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Narrativas:
representação, instituição ou experimentação da realidade?
Nós nos contamos seguidamente histórias e mais historias porque, afinal, nossas vidas
merecem ser contadas, como observa P. Ricoeur.2 A compulsão para contar histórias
provém da necessidade humana de organizar a experiência e torná-la pública.3 Nos con-
1
O autor é jornalista, professor e Secretário de Comunicação da Universidade de Brasília. É mestre em
jornalismo pela Indiana University e doutor em comunicação pela University of Wisconsin. Foi vice-
presidente da SBPJor e editor por quatro anos da Brazilian Journalism Review.
2
Ricoeur, Paul (1994), Tempo e narrativa,, Tomo I, Papirus, S. Paulo
3
Adoto neste artigo o conceito de experiência de J. Dewey (1998): uma atitude empírica ou experimental
da mente que pode tender para o racional-reflexivo ou para o subjetivo-estético. Acrescento que a experi-
ência “é sempre atual, está sempre em estado nascente”, sempre contra as formas anteriores, cujo grande
operador é a linguagem. Sem endossar a visão que tudo se reduz à linguagem. Este conceito afasta-se do
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tamos tantas histórias porque elas representam nossas ações e situações de vida, nossa
história e memória. Representam o mundo de forma coerente e compreensível. Ajudam
a entender a aventura humana e organizar nossas experiências no transcurso da vida.
Essa dimensão cognitiva, a meu ver fundamental para a narratologia, permaneceu rela-
tivamente desprezada na compreensão da narrativa como representação, que implicou
no esquecimento da enunciação (foco, perspectiva, enquadramento, contrato cognitivo,
etc.) e uma ênfase na sintaxe imanente da narrativa. E levou a muitas distorções do mo-
delo narrativo, sendo o paradigma estruturalista a maior delas. A narrativa era compre-
endida muito mais como enunciado, produto, obra estruturada em si mesma, que como
ação ou enunciação, processo da “arte de compor intrigas”, atividade mimética que pro-
duz algo, como argumenta Ricoeur.6 A polêmica foi conduzida por muitos autores, entre
os quais Ricoeur e J. M. Mendes, motivo pelo qual a evitarei me alongar para retomar à
pergunta do título.
A compreensão da narrativa como representação foi questionada nos anos recentes pela
perspectiva pragmática, o giro lingüístico e as teorias da instituição social da realidade.
Na perspectiva do pragmatismo linguístico, as narrativas não são vistas como represen-
tações, mas forma de organização da realidade em função de estratégias comunicativas.
A organização narrativa do discurso não seria aleatória nem ingênua, configura-se para
produzir certos efeitos de sentido.
6
Ricoeur, Paul (1994), pág. 58. Na pág. 60 o autor diz: a ação é o “construído” da construção em que
consiste a atividade mimética. Fica claro, portanto, que Ricoeur entende a narrativa a partir da ação mi-
mética de organização da intriga, não da intriga em si como obra. É por isso que ele prefere definir a
narrativa como “composição diegética”.
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7
Essa perspectiva decorre do linguistic turn, e foi influenciada pelas conhecidas obras de J. Austin, J.
Searle, L. Wittgenstein, R. Rorty entre outros. Para uma consulta sobre a perspectiva pragmática na análi-
se da narrativa jornalística, ver Motta, Luiz G., Análise pragmática da narrativa jornalística, in C. Lago e
M. Benetti, Metodologia da pesquisa em jornalismo, Vozes, 2007, pág. 143 a 167. Ver também L. G.
Motta, Narratologia – teoria e análise da narrativa jornalística, Casa das Musas, Brasília, 2005, especial-
mente pág. 81 a 85 e L. G. Motta, Notícias do fantástico, Unisinos, Porto Alegre, 2006, Parte I.
8
Ver J. M. Mendes (2001), Por quê tantas histórias?, Minerva, Coimbra, pag. 462. Uma revisão panorâ-
mica da perspectiva pragmática está em Marcelo Dascal (2005), Interpretação e compreensão, Unisinos,
P. Alegre.
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primeiro na linguagem, mas está cristalizado de outra maneira nas instituições. A orga-
nização da economia, a propriedade, o direito, a religião, etc., são sistemas simbólicos
sancionados, “coerentes”, “neutros”, embora seja difícil determinar onde está a fronteira
entre a substância do real e a autonomia relativa do simbólico (o segundo grau), assim
como determinar em que momento o simbólico adquire sua “racionalidade” (para ele,
em processos historicamente lentos e cumulativos).9
Não podemos fazer aqui uma revisão do complexo pensamento de Castoriadis. Quero
regressar à pergunta do título recordando que, para ele, as instituições encontram suas
fontes no imaginário social que se entrecruza com o simbólico para que a sociedade
possa “reunir-se” e existir. A organização de uma sociedade se dá através deste cimento
invisível que mantém unido um imenso bric-a-brac de real, de racional e de simbólico.
Não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante que fornece um con-
teúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas: “este fator não é o simples
“real”, cada sociedade constitui o seu real” (que jamais será totalmente arbitrário, inven-
tado).
9
Castoriadis, Cornelius (1986), A instituição imaginária da sociedade, Paz e Terra, R de Janeiro. Para
Castoriadis, o simbólico se crava no natural, e no histórico-racional as “relações sociais reais” são sempre
instituídas porque são historicamente estabelecidas como maneiras de fazer universais sancionadas, em-
bora não possamos identificar o lugar por onde passa a fronteira do simbólico, o ponto a partir do qual o
simbólico invade o funcional.
6
As hipóteses que J. M. Mendes explora no seu ensaio são: 1) só como narrativa, por
mais elementar que esta seja, é que a linguagem e o discurso se tornam em instituintes
do mundo da experiência humana; 2) são as narrativas arquetípicas que permitem a
formação do circulo hermenêutico onde sujeitos e comunidades humanas interpretam e
redescobrem o seu próprio sentido. Concordo com a primeira hipótese e discordo da
segunda. A minha adesão à primeira está nos argumentos deste artigo. Quanto à segun-
da, discordo porque tenho dificuldades em reconhecer tal coisa chamada narrativa ar-
quetípica. Admito que elas possam existir. Mas, vejo-as como decorrentes das transfor-
mações históricas imaginárias (na compreensão de Castoriadis) e da luta de poder, como
argumenta Margaret Sommers, mais que do fundo arquetipal do inconsciente coletivo,
como pretendia Carl Jung.
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Mendes, pag. 27. Ele utilize no seu estudo duas definições distintas do ficcional. Uma delas toma o
ficcional como a imaginação, atividade cognitiva fundadora e instituinte, sem a qual o real existe, mas
não para o sujeito humano, tal como formula C. Castoriadis. Adiro parcialmente a este conceito neste
artigo. A segunda toma o termo na sua compreensão mais tradicional, entendendo o ficcional como uma
narrativa distinta das narrativas de veridicções (narrativas fáticas ou realistas).
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der: a naturalidade do mundo é estabelecida pelo contar de uma história. Ou seja, reali-
zamos combinações associativas (apresentações do mundo) como seqüências integradas
que organizam o sentido através da narrativa: “a história não contém a resposta, é a res-
posta. A resposta não pode ser traduzida para uma forma factual porque a resposta é a
forma narrativa”.11 Ao estruturar um incidente, a forma narrativa é ela própria conteúdo,
no sentido em que tal incidente é idêntico a essa estrutura.
No seu diálogo com as idéias de Prado, J. M. Mendes observa que as seqüências associ-
ativas, ou narrativas que organizam a realidade podem ser compreendidas como repre-
sentações básicas. Mas, elas não são, de fato, representações, e sim apresentações da
realidade. São bases originais para a ação na medida em que elas próprias constituem o
que é o mundo para alguém, num dado momento. Assim, diz ele, as seqüências associa-
tivas são histórias que nos dotam de um mundo do mesmo modo que outras histórias
conceitualmente mais avançadas nos dotam de outros mundos. Na origem, está nossa
propensão narrativa organizadora do sentido (propensity to tell stories). Como um pro-
grama genético, o sujeito vai processando progressivamente seqüências associativas em
narrativas e cenários mais complexos, que se tornam bases para a ação.12
A nossa autoria de narrativas, diz J. M. Mendes, não visa o retrato racional da realidade
nem o retrato da realidade racional. As narrativas não são espelhos de nada. Elas pró-
prias produzem a realidade, a organizam tendo em vista a ação. O trabalho da narrativa
é ordenar a experiência, tentar ordenar o mundo em confronto com ele, experimentando-
o, sondando-o continuamente. Em conseqüência, passa para segundo plano saber se
nossas narrativas são verdadeiras ou ilusórias, fáticas ou fictícias. O que Prado, Rorty,
Mendes e outros pragmáticos nos mostram, é que as narrativas podem estar mais perto
ou mais longe da realidade, aproximar ou se distanciar dela, serem mais ou menos refe-
renciadas.
11
Citado por J. M. Mendes, Por quê tantas histórias, Minerva, Coimbra, 2001, pag. 190. O livro transcre-
ve a tese doutoral do autor.
12
Mendes, pag. 190. Estas colocações aproximam J. M. Mendes das idéias de J. Bruner e K, Gergen
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Outros argumentos de C. G. Prado são úteis para a idéia da narrativa como experimen-
tação da realidade, que proponho adiante neste artigo. Para ele, a narrativa organizadora
se opõe ao caos e estabelece uma visão de mundo relativamente integrada ao colocar
juntos incidentes dispersos. Só dispomos da narrativa para reafirmar a existência do
mundo e para nos situarmos nele. Prado insiste na idéia que a linguagem é narrativa
desde seu momento inicial. Seu objetivo é demonstrar que a narrativa é constitutiva da
experiência, hipótese que adiro, e a partir da qual desenvolvo a proposta em seguida.13
Estendi-me sobre a premissa das narrativas como constituintes da realidade porque ela
me inspirou uma hipótese que vai além: as narrativas são formas de experimentação
sucessivas e permanentes da realidade cotidiana. Essa hipótese decorre da idéia de “tex-
tura geral da experiência” de Isaia Berlin, que se refere a aspectos corriqueiros de nossa
experiência diária no mundo da vida. Para ele, os seres humanos perseguem fins, sen-
tem, refletem, imaginam, criam e moldam suas vidas e as dos outros em constante inte-
ração e intercomunicação. É no cotidiano que filtramos realidades múltiplas e buscamos
continuamente referencias para a produção do senso comum.
Silverstone, seguindo Berlin, propõe que a mídia é hoje parte da textura geral da experi-
ência e interage seguidamente com o senso comum. Essa textura não é fixa, ela se faz e
refaz incessantemente.14 No cotidiano, diz ele, as pessoas entram e saem constantemente
dos fluxos midiáticos, filtram referencias e moldam realidades, refazendo seguidamente
o senso comum, que eu identifico com uma cortina de narrativas que nos recobre. Mas,
essa cortina não é simples representação. É uma ininterrupta experimentação do mundo
que cria e recria permanentemente novas narrativas e metanarrativas. Seu caráter é re-
flexivo na medida em que apresentam e reapresentam continuamente o mundo para nós.
13
Mendes, pag. 192
14
Silverstone, Roger (): Por que estudar a mídia?, Loyola, S. Paulo, 2002, cap. 1.
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Respondo que a narrativa continua sendo uma forma importante (se não a principal) de
experimentação do mundo. Ela nos oferece um teste coerente para a complexidade da
vida, da política, da economia, das tragédias e comédias. Mais que representar, as narra-
tivas constituem a textura da experiência, permitem instituir o mundo, a política, a eco-
nomia, as ciências, as religiões. Sobrepõem-se umas às outras, interatuam, são continu-
amente postas à prova, refeitas e substituídas por novas narrativas. São esboços instá-
veis e provisórios que refazemos sem cessar. Emaranhado de mantos que constitui a
textura social e recobre a vida de sentidos, modelos éticos e estéticos, enredos, persona-
gens com os quais nos identificamos ou rechaçamos.
15
Endosso os argumentos de R. Silverstone sobre a materialidade nossas experiências midiáticas e “virtu-
ais”. Não habitamos um mundo hiper-real formado exclusivamente por imagens e simulacros, onde a
mídia é a referencia de todas as coisas. Sabemos distinguir fantasias de realidade, preservamos certa dis-
tancia da mídia. Temos consciência de “entrar” e “sair” da mídia, testamos o que vemos e ouvimos contra
o senso comum. Temos, enfim, uma atitude reflexiva, embora o grau de distanciamento varie em situa-
ções históricas.
10
Mais que formular representações estruturadas em narrativas estáveis, sustento que nós
hipotetizamos seguidamente configurações narrativas provisórias do real (fáticas ou
fictícias), as assumimos como convincentes e as “colocamos à prova”, até que outras
configurações mais consistentes venham substituí-las. E assim sucessivamente. Estamos
sempre utilizando as narrativas em nosso confronto com o real. Como afirma Mendes
(pág. 71), nós homens semiotizamos
16
Silverstone, op. cit., pág. 90-92. Diz o autor: “Essas narrativas explicam. Contam-nos como ele (o tem-
po) é, e ele é como nos contam, não apenas nas fantasias subjuntivas do ‘como se’, mas por nossa capaci-
dade de reconhecer em alguma parte, durante algum tempo, dentro delas. E seguir um enredo implica
envolvimento em diferentes qualidades de tempo; em sua configuração, sua inteireza, na noção de seu
fim, no reconhecimento do familiar e – na repetição – de uma expressão do não-linear, do não-
progressivo. Tempo para frente e reversão do tempo. Tempo repetido. Tempo interrompido. Rápido.
Devagar. Linhas e círculos. ...A mimese é performance. A mimese como performance, é um fazer e uma
coisa feita... Ela é capacitante.”
11
meio que dispomos para atender a uma série acontecimental.” A narrativa é constitutiva
da experiência, estabelece uma visão integrada do mundo, determina conexões, põe em
marcha a ligação entre eventos e organiza o sentido reunindo elementos dispersos.17
O trabalho da narrativa não consiste, pois, em aproximar-se do mundo, mas sim em or-
denar, em confronto com o mundo, a visão que o sujeito faz dele, porque esse sujeito
quer agir em função de sua própria visão do mundo, que ele assume como verdadeira.
Na citação que J. M. Mendes faz de Prado:
Referências bibliográficas