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https://www.publico.pt/2014/12/14/culturaipsilon/noticia/duchamp-e-a-pintura-uma-
relacao-celibataria-1679391
Cultura-Ípsilon
ARTES

Duchamp e a pintura: uma


relação celibatária
Visto como aquele que matou a pintura e, desse modo, praticou o
gesto mais radical da história da arte do século XX, afinal nunca
deixou de pintar, como mostra uma exposição no Centro Pompidou,
em Paris.

António Guerreiro em Paris


14 de Dezembro de 2014, 17:53
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Em 1977, no último dia do mês de Janeiro, inaugurou com grande


pompa e muita polémica o Centro Georges Pompidou.

E para começar em grande e assinalar a sua rota futura oferecia a


primeira retrospectiva francesa de Marcel Duchamp (organizada por
Jean Clair e Pontus Hulten), que tinha morrido em 1968. O artista do
século XX que maior efeito produzira sobre a arte contemporânea, o
inventor dos readymades, era assim consagrado no seu país, com
algum atraso em relação ao que sucedera nos Estados Unidos, onde o
artista vivera bastantes anos da sua vida. Quase quarenta anos depois,
Duchamp regressou ao Beaubourg, mas desta vez para mostrar o que
na sua obra há de mais esquecido, escondido ou até improvável: a
pintura. A exposição, inaugurada no final de Setembro, tem como
título Marcel Duchamp - la peinture, même. É organizada por Cécile
Debray e encerra a 5 de Janeiro.

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Duchamp pintor não é um título evidente para aquele a quem se


imputa geralmente a responsabilidade – o acto mais cheio de
consequências para a história da arte do século XX – de ter
abandonado, recusado e matado a pintura; não parece consentâneo
com aquele que, cultivando o seu papel de anti-artista ou “anartista”,
colocou esta pergunta de iconoclasta: “É possível fazer obras que não
de sejam ‘de arte’?”. A sua resposta, como sabemos, foram
os readymades. A exposição mostra cerca de uma centena de desenhos
e pinturas, a maior parte delas pertencentes ao Philadelphia Museum
of Art, nos Estados Unidos. É certamente por essas obras nunca terem
sido exibidas na Europa que a percepção que temos de Duchamp está
muito afastada da experiência de um pintor. No entanto, aquilo que
Cécile Debray quis mostrar através desta exposição é que Duchamp
nunca abandonou completamente a pintura, mesmo depois de 1917,
data do seu urinol, Foutain, o seu readymade recusado pela primeira
exposição da Sociedade dos Artistas Independentes, em Nova Iorque.

Uma revisão
Evidentemente, a relação inicial de Duchamp com a pintura já era bem
conhecida. Mas, que, afinal, ao contrário do que ele próprio tantas
vezes proclamou, a tenha praticado até ao fim da vida, isso
corresponde a uma revisão da sua obra. E, até, a uma revisão de um
dos mitos fundadores da arte do século XX. O primeiro episódio desse
reclamado abandono foi traumático. Em 1912, Duchamp já tinha feito
um rápido percurso, em pouco mais de meia dúzia de anos, que o fizera
passar por quase todas as tendências estilísticas e movimentos
surgidos desde 1880, até chegar ao cubismo. O quadro que quis expor,
nesse ano, no Salon des Indépendants, Nu descendant l’escalier, nº
2 (havia uma versão anterior que era a nº 1) era uma experiência
cubista cujo título – mas não só - não agradou a outros cubistas. Todos
consideravam que era um título demasiado provocador e, através dos
dois irmãos de Duchamp que também eram artistas, tentaram
convencê-lo a alterá-lo.

O resultado foi uma recusa veemente e escandalizada, que deu lugar a


um drama familiar por os irmãos estarem implicados. Falando mais
tarde desse quadro, Duchamp disse que quis criar “uma imagem
estática do movimento”, baseado na ideia de que “o movimento é uma
abstracção, uma dedução articulada no interior do quadro (...). No
fundo, é o olho do espectador que incorpora o movimento no quadro”.
E acrescentou, falando dos cubistas: “Havia dois ou três anos que o
cubismo durava e eles tinham uma linha de conduta absolutamente
clara, direita, prevendo tudo o que devia acontecer. Eu achei isso
insensato, de tão ingénuo”. A sua aventura cubista tinha sido, assim,
passageira: “o cubismo interessou-me apenas durante alguns meses:
no final de 1912, já pensava noutra coisa. Era portanto uma forma de
experiência, mais do que uma convicção”, disse Duchamp numa das
suas entrevistas a Pierre Cabanne. Nos seus testemunhos tardios,
várias vezes insistirá neste episódio traumático de 1912, indicando-o
como causa original da sua ruptura com a pintura e com o cubismo. No
entanto, ele vai insistir posteriormente no programa de “desteorizar o
cubismo”. E quanto ao abandono da pintura, aí temos esta exposição
que mostra que as coisas não foram bem assim.

Na sequência desse episódio que o decepcionou, em 1912, partiu para


Munique decidido a traçar o seu próprio percurso para além da pintura
e dos seus limites. Quando regressou a Paris, lançou esta palavra de
ordem: “Marcel, acabou a pintura, procura trabalho”. Mas essa palavra
de ordem haveria de ser por várias vezes desmentida. Acrescente-se
ainda esta curiosidade que tem algum significado: na sua viagem para
Munique, Duchamp passou então por Basileia e, no museu, viu
quadros do artista suíço, simbolista, Arnold Böcklin (1827-1901) que
muito o impressionaram. Em Böcklin, viu ele uma reacção contra o
realismo, contra aquilo a que chamava a “pintura retiniana”, da qual,
dizia ele, o impressionismo e o fauvismo eram exemplos supremos,
fazendo apelo aos “olhos mais do que à matéria cinzenta”. Não é fácil
compreender este fascínio de Duchamp por um pintor simbolista,
alegórico, interessado pelos mitos antigos.

Um Duchamp reinventor da pintura mais do que o seu


destruidor, eis uma revisão surpreendente da sua obra que
lança um enorme desafio e obriga a uma releitura
cuidadosa de tudo – e é muito – o que sobre ele se escreveu

Ponto de chegada

A exposição que podemos ver no Centro Pompidou privilegia


sobretudo os anos que vão de 1910 a 1923, ou seja, o ano de La Mariée
mise à nu par ses célibataires, même, geralmente conhecido por Le
Grand Verre. Esta obra hermética esteve em gestação durante mais de
uma década e, em 1923, Duchamp decretou que ela tinha chegado ao
fim no estado de “inacabada”. Cécile Debray concede-lhe um estatuto
ambíguo: “Simultaneamente a negação e a sublimação da pintura
através de um quadro impossível”. Não podemos entender La Mariée
mise à nu... sem ter em conta esta afirmação: “Eu queria distanciar-me
do acto físico da pintura. Estava nitidamente mais interessado em
recriar ideias na pintura [...] queria colocar a pintura ao serviço do
espírito”. Sabemos a enorme fortuna que teve o Grand Verre para a
produção de conceitos e para as teorias sobre a arte. Basta lembrar as
“máquinas celibatárias” de Deleuze e Guattari. Thierry de Duve, por
sua vez, considerou que essa obra “faz o luto da pintura”, precipitado
pelo “nominalismo pictural” que o readymade encarna. O readymade é
assim visto como o acto pelo qual o abandono da pintura tem um
sentido completamente diferente de um simples cessar de actividade. O
primeiro estudo para o Grand Verre, fê-lo Duchamp em Munique. E
durante dez anos fez dele um objecto de ruminação pseudo-científica
fantástica e hermética sobre o desejo sexual. Era um ponto de chegada
da maneira intelectual como Duchamp encarava a pintura (de
Duchamp, tinha Breton dito que era “o homem maios inteligente do
século”). As explicações que já nos anos 30 forneceu desta obra
permitem perceber a construção complexa desta “máquina abstracta”
em vidro. E já no final da sua vida, Duchamp comparou este seu
projecto artístico ao dos “religiosos do Renascimento”.
Antes dessa obra complexa e híbrida de 1923, que incorpora a pintura,
mas não é apenas uma obra de pintura (constituída por dois grandes
painéis de vidro, dispostos na vertical, um em cima do outro, não
deveria sequer ter uma forma estético-plástica, dada a transparência do
vidro), Duchamp já tinha desmentido, em 1918, o abandono da pintura
com uma obra misteriosamente intitulada Tu m’ (muito se tem
especulado sobre este título; houve quem visse nele um anagrama
de Mutt, que assinava a Fountain, de 1917). Depois de terminar Tu m’,
Duchamp abandonou, isso sim, a pintura de cavalete. Essa foi a sua
última pintura a óleo em tela, mas não foi o abandono programático da
pintura. Essa tela enorme tem o estatuto de quadro final, de momento
paradigmático, tanto na carreira do artista, que era visto como tendo
abandonado aí a pintura (cumprindo assim os veredictos pronunciados
anteriormente), como na própria história do modernismo. O próprio
Duchamp qualificou esta obra como “resumo” ou “inventário”.

Não foi afinal essa a última vez que regressou à pintura, apesar da
cruzada pública que lançou contra ela. A pintura tornou-se, aliás, um
grande motivo das suas piruetas públicas, como aquela que em 1936
fez numa declaração à revista Time: “Preferia ser fuzilado, suicidar-me
ou matar alguém do que voltar a pintura”. Um ano antes, em 1935,
tinha no entanto voltado ao medium pictural, mas de maneira
indirecta. Tinha decidido criar meticulosas réplicas e reproduções em
miniatura das suas próprias obras. Era uma espécie de “museu
portátil” duchampiano, que fazia lembrar os antigos “cabinets de
curiosités”. Chamou-lhe Boîte-en-valise. Das sessenta e nove peças que
compunham a edição original (só apresentada publicamente em 1941),
vinte e seis eram reproduções de pinturas, entre as quais o Grand
Verre.

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A exposição do Pompidou apresenta a relação de Marcel Duchamp com


a pintura, articulada em oito momentos. Um desses momentos é pouco
anterior à sua morte, quando o artista realiza nove águas-fortes
consgradas ao tema dos amantes: são os Morceaux choisis, onde se
destacam dois “d’après Ingres” e um “d’après Carnach”. Mas a sua
relação mais importante e mais secreta com a pintura, e que está para
além de outras experiências episódicas, é aquela que se consuma numa
obra para onde conflui toda a exposição. Trata-se de Étant donnés:1º
la chute d’eau, 2º le gaz d’ éclairage. Esta obra misteriosa, que faz uma
síntese das técnicas tradicionais da escultura na obra de Duchamp, só
foi descoberta depois da morte do artista e soube-se que tinha sido
preparada durante mais de vinte anos. A relação desta obra com
o Grand Verre é evidente e tem sido longamente estudada. O que ela
mostra – e essa é a tese desta exposição – é que afinal o ponto de
chegada do percurso de Duchamp, feito de grandes buscas e grandes
rejeições, é afinal a pintura. Um Duchamp reinventor da pintura mais
do que o seu destruidor, eis uma revisão surpreendente da sua obra
que lança um enorme desafio e obriga a uma releitura cuidadosa de
tudo – e é muito – o que sobre ele se escreveu.

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