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FATOS JORNALÍSTICOS, ACONTECIMENTOS

E DISCURSOS: REFLEXÕES SOBRE OS


CADERNOS DE POLÍCIA
Alda Cristina Costa1 Considerações Iniciais
Kristopher Jon-Samuel2 Os jornais impressos paraenses O Liberal e Diário do Pará são uns dos últimos veículos
a manterem em suas edições a editoria de polícia com formatos de jornalismo popular,
RESUMO que apela às imagens e manchetes sensacionalistas com a finalidade de atrair e seduzir o
público leitor. Diariamente, os paraenses ao abrirem as páginas dos respectivos cadernos,
Fatos, discursos e acontecimentos
principalmente o Diário do Pará, ainda se deparam com imagens que chocam e questio-
são elementos que se intercruzam
no fazer jornalístico, gerando inter- nam a noticiabilidade dos fatos divulgados.
discursos com a finalidade de criar
uma relação com o público leitor. A Na presente escrita, tomamos como objeto de análise os dois impressos, levando em
razão de ser do jornalismo é dar aos
fenômenos sociais o caráter de acon- consideração que eles constituem o corpus de investigação do projeto de pesquisa Mídia
tecimento, considerando os critérios e Violência: as narrativas midiáticas na Amazônia Paraense, realizado na Universidade
de noticiabilidade e visibilidade. Ou Federal do Pará/Faculdade de Comunicação em parceria com o Conselho Nacional de
seja, a noticiabilidade é o conjunto de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O artigo objetiva refletir sobre o
elementos que forma o aparato infor-
mativo que vai controlar e administrar “encontro‟ produzido pelo fazer jornalístico entre fato, acontecimento e discurso nas
a quantidade e o tipo de aconteci- matérias construídas sobre violência. Neste alinhavo, recorremos a Ponte quando se vale
mentos que devem ser selecionados do pensamento de Foucault para compreender os conhecimentos criados ou reproduzidos
e transformados em notícias para os
leitores. O presente artigo tem como pelas notícias:
objetivo analisar como os cadernos Apesar de serem escassas as suas referências ao jornalismo, o olhar de Michel
polícias dos jornais Diário do Pará e O Foucault (1976) sobre o conhecimento não como objeto ontológico mas como
Liberal constroem discursivamente a
violência como acontecimento e/ou
processo, constituído por enquadramentos conceituais em construção discur-
fato jornalístico. Consideramos que fa- siva contínua, estimula a atenção aos conhecimentos criados ou reproduzidos
tos jornalísticos e discursos possuem nas notícias, com disputa de significados por parte de fontes de informação,
estatutos distintos, mas com seme- jornalistas. Também na sua concepção de ordem de discurso, os procedimentos
lhanças a aproximações quando o
jornalismo é tomado nas páginas im- discursivos de exclusão e de imposição podem ser mobilizados na apreciação da
pressas como discurso. Neste sentido, cultura jornalística (PONTE, 2005, p. 17).
analisamos que a violência, tomada
como objeto pelos dois veículos para-
enses, assume construções diferencia-
O jornalismo se constituiria assim, como campo que reivindica as competências de pro-
das de sentidos, mesmo considerando duzir verdades sobre o real. Por outro lado, a realidade dos indivíduos são experiencia-
o fato único abordado. Na análise, das na sua relação com os meios de comunicação. Como afirmam Medistch e Sponholz
selecionamos, aleatoriamente, quatro (2011), ao prefaciarem o livro “O poder cultural desconhecido: fundamentos da Ciência
cadernos de Polícia (dois de cada
jornal), do mês de março de 2012. dos Jornais”, “curiosamente, a maioria das pessoas que dizem que o jornalismo se tornou
obsoleto contínua sendo usuária de produtos jornalísticos, mesmo tendo agora todo o
PALAVRAS-CHAVE: Fato jornalístico. outro conteúdo da internet como alternativa” (2011, p. 23).
Acontecimento. Discurso. Violência.
Caderno Polícia.
É nesta linha de discussão que selecionamos os jornais impressos, por representarem
_________________________ ainda, apesar do anúncio quase sempre de sua morte, referenciais para as pessoas no
consumo das informações. As notícias publicadas constroem sentidos para o público
1 - Coordenadora do projeto de pes-
quisa Mídia e Violência: as narrativas leitor. Notícia seria a narração de um fato, enquanto que o acontecimento é a percepção
midiáticas na Amazônia paraense; do fato em si ou da notícia. Ou como escreve Alsina (2009, p. 14), “a notícia é uma re-
professora do Programa de Pós- presentação social da realidade quotidiana, gerada institucionalmente e que se manifesta
-Graduação Comunicação, Cultura e
Amazônia e da Faculdade de Comu- na construção de um mundo possível”.
nicação.
Ao conceituar acontecimento, Alsina (2009) vai designar três termos que teriam implica-
2 - Graduando em Comunicação
ções nos acontecimentos sociais: acontecimento informativo, acontecimento jornalístico
Social – Jornalismo (UFPA) e bolsista
PIBIC do Projeto Mídia e Violência: e acontecimento-notícia. Para o autor, um fenômeno se torna acontecimento quando um
narrativas midiáticas na Amazônia sujeito aplica, sobre o fenômeno, uma percepção específica, derivada das normas de
paraense. e-mail: kristopher.samuel@ um ecossistema ao qual o acontecimento sempre está relacionado: “O ecossistema, ou
hotmail.com
melhor dizendo, suas normas, é fundamental para definir um fato como acontecimento”
(ALSINA, 2009, p. 140).

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Nesse sentido, recorremos à metodologia jornalista Paulo Maranhão. A história des- ser uma notícia dominante e mais disse-
da análise do discurso da escola francesa. se jornal será modificada a partir de 1966, minada do que outros assuntos aos olhos
Para Focault (1969), o discurso constitui quando o empresário Romulo Maiorana, da mídia, e consequentemente a preocu-
uma série de acontecimentos presentes proprietário de uma grande rede lojista, pação com esse fenômeno social aumen-
numa dimensão histórica e com mate- como o jornal O Liberal. tou exponencialmente, uma vez que tem
rialização na linguagem sob a forma de sido gerada uma cultura do medo entre as
enunciados. E também a discussão empre- Já no início da década de 1970, O Liberal pessoas, a partir das inúmeras matérias
endida por Márcia Benetti sobre aconteci- já era considerado o jornal mais lido do produzidas, seja nos veículos impressos
mento e discurso. Estado. Um ano depois, a família Maiora- ou televisivos.
O acontecimento jornalístico e na adquire o jornal “Folha do Norte”, da Nas análises realizadas, focamos nossas
o acontecimento discursivo pos- família Maranhão, e transfere as instala- reflexões nesse fazer jornalístico em que
suem estatutos distintos, mas são ções de O Liberal para o prédio, no centro se misturam fatos, acontecimentos e dis-
conceitos que podem ser apro- de Belém. O jornal conta com uma tira- cursos, nas construções das matérias dos
ximados, e mesmo confundidos, gem média de 42 mil exemplares durante cadernos polícia
quando o jornalismo é abordado a semana e aos domingos, este número Discute-se, inclusive, a diferença
como discurso. Porém, nem todo chega a dobrar. entre “acontecimento midiático”
fato é um acontecimento jornalís- e “acontecimento existencial”. É
tico, bem como nem toda enuncia- Em 1982 entra em circulação o jornal Di- importante notar a complexidade
ção é um acontecimento discursi- ário do Pará com a finalidade de dar sus- deste assunto, pois o “aconteci-
vo (BENETTI, 2009, p.1). tentação política a Jader Barbalho, que foi mento” é o que garante “noticia-
eleito pela primeira vez, governador do bilidade” para determinados fa-
O fazer jornalístico acaba assumindo uma Estado, pelo então, Movimento Democrá- tos sociais na pauta jornalística.
prática discursiva na contemporaneidade, tico Brasileiro (MDB), depois de liderar a (LAIGNIER, 2009, p. 235).
quando especificamente na editoria de oposição local ao regime militar. Nos impressos paraenses ainda constata-
polícia, busca construir sentidos com ob- mos a máxima “Se tem sangue, vira man-
jetivo de ‘falar’ uma linguagem que seja A partir da eleição de Jader e de seu cres- chete”, conforme reza o antigo lema dos
repetitiva e repleta de outros sentidos para cimento no cenário político regional e jornais populares – aos quais se reage com
o público leitor. nacional, o Diário do Pará começa a cres- compaixão, ou indignação, ou excitação,
cer e disputar o mercado editorial com O ou aprovação, à medida que cada desgra-
Os jornais impressos paraenses Liberal. O Diário começa a inovar na sua ça se apresenta”. (SONTAG, 2003, p. 20).
O Liberal e o Diário do Pará são jornais proposta editorial, lançando produtos ou Destacamos que os fatos (LAIGNIER,
concorrentes, que disputam desde a dé- cadernos de aproximação com o público, 2009, p. 235) vão sendo selecionados no
cada de 1980, através das Organizações principalmente das classes C, D e E. E é cotidiano para integrarem o dispositivo
Romulo Maiorana (ORM) e Rede Brasil nessa linha que o impresso vai criar duas “jornal”, tornando-se noticia a partir de
Amazônia de Comunicação (RBA), o novas editorias, em 2000 e 2003: de es- um recorte que privilegia aqueles “acon-
mercado das comunicações no estado do porte com o caderno “Bola”, o formato ta- tecimentos” que chocam a sociedade, seja
Pará. Essa disputa passou a ser mais acir- bloide e que se dedica apenas à cobertura pelas imagens ou pelos textos.
rada a partir de 2006, quando o Instituto de esportes, nacional e local; e o caderno
Brasileiro de Opinião (Ibope) divulgou de “Polícia”, no formato popular, utilizan- Nos cadernos de polícia do Diário do Pará
pesquisa em que o Diário do Pará teria do imagens e textos com apelo à violência e O Liberal, a violência vem exposta em
assumido a liderança, do jornal mais lido e jargões vulgares ou típicos da polícia média de 8 a 14 páginas, dependendo do
no Estado. (AZEVEDO e NOGAMI, 2011, p. 21)3. dia, com notícias sobre crimes que ocor-
rem, principalmente, na periferia das cida-
O jornal O Liberal foi fundado na década A violência como fato jornalístico des paraenses. Diferente do jornal Diário
1940, pelo então governador do Estado, Nos últimos anos, uma das grandes preo- do Pará, que privilegia sempre violência
Magalhães Barata e serviu de escudo aos cupações com o fazer jornalístico, princi- urbana ocorrida na periferia de Belém, o
ataques políticos da “Folha do Norte”, do palmente nas editorias de polícia, forma, jornal O Liberal distribui as matérias entre
conteúdo e linguagem utilizados pelos crimes locais, nacionais e internacionais.
jornais impressos na cobertura de eventos Na nossa escrita, analisaremos apenas
______________________________
que tratam sobre o fenômeno violência, a matéria que terá chamada de capa nos
4 - Trabalho de Conclusão de Curso têm sido questionados, considerando qua- cadernos polícia dos dois periódicos para-
apresentado em 2009, intitulado “Os se sempre o apelo que fazem ao sensacio- enses.
jornais impressos e o conflito entre
os interesses públicos e privados” por
nalismo, à espetacularização e à banaliza-
Giseli Nogami e Gabriela Azevedo, ção dos fatos. O fato jornalístico e a violência
na Universidade da Amazônia sob Em primeiro lugar precisamos definir e
orientação da professora Alda Cristina Observamos que a violência passou a delimitar o conceito do fato. De acordo
Costa.

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com Sponholz, o fato do ponto de vista mação discursiva („um discurso nhecedor” (SPONHOLZ, 2009,
ontológico pode ser considerado como é um conjunto de enunciados que p. 57).
aquilo que existe, o ser e o dado bruto, tem seus princípios de regularida-
enquanto do ponto de vista epistemoló- de em uma mesma formação dis- Constatamos assim, que a comunicação
gico daquilo que se conhece, o resultado cursiva‟), para Foucault, a aná- participa na formação e não mudança da
da atualização da recepção dos estímulos lise de uma formação discursiva realidade, portanto, as manchetes pre-
vindos do mundo exterior (SPONHOLZ, consistirá, então, na descrição sentes nos cadernos ativamente alteram a
2009, p. 57). Neste sentido, podemos di- dos enunciados que a compõem. realidade do acontecimento, pois os jorna-
zer que existe o fato tal como acontece e (...) O discurso seria concebido, listas banalizam, desprezam e trivializam
o fato construído pelos meios de comuni- dessa forma, como uma família o acontecimento, os acusados e as vítimas
cação. Porém, no campo do jornalismo, o de enunciados pertencentes a envolvidas. Ou naquilo que escreve Tra-
fato é definido e muitas vezes como sinô- uma mesma formação discursiva. quina, a construção da notícia implica a
nimo de acontecimento e noticia. São três (BRANDÃO, 2004, p.33). utilização de “enquadramentos” (frames),
elementos diferentes que podem se com- conceito utilizado por Goffman (1975), no
plementar. A formação deste discurso, de acordo com sentido de organizamos a vida quotidiana
Foucault é feito por um conjunto de regras para compreendermos e respondermos às
O acontecimento constrói o fato jornalís- que forma uma prática social que por fim situações sociais. “Aplicado no estudo das
tico, mas esse discurso jornalístico é re- constitui a sociedade como um todo por notícias, o enquadramento é um disposi-
presentado como um recorte da realidade, meio de relações tivo interpretativo que estabelece os prin-
não a realidade em si. O fato, como pro- Uma formação discursiva consis- cípios de seleção e os códigos de ênfase
duto jornalístico de acordo com Sponholz, te de regras de formação para o na elaboração da notícia, na construção da
é um recorte da realidade. É preciso que conjunto particular de enuncia- “estória” (TRAQUINA, 2000, p.28).
este recorte feito pelo jornalismo se apro- dos que pertencem a ela e, mais
xime da realidade ou tenha veracidade especificamente, de regras para Sentidos e seleção dos fatos
para o público. Ou seja, por mais que os a formação de objetos, de regras A noticiabilidade é determinada por um
jornalistas façam recortes da realidade, no para a formação de modalidades conjunto de critérios de relevância que
sentido que eles relatam um acontecimen- enunciativas e posições do su- estão ligadas à organização do trabalho,
to, é evidente que esta realidade é uma jeito, de regras para a formação sobre as quais se constroem convenções
representação. de conceitos e de regras para a profissionais que determinam a definição
formação de estratégias (FOU- de notícia, legitimam o processo de pro-
O acontecimento, segundo Sponholz é CAULT apud FAIRCLOUGH, dução e contribuem para prevenir as crí-
frequentemente utilizado como sinônimo 2001, p. 65). ticas do público. Assim, a noticiabilidade
de fatos quando se trata de falar sobre equivale a introduzir práticas de produção
ocorrências no mundo exterior a nós. Esta Nas matérias analisadas dos cadernos de estáveis aos acontecimentos do mundo, o
definição do acontecimento é bastante polícia dos dois jornais impressos para- que está vinculado ao conceito de pers-
ontológica, mas no campo do jornalismo enses, é possível perceber a construção pectiva da notícia. Em outras palavras, é o
o acontecimento é mais epistêmico, pois dos sentidos nesse recorte da realidade, conjunto de elementos por meio dos quais
ele é uma construção. O autor Adriano principalmente nas manchetes, que são o aparato informativo controla e adminis-
Rodrigues (apud BENETTI, 2009, p. 3) alteradas para formar um discurso que não tra a quantidade e o tipo de acontecimen-
define o acontecimento jornalístico como privilegia a seriedade do fenômeno vio- tos que servirão de base para a seleção de
“tudo aquilo que irrompe na superfície lência. Se tomarmos alguns aspectos da notícias. Na seleção dos eventos a serem
lisa da história entre uma multiplicidade semiótica, mesmo não sendo objeto deste transformados em notícias, os critérios de
aleatória de fatos virtuais”. Tomando isso artigo, constatamos uma diferença entre o relevância funcionam conjuntamente, sen-
como pressuposto, podemos então estabe- objeto imediato, que é a representação do do as diversas relações e as combinações
lecer uma relação entre o acontecimento acontecimento e o objeto dinâmico, que é que se determinam entre diferentes valo-
jornalístico e a noticia, embora nem toda o acontecimento em si. res/notícia. Mas como ficaria a noticiabi-
notícia deva ser considerada como um (...) Uma declaração sobre uma lidade da violência nos jornais impressos?
acontecimento jornalístico. coisa não pode ser a coisa em
si. Assim como uma foto de uma O gatekeeping na concepção de Shoe-
O conjunto dos acontecimentos jornalísti- montanha não é a montanha em maker e Vos “é um processo de seleção
cos que se tornam notícias, forma um de- si, uma declaração descritiva e transformação de vários pequenos pe-
terminado discurso para seus leitores. Sob sobre um acontecimento não é o daços de informação na qualidade limita-
o ponto de vista do Foucault, o discurso é acontecimento em si. Isto significa da de mensagens que chegam às pessoas
considerado: que toda proposição é uma figura, diariamente, além de ser o papel central
como um conjunto de enunciados uma imagem de um fato, ou seja, da mídia na vida pública moderna” (2011,
que se remetem a uma mesma for- algo mediado por um sujeito co- p. 13). Com a teoria do gatekeeping, dia-

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logamos com os pressupostos levantados Para entender como os conceitos são for- atores e lugares a serem registrados nesses
por Mauro Wolf (1999) e de Pamela Shoe- mados sobre a violência nos jornais im- espaços. A periferia seria assim, um am-
maker (2011). O ‘gatekeeping’ é interpre- pressos, identificamos, primeiro, como a biente perigoso, parece que somente nes-
tado como o processo em que a tábua de violência é tratada nos dois, a partir das sas áreas reside a violência ou os sujeitos
várias mensagens é reduzida e dissemina- matérias publicadas nos mesmos. Identifi- que acometem. Somente a pobreza seria
da ao público nos jornais e na televisão. camos que há uma diferença no tratamen- responsável por essa violência, sem os jor-
A teoria é válida na área de comunicação to da violência nos dois periódicos, com nais fazerem a leitura dos outros contextos
e do jornalismo, sobretudo, na sociedade a utilização de expressões, tratamento das que constituem a violência na sociedade.
moderna, uma vez que o público é bom- pessoas envolvidas, acusado ou vitima, Ao retratar os fatos, principalmente o
bardeado por uma imensa gama de infor- assim como os sentidos criados e o uso jornal Diário do Pará, vai trabalhar uma
mações, e com esta teoria é possível indi- da linguagem sensacionalista ou não para linguagem que deprecia o envolvido, fa-
car o raciocínio usado para a seleção das atrair os leitores. zendo na maioria das vezes, uma correla-
informações publicadas pelos emissores. ção entre a sua condição e o local em que
É importante lembrar que todas as mensa- No jornal O Liberal, percebemos uma foi encontrado morto, utilizando ironias,
gens disponíveis hoje em dia, não podem construção que se aproxima de um fazer relações com ficções, sejam novelas ou
ser disseminadas porque o espaço da dis- jornalístico preocupado com a questão éti- filmes, e discriminando o sujeito do seu
seminação é limitado. Nos jornais existem ca. Já o Diário do Pará apela ao aspecto discurso.
as limitações do papel e na televisão existe banal, trivial e descomprometido, com um
a limitação do tempo; portanto, será utili- tratamento vulgar de vários elementos na Ao entrevistarmos o editor do jornal O
zado o ‘gatekeeping’ em várias partes da formação discursiva. Liberal, Lázaro Cardoso, indagamos so-
produção de notícias e na disseminação bre o porque do veículo ainda trabalhar a
delas. Nos dois jornais, em algumas edições, os editoria de polícia com apelo dramático e
fatos são abordados de forma idêntica. popular, o jornalista respondeu “o cader-
A formação dos discursos nos Cader- Embora considerando que os fatos sejam no (policial) só existe porque ele é o mais
nos de Policia organizados e apresentados em cada jor- lido. Você vai extinguir o que é mais lido?
A formação discursiva dos cadernos poli- nal, o acontecimento ou fato jornalístico Do ponto de vista administrativo, não”,
cia dos jornais impressos paraenses, „Diá- apresentado ao público não apresenta sentenciou. Continuou, “o caderno existe
rio do Pará‟ e „O Liberal‟, é organizado a grandes variações. porque o público quer que exista”.
partir da descrição de um campo de enun-
ciados a ela associado, em que os concei- A violência abordada como fato jornalís- Por exemplo, abaixo são manchetes docu-
tos “surgiram e circulam” (Fairclough, tico nos cadernos policia é sempre a vio- mentadas de duas diferentes edições dos
2001, p. 71). lência da periferia. As periferias de Belém cadernos policiais do Diário do Pará e O
e sua grande área metropolitana são os Liberal.

Figura 01 – Descrição das construções

O Liberal Diário do Pará


Manchete Assassinado em Marituba Policial Militar é liquidado ao tentar impedir execução

Foto A foto mostra o corpo no asfalto, com traços de A foto mostra dois corpos no chão, coberto por um pano branco
sangue visíveis e um carro da policia civil no fundo ensanguentado.

Fonte Polícia Militar Policia Militar e testemunhas


Bairro Distrito Industrial, Ananindeua Vila do Carmo, PA-140.
Elementos Abordados nos jornais de 12 de Março de 2012

Figura 02 – Descrição das construções


Jornais Fato jornalístico Acontecimento Discurso
O Liberal Assassinado em Marituba. Um homem foi morto com Discurso mais literal do fato, com
Lei do Silencio atrapalha as tiros em Distrito Industrial apelo ao sensacionalismo.
investigações
Diário do Pará O policial militar foi ‘liqui- Um policial militar tentou Discurso sensacionalista e chama-
dado’ à bala ao intervir em impedir um homicídio, mas tivo para os fins de vender sem ne-
uma execução foi morto. nhum respeito com a vítima.
Elementos Abordados nos jornais de 12 de Março de 2012

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Figura 03 – Descrição das construções

O Liberal Diário do Pará


Manchete Acidente mata motoqueiro Motociclista acerta caminhão e morre na hora

Foto A foto mostra a moto destruída em cima do corpo A foto mostra a moto destruída em cima do corpo com traços
coberto por um pano, com três policias no fundo de sangue na pista

Fonte Policia Rodoviária Federal, Testemunhas. Policia Rodoviária Federal, Testemunhas.


Bairro BR-316 Marituba BR-316 Marituba
Notícias de 14 de Março de 2012

Figura 04 – Descrição das Construções


Jornais Fato jornalístico Acontecimento Discurso
O Liberal O acidente mata o motoqueiro Um motoqueiro morreu em Discurso critico das condições
após bater a motocicleta que um acidente na BR 316, em péssimas das rodoviárias no
conduzia contra uma caçamba. colisão com um caminhão. Pará
Diário do Pará O motoqueiro perdeu controle Um motoqueiro morreu em Discurso sensacionalista e ape-
da moto e teve morte instantânea um acidente na BR 316, em lativo para persuadir o público,
quando ele acertou o caminhão. colisão com um caminhão. usando manchetes agressivas e
O choque foi tão forte que peda- fotos ensanguentadas
ços da vitima ficaram na pista
Elementos abordados nos Jornais de 14 de Março de 2012

O discurso construído pelos jornais im- contrário, uma função do próprio dessa periferia. A formação do discurso
pressos sobre a violência é na maioria das enunciado. (FAIRCLOUGH, 2001, nesses periódicos é claramente negativa e
vezes sensacionalista ou apelativo. O uso p. 68). preconceituosa. Nas notícias apresentadas
de manchetes agressivas, irônicas, pre- Continua afirmando que Foucault atribui pelo caderno polícia do Diário do Pará há
conceituosas, e de fotos com sangue ou um papel fundamental para o discurso na uma alteração de sentidos na construção
com um cadáver exposto ressalta a cita- constituição dos sujeitos sociais. Por im- discursiva, pois o acontecimento ganha
ção no livro da autora, Susan Sontang “Se plicação, “as questões de subjetividade, um destaque em que, ora o jornal brinca
tem sangue, vira manchete”. A linguagem identidade social e domínio do eu devem com a desgraça, ora o jornal discrimina
conotativa usada nas páginas do Caderno ser do maior interesse nas teorias de dis- os sujeitos envolvidos, ora o jornal apela
Policia frequentemente revela os critérios curso e linguagem, e na análise discursiva para seduzir o público leitor, sem, contu-
de relevância obvio na escolha das maté- e linguística” (FAIRCLOUGH, 2001, p. do, apontar aspectos importantes do pro-
rias publicadas. Porém, o discurso cons- 69). blema social.
truído pelos diferentes jornais impressos
no mercado paraense, mostra os critérios A partir do momento que o discurso é A violência passa a ser um fenômeno ori-
de relevância usados na escolha das maté- enunciado, podemos deduzir o posiciona- ginado da e pela periferia, e tem „conta-
rias publicadas. mento do sujeito social por meio de aná- minado‟ as áreas mais abastadas da socie-
lise das particularidades nas modalidades dade. Percebemos um discurso produzido
As atividades discursivas são produzidas enunciativas formado por si. Por exemplo, em que ficam latentes a divisão social e
por um sujeito social, que é responsável o discurso construído pelos jornais im- não a desigualdade social.
pela enunciação, organização e comparti- pressos sobre a violência é na maioria das
lhamento desses discursos. Assim, esses vezes sensacionalista ou apelativo, infe- O jornal impresso o Diário do Pará na
sujeitos sociais, não são isolados e nem rindo que a linguagem utilizada busca fa- cobertura e na publicação de um aconte-
independente desse discurso, por fim po- lar, na avaliação do veículo, com o público cimento violento explora o uso da lingua-
sicionando esse sujeito social. que gosta daquele tipo de notícia. Ou seja, gem irônica, preconceituosa e agressiva.
A principal tese de Foucault com as expressões ou os sentidos construídos Na seleção das fotos publicadas o jornal
respeito à formação de modalida- seriam próprios dos sujeitos a quem os expõe, quase sempre nas suas páginas, os
des enunciativas é a de que o sujei- cadernos se destinam. A violência é mais corpos dos envolvidos, preferencialmente
to social que produz um enunciado um item a ser noticiado com a finalida- sem vida e com marcas de violência, ou
não é uma entidade que existe fora de de venda ou de persuadir um público seja, com a presença de sangue, espaços
e independentemente do discur- com “uma realidade que seria sua” (grifo destruídos pelo ato violento ou cenas que
so, como a origem do enunciado nosso). Os jornais estariam apenas repro- remetem a essas marcas. Quando não é
(seu autor /sua autora), mas é, ao duzindo fatos que acontecem no dia a dia possível ter imagens das pessoas, o jornal

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Referêncuias recorre às ilustrações ou desenhos irônicos e exagerados para chamar a atenção do leitor.
Destacamos aquilo que analisa Benetti (2009, p. 14) ao trabalhar o jornalismo como
ALSINA, Miguel Rodrigo. La construc-
ción de la noticia. Barcelona: Paidós, acontecimento, dizendo que:
1996. É por meio de “um olhar macrossociológico, visualizamos em seu discurso a re-
BENETTI, Marica. 2009. O jornalismo petição de determinados conceitos. É provável que, ao lado do interesse sobre
como acontecimento. In: REBEJ – Re-
os temas relativos ao comportamento – nos quais a política se reduz ao âmbito
vista Brasileira de Ensino de Jornalis-
mo 39 Ponta Grossa, v.1, n.9, p. 09-39, individual –, nossa época possa ser compreendida, por exemplo, pela valorização
jan. a jun. 2012. exacerbada dos atos insignificantes das celebridades, pelo discurso que distancia
ENCONTRO NACIONAL DE PESQUI- o cidadão dos centros de decisão política e pelo desejo mobilizado por objetos de
SADORES EM JORNALISMO, 7., São
Paulo, Anais SBPJor..., p. 1-17, 2009. consumo instituintes de posição social. Também, por outro lado, talvez nossa épo-
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e ca possa ser compreendida pela especialização, pelo crescimento com a preocupa-
Mudança Social/Norman Fairclough; ção ambiental e com os avanços da ciência. Não são exatamente as temáticas que
Izabel Magalhães, coordenadora da
tradução, revisão técnica e prefácio.
definem a permanência discursiva, e sim os sentidos construídos reiteradamente
– Brasília: Editora Universidade de (2009, p. 14-15).
Brasília, 2001.
LAIGNER, Pablo. Por uma teoria do Enquanto no jornal O Liberal, quando as notícias são de crimes locais, quando a foto é
jornalismo: Muniz Sodré em busca dos
elementos que compõem o aconteci- mais forte ou apelativa, a manchete é mais suave; quando a manchete é apelativa, a foto
mento midiático. Revista Matrizes, n. 1, é mais simples, sem corpo ou com corpo coberto. Constatamos assim, um meio termo
p.233-240, aug-dez 2009. para compensar o exagero de um ou do outro. O caderno sempre coloca nas suas edições
PONTE, Cristina. Para entender as
notícias: linhas de análise do discur-
fotos dos acusados, preferencialmente nus da cintura para cima. Mas a apresentação do
so jornalístico. Florianópolis: Insular, discurso da violência periférico é presente e forte no caderno policial.
2005.
RODRIGUES, Adriano Duarte. O Breves Reflexões
Acontecimento. In: TRAQUINA, Nelson
(org.). Jornalismo: questões, teorias e O presente artigo não é conclusivo, mas são reflexões iniciais levantadas a partir do
estórias. Lisboa: Vega, 1993. mapeamento dos jornais impressos paraenses, realizado dentro do projeto de pesquisa
SHOEMAKER, Pamela J e VOS, Tim Mídia e Violência: as narrativas midiáticas na Amazônia Paraense, em parceria entre
P. Teoria do gatekeeping: construção
e seleção da noticia; Porto Alegre: Universidade Federal do Pará/Faculdade de Comunicação e o Conselho Nacional de
Penso, 2011. Desenvolvimento-CNPq. Na construção de um fato jornalístico apontando com base na
SONTAG, Susan. Diante da dor dos teoria do gatekeeping, as interfaces na seleção das notícias que serão publicadas para os
outros. São Paulo: Companhia das
leitores, o jornal O Liberal adota aspectos diferenciados da construção da notícia no seu
Letras, 2003 SPONHOLZ, Liriam. O
que é mesmo um fato? Conceitos e caderno polícia, em comparação ao Diário do Pará; mas ambos, privilegiam não o con-
suas consequências para o jornalismo. teúdo e forma da notícia e seu impacto na sociedade, mas conteúdo e forma passam a se-
Revista Galáxia, São Paulo, n.18, p. 56- rem seleções de intencionalidade com objetivo de manter o público leitor do caderno, por
59, dez 2009.
TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: ques- meio de vendas dos seus jornais. Os dois periódicos seguem uma lógica do mercado, que
tões, teorias e . 2. ed. Lisboa: Vega visa à preocupação das vendas do produto do que o seu impacto negativo na sociedade.
Editora, 1999.
_________________ O poder do
jornalismo: análise e textos da teoria
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2000.
THOMPSON, John B. Ideologia e
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA - UNAMA N. 2 2015 ISSN 1517-199x


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