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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo


FIAM-FAAM / Anhembi Morumbi – São Paulo – Novembro de 2018
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Jornalismo literário, colonialidade, política e


sensibilidade em ​O nascimento de Joicy

Guilherme Guerreiro Neto1


Giovanni Guerreiro2

Universidade Federal do Pará


Faculdade Cásper Líbero

Resumo: Este artigo tem como objetivo considerar as noções de estética/política e colonialidade
no debate quanto ao rumo dos estudos de jornalismo literário. A partilha do sensível de Rancière
(2010), o feminismo decolonial de Lugones (2014) e o pensamento fronteiriço de Mignolo
(2015), além das proposições de Hartsock (2016) e Sims (2011) sobre jornalismo literário, são
acionados para a discussão teórica. O fio-condutor empírico é a narrativa da jornalista brasileira
Fabiana Moraes no livro ​O nascimento de Joicy.​ A reportagem, a relação com a personagem e a
reflexão da repórter sobre o jornalismo são tomadas como experiência de partida para pensar um
movimento do jornalismo literário que, antes de uma expansão disciplinar, caminhe para a
desobediência epistêmica.

Palavras-chave​: O nascimento de Joicy; jornalismo literário; estética; política; colonialidade.

1
Professor da Universidade da Amazônia (Unama). Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do
Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: ​neto.guerreiro@gmail.com​.
2
Jornalista, tradutor e social media. Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (FCL).
E-mail: ​giovanni.guerreiro@gmail.com​.

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1. Introdução

Como experiências de jornalismo literário que estabelecem tensionamentos com


hierarquias da modernidade ajudam a repensar as balizas desse campo de
conhecimento? Em que medida o projeto prioritário para a expansão do olhar é
estabelecer uma disciplina ou apostar na desobediência epistêmica, que considere a
relação estética/política e a colonialidade como chaves de desconstrução?
Essas reflexões são travadas a partir da narrativa do livro ​O nascimento de Joicy,​
de Fabiana Moraes (2015), que inclui a reportagem sobre a trajetória de Joicy Melo da
Silva diante de sua cirurgia de redesignação sexual – publicada originalmente no ​Jornal
do Commercio (PE) –, um capítulo sobre a relação de aproximação e distanciamento
entre repórter e personagem e uma reflexão teórica sobre a necessidade de um
jornalismo de subjetividade.

2. Jornalismo literário

A expansão dos estudos sobre jornalismo literário tem sido discutida por vários
autores (LIMA, 2014; BAK, 2017; SIMS, 2009, 2011; HARTSOCK, 2016). William
Dow (2016), com foco no contexto dos Estados Unidos, propõe relacionar o jornalismo
literário com disciplinas como Sociologia, Antropologia, Cultura Afro-americana e
Estudos de Gênero, reforçando um caráter de interdisciplinaridade.
John S. Bak (2017) é uma das vozes que defende o jornalismo literário como
disciplina. Para ele, o caráter disciplinar é acompanhado de uma abertura às diferentes
manifestações pelo mundo: “comparações usando padrões ou definições estadunidenses
limitam nossa perspectiva sobre como as nações adquiriram o Jornalismo Literário e
como seus ambientes moldaram sua produção e recepção ao longo do tempo” (2017, p.
242, tradução livre).
Norman Sims (2009) acredita que “(...) deveríamos basear a história do
jornalismo literário em uma linha do tempo ampla – sem assumir que todo o jornalismo
literário descende do ‘New Journalism’ dos anos 1960, por exemplo. Aqui, a academia

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de jornalismo literário é tão culpada quanto qualquer outra (...)” (p. 6, tradução livre).
Quando discute estudos internacionalizados, Sims aprofunda:

Nós precisamos de uma rede de conhecimento internacional que reconheça que


há diferentes manifestações nacionais. Apesar de toda a sabedoria americana
sobre o assunto, não devemos concluir que o jornalismo literário é um
fenômeno apenas americano. Ele ocorre em outras culturas de formas variadas.
[…]
Análises do jornalismo literário de diversos países sugerem que eles seguem
seus próprios caminhos culturais e não apenas imitam o modelo americano.
Temos que abraçar essas formas internacionais de jornalismo literário, com
suas variações, como um corretivo ao foco no jornalismo literário
norte-americano. (2009, p. 4-5, tradução livre)

Depois, Sims (2011) deixaria de falar em internacionalização para tratar de um


“jornalismo literário transfronteiriço”, distinguindo-o das versões nacionais enquanto
ainda mantém que não há um jornalismo literário internacional. Sims salienta que “um
americano que vai para a Europa escrever ainda é um americano” (p. 2, tradução livre).
Um relato que surgisse assim seria transfronteiriço. Caso do livro-reportagem
Hiroshima,​ de John Hersey (americano nascido na China), sobre seis sobreviventes das
bombas atômicas lançadas em 1945 sobre o Japão.
É dessa discussão que Sims destaca três dimensões que caracterizam e
diferenciam cada tipo de jornalismo literário transfronteiriço: a geográfica-cultural, a de
gênero/raça/classe e a do tempo. Para ele, “até podemos cruzar as fronteiras geográficas
e culturais, assim como as de gênero, raça ou classe. Mas nenhum de nós pode voltar no
tempo. (…) O conceito de jornalismo literário muda tanto de acordo com o tempo
quanto muda de acordo com fronteiras culturais ou de identidade” (2011, p. 5, tradução
livre).
A intangibilidade do tempo é indissociável do jornalismo como um todo, mas
fica ainda mais evidente em meio à prática do jornalismo literário de lidar,
costumeiramente, com o intangível como estética.

É, obviamente, difícil compreender o conceito do intangível, pois está além


dos nossos conhecimentos. Para um gênero que argumenta pela referência de
uma aparente solidez dos fenômenos – pela ´vida real´ –, isso é

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epistemologicamente desconcertante e até mesmo contraintuitivo, porque


significa que aquilo que dizemos e pensamos ser a ´vida real´ não é
completamente tangível. O referente, afinal, está sempre reflexivo quanto a
algum grau de incompletude, não apenas por motivos de linguagem, mas
também por nossas limitações sensoriais, que não conseguem conceber tudo o
que é a ´vida real´ (HARTSOCK, 2016, p. 47, tradução livre).

John C. Hartsock (2016, p. 48, tradução livre) considera que esse atributo
“possui implicações em qualquer discurso caracterizado como ‘literário’ mas que, ao
mesmo tempo, argumenta refletir a experiência dos fenômenos ou, em outras palavras,
do mundo físico. De fato, não fica mais claro se estamos em um mundo de poesia ou de
física”. Para além do caráter literário, portanto, há os limites da própria linguagem e da
percepção humana.
É salutar, ao lidar com o limiar do sensível, compreender o jornalismo literário
menos pelo produto final, o livro-reportagem ou o texto carregado de estilo, e mais pela
intangibilidade do processo. É o que Hartsock traz para a discussão que, em tantos
casos, na tentativa de encaixar “peças” de jornalismo literário como um quebra-cabeça
para formar um mosaico mundial pretensamente coeso, torna-se um relato em que as
experiências se perdem,.
Bak (2017) corrobora boa parte destas análises. Ele pergunta, por exemplo:
“dada a vasta diferença entre continentes e países, seja nas suas histórias, sociedades ou
culturas, como poderíamos esperar que aquilo que é julgado como Jornalismo Literário,
digamos, no Japão, poderia ser similar, muito menos idêntico, ao que é produzido na
Argentina?” (p. 233). Ainda assim, a busca pela internacionalização segue como um
tema central de seu trabalho, mas considerando as complexidades. Afinal,

(...) definir o Jornalismo Literário internacional em termos estritos seria


transformar o que é essencialmente um processo orgânico, que está em
constante fluxo, em um produto embalado. Por essa razão, os debates sobre os
padrões internacionais de verdade, os conceitos do modo literário, o acesso aos
fatos e o jornalismo objetivo versus fenomenológico arriscam-se a atolar o
Jornalismo Literário internacional, e seu correspondente campo de estudos
acadêmicos, em disputas institucionais (…) (BAK, 2017, p. 250).

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Bak chega à conclusão de que o caminho é o da mudança de tratamento do


jornalismo literário como forma jornalística, como fazem Sims e Hartsock, e talvez
como um elo entre jornalismo e literatura, para tratá-lo como disciplina.
É nesse ponto que as diferenças tendem a superar as semelhanças. Não no
sentido da transformação da forma que o jornalismo literário assume em cada contexto,
mas na tendência, observada por Bak (2017), do jornalismo literário de diversos países à
“imitação” do ​New Journalism​ estadunidense.
Será o caso de uma disciplina ou de certa indisciplina para compreender o
contexto histórico-cultural de boa parte do mundo, com o processo identitário de seus
próprios “jornalismos literários”? Em um eventual cenário de um jornalismo literário
realmente internacional, como ir além da perspectiva já cristalizada do ​New Journalism
e do debate americano/europeu tradicional, não apenas colonialista, mas anacrônico?
Este processo identitário, aliás, traz à tona uma relação fundamental de
influência do individual sobre o cultural e vice-versa, um desenvolvendo o outro, que é
inerente às obras de jornalismo literário, cuja tangibilidade Hartsock (2016, p. 49,
tradução livre) discute:

Qual a base, então, para escolhermos as metáforas concretas que


selecionamos? Quais as nossas motivações? E é aqui que a total complexidade
das influências culturais e individuais se apresenta. Mas o que não pode ser
ignorado – omitido – é o fato de que por cada fenômeno ser diferente, ele
sempre apresenta, nas qualidades que o distinguem, potencial para extrair
novas formas de visualizar, de romper e rever premissas tomadas como
garantidas, caso as diferenças estejam fora do que o leitor está habituado a ver
e, mais ainda, se mais diferenças – as inicialmente intangíveis – forem
detectadas posteriormente. Por esta razão, seres humanos não são
exclusivamente autômatos culturais, com suas cordas orquestradas pela
cultural em uma sinfonia cultural. Indubitavelmente há uma sinfonia cultural
ali. Mas dentro da percepção de que pode haver uma particularidade,
aparentemente arrancada pela raiz, da qual surgem oportunidades para uma
dissonância cognitiva da sinfonia – e libertação da visão habitual.

É neste cenário que, considerando a estética da experiência, emoção e a razão


seriam igualmente importantes – lastros inevitavelmente presentes na prática do

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jornalismo literário, que “tem esse objetivo de oferecer ao leitor uma experiência
simbólica da realidade” (LIMA, 2014, p. 16).
A jornalista Fabiana Moraes, em seu livro, reflete sobre isso: para ela, há “uma
ética discursiva (...) que precisa emergir e ser colocada em prática, iniciando e
alimentando um processo de alargamento da consciência individual do jornalista,
simultaneamente a uma ampliação do grau de cidadania e da participação política dos
indivíduos” (MORAES, 2015, p. 200).
Edvaldo Pereira Lima (2014, p. 21) defende que “(...) os bons jornalistas
literários enxergam e veem também com os olhos da alma. Captam a realidade com sua
inteligência racional e com seus sentimentos, com a razão e com a intuição. Então,
assim, conseguem ver o invisível”. Tornar visível o invisível é um caminho para
encontro do jornalismo literário com seu potencial político.

3. Estética e política

A história de Joicy e Fabiana começa no setor de ginecologia do Hospital das


Clínicas, no Recife, Pernambuco. Joicy estava em uma fila de mulheres transexuais,
nascidas como homens mas autoidentificadas com o gênero feminino, que ansiavam por
uma cirurgia de redesignação sexual. O olhar da repórter, num primeiro momento, não a
identificou como uma das mulheres da fila. Foi preciso que Joicy chamasse atenção de
Fabiana para que o encontro acontecesse: “​Depois de me ouvir perguntar o nome de
cada garota e não me dirigir a ela, Joicy levantou a mão. ‘Ei, moça. Eu sou a próxima
daqui a fazer a cirurgia’”​ (MORAES, 2015, p. 94).
A não ser pelas unhas pintadas de vermelho, pelos peitos já protuberantes e por
ser cabeleireira, Joicy Melo da Silva não tinha a aparência feminina, nos conta Fabiana
na reportagem. A ex-agricultora não usava maquiagem nem vestido, estava ficando
careca, sentava com as pernas abertas, era musculosa e por vezes rude. Fabiana
percebeu então como Joicy se destacava das demais, pela diferença na diferença. Um
destaque que representava mais opressão.

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Sem os marcadores que a fariam, externamente, ser ‘mulher’, Joicy termina


sofrendo um preconceito duplo, que vem tanto daqueles que não experimentam
a sua condição quanto das próprias transexuais. Estas olhavam com certa
incredulidade para aquela mulher. Era como se, naquele banco, um intruso
estivesse sentado entre elas. Como se fosse uma piada de mau gosto feita por
alguém que estava ali para lembrar a aparência que elas tinham antes dos
longos cabelos e das calças justas. (MORAES, 2015, p. 34-35)

A escolha de Fabiana por acompanhar o caso de Joicy foi questionada pelo


médico Sabino Pinho. Na segunda conversa com a repórter, o cirurgião perguntou: “–
Por que você escolheu logo Joicy? Há outras transexuais aí com aparência mais
feminina, seria bem melhor.” Fabiana relata no livro que, depois dessa conversa,
sentiu-se ainda mais instigada a pensar sobre a dificuldade de compreensão do feminino
em Joicy, um feminino não associado a adereços ou a um estereótipo ideal de mulher.
Esse encontro inicial de Fabiana e Joicy, as barreiras que se apresentaram em
seguida na relação de Joicy com parentes e vizinhos, com o amigo-namorado, com as
burocracias do Estado e com a própria Fabiana, além do papel da reportagem e de sua
extensão em livro, fazem-nos acionar o que Rancière (2005) nomeia como partilha do
sensível. A ideia de partilha sugere tanto a participação em um comum (comunidade)
quanto a distribuição de partes (separação). É dessa relação entre o que é partilhado e o
que é apartado que se trata. A partilha do sensível dá a ver quem pode tomar parte no
comum e quem são os sem parte.
A condição de transexualidade, em uma sociedade que patologiza o conflito
entre sexo biológico e gênero psicossocial, já garante àquelas mulheres da fila para a
cirurgia um lugar de partida entre os sem parte, que para ser alterado carece de um
movimento que escancare a invisibilidade prévia na divisão do sensível. De certa forma,
a própria cirurgia é uma tentativa de deslocar os corpos de lugar. No caso de Joicy, a
invisibilidade permanece mesmo entre os sem parte. É preciso que ela instaure uma
cena polêmica com a repórter para tornar-se visível.
A repartição das partes e dos lugares, portanto, pode ser refeita; o comum pode
ser reconfigurado. Para Rancière, é entre a definição de uma ordem sensível

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estabelecida e a restituição da igualdade na partilha desigual do comum que emerge a


política. A política diz respeito ao conflito sobre a própria existência do comum e a
definição das posições a ele relacionadas. Quando fala em política, o filósofo francês
não está tratando da luta pelo poder, mas da redefinição dos possíveis, em que sujeitos
sem parte alteram a ordenação da partilha e seus lugares nela, ainda que
provisoriamente.

Essa distribuição e essa redistribuição dos lugares e das identidades, esse corte
e recorte dos espaços e dos tempos, do visível e do invisível, do barulho e da
palavra constituem o que chamo de partilha do sensível. A política consiste em
reconfigurar a partilha do sensível que define o comum de uma comunidade,
em nela introduzir novos sujeitos e objetos, em tornar visível o que não era
visto e fazer ouvir como falantes os que eram percebidos como animais
barulhentos. (RANCIÈRE, 2010, p. 21)

O estranhamento das pessoas por Joicy ter sua história contada pela reportagem
revelava como aquela mulher, cuja imagem provocava espanto e riso e cuja fala
precisava se embrutecer para ser ouvida, confrontava a divisão conformada do comum
no imaginário social. Na vida ordinária, a rejeição e a incompreensão criavam
constrangimentos à cabeleireira.
Antes da cirurgia, Antônio Alves e José Luiz Moraes, amigos de Perpétuo
Socorro, distrito de Alagoinha, onde Joicy mora, não aceitaram fazer foto ao lado dela.
Outro amigo, Cosmo de Freitas, topou, mas empurrou Joicy quando ela passou o braço
sobre seus ombros. Isso tudo é percebido e narrado por Fabiana. Diferentemente dos
homens, as mulheres e crianças da vizinhança não se importavam de aparecer perto
dela. Na volta para casa pós-redesignação sexual, os bêbados faziam troça. “Olhe, eu
quero ser o primeiro, viu?” “Cadê, eu quero ver como ficou.”
A carência de Joicy vinha também da ausência de apoio da família. Fabiana
transcreve em parte da reportagem um diálogo entre Joicy, a irmã Maria Dejanira e a
sobrinha Luciana, quando a transexual conta que a cirurgia estava marcada.

(...) Luciana: Não acredito que vai ficar como mulher, a ciência está muito
avançada, mas não é a mesma coisa…
Joicy: E que agouro é esse?

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Luciana: Tu sempre foi assim, normal. Agora quer fazer isso, ficar assim.
Dejanira: Eu não quero nem saber o dia.
Joicy: Pois eu vou dizer, é dia 21, segunda-feira.
Luciana (com cara de riso): E vai mudar o resto do corpo também? Tirar esse
jeito de homem?
Dejanira: Olha, você quer, siga em frente.
Luciana: Sabe o que eu acho? Que tu devia continuar assim, tio João. Mas
você é muito ignorante, com as pessoas, com a sociedade, só quer estar certo.
E você está errado.
Joicy: Errado não, errada.
Luciana: Para mim, vai ser sempre errado.
Dejanira: Isso é coisa de louco. Tá precisando de tratamento. Eu nunca vou te
chamar de Joicy.
(...) (MORAES, 2015, p. 44-45)

Foi quando o amigo-namorado Cristiano Dorneles deixou Joicy sozinha no


hospital, após quatro dias como seu acompanhante, que ela chorou. “Ele não vai me
deixar só não, ele é uma pessoa boa, não vai fazer isso”, dizia. Fabiana lembra que viu
ali o tamanho da solidão de Joicy. A esperança que a vida mudasse após a cirurgia não
se concretizou. A atenção que faltava de pessoas próximas aparecia, por outro lado, em
demonstrações inesperadas, como de profissionais do hospital.
Quanto ao afeto, Joicy também parece ser excluída da partilha. Por isso, cada ato
de consideração trata o dano causado por um ordenamento que, pela diferença, priva a
transexual de um amor sem senões. O “amigo” Dorneles – assim grafado inicialmente
por Fabiana – ficava entre aspas porque se esquivava de ser nomeado como amor. Em
uma relação conflituosa, Dorneles se aproveitava de parte do pouco dinheiro de Joicy,
mas fazia gestos de carinho que não vinham de familiares, como ficar ainda que por
poucos dias no hospital. Fabiana traz essas reflexões no decorrer do livro.
Os possíveis de Joicy, ampliados pela redesignação sexual, tornavam-se
limitados ainda pela condição financeira da cabeleireira. Sua sala era, ao mesmo tempo,
seu salão de beleza; uma porta separava esse cômodo da cozinha/banheiro; no quintal,
havia um esgoto a céu aberto. A dificuldade de estrutura e apoio, o desleixo de Joicy e a
postura dos profissionais de saúde que a atendiam levaram a um pós-operatório
inadequado, explica Fabiana. O canal vaginal aberto na transexual acabou fechando.

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Pensar a narrativa de ​O nascimento de Joicy a partir de Rancière nos ajuda a


reprogramar o papel da discussão estética no Jornalismo Literário. Para o filósofo, a
estética não é uma teoria da arte com efeitos sobre a sensibilidade, mas “um modo de
articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e
modos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da
efetividade do pensamento” (RANCIÈRE, 2005, p. 13).
Além da literariedade do texto, das técnicas e do estilo que permitem fruir as
histórias de vida, cabe pensar nas possibilidades de emancipação e opressão que a
linguagem carrega, na emergência do político que as escolhas do repórter e as brechas
nas organizações jornalísticas, em interação com os sujeitos e os grupos sociais, podem
deixar florescer, de modo a tensionar um comum pré-fabricado.
A estética que há na base da política, para Rancière (2005), não tem a ver com
“estetização da política”, com a captura da política por uma vontade de arte, mas com o
sentir determinado por um sistema de forças. Se por um lado a política é estética por
princípio, por outro há uma diferenciação na modernidade provocada pela
autonomização da estética que define uma comunidade do sensível sobre a distribuição
das ordens e das partes (RANCIÈRE, 1996).

A relação entre estética e política é então, mais precisamente, a relação entre


essa estética da política e a “política da estética”, isto é, o modo pelo qual as
próprias práticas e formas de visibilidade da arte intervêm na partilha do
sensível e em sua reconfiguração, pelo qual elas recortam espaços e tempos,
sujeitos e objetos, algo de comum e algo de singular. (RANCIÈRE, 2010, p.
21)

A prática jornalística, como outras práticas estéticas, reconfigura o mapa do


sensível. Caminha no limiar entre a reprodução do comum consensual e a abertura de
mundos comuns litigiosos, entre a separação dos sem parte e a contagem de sujeitos
incontados, entre o que cabe nas parcelas coercitivas e a expansão dos possíveis. No
jornalismo literário, em que a troca entre repórter, personagem e seus mundos tende a
ser mais visceral, o encontro manifesto de subjetividades pode conduzir à repartilha.

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Fabiana e Joicy se misturam nas maneiras de fazer, pelo texto e pela vida, suas
intervenções no comum.

4. Colonialidade e gênero

O corte estético que distribui as partes na modernidade é marcado pela


colonialidade. Desde o final dos anos 1990, um grupo de intelectuais latino-americanos
compreende, por diversas abordagens, a colonialidade como constitutiva da
modernidade, deslocando a modernidade da posição de universal, na medida em que é
uma interpretação situada da realidade europeia. O sociólogo peruano Aníbal Quijano
(2009) assume a colonialidade como um conceito diferente do colonialismo. Mesmo
após a descolonização, a colonialidade permanece, por ser profunda e duradoura,
atravessando instituições e relações sociais.
Como um projeto de desprendimento das colonialidades do poder, do saber e do
ser aparecem as ideias de descolonialidade/decolonialidade. Também no caso dos
sentidos, conformados pela colonialidade, busca-se uma opção estética decolonial.
Walter Mignolo (2015), semiólogo argentino, prefere falar em ​aesthesis​, de modo a
desprogramar a estética ocidental hegemônica, ligada à esfera da arte, ao belo e ao
sublime. Na ​aesthesis,​ cabem processos e acontecimentos pelos quais são estimulados
os sentidos e as respostas do corpo (MIGNOLO, 2015).
Não se trata de propor uma estética, “mas estéticas que conservem
particularidades e ao mesmo tempo possam estabelecer diálogos inter e transestéticos
articulados a projetos que persigam a superação da colonialidade global” (GÓMEZ,
2014, p. 18, tradução livre). Para Pedro Pablo Gómez (2014), é das margens da
colonialidade, da fronteira, que podem ser constituídos lugares de enunciação que
projetem outros mundos possíveis.
Uma foto de Hélia Scheppa inspirou Fabiana para a capa da série sobre Joicy.
Nela, a transexual, nua, escondia o corpo, ainda que sem os cabelos, tal qual a Vênus de
Botticelli, obra renascentista que constitui arquétipo da feminilidade moderna ocidental.

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Outro fotógrafo, Rodrigo Lôbo, voltou então à casa da cabeleireira para fazer a foto
final, que depois receberia composição de elementos de ​O nascimento de Vênus​, como
os anjos e a concha.

Joicy (...) tinha imenso orgulho daquele corpo que ia pouco a pouco
construindo, um corpo que não precisava se ancorar no feminino socialmente
construído para se fazer valer. Não para ela. Assim, para mim, aquela capa era
essencial, era necessária, era um manifesto , era Joicy olhando de frente e nos
olhos de todos aqueles que sempre, durante toda a sua vida, estranharam a sua
presença no mundo. (MORAES, 2015, p. 129)

Imagem 1 - Capa da série de reportagens ​O nascimento de Joicy​,


publicada no Jornal do Commercio em versão impressa e em site especial

Fonte: ​http://www2.uol.com.br/JC/especial/joicy

A mulher transexual nordestina da caatinga tomava então o lugar da Vênus


branca e loira do imaginário europeu. Um outro feminino exposto na imagem e no título
da série. Ao ser incorporada por exterioridades da fronteira periférica, a imagem

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ocidental é profanada, num movimento estético/estésico decolonial. Há na Joicy/Vênus


e em toda a história da ex-agricultora o enfrentamento da classificação social3 e da
colonialidade de gênero que teima em desumanizá-la.
A hierarquia dicotômica entre humano e não humano, para a filósofa feminista
argentina María Lugones (2014), é central na modernidade colonial. Lugones discute a
colonialidade de gênero enquanto opressão de gênero, racializada e capitalista. Um
exercício de poder concreto, que aparece em diversas instâncias sociais, inclusive nas
instituições que normatizam e patologizam a vida.
Nas reportagens e no livro, Fabiana considera as controvérsias sobre a cirurgia
de redesignação sexual. A cirurgia era garantida no Brasil pelo Sistema Único de Saúde
(SUS) por ser a transexualidade ainda tratada como transtorno de personalidade4. Mas
havia um projeto legislativo para impedir o procedimento gratuito. O então deputado
Miguel Martini, do Partido Humanista Cristão (PHS/MG), autor do projeto, em
entrevista à Fabiana, expôs o pensamento hierárquico que alcança inclusive
classificações de sofrimento: “Não estou dizendo que transexuais não sofrem, mas
sofrimentos devem ser priorizados”.
Em sua peregrinação burocrática antes e depois da cirurgia, Joicy precisou lidar
com um atendimento de saúde que desconsiderava as particularidades de seu cotidiano.
Psicóloga e médico cumpriam o que estava delimitado a cada função. Como se Joicy
“não tivesse que voltar para aquela vida que, como o tempo diria, não dava conta
daquela perfeita intervenção que foi realizada em seu corpo” (MORAES, 2015, p. 118).
A cirurgia exige um cuidado que a classificação social torna desigual.
No caso da colonialidade de gênero, a tentativa de superá-la é assumida por um
feminismo decolonial. Mais do que uma narrativa da opressão, Lugones (2014) acredita

3
Quijano propõe o conceito de classificação social como “processos de longo prazo nos quais os
indivíduos disputam o controlo dos meios básicos de existência social e de cujos resultados se configura
um padrão de distribuição do poder centrado em relações de exploração/dominação/conflito entre a
população de uma sociedade e numa história determinada” (2009, p.100). Segundo ele, as classificações
são baseadas no trabalho, na raça e no gênero.
4
Este ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como
transtorno mental na Classificação Internacional de Doenças (CID), passando a tratá-la como condição
relativa à saúde sexual.

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que esse feminismo pretende expor a diferença colonial, resistindo ao hábito de


apagá-la. Perceber a diferença colonial, conceito trabalhado por Mignolo, é perceber as
hierarquizações que deslegitimam as diferenças.
O enquadramento jornalístico, no afã de denunciar, pode reforçar as hierarquias,
desumanizar outra vez. Por isso são potentes as agências que brotam da – ou apesar da –
subjugação. Fabiana descreve a casa de Joicy como feita de caos, pobreza e
paredes-manifesto (escrito a mão na parede da sala/salão de beleza, aparece um pedido
de Joicy para ser chamada pelo novo nome); o corpo da transexual é tão sofrido quanto
revolucionário.
A proposta de Lugones (2014) é pensar os processos de resistência e o ser
colonizado que habita um lócus fraturado, com lados em conflito. A ferida colonial, nos
sujeitos, manifesta-se na multiplicidade da fratura do lócus, que aciona tanto a
colonialidade de gênero quanto o posicionamento de uma noção subalterna. Cabe à
leitura feminista descolonial compreender os sujeitos e enfatizar a subjetividade ativa:
“(...) é nas histórias de resistência na diferença colonial onde devemos residir,
aprendendo umas sobre as outras” (LUGONES, 2014, p. 948).
O encontro entre Joicy e Fabiana foi desses momentos de aprendizado possível,
mas também de cobranças e mágoas. As expectativas e os interesses delas diferiam
pelos papéis que cada uma ocupava na relação e pelas condições de classificação social
a que estão submetidas. A repórter negra e estudada da capital diante da cabeleireira
transexual e pobre da caatinga.
Joicy, inicialmente, pareceu gostar da atenção dispensada pela equipe de
reportagem. Com o tempo, passou a fazer queixas e cobranças a Fabiana. Até que, após
receber doações em dinheiro por parte de leitores das reportagens, Joicy pôs-se a
questionar a repórter sobre questões financeiras, insinuando que Fabiana estaria ficando
com seu dinheiro.
Já Fabiana sentiu-se desafiada por aquela aproximação, que lhe permitia
observar o mundo ao lado de Joicy - e que interessava a ela, como é dito no livro, tanto
como jornalista quanto como futura doutora em sociologia, na época nos últimos meses

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da pós-graduação. Mas, depois, impelida a um distanciamento por conta da dificuldade


de lidar com Joyce.
Quando anunciou a Joicy que a série de reportagens havia vencido o Prêmio
Cidadania em Respeito à Diversidade e que a ex-agricultora viajaria com ela de avião
até São Paulo, Fabiana esperava uma empolgação que não veio. Em São Paulo, Joicy
fez acusações sobre o uso de sua imagem pela repórter. A tensão entre as duas acabou
antecipando o retorno de Fabiana ao Recife. No dia seguinte, numa discussão por
telefone, Fabiana despejou o que a magoava.
Compreender os processos de colonialidade é também captar as aproximações e
tensões do encontro entre repórter e personagem. Lugones (2014) trata de uma lógica de
coalizão, que desafia as dicotomias da lógica de poder e não reduz a multiplicidade.
Mas ​O nascimento de Joicy nos mostra que é possível pensar concomitantemente em
uma lógica de colisão, que expõe as diferenças como parte da complexidade das
relações entre lócus fraturados e da tentativa de descolonizar a práxis jornalística do
distanciamento, da não afetação.

5. Desobediência epistêmica

A politização da estética no jornalismo literário, com base na desconstrução da


colonialidade, torna-se importante tanto para a discussão ética do fazer jornalístico
quanto para a discussão epistemológica do campo do jornalismo ou de uma eventual
formulação disciplinar específica, como defendem teóricos do jornalismo literário nos
Estados Unidos. As reflexões da repórter Fabiana Moraes na obra trazem
questionamentos sobre o padrão ocidental de construção do conhecimento no jornalismo
a partir própria experiência de contato e escrita sobre Joicy.
Quando conta de quando decidiu conversar com Joicy sobre Dorneles, para que
ela se cuidasse e guardasse algum dinheiro para o tempo em que não poderia trabalhar,
Fabiana percebe ter ido contra o “circuito técnico do jornalismo”: “(...) já me sentia
comprometida com Joicy, acompanhava, apesar de há pouco tempo, sua

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vulnerabilidade. Minha atitude não estava dentro do citado círculo técnico do


jornalismo, mas era totalmente compatível com meu sentimento de responsabilidade.”
(2015, p. 102).
Mas há um limite para a responsabilidade que é definido por cada aproximação.
Por mais que o lugar de Joicy em um comum seja restituído narrativamente, com o
tratamento de um dano, as condições de vida são resilientes. “Joicy me cobrava
incessantemente a responsabilidade pela melhoria de sua vida - eu, do meu lado, sabia
que havia tentado justamente provocar isso por meio da exposição das violências e do
desrespeito pelos quais ela passava” (MORAES, 2015, p. 114).
Além da relação com a personagem, há uma ética que acompanha o ato de
narrar, de como contar em palavras uma história que diz respeito a uma outra vida. Por
vezes, narrativas sobre sujeitos subalternizados seguem o caminho da vitimização, que
desconsidera as contradições e podem resvalar em sensacionalismo.

O desafio era escrever sobre aquela batalha sem vitimizar sua protagonista: me
arrepiam, e não de maneira positiva, as reportagens que resvalam para o
sentimentalismo no intuito de sublinhar a dor do Outro. O fato é que certas
histórias (...) já são feitas de muito sofrimento, tornando-se desnecessário
sensacionalizar, espezinhar essa condição. A face questionadora briguenta e
desconfiada de Joicy também estava posta nessas entrelinhas, o que ajudava a
sublinhar, isso sim, a sua ação - e toda ação, sabemos, é transformadora.
(MORAES, 2015, p.133)

Fabiana defende, na parte final do livro, o que chama “jornalismo de


subjetividade”, uma expansão que vai além da “rede técnica” da prática da reportagem –
sem, contudo, negá-la. “(...) englobamos as fissuras e as subjetividades inerentes à vida
– o resultado é uma produção na qual o ser humano é percebido em sua integralidade e
complexidade, com menos reduções” (2015, p. 159). Nesse caso, o subjetivo é visto por
ela como elemento político.
O movimento de ​O nascimento de Joicy​, desde a reportagem até as reflexões
sobre o contato com a personagem e as discussões teóricas sobre o jornalismo, leva-nos
a pensar como, antes de uma amarração disciplinar agregadora que parte de acadêmicos
dos Estados Unidos, cabe incluir no literário o componente político que lhe falta e

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considerar as manifestações da colonialidade, não como exigência, mas como uma


opção que busca situar as ideias, descolonizar as práticas, além de abrir-se a outras
escrituras e outras formas de estar no mundo.
O jornalismo literário, por si, já propõe liberar certas amarras de um jornalismo
ocidental hegemônico, que tenta esconder emoções e valoriza certa racionalidade
objetiva. Experiências da América Latina e do Sul global, que estabelecem espaços de
fronteira com saberes subalternizados, permitem um passo adiante, num sentido daquilo
que Mignolo (2015) chama de desobediência epistêmica.

A descolonialidade requer uma desobediência epistêmica, porque o


pensamento fronteiriço é, por definição, pensar na exterioridade, nos espaços e
tempos que a autonarrativa da modernidade inventou como seu exterior para
legitimar sua própria lógica de colonialidade. (MIGNOLO, 2015, p. 189,
tradução livre)

Essa postura de desobediência do pensamento e dos sentidos tenta sair dos


mecanismos de controle do conhecimento e da subjetividade. Para além do jornalismo
literário transfronteiriço de Sims (2011), a ideia de habitar a fronteira, para Mignolo
(2015), é estar fora desse lugar das hierarquias geográficas, raciais, sexuais. Pensar na
exterioridade é pensar com a subjetividade, mas também com o outro, e contar histórias
que não cabem nas caixas estreitas da modernidade. O que nasce de Joicy e Fabiana
parece forçar os limites da caixa.

Referências

BAK, John S. Rumo a uma definição de jornalismo literário internacional. Braz. journal. res.,
Brasília, Vol. 13, n. 3, dezembro de 2017.

DOW, William. ​The center and beyond​: the expansion of American literary journalism
studies. Revista Famecos (Online). Porto Alegre, Vol. 23, n. supl., outubro de 2016.

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Pedro Pablo (Org.). ​Arte y estética en la encrucijada descolonial II​. Buenos Aires: Del Signo,
2014.

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HARTSOCK, John C. ​Literary journalism and the aesthetics of experience​. Boston:


University of Massachusetts Press, 2016.

LIMA, Edvaldo P.​ Jornalismo Literário para Iniciantes​. 1. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2014.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. ​Estudos Feministas​, Florianópolis,


v.22, n.3, p.935-952, set./dez 2014. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755/28577​. Acesso em: 17 maio 2018.

MIGNOLO, Walter. ​Habitar la frontera​: sentir y pensar la descolonialidad (Antología,


1999-2014). Barcelona/Ciudad Juárez: CIDOB/UACJ, 2015.

MORAES, Fabiana. ​O nascimento de Joicy​: transexualidade, jornalismo e os limites entre


repórter e personagem. Porto Alegre: Arquipélago, 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de


Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). ​Epistemologias do sul​. Coimbra: Almedina / CES,
2009. Cap.2, p.73-117.

RANCIÈRE, Jacques. A estética como política. ​Devires​, Belo Horizonte, v.7, n.2, p.14-36,
jul./dez. 2010. Disponível em:
http://www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/article/view/325/186​. Acesso em: 7 maio
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SIMS, Norman. ​International literary journalism in three dimensions​. Annual conference of


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