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Marília Gehrke1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: A perspectiva da notícia como forma de conhecimento, trazida inicialmente por Ro-
bert Park, parece uma abordagem pertinente para pensar nas transformações e no futuro do jor-
nalismo. Por meio de discussão teórica e da criação de um modelo para reportagem, pretende-se
mostrar que o jornalismo de dados reúne características que permitem aproximá-lo da ciência,
semelhante ao que sugere Philip Meyer, elevando o grau de conhecimento produzido. Acredita-
se que é possível inserir o jornalismo de dados dentro do continuum proposto por Park, mas em
um ponto específico e próximo do conhecimento sobre, ou seja, do conhecimento científico, que
pode ser checado.
Introdução
1
Jornalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS) e membro do Grupo Jornalismo Digital - JORDI
(UFRGS/CNPq).
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Parece oportuno resgatar a abordagem trazida por Park à medida que está posto
um cenário jornalístico em transformação. A internet não é apenas um ator, mas sim a
responsável por um novo ecossistema (ANDERSON, BELL E SHIRKY, 2013) em que
o público tem cada vez mais participação, o formato tradicional das empresas de comu-
nicação já não faz muito sentido e que o próprio jornalista questiona quais são suas tare-
fas e potencialidades.
A proposta deste artigo é mostrar que o jornalismo de dados, cuja técnica envol-
ve coleta, análise e apresentação de informações, reúne características que permitem
aproximá-lo da ciência, elevando o grau de conhecimento produzido. Um segundo obje-
tivo é estabelecer um modelo a ser seguido em reportagens, visando o método científi-
co. Para tanto, faz-se necessário retomar a abordagem de Philip Meyer sobre o jornalis-
mo de precisão – que viria a embasar o jornalismo de dados – desenvolvida da metade
para o final dos anos de 1960, com ideais científicos.
Por meio de revisão bibliográfica, que procura explicar e discutir um assunto,
tema ou problema com base em materiais publicados (MARTINS E TEÓPHILO, 2009),
este trabalho apresenta discussão teórica sobre as ideias de Robert Park e em seguida
um apanhado evolutivo do que hoje é conhecido como jornalismo de dados. Discute-se,
então, a interseção entre os dois conceitos e propõe-se um modelo. A partir das contri-
buições de Philip Meyer, que acredita na necessidade de empurrar o jornalismo na dire-
ção da ciência, busca-se um avanço: sugere-se que o jornalismo de dados receba uma
posição específica e próxima do conhecimento sobre dentro do continuum proposto por
Park.
2. O conhecimento no jornalismo
Jornalista que se tornou sociólogo, Robert Park (1940) foi o primeiro a pensar no
tipo de conhecimento produzido pela notícia. Pelo contexto em que foi aplicado, o ter-
mo notícia é sinônimo de jornalismo – e assim será empregado neste artigo. Sob a ótica
de Park, a notícia tem como função orientar o homem e a sociedade no mundo. “A no-
tícia é ‘algo que faz as pessoas falarem’, tende a ter caráter de documento e está limita-
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No original “News is ‘something that will make people talk’, tends to have the character of a public
document, and is characteristically limited to events that bring about sudden and decisive changes”
(PARK, 1940, p. 669).
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familiar com muitas pessoas e coisas, das quais sei muito pouco, exceto sua
presença nos lugares onde as encontrei. Eu conheço a cor azul e a vejo, e o sa-
bor da pêra quando a experimento; eu conheço uma polegada quando movo
meu dedo através dela; um segundo de tempo, quando eu o sinto [...] a diferen-
ça entre duas coisas eu percebo; mas sobre a natureza interna desses fatos ou o
que faz eles serem o que são eu nada posso dizer. Eu não posso transmitir fami-
liaridade para quem não passou por eles. Eu não posso descrevê-los, fazer um
homem cego adivinhar como é o azul, definir silogismo para uma criança ou
dizer a um filósofo em que distância o respeito é o que é e que difere de outras
formas de relação. No máximo posso dizer aos meus amigos irem a alguns lu-
gares e agirem de certa forma que esses objetos provavelmente virão (JAMES,
1890, tradução livre).3
Pela classificação de James, que originalmente nada tem a ver com as notícias,
mas com a psicologia, é possível conceber que o conhecimento por familiaridade é mais
superficial e envolve um contato de experimentação, enquanto que o conhecimento so-
bre requer algo mais intrínseco, um conhecimento pouco mais aprofundado e sistemáti-
co.
Apropriando-se das categorias de James para inserir a notícia, Park (1940) expli-
ca que acquaintance with, ou familiaridade com, é o tipo de conhecimento que alguém
adquire de forma inevitável no contato com as pessoas e com o mundo. É um conheci-
mento que não parte de uma investigação formal, mas que vem com o uso. É um conhe-
cimento incorporado ao hábito.
Ele ainda relaciona outras formas de acquaintance with: conhecimento clínico
(ao menos se for um produto de experiência própria); habilidades e conhecimento técni-
co; e tudo aquilo que pode ser aprendido por experimentação indireta e inconsciente.
Park (1940, p. 672) diz que este conhecimento sintético não tende a ser articulado nem
3
No original “There are two kinds of knowledge broadly and practically distinguishable: we may call
them respectively knowledge of acquaintance and knowledge-about [...] I am acquainted with many peo-
ple and things, which I know very little about, except their presence in the places where I have met them.
I know the color blue when I see it, and the flavor of a pear when I taste it; I know an inch when I move
my finger through it; a second of time, when I feel it pass; an effort of attention when I make it; a differ-
ence between two things when I notice it; but about the inner nature of these facts or what makes them
what they are, I can say nothing at all. I cannot impart acquaintance with them to anyone who has not
already made it himself. I cannot describe them, make a blind man guess what blue islike, define to a
child a syllogism, or tell a philosopher in just what respect distance is just what it is, and differs from
other forms of relation. At most, I can say to my friends, go to certain places and act in certain ways, and
these objects will probably come” (JAMES, 1890, disponível online).
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comunicável. “Se ele se torna comunicável será nas máximas práticas e na sabedoria
popular e não na forma de hipótese científica”.4
Em contraste à familiaridade com há o conhecimento sobre, ou knowledge
about. Park classifica esse conhecimento como formal, que atingiu algum grau de exati-
dão e precisão. Basicamente porque sai do âmbito das ideias e avança para uma realida-
de concreta. Descreve Park (1940, p. 672): “Tal conhecimento é formal, racional e sis-
temático. Está baseado na observação e em um fato que foi checado, classificado, regi-
mentado e alinhado a esta ou aquela perspectiva, de acordo com o ponto de vista do
investigador”.5
O conhecimento sobre, conforme Park, abrange os seguintes tipos de conheci-
mento científico: filosofia e lógica, relacionadas às ideias; história, preocupada princi-
palmente com eventos; e as ciências naturais ou classificatórias, que se preocupam em
primeiro lugar com as coisas. Knowledge about é utilizado por Park como sinônimo de
jornalismo científico – que contrasta com outras formas de conhecimento porque é co-
municável. “É comunicável porque seus problemas e soluções estão situados não me-
ramente em termos lógicos e inteligíveis, mas em formas que podem ser checadas por
experimento ou referência a uma realidade empírica a qual esses termos se referem”
(PARK, 1940, p. 674).6
Park diz que as duas formas coexistem. Reconhece que acquaintance with, ou
familiaridade com, que está ligado ao acúmulo gradual de experiências de vida, pode
gerar insights e se tornar o primeiro passo para grandes descobertas. Afinal, o que seri-
am os cientistas sem suas percepções cotidianas? O mesmo pode ser pensado no jorna-
lismo.
Afirma que, se é inesperado o que acontece, não é totalmente inesperado o que
se torna notícia. Basicamente questões do cotidiano acabam entrando no noticiário, co-
mo nascimentos e mortes, condições do plantio, política, tempo. “Parece que a notícia,
4
No original “If it gets itself communicated at all, it will be in the form of practical maxims and wise saws
rather than in the form of scientific hypotheses” (PARK, 1940, p. 672).
5
No original “Such knowledge is formal, rational and systematic. It is based on observation and fact but
on fact that has been checked, tagged, regimented, and finally ranged in this and that perspective, accord-
ing to the purpose and point of view of the investigator” (PARK, 1940, p. 672).
6
No original “It is communicable because its problems and solutions are stated not merely in logical and
in intelligible terms but in such forms that they can be checked by experiment or by reference to the em-
pirical reality to which these terms refer” (PARK, 1940, p. 674).
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como forma de conhecimento, contribui com seus registros de evento não só para a his-
tória e a sociologia, mas para o folclore e a literatura; contribui não somente para as
ciências sociais, mas para as humanidades” (PARK, 1940, p. 681).7
As ideias de Robert Park inspiraram outros autores, décadas depois, a discutirem
sua proposta. Meditsch (1997, p.2) entende que o jornalismo é uma forma de produção
de conhecimento, mas faz algumas ressalvas: avalia que essa forma de conhecimento
“tanto pode servir para reproduzir outros saberes quanto para degradá-los, e é provável
que muitas vezes faça essas duas coisas simultaneamente”.
O autor resgata três principais interpretações. A primeira não define o jornalismo
como forma de conhecimento, mas como um ideal abstrato a alcançar – nesta mesma
abordagem está a ideia de que o jornalismo não produz conhecimento válido, mas de-
grada o saber. A segunda abordagem, em que menciona Park, Meditsch (1997, p. 3)
esclarece que se compreende o jornalismo como uma ciência menor e não inútil. “[...]
Park começa a definir o jornalismo a partir do que tem de diferente, do que lhe é especí-
fico como forma de conhecimento da realidade”. Uma terceira abordagem citada por
Meditsch justamente segue esta linha do diferente, de que o jornalismo revela a realida-
de de uma forma única e original. Acrescenta, ainda, que o jornalismo não apenas re-
produz o conhecimento que ele próprio produz, mas reproduz o conhecimento de outras
instituições sociais.
Genro Filho (1987) defende que o conhecimento gerado socialmente pelo jorna-
lismo ocorre por meio das categorias universal, particular e singular. As informações
são cristalizadas pelo singular, classificado pelo autor como a matéria-prima do jorna-
lismo. Ainda que a angulação seja caracterizada pela singularidade, o conteúdo da in-
formação está associado ao particular e ao universal, que seriam os horizontes do conte-
údo.
Meditsch (1997, p. 7) diz que a fragilidade e a força do jornalismo residem no
fato de ele operar no campo lógico da realidade dominante. Admite que há algum co-
nhecimento de fundo. “[...] O conhecimento do jornalismo será forçosamente menos
7
No original “Thus it seems that news, as a form of knowledge, contributes from its record of events not
only to history and to sociology but to folklore and literature; it contributes something not merely to the
social sciences but to the humanities” (PARK, 1940, p. 681).
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rigoroso do que o de qualquer ciência formal mas, em compensação, será também me-
nos artificial e esotérico”.
As contribuições de autores que buscam identificar o modo de produção do co-
nhecimento do jornalismo são essenciais, mas neste artigo o ponto de partida de Park é
que recebe destaque por sua originalidade e pela possibilidade de avanços, já que o tex-
to foi escrito em uma realidade de comunicação de massa, que não inclui o uso contínuo
do computador pessoal e da internet. Acredita-se que há semelhanças entre o jornalismo
como forma de conhecimento de Park, em especial no extremo que envolve o conheci-
mento científico, e a ideia de Philip Meyer de aproximar o jornalismo da ciência.
A partir da metade dos anos de 1960, Meyer (1991) começou a trabalhar com a
possibilidade de uso do método científico ao que chamou de jornalismo de precisão, que
incorporava ferramentas de coleta e análise de dados à busca disciplinada da ciência em
nome de uma verdade verificável. Park (1940, p. 682) dizia que as ciências sociais, mais
recentes do que as exatas, começaram a alcançar níveis de “precisão científica”.
No texto de Park, o uso do termo “precisão” está mais associado à ciência de
uma forma geral, e não do jornalismo. Marocco e Berger (2008, p. 11) interpretam que a
notícia é “Dotada de um contexto interpretativo, que se pode conseguir observando pe-
ríodos de tempo extensos e através de técnicas quantitativas e qualitativas precisas ine-
rentes ao que [Park] considera ‘jornalismo de precisão’”. Ainda que dê pistas sobre isso,
a expressão “jornalismo de precisão” não aparece no texto original de Park. Essa con-
cepção viria a ser trabalhada por Philip Meyer anos mais tarde.
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ção, a mídia precisa de mais autoconfiança, e a melhor forma de adquiri-la é por meio
do conhecimento” (MEYER, 1991, p. 3-4)9.
Franciscato (2006) observa que, na segunda metade do século XX, diante da
crítica sobre o jornalismo como produtor de um relato fiel da realidade, além de ques-
tões a respeito da dependência de fontes e da superficialidade temática e na abordagem
dos fatos, surgiram propostas para revigorar o jornalismo. Uma delas era justamente o
jornalismo de precisão.
O jornalismo de precisão ganhou destaque na época de surgimento do New
Journalism, nos anos 1960, em que a noção de objetividade no relato dos fatos ficou em
segundo plano para dar lugar a uma característica literária. O problema foi a incorpora-
ção, nos textos, de aspectos fora da realidade. Para Meyer (1991), essa corrente empur-
rou o jornalismo no sentido da arte – o que pode ser um problema quando não se tem
disciplina –, quando o mais apropriado seria impulsionar o jornalismo na direção da
ciência, com ferramentas de busca e análise de dados para se chegar a uma verdade veri-
ficável.
Para amparar tal convicção, Meyer (1991) cita as observações do físico Lawren-
ce Cranberg (1989), para quem o jornalismo é uma ciência. Em sua perspectiva, o jorna-
lista e o cientista social têm em comum o compartilhamento do conhecimento e a com-
preensão da humanidade – ainda que o jornalista não costume ser visto como um prati-
cante da ciência.
Conforme Cranberg (1989), textos que remetem aos princípios do jornalismo
não chegam a mencionar uma ciência do jornalismo, mas citam a função primária do
jornalismo em comunicar à humanidade o que seus membros fazem, sentem e pensam.
Para o funcionamento da ciência, teóricos reconhecem a importância da capacidade de
observação e raciocínio, que tanto o jornalista quanto o cientista carregam consigo.
[...] Ainda que muitos jornalistas pensem que são praticantes da literatura, exis-
te uma vasta lacuna entre a escrita imaginativa para entretenimento e os crité-
rios de exatidão, equidade e objetividade do jornalismo. Essas normas clara-
mente separam o jornalista do escritor de ficção e fazem do jornalista um
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No original “To defend against being manipulated, the media needs more self-confidence, and the best
route to self-confidence is through knowledge” (MEYER, 1991, p. 3-4).
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Passou a vigorar no Brasil no mês de maio de 2012 e é aplicável a órgãos públicos das esferas munici-
pal, estadual e federal.
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No original “It permits us to speculate with some assurance how, and to what extent, any specific inter-
vention or interference in a present situation may determine the situation that is predestined to succeed it”
(PARK, 1940, p. 673).
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Considerações finais
No original “Without resources and time needed to employ social science methods, many journalists
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will continue to be rather passive transmitting agents who depend largely on what somebody else thinks
or knows [...]” (WEAVER E MCCOMBS, 1980, p. 492).
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Referências
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2014. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/21670811.2014.976400>. Acesso em: 5 jul.
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GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo.
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MACHADO, Elias. O pioneirismo de Robert Park na pesquisa em Jornalismo. In: Revista Es-
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MEYER, Philip. The new precision journalism. Bloomington: Indiana University Press, 1991.
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WEAVER, David H.; MCCOMBS, Maxwell E. Journalismand social science: a new relation-
ship? Public Opinion Quarterly. V. 44. Amsterdã: Elsevier North-Holland, 1980.
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