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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo


VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
USP (Universidade de São Paulo), novembro de 2009
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Narrativas:
representação, instituição ou experimentação da realidade?

Luiz Gonzaga Motta 1

Resumo: A narrativa representa a realidade social. Essa premissa persistente na literatu-


ra fortaleceu-se nas últimas décadas com as teorias construtivistas. Recentemente, o
pragmatismo lingüístico e as teorias da instituição imaginária da realidade questionaram
essa visão: as narrativas (fáticas ou fictícias) não representam a realidade, elas a institu-
em. Este trabalho assume esta última perspectiva e propõe seu desdobramento: narrati-
vas são formas de experimentação da realidade social, hipótese que nos parece concei-
tualmente produtiva.

Palavras-chave: narrativas, narrativa jornalística, realidade, representação, experiência.

A narrativa representa, institui ou experimenta a realidade?

Nós nos contamos seguidamente histórias e mais historias porque, afinal, nossas vidas
merecem ser contadas, como observa P. Ricoeur.2 A compulsão para contar histórias
provém da necessidade humana de organizar a experiência e torná-la pública.3 Nos con-

1
O autor é jornalista, professor e Secretário de Comunicação da Universidade de Brasília. É mestre em
jornalismo pela Indiana University e doutor em comunicação pela University of Wisconsin. Foi vice-
presidente da SBPJor e editor por quatro anos da Brazilian Journalism Review.
2
Ricoeur, Paul (1994), Tempo e narrativa,, Tomo I, Papirus, S. Paulo
3
Adoto neste artigo o conceito de experiência de J. Dewey (1998): uma atitude empírica ou experimental
da mente que pode tender para o racional-reflexivo ou para o subjetivo-estético. Acrescento que a experi-
ência “é sempre atual, está sempre em estado nascente”, sempre contra as formas anteriores, cujo grande
operador é a linguagem. Sem endossar a visão que tudo se reduz à linguagem. Este conceito afasta-se do
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tamos tantas histórias porque elas representam nossas ações e situações de vida, nossa
história e memória. Representam o mundo de forma coerente e compreensível. Ajudam
a entender a aventura humana e organizar nossas experiências no transcurso da vida.

Deixamos de lado inicialmente a questão da experiência para destacar o conceito de


representação. Na literatura pertinente, a narrativa é predominantemente compreendida
como forma de representação das ações humanas. Neste artigo, me deterei pouco na
narrativa como representação, preferindo a hipótese da narrativa instituinte. Ao final,
desdobro-a em uma nova hipótese: compreender as narrativas como formas de experi-
mentação da realidade. Quero explorar a pergunta: a narrativa proporciona representar,
instituir ou experimentar a realidade?

1. Narrativa e representação da realidade

A idéia original de representação decorre da mimese aristotélica: uma versão imitativa


da realidade, que a reproduz imaginativamente, representativamente.4 Haveria uma rea-
lidade de primeira ordem (a coisa em si, verdadeira, autêntica) e outra de segunda or-
dem cristalizada nas “cópias”, representações imaginárias e simbólicas das coisas.5 A
relação entre significante e significado, ou representante e representado, não é reflexa,
mas interdependente. O objeto ou ação representada concretiza uma solução discursiva
que substitui e se confunde com o referente ausente. Não posso avançar essa conversa
neste artigo porque ela traz a vasta discussão sobre o verdade e imaginação. A questão
permanecerá, entretanto, como pano de fundo.

sentido já construído, cristalizado, remete para a problematização do verdadeiro e o falso (Bragança de


Miranda, 1994).
4
Gebauer e Wulf definem a mimese como processo de recriação do mundo pelos homens por meio de
suas próprias configurações. Os homens experimentam a materialidade do mundo e a presença dos outros.
A mimese possuiria um duplo significado. Por um lado, a imitação de algo dado; e por outro, a sua confi-
guração. As duas faces não se excluem, se complementam. Quando um artista cria uma figura humana da
argila comete um gesto figurativo, imitador. Mas, somente quando se completar a imagem do homem, a
criação vale como imitação de uma forma: “o ato mimético produz a junção do modelo com o figura-
do...Nas ações miméticas abre-se o caminho a um mundo que não só existe na forma matéria, mas tam-
bém na simbólica.”. A definição mais curta de mimese seria: fazer o mundo mais uma vez. G. Gebauer e
C. Wulf, Mimese na cultura, Annablume, S. Paulo, 2004.
5
Watzlawick, Paul (2001), És real la realidad?, Herder, Barcelona
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Retomo à pergunta do título e regresso à narrativa, onde a questão da representação re-


mete a diegese, projeção de uma história virtual pelo discurso narrativo mediador. Por
sua vez, a diegese remete, na teoria literária, ao modo ou perspectiva, que regulam a
quantidade e qualidade da informação narrativa. Cada uma delas contém vínculos refe-
renciais diferentes: pode tender para o referente (realismo) ou para a imaginação (fic-
ção). Ambos casos representam ações humanas, embora mantenham vínculos referenci-
ais diferentes e remetam para dimensões cognitivas opostas.

Essa dimensão cognitiva, a meu ver fundamental para a narratologia, permaneceu rela-
tivamente desprezada na compreensão da narrativa como representação, que implicou
no esquecimento da enunciação (foco, perspectiva, enquadramento, contrato cognitivo,
etc.) e uma ênfase na sintaxe imanente da narrativa. E levou a muitas distorções do mo-
delo narrativo, sendo o paradigma estruturalista a maior delas. A narrativa era compre-
endida muito mais como enunciado, produto, obra estruturada em si mesma, que como
ação ou enunciação, processo da “arte de compor intrigas”, atividade mimética que pro-
duz algo, como argumenta Ricoeur.6 A polêmica foi conduzida por muitos autores, entre
os quais Ricoeur e J. M. Mendes, motivo pelo qual a evitarei me alongar para retomar à
pergunta do título.

2. Narrativa e instituição da realidade

A compreensão da narrativa como representação foi questionada nos anos recentes pela
perspectiva pragmática, o giro lingüístico e as teorias da instituição social da realidade.
Na perspectiva do pragmatismo linguístico, as narrativas não são vistas como represen-
tações, mas forma de organização da realidade em função de estratégias comunicativas.
A organização narrativa do discurso não seria aleatória nem ingênua, configura-se para
produzir certos efeitos de sentido.

6
Ricoeur, Paul (1994), pág. 58. Na pág. 60 o autor diz: a ação é o “construído” da construção em que
consiste a atividade mimética. Fica claro, portanto, que Ricoeur entende a narrativa a partir da ação mi-
mética de organização da intriga, não da intriga em si como obra. É por isso que ele prefere definir a
narrativa como “composição diegética”.
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Nesta perspectiva, a narratologia deixa de ser um ramo da literatura e passa a ser um


campo antropológico compreendendo o mito, a ideologia, a política, a cultura inteira de
uma sociedade. A análise se desloca do texto em si para reconstituir, em cada situação,
o ato de fala, a dinâmica de reciprocidade entre narrador e destinatário. O objeto de aná-
lise narrativa parte do texto, mas pretende observar os jogos de linguagem, os princípios
que regulam os usos da linguagem na comunicação narrativa, levando em conta o con-
trato cognitivo que se estabelece entre narrador e destinatário em cada situação de co-
municação, e o significado produzido quando se burla o contrato.7

O pragmatismo lingüístico provoca mudanças ontológicas e epistemológicas na narrato-


logia. As narrativas passam a ser compreendidas não apenas como representação das
coisas nem como constructos culturais, mas práticas de empalavramento sucessivo da
realidade para enfrentar a complexidade do mundo. Muda também a atitude epistemoló-
gica. As análises não são mais textuais e sim contextuais: remetem à relação do sujeito
consigo mesmo, com as coisas e os outros. O fático ou fictício não estaria no caráter
mais ou menos verdadeiro do discurso, e muito menos no estilo. Estaria nas posições
dos sujeitos narrador e destinatário. Toda narrativa realista poderá ser lida como ficcio-
nal, e toda narrativa ficcional poderá ser lida como fática, dependendo do contrato co-
municativo e cognitivo do narrador e destinatário em cada situação de comunicação.8

Influências no rumo de compreender as narrativas como instituintes da realidade pro-


vêm também das teorias sobre a instituição imaginária da sociedade, das quais C. Casto-
riadis é o autor mais influente. Segundo ele, o imaginário não é imagem de nada, mas
sim o que gera a própria realidade, as instituições e a sociedade. Para Castoriadis, tudo
que se nos apresenta no mundo social-histórico está ligado ao simbólico, que se revela

7
Essa perspectiva decorre do linguistic turn, e foi influenciada pelas conhecidas obras de J. Austin, J.
Searle, L. Wittgenstein, R. Rorty entre outros. Para uma consulta sobre a perspectiva pragmática na análi-
se da narrativa jornalística, ver Motta, Luiz G., Análise pragmática da narrativa jornalística, in C. Lago e
M. Benetti, Metodologia da pesquisa em jornalismo, Vozes, 2007, pág. 143 a 167. Ver também L. G.
Motta, Narratologia – teoria e análise da narrativa jornalística, Casa das Musas, Brasília, 2005, especial-
mente pág. 81 a 85 e L. G. Motta, Notícias do fantástico, Unisinos, Porto Alegre, 2006, Parte I.
8
Ver J. M. Mendes (2001), Por quê tantas histórias?, Minerva, Coimbra, pag. 462. Uma revisão panorâ-
mica da perspectiva pragmática está em Marcelo Dascal (2005), Interpretação e compreensão, Unisinos,
P. Alegre.
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primeiro na linguagem, mas está cristalizado de outra maneira nas instituições. A orga-
nização da economia, a propriedade, o direito, a religião, etc., são sistemas simbólicos
sancionados, “coerentes”, “neutros”, embora seja difícil determinar onde está a fronteira
entre a substância do real e a autonomia relativa do simbólico (o segundo grau), assim
como determinar em que momento o simbólico adquire sua “racionalidade” (para ele,
em processos historicamente lentos e cumulativos).9

O simbólico tem também um componente imaginário, inventado, no sentido absoluto,


ou através do deslocamento, quando símbolos adquirem novos sentidos que se colocam
no lugar do real, continua Castoriadis. O imaginário utiliza o simbólico não somente
para “exprimir-se”, mas também para passar a existir. Na verdade, o simbolismo pres-
supõe a capacidade imaginária de ver em uma coisa o que ela realmente não é. Na me-
dida em que o imaginário se reduz à representação, impõe-se o “imaginário radical efe-
tivo”, a imagem de alguma coisa que não é essa coisa, ainda que mantendo um compo-
nente “racional-real”.

Não podemos fazer aqui uma revisão do complexo pensamento de Castoriadis. Quero
regressar à pergunta do título recordando que, para ele, as instituições encontram suas
fontes no imaginário social que se entrecruza com o simbólico para que a sociedade
possa “reunir-se” e existir. A organização de uma sociedade se dá através deste cimento
invisível que mantém unido um imenso bric-a-brac de real, de racional e de simbólico.
Não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante que fornece um con-
teúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas: “este fator não é o simples
“real”, cada sociedade constitui o seu real” (que jamais será totalmente arbitrário, inven-
tado).

9
Castoriadis, Cornelius (1986), A instituição imaginária da sociedade, Paz e Terra, R de Janeiro. Para
Castoriadis, o simbólico se crava no natural, e no histórico-racional as “relações sociais reais” são sempre
instituídas porque são historicamente estabelecidas como maneiras de fazer universais sancionadas, em-
bora não possamos identificar o lugar por onde passa a fronteira do simbólico, o ponto a partir do qual o
simbólico invade o funcional.
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É a partir das formulações de Castoriadis, e também daquelas de M. Lyotard sobre a


narrativização geral do conhecimento humano (a transformação de todo conhecimento
em narrativas fáticas ou ficcionais) que J. M. Mendes intui a idéia do papel instituinte
da narrativa (o story shaped world). Ele afirma textualmente:

“A narrativa (o ficcional), mais que a linguagem, é o instrumento fundamental


de constituição e instituição do mundo para o sujeito humano e para as socieda-
des humanas, e desempenha essa função antes mesmo da sua divisão em narrati-
va de realidade e narrativa ficcional”.10

As hipóteses que J. M. Mendes explora no seu ensaio são: 1) só como narrativa, por
mais elementar que esta seja, é que a linguagem e o discurso se tornam em instituintes
do mundo da experiência humana; 2) são as narrativas arquetípicas que permitem a
formação do circulo hermenêutico onde sujeitos e comunidades humanas interpretam e
redescobrem o seu próprio sentido. Concordo com a primeira hipótese e discordo da
segunda. A minha adesão à primeira está nos argumentos deste artigo. Quanto à segun-
da, discordo porque tenho dificuldades em reconhecer tal coisa chamada narrativa ar-
quetípica. Admito que elas possam existir. Mas, vejo-as como decorrentes das transfor-
mações históricas imaginárias (na compreensão de Castoriadis) e da luta de poder, como
argumenta Margaret Sommers, mais que do fundo arquetipal do inconsciente coletivo,
como pretendia Carl Jung.

A idéia da narrativa instituinte é ainda mais forte em C. G. Prado, discípulo de R. Rorty.


Ele argumenta que a narrativa é a forma instituinte da realidade, que dá sentido e orga-
niza o mundo. O ato de contar histórias consiste numa arte e numa atividade prática
básica, comum a todos, operando a naturalização do mundo. A narrativa é pedagógica
porque oferece contextos naturalizados a fenômenos complexos e difíceis de compreen-

10
Mendes, pag. 27. Ele utilize no seu estudo duas definições distintas do ficcional. Uma delas toma o
ficcional como a imaginação, atividade cognitiva fundadora e instituinte, sem a qual o real existe, mas
não para o sujeito humano, tal como formula C. Castoriadis. Adiro parcialmente a este conceito neste
artigo. A segunda toma o termo na sua compreensão mais tradicional, entendendo o ficcional como uma
narrativa distinta das narrativas de veridicções (narrativas fáticas ou realistas).
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der: a naturalidade do mundo é estabelecida pelo contar de uma história. Ou seja, reali-
zamos combinações associativas (apresentações do mundo) como seqüências integradas
que organizam o sentido através da narrativa: “a história não contém a resposta, é a res-
posta. A resposta não pode ser traduzida para uma forma factual porque a resposta é a
forma narrativa”.11 Ao estruturar um incidente, a forma narrativa é ela própria conteúdo,
no sentido em que tal incidente é idêntico a essa estrutura.

No seu diálogo com as idéias de Prado, J. M. Mendes observa que as seqüências associ-
ativas, ou narrativas que organizam a realidade podem ser compreendidas como repre-
sentações básicas. Mas, elas não são, de fato, representações, e sim apresentações da
realidade. São bases originais para a ação na medida em que elas próprias constituem o
que é o mundo para alguém, num dado momento. Assim, diz ele, as seqüências associa-
tivas são histórias que nos dotam de um mundo do mesmo modo que outras histórias
conceitualmente mais avançadas nos dotam de outros mundos. Na origem, está nossa
propensão narrativa organizadora do sentido (propensity to tell stories). Como um pro-
grama genético, o sujeito vai processando progressivamente seqüências associativas em
narrativas e cenários mais complexos, que se tornam bases para a ação.12

A nossa autoria de narrativas, diz J. M. Mendes, não visa o retrato racional da realidade
nem o retrato da realidade racional. As narrativas não são espelhos de nada. Elas pró-
prias produzem a realidade, a organizam tendo em vista a ação. O trabalho da narrativa
é ordenar a experiência, tentar ordenar o mundo em confronto com ele, experimentando-
o, sondando-o continuamente. Em conseqüência, passa para segundo plano saber se
nossas narrativas são verdadeiras ou ilusórias, fáticas ou fictícias. O que Prado, Rorty,
Mendes e outros pragmáticos nos mostram, é que as narrativas podem estar mais perto
ou mais longe da realidade, aproximar ou se distanciar dela, serem mais ou menos refe-
renciadas.

11
Citado por J. M. Mendes, Por quê tantas histórias, Minerva, Coimbra, 2001, pag. 190. O livro transcre-
ve a tese doutoral do autor.
12
Mendes, pag. 190. Estas colocações aproximam J. M. Mendes das idéias de J. Bruner e K, Gergen
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Outros argumentos de C. G. Prado são úteis para a idéia da narrativa como experimen-
tação da realidade, que proponho adiante neste artigo. Para ele, a narrativa organizadora
se opõe ao caos e estabelece uma visão de mundo relativamente integrada ao colocar
juntos incidentes dispersos. Só dispomos da narrativa para reafirmar a existência do
mundo e para nos situarmos nele. Prado insiste na idéia que a linguagem é narrativa
desde seu momento inicial. Seu objetivo é demonstrar que a narrativa é constitutiva da
experiência, hipótese que adiro, e a partir da qual desenvolvo a proposta em seguida.13

3. Da instituição à experimentação narrativa da realidade

Estendi-me sobre a premissa das narrativas como constituintes da realidade porque ela
me inspirou uma hipótese que vai além: as narrativas são formas de experimentação
sucessivas e permanentes da realidade cotidiana. Essa hipótese decorre da idéia de “tex-
tura geral da experiência” de Isaia Berlin, que se refere a aspectos corriqueiros de nossa
experiência diária no mundo da vida. Para ele, os seres humanos perseguem fins, sen-
tem, refletem, imaginam, criam e moldam suas vidas e as dos outros em constante inte-
ração e intercomunicação. É no cotidiano que filtramos realidades múltiplas e buscamos
continuamente referencias para a produção do senso comum.

Silverstone, seguindo Berlin, propõe que a mídia é hoje parte da textura geral da experi-
ência e interage seguidamente com o senso comum. Essa textura não é fixa, ela se faz e
refaz incessantemente.14 No cotidiano, diz ele, as pessoas entram e saem constantemente
dos fluxos midiáticos, filtram referencias e moldam realidades, refazendo seguidamente
o senso comum, que eu identifico com uma cortina de narrativas que nos recobre. Mas,
essa cortina não é simples representação. É uma ininterrupta experimentação do mundo
que cria e recria permanentemente novas narrativas e metanarrativas. Seu caráter é re-
flexivo na medida em que apresentam e reapresentam continuamente o mundo para nós.

13
Mendes, pag. 192
14
Silverstone, Roger (): Por que estudar a mídia?, Loyola, S. Paulo, 2002, cap. 1.
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Proponho, seguindo Silverstone, estudar as narrativas (realistas ou fictícias, interpesso-


ais ou midiáticas) para compreender a textura geral de nossa experiência.15 Narrativas,
ao contrário do que dizia W. Benjamin, proliferam hoje na mídia mais que qualquer
outro ambiente: no jornalismo, telenovelas, filmes, talk-shows, blogs, orkuts. E continu-
am encantando audiências. Mais que nunca, assistimos a uma profusão de romances,
contos, biografias que consumimos incessantemente. Precisamos nos perguntar qual o
significado da persistência de tanta narrativa.

Respondo que a narrativa continua sendo uma forma importante (se não a principal) de
experimentação do mundo. Ela nos oferece um teste coerente para a complexidade da
vida, da política, da economia, das tragédias e comédias. Mais que representar, as narra-
tivas constituem a textura da experiência, permitem instituir o mundo, a política, a eco-
nomia, as ciências, as religiões. Sobrepõem-se umas às outras, interatuam, são continu-
amente postas à prova, refeitas e substituídas por novas narrativas. São esboços instá-
veis e provisórios que refazemos sem cessar. Emaranhado de mantos que constitui a
textura social e recobre a vida de sentidos, modelos éticos e estéticos, enredos, persona-
gens com os quais nos identificamos ou rechaçamos.

A narrativa jornalística é um caso exemplar de experimentação da realidade porque


permite apreender rapidamente a complexidade do mundo e configurá-la em enredos
coerentes, colocá-los a prova, instituir verdades efêmeras que serão continuamente re-
feitas, constituindo a instável atualidade. No dia a dia do jornalismo, isso ocorre de
maneira dinâmica, em constante recorrência, identificação ou confrontação com o sen-
so comum, que serve de referencia permanente a jornalistas e audiências. Há uma provi-
soriedade e uma intertextualidade em todo o processo, o que não retira da comunicação
jornalística seu caráter reflexivo.

15
Endosso os argumentos de R. Silverstone sobre a materialidade nossas experiências midiáticas e “virtu-
ais”. Não habitamos um mundo hiper-real formado exclusivamente por imagens e simulacros, onde a
mídia é a referencia de todas as coisas. Sabemos distinguir fantasias de realidade, preservamos certa dis-
tancia da mídia. Temos consciência de “entrar” e “sair” da mídia, testamos o que vemos e ouvimos contra
o senso comum. Temos, enfim, uma atitude reflexiva, embora o grau de distanciamento varie em situa-
ções históricas.
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Silverstone nos oferece observações preliminares sobre a relação entre a narrativa e a


experiência, entre narrativas e a compreensão prática, que aplico imediatamente ao caso
da narrativa jornalística. Recorrendo a Ricoeur, ele argumenta: a ordenação temporal da
experiência permite seguir a ordenação temporal de uma narrativa e a ordenação tempo-
ral da narrativa permite compreender a experiência.16 A narrativa jornalística existe no
tempo, pontua e demarca calendários: o calendário político, o econômico, o esportivo,
etc. As narrativas, e a narrativa jornalística em particular, nos permitem explorar per-
manentemente nossa experiência temporal, compor enredos e histórias superpostas,
compreender quem somos e onde estamos em cada momento. Elas explicam, ensinam,
instituem o mundo, nosso mundo.

Mais que formular representações estruturadas em narrativas estáveis, sustento que nós
hipotetizamos seguidamente configurações narrativas provisórias do real (fáticas ou
fictícias), as assumimos como convincentes e as “colocamos à prova”, até que outras
configurações mais consistentes venham substituí-las. E assim sucessivamente. Estamos
sempre utilizando as narrativas em nosso confronto com o real. Como afirma Mendes
(pág. 71), nós homens semiotizamos

“inventando narrativas com sentidos que se transformam em bases para a


ação, e a que regressamos depois para as reinterpretar, redescobrindo no-
vos sentidos nas narrativas que tínhamos começado por inventar – é pre-
cisamente nisto que consiste a produção de sentido novo no círculo her-
menêutico.”

Reforço meu argumento voltando a C. G. Prado: “uma narrativa é, basicamente, uma


apresentação (da realidade) em desenvolvimento, e é enquanto tal que ela constitui o

16
Silverstone, op. cit., pág. 90-92. Diz o autor: “Essas narrativas explicam. Contam-nos como ele (o tem-
po) é, e ele é como nos contam, não apenas nas fantasias subjuntivas do ‘como se’, mas por nossa capaci-
dade de reconhecer em alguma parte, durante algum tempo, dentro delas. E seguir um enredo implica
envolvimento em diferentes qualidades de tempo; em sua configuração, sua inteireza, na noção de seu
fim, no reconhecimento do familiar e – na repetição – de uma expressão do não-linear, do não-
progressivo. Tempo para frente e reversão do tempo. Tempo repetido. Tempo interrompido. Rápido.
Devagar. Linhas e círculos. ...A mimese é performance. A mimese como performance, é um fazer e uma
coisa feita... Ela é capacitante.”
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meio que dispomos para atender a uma série acontecimental.” A narrativa é constitutiva
da experiência, estabelece uma visão integrada do mundo, determina conexões, põe em
marcha a ligação entre eventos e organiza o sentido reunindo elementos dispersos.17

J. M. Mendes elucida a visão de C. F. Prado e R. Rorty:

“a nossa autoria de narrativas não visa o retrato racional da realidade ra-


cional, nem o retrato da realidade racional ou não; antes, produz ela pró-
pria a realidade, organiza-a tendo em vista a ação. Sendo seu objetivo or-
denar a experiência, passam para segundo plano saber se as narrativas
são verdadeiras ou falsas.”. (pág. 193).

O trabalho da narrativa não consiste, pois, em aproximar-se do mundo, mas sim em or-
denar, em confronto com o mundo, a visão que o sujeito faz dele, porque esse sujeito
quer agir em função de sua própria visão do mundo, que ele assume como verdadeira.
Na citação que J. M. Mendes faz de Prado:

“Não existe algo como um discurso ficcional, um uso peculiar da lingua-


gem como referencia fingida...Existe apenas a narrativa e as numerosas
distinções [entre narrativas] que esboçamos e aplicamos de acordo com
critérios que nós próprios estabelecemos, e não como critérios impostos
por uma realidade autônoma”

A pergunta que permanece

Concluo perguntando: que tipo de experiência a narrativa jornalística realiza? Essa


questão está para ser investigada. Neste artigo sugeri alguns caminhos e endossei outros
já indicados por R. Silverstone. O caráter narrativo do texto jornalístico não é tão evi-
dente nem se revela facilmente, até porque a razão jornalística, em sua pretensão de
verdade, nega que narra. A narratividade surge inevitavelmente quando jornalismo se
17
Prado, in J. M. Mendes, op. cit., pag. 191.
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dispõe a organizar intrigas, cuja apresentação remete a personagens e ações rumo a um


desenlace. A conexão do heterogêneo pela trama narrativa precede e rege a composição
do acontecimento. Ela gera demanda, solicita novos eventos para completar a história.
O final da história, como realça Ricouer, é o pólo magnético que rege a composição da
intriga, escolhe, prioriza, hierarquiza ações e personagens em razão de sua coerência.

A narrativa jornalística se constrói simultaneamente às ações que narra. Sua singulari-


dade é configurar-se sempre no tempo presente. Torna-se, por essa razão, uma narração
dinâmica, sujeita a intervenções de narradores plurais, suas estratégias discursivas proje-
tam marcas subjetivas no enunciado, na perspectiva e enquadramento. Narrador e autor
se confundem, são entidades menos fictícias, sujeitos aos procedimentos técnicos e
comerciais da comunicação jornalística, protagonistas ativos da narração que se entrela-
çam com o histórico. Outras vezes, personagens assumem o papel de narradores dentro
da história. O ato narrativo jornalístico é, na verdade, lugar de disputa pela voz, onde os
antagonismos se enfrentam por versões consistentes que persuadam os destinatários.

É examinando as escolhas e prioridades do pólo magnético da narrativa jornalística, e as


lutas pelo poder simbólico na sua configuração no tempo presente que poderemos res-
ponder à pergunta sobre o caráter da mimese jornalística e do tipo de experiência que
realiza. Revelar como e porque certos personagens são priorizados e outros excluídos,
certos enredos apresentados e naturalizados. Identificar de que maneira as realidades são
historicamente constituídas, uma política, uma economia, uma ética e uma estética insti-
tuídas e sancionadas nas paginas e telas. De que maneira essas apresentações narrativas
interagem, sobrepõem-se ou colocam a prova o senso comum e os sistemas simbólicos
sancionados ou hegemônicos, refazendo ou confirmando verdades e versões da realida-
de social.

Referências bibliográficas

ALCINA, Miquel Rodrigo, La construcción de la notícia, Paidós, Barcelona, 1989.


BRAGANÇA DE MIRANDA, José A., Analítica da acturalidade, Veja, Lisboa, 1994.
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