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Porto Alegre
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Porto Alegre
2015
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................06
1.1 JUSTIFICATIVA..................................................................................................06
1.2 PROBLEMA.........................................................................................................09
1.3 HIPÓTESE..........................................................................................................10
2.2 MÉTODO.............................................................................................................15
2 A CRÔNICA..........................................................................................................17
5.1 A MULATA...........................................................................................................64
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................89
7 ANEXOS .............................................................................................................. 92
8 REFERÊNCIAS ....................................................................................................130
v
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1.1 JUSTIFICATIVA
1.2 PROBLEMA
1.3 HIPÓTESE
1.5 MÉTODO
2 A CRÔNICA
da crônica” (SÁ, 1985, p. 7). Esse gênero, portanto, é o texto mais antigo do país
brasileiro, e foi criado com características literárias. Esse acontecimento é uma das
referências históricas que indica a origem da crônica na nação.
A segunda teoria do surgimento da crônica está nos chamados folhetins,
escritos produzidos por intelectuais no século XIX. O primeiro jornal que deu espaço
para esses textos foi o “Jornal do Comércio”, inaugurado em 2 de dezembro de 1852
no Rio de Janeiro. Esse criou “A Semana”, uma seção em que se publicava ensaios
e críticas literárias influenciados pelo Romantismo. Os principais leitores eram os
burgueses, que usavam o folhetim para criticar a cultura aristocrática da época. Esses
escritos se localizavam no rodapé da página do jornal e eram publicados, por exemplo,
contos, romances, novelas e crônicas. Os jornalistas que escreviam nesse espaço
recebiam notoriedade, status, dinheiro e possíveis publicações de seus escritos por
editoras. No século XX, no entanto, a história jornalística mudou profundamente.
Com o surgimento da segunda fase da Revolução Industrial no final do século
XIX e começo do século XX, o estilo de vida da sociedade no mundo se transformou
radicalmente. O capitalismo crescia e se popularizava ao mesmo tempo que os jornais
da imprensa no Brasil lutavam pela rapidez e difusão de informações. Por isso, os
periódicos eram produzidos através da máquina estilo linotipo criada na Alemanha,
em 1886, por Ottmar Mergenthaler.
Pela primeira vez na história o padrão de vida das pessoas comuns começou
a se submeter a um crescimento sustentado...nada remotamente parecido
com este comportamento econômico é mencionado por economistas
clássicos, até mesmo como uma possibilidade teórica. (JÚNIOR, 2002, p.
109).
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Mas isso não significa que seja uma regra, pois os quatro objetos de estudo dessa
investigação, que serão investigadas no capítulo cinco, são escritas por Clarice
Lispector na terceira pessoa do singular.
Podemos facilmente confundir o trabalho de um cronista com o de escritores
que elaboram contos por causa do semelhante tamanho textual e pela rapidez com
que é redigida. Mas o que diferencia o gênero crônica é que o texto tem o objetivo de
informar e noticiar, em que é registrado a realidade de forma crítica através da
narração humorística ou poética. O conto, no entanto, é produzido para fins literários,
em que a ficção prevalece sobre o real. Outra particularidade é que esse texto exige,
também, uma construção maior de personagens, do tempo e do espaço. Portanto, na
crônica, não há a exigência de explicar onde a história é iniciada e o informações
detalhadas dos personagens nela envolvidos.
O subcapítulo irá mostrar como a crônica tem uma rica classificação textual e
uma potencialidade de contar histórias. Através dessa parte da investigação,
conheceremos cronistas do século XX que influenciaram gerações de leitores dos
periódicos. Ainda, entre muitas classificações, a crônica-conto será definida e
apresentada, pois tem uma função relevante para essa pesquisa através dos textos
clariceanos publicados, no “Caderno de Sábado”, em 1968.
A autora Clarice Lispector desenvolveu crônicas na metade do século XX para
o “Jornal do Brasil” e o seu trabalho foi reconhecido no Rio Grande do Sul através do
suplemento cultural “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”. Ela foi uma escritora
como muitos outros que incentivaram o público leitor a se interessarem pelos
cadernos culturais. Nesse mesmo século, houve críticos que definiram e interpretaram
o gênero crônica, e um deles foi Afrânio Coutinho:
A crônica é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa.
Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera
que se compra num dia e no seguinte é usada para embrulhar um par de
sapatos ou forrar o chão de cozinha (COUTINHO, 1989, p. 6).
1
Luiz Beltrão marcou a sua geração pela sua engenhosa pesquisa científica sobre os fenômenos da
comunicação nas universidades brasileiras. Ele fundou o Instituto de Ciências da Informação, a
ICIFORM, que foi o primeiro centro acadêmico nacional de estudos da mídia. Ainda, Beltrão se tornou
o primeiro doutor em Comunicação na nação brasileira. Ele criou o livro “Teoria e Pesquisa do
Jornalismo”.
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Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto
de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável
desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em
alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um
homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em
ti, meu amor (BRAGA, 1969, p. 112).
Braga relata nesse texto a sua solidão e a saudade de “sua amada” em linhas
poéticas e detalhistas, que pode ser evidenciado na frase: “pensando em ti, pensando
teimosamente, docemente em ti, meu amor” (BRAGA, 1969, P. 112). A repetição de
palavras no trecho acima, por exemplo, é uma característica da “crônica sentimental”.
O texto satírico-humorístico pode ser exemplificado na crônica, “Em Matéria de
Automóveis”, de Fernando Sabino. O autor compara o pouco conhecimento que ele
tem do seu carro novo com a mínima experiência das mulheres na “direção”: “– No
mais – arremata ele – tirante o giguelê, em matéria de automóveis, estou com as
mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas:
buzina e volante” (SABINO, 1963, p.110).
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Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus
sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do
povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele
brilho humano, salgado como lágrima (CONY, 2001, p. 319).
2Afrânio Coutinho elaborou diversos projetos no campo literário, como a seção “Correntes Cruzadas”,
no Suplemento Literário “Diário de Notícias”. Ele escreveu, também, a “Teoria e Técnica Literária”, na
Faculdade de Filosofia do “Instituto Lafayette”, e fez parte da inauguração da Faculdade de Letras na
Universidade do Rio de Janeiro.
3A obra narra uma confusa conversa entre o autor e um interlocutor imaginário na beira de um campo
ao lado de uma estrada na zona rural de Pernambuco. Campos discute sobre o urbano e o rural, para
produzir uma crônica descontraída.
4 Com a narração em terceira pessoa, o jornalista retrata a situação das calçadas de Copacabana,
em que se discute o que poderá estar presente lá, se é carro ou os jardins. No texto, existem dois
personagens que não foram identificados, mas que representam dois pontos de vista dos cariocas
frente à reforma da calçada de Copacabana.
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6 “Nas paredes, além dos pratos chineses – orgulho do velho – a indefectível ‘Ceia do Senhor’, em
reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra
desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor
desconhecido” (PORTO,1963, p. 09).
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Ele é considerado o maior crítico literário do Brasil, além de ser professor universitário, escritor e
ensaísta. Após dois anos de sua formação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo,
Cândido, em 1943, é contratado pela Folha da Manhã para escrever artigos e críticas literárias. Ele
teve a oportunidade de criticar os primeiros livros de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.
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“Então me dá café com leite, pão e manteiga. — Café com leite só se for sem leite. —
Não tem leite? — Hoje, não senhor. — Por que hoje não? — Porque hoje o leiteiro
não veio” (SABINO, 1962, p. 144). Essa “crônica-diálogo” se desenvolve nas
perguntas inquietas do cliente com as respostas vagas do proprietário que dá humor
ao texto.
A “crônica-narrativa”, no entanto, tem como referência o texto, “Depois do
Jantar”, de Carlos Drummond de Andrade. Em uma narrativa ficcional, um homem é
surpreendido por um ladrão no meio da noite na “Lagoa Rodrigo de Freitas”, no Rio
de Janeiro. O texto é uma conversa entre o ladrão e uma pessoa, no qual essa negocia
o que o ladrão irá roubar dela.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio. — Como?
— Já disse. Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire?
Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito.
Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude. O outro
ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de
dono (ANDRADE, 1977, pág. 54).
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no
terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado
(LISPECTOR, 1998, p. 30).
Naquele dia, a galinha iria para a panela, mas, no meio da cozinha, pôs um
ovo. Esse acontecimento emocionou a criança da casa que, insistentemente, adotou-
a como um animal de estimação, como na crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”
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O texto gira em torno de Mila, uma cachorrinha do cronista que se tornou a melhor companhia de sua
vida. Cony conta como foi o primeiro contato dele com a cachorra, em como era pequena diante de
suas mãos: “Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos
atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio
nessa primeira vez” (CONY, 2001, p. 318).
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que será investigada no capítulo cinco dessa pesquisa. Após um determinado tempo,
porém, a galinha virou comida da casa de campo.
A crônica “biográfica lírica”, no entanto, pode ser exemplificada no texto “Viúva
na praia”, de Rubem Braga. O cronista, ao ver uma mulher conhecida de vista que
acabara de ficar viúva, fica surpreso por ela estar na praia. Em uma narração poética,
Braga cria imagens para que o leitor possa visualizar a cena da praia, a mulher com
o seu filho e o cronista deitado na areia no qual observa o acontecimento cotidiano.
9 Professor titular da Universidade de São Paulo, Moisés escreveu grandes trabalhos de pesquisa na
área de filosofia, letras e ciências humanas. Durante um período de sua vida, ele foi um “professor
visitante” em diversas universidades americanas em locais, como “Wisconsin”, “Indiana”, “Vanderbilt”,
“Texas”, “Califórnia” e “Santiago de Compostela”. Ainda, Massaud escreveu o livro “A Literatura
Portuguesa e a História da Literatura Brasileira”, além de produzir a seleção, a introdução e as notas
de contos do Machado de Assis.
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Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem
um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e
dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que
transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos
abismos (ANDRADE, 1985, p. 300).
diversas maneiras. Esse gênero é particular, pois tem um caráter livre e dinâmico, que
se torna um instrumento prazeroso para o escritor expressar a sua opinião e, muitas
vezes, sentimentos. A crônica foi escrita no século XX por muitos autores de renome,
como Clarice Lispector, Rubem Braga e Carlos Heitor Cony. O gênero, nesse século,
foi aperfeiçoado por esses e outros autores que atraíam cada vez mais o número de
leitores de periódicos. A crônica, além de jornais, pode ser publicada em livros. Esse
é um texto jornalístico versátil e rico, que era desenvolvida por muitos escritores.
O subcapítulo “Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de
Contar Histórias”, em suma, é relevante para essa investigação, pois mostra que esse
gênero tem muitas formas criativas de ser escrito. A partir da apresentação de
classificações e exemplificações do texto, podemos perceber que, além de Clarice
Lispector, há outros profissionais que escreveram crônica e que tinha sua forma
inventiva de escrita. Os textos clariceanos, portanto, fizeram parte de um grupo de
crônicas reconhecidas no século XX.
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outubro de 1930, a publicação do manifesto de Getúlio Vargas, que tinha como título:
“Rio Grande, de pé pelo Brasil, não poderás falhar ao teu destino” (STRELOW, 2010,
p. 3)11. Para confirmar que o “Correio” cedeu às ideias políticas, novamente, em 1932,
o jornal se posicionava a favor da Revolução Constitucionalista. Essa situação ficou
mais séria quando o atual diretor do periódico, André Carrazzoni, foi demitido por
escrever um artigo contra a Revolução. Breno Caldas chegou a afirmar, em uma
entrevista, que o “Correio do Povo” “procurava ter uma posição de neutralidade, mas,
para ser bem franco, era, sem dúvida, uma neutralidade simpática aos revoltosos de
32” (CALDAS, 1987, p.110). O ex-presidente do Rio Grande do Sul, Borges de
Medeiros, fazia oposição a Getúlio Vargas na época, e o jornal teve que parar de
publicar notícias sobre a situação política do país a fim de permanecer no mercado.
Em 1935, Breno Caldas assume a diretoria do “Correio do Povo” com a saída
de Alexandre Alcaraz. Sem manter a promessa de completa neutralidade, o jornal
continuou a apoiar Getúlio Vargas, que já tinha se tornado presidente. Por esse
motivo, Caldas tinha enfrentamentos12 com o interventor do Estado, o chamado Flores
da Cunha, o qual se tornou o maior adversário político da folha. Foi um momento difícil
na vida do atual diretor do Correio. Por causa de Cunha, Alexandre saiu do periódico,
forçando este a sair do Rio Grande do Sul. A partir desse acontecimento, o jornal
atacava Flores da Cunha, fazendo com que Getúlio o pressionasse em seu trabalho.
A influência e o posicionamento do “Correio” causavam conflitos políticos – o que
ocorreu na década de 30 foi um deles.
Com a sugestão de Alcides Gonzaga, um colega recém-chegado de Buenos
Aires, Breno Caldas tomou a decisão de criar um tabloide, que foi nomeado “Folha da
Tarde”. Em 27 de abril de 1936, foi a primeira edição do jornal. A “Folha”, porém,
acabou não circulando às 16h, que era o horário oficial, mas sim às 23h do mesmo
dia. Isso ocorreu porque os redatores não sabiam quantas matérias cabia naquele
11 “Os adversários, porém, não queriam apenas a vitória eleitoral, obtida embora à custa de todas as
artimanhas e à sombra dos mais impressionantes e condenáveis abusos do poder. Foram ainda mais
longe os nossos opositores, no seu intuito de triunfar. Vencida a minha candidatura, pretenderam
subjugar a própria liberdade de consciência, a dignidade do cidadão brasileiro e o direito de pensar e
agir dentro da lei” (STRELOW, 2010, p.3).
12 A Assembleia Nacional Constituinte, agendada para maio de 1934, estava sendo pauta frequente no
jornal Correio do Povo. Como este veículo tinha influência política, o interventor do Estado, Flores da
Cunha, esperava que o periódico se posicionasse positivamente a seu posto, mas isso não aconteceu.
A partir desse fato, Cunha declarou “guerra” contra o Correio do Povo, consequentemente, contra Breno
Caldas.
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novo formato e tamanho de página. Mesmo com uma estreia nada profissional, a
“Folha da Tarde” foi um sucesso entre os leitores gaúchos. Nesse ano, segundo
Caldas, a redação contava com os melhores jornalistas do “Correio do Povo”. Durante
a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a população do Rio Grande do Sul recebia
as últimas notícias da guerra através da “Folha da Tarde” porque essa circulava ao
meio dia. E, como não podia faltar um conflito político, o tabloide foi batizado pela
audácia do colunista Vianna Moog pseudônimo de Usbek – em escrever textos
favoráveis a Flores da Cunha. Ademais avisado pelo diretor do Correio, Moog
continuava publicando artigos com a mesma linha política e, consequentemente, foi
demitido logo depois. A “Folha da Tarde” encerrou a sua atividade só em 1964.
Já em 1957, Breno Caldas foi influenciado pelo campo da radiodifusão e criou
a Rádio Guaíba. A emissora investiu demasiadamente em coberturas esportivas e em
programas noticiosos regulares. Foi o próprio Caldas que desenhou toda a
programação da Rádio de acordo com o seu gosto pessoal:
Queríamos, com o advento da Rádio Guaíba, fazer algo com um pouco mais
de nível intelectual (...) o mais impessoal possível. Desde o início de seu
trabalho, a emissora buscou um padrão sóbrio, sem jingles, procurando
respeitar a inteligência, a seriedade do ouvinte (CALDAS, 1998, p.68).
O periódico, porém, sobreviveu até 1980, quando foi enfraquecida por disputas
internas e denunciada por haver comunistas em sua redação.
A TV Guaíba, dirigida pelo Breno Caldas, entrou muito tarde no mercado
televisivo. A febre das televisões começou em 1959, no entanto Caldas inaugurou a
emissora em 1978. Ele, na verdade, tinha dúvidas se ia ter sucesso nesse tipo de
meio comunicacional. Contudo, motivado pelo presidente Médici que lançou a frase
animadora “Vai em frente!” (STRELOW, 2010, p.9), desequilibrou toda a empresa de
Breno. A plataforma do canal de TV foi feita pela Suzana Kilpp, que tinha como
característica “uma programação regional intensa e de caráter cultural (BRAGA, 2001,
p.38). Quando Caldas percebeu que fez investimentos desnecessários que estavam
desestabilizando a sua empresa, mandou o seu filho Francisco Antônio a Brasília para
pedir auxílio ao general Geisel. E deu certo: no Ministério de Comunicações arrumou-
se uma interpretação da lei para que fosse possível recuperar a concessão da TV.
Um fato curioso é que Roberto Marinho, antes da TV Guaíba ser criada,
propôs um acordo para investir 60 mil dólares em uma estação de TV no Rio Grande
do Sul que iria pertencer a Caldas. No entanto, este não aceitou porque queria uma
emissora sua, que somente ele pudesse controlar. Houve programas da Guaíba de
grande qualidade no telejornalismo e na cobertura cultural jornalística 13, mas, diante
do mercado monopolizado, Caldas teve que deixar o orgulho de lado e fechar a
empresa em 1984.
Por ter entrado no mercado televisivo muito tarde, Breno Caldas encontrou-
se, na década de 1980, com dificuldades financeiras graves. Ele abriu mão da relação
que tinha com os políticos e empresários para salvar a sua empresa, mas isso
funcionou: sua dívida chegava à casa dos milhões de dólares. Perdendo 90% do seu
patrimônio pessoal para salvar o “Correio do Povo”, Caldas corre atrás de possíveis
investimentos. Ele apresentava essa proposta: “ou ficava com tudo, através de
empréstimos legais, ou vendia tudo, como acabou acontecendo em 1984”
(STRELOW, 2010, p. 10).
Nesse ano, o “Correio” e a “Folha da Tarde” pararam com as suas atividades.
Dois anos depois do ocorrido, em 1986, a empresa Caldas Júnior foi vendida para o
empresário Renato Bastos Ribeiro e foi produzida com outro formato. A segunda
venda foi em 2007 para a Rede Record, do bispo Edir Macedo. Breno Caldas, depois
de entregar o “Correio do Povo” para Ribeiro, escolheu para o tempo novo um estilo
de vida calmo, longe da movimentação da cidade. Breno se mudou para Belém Novo,
na zona sul de Porto Alegre, em uma fazenda onde criava touros. Ele morreu em 10
de setembro de 1989, três anos após a venda do Correio.
O subcapítulo “Correio do Povo: o Queridinho Jornal Rio-Grandense” visa
trazer aspectos históricos importantes que marcaram a trajetória do periódico. Para
essa investigação, é importante contextualizar o “Correio” na sua época. O jornal
criou, em 1967, o suplemento “Caderno de Sábado”, documento relevante para essa
investigação, a fim de criar um jornalismo cultural para os leitores do Estado.
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cafés”. Através dos fundadores da revista inglesa “The Spactator”, Richard Steele e
Joseph Addison tinha como alvo deixar o seu trabalho mais conhecido pelo seu povo.
Os conteúdos desse suplemento transmitiam o padrão do “homem da cidade” como
um ser moderno, preocupado com modas, com a saúde do corpo e da mente, além
de ele ter superioridade no que diz respeito ao seu comportamento e à política. Surgia,
então, um jornalismo voltado às artes, à literatura, ao teatro, à música e à moda14.
Ainda, o início do século XVIII foi marcado pelo crescimento da atuação das
máquinas, em que essas contribuíram para avançar a economia através do aumento
da produção em série de produtos. A corrente de pensamento humanismo, também,
começava a se popularizar ao redor da Europa. Por esse motivo, os jornais e as
revistas começaram a se deixar influenciar pelas ideias iluministas e a aumentar a
produção de seus trabalhos por causa da criação de máquinas. Em todos os aspectos,
o mundo estava sendo transformado na economia e na cultura. Como declara Daniel
Piza (2003. p. 12), a revista “The Spactator”, de certo modo, o jornalismo cultural,
“nasceu na cidade e com a cidade”.
No século XIX, a industrialização estava presente em toda a parte da Europa
e no resto do mundo, e a influência do jornalismo cultural se tornava maior através
dos textos ensaísmo e crítica. Os profissionais eram considerados celebridades, como
o crítico de arte John Ruskin (1810 – 1900). Ele era idolatrado pelos seus leitores –
ou melhor, seguidores – cujo trabalho se concentrava em temas espirituais, artísticos
e reflexivos. Foi a partir desse século que o jornalismo cultural atravessou o Atlântico
para ser desenvolvido, sobretudo, nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto que no
país norte-americano havia uma multiplicação na produção de jornais e revistas na
segunda metade do século, a nação sul-americana iniciou um jornalismo cultural
consolidado no final dos anos 1800.
Os profissionais que produziam um conteúdo cultural nos jornais no Brasil
eram, na sua maioria, escritores conhecidos. Machado de Assis (1839 – 1908) fazia
parte desses profissionais. No início de sua carreira, o autor trabalhava como crítico
de teatro, era polemista literário, e escrevia resenhas e ensaios seminais. José
Veríssimo (1857 – 1916) também pertencia ao grupo de profissionais e era
considerado, na época, um grande crítico, ensaísta e historiador de literatura.
14 “O jornal cobria desde questões morais e estéticas até a última moda das luvas” (BURKE, 2004 p.78).
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15
Há pouca referência de um trabalho de qualidade no jornalismo cultural, no Brasil, no entanto,
podemos citar o suplemento “Ilustríssima”, da “Folha de São Paulo”. Ainda, referente a uma forma de
escrita inventiva autoral, que pode ser considerada um exemplo, está o trabalho jornalístico da
profissional, do Rio Grande do Sul, Eliane Brum.
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compartilhar com o público um estilo ou uma banda de música popular, que oferece
uma satisfação e admiração sonora diferenciada do mercado atual.
Contudo, com a era digital no século XXI, o jornalismo cultural tem maior
oportunidade de trabalho através dos meios virtuais, como blogs, sites e redes sociais
a fim de criar matérias e críticas sérias. Ainda, o profissional tem a oportunidade de
descontrair os seus visitantes virtuais com as músicas e os vídeos no canal “Youtube”.
É muito comum, também, esse jornalismo ter um “weblogger” do seu jornal, como o
jornalista Fabrício Carpinejar, no Donna, caderno ZH de Porto Alegre. As revistas, no
entanto, participam de um mercado mais amplo. Esses veículos são mais
especializados, direcionados a algumas áreas culturais. Virtualmente, os periódicos
proporcionam para os leitores versões digitais. Algumas revistas brasileiras
são “Piauí”, “Rolling Stone”, “Bravo!”, “Revista da Cultura”, “Revista Living”, entre
outros.
O subcapítulo “Um Jornalismo ‘Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de
Chá e Cafés’”, em suma, discute sobre qual é o verdadeiro papel de um jornalista
cultural e defende uma maior capacitação no conhecimento de cultura no século XXI.
A especialização da profissão é primordial para que a informação que ele quer passar
seja clara para o leitor. Através dessa pesquisa, conheceremos mais sobre a forma
de expressividade linguística, usada por Clarice Lispector, no “Caderno de Sábado”,
o que é benéfico para o trabalho de um jornalista de cultura.
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Não exigiremos que ninguém desça até se pôr à altura do chamado leitor
comum, eufemismo que esconde geralmente a pessoa sem interesse real
pela arte e pelo pensamento. (...). Uma publicação que se intitula literária
nunca poderia transigir com a preguiça mental, com a incapacidade de
pensar, devendo partir, ao contrário, do princípio de que não há vida
intelectual sem um mínimo de esforço e disciplina (PIZA, 2003, p. 37).
poema em prosa, crítica, epigrama, anedota e citações” (TELES, 1997, p.30). Isso
mostra a riqueza do conteúdo oferecido pelo suplemento cultural.
Saindo da área literária, pode-se encontrar críticas e crônicas escritas por
Herbert Caro na seção chamada “Os melhores discos clássicos”. Esse jornalista
cultural escrevia claramente a sua coluna para formar apreciadores de música erudita.
O seu objetivo era falar o que ouvir, por que ouvir, como ouvir e como comprar as
obras clássicas. Herbert Caro cria um ambiente de proximidade com o leitor através
de uma linguagem coloquial que trazia conselhos e dicas sobre esse estilo musical.
Além disso, o periódico gaúcho contava com resenhas e críticas sobre
produções cinematográficas. O “Caderno de Sábado”, portanto, contava com uma
equipe de intelectuais reconhecidos no Brasil e no mundo. Isso aconteceu em todo o
período de circulação do suplemento, até 10 de janeiro de 1981. O “Caderno”, em
suma, era um jornal cultural diferenciado no Estado e um lugar de trabalho concorrido
por escritores e artistas.
Para contextualizar para o leitor, a história cultural do Rio Grande do Sul
cresceu a partir do início do século XX. O primeiro evento cultural considerado
influente nas terras do sul do Estado foi a fundação da “Academia Rio-Grandense de
Letras”, em 1901, onde participou jornalistas, poetas e escritores, como Caldas Júnior,
Marcelo Gama e Alcides Maia. Houve uma exposição de três mil intelectuais, em Porto
Alegre, que mostrava produtos da mais alta tecnologia do período. Em 1903, foi
inaugurado o museu do estado, o Museu Júlio de Castilhos, e, no mesmo ano, ocorreu
o primeiro evento dedicado exclusivamente às artes: o “Salão”. Para Porto Alegre, foi
um marco também a fundação do “Instituto Livre de Belas Artes”, que agregava cursos
de música e artes plásticas, em que se tornou referência institucional do Estado até
os anos de 1950.
A arte no Rio Grande do Sul começou, então, a se manifestar
verdadeiramente no início do século XX e foi importante para que os gaúchos
conhecessem a cultura como necessidade para as suas vidas na formação intelectual.
Em 1967, o ano da inauguração do “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”, a
cultura no sul do Brasil já estava muito mais solidificada que os primeiros anos do
século, mas a sociedade reconheceu, que esse suplemento cultural, oferecia
informações sobre cultura de qualidade.
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Escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser
jornalista, como fui, e como sou hoje, é uma grande profissão. O contato com
o outro ser através da palavra escrita é uma glória (LISPECTOR, 2012, p.
11).
história”. Até esse período histórico, portanto, não havia sido lido uma obra literária
como a de Clarice, e o trabalho dela foi considerado diferencial na literatura. Como foi
escrito anteriormente, os escritores, de outras fases modernistas, davam importância
ao conteúdo da obra e não a estética ou a forma de escrita.
de autoria está presente, também, nas quatro crônicas-conto que serão analisadas no
capítulo cinco dessa investigação.
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e possa usar esse conhecimento ou esse dado para o seu dia-a-dia. O papel desse
profissional é interessar, envolver e atrair o leitor de uma forma específica com uma
intenção determinada. As quatro crônicas-conto de Clarice Lispector, que serão
investigadas no próximo capítulo, tem como tema o feminino no contexto de 1960. A
partir do recorte das figuras de linguagem, conheceremos as perspectivas das
mulheres sob o olhar da escritora.
O subcapítulo “A Intimidade de Lispector no Suplemento Cultural do ‘Correio
do Povo’: o Caminho da Narração Figurativa” visa discutir o conceito de intimidade
através do uso da marca autoral escolhida nessa investigação. Além disso, vimos a
importância da autoria através da forma expressiva da escrita. Essa parte da pesquisa
prepara o leitor para o próximo capítulo.
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5.1 A MULATA
É preciso ter bem presente que uma figura não tem significado em si mesma.
Isoladamente, ela pode sugerir ideias muito variadas e noções muito
imprecisas. Seu sentido nasce do encadeamento com outras figuras. Como
se sabe, num texto, tudo é relação. O que dá sentido às figuras é um tema.
Por isso encontrar o sentido de um conjunto de figuras encadeadas é achar
o tema que está subjacente a elas (FIORIN, 2001, p. 79).
história ficou conhecida no Brasil por apresentar um protagonista que vivia na área
rural de São Paulo, que era miserável, desleixado e sem cultura. Queixando-se de ter
dores corporais, Jeca descobre, quando vai ao médico, que está com “ancilostomose”,
o famoso amarelão. O personagem fictício tornou-se um símbolo do brasileiro rural
que mostra em sua vida a condição precária do país, o baixo poderio econômico e a
falta de investimento em saneamento básico. Pode-se inferir, no contexto da crônica
“O Arranjo”, que a cor amarela indica doença, baixa instrução e pobreza.
A personagem mulata e escrava construída pela cronista Clarice Lispector
pode ser relacionada também às questões discutidas no livro “Casa Grande &
Senzala”, de Gilberto Freyre. Essa literatura foi escrita em 1933 e é conhecida por
estudar a miscigenação brasileira. Um dos assuntos tratados é a relação do negro e
do branco durante a época da colonização no país. O autor ainda defende a
democracia racial, uma interpretação que é criticada pelos intelectuais, como
sociólogos e historiadores. Mesmo que o livro de Freyre não seja considerado
científico, a sua leitura é relevante para entender a história do Brasil.
Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos
deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra
velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado.
Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da
que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento,
a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso
primeiro companheiro de brinquedo (FREYRE, 2006, p. 367).
havendo motivos para estar com ele, a mulher esclarece para o narrador: “Ele é muito
bom pra mim” (SÁBADO, 1968, p. 2). Pelo seu parceiro ter idade avançada, era esse
o motivo da ex-escrava não estar grávida, conclui o narrador. Quando o homem de
Portugal ouve que a sua parceira justificou estar com ele por a tratar bem, o narrador
observa que, a curta distância, ele abaixou os olhos a fim de esconder “nunca se
saberá o quê” (p.2).
A mulata e escrava da crônica-conto “O Arranjo” de Clarice Lispector é
representada como cria, de comportamento desajeitado, uma mulher “fácil” aos
homens e sem instrução. Embora no exercício de escrava, ela sentia-se independente
e livre. A história teve um final feliz quando encontrou um homem que a fazia se sentir
bem. Esse texto reflete uma realidade de preconceito racial e social ainda presente
no século XXI.
69
escapando do controle dessa mulher: ela é uma vítima das circunstâncias porque é
incapaz de refletir sobre suas escolhas.
Em seguida, na apresentação de Z.M., a cronista destaca a “humildade” como
uma característica da personagem, que, na percepção dessa, não era uma mulher
que chamava a atenção de um homem: “Na sua humildade, esquecia que ela mesma
era fonte de vida e de criação” (SÁBADO, 1968, p. 2). A figura “humildade”, segundo
o olhar da autora, aponta para a insegurança que, consequentemente, faz Z.M ser
uma pessoa pouco sociável e disponível a relacionamentos amorosos. Por causa
dessa característica, essa não se via como um ser humano digno da vida e de tudo
que a envolve, que é compreendido através das figuras “fonte de vida” e “criação”.
Clarice Lispector resgatou, em seu texto, palavras que pertencem ao léxico
da linguagem bíblica. Estas podem ser associadas ao momento da história da criação
do homem no livro de “Gênesis” no Antigo Testamento. Esse é o momento em que
Deus cria Adão e Eva no Jardim do Éden:
Então saía pouco, não aceitava convites. Não era uma mulher de perceber
quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse –
então se surpreenderia e a aceitava (SÁBADO, 1968, p. 2).
Após visitar uma amiga que a fez pensar sobre essa “humildade” que a
atrapalhava de se socializar, Z.M. decidiu ir sozinha a um coquetel do trabalho no final
de tarde daquele dia. Encheu-se de coragem após vestir um vestido mais ou menos
novo e empolgou-se no momento de maquiar-se. Isso fez com que ela ficasse mais
maquiada que o normal, pois Z.M. queria ter uma atitude nova em relação a si mesma.
Valorizar-se era a palavra-chave daquela noite. Esse novo jeito de se arrumar, porém,
fez a personagem aparentar ser outra pessoa:
A pessoa que Z.M. desejava ser era a “bravata”. Nesse trecho, as figuras que
se destacam são “rosto” e “máscara”. “Rosto”, no sentido da palavra (AMORA, 2008,
p. 649), remete a “individualidade, a identidade: 2. Semblante, fisionomia; 3.
Aparência, aspecto”. “Máscara”, em contrapartida, significa (AMORA, 2008, p. 449):
“2. Qualquer coisa usada para resguardar ou ocultar o rosto; 3. fig disfarce,
dissimulação”. Esses dois substantivos interiorizam Z.M., pois mostram o desejo dela
de projetar em seu rosto e roupas uma personagem feminina, ou seja, uma imagem
que supostamente os seus colegas de trabalho aceitariam. Isso aconteceu pelo motivo
da mulher achar que não era interessante e nem boa o suficiente para os outros. A
temática, já indicada na introdução desse subcapítulo, é construída através dessas
figuras, que trazem à história o sentido de identidade feminina. Isso remete a
discussão, a partir dos questionamentos de Lispector, sobre o desejo da mulher de
1960 de seguir um estereótipo, um perfil, que supostamente a sociedade afirmaria ser
o padrão de beleza feminino.
72
18
Coerência figurativa: Por coerência figurativa entende-se a articulação harmônica das figuras do texto, com
base na relação de significado que mantêm entre si. As várias figuras que ocorrem num texto devem articular-se
de maneira coerente para constituir um único bloco temático (SGARBI, p. 71).
74
Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava
agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu
a persona afivelada no seu rosto; a persona tinha um sorriso parado de
76
palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou
então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se
prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir
começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou
(SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).
A cronista usa figuras para construir a ideia de uma briga física, e por isso ela
usa expressões, como “pernas de menino com braço de mocinha” e “monstro
masculino e feminino”. As palavras “pernas” e “braço” fazem parte dos membros do
corpo humano, mas que, na construção da frase, indicam socos e chutes de menina
e de menino. Essa briga se intensifica e cresce no qual não se pode ver mais onde
estão essas pessoas, e então essa mistura se transforma em um “monstro feminino e
masculino”. As trombetas do Paraguai é uma relação que a narradora faz com o
conteúdo que estava sendo dado no momento da aula, e que se assemelha com a
guerra entre os sexos, uma realidade característica dessa faixa de idade. É como se,
no início dessa história, ainda não havia despertado o interesse amoroso de ambas
as partes. Essa descrição de imagem era um “devaneio” que, no sentido da palavra
78
(AMORA, 2008, p. 225), significa sonho ou fantasia que estava sendo digerido, ou
seja, alimentado pela menina.
Uma atitude anônima muda todo o quadro de realidade dessa turma e choca
principalmente três meninas do terceiro ano do ginásio. Clarice Lispector antecipa
esse acontecimento como a frase: “Houve evidentemente a primeira vez” (SÁBADO,
1968, p.2), que está associada à temática sexualismo na adolescência dessa crônica-
conto. A menina apresentada no início do texto senta em sua cadeira na sala especial
para desenho e, como de costume, olha para a larga prancheta que é usada para
praticar o exercício de desenho geométrico. A mensagem de um escritor
desconhecido, ao mesmo tempo, assusta e interessa a menina, conteúdo no qual ela
apelida como “insultos de amor”.
estavam imbuídas do direito de...de que mesmo? Pois não é que não se
lembravam mais de que direito estavam imbuídas (SÁBADO, 1968, p. 2)?
Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto espartano:
pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à severidade e
crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vivê-lo, ao amor. Nenhuma
das três atenienses sobrevivera à prova (SÁBADO, 1968, p. 2).
Nesse trecho fica claro que, até esse momento, as três meninas do ginásio
sentiam-se o centro das atenções de um escritor anônimo. Apesar de aparentar-se
revoltadas com o ocorrido, elas se interessavam por essa dedicação do até então
desconhecido autor. Quando descobriram quem era esse menino, sentiram-se
insuficientes para um dia relacionar-se com ele, pois a personalidade dele está
associada a força e a crueldade de um espartano. O verbo “sobrevivesse” e os
substantivos “severidade” e “crueza”, portanto, são figuras que indicam o grande
esforço que as personagens teriam que fazer para merecer os “insultos de amor” do
colega.
Ainda, elas foram associadas com os atenienses e ele aos espartas.
Historicamente, esses dois povos da Grécia Clássica tinham um estilo de vida
completamente diferente e, em consequência disso, também as suas mulheres. As
atenienses eram educadas para serem donas de casa:
A mulher espartana, de acordo com Kennard & Cartet (1994) era audaz e
realizadora, autoritária com seus maridos, sendo admirada ou caluniada por
sua independência, dependendo daqueles que escreveram sua história. Essa
independência era consequência da ausência de seus maridos que
permaneciam à disposição do exército até os 30 anos e apenas
ocasionalmente tinham contato com suas esposas (RUBIO, 1999, p. 51).
Via-se que desprezava todas nós: parecia um homem entre tolos e tolas.
Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele,
olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? (...).
O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um desdenhoso ar
de exilado: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que éramos,
pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general
(SÁBADO, 1968, p. 2).
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia
a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem
angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e
ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais
longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua
arte. (SÁBADO, 1968, p. 2).
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela
cheirava embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que
considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva
não é de se brincar. Então pedia um remédio para a sua tia (SÁBADO, 1968,
p. 2, grifo do autor).
esse assunto. Na casa de uma amiga, Clarice está conversando por telefone com
outro amigo, e ela lhe contou sobre o seu trabalho de cronista no jornal paulista. Logo,
ela fez uma pergunta pertinente para ele sobre o interesse das mulheres.
No decorrer dessa crônica, a autora afirma que acredita que, para o homem,
o maior interesse dele também é a mulher. Com sinceridade, Clarice Lispector reflete
sobre como o homem faz as mulheres se sentirem aceitas e felizes. Ela conclui que,
por mais que o homem fira a mulher e a mulher ao homem, os dois não podem viver
sem o outro.
A menina da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor” teve que lidar com
a morte de suas galinhas. Um dia, sua família fê-la visitar a casa de um parente muito
longe de sua casa, e eles comeram a Petronilha. Quando a menina soube que os
membros de sua casa fizeram isso, a criança ficou braba com todos, principalmente
com o seu pai, que era o que mais gostava de comer carne de galinha. A outra ave,
amada pela criança, também faleceu. A personagem principal acelerou a morte de
Pedrina colocando ela “em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das
minas-gerais” (SÁBADO, 1968, p. 2). Logo que viu a galinha tremendo de frio no
quintal, embrulhou-a em um pano preto e colocou Pedrina em cima de tijolos quentes.
Consequentemente, na manhã seguinte, a ave estava morta. Quando compreendeu
87
Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente,
estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos
Petronilha dentro de nós. É uma pena. (...). Mas a menina não esquecera o
que a sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina
mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer
quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se
tornaria sua do que em vida (SÁBADO, 1968, p. 2).
se entrega ao amor mesmo que o cuidado dela trouxe a tragédia naquele que ela
estava se relacionando.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
7 ANEXOS
Ela era cria da casa grande, desde menina. Distraía-se e divertia-se com
qualquer coisa, sem sorrir: não era alegre. Andava de corpo solto, boca aberta, olhos
redondos. Quando a dona de casa estava irada, chamava-a de débil mental. Diziam
que qualquer homem a teria, se quisesse. Ela não ficava contente mas grávida. Então
os patrões, realmente cansados de distribuir por famílias os seus filhos, a injuriavam.
Não usavam violência porque por princípio não eram violentos. Mas se ela almoçava,
diziam: é claro, a fome duplicou. Se não almoçava, diziam: é claro, perdeu o apetite.
Mandavam-na trabalhar com ironia: “mas não vá ter antes do tempo! Já arrumamos
com que família esse aí vai ficar!”. Ela não se ofendia. O corpo crescia, e ela ficava
cada vez mais amarela sob a cor de mulata quase branca. O que os patrões não
perdoavam é que dessa vez tivesse acontecido com um “negro sujo”, como se eles
tivessem para ela planos de um homem menos negro e mais limpo. Às vezes, quando
ela passava com a bandeja na mão, olhavam-na com curiosidade e diziam em tom
velado por causa dos netos presentes: logo um negro sujo. Um dia pareceu
compreender melhor e disse muito alto: mas foram só três vezes! As crianças
exaltavam felizes, o pai, a mão e os avós caíram em cólera pela pouca vergonha,
explulsaram-na da sala – ainda por cima tropeçou no tapete e caiu sobre a bandeja.
Mas não era escrava, como a outra cria da casa. A outra cria da casa de Laranjeiras
tornara-se uma mulher perfeita para cuidar das roupas e das crianças, uma verdadeira
escrava. Mas ela não era escrava: vivia independente deles e dava à luz os seus
próprios filhos, distribuídos depois como gatos, amarelados como a mãe.
Dois anos depois, encontrei-a na rua e ela me disse com modéstia e recato que
vivia com um português. “Estou agora mesmo esperando por ele, marquei encontro”,
me disse encostada no poste. Ele afinal apareceu na curva da esquina; velho, e era
por isso que ela não estava grávida, gordo, trôpego. “Ele é muito bom para mim”, disse
como se explicasse tudo. Ele se manteve a curta distância, ouviu a frase, e abaixou
os olhos escondendo nunca se saberá o quê.
Z.M, sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos. Na sua humildade esquecia
que ela mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava
convites. Não era mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a
menos que ele o dissesse – então se surpreendia e a aceitava.
De tarde – era primavera, primeiro dia de primavera – foi visitar uma amiga que
a pôs em brios. Como então ela, uma mulher feita, era tão humilde? Como é que não
percebia que vários homens a queriam? C omo não percebia que devia, dentro de
sua própria dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda que a vira entrar numa sala
onde todos eram conhecidos. E por acaso nenhum dos presentes chegara aos seus
pés. E no entanto entrou tímida como ausente, como uma corça de cabeça baixa.
“Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque é diferente,
cosmicamente diferente, então aceite que você não pode ter a vida burguesa, e entre
nua sala com a cabeça levantada”. “Mas entrar numa sala cheia de gente?”
“Exatamente. Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante”.
Lembrou-se de que no fim da tarde havia uma espécie de coquetel para os
professores primários, em férias. Lembrou-se da atitude nova que desejava, não
combinou a ida com nenhum professor ou professora – arriscar-se-ia toda só. Vestiu
um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então – só o entendeu
depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma
máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era
fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era
exatamente o que ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria
exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto –
ah “persona”, como não te usar e enfim ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de
sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia
se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-se-coragem,
levantou-se e foi.
Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram
completamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco.
E ei-la de repente diante de um salão enorme com talvez muitas pessoas mas
pareciam poucas dentro do descomunal espaço onde se se processava como um
ritual moderno o coquetel.
94
Mas que sentir de filho? Se de algum modo fico toda sem um único sentimento
reconhecível. Que sentir? Vejo sua cara queimada de sol, cara inteiramente
95
inconsciente da expressão que tem, toda concentrada que está como um bicho bonito,
delicado e feroz – nas lâmpadas de seu sorvete.
O sorvete é de chocolate. O filho lambe-o. Às vezes se torna lento demais para
o seu prazer, e ele então morde-o, e faz uma careta que é inteiramente inconsciente
da felicidade incômoda que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente. Essa, a
boca, é muito bonita. Olho o filho toda compacta, mas ele está habituado à burrice de
meu olhar concentrado de amor. Ele não me olha, e não se incomoda de ser
observado nesse seu ato íntimo vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a
língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de material
de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa. Olho
com a rudeza de meu silêncio com meu olho vazio aquela cara que também é rude,
filho meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou,
recuada. Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de
obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela
natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não
fala a língua do país. Parece um torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu
coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões.
Estou ali, e vejo: o rosto do menino tornou-se por um instante ávido – é que
deve ter encontrado algum pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que
a língua esperta captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada, grande,
com as mãos calejadas não por mim mas pelos meus ancestrais. Sou uma
desconfiada que está em trégua. O filho come agora a casca do sorvete. Sou uma
imigrante que se enraizou em terra nova. Meu olho é vazio, áspero, olha bem. E vê:
um filho de cara concentrada que come.
A FOME
Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma
eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva.
MISTÉRIOS DE UM SONO
Estou dormindo. E embora pareça contradição suavemente de repente o prazer
de estar dormindo me acorda num sobressalto também suave. Estou acordada e
ainda sinto o gosto daquela zona rural onde subsolarmente eu espalhava de minhas
raízes os tentáculos de um sonho.
SEGUIR A FORÇA MAIOR
96
querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro
de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo
mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando
uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto,
eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino,
o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que
estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que
não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido,
estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os
jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto
de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido
que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de
uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti,
pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
ANEXO E - crônica Em Matéria de Automóveis de Fernando Sabino.
Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:
— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro.
Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só
então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.
— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito
importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine
se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os
acumuladores? falta de fôrça no chassi? falta de óleo na bateria?
Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no
radiador só se coloca água.
— Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de nôvo deve estar com algum defeito
no radiador, não gasta água nunca! Todas as vêzes que mando botar água o
homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa
do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é.
um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de nôvo, me
mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.
— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer:
lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele
detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.
— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água distilada.
lsto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que
devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água
na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se êle fôsse
doido: tirar a água? Então êle disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:
— Verifiquem.
aproximou, misterioso:
— Elemento sêco.
— Elemento sêco?
Giguelê — palavra mágica que êle um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a
existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas
da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de
divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em tôrno à diminuta
imagem de Exu e outros deuses pagãos.
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os
jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio.
100
Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo
menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em
poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que
também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou
meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte
para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o
suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos
sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em
torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o
suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa
e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive
sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso.
Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu
viesse a precisar nos restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus
sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo
suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano,
salgado como lágrima.
Esta era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para
não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo,
enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se
recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.
A ideias de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de
madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram
inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho,
a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um
dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As flores, quando vinham, eram
tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam
para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raul
de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir
na vizinhança.
Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro,
rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada
janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à
cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!
Nas paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível
"Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor
desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada
num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido.
Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem
ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é
tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir
sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação.
O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali
pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um
brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de? Gemia
em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda
morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não mais que
na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.
Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com
a casa? Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A
103
Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais
interessantes de minha vida de escritor. Aposto que nunca vistes escrever sem tinta!
Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é
possível no século atual, no século do progresso.
Eis o caso.
Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí
mesmo dispunha-me a escrever a minha revista.
Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o
que tem a dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando...
Talvez não acrediteis.
Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e
saiu intacta e pura. Não trazia nem uma niilidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi
debalde.
O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um
passo, creio que temperou a garganta, e pediu a palavra.
Estava perdido!
Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco
e seis horas. Que elementos para não trabalhar!
Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução
pronta e imediata.
Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois
empregados, que assim se esqueciam dos seus deveres.
O meio era bom, e sortiu o desejado efeito como sempre.
104
-- Ontem não.
-- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia
que devia vir em geral não vem.
-- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma
coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
-- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um
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-- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa
mexida...
-- E o Prefeito?
-- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
— Como?
— Mas ...
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha
enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
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O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio
mudou de dono.
— Continuar o quê?
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa
idade?
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele
me faz falta, palavra de honra.
— Claro.
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem
mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de
um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não
reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado
mesmo.
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— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos
outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à
vontade.
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com
você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso
você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste
mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-
la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela
não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela
também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me
para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a
patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o
vento?
Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos,
ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra
aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou,
solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria
disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma
ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla
porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu
"fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era umalady, uma
rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.
No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como
nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha
compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a
até o fim.
Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o
que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi
possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu
acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-
a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria
maior do que a saudade.
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da
manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava
para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando
sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca
se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito
e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou —
o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de
onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado,
hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada
viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla
necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante
um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos
alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais
de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha
tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça.
O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o
grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.
Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava
outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia
tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que
havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que
não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o
galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo
uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-
a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa
através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta,
sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De
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pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro.
Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe
habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e
desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava
as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina
estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso
bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste,
não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O
pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento
qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se
com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha
vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a
família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida
para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a
correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o
sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas
capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo
ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a
pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua
espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se
recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia
os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não
cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão
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de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando
milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos
séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Dizem que tem uma memória extraordinária e sabe tudo sobre futebol. Suas
lembranças desafiam contestação.}
121
Um dia, porém, viu-se numa reunião em que se achava outro com igual
prestígio. E os dois acabaram se defrontando:
— Você se lembra da primeira Copa Roca disputada no Brasil? - perguntou-
lhe o outro.
— Se me lembro.
E disse o dia, o mês e o ano.
— Fazia um calor danado.
— Isso mesmo: um calor danado. Lembra-se da formação do time brasileiro?
— Quem é que não se lembra?
Cantou para o outro o time todo. O outro ia confirmando com a cabeça. Fez
apenas uma ressalva quanto ao extrema-esquerda.
— Eu sei: mas estou falando o time titular. Agora vou lhe dizer os reservas.
Declamou a lista dos reservas, e sugeriu, por sua vez:
— Você naturalmente se lembra da formação do time argentino.
O outro embatucou: o time argentino? Não, isso ninguém era capaz de dizer.
— Pois então tome lá.
E recitou o time argentino. O outro, meio ressabiado, procurou recuperar o
terreno perdido:
— Para nomes não sou muito bom. Mas me lembro que o goleiro argentino
segurou um pênalti. - Um pênalti mal cobrado, foi por isso: faltavam sete minutos
para acabar o jogo.
O outro, como que ocasionalmente, disse quem cobrara o pênalti, fazendo
nova investida:
— E lhe digo mais: o juiz apitou quinze "fouls" contra nós no primeiro tempo,
dezessete contra eles. No segundo tempo...
— Está aí; isso eu não sou capaz de garantir. Tudo mais sobre o jogo eu lhe
digo. Aliás, sobre esse jogo, ou qualquer outro que você quiser, de 1929 para cá.
Mas essa história de número de "fouls". . Como é que você sabe disso com tanta
certeza?
— Sei — tornou o outro, triunfante — porque fui o juiz da partida.
Com essa ele não contava. O juiz da partida.
— Como é mesmo o seu nome?
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— Já tinha apitado.
— Quer dizer que quem apitou aquele jogo foi você - recomeçou ele,
intrigado.
— Fui eu. E lhe digo mais: quando Fausto fez aquele gol de fora da área...
— Já na prorrogação.
— Eu sei que não estava. Tanto assim que não anulei. Mesmo porque, a
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— Nem naquele tempo nem hoje nem nunca aquilo seria impedimento. Se o
juiz me anula aquele gol...
— Já sei! isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o
bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo
agitadinho, corria se requebrando... Tinha o apelido de Zuzú.
Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas! A classe do ginásio
misturava mocinhas e rapazes. Quando depois lembrava-se deles era como num
instantâneo fotográfico batido e depois imediatamente imobilizado. E esse
instantâneo apesar de nele todos estarem rígidos e bem comportados, parecia-lhe a
súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam pernas de menino com
braço de mocinha, formando um vívido mostro masculino e feminino que ela digeria
em devaneios durando as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual
possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinha-lhe de
imediato trombetas do Paraguai.
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Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas pelo escritor anônimo? E
onde é que este escolhera escrever? Nas pranchetas da sala de desenho. Nessa
escola, onde a desorganização imperava, havia no entretanto o privilégio de sala
especial para desenho e sala especial para química. Na de desenho geométrico
cada um dos alunos tinha diante da cadeira uma larga prancheta móvel.
A mais velha das meninas foi quem abriu o jogo e revelou a todas que tinha
uma prancheta especial. Então a segunda atingida brandiu a sua prancheta. A
terceira menina não se lembra mais do que disse e como disse. Só se sabia que
alguém, ou uma máfia de alguns, as visava. Duas visadas eram morenas; a terceira
era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar, como material
de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura, pensava, era uma coisa
infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe
reservava o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena, mas
quem o descobria sob aquela aparência o dourado violento? No entanto uma
menina ou uma máfia de meninos...
lhe faltava mesmo era essa coisa lenta e progressiva, a cultura especializada em
sexo.
Mentiu pra as outras dizendo que entendera tudo. Inútil dizer a verdade.
Ninguém acreditaria que ela, já tão construída e alta, não entendesse. Não entendia,
embora suprisse a ignorância com sólidos sonhos confusos que eram o seu esteio
secreto.
A indignação das três meninas foi ardente. “Como é que tinham tido
coragem!”, era só isso que repetiam, sem nenhum outro argumento. A loura, quem
sabe se por ser mais sonsa, não sugeriu medida prática nenhuma, enquanto as
outras duas, embora sem plano formado, se preparavam para agir. As três pareciam
três escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas no Caminho do
Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives tontos; qual dos meninos,
ou rapazes teria sido ousado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares
insistentes não eram provocantes porque elas estavam imbuídas do direito de...de
que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito estavam
imbuídas?
Mas a cara dos colegas era inescrutável. E pelo contrário: assim examinados,
nunca se viu tanta cara inocente chupando bala ou fumando escondido.
A aula de desenho geométrico era duas vezes por semana. Como tardava o
dia de entrar na sala e poder olhar a prancheta onde os caracteres anteriores
sempre tinham sido apagados para dar lugar aos novos, que não passavam de
variantes dos primeiros. Tratava-se de um verdadeiro jornal impresso, editorial que
dava às três mocinhas as mais terríveis e emocionantes notícias sobre o que as três
eram. Eram? Liam avidamente sem escândalo – o escândalo só vinha depois de
garantida a leitura toda. Pena mesmo é que de fato nem tudo entendiam, isso
humilhava: mas o sentido geral, sim. O sentido geral lhes dava de choque o mundo
nas mãos trêmulas.
Pois bem. Bem feito, quem mandou. Não se sabe o que a Secretaria fez. Mas
as pranchetas – nunca mais.
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia
a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase
humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar
a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o
mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina
possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava
embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser
o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então
pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então,
com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio.
A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar
contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha
continuavam a passar o dia ciscado o chão e comendo porcarias que faziam mal ao
fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar
um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim
como não se usavam roupas íntimas de “nylon” e sim de cambraia. A tia continuava a
lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns
pingos de café – e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-
lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os
homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas:
tanto o homem como a galinha tem misérias e grandezas (a da galinha é a de pôr um
ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo
e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha
magras debaixo das pernas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina
não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E
recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande
conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando
cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo “galinha” tinha outra acepção.
Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
–,Mas é o falo, que é um nervoso, quem quer! Elas não fazem nada demais! E
é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
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ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até
que se tornou moça e havia os homens.
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8 REFERÊNCIAS
CÂNDIDO, Antônio. Texto A vida ao rés-do-chão. In: Para Gostar de ler. Vol. V,
Crônicas, São Paulo, Ática, 1989
CÂNDIDO, Antônio: A Educação Pela Noite & Outros Ensaios, São Paulo: Ática,
1989. Disponível em: file:///F:/Literatura%20na%20ditadura%20militar/antonio-
candido-a-educacaopela-noite.pdf
FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
OMARTIAN, Stormie. A Bíblia da Mulher que Ora NVI / Stormie Omartian; tradução
dos artigos e das meditações por Neyd Siqueira – São Paulo: Mundo Cristão, 2009.
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PLATÃO; FIORIN. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2006.