquer forma é um erro. Ti-ti-ti-tru-Iá-Iá. A beleza era estranha e quando veio a noite
ela lançou uma sombra misteriosa sobre a relva.
Oh!! Oh!!! Oh Que erro, entre em minha alegria, (Fragmentos extraídos do verso de Figura com cabra e rã.)
Oh!!! Oh Bela República Livre Parcialmente Despedaçada (De Another W orld: W olfli) Alo'ise) Müller) Glasgow, 1978.)
Oh!!! Oh Bela República Livre O Passo em Falso do So-
nâmbulo Adormecido sejam meus amores. (Tradução de Aldo Bocchini Neto)

5. SENHORITA MARIANA. PAPAI PAPA-DEFUNTO 6. CABEÇA DE HOMEM

87
Octávio Ignácio

Nasceu em Minas Gerais, em 1927. 2. SEM TíTULO, 1974


Faleceu no Rio de Janeiro, em 1980. Lápis de cera sobre papel, 55 x 36,5 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

3. SEM TíTULO, 1975


Lápis de cera sobre papel, 55,4 x 36,8 cm
Obras apresentadas: Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

1. SEM TíTULO, 1968 4. SEM TíTULO, 1976


Óleo sobre papel, 33 x 48 cm Lápis sobre papel, 48 x 33 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

1. SEM TíTULO, 1968


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

88
Nasceu em Chipre, em numa família 12
dos quais era o penúltimo. para Londres em onde tra·· x 20,5 em
balhou e aprendeu os ofícios de alfaiate e cozinheiro . .LJ<.'.L<C<J. .Ll'--

guerra, serviu na Aérea britânica no Norte da 3. FANTASMAS NEGROS NA SELVA


Itália e em Malta. De volta a acabou tornando-se
Caneta h1Clro;gratlca, 12 x 20,5 em
da na T ate Gallery) e começou a desenhar por volta de
Desenvolveu três ou quatro estilos
fantásticas atividades de seres aves e criaturas unaglna- 4. ALEGRIA NA SELVA
nas num ambiente semelhante à selva. Vive Caneta h1<:1rc)gratlca, 10 x 20 em
é casado e tem dois
ESPECTRO VERMELHO NA SELVA
Caneta hlclrogra.t1Ca, 10 x 20 em
Obras apresentadas:

1. PÁSSARO AMARELO NA SELVA PÁSSARO ExóTICO NA SELVA


Caneta hlclro,grátlCa, x 1 cm Caneta 12 x 20,5 cm

6. PÁSSARO EXóTICO NA SELVA


Foto: .Jos{> Augusto Varella/José Roberto Cecato
Nasceu em São 6. SEM TíTULO, 1949
Faleceu no Rio de Nanquim sobre papel, 47 x 32 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

7. SEM TíTULO, 1949


Nanquim sobre papel, 35 x 27 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente

8. SEM TíTULO, 1949


Nanquim sobre papel, 47 x 31 cm
Coleção do Museu de Imagens do Inconsciente
-'-"-U«S'_Li" do Inconsciente

32 x 24 cm
de do Inconsciente

-'-llla",\~ll'" do Inconsciente

11. SEM TíTULO, 1950


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato
Nasceu em 1892. Nunca foi à escola, tendo aprendido um pouco
de leitura já adulto. Em 1912, começou a construir a Casa da entre os COmc)d()s,
Flor, em Baixo Grande, a meio caminho entre São Pedro d'Aldeia tudo está coberto
e Cabo Frio, num terreno que pertencia a seus pais desde 1899. bord~ld()s que nascem em massa ou por ela se
Gabriel fez todo o trabalho sozinho e deu a casa por pronta em
tram numa sucessão extravagante de incontáveis nichos.
1923. De 1980 a 1955 trabalhou nas,~alinas, com um intervalo
de 1914 a 1917, época em que trabalhou no Rio de Umas poucas e seletas uma alta cama
Vive na Casa da Flor e encontra-se quase cego. de a quase nada se resu-
do espaço. Mas ele vibra
Em São Paulo, no tem tudo é a
da riqueza, mas casa caco não tem.

Não posso mais tratar direito da casa, estou entrevado da


mas tá na História.
o espaço ""h",'"+,, é quase nada mas não é tudo . Varrida
Não adianta mais, fico assim até n",.,nrir.
sol das
não estou com a
aU.lCU1.La,

Não tem mais llHll:',lJ.\..Cll1

meu tempo.

Varella e Ro-

A Casa da Flor

estou sonhando com


que coisa bo-
nita eu vi agora no

É só. mesmo por Deus que pode uma pessoa sem nada) sem
estudo, fazer uma coisa dessas na roça. se encontra
to, romper a curvatura do morro. Seu
A escada de pedra é com pensamento. nesses termos sabe decerto o quanto custou seu
e de nos transporta a seu estilo incomum
Eu sonho pra fazer uma flor caco de ",".u.al.a, eu vou construtor sem recursos. Como uma de
zendo. como um quebra-cabeças, como um mosaico reciclado
suas mãos pacientes, a casa "todazinha armadinha" foi
Eu só. Carregava madeira, carregava carregava feita cacos de coisas ele mesmo apa-
carregava areia. nhou no recebeu de presente. de pratos, azu-
cobocós ou cerâmicas o homem
Eu faço isso por pensamentos e sonhos. Eu sonho pra com
e faço.

A casa feita de caco tra.nstor'm~lda em Gabriel Santos é um artista U\..C;'Lial"-V


não teve um mestre, não viu televisão nem traba-
As cores fazia encarnadinhas, diversas cores. na enxada e nas sempre viveu no interior e só
de adulto muito mal,
Eu gosto de estar aqui porque me
com Deus imaginando aquelas coisas que eu tenho de

Eu penso que pra mim eu sou artista. Sou um artista.

o uma casinha de
anões. três
o sol bem firme no céu puro, recebem
luz, seja por duas portas de
eventuais entre as grandes telhas escuras.
curtido pelo o telhado na
de barro, é feito movimentos e ondas como o
corpo um bicho. Desce tão em vários pontos,
a cabeça de um homem normal o
penumbra que no di-
zer de seu - os olhos se e
esmerou em infinitos detalhes ou ainda às

91
Gabriel dos Santos na sala da Casa da Flor, 1981
Foto: José Roberto Cecato

Nicho externo
Foto: José Augusto Varella

92
Parede do quarto de Gabriel Nome da Casa da Flor inscrito na fachada
Foto : José Augusto Varella Foto: José Roberto Cecato

. que executou com "tintazinhas" antes de dar por concluídas de preferência às próprias mãos calejadas. O caráter gestual
as "paredezinhas" da casa. desabrido percorre assim toda a obra desse pedreiro-escultor.
Em seus volumes modelados com verdadeiros afagos é pos-
"Eu sonho para fazer uma flor de caco de garrafa, eu vou sível notar então as pulsações de uma vida; a casa tem um
fazendo. Se tiver o material, no outro dia eu vou fazer. E corpo - parece ter um corpo lambido pelo sol das salinas,
se eu tiver ele assim, se eu sonhar que está uma coisa bo- parece contorcer-se e vibrar e sorrir com extremo langor de-
nita, que está um ramo de flor, tendo o material no outro pois de absorver a energia do velho que a tirou simplesmente
dia eu vou fazer tal e qual eu conforme sonhei". do seu amor pela massa. À força da riqueza, que erigiu as
cidades, contrapõe-se na dialética de Gabriel a força bruta
A história da casa também começa com um sonho que Ga- do nada. E ao caráter gestual/sensual, como é freqüente,
briel ainda se lembra de ter tido em criança - mas por contrapõe-se a imersão no espaço infindo da alma que o leva
enquanto apenas desejando fazê-la - e chega a um primeiro a conceder ao incógnito a própria emanação de seus dons:
estágio concreto em 1912, quando, com 20 anos, ele lançou "É só mesmo por Deus que pode uma pessoa sem nada, sem
suas bases. "Eu só. Carregava madeira, carregava pedra, car- estudo , fazer uma coisa dessas na roça" .
regava barro, carregava areia". Desde 1899, data lembrada
com destaque numa das muitas inscrições que estão gravadas
na massa, o terreno já pertencia a seus pais, cuja velha casa Trechos de A CASA DA FLOR
ainda se ergue ao lado da que Gabriel construiu. A obra so-
freu porém uma interrupção de alguns anos, quando a luta
pela sobrevivência o engolfou, e só em 1923 o obstinado Texto final: Leonardo Fróes
artesão a deu por pronta. O enriquecimento paciente da de- Pesquisa: Mariliah de Castro Oliveira
coração pelos sonhos se arrasta depois disso pelos anos afora Fotos: Lena Trindade, Amélia Zaluar e Regina Fróes
e até as décadas recentes há o registro escrupuloso das datas Produção e Arte Final: Waldemar Soares
a indicar a execução de alguns pormenores . Direção de Arte : Eurico Abreu

"Aqui é lugar de muito sossego, de muita calma. Eu gosto Co-edição:


de estar aqui porque me ponho aqui sozinho; só com Deus , ESTADO DO RIO DE JANEIRO
imaginando aquelas coisas que eu tenho de fazer. Esse altar SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO E
significa um guarda-livros, eu tenho aqui minhas coisinhas CULTURA
guardadas, aqui faço tudo que eu penso na minha idéia". DEPARTAMENTO DE CULTURA
INSTITUTO ESTADUAL DO LIVRO
Para fazer suas paredes lavradas, os sentidos conglomerados INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO
de cimento e garrafas, os cachinhos retorcidos de uva, as CULTURAL
açucenas, os "bordados de cacos de louça brasileira e azule- FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE - MEC -
jos brancos" - ele quase não usou ferramentas, recorrendo FUNARTE 1978.

93
Escadaria de acesso à casa
Foto: José Roberto Cecato

Pormenor do muro da casa


Foto: José Roberto Cecato

94
Nicho externo na parede lateral
Foto: José Roberto Cecato

A sala da Casa da Flor


Foto: José Roberto Cecato

95
Hans Scharer

Nasceu em 1927, em Berna. Completou o ginásio em Berthoud. 2. A ORAÇÃO PERIGOSA, 1978


Viveu em Paris de 1949 a 1956. A partir de 1956, vive e tra- Água-forte realçada por aquarela, 57 x 38 em
balha em St. Niklausen (LU).
Scharer é au todida ta e expõe seus trabalhos desde 1951. São as 3. O CAVALEIRO, 1978
seguintes suas exposições mais recentes: Água-forte realçada por aquarela, 57 x 38 em
1974 Gemeindegalerie Emmen (LU) 4. ENTÃO O VENTO ... , 1978
Galeria Arben-Art, Zurique Água-forte realçada por aquarela, 57 x 38 em
"Rapport der Innerschweiz" , Helmhaus Zurique

1975 Galeria Anton Meier, Genebra-Carouge 5. O MÁGICO DE OZ, 1978


Água-forte realçada por aquarela, 57 x 38 em
1976 Galeria Elisabeth Kaufman, Olten
Galeria Stahli, Zurique 6. O RETORNO, 1980
Colagem, guache e tinta sobre papel, 70 x 50 em
1977 Galeria Anton Meier, Genebra
7. ESPÉCIE DE ENCONTRO APOSTRÓFICO, 1980
1978 Galeria Anton Meier, Genebra Guache sobre papel, 70 x 50 em
1980 Galeria Anton Meier, Genebra
8. RECORDAÇÃO ENCLAUSURADA, 1980
1981 Galeria Stahli, Zurique Colagem e guache sobre papel, 70 x 50 em

9. A SENHORA SE ESCONDE, 1980


Obras apresentadas: Colagens, guache e tinta sobre papel, 70 x 50 em

1. A VISITA, 1978 10. ÁGUA JOVEM, 1980


Água-forte realçada por aquarela, 57 x 38 em Colagens, guache e tinta sobre papel, 50 x 70 em

Tudo, nas "madonas" de Scharer, contribui a designá-las co- mesmo tema, ou temas aproximados, são tão-somente o re-
mo objeto de culto; certamente, o tema mítico do ídolo verso narrativo, burlesco, eventualmente pornográfico; pro-
maléfico, da feminilidade aspiradora e devorante, mas, igual- fano, poder-se7ia dizer.
mente, o primitivismo das figuras, cuja carga simbólica con-
centra-se em determinados pontos, tais como os olhos, a E, ademais, há o local em que percebemos essas imagens, e
boca, o sexo. A imagem é frontal, simétrica e retira uma mormente a maneira de percebê-las. Com efeito, não sabe-
parcela de seu poder de sua substância material e colorida. ríamos descarregar facilmente nosso modo estético de apreen-
Longínqua, porém, subtrai aos olhares, como uma máscara der a obra de arte, nem esquecer que substituímos sua an-
ou até mesmo um relicário, sua verdadeira natureza, pois tiga utilidade ritual por seu valor representativo, expressivo,
sua presença importa muito mais do que o fato de ser olha- e, a seguir, econômico . Scharer brinca com esse desvio, com
da. Aliás, o modo do pintor trabalhar suas "madonas" de- essa distorção entre a finalidade fingida de suas madonas e
pende, ele próprio, do ritual: extremamente lento, repetiti- seus efeitos previsíveis ou reais, e o faz conscientemente,
vo, entrega-se como dissimulação, superposições sucessivas parece, para não dizer por ironia ou até mesmo zombaria.
com o objetivo de captar o poder da imagem, ao mesmo tem- Decididamente, essas madonas não têm poder; têm, por ou-
po em que o conjura. Scharer, dizem, chegou ao ponto de tro lado, o mérito de devolver-nos a imagem certamente
enterrar ou imergir algumas de suas "madonas", tão insu- suntuosa, mas inquietante e clara, do culto secularizado, per-
portáveis estas tinham se tornado para ele. vertido, alienante, de que são, no nosso entender, o objeto .
Nessas circunstâncias, o ídolo malfeitor é a própria imagem!
Diante de tais imagens, a nostalgia dos ídolos deveria des-
pertar em nós. Nada deveria impedir-nos de ter medo, de Scharer, de ascendência huguenote, é de uma certa forma
ceder a seus malefícios, ou de experimentar suas virtudes iconoclasta. Aliás, suas imagens mais fortes encontram-se
purificadoras. Estimulantes para o inconsciente, seria dese- inscritas por ele num caderno de uso pessoal, ao lado de
jável que servissem de exorcismo ou de exutório aos nossos seus poemas.
fantasmas. Todavia, infalivelmente, descarrega-se o explosi-
vo, o sortilégio rompe-se sempre, a cerimônia é perturbada . Edmond Charriere
É que Scharer, como se pode verificar, não pinta apenas ma-
donas; suas aquarelas e desenhos, apesar de veicularem o (Tradução de Martina G. B. Ognibene)

96
3. O CAVALEIRO, 1978

/ . FSPr:CIE DE ENCONTRO APOSTRóFICO

97
Sebastião

Nasceu em 1916. 3. SEM TÍTULO, 1950


Era funcionário de escritório. Óleo sobre papelão, 37,8 x 47,2 cm
Coleção Mafalda Caminada, São Paulo

4. SEM TÍTULO, 1950


Guache sobre cartão, 23,9 x 17,7 cm
Obras apresentadas: Coleção Paulo Fraletti, São Paulo

1. A úLTIMA CEIA, 1950 5. SEM TÍTULO, s.d.


Guache sobre papel, 20,6 x 26,9 cm Guache sobre cartão, 23,8 x 17,9 cm
Coleção Mafalda Caminada, São Paulo Coleção Paulo Fraletti, São Paulo

2. SEM TÍTULO, 1950 6. SEM TÍTULO, s.d.


Guache sobre papel, 18,9 x 16,8 cm Guache sobre cartão, 23,8 x 17,7 cm
Coleção Mafalda Caminada, São Paulo Coleção Paulo Fraletti, São Paulo

4. SEM TÍTULO, 1950


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

98
Robert T atin

Nasceu em LavaI, na França, em 1902. Obras apresentadas:


Dedicou-se a várias profissões até iniciar sua produção de cera-
mista, depois da Segunda Guerra, em Paris. Tatin esteve no 1. SEM TÍTULO, 1951
Brasil em 1951; em São Paulo, continuou seu trabalho com ce- Terracota pintada, 35 cm (diâmetro) x 30,5 cm
râmica. A partir de 1962 começou a construir, na França, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Étrange Musée) um museu todo em pedra e cimento . A constru-
ção não será dada por acabada enquanto Tatin estiver vivo e 2. SEM TíTULO, s.d.
puder continuar a transformar seus sonhos em realidades de pe- Terracota pintada, 30,3 cm (diâmetro) x 12,5 cm
dra e cimento. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Tatin Robert é um artista francês que se enamorou da natu- As peças que Tatin Robert vai agora expor na Athena, rua
reza, das coisas e dos costumes do Brasil. É um ceramista Barão de Itapetininga, nesta semana, são estilizadas com te-
de grande talento e sensiblidade. Vive e trabalha em São mas de nossa natureza e folclóricos.
Paulo. No ano passado, expôs nesta cidade várias peças de
sua cerâmica, tendo sido muito bem recebido pelo público. A nossa vegetação e os nossos folguedos populares estão
dando motivos para a arte de Tatin Robert. Ele é um poeta
A arte de Tatin Robert vai além da simples técnica da cerâ- do barro sensível e romântico . Suas peças são de formas es-
mica: ela pertence também à escultura. quisitas com desenhos e cores harmoniosas que muito nos
emocionam .
o artista cria em suas peças formas e linhas que são mais
do domínio da escultura do que propriamente da cerâmica. Osório César
Há também uma matéria bonita de cor pastosa que o artis-
ta-artesão emprega em seus trabalhos. Folha de S. Paulo ) 14 de março de 1951

1. SEM TÍTULO 1951 2. SEM TÍTULO, s.d.


Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato Foto: José Augusto Varella/José Roberto Cecato

99
Oswald

Nasceu em Perchtoldsdorf (Viena), em 1920. Obraj' apresentadas.


Fez estudos em seminário e concluiu o curso colegial com dis-
tinção. Com a eclosão da guerra, não pôde estudar teologia como 1. DUAS PESSOAS AJOELHADAS, 1971
desejava. Fez dois semestres de química e, convocado para o Ser- Pena e nanquim sob're papel, 21 x 15 em
viço Militar, o Serviço de Informação do exército
alemão. Esteve na Rússia no final da guerra 2. 1972
tornou-se pnslOneiro dos franceses. Ao voltar, em 1946, deu Pena e nanquim sobre papel, 21 x 15 cm
mostras de comportamento esquizofrênico e foi internado num
hospital psiquiátrico. Começou a desenhar por sugestão de sell
terapeuta, o Dr. Leo Navratil.
Vive ainda internado, em Klosterneuburg, na Áustria. 3. PESSOAS AJOELHADAS, 1972
Pena e nanquim sobre papel, 21 x 15 em

4. DESEJO SER CARREGADO NUMA LITEIRA, 1972


Pena e nanquim sobre papel, 21 x 15 cm

5. MULHER SENTADA COM CRIANÇA NO 1972


Pena e nanquim sobre papel, 15 x 10,5 em

6. MANTO PROTETOR DA MADONA, 1972


Pena e nanquim sobre papel, 21 x 15 cm

7. O JUÍZO 1972
Pena e nanquim sobre papel, 21 x 15 em

8. DUAS PESSOAS DANDO-SE AS t97!


Pena e nanquim sobre 21 x 29,5 cm

9. UMA ÁRVORE DE NATAL, 1971


Pena e nanquim sobre papel, 21 x 29,5 cm

10. PESSOA DORMINDO, s.ei.


Pena e nanquím sobre 21 x 15 em
Foto do autor, 1981

~. DESEJO SER CARREGJ\DO NUMA LITEIRA, 1972 ). MULHER SENTADA COM CRIANÇA NO COLO. 1972

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100
Jakim V olanhuk

Nasceu na Ucrânia, em 1900. Em 1927, emigrou para o Brasil,


radicando-se em São Paulo, no bairro da Moóca, onde, durante
muitos anos, exerceu a atividade de sapateiro.
Em 1939, deu início à construção do Museu de Jesus) projeto de
instituição universal, que congregaria todas as religiões e todos
os povos. Em 1952, após uma visão mística, o Museu de Jesus
foi transformado em Simitério do Adão e Eva.

Inscrições em tabuletas (fachada)


Foto: José Augusto VarellalJosé Roberto Cecato

Mapa do mundo na fachada


Foto: José Augusto

1
Interior do Simitério do Adão e Eva
Foto: José Augusto Vatellal.Tosé Roberto Ceeato

Interior do Simitério do Adão e Eva


Foto: José Augusto Varellal.Tosé Roberto Ceeato

1
August

Nasceu em Klosterneuburp (Viena), em 1936. 3. AV(') E SUA MÃE ]OSEFA ROSINA STARK WALLA, s.d.
Estudou numa escola comum até os nove anos e a seguir numa Lápis sobre papel, 30 x 40 cm
escola especial, devido a uma perturbação psicótica. Vive com a
mãe, mas necessita de cuidados psiquiátricos contínuos. Seu tra-
balho artístico e sua múltipla produtividade foram reconhecidos, 4. CÃO E RINOCERONTE, 1972
primeiramente, por seu terapeuta, o Dl'. Leo Navratil, que expôs Lápis sobre papel, 22 x 30 cm
e divulgou suas obras.
Vive na Áustria.
5. PAI NOSSO, s.d.
Caneta esferográfica, lápis de cor e aquarela sobre cartão,
Obras apresel1ladas. 30 x 30 cm

s.d. 6. DINHEIRO, MARCO, DEUS, s.d.


40 x 30 cm Pena e tinta, lápis de cor e aquarela sobre papel, 21 x 28,5 em
2. BASEADO EM HENRI ROUSSEAU. SONHO DE
1977 7. AMOR s.d.
30 x 40 em Lápis de cor, caneta esferográfica carimbo papel, 21 x 28,5 em

104
3. !\\ ' () I: Sl 'i\ \1.\ L .lOS!:\ i\ Sl i\I \ ~ \\ .\LLA, s.d.

105
Nasceu em Glasgow, Escócia, em 1980. 3. LAGOA COM PENSAMENTOS EM FLOH
Fugiu da escola aos nove anos, trabalhou numa banca do mer- Tinta e pastel, 38 x 28 em
cado e foi para o exército aos 16 anos. Tinha mais de 40 anos
quando, num ferro-velho que dirigia em Toronto, come- 4. O ESPELHO DO
çou a desenhar. Suas primeiras imagens eram intensas e retratam Tinta e 38 x 28 em
de forma estilizada a luta entre forças criativas e destrutivas.
Tinha uma visão poética e, mais do que isso, criou sua própria 5. A MANDALA DA FLOR
cosmogonia, em que as forças do bem finalmente - em sua obra Tinta e 39,5 x 39 cm
posterior triunfam sobre o mal. Era inteiramente original e,
embora seus trabalhos fossem em mui tas galerias fa- 6. CALMO COM CISNES
mosas, resistiu obstinadamente comercial. Há obras Tinta e pastel, 28,5 x 33 em
suas nas permanentes da do Musée D' Art
Modeme de e no Museum of Modem de Nova Y ork. O SOL E A ÁRVORE
F aleeeu em em Londres.

8. VILA ENCANTADA COM VIVEIRO DE PEIXES


Obras apresentadas: Tinta e 36 x cm

1. FONTE DO PÁSSARO EM BRANCO E PRETO 9. CASTELO MÁGICO NO ESPELHO


31 x 25 em Tinta e 54 x 40 em

2. 10. ÁRVORE DA VIDA


38 x 28 em Tinta e 60 x 47 em

6. CALMO COM CISNES

1
Adolf W olfli

16. A úRSULA NO MOSTRADOR DO RELóGIO DA


TORRE GIGANTE, 1920
Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22,5 em

17. NELLY - A PRINCESA REAL DE LION HALL, 1920


Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22 em

18. A COBRA RADEK, 1920


Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22 em

19. O GIGANTE DA CIDADE DE 1920


Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22,5 cm

20. GRANDE - GRANDE RAINHA MALITTA DA


1920
Lápis e de cor, em

21. AS PERAS DE SANTO 1920


e lápis de cor, 33,5 x 22 cm
Obras apresentadas:
22. UPSALA, E 1920
1. LISELI BIERI! MORTA, 1904 Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22 em
Composição em duas páginas, a; lápis e lápis azul, 75 x 100 em
23. SANTA 1920
2. DE DEUS COM AVENTAL DE 1904 cor, x 22 em
Composição em duas páginas, b; lápis e lápis azul, 75 x 100 em
24. SANTA LITTLE BUTTES NA AMÉRICA DO
3. ROSALINDA A COBRA GIGANTE, 1904 1920
Lápis, 75 x 100 em Lápis e lápis de cor, 33,5 x 22 em

4. A TAÇA DE MILLER, 1905 25. O BANCO DE SANTO ADOLFO, 1921


Lápis, 75 x 100 em Lápis e lápis de cor, 68 x 51 cm

5. GARRAFA DE LEITE, 1912 26. A COBRA DE FOGO DO OCEANO 1921


Lápis e lápis de cor, 88 x 58 em Lápis e lápis de cor, 35 x 44 em

6. PROPULSOR A VAPOR, 1919 27. CASA DE BANHO KEMMERI CASCATA SANTO


Lápis e lápis de cor, 31 x 47 em ADOLFO, 1926
Lápis e lápis de cor, 63,4 x 77,1 em
7. PROPULSOR A VAPOR E GERADOR DE DÍNAMO, 1919
Lápis e lápis de cor, 31 x 47 em 28. O CINEMA DE SANTO ADOLFO, 1927
Lápis e lápis de cor, 66 x 78 em
8. O CHAPÉU DO GIGANTE DE DEUS COM O DE
SANTO ADOLFO, FONTE GIGANTE, 1917 29. MARGARINA
Lápis e lápis de cor, 38 x 50 em x 79,9 em
9. TRANSPARENTE, 1919
30.
Lápis e lápis de cor, 51 x 68 em cor e colagem, 44,7 x cm
10. O DEUS - PAI - GIGANTE - 1919
Lápis e lápis de cor, 51 x 68 em 1927
de cor, 58,5 x 78 cm
11. RODA DE MOINHO PERTO DE BAHN NA PARTE
SUPERIOR DO VALE EIFISCH, 1917 32. A CATEDRAL DE SANTO 1921
Lápis e lápis de cor, 29 x 22 em e de cor, 150 x 100,5 cm

12. LARANJEIRA. FLORESTA DO CASAMENTO NA 33. A CORRENTE DO AMAZONAS E O SALÃO DO


ÁFRICA, 1920 1911
Lápis e lápis de cor, 34,5 x 21 em cor, (IV /p. 403) 100 x 144 em

13. VIRGEM MARIA E MENINO 1920 34. SUDESTE DO AMAZONAS SALÃO DO Á.uU.Á.l.'-4''--'"

Lápis e lápis de cor, x 31,5 em 1911


e lápis de cor, 407) 100 x 144 em
14. O SALÃO DO SUL DE ATLANTA, O ANEL DE
SANTO ADOLFO, 1920 35. O LAR DE SANTO CIDADE GIGANTE
Lápis e lápis de cor, 34 x 25 em SOBRE A ESTRELA 1911
em
15. WALLHALA E WALLGUNDA, 1920
Lápis e lápis de cor, x 22 em J.-'-"'.... u.y"''-' de Maria

107
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10. O DEUS PAI -- GIGANTE 1919

109
110
Adolf Wülfli nasceu em 1864, no distrito de Emmenthal, Adolf Wülfli tornou-se famoso por seus desenhos . Com ex-
cantão de Berna. Era o último de sete filhos. A família mu- ceção de alguns trechos, sua extensa obra narrativa continua
dou-se para Berna, cujas características físicas provocaram desconhecida. É composta de 44 livros ilustrados (20.000
forte impressão sobre Wülfli. A forma de peixe do traçado páginas com mais de 1.400 desenhos e mais de 1.500 cola-
da cidade aparece em muitos de seus desenhos. gens) contendo textos épicos, poemas escritos em dialeto,
poemas sonoros e composições musicais.
Por volta de 1870, o pai de Wülfli, pedreiro, abandonou o
lar e a mãe teve de trabalhar como lavadeira para sustentar Nos primeiros anos da psicose, Wülfli era violento, agitado e
os filhos. Em 1872, quando a mãe adoeceu, a família foi sofria graves alucinações. Com freqüência tinha de ser iso-
mandada de volta para Schangnau, no distrito de Emmenthal, lado dos outros pacientes. Desenhar e escrever o acalmavam
onde o poder público lhes deu uma moradia. Wülfli ficou bastante, mas até morrer sofreu alucinações e sempre disse
separado da mãe, que faleceu pouco tempo depois. que ouvia vozes. Puseram-no num quarto pequeno, parecido
com uma cela - cujo teto empapelou com um enorme de-
A partir de então, Wülfli trabalhou como empregado para senho - , onde podia trabalhar sem ser interrompido (for-
vários agricultores que lhe davam abrigo, e nesse período neciam-lhe papel e lápis), e onde não perturbava os outros
sofreu graves privações. Sua inclinação anormal por garoti- pacientes ao tocar suas composições em cornetas de papel
nhas levou-o à prisão, numa condenação por tentativa de enrolado. Além de funcionar como mecanismo regulador
estupro de duas meninas: uma de 14 e outra de 5 anos . contra as forças caóticas e destrutivas da auto-alienação es-
quizofrênica, sua atividade artística possuía também a fun-
Em 1890, foi para a penitenciária de St. Johannsen e, depois ção não-artística de permitir-lhe reter sua identidade. C. G .
de solto, em 1892, trabalhou como assalariado em Berna e Jung dá a isso o nome de mandala - uma "zona de preser-
lugares próximos. vação" contra os estados mentais. Aparecem muitas compo- .
sições de mandala na obra de Wülfli e em todas as ilustra-
Em 1895, Wülfli foi preso novamente, por outra tentativa ções de seqüência cíclica: ordem - agitação e confusão -
de estupro, agora contra uma menina de 3 anos, e internado caos - alívio.
no hospital psiquiátrico de Waldau, em Berna, onde sua
doença foi diagnosticada como esquizofrenia. Wülfli perma- • A importância da obra de Wülfli foi reconhecida pela pri-
neceu nesse hospital até 1930, quando morreu de câncer. meira vez por Walter Morgenthaler, médico de Wülfli du-
rante oito anos. Já em 1921, um ano antes da publicação do
livro de Prinzhorn, Bildnerei der Geisteskranken (Trabalho
"Naturalista, poeta, escritor, desenhista, compositor, cam-
Criativo dos Doentes Mentais), Morgenthaler publicou uma
ponês, ordenhador de vacas, pau-para-toda-obra, jardineiro,
extensa monografia sobre a vida e a obra de Wülfli, com o
estucador, pedreiro, ferroviário, diarista, amolado r de facas,
corajoso título de Ein Geisteskranker aIs Kunstler (Um
pescador, barqueiro, caçador, prestador de serviços temporá-
Doente Mental como Artista), com nome e fotografias do
rios, coveiro e soldado do 3.° Grupo de Combate da 3.a Com-
paciente. Até hoje esse trabalho sobre Wülfli exerce influên-
panhia do Batalhão de Emmenthal. Salve!" 1
cia sobre muitos artistas. Depois de ler o livro, em 1921, o
poeta Rainer Maria Rilke escreveu a Andreas Salomé:
"Santo Adolfo lI, Mestre de Álgebra, Comandante~em-chefe
"( ... ) O caso de Wülfli ajudará a compreender definitiva-
dos militares e Diretor Geral de Música, Diretor do Teatro
mente a natureza da criatividade, e contribuirá para a acei-
Gigante, Capitão do Gigante Vapor Todo-Poderoso e Dou-
tação inortodoxa, porém cada vez maior, de que muitos
tor de Artes e Ciências, Diretor da Companhia de Produção sintomas de doença mental devem ser incentivados, pois re-
de Livros de Álgebra e Geografia e General dos Fuzileiros.
presentam o meio pelo qual a Natureza busca recuperar os
Inventor de 160 invenções originais e extremamente valio-
seres que se alienaram". Na década de 1930, o grupo de
sas, patenteadas para todo o sempre pelo Tzar russo, e ale-
surrealistas que se reunia em torno de André Breton dedi-
luia! glorioso vencedor de muitas batalhas violentas contra
cou mui ta atenção ao trabalho de W ülfli. Em 1945, Jean
os Gigantes." 2
DubuHet visitou a Coleção Waldau, e sua familiaridade com
a obra de Wülfli foi o impulso decisivo para a fundação da
Foi só depois do começo da doença mental que Adolf Wülfli Compagnie de l'Art Brut (1948), que contém grande núme-
- camponês inculto, exemplo perfeito de esquizofrenia cria- ro de obras deWülfli . Todos os bens artísticos de Wülfli
tiva - produziu sua obra, que cativa e fascina pela alta qua- - a Coleção W aldau, a Coleção Morgenthaler e todos os
lidade da criação pictórica, poética e musical, e pelo enorme seus escritos - estão hoje no Bern Kunstmuseum . A Fun-
alcance dos trabalhos. A transposição de elementos biográfi- dação Adolf Wülfli assumiu a responsabilidade de investigar
cos para o campo do mito imponente (Wülfli como diabo; cientificamente e publicar a obra gráfica e poética de Wülfli.
como divindade e figura crucificada; baladas e caricaturas
de fundo sexual agressivo; viagens alucinatórias pelo cos- Elka Spoerri
mo; tudo entremeado de canções folclóricas) é uma caracte-
rística da obra de Wülfli, em que o compreensível coexiste
irreconciliavelmente com o incompreensível, o banal com o
profundo. O que seduz ou repugna o observador é exata- I Adolf Wülfli: trecho de Do Berço ao Túmulo, 1908-1912.
mente essa justaposição de eventos espantosos com a narra- 2 Adolf Wülfli: trecho de Marcha Fúnebre, 1929-1930.
ção autobiográfica de uma vida trágica, acompanhada de um
humor sutil, pueril e incontrolável. (Tradução de Aldo Bocchini Neto)

111
Anna Zernánková

Nasceu em 1901. 3. SAUDACÃO III


Vive em Praga, na Tchecoslováquia Técnica ~1ista, 45,2 x 31 cm

4. PÁSSARO I
ObrtlS apresentadas. Técnica mista, 29,8 x 21 cm

1. SAUDACÃO T 5. PÁSSARO II
Técnica 1;1ista, 45 x 33 cm Técnica mista, 28,8 x 14,9 cm

2. SAUDAÇÃO JI 6. PÁSSARO III


T~cnjcl misLl, 45 x 31,5 cm Técnica mista, 29,8 x 21 cm

112
6. PÁSSARO IH
Foto: José Augusto VarellalJosé Roberto Cecato

1. SAUDAÇÃO I
Foto: José Augusto VarellalJosé Roberto Cecato

113
SUMÁRIO

A Bienal e os Artistas Incomuns 7


The Biennale and Outsider Art 9
Apresentação 11
Preface 15
Cosmogonias outras 19
Outsider Cosmogonies 26
Lugar ao Incivismo 33
A Experiência do Engenho de Dentro 36
A Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri 41
A Inspiração Artística entre os Normais e os Alienados 44
A Arte dos Loucos 47
A Arte é um Anti-Destino 48
Wolfli, Alolse, Müller 49
Adelina 53
Albino 54
Alolse 55
An tônio Poteiro 57
Antônio Sérgio 60
Aurora 61
Carles-Tolrá, Ignácio 62
Carlos 64
Emygdio 66
F acteur Cheval 67
Farid 71
Fernando 72
Gill, Madge 73
G.T.O. 74
Hauser, J ohann 76
Heil, Eli 78
Isaac 81
Jaime 82
Müller, Heinrich Anton 86
Octávio Ignácio 88
Periphimous, A.G. 89
Raphael 90
Santos, Gabriel dos 91
Schãrer, Hans 96
Sebastião 98
Tatin, Robert 99
Tschirtner, Oswald 100
Volanhuk, Jakim 102
Walla, August 104
Wilson, Scottie 106
Wolfli, Adolf 107
Zemánková, Anna 112
FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO

Francisco Matarazzo Sobrinho (1898/1977)


Presidente Perpétuo

Conselho de Administração Wladimir Amaral Murtinho


Luiz Diederichsen Villares Presidente Celso Neves
Ermelino Matarazzo Vice-Presidente Paulo Uchoa de Oliveira
Roberto Pinto de Souza
Pedro Piva
Membros Vitalícios Luiz Fernando Rodrigues Alves
José Humberto Affonseca Maria do Valle Pereira Rodrigues Alves
João Fernando de Almeida Prado João Baptista Prado Rossi
Francisco Luiz de Almeida Salles Manoel Whitaker Salles
Aldo Calvo José Maria Sampaio Corrêa
Antonio Sylvio da Cunha Bueno João de Scantimburgo
Justo Pinheiro da Fonseca Lauro de Barros Siciliano
Erich Humberg Victor Simonsen
João Leite Sobrinho Dora de Souza
Ema Gordon Klabin Érico Siriuba Stickel
Sábato Antonio Magaldi Edmundo Vasconcellos
Benedito José Soares de Mello Pati
José de Aguiar Pupo
Sebastião Almeida Prado Sampaio Conselho de Honra
Oswaldo Silva Oscar P. Landmann
Hasso Weiszflog Luiz Fernando Rodrigues Alves

Membros Eleitos
Diretoria Executiva
Armando Costa de Abreu Sodré
Luiz Diederichsen Villares Presidente
Maria do Carmo Abreu Sodré
Giannandrea Matarazzo 1.0 Vice-Presidente
Edgard Baptista Pereira
Albert Bildner Antonio Sylvio da C. Bueno 2.° Vice-Presidente
F ernão Carlos Botelho Bracher Robert Hefley Blocker
Oswaldo Arthur Bratke Pedro Paulo Poppovic
Wilson Dias Castejon David Zeiger t
Diná Lopes Coelho
Plínio Croce Conselho de Arte e Cultura
Rubens José Mattos Cunha Lima Walter Zanini Presidente
Aloysio de Andrade Faria Ulpiano Bezerra de Menezes
Marcio Martins Ferreira Paulo Sérgio Duarte
Dilson Funaro Esther Emílio Carlos
Lucas Nogueira Garcez Donato Ferrari
Cesar Giorgi Luiz Diederichsen Villares
Oswaldo Correa Gonçalves Casemiro Xavier de Mendonça
José Gorayeb
Otto Heller
Oscar P. Landmann Secretaria (;eral
Francisco Papaterra Limonge Neto José Francisco Quirino dos Santos
Ernest Gunter Lipkau
Roberto Maluf
Giannandrea Matarazzo Assistente da Presidência
Hélene Matarazzo para Relações Internacionais
José Mindlin J osette Balsa
Romeu Mindlin
José Geraldo Nogueira Moutinho
Coordenador do Setor de Arquivo e Publicações Equipe
Ivo Mesquita Antonio Milton Araújo
Jorge Francisco de Araújo
Arquivos Históricos Wanda Svevo
Ernestina Cintra Heronides Alves Bezerra
Antonia Massari Rizzardi F ernando Rodrigues Brandão
Marina de Brito Corrêa
Secretaria Edwino Ferrazin
Raphael Marques Hidalgo
Márcia Franco Bradfield José Maria Soares de Lima
Azael Leme de Camargo Luciano Gazola Mazini
Nina Hokka Eliando E. D. S. Santa Maria Mércia
Cleide Marinho de Oliveira ~milia Moreira
Marise de A. Nobrega Martins Tânia Nori Morelo
~laria Inês Garcia Sampaio
Lourival Dias de Oliveira
Vera Lúcia de Castro Ferreira e Silva Dalva Ribeiro Pascoal
Luiz Augusto dos Santos
Consultor Legal Gilberto de Macedo Silva
Oswaldo Fávero João Ferreira da Silva
J oel de Macedo Silva
Auditor José Leite da Silva
Alberto Bontein da Rosa Junior Maria Madalena Lima da Silva
Maria Sílvia Prata Pinto Morais (Assistente) Oswaldo Joaquim da Silva
Severino Barbosa da Silva
Manoel Alves de Souza
Contabilidade Armando Ricardo de Viveiros ·
Augusto Roberto Fudaba Luis Antonio Xavier
Armando Henrique Whitaker
Montagem
Guimar Morelo Conselho Fiscal
Waldemar Pereira da Fonseca
Alfândega Darcio de Moraes
Tercio Levy Toloi Walter Paulo Siegl
José Luis Archer de Camargo (Suplente)
Catálogo de Arte Incomum
Editora
Maria Otilia Bocchini
Diretor de Arte
Julio Plaza
Documentação e Catalogação
Ivo Costa Mesquita
Pesquisa
D. T. Chiarelli
Tradução
Mariarosaria Fabris (Coordenação para italiano, franês,
espanhol e alemão)
Aldo Bocchini Neto
Laurence Patrick Hughes
Maria Regina Ronca
Mário José de Araújo
Nartina G. B. Ognibene
Preparação de texto e revisão
Carlos Eduardo F. Carvalho
Mitsue Morissawa
Nilza Iraci Silva
Secretária Editorial
Neuza Marinho de Oliveira
Datilografia
Cleide Marinho de Oliveira
Ida Maria de Luiz
Fotografia
José Augusto Varella
José Roberto Cecato
Cartas
Cláudio Moschella
Composição
Linorat Ltda.
IMPRESSÃO p~"" INDÚSTRIA GRÁFICA lTDA.

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