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ENSINO SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING

PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA (PIC)

BRUNA JACQUELINNE ROHLEDER DE LIMA

Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector


no Caderno de Sábado

Porto Alegre
2015
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BRUNA JACQUELINNE ROHLEDER DE LIMA

Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector


no Caderno de Sábado

Orientador: Prof. Dra. Joseane Rücker

Porto Alegre
2015
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................06
1.1 JUSTIFICATIVA..................................................................................................06

1.2 PROBLEMA.........................................................................................................09

1.3 HIPÓTESE..........................................................................................................10

2.1 OBJETIVO GERAL..............................................................................................12

2.1.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS...........................................................................13

2.2 MÉTODO.............................................................................................................15

2 A CRÔNICA..........................................................................................................17

2.1 A CRÔNICA E SUAS ORIGENS .................................................................... ....18


2.2 A CRÔNICA: "ARROZ E FEIJÃO COM PICADINHO E
BATATA"....................................................................................................................21

2.3 PERCURSOS TEXTUAIS DA CRÔNICA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE


CONTAR HISTÓRIAS................................................................................................24

3 HISTÓRIA DO JORNALISMO CULTURAL NO BRASIL AO RIO GRANDE DO SUL: O


CASO DO “CORREIO DO POVO”..............................................................................................33

3.1 CORREIO DO POVO: O QUERIDINHO JORNAL RIO-


GRANDENSE.............................................................................................................34
3.2 UM JORNALISMO PARA “LEVAR A CLUBES E ASSEMBLEIAS, CASAS DE
CHÁ E CAFÉS"..........................................................................................................40
3.3 SUPLEMENTO CULTURAL PARA A ELITE GAÚCHA.....................................................46
iv

4 ESTUDO DE CASO: CLARICE LISPECTOR........................................................51

4.1 TRAJETÓRIA DA ESTUDANTE DE DIREITO AO JORNALISMO


CULTURAL................................................................................................................52
4.2 A IDENTIDADE DE CLARICE LISPECTOR NA LITERATURA
BRASILEIRA......,.......................................................................................................56
4.3 A INTIMIDADE DE LISPECTOR NO SUPLEMENTO DO "CORREIO DO POVO":
O CAMINHO DA NARRAÇÃO FIGURATIVA..............................................................60

5 PERSPECTIVAS FEMININAS EM QUATRO CRÔNICAS-CONTO NO “CADERNO


DE SÁBADO”............................................................................................................63

5.1 A MULATA...........................................................................................................64

5.2 A "PERSONA" BRAVATA...................................................................................69

5.3 AS ATENIENSES E O GENERAL.......................................................................77

5.4 UMA CRIATURA FEITA PARA AMAR................................................................83

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................89

7 ANEXOS .............................................................................................................. 92

8 REFERÊNCIAS ....................................................................................................130
v

RESUMO

A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice


Lispector no ‘Caderno de Sábado’” visa investigar a forma inventiva de escrita da
autora em quatro textos publicados, nesse suplemento, em 1968. A pesquisa, que é
qualitativa, exploratória e documental, tem como pergunta central: “como se constrói
a expressão da intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de
Sábado’?”. A partir de uma análise, portanto, do recurso estilístico usado pela
escritora, a pesquisa discute a importância da sensibilidade, do domínio da língua
portuguesa e de um maior conhecimento artístico no trabalho do jornalista cultural do
século XXI. Por isso, a investigação identificará os elementos formais do gênero
crônica, discutirá as contribuições do suplemento cultural “Caderno de Sábado” no
contexto rio-grandense, e problematizará o conceito de autoria na profissão e sua
importância no contexto atual. Ainda, a pesquisa discutirá o trabalho desenvolvido por
Clarice na imprensa e na literatura, e, por fim, mapeará a marca de autoria, figuras de
linguagem, nas crônicas-conto de Clarice que abordam o tema feminino. A
investigação, em suma, tem como referências bibliográficas básicas: “Jornalismo
Cultural” (2001), de Daniel Piza; “Para Entender o Texto: leitura e redação” (2001), de
Platão & Fiorin, “Clarice na Cabeceira” (2012), da Editora Rocco e “Identidades
Femininas Múltiplas em Crônicas de Clarice Lispector” (2010), de Alessandra Pajolla.
6

1 INTRODUÇÃO

1.1 JUSTIFICATIVA

A investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice


Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem como tema o jornalismo cultural. Esse trabalho
destaca a importância da capacitação desse profissional no domínio dos recursos
estilísticos da escrita. Apesar da autora não ser considerada uma jornalista de cultural,
ela foi uma escritora que investiu na forma de escrita autoral e inventiva.
O jornalista cultural exerce papel relevante na sociedade. A função desse
profissional é ser a ponte entre a cultura e o indivíduo. Além de informar o público
através de um periódico, de uma revista, através da web, do rádio e da tevê, esse
jornalista publica conteúdos que influenciam no crescimento intelectual e na formação
de um pensamento crítico do interessado. Entre os textos jornalísticos que o
profissional de cultura pode trabalhar, existe um gênero que é influenciado pelo
jornalismo e pela literatura que se chama crônica. Essa providencia ao jornalista um
espaço de subjetividade, de crítica e de denúncia, onde o profissional tem a liberdade
de desenvolver o seu texto em uma linguagem cotidiana e humorística:
O gênero crônica tem o intuito de apresentar ao leitor um posicionamento do
mundo do jornalista cultural, uma oportunidade que não está presente em outros
gêneros jornalísticos, como a reportagem, o boletim e a matéria. Clarice Lispector foi
uma escritora renomada no Brasil, a partir de 1940, e, logo que os suplementos
culturais surgiram em 1960 no país, a autora se interessou pelo gênero e se tornou,
nessa década, uma cronista do “Jornal do Brasil”. Esse periódico paulista fez um
acordo com o suplemento cultural gaúcho “Caderno de Sábado” para publicar as
crônicas da autora Clarice no jornal. O “Caderno” foi inaugurado em 1967 no Rio
Grande do Sul.
A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice
Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem, portanto, como objeto de estudo,
particularmente quatro crônicas-conto da autora Clarice Lispector publicadas no
“Caderno de Sábado” no segundo ano de sua inauguração, em 1968. A pergunta
norteadora da proposta dessa investigação é: “como se constrói a expressão da
intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?” Para
isso, e porque entendemos que a qualidade estilística constrói-se na articulação entre
7

tema (conteúdo) e forma (expressão linguística), faremos a exploração das figuras de


linguagem associadas à construção do sentidos nos textos selecionados.
Essa investigação tornou-se relevante a partir da descoberta da pesquisadora
de um suplemento no Rio Grande do Sul cujo conteúdo cultural é vasto e pouco
divulgado e do interesse tanto pelo jornalismo cultural quanto literário explorados na
disciplina de Linguagem Jornalística II. Esse suplemento, inaugurado há 48 anos, é
um objeto de pesquisa de grande potencial para aqueles que se interessam por esses
temas. Visto que esse campo jornalístico necessita de trabalhos de pesquisa como
essa – pela redução de interesse por parte dos jornalistas pela área cultural –, foi
escolhida a autora Clarice Lispector, cuja profissão de cronista ainda é pouco
conhecida pela sociedade brasileira.
Há muitos trabalhos acadêmicos no país que podem ser encontrados e que
problematizam o tema jornalismo cultural. Nesse momento serão destacados o artigo
do professor de comunicação, Herom Vargas (2004), no qual ele defende que as
produções de notícias culturais seguem a lógica do capitalismo e ressalta a
importância da capacitação profissional para oferecer aos leitores “bons textos para
pautas e coberturas, bons conhecimentos e boa inteligência” (p. 7). O segundo texto
acadêmico destacado são o dos autores Leonardo Cunha, Nísio Teixeira e Luiz
Magalhães. Eles associam o trabalho dos cadernos de cultura com a Indústria Cultural
na criação de produtos culturais semelhante a produção em série de bens não
culturais. Ainda, esses pesquisadores mostram como mudou o conceito de jornalismo
cultural a partir da década de 1960.
Para contextualizar, o jornalismo cultural, no início do século XXI, no Brasil,
está em um período de “esfriamento” profissional. Os textos dessa área se
concentram, atualmente, na agenda cultural. Relatar ao leitor, portanto, sobre os
próximos eventos não requer um senso crítico apurado e nem uma sensibilidade
desse jornalista. Há pouca procura por especialização sobre os temas artísticos e,
consequentemente, as pautas dos segundos cadernos não recebem um tratamento
criativo e inovador ao interessado. Nessa década, podemos encontrar poucas
referências de trabalhos culturais de qualidade, como o suplemento “Ilustríssima”, da
“Folha de São Paulo”. No Rio Grande do Sul há também uma demanda por um
jornalismo cultural diferenciado.
8

Essa investigação, portanto, explora a parte da escrita criativa e autoral


através das crônicas-conto de Clarice Lispector publicadas no “Caderno de Sábado”
no ano de 1968. A partir da escolha do recurso estilístico, figuras de linguagem,
analisaremos de que forma a autora traz, nos textos, uma sensibilidade e um
posicionamento sobre as mulheres de 1960. Acreditamos que um jornalista cultural
precisa conhecer e ter domínio da língua portuguesa a fim de que ele possa expressar
o seu posicionamento de forma clara e inventiva ao leitor. Um escrito que aborda o
tema cultural e é sensível, atrativo e que traz informações interessantes, pode ser um
caminho para que o jornalismo dessa área possa oferecer um material mais
motivador. Como foi escrito anteriormente nesse subcapítulo, a função desse
profissional é relevante para aqueles que leem o seu trabalho.
Além disso, a pesquisa irá resgatar o trabalho de um suplemento cultural
gaúcho que é pouco “reconhecido”, no século XXI, no Estado. Explorar o conteúdo
desse periódico significa compreender uma época e analisar os recursos linguísticos
que nos interessam para melhorar o nosso trabalho. Por esse motivo, foi escolhido a
Clarice Lispector, uma escritora que investiu no domínio de estilos de linguagem.
Apesar dela ter pertencido a literatura, e não ao jornalismo, ela é uma fonte de cultura
no suplemento “Caderno de Sábado” e que nos interessa para atingir o objetivo dessa
investigação.
A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector
no ‘Caderno de Sábado’”, em suma, irá explorar a forma inventiva e autoral da
escritora no suplemento cultural. A partir da necessidade de um trabalho de qualidade,
no século XXI, no jornalismo cultural, a investigação defende que o profissional
precisa redigir um texto atrativo e interessante ao leitor. Explorar, então, o recurso
estilístico de Clarice, se faz relevante para o interessado.
9

1.2 PROBLEMA

A investigação tem como pergunta central: “como se constrói a expressão da


intimidade nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?”. A partir
do recorte de figuras de linguagem nos textos, poderemos entender como o domínio
de um recurso estilístico é de suma importância para o jornalista cultural. O
profissional, do século XXI, portanto, precisa dominar as estratégias linguísticas.
A partir da pergunta central, a pesquisa visa investigar, nos textos clariceanos
publicados no suplemento cultural gaúcho, de que forma a escritora investe no seu
recurso linguístico. Diante de muitas marcas de autoria que poderíamos estudar, foi
escolhido as figuras de linguagem. A partir do recorte dessas palavras no texto e
identificar a raiz de sentido delas no dicionário, poderemos, então, discutir como
Clarice expõe a sua opinião sobre o feminino no contexto de 1960. Ao apresentar as
personagens femininas em cada história, a escritora desenvolve monólogos interiores
e descrição de imagens que possibilitam o leitor de conhecer essas mulheres e
compreender os questionamentos da autora.
Para essa pesquisa, é interessante observar, nas crônicas-conto de Clarice
Lispector, como ela usa a marca de autoria, figura de linguagem, para aprofundar a
construção dos seus personagens. Esse estilo de escrita oferece, ao interessado, um
texto elaborado, atraente e envolvente. Além disso, a autora oferece um tema
pertinente.
Diante das mudanças no mercado do jornalismo cultural, a investigação
defende que o jornalista cultural precisa conhecer e dominar os recursos estilísticos.
A fim de poder escrever sobre um objeto cultural, independente da pauta, o
profissional deve conhecer sobre os temas artísticos, e saber se expressar para
transmitir uma informação clara ao leitor. Por esse motivo, a análise das quatro
crônicas-conto escolhidas nessa pesquisa, de Clarice Lispector, é relevante para
explorarmos a expressividade da autora e o domínio de seu recurso linguístico. A partir
dessa descoberta, o interessado pode escolher a sua própria forma inventiva de
escrita.
Esse subcapítulo, em suma, mostra que há uma necessidade de domínio de
recursos estilísticos para que o trabalho de um jornalista cultural seja diferenciado.
Por esse motivo, através da análise de figuras de linguagem nas quatro crônicas-conto
10

clariceanas, o leitor poderá compreender como esse conhecimento é importante. O


objetivo dessa pesquisa, portanto, é investigar como a forma expressiva é construída
nos textos de Clarice Lispector.

1.3 HIPÓTESE

A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice


Lispector no Caderno de Sábado” tem como hipótese mapear o recurso estilístico,
figura de linguagem, a fim de entender de que maneira a autora usou essa marca de
autoria para expor a sua opinião. O jornalista cultural precisa, também, oferecer uma
forma autoral de escrita sensível e de qualidade ao leitor.
A qualidade estilística, a descrição de imagem e a crítica são requisitos para
o trabalho de um jornalista cultural. Esse profissional precisar saber se expressar e
transmitir, ao leitor, uma mensagem clara e concisa. A partir dos questionamentos de
Daniel Piza, no subcapítulo “justificativa”, podemos analisar que o autor compartilha a
necessidade do jornalista de desenvolver um texto mais elaborado e interessante,
entre outras funções. É de suma importância, portanto, o profissional saber se
posicionar no texto e usar uma forma autoral de escrita inventiva para descrever um
objeto cultural.
O problema da pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de
Clarice Lispector no Caderno de Sábado”, como foi escrito no subcapítulo anterior,
visa explorar como é construída a expressão da intimidade nos textos de autora. A
palavra “intimidade” refere-se ao posicionamento ou visão de mundo do escritor. A
“expressão”, contudo, é a forma de escrita escolhida por ele para transmitir os seus
pensamentos e inquietações sobre o assunto que o interessa. Através do uso das
figuras de linguagem, que é uma das formas de expressividade da escritora,
poderemos compreender que o domínio linguístico para um jornalista cultural é muito
importante.
A hipótese dessa investigação, portanto, é mapear o recurso estilístico,
figuras de linguagem, de Clarice Lispector a fim de entender o seu posicionamento ou
a sua forma de ver o mundo no texto. A partir da exploração dessa estratégia de estilo,
11

ao final da pesquisa, ficará mais claro ao interessado de que maneiras as figuras


podem ser usadas nos textos jornalísticos.
“Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no
Caderno de Sábado” tem como hipótese, em suma, mapear as figuras de linguagem
da autora para compreender como ela usa esse recurso para se posicionar no texto.
Essa investigação possibilita o estudo de textos de Clarice que é referência para o
uso da forma de escrita. A partir dessa leitura, o interessado compreenderá como
pode usar esses recursos nos textos jornalísticos.
12

1.4 OBJETIVO GERAL

A investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice


Lispector no ‘Caderno de Sábado’” tem como objetivo geral compreender a construção
da autoria nas crônicas-conto de Clarice Lispector. Através da identificação das
figuras de linguagem no texto, poderemos entender a importância dos recursos
estilísticos. O feminino é o tema das quatro crônicas-conto da escritora.
A forma autoral da escrita é desenvolvida a partir da intimidade do autor, ou
seja, da forma como ele percebe o mundo. Isso se reflete na maneira subjetiva e
individual de uma observação da realidade. A partir desse olhar sensível, o jornalista
cultural se difere de outros profissionais através de sua expressividade textual. O
posicionamento, portanto, do profissional é baseado nas escolhas de recursos
linguísticos, como as figuras de linguagem.
A pesquisa tem, portanto, como objetivo geral, estudar essa marca autoral nas
crônicas-conto de Clarice Lispector para compreender como ela expõe a sua opinião
sobre a mulher de 1960. Isso será possível através da escolha de figuras de linguagem
como indicadores no texto. Essa será uma estratégia para identificar as palavras-
chave na história clariceana.
Além de compreender quais são as perspectivas femininas que Clarice
Lispector relatou nas quatro crônicas-conto, o objetivo é entender a função das figuras
de linguagem no texto. A autora usa esse recurso estilístico a partir das intenções que
deseja colocar no texto de acordo com os personagens. Desse modo, a mensagem
transmitida ao público leitor será mais clara através das histórias.
Em suma, compreender a construção da autoria nas crônicas-conto de Clarice
Lispector publicadas no “Caderno de Sábado”, em 1968, significa aprender, com a
autora, maneiras para nos expressarmos melhor no texto. O jornalista cultural precisa
ter domínio da língua portuguesa e aprender a expressar a sua opinião no texto. A
clareza das informações da mensagem que o profissional quer transmitir é de suma
importância.
13

1.4.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

A partir do objetivo geral dessa investigação, que é estudar a construção da


autoria nas crônicas-conto clariceanas publicadas no “Caderno de Sábado”, é preciso
explorar assuntos específicos.
O primeiro deles é discutir e situar o gênero crônica. Serão discutidos, no
capítulo dois dessa pesquisa, que é chamado “A Crônica”, a trajetória, as
características e os principais escritores do século XX que aperfeiçoaram a crônica.
Esses três destaques serão discutidos, ordenadamente, em três subcapítulos: “A
Crônica e Suas Origens”, “A Crônica: Arroz e Feijão com Picadinho e Batata” e
“Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de Contar Histórias”. O
capítulo que explora o gênero crônica é relevante para essa investigação porque, além
de ser o texto de análise escolhido, ele é o texto mais antigo do país e que define a
função do jornalista de ser uma fonte de informação para o leitor.
O segundo objetivo específico da pesquisa é problematizar as contribuições
do jornalismo cultural, no Rio Grande do Sul, através do “Caderno de Sábado”. Isso
será discutido no capítulo três, “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao Rio
Grande do Sul: O Caso do ‘Correio do Povo’”. O primeiro subcapítulo, “Correio do
Povo: O Queridinho Jornal Rio-Grandense”, analisa a trajetória desse suplemento e a
sua influência no jornalismo do Estado. O segundo subcapítulo, “Um Jornalismo Para
Levar a Clubes e Assembleias, Casas de Chá e Cafés”, investiga a história do
jornalismo cultural e a situação atual da profissão no século XXI. O terceiro
subcapítulo, por fim, “Suplemento Cultural para a Elite Gaúcha”, concentra-se em
mapear as características e a estrutura do periódico “Caderno de Sábado” no contexto
do Rio Grande do Sul.
O terceiro objetivo é desvelar a marca de autoria, figuras de linguagem, em
Clarice Lispector nos textos que abordam o tema a mulher. Essa parte da investigação
se inicia no capítulo quatro, “Estudo de Caso: Clarice Lispector”. Antes de investigar
o trabalho da autora, é importante analisar os seus escritos publicados na imprensa e
nos seus livros. O primeiro subcapítulo, “Trajetória da Estudante de Direito ao
Jornalismo Cultural”, traça as funções desenvolvidas por Clarice nos periódicos
brasileiros. O segundo subcapítulo, “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura”,
por outro lado, analisa a autora no contexto da literatura. O terceiro subcapítulo, “A
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Intimidade de Clarice Lispector No Suplemento Cultural do ‘Correio do Povo’: O


Caminho da Narração Figurativa”, por fim, prepara o leitor para o próximo capítulo, em
que discute sobre a função das figuras de linguagem no texto de Clarice.
O último capítulo, “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto No
‘Caderno de Sábado’”, dá continuidade ao terceiro objetivo específico que é identificar
as figuras de linguagem, a marca de autoria escolhida nessa investigação. Os quatro
subcapítulos que se dividem no capítulo são, em cada uma delas, analisadas e
discutidas como Clarice Lispector explora essas figuras para apresentar, ao leitor, a
mulher de 1960. Ordenadamente, os títulos das investigações são: “A Mulata”, “A
‘Persona’ Bravata”, “As Atenienses e o General” e “Uma Criatura Feita para Amar”.
Os objetivos específicos dessa pesquisa, em suma, são definir o gênero
crônica, problematizar o jornalismo cultural no Rio Grande do Sul e desvelar a marca
de autoria, figuras de linguagem, nos quatro textos de Clarice Lispector. Essas
crônicas-conto abordam o tema feminino no contexto de 1960. A partir desses
capítulos, poderemos descobrir como a autora constrói a expressão da intimidade nas
suas obras publicadas no “Caderno de Sábado”.
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1.5 MÉTODO

“Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no


Caderno de Sábado” é uma investigação qualitativa, exploratória e documental. As
quatro crônicas-conto de Clarice Lispector no “Caderno de Sábado” serão analisadas
a partir do uso das figuras de linguagem. As referências bibliográficas dessa pesquisa
estão entre artigos científicos e livros de linguística e de jornalismo.
A partir da coleta de 34 crônicas do “Caderno de Sábado”, documento
disponível no “Museu Hipólito José da Costa”, de Porto Alegre, foi escolhido quatro
textos publicados, durante o ano de 1968, por Clarice Lispector. O critério de escolha
foi os escritos serem crônicas-conto e, por coincidência, os únicos escritos que se
enquadravam nessa categoria tinham, como tema, o feminino.
O objetivo dessa investigação é explorar o uso do recurso linguístico, figuras
de linguagem, a fim de encontrar, nas quatro crônicas-conto de Clarice, como a autora
aplica esse recurso para expor a sua intimidade com o leitor. Em outras palavras,
descobriremos de que forma a escritora coloca a sua “voz”, o seu posicionamento, em
um texto que é redigido na terceira pessoa do singular. Uma pesquisa, portanto, que
associa o conteúdo (feminino) e a forma (figuras de linguagem) das crônicas-conto
clariceanas para encontrar o uso da subjetividade de autora, auxiliará o interessado a
encontrar sua própria forma inventiva e autoral de escrita.
A pesquisa “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice
Lispector no Caderno de Sábado” defende, em suma, que o jornalista cultural precisa
dominar os recursos linguísticos para levar um trabalho de mais qualidade ao leitor.
Para isso, o profissional precisa encontrar a sua própria forma inventiva de escrita. As
crônicas-conto de Clarice Lispector são, portanto, objetivo de estudo que possibilita
investigar o estilo de escrita de uma autora brasileira renomada do século XX.
No segundo capítulo da investigação, “A Crônica”, a fim de explorar as
características e as particularidades do gênero, foi escolhido o livro “A Crônica” (2005),
de Jorge de Sá. Para traçar, no entanto, a trajetória do desenvolvimento do texto no
Brasil e mapear as classificações da crônica, as referências foram a tese, “Crônica:
uma intersecção entre o Jornalismo e Literatura” (2009), de Yolanda Maria Muniz
Tunizo; e a literatura, “História da imprensa no Brasil” (1999), de Nelson Werneck
Sodré.
16

No terceiro capítulo da pesquisa, “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao


Rio Grande do Sul: O Caso do ‘Correio do Povo’”, no entanto, para explorar a história
e as características desse periódico, foi escolhido a tese, “Breno Caldas: Poder e
declínio de um dos mais influentes jornalistas gaúchos” (2010), de Aline Strelow. A fim
de traçar, também, a trajetória do jornalismo cultural, a referência foi o livro,
“Jornalismo Cultural” (2013), de Daniel Piza; e o artigo, “Jornalismo Cultural: Pelo
encontro da clareza do jornalismo com a densidade e complexidade da cultura”, de
Isabelle Anchieta de Melo.
O capítulo quatro, “Estudo de Caso: Clarice Lispector”, para explorar os
trabalhos da autora na literatura e na imprensa, as referências escolhidas foram
“Clarice Lispector na Cabeceira” (2012), da Editora Rocco, que seleciona alguns
textos da autora; o livro, “A Educação Pela Noite & Outros Ensaios” (1989), de Antônio
Cândido. Além disso, para investigar as funções das figuras de linguagem nos texto
de Clarice Lispector, foi consultada a literatura de Luiz Beltrão, Jornalismo Opinativo
(1980).
No capítulo cinco, “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto no
‘Caderno de Sábado’” por fim, para analisar e discutir os textos, foram escolhidas as
referências: “Elementos da Análise do Discurso” (2001), de José Luiz Fiorin; “Lições
de texto: leitura e redação” (2006), de Platão & Fiorin; o Minidicionário Soares Amora
(2008); “Casa Grande & Sensala” (1913,) de Gilberto Freyre; a Bíblia da Mulher que
Ora (2009), de Stormie Omartian. Ainda, foi consultado, para o desenvolvimento
desse capítulo, a tese de Alessandra Dalva de Souza Pajolla, “Identidades Femininas
Múltiplas em Crônicas de Clarice Lispector” (2010); e o livro de Nícea Nogueira, “A
Crônica de Clarice Lispector em diálogo com sua obra literária” (2007).

Em suma, a investigação “Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de


Clarice Lispector no Caderno de Sábado” é qualitativa, exploratória e documental. O
trabalho visa explorar o uso das figuras de linguagem nas quatro crônicas-conto de
Clarice Lispector. A pesquisa, ainda, defende que o jornalista cultural precisa dominar
os recursos estilísticos, por isso, essa investigação é relevante para que o leitor
conheça a forma inventiva de escrita da escritora do século XX.
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2 A CRÔNICA

Esse capítulo visa discutir as características do gênero crônica e mapear os autores


brasileiros que escrevem esse texto no século XX. Ainda, essa parte da investigação
apresentará a escritora Clarice Lispector no contexto da crônica. O primeiro subcapítulo “A
Crônica e Suas Origens” concentra-se na trajetória histórica do gênero, no qual
apresenta ao leitor duas vertentes de origens do texto e suas características iniciais.
“A Crônica: ‘Arroz e Feijão com Picadinho e Batata’” é o segundo subcapítulo que
investiga a influência da literatura nesse gênero jornalísticos, e os aspectos que o
diferencia das crônicas de outros países. O último subcapítulo, “Percursos Textuais
da Crônica e Suas Diversas Formas de Contar Histórias”, por fim, visa explorar as
classificações do texto e mapear os principais autores que desenvolveram o gênero
no século XX, além de Clarice Lispector.
18

2.1 A CRÔNICA E SUAS ORIGENS

O capítulo tem o objetivo de apresentar o gênero crônica quanto as suas


características textuais iniciais. Irá ser apresentado as diferenças desse texto com
outros gêneros jornalísticos. Além disso, será destacado duas possibilidades de
origem da crônica que indicam a necessidade do homem de compartilhar com o outro
o cotidiano.
A crônica é um gênero textual que tem como características elementos do
jornalismo e da literatura. Assim como a notícia e a reportagem, a crônica tem um
caráter informativo, mas com algumas particularidades: é um texto posicionado,
subjetivo, ficcional e literário. Os cronistas têm liberdade para se expressar através da
forma e do estilo textual próprios. Como afirma Melo (1985, p.111 apud TUZINO, 2009,
p. 3), a crônica tem “a feição de relato poético do real, situado na fronteira entre a
informação de atualidade e a narração literária”. Esse gênero jornalístico dá relevância
à sensibilidade, ao lado mais humano ou sensível de fazer notícia. As quatro crônicas-
conto de Clarice Lispector, os objetos de estudo dessa investigação, são referências
de textos subjetivos onde são compartilhados com o leitor do Caderno de Sábado as
inquietações da autora.
Para entendermos mais sobre o gênero jornalístico em destaque,
estudaremos primeiramente a sua história. A crônica origina-se do Humanismo,
corrente de pensamento que surge nos séculos XIV e XV. Principalmente neste
século, o texto opinativo, com características literárias, é criado a fim de produzir
textos para a nobreza, como aconteceu com Pero Vaz de Caminha, um escrivão que
fez parte da esquadra portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500.
Ele descreveu, em uma carta para “el-rei” D. Manuel, a nova terra que Portugal
encontrara: o Brasil.
Entusiasmado, Caminha recria em texto a paisagem, o povo nativo, os
costumes desses homens, os rituais, e conta também sobre a integração dos
portugueses com os índios ao longo do tempo em que ficaram naquela terra. Pero
Vaz de Caminha estabeleceu o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial
e descrever imagens. Muitos estudiosos acreditam que esse “cronista-mor” criou a
primeira manifestação literária do Brasil: “a história de nossa literatura se inicia, pois,
com a circunstância de um descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu
19

da crônica” (SÁ, 1985, p. 7). Esse gênero, portanto, é o texto mais antigo do país
brasileiro, e foi criado com características literárias. Esse acontecimento é uma das
referências históricas que indica a origem da crônica na nação.
A segunda teoria do surgimento da crônica está nos chamados folhetins,
escritos produzidos por intelectuais no século XIX. O primeiro jornal que deu espaço
para esses textos foi o “Jornal do Comércio”, inaugurado em 2 de dezembro de 1852
no Rio de Janeiro. Esse criou “A Semana”, uma seção em que se publicava ensaios
e críticas literárias influenciados pelo Romantismo. Os principais leitores eram os
burgueses, que usavam o folhetim para criticar a cultura aristocrática da época. Esses
escritos se localizavam no rodapé da página do jornal e eram publicados, por exemplo,
contos, romances, novelas e crônicas. Os jornalistas que escreviam nesse espaço
recebiam notoriedade, status, dinheiro e possíveis publicações de seus escritos por
editoras. No século XX, no entanto, a história jornalística mudou profundamente.
Com o surgimento da segunda fase da Revolução Industrial no final do século
XIX e começo do século XX, o estilo de vida da sociedade no mundo se transformou
radicalmente. O capitalismo crescia e se popularizava ao mesmo tempo que os jornais
da imprensa no Brasil lutavam pela rapidez e difusão de informações. Por isso, os
periódicos eram produzidos através da máquina estilo linotipo criada na Alemanha,
em 1886, por Ottmar Mergenthaler.

A luta pela rapidez e difusão exigiu da imprensa sucessivos inventos,


conduzindo à velocidade na impressão, acompanhando o enorme e
crescente fluxo de informações, devido ao telégrafo, ao cabo submarino e,
depois ao telefone e ao rádio (SODRÉ, 1998, p.3)

A partir do avanço da tecnologia, houve uma maior necessidade da sociedade


em receber as notícias mais rapidamente. Além disso, no início do século XX, a
economia aumentou. Nesse período, segundo o economista Robert Lucas Júnior, o
Brasil apresentava novas oportunidades parar lucrar.

Pela primeira vez na história o padrão de vida das pessoas comuns começou
a se submeter a um crescimento sustentado...nada remotamente parecido
com este comportamento econômico é mencionado por economistas
clássicos, até mesmo como uma possibilidade teórica. (JÚNIOR, 2002, p.
109).
20

Consequentemente, as empresas jornalísticas, sobretudo os grandes jornais,


transformaram-se em “grandes negócios”, deixando de ser propriedade privada com
motivações individuais para reconhecer o coletivo, com foco em grupos dominantes e
econômicos do Brasil. O objetivo dos meios de comunicação era lucrar e, por isso, a
inspiração intimista e pessoal dos jornalistas foi substituída pela objetividade de fazer
notícias. Essas se tornaram um “bem de consumo”, e o objetivo não era mais produzir
um conteúdo diferente e importante para a sociedade, mas sim escrever conforme a
exigência do público. O foco, portanto, era agradar o leitor e então a empresa lucraria
mais.
Com a modificação da estrutura dos jornais, a crônica foi inovada. Ela
normalmente está atrelada a características como brevidade e simplicidade. Mesmo
entre notícias objetivas, o texto opinativo fez sucesso em meio aos leitores. Esses se
atraíam pelos temas do cotidiano, pela forma descontraída de noticiar e também pela
“leveza” que os cronistas construíam o seu texto. Conforme a procura pelas crônicas
aumentava, os escritores do início do século XX, como Machado de Assis e José
Veríssimo, voltavam após um longo período de recesso.
O subcapítulo “A Crônica e Suas Origens”, em suma, concentra-se na história
do gênero. Esse é considerado como o texto mais antigo do Brasil, no qual tinha o
objetivo de relatar sobre o cotidiano. A crônica tem, portanto, características literárias.
A partir da ascensão do capitalismo, a necessidade de maiores e rápidas informações
na sociedade contribuíram para o gênero ser breve e simples.
21

2.2 A CRÔNICA: “ARROZ E FEIJÃO COM PICADINHO E BATATA”

O subcapítulo “A Crônica: ’Arroz, Feijão com Picadinho e Batata’” discute a


função do cronista de um periódico. Além de investigar a estrutura que compõe o texto,
essa parte da investigação irá analisar os requisitos que o profissional precisa ter para
produzir um trabalho diferencial. A pesquisa irá mapear, também, o que diferencia a
crônica de outros países.
Ao mesmo tempo em que noticia e informa sobre os acontecimentos e as
novidades da semana, o cronista escreve de forma literária, na maioria das vezes,
poética. Ele fala de guerras, política, economia, falecimento de entes queridos,
manifestações, arte, entre outros temas, mas ele sempre critica ou discute sobre os
hábitos da sociedade atual. O cronista tem mais liberdade para escrever por que ele
não está preso à objetividade, imparcialidade e linguagem denotativa.
Uma das características principais da crônica é a posição explícita do
profissional: com um olhar crítico e detalhista, ele vê o mundo e escreve com confiança
e autoridade sobre os acontecimentos da semana no seu país de origem, no mundo
ou dentro de seu dia a dia, a fim de registrar algo relevante para os seus leitores.

Através da crônica o leitor dos jornais impressos pode tomar conhecimento


dos fatos, informar-se do que acontece na atualidade e, ao mesmo tempo,
receber uma leitura de mundo; um posicionamento explícito de como o autor
da crônica compreende e relata tais fatos. A opinião presente no ato de
informar, somada às possibilidades criativas próprias da literatura, fazem da
crônica uma simbiose entre duas importantes esferas do conhecimento
(TUZINO, 2009, p.15).

A crônica se torna única quando é narrada por um jornalista ou escritor que


entra na história e associa elementos ficcionais e fantasiosos. O profissional precisa
ter talento para olhar além do que o cidadão comum pode enxergar no dia a dia e,
com sensibilidade, transpor para o papel o que viu e, no final, expor o seu ponto de
vista. Após a reformulação da crônica na segunda fase da Revolução Industrial, ela
inicia com um título, que indica o tema que será abordado, a introdução, a
argumentação e a conclusão. Esse tipo de texto não é mais considerado como sendo
fora do campo jornalístico; pelo contrário, considera-se a ética e a verdade como
essência da crônica. A narração de um fato do cotidiano é, na maioria das vezes,
escrita na primeira pessoa do singular e deixa a terceira pessoa em segundo plano.
22

Mas isso não significa que seja uma regra, pois os quatro objetos de estudo dessa
investigação, que serão investigadas no capítulo cinco, são escritas por Clarice
Lispector na terceira pessoa do singular.
Podemos facilmente confundir o trabalho de um cronista com o de escritores
que elaboram contos por causa do semelhante tamanho textual e pela rapidez com
que é redigida. Mas o que diferencia o gênero crônica é que o texto tem o objetivo de
informar e noticiar, em que é registrado a realidade de forma crítica através da
narração humorística ou poética. O conto, no entanto, é produzido para fins literários,
em que a ficção prevalece sobre o real. Outra particularidade é que esse texto exige,
também, uma construção maior de personagens, do tempo e do espaço. Portanto, na
crônica, não há a exigência de explicar onde a história é iniciada e o informações
detalhadas dos personagens nela envolvidos.

– À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são


extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder
acompanhá-los. Por isso a sintaxe lembra alguma coisa desestruturada,
solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do
texto escrito – (SÁ, 2005, p. 11).

Embora a crônica é originada em terras francesas, o gênero é considerado


tipicamente brasileiro e faz parte da literatura da nação. Poucos países do mundo
conseguem escrever esse gênero textual semelhante aos profissionais do Brasil. A
crônica, nesse país, tem um caráter bem definido e único.
Enquanto que no exterior a crônica é relatada de forma cronológica e narrada
historicamente, no Brasil, porém, o texto é baseado em fatos e narrada, em sua
maioria, de forma poética. A nação que chega perto do estilo brasileiro de redigir é
Portugal, porque, com frequência, usa os fatos cotidianos como pretexto para
escrever. Os textos internacionais que mais se aproximam da crônica brasileira são
“histórias de ação”, na Inglaterra; “texto crítico”, na Alemanha; e “característica”, nos
Estados Unidos, que tem um estilo pitoresco de contar histórias (LIMA; TUNIZO, 2009,
p. 9, tradução do autor).
Por mais que a crônica tenha nascido na França, ela encontrou na América
Latina, sobretudo no Brasil, o seu “habitat natural”. Segundo Carlos Heitor Cony
(REVISTA CULT. São Paulo: Bregantini, 2006, p.8) “a crônica é um gênero
tipicamente brasileiro. Em outros países, ela também existe, mas não tem as nossas
características”. A forma poética da escrita, a “conversa miudinha” (TUNIZO, 2009, p.
23

10) do cronista, a forma leve e descontraída de narrar uma situação do cotidiano e o


humor são algumas das particularidades do texto opinativo brasileiro. Segundo
Cândido (1986, p. 6-7), a crônica brasileira tem uma boa história, e até se poderia
dizer que, sob vários aspectos, é um gênero do Brasil “pela naturalidade com que se
aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu”. No entanto, Flora
Bender e Ilka Laurito foram mais ilustrativas quando comparam a crônica do Brasil
com os países no exterior:

Se fossemos comparar o gênero a um prato de comida, não seria,


certamente, uma sofisticada iguaria da culinária francesa e sim a comidinha
trivial, o arroz e feijão com picadinho e batata. Embora de origem estrangeira,
aclimatou-se bem à nossa terra, assim como a cana-de-açúcar e o café. Não
se pode dizer que seja um gênero exclusivamente brasileiro, mas tem o nosso
sotaque e encontrou, aqui, nos nossos leitores e jornais, seu habitat ideal
(BENDER; LAURITO 1999 apud Tunizo 2010, p. 10).

A pesquisa, “A Crônica: ’Arroz, Feijão com Picadinho e Batata’”, em suma,


investiga as características desse gênero. A sensibilidade e a observação diferencial
do cotidiano são um dos requisitos para que o cronista desenvolva o seu trabalho de
forma concisa. Ainda, a crônica no Brasil se difere de outros países, pois ela se
concentra na narração leve, humorada e cotidiana.
24

2.3 PERCURSOS TEXTUAIS DA CRÔNICA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE


CONTAR HISTÓRIAS

O subcapítulo irá mostrar como a crônica tem uma rica classificação textual e
uma potencialidade de contar histórias. Através dessa parte da investigação,
conheceremos cronistas do século XX que influenciaram gerações de leitores dos
periódicos. Ainda, entre muitas classificações, a crônica-conto será definida e
apresentada, pois tem uma função relevante para essa pesquisa através dos textos
clariceanos publicados, no “Caderno de Sábado”, em 1968.
A autora Clarice Lispector desenvolveu crônicas na metade do século XX para
o “Jornal do Brasil” e o seu trabalho foi reconhecido no Rio Grande do Sul através do
suplemento cultural “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”. Ela foi uma escritora
como muitos outros que incentivaram o público leitor a se interessarem pelos
cadernos culturais. Nesse mesmo século, houve críticos que definiram e interpretaram
o gênero crônica, e um deles foi Afrânio Coutinho:

A crônica é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa.
Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera
que se compra num dia e no seguinte é usada para embrulhar um par de
sapatos ou forrar o chão de cozinha (COUTINHO, 1989, p. 6).

A teoria de Coutinho e de outros três estudiosos serão discutidos nessa parte


da investigação, e esses são Luiz Beltrão, Antônio Cândido e Massaud Moisés, a partir
de seus trabalhos reconhecidos pelo mercado da comunicação. Esse subcapítulo irá
mostrar as diversas classificações do gênero crônica para mapear, além da crônica-
conto que será investigada no capítulo cinco, as múltiplas formas de escrever textos
sobre o cotidiano publicados em periódicos. A partir disso, será coletado diversos
trechos de crônicas para exemplificar as classificações.
Luiz Beltrão1, em sua obra “Jornalismo Opinativo” (1980), classifica a crônica
de duas formas: quanto à natureza do tema e ao tratamento dado ao tema. Na primeira
teoria, ele reparte a crônica em geral, local e especializada. Quando o texto é

1
Luiz Beltrão marcou a sua geração pela sua engenhosa pesquisa científica sobre os fenômenos da
comunicação nas universidades brasileiras. Ele fundou o Instituto de Ciências da Informação, a
ICIFORM, que foi o primeiro centro acadêmico nacional de estudos da mídia. Ainda, Beltrão se tornou
o primeiro doutor em Comunicação na nação brasileira. Ele criou o livro “Teoria e Pesquisa do
Jornalismo”.
25

publicado em um espaço fixo no jornal e comenta assuntos variados, é chamado de


“crônica geral”. Ainda, o texto com características locais, também chamada “crônica
urbana”, dedica-se a temas cotidianos de uma cidade. O escritor que cria, também, a
“crônica especializada” tem a função de comentar ou discutir um assunto específico
do qual tem conhecimento.
A segunda classificação da crônica, que é o tratamento dado ao tema, é, por
exemplo, “analítica”, que narra os fatos de forma breve e objetiva; a “sentimental”, que
se concentra na sensibilidade do cronista frente ao tema do cotidiano. A satírico-
humorística, por fim, tem como objetivo criticar, ironizar, e até mesmo ridicularizar
certos acontecimentos ou pessoas a fim de divertir ou alertar o leitor. Todas essas
classificações ajudam o interessado a compreender a riqueza de conteúdo e a escrita
do gênero crônica.
Para exemplificar a classificação do gênero feito por Luiz Beltrão, houve
escritores no século XX que redigiam, principalmente, crônicas sentimentais e satírico-
humorísticas. Rubem Braga, por exemplo, era um profissional afeito à sensibilidade,
a textos que falavam de cenas cotidianas que o intrigavam, como a “crônica
sentimental” chamada “O Desaparecido” (1969), que foi publicada no Rio de Janeiro:

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto
de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável
desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em
alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um
homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em
ti, meu amor (BRAGA, 1969, p. 112).

Braga relata nesse texto a sua solidão e a saudade de “sua amada” em linhas
poéticas e detalhistas, que pode ser evidenciado na frase: “pensando em ti, pensando
teimosamente, docemente em ti, meu amor” (BRAGA, 1969, P. 112). A repetição de
palavras no trecho acima, por exemplo, é uma característica da “crônica sentimental”.
O texto satírico-humorístico pode ser exemplificado na crônica, “Em Matéria de
Automóveis”, de Fernando Sabino. O autor compara o pouco conhecimento que ele
tem do seu carro novo com a mínima experiência das mulheres na “direção”: “– No
mais – arremata ele – tirante o giguelê, em matéria de automóveis, estou com as
mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas:
buzina e volante” (SABINO, 1963, p.110).
26

Afrânio Coutinho2, outro profissional que estudou o gênero crônica, destaca


quatro classificações do gênero quanto a sua natureza ou movimento interno. Elas
são a “crônica narrativa”, que é escrita como uma história, semelhante a um conto; a
“crônica metafísica”, que tem como tema a filosofia de vida, em que os autores
refletem sobre os acontecimentos do cotidiano ou da sociedade que possam ser
objetos de discussão. Ainda Coutinho destaca a “crônica-poema em prosa”, que é de
conteúdo lírico, ou seja, um texto em que o jornalista exalta suas emoções e seus
sentimentos pessoais. Esse profissional se dedica em registrar comentários sobre a
natureza ou um fato específico. A “crônica-comentário”, por fim, é um texto que o
profissional discute uma situação cotidiana.
A história de “Cena Amarga”3, de Paulo Mendes Campos, e “O carro, a
jardineira, a calçada”4, de Carlos Drummond de Andrade são exemplos de “crônica
narrativa”. A “crônica metafísica” tem como referência o texto “O suor e a lágrima”5,
de Carlos Heitor Cony, que faz uma discussão social. Narrada em primeira pessoa, o
cronista conta sobre o rápido momento que engraxou os seus sapatos com um
profissional no aeroporto. O texto é uma denúncia da diferença de classes sociais.

Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus
sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do
povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele
brilho humano, salgado como lágrima (CONY, 2001, p. 319).

A explicação do estudo da classificação do gênero crônica bem como suas


exemplificações servem para o leitor conhecer as diversas formas que esse texto
subjetivo pode ser desenvolvido por um autor. Além da crônica-conto de Clarice
Lispector, os objetos de estudo dessa investigação, é relevante conhecer a forma

2Afrânio Coutinho elaborou diversos projetos no campo literário, como a seção “Correntes Cruzadas”,
no Suplemento Literário “Diário de Notícias”. Ele escreveu, também, a “Teoria e Técnica Literária”, na
Faculdade de Filosofia do “Instituto Lafayette”, e fez parte da inauguração da Faculdade de Letras na
Universidade do Rio de Janeiro.

3A obra narra uma confusa conversa entre o autor e um interlocutor imaginário na beira de um campo
ao lado de uma estrada na zona rural de Pernambuco. Campos discute sobre o urbano e o rural, para
produzir uma crônica descontraída.
4 Com a narração em terceira pessoa, o jornalista retrata a situação das calçadas de Copacabana,
em que se discute o que poderá estar presente lá, se é carro ou os jardins. No texto, existem dois
personagens que não foram identificados, mas que representam dois pontos de vista dos cariocas
frente à reforma da calçada de Copacabana.
27

expressiva da escrita de outros cronistas e seus respectivos temas. Para isso, é


necessário apresentar as outras classificações e exemplos que podem esclarecer
melhor o seu significado para o interessado.
Quanto à “crônica-poema”, o texto “Atenção ao Sábado”, de Clarice Lispector
pode ser um exemplo para essa classificação. A autora afirma, em seu texto, que
sábado é a rosa da semana, em que a palavra “rosa” pode significar alegria. É possível
essa interpretação a partir da pigmentação da cor rosa e o seu significado no contexto
da crônica. A escritora destaca diversas comparações cotidianas que acontecem no
sábado, como “cortinas ao vento, balde de água no terraço e abelha no quintal”
(LISPECTOR, 1992), que são cenas do cotidiano que representam a alegria do
sábado. Logo ela relata: “uma picada, o rosto inchado, sangue e mel [...]”. Em uma
releitura, as palavras “sangue” e “mel” podem significar a mistura de morte com vida:

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de


cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao
vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento:
uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras
abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar
cheio de abelhas (LISPECTOR, 1992).

Clarice Lispector é a autora escolhida nessa investigação cuja análise de


quatro textos será feito no capítulo cinco. A forma textual da autora, ou seja, o estilo
de escrita que ela escolhe desenvolver em suas crônicas são considerados referência
para um jornalista cultural. É necessário saber se expressar, e o trecho acima de
“Atenção ao Sábado” destaca as figuras de linguagem que trazem um significado além
do sentido original, como “sangue” e “mel”. A construção das orações e a seleção das
palavras, nesse caso, contribuem para dar a crônica uma visão poética, como requer
a classificação.
Outro caso de “crônica-poema” está na obra de Sérgio Porto chamada “A casa
demolida”6. Como o próprio título mostra, o cronista se depara com um objeto pessoal
que fora abandonado há muitos anos pela sua família, e pelo qual viveu até os vinte
e cinco anos de idade. O cronista encontra fotos antigas do imóvel mobilado, e isso
provoca uma nostalgia e, ao mesmo tempo, uma emoção em ter visto aquelas

6 “Nas paredes, além dos pratos chineses – orgulho do velho – a indefectível ‘Ceia do Senhor’, em
reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra
desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor
desconhecido” (PORTO,1963, p. 09).
28

fotografias. Ao longo da “crônica-poema”, o autor escreve quatro parágrafos


dedicados a um lugar da casa que foi retratado através da descrição de imagens. No
final do texto, Porto confessa que nunca esquecerá daquela casa na qual viveu a sua
infância e juventude.
Ainda, O texto “Desculpai-me!”, de José de Alencar, é uma exemplificação
clara sobre o conceito da “crônica-comentário”, outra classificação do estudioso
Afrânio Coutinho. O cronista compartilhou um fato engraçado do seu dia sobre a hora
que sua pena de tinta não funcionou. Ele ficou desapontado com a situação do
instrumento e, irritado, fez um debate com os seus amigos sobre o ocorrido. No final
desse dia, Alencar joga a pena pela janela e, convencido de que não poderia voltar a
escrever até o próximo dia, começa a observar os quadros da parede de sua casa ao
som de uma tempestade.

Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e


saiu intacta e pura. Não trazia nem uma nulidade de tinta. Fiz nova
experiência, e foi debalde. [...]. Tinha uma pena oradora, tinha discussões
parlamentares, discursos de cinco e seis horas. Que elementos para não
trabalhar! (ALENCAR, p. 227)

Antônio Cândido de Melo e Souza7 é o terceiro profissional que estudou a


crônica. Ele, em seu livro, “A vida ao Rés-do-chão” (1989), estudou o gênero a fim de
destacar as diferenças entre os cronistas modernos brasileiros. Antônio,
primeiramente, nomeou a “crônica-diálogo” como um texto narrado pelo cronista e por
um interlocutor imaginário com quem ele conversa, onde ambos defendem os seus
pontos de vista e trocam informações; a “crônica narrativa”, no entanto, é um texto
semelhante ao conto. Ainda, a “crônica exposição-poética” é a discussão livre sobre
o cotidiano, e a “crônica biografia lírica”, por fim, conta, em forma poética, a vida de
um indivíduo.
A “crônica-diálogo” tem, como exemplo, o texto “Conversinha Mineira”, de
Fernando Sabino. Escrita em terceira pessoa, a história acontece em um café, onde
conversam o cliente e o dono do local. Aquele faz um pedido para o proprietário:

7
Ele é considerado o maior crítico literário do Brasil, além de ser professor universitário, escritor e
ensaísta. Após dois anos de sua formação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo,
Cândido, em 1943, é contratado pela Folha da Manhã para escrever artigos e críticas literárias. Ele
teve a oportunidade de criticar os primeiros livros de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.
29

“Então me dá café com leite, pão e manteiga. — Café com leite só se for sem leite. —
Não tem leite? — Hoje, não senhor. — Por que hoje não? — Porque hoje o leiteiro
não veio” (SABINO, 1962, p. 144). Essa “crônica-diálogo” se desenvolve nas
perguntas inquietas do cliente com as respostas vagas do proprietário que dá humor
ao texto.
A “crônica-narrativa”, no entanto, tem como referência o texto, “Depois do
Jantar”, de Carlos Drummond de Andrade. Em uma narrativa ficcional, um homem é
surpreendido por um ladrão no meio da noite na “Lagoa Rodrigo de Freitas”, no Rio
de Janeiro. O texto é uma conversa entre o ladrão e uma pessoa, no qual essa negocia
o que o ladrão irá roubar dela.

— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio. — Como?
— Já disse. Vai passando o relógio. — Mas ... — Quer que eu mesmo tire?
Pode machucar. — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito.
Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude. O outro
ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de
dono (ANDRADE, 1977, pág. 54).

O texto “Mila”8, de Carlos Heitor Cony, e “Uma galinha”, de Clarice Lispector


é um exemplo de crônica “expositivo-poético”. O segundo traz um contexto familiar
em um ambiente rural. A autora define a galinha como a personagem principal da
história que, através de uma fuga da casa de seus donos, o animal pôde correr
desesperado durante um quarteirão e meio e, depois, ser pega:

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no
terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado
(LISPECTOR, 1998, p. 30).

Naquele dia, a galinha iria para a panela, mas, no meio da cozinha, pôs um
ovo. Esse acontecimento emocionou a criança da casa que, insistentemente, adotou-
a como um animal de estimação, como na crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”

8
O texto gira em torno de Mila, uma cachorrinha do cronista que se tornou a melhor companhia de sua
vida. Cony conta como foi o primeiro contato dele com a cachorra, em como era pequena diante de
suas mãos: “Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos
atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio
nessa primeira vez” (CONY, 2001, p. 318).
30

que será investigada no capítulo cinco dessa pesquisa. Após um determinado tempo,
porém, a galinha virou comida da casa de campo.
A crônica “biográfica lírica”, no entanto, pode ser exemplificada no texto “Viúva
na praia”, de Rubem Braga. O cronista, ao ver uma mulher conhecida de vista que
acabara de ficar viúva, fica surpreso por ela estar na praia. Em uma narração poética,
Braga cria imagens para que o leitor possa visualizar a cena da praia, a mulher com
o seu filho e o cronista deitado na areia no qual observa o acontecimento cotidiano.

É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta, de


curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos,
talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos são um pouco
amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco; a
linha do queixo muito nítida (BRAGA, 1960, p. 129).

O cronista tem a oportunidade de escrever textos diferentes que relatam o


tema circunstancial. Estudar as diversas classificações do gênero e suas
exemplificações amplia o conhecimento do leitor. Os escritores do século XX citados
nesse subcapítulo tem uma forma inventiva de escrita autoral, assim como Clarice
Lispector, que participa desse grupo de profissionais que aperfeiçoaram a crônica.
A última classificação a ser estudada nesse trabalho é a de Massaud Moisés9.
Para ele, o gênero crônica se direciona para o conto ou para a poesia, em que o
cronista produz uma “poetização do cotidiano”. O professor, portanto, desenvolveu
duas classificações para esse texto: a “crônica-poema” e a “crônica-conto”. A primeira
se concentra nas emoções do autor, nos seus sentimentos e nas suas opiniões sobre
determinado assunto. Segundo Moisés (2003, p. 111), o cronista transforma o seu
escrito em uma “página de confissão, de diário íntimo ou de memórias”. Carlos
Drummond de Andrade, por exemplo, escreveu “A Máquina do Mundo”, uma “crônica-
poema” conhecida como uma das melhores já escritas no século XX. Nesse texto há
uma relação com a Divina Comédia de Dante e o eu-lírico que busca a explicação de
sua existência.

9 Professor titular da Universidade de São Paulo, Moisés escreveu grandes trabalhos de pesquisa na
área de filosofia, letras e ciências humanas. Durante um período de sua vida, ele foi um “professor
visitante” em diversas universidades americanas em locais, como “Wisconsin”, “Indiana”, “Vanderbilt”,
“Texas”, “Califórnia” e “Santiago de Compostela”. Ainda, Massaud escreveu o livro “A Literatura
Portuguesa e a História da Literatura Brasileira”, além de produzir a seleção, a introdução e as notas
de contos do Machado de Assis.
31

Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem
um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e
dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que
transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos
abismos (ANDRADE, 1985, p. 300).

A “crônica-conto”, no entanto, é a classificação do gênero feita por Moisés


através do livro “A Criação Literária – Prosa” (1978). Essa crônica é relevante para
essa investigação, pois os quatro textos produzido por Clarice Lispector no “Caderno
de Sábado” fazem parte dessa classificação. Para o estudioso, portanto, a “crônica-
conto” não é um espaço que visa expressar os sentimentos e as emoções do cronista,
mas descrever um fato que o interesse.
Segundo Michelline (2005, p. 112), a “crônica-conto” dá ênfase ao “não-eu”
diante do acontecimento que provocou a atenção do escritor. O cronista torna-se,
então, o narrador de uma história e passa a sair do foco central da narrativa10. Ele tem
a oportunidade de registrar o circunstancial em outra perspectiva de olhar. Essa
classificação, em suma, é o foco dessa investigação que tem o objetivo de descrever
um acontecimento, com a narrativa semelhante ao conto, envolvendo personagens
em um contexto social e histórico.
A crônica “Dois Entendidos”, de Fernando Sabino, é um exemplo de “crônica-
conto”. O jornalista escreveu em terceira pessoa e criou um diálogo entre dois homens
conhecedores de futebol. Eles estavam competindo quem sabia mais detalhes sobre
os jogos desde 1929. A conversa chegou em uma partida futebolística decisiva, em
que o juiz havia dado impedimento em um momento determinante. Um deles disse
que era o juiz do jogo, mas o outro não acreditou. No final, o aquele confessou que
era o bandeirinha:

Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de


acrescentar: — Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado...Ele saltou de
súbito, brandindo o dedo no ar: — Já sei! Isso mesmo! Você não foi juiz coisa
nenhuma! Você era o bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais
gordo mesmo, todo agitadinho, corria se requebrando...Tinha o apelido de
Zuzú. (SABINO, 1965, pg. 60)

A partir das classificações de Luiz Beltrão, Afrânio Coutinho, Antônio Cândido


e Massaud Moisés, portanto, podemos analisar que a crônica pode ser escrita de

10 O “eu” do jornalista está em oculto através da narrativa em 3ª pessoa do singular.


32

diversas maneiras. Esse gênero é particular, pois tem um caráter livre e dinâmico, que
se torna um instrumento prazeroso para o escritor expressar a sua opinião e, muitas
vezes, sentimentos. A crônica foi escrita no século XX por muitos autores de renome,
como Clarice Lispector, Rubem Braga e Carlos Heitor Cony. O gênero, nesse século,
foi aperfeiçoado por esses e outros autores que atraíam cada vez mais o número de
leitores de periódicos. A crônica, além de jornais, pode ser publicada em livros. Esse
é um texto jornalístico versátil e rico, que era desenvolvida por muitos escritores.
O subcapítulo “Percursos Textuais da Crônica e Suas Diversas Formas de
Contar Histórias”, em suma, é relevante para essa investigação, pois mostra que esse
gênero tem muitas formas criativas de ser escrito. A partir da apresentação de
classificações e exemplificações do texto, podemos perceber que, além de Clarice
Lispector, há outros profissionais que escreveram crônica e que tinha sua forma
inventiva de escrita. Os textos clariceanos, portanto, fizeram parte de um grupo de
crônicas reconhecidas no século XX.
33

3 HISTÓRIA DO JORNALISMO CULTURAL NO BRASIL AO RIO GRANDE DO


SUL: O CASO DO “CORREIO DO POVO”

O capítulo “História do Jornalismo Cultural no Brasil ao Rio Grande do Sul: o


Caso do ‘Correio do Povo’” visa analisar o jornalismo e o contexto cultural do Estado
no século XX. O subcapítulo “O ‘Correio do Povo’: o Queridinho Jornal Rio-
Grandense” visa traçar a trajetória desse periódico e de seu trabalho no jornalismo do
Estado no século XX, como a criação do periódico cultural ‘Caderno de Sábado’. O
segundo subcapítulo “Um Jornalismo Para ‘Levar a Clubes e Assembleias, Casas de
Chá e Cafés’” irá explorar a história do jornalismo cultural no Brasil, e as
características definitivas após a segunda fase da Revolução Industrial. Ainda, essa
parte da investigação discutirá o exercício dessa área no século XXI.O último
subcapítulo, “Suplemento Cultural Para a Elite Gaúcha” ir discutir os objetivos e os
conteúdos do periódico “Caderno de Sábado” no contexto de 1960. Além disso, irá
mapear os profissionais que eram responsáveis por produzir os textos do suplemento,
como Clarice Lispector.
34

3.1 CORREIO DO POVO: O QUERIDINHO JORNAL RIO-GRANDENSE

O subcapítulo “Correio do Povo: o Queridinho Jornal Rio-Grandense” visa


investigar a trajetória do periódico, e destacar as suas características que contribuíram
para o jornalismo do Estado. Será analisado, também, os acontecimentos políticos
que marcaram o rumo do jornal. Ainda, essa parte da pesquisa irá explorar os
trabalhos desenvolvidos pelo “Correio”, como os suplementos e os veículos de
comunicação.
O Correio do Povo foi fundado no primeiro dia de outubro de 1895 pelo
jornalista Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior – mais conhecido como Caldas
Júnior –, além dos colaboradores Mário Totta e José Paulino Azurenha. Em meio a
uma imprensa político-partidária ou literária, com o foco principal na livre opinião do
profissional, Caldas Júnior foi motivado a trazer ao mercado uma novidade: “um jornal
que não fosse escravo de políticos, nem de politiqueiros. Um jornal no bom sentido”
(GALVANI, 1994).
No Rio Grande do Sul, esses jornais particularmente políticos eram divididos
entre os pró-maragatos e pró-pica-paus. Os primeiros usavam um lenço vermelho em
volta do pescoço que identificava a oposição ao governo central que atuava durante
a Revolução Federalista, em 1893, enquanto que os segundos usavam um lenço
branco e defendiam o atual governo. Existia uma guerra entre esses dois grupos e,
através dos jornais, havia propagandas políticas de cada ideologia. Caldas Júnior
possivelmente não concordava com a postura dos jornalistas e teve a ambição de criar
um jornal com uma linha editorial completamente diferente. Entender a trajetória do
veículo “Correio do Povo” é relevante para contextualizar ao leitor o perfil de jornal que
publicava as crônicas de Clarice Lispector em 1968.
Na primeira edição do “Correio do Povo”, dois anos após o início da Revolução
Federalista, Caldas Júnior escreveu: “Este jornal vai ser feito para toda a massa, não
para determinados indivíduos de uma facção” (GALVANI, 1994, p. 27,). Caldas trouxe
uma nova proposta para a imprensa gaúcha. No primeiro dia de outubro, então, foram
distribuídos dois mil exemplares do periódico com quatro páginas de conteúdo
noticioso. As características dessas primeiras páginas do “Correio” durariam, sem
interrupção, oitenta e nove anos, até 1984.
35

Além do “Correio do Povo” ser novidade na linha editorial, a postura firme e


moderna da empresa de Caldas Júnior se sobressaía a outros jornais do Rio Grande
do Sul. O fundador investiu na infraestrutura, na tecnologia e nos assuntos pessoais
do jornal, como o aumento da produtividade do “Correio”, a busca para equipar os
padrões gráficos ao nível dos mais modernos do Brasil. Ainda, Júnior acrescentou o
número de páginas, modificou o formato da folha do jornal, e, mesmo assim, não
mudou o preço diário do periódico. Só em 1910, Caldas montou a primeira impressora
rotativa no Estado e, nos anos seguintes, os primeiros quatro linotipos. Esta
inauguração contribuiu para aumentar a tiragem do “Correio” de mil para dez mil
exemplares naquele ano, e a frase que acabou de ocupar o cabeçalho do jornal
indicava a conquista de Júnior: “o jornal de maior circulação e tiragem do Rio Grande
do Sul” (STRELOW, 2010, p. 2). Isso é reflexo da ascensão do capitalismo, como
vimos no subcapítulo “A Crônica e Suas Origens”.
O “Correio do Povo” conquistou o sul do Brasil. Em poucos anos, o periódico
passou a ser o principal veículo impresso do Estado. Os custos eram reduzidos, então
Porto Alegre e outras cidades podiam desfrutar e entender o novo significado do
jornalismo. Era algo incomum, mas consideravelmente atraente para os leitores. Com
esse novo público se formando, os grandes anunciantes viram a oportunidade de
serem conhecidos por mais pessoas através de anúncios no “Correio”.
Tudo estava indo tão bem quando, em uma morte prematura, Francisco
Antônio Vieira Caldas Júnior deixou o seu querido jornal para a sua esposa – então,
viúva – em 1913. O seu nome era Dolores Alcaraz Caldas, e ela tinha dois filhos com
o falecido marido: Fernando Caldas e Breno Alcaraz Caldas – esse com três anos de
idade. A direção do jornal, contudo, passou a ser controlada por familiares e homens
da imprensa da época e, depois, Fernando assumiu o posto. Em 1927, Breno Caldas,
já com dezessete anos, começou a trabalhar no “Correio do Povo” junto com as
responsabilidades da escola. Dois anos depois, no entanto, com a saída de Fernando
Caldas da direção do periódico, o jovem adulto se tornou redator-chefe. Ele foi
considerado, a partir de 1929, em uma das principais personalidades públicas do Rio
Grande do Sul.
Ainda que o “Correio do Povo” tenha como característica a imparcialidade, ao
longo dos anos, a linha editorial passou a se inclinar a ideologia da Aliança Liberal,
que tinha como ideais a mesma da Revolução de 1930. Breno autorizou, no dia 5 de
36

outubro de 1930, a publicação do manifesto de Getúlio Vargas, que tinha como título:
“Rio Grande, de pé pelo Brasil, não poderás falhar ao teu destino” (STRELOW, 2010,
p. 3)11. Para confirmar que o “Correio” cedeu às ideias políticas, novamente, em 1932,
o jornal se posicionava a favor da Revolução Constitucionalista. Essa situação ficou
mais séria quando o atual diretor do periódico, André Carrazzoni, foi demitido por
escrever um artigo contra a Revolução. Breno Caldas chegou a afirmar, em uma
entrevista, que o “Correio do Povo” “procurava ter uma posição de neutralidade, mas,
para ser bem franco, era, sem dúvida, uma neutralidade simpática aos revoltosos de
32” (CALDAS, 1987, p.110). O ex-presidente do Rio Grande do Sul, Borges de
Medeiros, fazia oposição a Getúlio Vargas na época, e o jornal teve que parar de
publicar notícias sobre a situação política do país a fim de permanecer no mercado.
Em 1935, Breno Caldas assume a diretoria do “Correio do Povo” com a saída
de Alexandre Alcaraz. Sem manter a promessa de completa neutralidade, o jornal
continuou a apoiar Getúlio Vargas, que já tinha se tornado presidente. Por esse
motivo, Caldas tinha enfrentamentos12 com o interventor do Estado, o chamado Flores
da Cunha, o qual se tornou o maior adversário político da folha. Foi um momento difícil
na vida do atual diretor do Correio. Por causa de Cunha, Alexandre saiu do periódico,
forçando este a sair do Rio Grande do Sul. A partir desse acontecimento, o jornal
atacava Flores da Cunha, fazendo com que Getúlio o pressionasse em seu trabalho.
A influência e o posicionamento do “Correio” causavam conflitos políticos – o que
ocorreu na década de 30 foi um deles.
Com a sugestão de Alcides Gonzaga, um colega recém-chegado de Buenos
Aires, Breno Caldas tomou a decisão de criar um tabloide, que foi nomeado “Folha da
Tarde”. Em 27 de abril de 1936, foi a primeira edição do jornal. A “Folha”, porém,
acabou não circulando às 16h, que era o horário oficial, mas sim às 23h do mesmo
dia. Isso ocorreu porque os redatores não sabiam quantas matérias cabia naquele

11 “Os adversários, porém, não queriam apenas a vitória eleitoral, obtida embora à custa de todas as
artimanhas e à sombra dos mais impressionantes e condenáveis abusos do poder. Foram ainda mais
longe os nossos opositores, no seu intuito de triunfar. Vencida a minha candidatura, pretenderam
subjugar a própria liberdade de consciência, a dignidade do cidadão brasileiro e o direito de pensar e
agir dentro da lei” (STRELOW, 2010, p.3).

12 A Assembleia Nacional Constituinte, agendada para maio de 1934, estava sendo pauta frequente no
jornal Correio do Povo. Como este veículo tinha influência política, o interventor do Estado, Flores da
Cunha, esperava que o periódico se posicionasse positivamente a seu posto, mas isso não aconteceu.
A partir desse fato, Cunha declarou “guerra” contra o Correio do Povo, consequentemente, contra Breno
Caldas.
37

novo formato e tamanho de página. Mesmo com uma estreia nada profissional, a
“Folha da Tarde” foi um sucesso entre os leitores gaúchos. Nesse ano, segundo
Caldas, a redação contava com os melhores jornalistas do “Correio do Povo”. Durante
a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a população do Rio Grande do Sul recebia
as últimas notícias da guerra através da “Folha da Tarde” porque essa circulava ao
meio dia. E, como não podia faltar um conflito político, o tabloide foi batizado pela
audácia do colunista Vianna Moog pseudônimo de Usbek – em escrever textos
favoráveis a Flores da Cunha. Ademais avisado pelo diretor do Correio, Moog
continuava publicando artigos com a mesma linha política e, consequentemente, foi
demitido logo depois. A “Folha da Tarde” encerrou a sua atividade só em 1964.
Já em 1957, Breno Caldas foi influenciado pelo campo da radiodifusão e criou
a Rádio Guaíba. A emissora investiu demasiadamente em coberturas esportivas e em
programas noticiosos regulares. Foi o próprio Caldas que desenhou toda a
programação da Rádio de acordo com o seu gosto pessoal:

Queríamos, com o advento da Rádio Guaíba, fazer algo com um pouco mais
de nível intelectual (...) o mais impessoal possível. Desde o início de seu
trabalho, a emissora buscou um padrão sóbrio, sem jingles, procurando
respeitar a inteligência, a seriedade do ouvinte (CALDAS, 1998, p.68).

Contudo, em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, o vice-presidente, João


Goulart, não estava conseguindo assumir, por lei, a presidência. Então, Leonel
Brizola, no Rio Grande do Sul, criou a Rede da Legalidade e usou a Rádio Guaíba –
sem a vontade de Caldas – para garantir a posse de Goulart. Ironicamente, três anos
depois, a Guaíba se posicionou a favor do golpe militar de 1964 por causa da boa
relação que Breno tinha com os presidentes militares.
A “Folha da Manhã” foi outra criação da família Caldas feita em 1969. Porém,
desta vez, o filho de Breno, Francisco Antônio Caldas, foi quem teve a ideia do jornal
e, posteriormente, o dirigiu. O novo trabalho foi inspirado pela “Folha Esportiva” que
havia circulado de 1949 a 1963; porém, ao longo do tempo, foi se transformando em
“um grande jornal alternativo numa empresa tradicionalmente conservadora”
(GALVANI, 1993). O novo periódico fazia oposição ao regime militar e foi apelidada
como “folhinha” pelo pai de Francisco – Caldas repudiava o jornal. Junto com o
“Correio do Povo”, a “Folha da Tarde” foi censurada previamente pela ditadura militar.
38

O periódico, porém, sobreviveu até 1980, quando foi enfraquecida por disputas
internas e denunciada por haver comunistas em sua redação.
A TV Guaíba, dirigida pelo Breno Caldas, entrou muito tarde no mercado
televisivo. A febre das televisões começou em 1959, no entanto Caldas inaugurou a
emissora em 1978. Ele, na verdade, tinha dúvidas se ia ter sucesso nesse tipo de
meio comunicacional. Contudo, motivado pelo presidente Médici que lançou a frase
animadora “Vai em frente!” (STRELOW, 2010, p.9), desequilibrou toda a empresa de
Breno. A plataforma do canal de TV foi feita pela Suzana Kilpp, que tinha como
característica “uma programação regional intensa e de caráter cultural (BRAGA, 2001,
p.38). Quando Caldas percebeu que fez investimentos desnecessários que estavam
desestabilizando a sua empresa, mandou o seu filho Francisco Antônio a Brasília para
pedir auxílio ao general Geisel. E deu certo: no Ministério de Comunicações arrumou-
se uma interpretação da lei para que fosse possível recuperar a concessão da TV.
Um fato curioso é que Roberto Marinho, antes da TV Guaíba ser criada,
propôs um acordo para investir 60 mil dólares em uma estação de TV no Rio Grande
do Sul que iria pertencer a Caldas. No entanto, este não aceitou porque queria uma
emissora sua, que somente ele pudesse controlar. Houve programas da Guaíba de
grande qualidade no telejornalismo e na cobertura cultural jornalística 13, mas, diante
do mercado monopolizado, Caldas teve que deixar o orgulho de lado e fechar a
empresa em 1984.
Por ter entrado no mercado televisivo muito tarde, Breno Caldas encontrou-
se, na década de 1980, com dificuldades financeiras graves. Ele abriu mão da relação
que tinha com os políticos e empresários para salvar a sua empresa, mas isso
funcionou: sua dívida chegava à casa dos milhões de dólares. Perdendo 90% do seu
patrimônio pessoal para salvar o “Correio do Povo”, Caldas corre atrás de possíveis
investimentos. Ele apresentava essa proposta: “ou ficava com tudo, através de
empréstimos legais, ou vendia tudo, como acabou acontecendo em 1984”
(STRELOW, 2010, p. 10).
Nesse ano, o “Correio” e a “Folha da Tarde” pararam com as suas atividades.
Dois anos depois do ocorrido, em 1986, a empresa Caldas Júnior foi vendida para o
empresário Renato Bastos Ribeiro e foi produzida com outro formato. A segunda
venda foi em 2007 para a Rede Record, do bispo Edir Macedo. Breno Caldas, depois

Guaíba ao Vivo, Cadeira Cativa, Espaço Aberto e Pergunte a Guaíba.


13
39

de entregar o “Correio do Povo” para Ribeiro, escolheu para o tempo novo um estilo
de vida calmo, longe da movimentação da cidade. Breno se mudou para Belém Novo,
na zona sul de Porto Alegre, em uma fazenda onde criava touros. Ele morreu em 10
de setembro de 1989, três anos após a venda do Correio.
O subcapítulo “Correio do Povo: o Queridinho Jornal Rio-Grandense” visa
trazer aspectos históricos importantes que marcaram a trajetória do periódico. Para
essa investigação, é importante contextualizar o “Correio” na sua época. O jornal
criou, em 1967, o suplemento “Caderno de Sábado”, documento relevante para essa
investigação, a fim de criar um jornalismo cultural para os leitores do Estado.
40

3.2 UM JORNALISMO PARA “LEVAR A CLUBES E ASSEMBLEIAS, CASAS DE CHÁ


E CAFÉS”

O subcapítulo “Um Jornalismo ‘Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de


Chá e Cafés’” apresenta a trajetória do jornalismo cultural e a motivação inicial do
século XVIII em trazer a cultura para o povo menos elitizado. No segundo momento,
será discutido sobre os requisitos e as funções desse profissional e a realidade do
trabalho no século XXI. Conhecer a história do jornalismo cultural e a atual situação
da profissão é primordial para essa investigação.
O jornalismo cultural é uma especialidade da área jornalística que se dedica
à cultura local, nacional e internacional e que aborda temas, como artes visuais,
música, literatura, teatro, televisão, cinema, poesia, entre outros. Conheceremos mais
sobre essa profissão especializada em cultura, sua história e sua relevância no campo
jornalístico que, posteriormente, atraiu Clarice Lispector a desempenhar um papel
relevante como escritora através de suas crônicas publicadas no suplemento
“Caderno de Sábado” em 1968.
Os jornalistas de cultura têm a função de criticar e refletir sobre os movimentos
culturais de sua época. O trabalho do profissional visa, por exemplo, informar os
leitores sobre as novas formas de trabalho de artistas e do interesse do público,
escrever sobre as obras ou autores específicos, informar sobre futuros eventos de
cultura, além de praticar um jornalismo opinativo sobre a sociedade e cobrir eventos
culturais, como festivais e exposições. Esse jornalismo está presente nos Segundos
Cadernos dos jornais impressos e em revistas especializadas em cultura. Ainda, o
profissional pode exercer o seu trabalho em sites virtuais, como blogs na internet.
Quanto às possibilidades de origem do jornalismo cultural, segundo o
historiador Peter Burke (2004), a profissão surgiu no final do século XVIII. Nessa
época, os periódicos estavam se tornando um canal de transmissão de informações
com formato jornalístico mais definido, “deixando de ser uma aparição periódica para
tornar-se uma narrativa institucionalizada socialmente, ganhando ampla difusão,
periodicidade e mercado” (MELO, 2010, p. 1).
O jornalismo cultural tinha o objetivo inicial de levar informações, antes
exclusiva aos eruditos, para aqueles que pertenciam a uma classe social mais baixa.
Segundo Pizza (2003, p. 11) essa profissão visava “tirar a filosofia dos gabinetes e
bibliotecas, escolas e faculdades, e levar para clubes e assembleias, casas de chá e
41

cafés”. Através dos fundadores da revista inglesa “The Spactator”, Richard Steele e
Joseph Addison tinha como alvo deixar o seu trabalho mais conhecido pelo seu povo.
Os conteúdos desse suplemento transmitiam o padrão do “homem da cidade” como
um ser moderno, preocupado com modas, com a saúde do corpo e da mente, além
de ele ter superioridade no que diz respeito ao seu comportamento e à política. Surgia,
então, um jornalismo voltado às artes, à literatura, ao teatro, à música e à moda14.
Ainda, o início do século XVIII foi marcado pelo crescimento da atuação das
máquinas, em que essas contribuíram para avançar a economia através do aumento
da produção em série de produtos. A corrente de pensamento humanismo, também,
começava a se popularizar ao redor da Europa. Por esse motivo, os jornais e as
revistas começaram a se deixar influenciar pelas ideias iluministas e a aumentar a
produção de seus trabalhos por causa da criação de máquinas. Em todos os aspectos,
o mundo estava sendo transformado na economia e na cultura. Como declara Daniel
Piza (2003. p. 12), a revista “The Spactator”, de certo modo, o jornalismo cultural,
“nasceu na cidade e com a cidade”.
No século XIX, a industrialização estava presente em toda a parte da Europa
e no resto do mundo, e a influência do jornalismo cultural se tornava maior através
dos textos ensaísmo e crítica. Os profissionais eram considerados celebridades, como
o crítico de arte John Ruskin (1810 – 1900). Ele era idolatrado pelos seus leitores –
ou melhor, seguidores – cujo trabalho se concentrava em temas espirituais, artísticos
e reflexivos. Foi a partir desse século que o jornalismo cultural atravessou o Atlântico
para ser desenvolvido, sobretudo, nos Estados Unidos e no Brasil. Enquanto que no
país norte-americano havia uma multiplicação na produção de jornais e revistas na
segunda metade do século, a nação sul-americana iniciou um jornalismo cultural
consolidado no final dos anos 1800.
Os profissionais que produziam um conteúdo cultural nos jornais no Brasil
eram, na sua maioria, escritores conhecidos. Machado de Assis (1839 – 1908) fazia
parte desses profissionais. No início de sua carreira, o autor trabalhava como crítico
de teatro, era polemista literário, e escrevia resenhas e ensaios seminais. José
Veríssimo (1857 – 1916) também pertencia ao grupo de profissionais e era
considerado, na época, um grande crítico, ensaísta e historiador de literatura.

14 “O jornal cobria desde questões morais e estéticas até a última moda das luvas” (BURKE, 2004 p.78).
42

Posteriormente, outros autores contribuíram para produzir um conteúdo cultural como


Oswald e Mário de Andrade. Ainda, um momento que marcou o jornalismo nessa
época foi a criação da Revista “O Cruzeiro”, no qual trabalharam José Lins do Rego,
Vinícius de Morais, Manuel Bandeira, Raquel Queiroz e Mario de Andrade.
No final dos anos 1800, os jornalistas ou escritores eram vistos como
celebridades entre os leitores brasileiros de periódicos. Os autores faziam debates
sobre livros e artes, escreviam sobre política e, com grande frequência, publicavam
notícias. Ainda na virada do século XX, essa profissão se concentrava, com mais
frequência, no texto como reportagem, entrevista e texto crítico. Nas próximas três
décadas, no entanto, o conteúdo cultural começou a ter mais espaço nos jornais e nas
revistas. Havia, então, um maior campo de atuação para esse escritor em comparação
ao século anterior, sempre aberto às modernizações culturais e jornalísticas. A
sociedade, e, portanto, os profissionais de jornais, estavam cada vez mais próximos
com o estilo de vida moderno, com as máquinas, os telégrafos, os cinemas e os
telefones.
Os jornalistas de cultura, na segunda metade do século XX, tinha papel
relevante como críticos nos periódicos e nas revistas. Os profissionais tinham como
maior objetivo trazer, para o cotidiano dos leitores, o tema cultura. A partir de 1956,
foi criado o suplemento cultural chamado o “Caderno B” do “Jornal do Brasil”. Segundo
Piza (2003, p. 37), esse periódico se tornou o “precursor do moderno jornalismo
cultural brasileiro”. Nesse caderno de cultura eram publicados textos de escritores
como Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Bárbara Heliodora e Décio Pignatari. No
mesmo ano surgiu o “Suplemento Literário” de “O Estado de São Paulo”. Houve uma
grande repercussão. A partir do final da década de 1960, vários outros jornais
aderiram à ideia jornalística, inclusive o “Correio do Povo”, na criação do “Caderno de
Sábado”, em 1967.
Na década de 1990, quarenta anos após o surgimento do primeiro suplemento
cultural em um jornal brasileiro, os periódicos deram espaço para novos campos
culturais. Além das sete artes (literatura, música, teatro, arquitetura, cinema e pintura),
a moda, a gastronomia e o design também passaram a ser temas de notícias culturais.
Ainda, a agenda trouxe para o jornalismo uma nova maneira de fazer notícias com o
intuito mercadológico. Por esse motivo, o jornalismo cultural perdeu o peso crítico e
opinativo e se concentrou em produzir textos de informações superficiais. Isso
43

significa que o profissional começou a se preocupar em publicar sobre próximos


eventos culturais ligados a agenda, e deixou de escrever, nos periódicos, críticas bem
desenvolvidas e trabalhadas para o leitor.
O jornalismo cultural, no início do século XXI, é o resultado de um
“esfriamento” profissional após a ambição de trazer ao povo o mundo intelectual e
cultural, saindo das mentes de Richard Steele e Joseph Addison, em 1711, com a
revista “The Spactator”. O objetivo desses ensaístas ingleses era tirar do pedestal e
simplificar para a sociedade um estudo e material rico e empolgante para a melhor
formação cultural e intelectual. Porém, no início desse século, o jornalista de cultura
reduziu o interesse15 pela busca de repertórios culturais novos, limitando o seu
trabalho, na maioria das vezes, na notícia sobre os produtos da Indústria Cultural,
obras que agradam o público leitor, como “novelas, programas de realidade,
programas de auditório e músicas populares” (LIMA, MELO, 2010. p. 3, tradução do
autor). Atualmente, segundo Piza (2003, p. 67) “há excesso das entrevistas em que
não se contesta o entrevistado, das resenhas que desperdiçam o pouco espaço com
pouca incisividade e sutileza, das colunas que narram o dia a dia do colunista”. Tanto
os jornais quanto as revistas estão passando por essa fase profissional.
Essa atitude dos jornalistas, tão comum no início do século XXI, é uma
consequência da falta de identidade do conceito cultural diante da classificação da
alta e baixa cultura. Em 1982, aconteceu a “Conferência Mundial sobre Políticas
Culturais”, realizado no México. Houve um consenso entre os profissionais de
comunicação sobre a redefinição do conceito de cultura:

Conjunto dos traços distintivos – sejam materiais, espirituais, intelectuais ou


afetivos – que caracterizam um determinado grupo social. Além das artes, da
literatura, contempla, também, os modos de vida, os direitos fundamentais do
homem, os sistemas de valores e símbolos, as tradições, as crenças e o
imaginário popular. (MELO, 2010, p. 4)

A partir desse conceito, conclui-se que o jornalista cultural tem um grande


campo de atuação baseado nas sete artes, que hoje incluem a literatura, a música, o
teatro, a arquitetura, o cinema, a pintura e, também, a moda, a gastronomia e o design.

15
Há pouca referência de um trabalho de qualidade no jornalismo cultural, no Brasil, no entanto,
podemos citar o suplemento “Ilustríssima”, da “Folha de São Paulo”. Ainda, referente a uma forma de
escrita inventiva autoral, que pode ser considerada um exemplo, está o trabalho jornalístico da
profissional, do Rio Grande do Sul, Eliane Brum.
44

Não se pode limitar a informação em lançamentos de livros, CDs e exposições de


artistas consagrados, reduzindo a profissão em uma agenda de eventos. Além disso,
há uma ausência no trabalho do profissional em estabelecer relações múltiplas e
complexas, com mais análise e interpretação do que hoje podemos ler.

O que implica abandonar o lugar comum das análises de viés teórico


frankfurtiano, evitando uma distinção maniqueísta entre alta e baixa cultura;
entre Indústria Cultural e cultura erudita; ou mercado e arte. Demanda-se,
para isso, uma postura mais reflexiva, democrática e menos preconceituosa
que são importantes fundamentos para definir o que é jornalismo cultural
(MELO, 2010, p. 4).

Percebemos, no jornalismo cultural do século XXI, a falta de especialização


cultural do profissional, o qual escrever uma matéria sobre agenda é simples e
objetiva, pois não exige o conhecimento teórico dessa arte. “As equipes de
redação têm menos repertório e ambição e trocam a exigência pela complacência e o
charme pela previsibilidade” (PIZA, 2003, p. 65). E o resultado disso é evidente:
diminuição sensível na pluralidade e criatividade do profissional. A crítica jornalística,
que, no século passado, era uma prioridade, nos dias atuais, baseia-se em classificar
superficialmente uma obra em “bom, muito bom, excelente ou ruim” (PIZA, 2003). Uma
redação como esta não é atraente ao leitor. O ideal, no entanto, seria uma crítica
cultural que traz referências, uma contextualização histórica, que identifica os
elementos da obra, as características de linguagem e o conhecimento do assunto.
Além da crítica cultural, é necessário um aprimoramento e equilíbrio no que
diz respeito às pautas do jornalismo cultural. Os assuntos podem ser nacionais e
internacionais, populares e eruditos, variedades e erudições. “O jornalismo cultural
deve nutrir da expansão de horizontes do conhecimento, conhecer as diferentes
culturas estrangeiras, sem esquecer, da nacional” (PIZA, 2003). É importante
ressaltar, também, que a crônica, o perfil, a entrevista e, principalmente, a reportagem
atuam nos cadernos culturais como papéis secundários. Dá-se maior foco,
novamente, para a agenda e celebridades.
Por esse motivo, há pouco espaço para o jornalista motivar e atrair o leitor à
reflexão de temas, à leitura de uma obra literária com linguagem mais complexa;
informar, com detalhes relevantes, uma cobertura mais elitista ao público interessado,
como ópera e ballet. Além disso, o profissional tem pouca oportunidade de
45

compartilhar com o público um estilo ou uma banda de música popular, que oferece
uma satisfação e admiração sonora diferenciada do mercado atual.
Contudo, com a era digital no século XXI, o jornalismo cultural tem maior
oportunidade de trabalho através dos meios virtuais, como blogs, sites e redes sociais
a fim de criar matérias e críticas sérias. Ainda, o profissional tem a oportunidade de
descontrair os seus visitantes virtuais com as músicas e os vídeos no canal “Youtube”.
É muito comum, também, esse jornalismo ter um “weblogger” do seu jornal, como o
jornalista Fabrício Carpinejar, no Donna, caderno ZH de Porto Alegre. As revistas, no
entanto, participam de um mercado mais amplo. Esses veículos são mais
especializados, direcionados a algumas áreas culturais. Virtualmente, os periódicos
proporcionam para os leitores versões digitais. Algumas revistas brasileiras
são “Piauí”, “Rolling Stone”, “Bravo!”, “Revista da Cultura”, “Revista Living”, entre
outros.
O subcapítulo “Um Jornalismo ‘Para Levar a Clubes e Assembleias, Casas de
Chá e Cafés’”, em suma, discute sobre qual é o verdadeiro papel de um jornalista
cultural e defende uma maior capacitação no conhecimento de cultura no século XXI.
A especialização da profissão é primordial para que a informação que ele quer passar
seja clara para o leitor. Através dessa pesquisa, conheceremos mais sobre a forma
de expressividade linguística, usada por Clarice Lispector, no “Caderno de Sábado”,
o que é benéfico para o trabalho de um jornalista de cultura.
46

3.3 SUPLEMENTO CULTURAL PARA A ELITE GAÚCHA

O subcapítulo “Suplemento Cultural Para a Elite Gaúcha apresenta o jornal de


cultura “Caderno de Sábado’” quanto a sua trajetória, principais autores e a estrutura
do periódico. Será contextualizado o conhecimento cultural do Rio Grande do Sul no
século XX, e será discutido sobre o material oferecido pelo suplemento cultural
gaúcho. Essa parte da investigação é importante para que o leitor compreenda o
contexto histórico e cultural em que o “Caderno de Sábado” estava inserido em 1960.
Por ser o jornal mais prestigiado do Rio Grande do Sul nos anos 1960 e 1970,
o “Correio do Povo” aderiu à moda das folhas da última década: a criação de um
suplemento cultural – iniciada pelo “Jornal do Brasil” em 1956 com o “Caderno B”,
como vimos no subcapítulo anterior. O periódico gaúcho, porém, deu o nome para o
seu jornal cultural de “Caderno de Sábado”. Semanalmente, jornalistas e escritores
produziam um conteúdo jornalístico, cultural e intelectual. O “Caderno” começou a
circular nas ruas de Porto Alegre e, em outras cidades do Estado, em 30 de setembro
de 1967.
O periódico tinha o formato tabloide, assim como foi adotado na “Folha da
Tarde”, com 16 páginas. A partir desse ano, os leitores do suplemento tiveram a
oportunidade de buscar maior conhecimento cultural e intelectual. O “Caderno de
Sábado” tinha o intuito de formar leitores que apreciassem a cultura e oferecia,
portanto, matérias longas e elaboradas, determinava um espaço mínimo para imagens
e priorizava um conteúdo jornalístico cultural. Esse periódico estava separado do
próprio “Correio do Povo” que era uma estratégia de Breno Caldas para alcançar um
público mais elitizado.

O novo espaço fixo e ampliado que acompanha o periódico é que passa a


conferir-lhe distinção ante as camadas mais educadas, eruditas e
intelectualizadas da sociedade local e mesmo nacional (CARDOSO, 2009).

Apesar de o “Caderno de Sábado” produzir um conteúdo para leitores


elitizados, a oportunidade de compra do periódico também era oferecida para o
público menos favorecido. Esse suplemento gaúcho determinou que suas pautas
fossem sobre as sete artes, porém o conteúdo literário teve prioridade. Além disso, o
material do periódico tinha como textos poemas, contos, crônicas, ensaios, artigos,
entre outros.
47

Formação histórica do rio Grande do sul; a história mundial; as músicas


erudita e popular; os patrimônios arquitetônico e artístico sul-rio-grandense;
o circuito local de artes plásticas; a filosofia; o folclore regional; o teatro
política e esteticamente engajado; as memórias de viagens de
personalidades locais; a política internacional daquele momento; o cinema
autoral; as ciências humanas e naturais; e a astronomia (CARDOSO, 2009).

Como já foi dito anteriormente, o objetivo do “Caderno de Sábado” era de


oferecer um conteúdo para o público mais elitizado pela razão de terem,
possivelmente, mais conhecimento sobre cultura. Além desse periódico, os outros
suplementos culturais brasileiros de 1960 também seguiam esse “pensamento” de
que era necessário produzir um jornalismo autoral de qualidade e de exigência
superior à média da sociedade, como o “Jornal do Brasil” e o “Estadão”.

Não exigiremos que ninguém desça até se pôr à altura do chamado leitor
comum, eufemismo que esconde geralmente a pessoa sem interesse real
pela arte e pelo pensamento. (...). Uma publicação que se intitula literária
nunca poderia transigir com a preguiça mental, com a incapacidade de
pensar, devendo partir, ao contrário, do princípio de que não há vida
intelectual sem um mínimo de esforço e disciplina (PIZA, 2003, p. 37).

Por esse motivo, o “Caderno de Sábado” era considerado um fórum de


discussões, em que se debatia sobre o mundo e a literatura. O suplemento tinha como
equipe escritores renomados locais, nacionais e internacionais para que o conteúdo
oferecido pudesse ser considerado sólido. Reunia-se, então, profissionais do mercado
jornalístico e literário para desenvolverem críticas sobre o quadro literário da época.

O Caderno foi um fórum de discussões das questões literárias do Estado e


um espaço de lançamento de novos autores. Também foi o representante da
cultura letrada da época, baseado em pilares como a divulgação e análise da
literatura local, nacional e internacional (KELLER, 2012).

Apesar de ser um jornal cultural, repleto de conteúdos jornalísticos e literários,


o “Caderno de Sábado” recusou-se em dar espaço para publicidade. A justificativa foi
a de que o periódico valorizava a cultura não comercial, pois o objetivo do suplemento
era publicar matérias que exploravam a essência da arte, da cultura e da literatura.
Sem os anúncios, o suplemento teria um espaço maior para publicar textos que
edificassem o conhecimento do público. Todo esse tratamento em relação à cultura
do suplemento gaúcho era uma estratégia para atrair o público mais erudito.
48

Como o “Caderno de Sábado” queria ser reconhecido como um periódico


cultural que proporcionava um conteúdo de qualidade, o jornal contou, como já foi dito,
com a participação de autores locais, nacionais e internacionais. No final dos anos
1960, era uma grande oportunidade trabalhar para o “Correio do Povo”, que era
reconhecido em conta do número de leitores devotos e de uma reputação jornalística
positiva no Estado.
Novamente, o objetivo maior do “Caderno de Sábado” era proporcionar um
espaço para debater, refletir e filosofar sobre as notícias culturais do mundo, bem
como divulgar o pensamento intelectual e atualizar o Rio Grande do Sul com a
produção acadêmica, literária e artística de outros lugares do país e do mundo.
Na capa da primeira edição do “Caderno”, em 1967, foi publicado uma crônica
de Clarice Lispector. Nessa época, a escritora trabalhava como cronista no “Jornal do
Brasil” e, no entanto, a partir de uma parceria desse jornal com o suplemento gaúcho,
os textos dela passaram a ser publicadas também no “Caderno de Sábado”. Além da
autora Clarice, havia outros jornalistas e escritores que compartilhavam o seu trabalho
com os leitores gaúchos.
Entre os colaboradores locais, do Rio Grande do Sul, destacaram-se Armindo
Trevisan, José Hildebrando Dacanal, Antônio Hohlfeldt, Paixão Côrtes, Guilhermino
Cesar e Manoelito de Ornellas. Além de Moysés Vellinho, Alcides Maya, Augusto
Meyer, Raul Bopp, Viana Moog, Mario Quintana e Érico Veríssimo. No campo
nacional, os selecionados foram Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, e
internacionalmente foram Louis Althuser, Julio Cortázar, Kostas Axelos, entre outros.
O “Caderno de Sábado”, portanto, queria ganhar o respeito dos leitores e, por
isso, contratou profissionais qualificados nas áreas de literatura e de outros campos
das artes e erudição a fim de oferecer ao público um material diferenciado de
jornalismo cultural no sul do Estado. Essa motivação era percebida, por exemplo, por
causa da criação de uma galeria de arte no saguão principal da sede do “Correio do
Povo” no centro de Porto Alegre. Era a representação de um prestígio cultural.
Mais especificamente, o poeta Mário Quintana, por exemplo, trabalhava no
“Caderno de Sábado” e tinha a sua própria coluna chamada “Caderno H” que se
localizava, na página do periódico, ao lado das publicações de Clarice Lispector.
Quintana publicava diversos textos através de uma linguagem breve e direta, e eles
eram, por exemplo, “anotações líricas, pequenas narrativas, poemas, prosas poéticas,
49

poema em prosa, crítica, epigrama, anedota e citações” (TELES, 1997, p.30). Isso
mostra a riqueza do conteúdo oferecido pelo suplemento cultural.
Saindo da área literária, pode-se encontrar críticas e crônicas escritas por
Herbert Caro na seção chamada “Os melhores discos clássicos”. Esse jornalista
cultural escrevia claramente a sua coluna para formar apreciadores de música erudita.
O seu objetivo era falar o que ouvir, por que ouvir, como ouvir e como comprar as
obras clássicas. Herbert Caro cria um ambiente de proximidade com o leitor através
de uma linguagem coloquial que trazia conselhos e dicas sobre esse estilo musical.
Além disso, o periódico gaúcho contava com resenhas e críticas sobre
produções cinematográficas. O “Caderno de Sábado”, portanto, contava com uma
equipe de intelectuais reconhecidos no Brasil e no mundo. Isso aconteceu em todo o
período de circulação do suplemento, até 10 de janeiro de 1981. O “Caderno”, em
suma, era um jornal cultural diferenciado no Estado e um lugar de trabalho concorrido
por escritores e artistas.
Para contextualizar para o leitor, a história cultural do Rio Grande do Sul
cresceu a partir do início do século XX. O primeiro evento cultural considerado
influente nas terras do sul do Estado foi a fundação da “Academia Rio-Grandense de
Letras”, em 1901, onde participou jornalistas, poetas e escritores, como Caldas Júnior,
Marcelo Gama e Alcides Maia. Houve uma exposição de três mil intelectuais, em Porto
Alegre, que mostrava produtos da mais alta tecnologia do período. Em 1903, foi
inaugurado o museu do estado, o Museu Júlio de Castilhos, e, no mesmo ano, ocorreu
o primeiro evento dedicado exclusivamente às artes: o “Salão”. Para Porto Alegre, foi
um marco também a fundação do “Instituto Livre de Belas Artes”, que agregava cursos
de música e artes plásticas, em que se tornou referência institucional do Estado até
os anos de 1950.
A arte no Rio Grande do Sul começou, então, a se manifestar
verdadeiramente no início do século XX e foi importante para que os gaúchos
conhecessem a cultura como necessidade para as suas vidas na formação intelectual.
Em 1967, o ano da inauguração do “Caderno de Sábado” do “Correio do Povo”, a
cultura no sul do Brasil já estava muito mais solidificada que os primeiros anos do
século, mas a sociedade reconheceu, que esse suplemento cultural, oferecia
informações sobre cultura de qualidade.
50

O “Caderno de Sábado”, portanto, foi um suplemento cultural do Rio Grande


do Sul criado, pelo “Correio do Povo”, em 1967. Esse era considerado um jornal de
cultura para leitores elitizados, mas que também, poderia ser lido pelo público de
classes sociais menos favorecidas. O periódico tinha uma equipe de escritores e
jornalistas locais, nacionais e internacionais, sendo importante destacar, para essa
investigação, a cronista Clarice Lispector. Mário Quintana e Helbert Caro faziam parte
também do “Caderno”, no qual o primeiro era poeta e o segundo um crítico de música
clássica. A cultura começou a se popularizar no Rio Grande do Sul a partir do início
do século XX.
O subcapítulo “Suplemento Cultural para Elite Gaúcha”, em suma, apresenta
o “Caderno de Sábado” como um periódico que tinha o compromisso de oferecer um
conteúdo jornalístico e cultural de qualidade. A cronista Clarice Lispector fez parte da
equipe de profissionais que contribuíram para atingir o objetivo do jornal. O
suplemento era um fórum de discussões e os temas das pautas eram próximas da
cultura gaúcha.
51

4 ESTUDO DE CASO: CLARICE LISPECTOR

O subcapítulo “Estudo de Caso: Clarice Lispector” explorará os trabalhos da


autora na imprensa, na literatura, e investigará o uso das figuras de linguagem que
beneficiam a forma inventiva da escritora. O primeiro subcapítulo, “Trajetória da
Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural”, discutirá e associará a forma expressiva
e autoral de Clarice com os textos publicados na imprensa. Ainda, essa parte da
pesquisa irá destacar os principais trabalhos da autora em periódicos e revistas. O
segundo subcapítulo, “A identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira”, irá
contextualizar a escritora na terceira fase modernista do país e, também, irá mapear
as características estilísticas da autora nos seus livros. O último subcapítulo, por fim,
“A Intimidade de Clarice Lispector no Suplemento Cultural do ‘Correio do Povo’: o
Caminho da Narração Figurativa”, visa explorar a função da marca de autoria, figura
de linguagem, no texto. Esse recurso estilístico será analisado nas quatro crônicas-
conto do capítulo cinco.
52

4.1 TRAJETÓRIA DA ESTUDANTE DE DIREITO AO JORNALISMO CULTURAL

O subcapítulo “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural”


apresenta o trabalho de Clarice Lispector na imprensa. Será discutido a forma
diferenciada que a escritora desenvolvia os seus textos em jornais e revistas. Essa
investigação se concentra no estudo dos textos de Lispector como produto do
jornalismo cultural no suplemento do “Correio do Povo”.
Clarice Lispector, que tinha quase vinte anos de idade, procurou a imprensa
com o intuito de publicar os seus escritos literários. Na época, em 1940, ela era
estudante na “Faculdade Nacional de Direito” e, então, a autora conciliava o trabalho
no periódico “Pan” com as suas aulas. A novela “Triunfo” foi o primeiro trabalho de
Clarice publicado nesse jornal, portanto na imprensa, e esse texto já apresentava a
forma autoral de sua linguagem e a construção de personagens femininas na busca
do amor e por respostas existenciais.

A novela Triunfo, que estreia em Pan, não somente é importante por já


esboçar o tom intimista e o perfil psicológico das personagens clariceanas,
mas também por estabelecer vínculo com a imprensa. Nesse texto estão
presentes o fluxo de consciência, a exposição de conflitos íntimos sobre os
diferentes modos de amar e as tais sensações vivenciadas pelas
personagens femininas (LISPECTOR, 2012, p. 23-24).

Ainda no mesmo ano, Clarice Lispector atua como repórter e entrevistadora


na revista nacional “Vamos Ler!” Nesse periódico, ela tem a oportunidade, também,
de publicar outros gêneros literários, como o conto. A escritora usa a sensibilidade na
função de repórter, e isso estabeleceu a sua forma autoral de expressão linguística
na imprensa. Quando Clarice entrevistava personalidades, ela se posicionava e
protagonizava as reportagens.

Clarice se coloca no texto, divide suas impressões com o leitor e aborda


assuntos de seu interesse. Não se preocupa com a linha editorial da
publicação nem se neutraliza perante o entrevistado. Incrível constatar que a
técnica que utilizou para esta entrevista inaugural de sua vida de jornalista,
na estrutura de perguntas e respostas com apresentação breve e subjetiva,
permitindo que o leitor se informe sobre ela, Clarice, e sobre o entrevistado,
será a mesma nas duas séries de entrevista para a Bloch Editores nas
décadas de 1960 e 1970 (LISPECTOR, 2012, p. 24-25).
53

A primeira entrevista inaugural de Clarice Lispector, publicada na revista


“Vamos Ler!”, teve como convidado o poeta Tasso da Silveira. A autora escreveu um
pequeno resumo no início do texto sobre como ocorreu a entrevista, se foi presencial
ou por carta, e ela expõe quais foram as suas percepções sobre esse poeta. Uma
característica que é evidenciada nos textos é Clarice falar de si mesma ao invés de
se concentrar no entrevistado. Ela conversa, por exemplo, com o indivíduo sobre os
assuntos do interesse dela e expõe a sua opinião durante toda a entrevista. A não
neutralidade nos textos de Clarice está presente não só nas entrevistas dela, mas
também nas quatro crônicas-conto escolhidas nessa investigação que serão
discutidas no capítulo cinco.
Além da forma autoral de expressão da Clarice que envolvia o tema existencial
e a presença da não neutralidade nos seus textos, pode-se perceber, no início da
carreira da escritora, a necessidade de dar voz a classes menos favorecidas. Com a
possiblidade da influência das aulas de direito, a autora escreveu, em 1941, na revista
“A Época”, o artigo “Observações sobre o fundamento do direito de punir”. Ainda, no
mesmo ano, Clarice Lispector também criou textos de cunho social que foram
publicados no jornal “Diário do Povo”. Duas reportagens, por exemplo, são “Onde se
ensinará a ser feliz” e “Deve a mulher trabalhar”.
No primeiro texto, a escritora fala sobre um projeto social chamado a “Cidade
das Meninas” que foi criado por Darcy Vargas. Esse trabalho tinha como objetivo
abrigar cinco mil crianças desamparadas. Na segunda reportagem, porém, Clarice
discute sobre o mercado feminino de 1940 no qual procura ouvir a opinião de alunos
universitários.
Em 1952, no entanto, Clarice Lispector começou a escrever na coluna
feminina “Entre Mulheres” no jornal “Comício”, a pedido de Rubem Braga. Esse
sugeriu que ela usasse o pseudônimo Tereza Quadros pela razão do periódico ser de
oposição ao atual governo Getúlio Vargas (segundo mandato). Sete anos depois,
porém, a autora aceitou trabalhar no jornal “Correio da Manhã” no qual usou o
pseudônimo Helen Palmer. Logo em seguida, também, foi colunista do periódico
“Diário da Noite”, no qual usou o nome de Ilka Soares.
Nesses três jornais, Clarice Lispector escreveu crônicas, contos e críticas para
o público feminino. As pautas dos textos foram, por exemplo, dicas de etiqueta e
comportamento feminino segundo o padrão da década de 1950, no qual a autora
54

criticou sobre a preocupação das mulheres brasileiras de copiarem as roupas e o


comportamento das atrizes do cinema de “Hollywood” na época. A crônica-conto, “A
Bravata”, que será analisada no capítulo cinco, é um texto que Clarice também critica
sobre a falta de originalidade das mulheres.
Essa crônica-conto foi publicada em 1968, ou seja, mais de uma década após
a escritora começar a trabalhar em colunas femininas. Mesmo depois desse período
de dez anos, a autora ainda permanecia com essa inquietação sobre as mulheres de
sua época. Em suma, Clarice Lispector usou os pseudônimos Tereza Quadros, Helen
Palmer e Ilka Soares nos jornais “Comício”, “Correio da Manhã” e “Diário da Noite” na
década de 1950.
Em 1964, Clarice Lispector escreve sobre o universo infantil na coluna
“Cantinho das crianças” (LIMA, tradução do autor) na revista “Senhor”. Nesse período,
a autora começa a ser mais reconhecida na imprensa, época em que ela não usa mais
pseudônimos em veículos de comunicação. Em 1967, no entanto, a escritora começa
a criar crônicas para o renomado “Jornal do Brasil”. Clarice escreve 300 textos ao
longo dos anos em que trabalhou nesse periódico. Em um dos escritos publicados em
abril de 1968, a autora afirma:

Escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser
jornalista, como fui, e como sou hoje, é uma grande profissão. O contato com
o outro ser através da palavra escrita é uma glória (LISPECTOR, 2012, p.
11).

Logo após entrar no “Jornal do Brasil”, as crônicas da autora também


começaram a serem publicadas no suplemento cultural gaúcho “Caderno de Sábado”,
que contribui para a discussão dessa investigação. A intimidade dos textos de Clarice
Lispector, na forma autoral de sua escrita, foi desenvolvida pela autora com o intuito
de estabelecer uma comunicação próxima com o leitor. Portanto, Clarice precisou criar
uma forma linguística que atraísse os leitores para as crônicas do qual produzia, e é
isso que o capítulo cinco dessa pesquisa irá analisar.
Clarice Lispector, entre os anos de 1968 e 1969, trabalhou na revista
“Manchete” na produção de entrevistas. No final da carreira na imprensa, a escritora
também entrevistou personalidades na revista “Fatos e Fotos/Gente”, em 1976 até
1977. Como já foi escrito anteriormente, Clarice expõe a sua opinião e o seu
posicionamento em suas entrevistas, no qual a vida da pessoa que ela se dirige ficava
55

em segundo plano: “Fala de si com muita facilidade, antecipando, muitas vezes, a


resposta dos entrevistados. Contrasta opiniões” (LISPECTOR, 2012, p. 165). As
personalidades que Clarice Lispector entrevistou são, por exemplo, Nelson Rodrigues,
Pongetti, José Carlos de Oliveira, Dona Sara, Maísa, Elke Maravilha, Alzira Vargas,
Darcy Ribeiro e Rubem Braga.
O subcapítulo “Trajetória da Estudante de Direito ao Jornalismo Cultural”
mostra como Clarice Lispector não usava a neutralidade em seus textos, mas
procurava expor a sua opinião. Ela teve uma carreira na imprensa e escreveu
crônicas, contos, críticas, entrevistas e reportagens. O tema existencial era muito
presente em seus textos, e, a partir disso, a escritora estabeleceu uma forma
expressiva e autoral de escrita nos periódicos e revistas que pudessem aproximar ela
do leitor e transmitir, de forma clara, os seus pensamentos e posicionamentos.
56

4.2 A IDENTIDADE DE CLARICE LISPECTOR NA LITERATURA BRASILEIRA

O subcapítulo “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira” visa


contextualizar e discutir o trabalho literário da autora no século XX. A partir disso,
descobriremos as características da forma autoral da escrita clariceana na literatura.
Apresentar o trabalho da escritora no contexto de sua época é relevante para essa
investigação.
Clarice Lispector fez parte da terceira geração modernista a partir do
lançamento de seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. A autora
surpreendeu os leitores e críticos da época por ter escrito uma história que não dá
importância aos acontecimentos em si, mas aos conflitos internos dos personagens.
Clarice havia criado um estilo diferenciado no Brasil. Pode-se ver claramente a
preocupação da escritora em relatar a complexidade humana na novela, “A Hora da
Estrela”, através do “fluxo de consciência”, que servirá de exemplo no final desse
subcapítulo. Ela, junto com João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Mario
Quintana, e entre outros autores fizeram parte da geração de 1945 do Modernismo.
Após o final da Segunda Guerra Mundial e da ditatura do governo Getúlio
Vargas, o Brasil vivenciou um período democrático e desenvolvimentista no governo
de Juscelino Kubitschek. O contexto político estava relativamente tranquilo
comparado aos anos conturbados das duas décadas passadas. Por esse motivo, a
partir de 1945, os escritores se concentraram na estética da linguagem, deixando,
como segundo plano, a preocupação em denunciar e criticar a sociedade atual, que
foi o objetivo da segunda fase modernista. Foi com essa motivação que surgiu a
terceira fase do modernismo ou a geração de 1945: um rompimento com a
mentalidade de recriar a Literatura Nacional. Em suma, o foco dos autores era
encontrar novas formas de expressão e de pesquisa estética. Clarice Lispector,
juntamente com Guimarães Rosa, trouxe literaturas que quebravam a estrutura da
narrativa padrão de início, meio e fim.
Em 1943, Clarice Lispector publica o seu primeiro livro, “Perto do Coração
Selvagem”, com vinte e três anos de idade. Essa obra surpreendeu os críticos e os
leitores em razão da autora enfatizar os conflitos internos e psicológicos dos
personagens ao invés de se concentrar nos acontecimentos e nas sequências de
cenas da narrativa. O conteúdo literário clariceano recebeu o apelido de “livro sem
57

história”. Até esse período histórico, portanto, não havia sido lido uma obra literária
como a de Clarice, e o trabalho dela foi considerado diferencial na literatura. Como foi
escrito anteriormente, os escritores, de outras fases modernistas, davam importância
ao conteúdo da obra e não a estética ou a forma de escrita.

O romance Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector (1943), foi quase


tão importante quanto, para a poesia, Pedra de sono, de João Cabral de Melo
Neto (1942). Nele, de certo modo, o tema passava a segundo plano e a
escrita a primeiro, fazendo ver que a elaboração do texto era elemento
decisivo para a ficção atingir o seu pleno efeito. Por outras palavras, Clarice
mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o
instrumento verbal (que institui a linguagem) se justificam antes de mais nada
pelo fato de produzirem uma realidade própria, com a sua inteligibilidade
específica. Não se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao
conduzir a este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que
crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que é
discurso literário (CANDIDO, 1989, p. 9).

A obra “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, contribuiu,


portanto, com o rompimento da segunda fase modernista do Brasil, no qual tinha como
objetivo criticar e denunciar o país. A autora se preocupou em trazer à sua obra os
contornos psicológicos de seus personagens, e, mais do que isso, Clarice usou o
“fluxo de consciência” que quebra os limites espaço-temporais que tornam a obra
verossímil.
A autora também usou a epifania na vida dos personagens de suas histórias.
Isso significa o momento da narração em que há um mistério ou um segredo revelado
para o indivíduo. A partir dessa revelação ou acontecimento, o protagonista começa
a ver a sua vida através de uma nova perspectiva. Clarice Lispector aproveitou essa
“transformação do eu” para criar o “fluxo de consciência” desse personagem a partir
da criação de um acontecimento decisório no seu cotidiano.
Os enredos literários profundos e complexos que envolvem o tema existencial
é a característica dos textos clariceanos. Isso chamou a atenção da sociedade leitora
e crítica em 1940. A escritora se determinou em evidenciar as inquietações e dúvidas
dos personagens através do desenvolvimento de monólogos interiores16. Essas

16 Monólogo interior: longa sequência de pensamentos. Na Literatura: transcrição em primeira pessoa

de uma sequência de estados de consciência que se supõe que a personagem experimenta


(SALLENAVE, 1976, p. 63).
58

particularidades de escrita fizeram com que as obras de Clarice Lispector fossem


destaque, na geração de 1945, no Brasil.
Para facilitar a compreensão dos aspectos linguísticos da autora que foram
evidenciados nesse subcapítulo, será analisada a última obra dela, “A Hora da
Estrela”, escrita em 1977. A personagem principal da narrativa se chama Macabéa e,
na visão do narrador Rodrigo S.M., é uma mulher sem objetivos de vida, sem nenhuma
atratividade e não teve a sua hora de brilhar.

Dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de sangue


pálido (...). Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido. Ela nascera
com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar
de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as
manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se panos, diziam que vinham do
fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava
meio caiada era melhor que o pardacento (LISPECTOR, 1977, p 34).

Rodrigo S.M, o narrador da história, é um homem que gostaria de saber de


todas as respostas sobre o princípio das coisas do mundo. Como desconhecia isso,
concentrou-se, então, em contar a inquietações de uma mulher chamada Macabéa.
Essa, segundo ele, um dia recebeu um sim para nascer e estar na terra. Rodrigo conta
que a hora de brilhar da protagonista é exatamente a hora de sua morte.
A “Hora da Estrela” é considerado um livro de crítica social. O enredo se
concentra no momento da entrada dos nordestinos ao Rio de Janeiro, Macabéa é uma
nordestina recém-chegada na cidade carioca. A história mostra a falta de esperança
e de oportunidades que os nordestinos tinham na “Cidade Maravilhosa”.
O enredo é desenvolvido através do “fluxo de consciência” de Macabéa. Ela
tinha o compromisso somente de existir, ela, então, não tinha a necessidade de estar
sempre explicando o que fazia e por que fazia o que queria. No final do livro, a
personagem vive o momento mais feliz de sua vida: o momento em que é explicado
as dúvidas sobre a existência humana e de quem somos e por que estamos no mundo.
“A Hora da Estrela”, trouxe para a literatura brasileira, uma nova forma de contar uma
história através do uso da construção de monólogos interiores.
O subcapítulo “A Identidade de Clarice Lispector na Literatura Brasileira”, em
suma, mostra que a forma expressiva e autoral de escrita clariceana foi criada na
terceira fase do modernismo. A autora foi uma referência no período da construção
da estética textual. Clarice evidencia os aspectos psicológicos dos personagens
através do monólogo interior, e isso caracteriza a sua invenção formal. Essa marca
59

de autoria está presente, também, nas quatro crônicas-conto que serão analisadas no
capítulo cinco dessa investigação.
60

4.3 A INTIMIDADE DE LISPECTOR NO SUPLEMENTO DO “CORREIO DO POVO”:


O CAMINHO DA NARRAÇÃO FIGURATIVA

O subcapítulo “A Intimidade de Lispector no Suplemento do ‘Correio do Povo’:


o Caminho da Narração Figurativa” prepara o leitor para as discussões que serão
apresentadas no capítulo cinco. Nessa parte da investigação, descobriremos que a
marca de autoria, figura de linguagem, é uma forma de trazer a intimidade da autora
no texto.
O papel de um cronista, para retomar o capítulo dois dessa pesquisa, é
desenvolver o seu texto a partir de um fato do cotidiano, e interpretá-lo e transcrevê-
lo a partir de inspirações subjetivas. Segundo Beltrão (1980), a crônica é definida
como:

Forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor o seu juízo


sobre os fatos, ideias e estados psicológicos pessoais e coletivos. [...] O
comentário é leve, concreto, incisivo; as conclusões oferecem normas e
julgamentos específicos e diretos (BELTRÃO, 1980, p. 66).

Clarice Lispector, no final da década de 1960, trabalhava como escritora no


“Jornal do Brasil”, e esse tinha uma parceria com o suplemento gaúcho “Caderno de
Sábado”. Isso significava, na época, que todos os textos da autora publicados em São
Paulo eram enviados por carta a Porto Alegre. Esse periódico tinha como objetivo criar
um espaço jornalístico cultural que abrigasse autores gaúchos, nacionais e
internacionais, e Clarice foi uma profissional escolhida pelo seu reconhecido trabalho
como escritora. Ela, a partir da definição de Sá (1985), enquadrava-se na categoria
de “narradora-repórter”:

Clarice registra o mundo superficial e o circunstancial de forma simples,


discorrendo sobre temas urbanos combinados com elementos da natureza
como bichos e flores. Misturando jornalismo e literatura, suas crônicas –
muitas vezes assumindo a forma de conto – resultam numa poetização do
cotidiano, aliando a linguagem direta com as metáforas, de forma espontânea
(ARAÚJO, 2011, p. 31, grifo do autor).

Com a “tendência intimista” enraizada em suas narrativas literárias, Clarice


Lispector era uma escritora conhecida, como vimos no subcapítulo anterior, por
desenvolver uma profunda intimidade com o leitor através do “fluxo de consciência”,
61

“monólogo interior”, “epifania” e “neologismos”. Apesar da autora usar essas mesmas


estratégias linguísticas nas crônicas, o que diferenciava o trabalho na imprensa com
a publicação de seus livros era o acesso a um público mais diversificado e que exigia,
por ser um periódico, que a autora tivesse uma comunicação mais próxima com os
leitores.

Escrever para um jornal era invadir um meio excessivamente exposto,


efêmero e demasiadamente próximo de um interlocutor desconhecido.
Envolvia uma intimidade que desagradava, até certo ponto, a escritora, mas
que, por isso mesmo, oferecia-lhe a oportunidade de vivenciar uma abertura
para o mundo vulgar que ela talvez não obtivesse por outros meios. Era uma
escrita diferente do livro, esse espaço mais intimista e seletivo, no qual se
sentia mais à vontade, mas que também a segregava de um contato que
necessariamente precisaria estabelecer com o público, se desejasse ser lida.

A partir dessa necessidade de adequação, a autora soube se comunicar bem


com o seu leitor. É a intimidade de seus textos que faz de Clarice Lispector uma
profissional sensível que tem uma percepção de mundo única e feminina. Essa
inquietação da escritora é expressa através da forma expressiva e autoral da escrita
em que estabelece uma ligação entre o “eu” e o sujeito. A autora escolhe descrever
imagens em uma narração figurativa, caminho linguístico para expressar-se como
profissional em meio a um público leitor de jornal e, como vimos anteriormente,
também, na literatura.
Para entendermos o que é uma narrativa figurativa, Fiorin (p.72, 2001) explica:
Figuras são palavras ou expressões que correspondem a algo existente no
mundo natural: substantivos concretos, verbos que indicam atividades físicas,
adjetivos que expressam qualidades físicas. [...]. Estes criam um efeito da
realidade, pois constroem uma cena real com gente, bichos, cores, etc. Por
isso representam o mundo no texto. Aqueles procuram explicar os fatos e as
coisas do mundo, buscam classificar, ordenar e interpretar a realidade
(FIORIN, 2001, p. 72).

O escritor escolhe palavras que indicam os elementos do mundo natural para


representar uma realidade a partir da sua visão de mundo. Estudar as figuras dentro
da narrativa das quatro crônicas-conto escolhidas de Clarice Lispector significa
identificar essas palavras-chave e buscar esclarecer a visão da autora no contexto em
que está inserida, pois a característica dessa narração é levar o leitor a um profundo
nível de compreensão do que o escritor está querendo dizer.
A capacidade, portanto, do jornalista cultural em saber se expressar é
fundamental para que o interessado consiga captar a mensagem com mais facilidade
62

e possa usar esse conhecimento ou esse dado para o seu dia-a-dia. O papel desse
profissional é interessar, envolver e atrair o leitor de uma forma específica com uma
intenção determinada. As quatro crônicas-conto de Clarice Lispector, que serão
investigadas no próximo capítulo, tem como tema o feminino no contexto de 1960. A
partir do recorte das figuras de linguagem, conheceremos as perspectivas das
mulheres sob o olhar da escritora.
O subcapítulo “A Intimidade de Lispector no Suplemento Cultural do ‘Correio
do Povo’: o Caminho da Narração Figurativa” visa discutir o conceito de intimidade
através do uso da marca autoral escolhida nessa investigação. Além disso, vimos a
importância da autoria através da forma expressiva da escrita. Essa parte da pesquisa
prepara o leitor para o próximo capítulo.
63

5 PERSPECTIVAS FEMININAS EM QUATRO CRÔNICAS-CONTO NO “CADERNO


DE SÁBADO”

O capítulo “Perspectivas Femininas em Quatro Crônicas-Conto no Caderno


de Sábado” tem o objetivo de investigar o uso das figuras de linguagem nos textos
escolhidos. A partir disso, poderemos então, identificar as perspectivas femininas
exploradas pela autora em cada crônica-conto. Essa parte da pesquisa, também,
analisará a maneira como Clarice traz a sua sensibilidade para criticar e construir
imagens das mulheres de 1960. Cada texto, portanto, irá ser discutido individualmente
no total de quatro subcapítulos, que são, ordenadamente, “A Mulata”, “A ‘Persona’
Bravata”, “As Atenienses e o General” e “Uma Criatura Feita Para Amar”. Para que
entendamos, em suma, como se constrói a expressão da intimidade nos textos
escolhidos de Clarice Lispector, é preciso partir de uma marca de autoria, como as
figuras de linguagem, para que seja esclarecido como a autora usa desse recurso
estilístico para compartilhar a sua visão de mundo, portanto, a sua intimidade, com os
leitores do suplemento “Caderno de Sábado” em 1968.
64

5.1 A MULATA

O Arranjo é uma crônica-conto que foi publicada no “Caderno de Sábado” no


dia 13 de julho de 1968. Clarice Lispector torna-se a narradora onisciente da história,
cujas inquietações descrevem o ambiente de uma escrava mulata que serve uma
família de brancos. O tema desse texto é o preconceito racial e social de uma
personagem feminina injuriada pelos senhores do qual serve.
O significado de um “narrador onisciente”, que tem o papel de contar ao
interessado a história, é aquele que “sabe mais que as personagens, conhece os
sentimentos e os pensamentos de cada uma delas. É como se pairasse acima dos
acontecimentos, tudo visse e tudo mostrasse ao leitor” (FIORIN, 2006, p. 179-180).
Essa é uma forma de trazer ao texto a interiorização do personagem, como o
monólogo interior, que era uma característica narrativa bastante usada por Clarice
Lispector. Essa técnica linguística dá destaque à intimidade do protagonista mais do
que a situação externa, como a linha cronológica e temporal.
Antes de começar a análise, identificar o tema do texto é primordial para
encontrar as figuras que constroem a personagem feminina:

É preciso ter bem presente que uma figura não tem significado em si mesma.
Isoladamente, ela pode sugerir ideias muito variadas e noções muito
imprecisas. Seu sentido nasce do encadeamento com outras figuras. Como
se sabe, num texto, tudo é relação. O que dá sentido às figuras é um tema.
Por isso encontrar o sentido de um conjunto de figuras encadeadas é achar
o tema que está subjacente a elas (FIORIN, 2001, p. 79).

Como já foi indicado na introdução desse subcapítulo, o tema da crônica-


conto “O Arranjo” é preconceito racial e social de uma escrava mulata que serve uma
família de brancos. O texto inicia-se com essa frase: “Ela era cria da casa grande,
desde menina” (SÁBADO, 1968, p.2). O substantivo concreto “cria” é o primeiro que
aparece na obra e inaugura as características que constroem a identidade final da
personagem feminina. Segundo o dicionário Soares Amora (2008, p.184), “cria” é
definida como “2. pessoa criada em casa de outrem”. As palavras “casa grande”,
escrita logo em seguida, é uma descrição de imagem e uma figura que dá
continuidade à informação de que essa mulher está vivendo em uma casa que não
pertence a ela e, segundo a sua concepção, é um lugar no qual vivem pessoas de alto
65

poderio econômico, pois é demasiadamente grande, e, ao mesmo tempo, é uma casa


em que ela se sente “pequena”.
Injuriada, a “cria da casa grande”, segundo o narrador, não é alegre. Clarice
Lispector usou a figura de linguagem paradoxo 17 para mostrar que a mulher escrava
tinha comportamento e atitudes contraditórias: “Distraía-se e divertia-se com qualquer
coisa, sem sorrir: não era alegre” (SÁBADO, 1968, p. 2). Os verbos “distrair” e “divertir”
estão juntos em uma mesma oração com a afirmação de que essa mulher não era
feliz. Isso significa, em suma, que a autora usou essa figura de linguagem para mostrar
que a protagonista da história é controversa.
O comportamento dessa mulher é apresentado através de uma descrição de
seu andar: “corpo solto, boca aberta, olhos redondos”. Essas figuras mostram ao leitor
que a personagem não é confiante, ousada e nem entusiasmante, pois ela é apelidada
pela sua senhora, a seguir na crônica-conto, é de “débil mental”: “Quando a dona da
casa estava irada, chamava-a de débil mental”. Essas palavras, no contexto, são
adjetivos que a senhora usou para comparar o comportamento e a forma de andar da
escrava com as características físicas evidenciadas de um deficiente intelectual. Em
suma, a personagem principal da crônica-conto “O Arranjo” é vista com maus olhos,
desvalorizada e alvo de ofensas. Como o narrador afirma, a mulher é “cria da casa
grande” desde menina, e, se exerce a função de escrava desde a pequena idade e
ouve palavras ofensivas dos seus senhores, isso, consequentemente, transformou-a
em uma mulher triste e que desconhece o seu valor como indivíduo.
A personagem principal tinha relacionamentos com vários homens e
frequentemente ficava grávida: “Ela não ficava contente, mas grávida” (SÁBADO,
1968, p. 2). Isso significa que, ao invés de ficar alegre, a mulher engravidava. Clarice
Lispector novamente usa a figura de linguagem paradoxo para indicar a contradição
da personalidade da escrava. Os seus patrões estavam já cansados de “distribuir por
famílias os seus filhos”. As ofensas dos seus patrões eram contínuas enquanto que o
seu “corpo crescia, e ela ficava cada vez mais amarela sob a cor de mulata quase
branca”. A cor “amarela” pode estar associada a doença amarelão de Jeca Tatu,
personagem do conto “Urupês” (1918) criado pelo escritor Monteiro Lobato. Essa

17 “Oxímoro ou paradoxo é, pois, o procedimento de construção textual que consiste em agrupar


significados contrários ou contraditórios numa mesma unidade de sentido. [...]. O oximoro se presta a
ressaltar aspectos opostos que convivem dentro de uma única realidade complexa” (p. 130).
66

história ficou conhecida no Brasil por apresentar um protagonista que vivia na área
rural de São Paulo, que era miserável, desleixado e sem cultura. Queixando-se de ter
dores corporais, Jeca descobre, quando vai ao médico, que está com “ancilostomose”,
o famoso amarelão. O personagem fictício tornou-se um símbolo do brasileiro rural
que mostra em sua vida a condição precária do país, o baixo poderio econômico e a
falta de investimento em saneamento básico. Pode-se inferir, no contexto da crônica
“O Arranjo”, que a cor amarela indica doença, baixa instrução e pobreza.
A personagem mulata e escrava construída pela cronista Clarice Lispector
pode ser relacionada também às questões discutidas no livro “Casa Grande &
Senzala”, de Gilberto Freyre. Essa literatura foi escrita em 1933 e é conhecida por
estudar a miscigenação brasileira. Um dos assuntos tratados é a relação do negro e
do branco durante a época da colonização no país. O autor ainda defende a
democracia racial, uma interpretação que é criticada pelos intelectuais, como
sociólogos e historiadores. Mesmo que o livro de Freyre não seja considerado
científico, a sua leitura é relevante para entender a história do Brasil.

Assim, tendo em vista as virtudes e ambiguidades, Cardoso conclui que a


importância de se ler Casa-grande & senzala no século 21 é que esta obra
ensina muito do que fomos e ainda somos em parte. Mas jamais o que
queremos ser no futuro (CARDOSO, in: FREYRE, 2003, p. 27).

A mulata e a negra são representadas no capítulo IV do livro, “O escravo negro


na vida sexual e de família do brasileiro”. Gilberto Freyre afirma que todo o brasileiro
no seu comportamento, na sua cultura e “em tudo que é expressão sincera da vida”
traz a marca da influência negra:

Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos
deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra
velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado.
Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da
que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento,
a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso
primeiro companheiro de brinquedo (FREYRE, 2006, p. 367).

A mulher negra e a mulata, segundo “Casa Grande & Senzala”, exerciam o


papel de escravas no qual serviam seus senhores brancos e dormiam em senzalas.
Desde a colonização do Brasil, a discriminação racial é presente, por mais que o autor
67

defenda a democracia das raças. Consequentemente, a escrava apresentada nessa


literatura pode ser associada com a personagem de “O Arranjo” de Clarice Lispector.
Ao passo que a história se desenvolve, mais o narrador quer mostrar ao leitor
que aquela família que tinha como escrava a personagem principal da crônica-conto
eram preconceituosos com a cor negra e a classe social desfavorecida. Isso é
evidenciado mais claramente na frase: “O que os patrões não perdoavam é que dessa
vez tivesse acontecido com um negro sujo, como se eles tivessem para ela planos de
um homem menos negro e mais limpo”. Palavras fortes e ofensivas que representam
uma realidade que Clarice Lispector quer retratar e compartilhar com os interessados
nos jornais. A figura “negro sujo” tem primeiro o substantivo concreto que representa
a raça negra, e o adjetivo “sujo” cujo sentido é: “adj 1. Que não está limpo;
emporcalhado; 2. Sórdido, indecoroso, desonesto; 3. Que não goza de crédito; em
quem não se pode confiar; desmoralizado” (AMORA, 2008, p. 698). Isso significa que
os senhores da escrava associavam a cor negra como algo a ser rejeitado e sem valor.
Apesar de ser escrava desde menina, a personagem principal sentia-se livre:
“Mas ela não era escrava: vivia independente deles e dava à luz os seus próprios
filhos, distribuídos depois como gatos, amarelados como a mãe” (SÁBADO, 1968,
p.2). A mulher negra relacionava liberdade com a maternidade, apesar de,
contrariamente, distribuí-los depois como fazem com os “gatos”, como um animal,
para serem criados e cuidados por outras pessoas. A figura “gatos”, portanto,
representa o tratamento que as pessoas têm com um ser sem dono. “Amarelados” é
outra palavra que aparece no texto com sentido figurativo de “mulata”, a cor de pele
da personagem principal. Como vimos, a figura “amarelado” pode significar pobreza,
doença e pessoa sem instrução, como o personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.
O sentimento de liberdade da mulher a levou a uma nova vida, longe da
grande casa e de seus senhores brancos. O narrador onisciente, no final da crônica-
conto “O Arranjo”, encontra a personagem principal na rua e descobre que ela está
morando com um “português”, o qual este foi visto por ela na rua e foi descrito como:
“velho, gordo e trôpego”. A figura “português”, além da nacionalidade, pode ser
entendida como um homem que tem a cor de pele branca, pois faz parte das
características físicas de um cidadão de Portugal. As palavras “velho, gordo e
trôpego”, escritas, em seguida, mostram ao leitor que aquele do qual a personagem
mulata estava se relacionando não era atraente e interessante, e, mesmo não
68

havendo motivos para estar com ele, a mulher esclarece para o narrador: “Ele é muito
bom pra mim” (SÁBADO, 1968, p. 2). Pelo seu parceiro ter idade avançada, era esse
o motivo da ex-escrava não estar grávida, conclui o narrador. Quando o homem de
Portugal ouve que a sua parceira justificou estar com ele por a tratar bem, o narrador
observa que, a curta distância, ele abaixou os olhos a fim de esconder “nunca se
saberá o quê” (p.2).
A mulata e escrava da crônica-conto “O Arranjo” de Clarice Lispector é
representada como cria, de comportamento desajeitado, uma mulher “fácil” aos
homens e sem instrução. Embora no exercício de escrava, ela sentia-se independente
e livre. A história teve um final feliz quando encontrou um homem que a fazia se sentir
bem. Esse texto reflete uma realidade de preconceito racial e social ainda presente
no século XXI.
69

5.2 A “PERSONA” BRAVATA

“A Bravata” é uma crônica-conto que foi publicada no suplemento cultural


“Caderno de Sábado” no dia 30 de novembro de 1968. O tema central da história é
identidade feminina que tem como personagem principal uma mulher com o nome de
Z.M. Clarice Lispector expõe as inquietações internas de uma pessoa insegura, e
discute sobre a importância da originalidade.
A análise do texto nesse subcapítulo irá se concentrar na classificação de
figuras de linguagem que evidenciam a personalidade de Z.M, e na definição do
sentido real de palavras através do dicionário Soares Amora (2008). A partir dessa
coleta, poderemos discutir como a protagonista da história foi retratada por Clarice ao
leitor do “Caderno de Sábado”, e o que isso significa no contexto da década de 1960.
“A Bravata” dá nome a essa crônica-conto de Clarice Lispector. O substantivo
já cria ao leitor uma imagem de Z.M., a personagem principal. No sentido da palavra,
de acordo com o dicionário (AMORA, 2008, p. 103), significa “sf 1. Fanfarrona; 2.
ameaça arrogante; quanto ao sinônimo: intimidação, ameaça e advertência”.
Enquadrando-se ao contexto da história, o substantivo “bravata” está dentro do
domínio conceitual jactância, cujo significado é o comportamento de alguém que
revela arrogância, vaidade e orgulho. Uma mulher que demonstra ser uma ameaça
através de uma forte personalidade e segurança é o que Z.M. gostaria de ser ou de,
pelo menos, transparecer aos outros.
Em contraponto com o significado de “bravata”, há, no texto, a evidência da
baixa autoestima e a falta de entendimento da identidade da personagem principal.
Isso se mostra na primeira frase do texto: “Z.M. sentia que a vida lhe fugia por entre
os dedos”. Nessa oração há três figuras de linguagem chamadas personificações:
“vida”, “fugia” e “dedos”. “Vida” é uma figura, segundo o dicionário Soares Amora (p.
767), que significa: “2.existência; 4. Maneira de viver”. A flexão do verbo “fugir”
pertence a primeira pessoa do singular do Pretérito Imperfeito do Indicativo, cujo
significado (p. 331) é “1. Desviar-se rapidamente, 2. Retirar-se para escapar a alguém
ou a algum perigo, 4. Afastar-se de; evitar”. Ainda, a palavra “dedos”, no contexto da
crônica-conto, é “5. habilidade” (p. 194). Em suma, a autora Clarice estava querendo
dizer que o dom da vida, que é do direito do ser humano, estava se esquivando ou
70

escapando do controle dessa mulher: ela é uma vítima das circunstâncias porque é
incapaz de refletir sobre suas escolhas.
Em seguida, na apresentação de Z.M., a cronista destaca a “humildade” como
uma característica da personagem, que, na percepção dessa, não era uma mulher
que chamava a atenção de um homem: “Na sua humildade, esquecia que ela mesma
era fonte de vida e de criação” (SÁBADO, 1968, p. 2). A figura “humildade”, segundo
o olhar da autora, aponta para a insegurança que, consequentemente, faz Z.M ser
uma pessoa pouco sociável e disponível a relacionamentos amorosos. Por causa
dessa característica, essa não se via como um ser humano digno da vida e de tudo
que a envolve, que é compreendido através das figuras “fonte de vida” e “criação”.
Clarice Lispector resgatou, em seu texto, palavras que pertencem ao léxico
da linguagem bíblica. Estas podem ser associadas ao momento da história da criação
do homem no livro de “Gênesis” no Antigo Testamento. Esse é o momento em que
Deus cria Adão e Eva no Jardim do Éden:

Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e


mulher os criou. (...). Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e
soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente
(OMARTIAN, p. 4-5, 2009, grifo do autor).

Esses versículos do primeiro livro da Bíblia resgatam a relevância do ser


humano e a valorização que o seu Criador deu a ele. Por não acreditar ter essa
grandeza em si mesma, Z.M. não se via como uma mulher confiante, atraente e
interessante e tinha dificuldade de até mesmo de se socializar. Portanto,
interiormente, a personagem não se considerava como uma “fonte de vida” e de
“criação”.
Nelson Vieira, no seu artigo nomeado “A Linguagem Espiritual de Clarice
Lispector”, estuda as relações da linguagem bíblica do Antigo Testamento com a
escrita de Clarice. Umas das semelhanças que ele destaca, que são relevantes a essa
pesquisa, é o uso frequente de palavras concretas, que caracterizam a narração
figurativa, e o tema de identidade nas obras da autora: “como já foi mencionado,
muitos dos temas na prosa de Clarice Lispector abordam assuntos de linguagem ou
de escrita junto com a questão da identidade humana” (VIEIRA, 1987, p. 84).
71

É isso que a cronista faz em “A Bravata”: o uso de algumas figuras que


pertencem ao léxico da linguagem bíblica traz à história a questão existencial da
personagem e fica claro, logo no início da crônica, que ela estava em busca de
aceitação da sociedade por não se ver socialmente incluída:

Então saía pouco, não aceitava convites. Não era uma mulher de perceber
quando um homem estava interessado nela a menos que ele o dissesse –
então se surpreenderia e a aceitava (SÁBADO, 1968, p. 2).

Após visitar uma amiga que a fez pensar sobre essa “humildade” que a
atrapalhava de se socializar, Z.M. decidiu ir sozinha a um coquetel do trabalho no final
de tarde daquele dia. Encheu-se de coragem após vestir um vestido mais ou menos
novo e empolgou-se no momento de maquiar-se. Isso fez com que ela ficasse mais
maquiada que o normal, pois Z.M. queria ter uma atitude nova em relação a si mesma.
Valorizar-se era a palavra-chave daquela noite. Esse novo jeito de se arrumar, porém,
fez a personagem aparentar ser outra pessoa:

Então só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até


que seu rosto parecia uma máscara: ela estava ponto sobre si mesma alguém
outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho
de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era (SÁBADO,
1968, p. 2, grifo do autor).

A pessoa que Z.M. desejava ser era a “bravata”. Nesse trecho, as figuras que
se destacam são “rosto” e “máscara”. “Rosto”, no sentido da palavra (AMORA, 2008,
p. 649), remete a “individualidade, a identidade: 2. Semblante, fisionomia; 3.
Aparência, aspecto”. “Máscara”, em contrapartida, significa (AMORA, 2008, p. 449):
“2. Qualquer coisa usada para resguardar ou ocultar o rosto; 3. fig disfarce,
dissimulação”. Esses dois substantivos interiorizam Z.M., pois mostram o desejo dela
de projetar em seu rosto e roupas uma personagem feminina, ou seja, uma imagem
que supostamente os seus colegas de trabalho aceitariam. Isso aconteceu pelo motivo
da mulher achar que não era interessante e nem boa o suficiente para os outros. A
temática, já indicada na introdução desse subcapítulo, é construída através dessas
figuras, que trazem à história o sentido de identidade feminina. Isso remete a
discussão, a partir dos questionamentos de Lispector, sobre o desejo da mulher de
1960 de seguir um estereótipo, um perfil, que supostamente a sociedade afirmaria ser
o padrão de beleza feminino.
72

Clarice Lispector já refletia sobre a busca feminina por adequação na


sociedade quando trabalhou como colunista no jornal “Correio da Manhã” e usou o
pseudônimo Helen Palmer, a onze anos atrás, a partir de 1959. A temática de seus
textos na coluna “Correio Feminino” era, obviamente, feminilidade. Ela
frequentemente escrevia, nessa época, sobre a sua opinião contra a “beleza de
catálogo” ou a “cópia carbono”, nomes que ela mesma nomeou:

A colunista condenava a cópia de aparência ou comportamento de atrizes


famosas do cinema, difundidas como divas pelos meios de comunicação de
massa; Era preciso, insistia, descobrir o próprio rosto (LISPECTOR, 2012, p.
79, grifo do autor).

Na inauguração da coluna no periódico “Correio da Manhã” em 21 de agosto


de 1959, Clarice Lispector, com o nome de Helen Palmer, publica para as suas leitoras
o perfil da mulher ideal de acordo com suas perspectivas. Ela chamou-a de a “mulher
esclarecida”:

Digo-lhes que esclarecida é a mulher que se instrui, que procura acompanhar


o ritmo da vida atual, sendo útil dentro do seu campo de ação, fazendo-se
respeitar pelo seu valor próprio, que é companheira do homem e não sua
escrava (...). Você, minha leitora, não limite o seu interesse apenas à arte de
embelezar-se, de ser elegante, de atrair os olhares masculinos. A futilidade é
fraqueza superada pela mulher esclarecida (LISPECTOR, 2012, p. 92).

Já no primeiro dia de abril de 1960, a colunista Clarice Lispector escreve o


texto “Beleza em Série”. Ela destaca para as leitoras do “Correio Feminino” que a
originalidade as faz serem bonitas e interessantes. Com o pseudônimo Helen Palmer,
Clarice critica negativamente o esforço das mulheres de 1960 de serem imitadoras
das atrizes de “Hollywood”, como Debra Paget, Marisa Allasio e Pier Angeli.

Sejam vocês mesmas! Estudem cuidadosamente o que há de positivo ou


negativo na sua pessoa e tirem partido disso. A mulher inteligente tira partido
até dos pontos negativos. Uma boca demasiadamente rasgada, uns olhos
pequenos, um nariz não muito correto podem servir para marcar o seu tipo e
torná-lo mais atraente. Desde que seja seu mesmo. (...). Os homens não
gostam das mulheres em série. Se gostam daquelas estrelas é porque as
acharam diferentes. Vocês, imitando-as, apenas serão consideradas
ridículas. Por favor, meninas, sejam vocês mesmas (LISPECTOR, 2012, p.
94-95)!

Na crônica “A Bravata”, publicada no periódico “Caderno de Sábado” em


1968, a escritora Clarice Lispector continua, mesmo em outro veículo de
73

comunicação, a discussão sobre as questões de identidade feminina e o


descobrimento do amor no contexto de 1960. A personagem principal estava se
esforçando para transformar-se ou aparentar-se em outra pessoa que apostava ser
mais atrativa. Na continuação da história, Z.M. perdeu a coragem e ousadia quando
estava pronta para sair de sua casa para ir ao coquetel.

Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si


mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto – ah persona,
como não te usar e enfim ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de sua
sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa
que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-
de-coragem, levantou-se e foi (SÁBADO, 1968, p. 2).

Com o objetivo de mostrar que a personagem principal da história estava


desconfortável com o resultado de sua maquiagem e vestimenta, mesmo que essa
desejasse ser uma pessoa confiante e segura, Clarice Lispector usou uma coerência
figurativa18. As palavras que dão sentido a cena são “máscara de pintura”, “persona”,
“coração” e “masoquista”. A figura “máscara”, como vimos, remete a disfarce,
enquanto que “pintura”, no sentido figurativo da palavra (AMORA, 2008, p. 546),
significa “9. Imagem, representação”. A palavra “persona”, contudo, remete a
comportamento, sinônimo da figura “máscara”. Isso significa que, de acordo com o
contexto social em que está inserida, a atitude e comportamento do indivíduo muda.
No caso de Z.M., a “bravata” era a “persona” para ir ao coquetel. Quando sentou no
sofá de sua sala de estar, porém, a personagem principal ouviu o pedido de seu
coração para não sair de casa. Essa figura de linguagem assemelha-se à própria
consciência da mulher que, na raiz da palavra, significa (AMORA, 2008, p. 176) “3.
Sede de sensibilidade moral, das paixões, do amor”.
Nesse momento, a personagem não acreditou que conseguiria enfrentar o
evento de trabalho sem companhia. A insegurança e as experiências do passado
podem ser indicações de que a personagem iria se machucar. Ela mesma se intitulava
como uma mulher tímida: “pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais
foram completamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco” (SÁBADO,
1968, p. 2). Por esse motivo, Z.M. associou a palavra tortura com a figura masoquista,

18
Coerência figurativa: Por coerência figurativa entende-se a articulação harmônica das figuras do texto, com
base na relação de significado que mantêm entre si. As várias figuras que ocorrem num texto devem articular-se
de maneira coerente para constituir um único bloco temático (SGARBI, p. 71).
74

escrita no final do texto. Esses conflitos internos de identidade da personagem,


presentes enquanto estava no táxi a caminho do coquetel, dava a sensação de que o
carro “rolava” até o evento enquanto que ela “morria um pouco”. A figura “rolar”
descreveu a sensação de Z.M, cujo sentido é: “vtd 1. Fazer girar ou andar em roda; 3.
Avançar girando sobre si mesmo” (p. 646).
O coquetel do seu trabalho era em um “salão enorme” (SÁBADO, 1968, p. 2),
e logo que chegou ao evento, Z.M. sentiu-se incomodada com a máscara de pintura.
Ela tentou conversar com várias pessoas, mas, no fim, permanecia sozinha. Ainda, a
personagem principal encontrou o seu antigo amante. Ver ele, porém, fez com que ela
lembrasse de momentos desse relacionamento amoroso: “E ela pensou: por mais
amor que este homem tenha recebido, fui eu que lhe dei toda a minha “alma” e todo
o meu corpo” (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).
Para entendermos qual o sentido que Clarice Lispector queria transmitir
através dessa oração, nesse momento da história, é importante classificar a figura de
linguagem “alma”. Essa é definida como metáfora que acontece quando o sentido
original de uma palavra não é considerado adequado ao sentido geral da frase, por
isso, esse é substituído por outro. O critério dessa substituição é a intersecção, em
que ambas as figuras têm traços em comum. Fiorin (2001), explica: “Metáfora é, então,
a alteração do sentido de uma palavra ou expressão quando entre o sentido que o
termo tem e o que ele adquire existe uma intersecção” (p. 122).
Na frase destacada, a palavra “alma” significa “sf 1. Essência imaterial do ser
humano, espírito; 4. vida” (AMORA, 2008, p. 30). Logo, é impossível Z.M. dar a sua
alma ao homem, por isso essa figura é substituída por “coração”, que tem o sentido
de “3. amor” (p. 176). Em suma, a entrega da personagem principal a um antigo
relacionamento amoroso remete a figura “coração”.
Quando Z.M., porém, não suportava mais ficar com a cabeça em pé, ela pediu
ajuda a uma colega de trabalho para ir com ela até a porta. À espera do táxi, Z.M.
concluiu que era uma mulher infeliz: “Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era
supersensível. Sim, vira um amor passado” (CADERNO, 1968, p. 2). A necessidade
da mulher de afirmar as suas próprias características reflete a figura de linguagem
pleonasmo: “É a repetição de um termo já expresso ou de uma ideia já sugerida, para
fins de clareza ou ênfase. O grande juiz entre os pleonasmos de valor expressivo (...)
é o uso, e não a lógica” (BECHARA, 2003, p. 594). Em suma, a palavra “sim”, escrita
75

quatro vezes na oração, foi preciso para encadear o momento-chave da história


quando Z.M. reafirma suas qualidades e defeitos e desiste de usar a “máscara”.
Logo que a protagonista tira a “persona” de seu rosto, Clarice Lispector
escreve a frase: “o escuro e o perfume da primavera” (SÁBADO, 1968, p. 2). O
“escuro” e o “perfume” refletem o atual sentimento da personagem principal, em que
a primeira é uma sensação visual e a segunda é olfativa. Não é propriamente o
significado real dessas palavras, mas o sombrio da noite e o cheiro que essa estação
traz para o interior da mulher. A figura de linguagem característica dessas sensações
é sinestesia que, segundo Fiorin (2001, p. 132), é “o mecanismo de construção textual
que consiste em reunir, numa só unidade, elementos designativos de sensações
relativas a diferentes órgãos dos sentidos”. Esse recurso linguístico foi usado,
portanto, para expressar os sentimentos de Z.M. que refletem aos seus
questionamentos existenciais.
Após a exposição das emoções da protagonista, a autora da crônica-conto
afirma: “o coração do mundo batia-lhe no peito” (SÁBADO, 1968, p. 2). A figura de
linguagem que classifica a frase é hipérbole que indica exagero:

Hipérbole que significa do grego hyperbolè, lançar sobre, é uma figura de


linguagem também conhecida como intensificação, é a figura de pensamento
que consiste na ênfase resultante do exagero deliberado, quer no sentido
negativo, quer no positivo. É uma forma de exagerar a verdade, mas com
respeito a beleza, seja por amplificação, seja por atenuação. É o que ocorre
em expressões cotidianas como “morreu de rir”, “morto de fome”, “já te disse
quatrocentas bilhões de vezes...”, ou em construções literárias (LOURES, p.
9-10).

Na última oração destacada, portanto, há a expressão figurativa o “coração


do mundo”. O “mundo” é o exagero que está relacionado ao sentimento de “peso”,
como se Z.M. estivesse sentindo as dores e sentimentos de todos os habitantes da
terra. Essa oração remete a figura “humildade”, uma característica de Z.M., que está
relacionada a sensação de inadequação da personagem.
Logo após Z.M. chegou em sua casa. Esse lugar significa segurança e
conforto, onde a mulher da história pode ser ela mesma. A personagem, quando foi
retirar a sua maquiagem, tinha muitas inquietações:

Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava
agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e viu
a persona afivelada no seu rosto; a persona tinha um sorriso parado de
76

palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou
então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se
prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir
começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou
(SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do autor).

Clarice Lispector finalizou essa crônica com as figuras que correspondem à


temática “identidade feminina”, como “agasalhante”, “espelho”, “persona”, “palhaço”,
“alívio” e “alma nua”. Com a junção das palavras “agasalhante” e “alívio”, a cronista
afirma que Z.M. estava em um momento confortável e íntimo. Após se ver no espelho,
essa percebeu que a “persona” que estava em seu rosto tinha um sorriso parado,
triste, como a de um “palhaço”, que é feito com maquiagem. Quando a personagem
principal retirou aquela máscara, ela voltou a ser ela mesma, e estava de “alma nua”.
A crítica Nícea, que estuda sobre as obras clariceanas, afirma que a autora
denuncia em seu trabalho o esforço das mulheres de sua época de aparentar serem
outras pessoas. Essa busca por aceitação da sociedade, segundo Clarice, é fruto da
insegurança. No trecho, Nícea reflete sobre uma história desenvolvida pela escritora
com a mesmo tema de “A Bravata”:

(...) a autora denuncia entre as convidadas uma naturalidade fingida, comum


às mulheres que a todo custo desejam apresentar uma aparência diversa de
sua realidade, comportamento que causa insegurança e constrangimento no
momento em que algo sai de seu controle. Eis aí uma crítica velada sobre o
comportamento pouco natural das mulheres em sociedade (NÍCEA, 2007, p.
93).

A crônica-conto “A Bravata”, em suma, apresenta Z.M.: uma personagem


humilde, que não tem o controle das circunstancias de sua vida, é tímida e insatisfeita
consigo mesma. Com a “persona bravata” no rosto, ela tenta ir a um evento de
trabalho sem companhia e, aquela máscara mostra para ela que fingir ser outra
pessoa não valia a pena. Isso significa que, para Clarice Lispector, ser você mesmo é
a sua melhor versão.
77

5.3 AS ATENIENSES E O GENERAL

“A Perseguida Feliz” é uma crônica-conto de Clarice Lispector publicada no


Caderno de Sábado em 21 de setembro de 1968. A história tem como principais
personagens três meninas do terceiro ano do ginásio que ficam desnorteadas após a
mensagem de um escritor anônimo. O tema da crônica-conto é a sexualidade na
adolescência.
No início da crônica-conto “A Perseguida Feliz”, Clarice Lispector mostra ao
leitor como uma menina do terceiro ano do ginásio olha para o sexo oposto. A classe
dela é composta por meninos e meninas de, em média, quatorze anos de idade. De
acordo com essa faixa de idade, a inocência e a disputa infantil entre os gêneros
imperava nos corredores dessa escola. Durante uma aula, porém, em meio a
explicação sobre a guerra do Paraguai, a menina cria em sua mente uma imagem que
representa a relação de meninos e meninas:

Quando depois lembrava-se deles era como num instantâneo fotográfico


batido e depois imediatamente imobilizado. E esse instantâneo apesar de
nele todos estarem rígidos e bem comportados, parecia-lhe a súbita
imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam pernas de menino com
braço de mocinha formando um vívido monstro masculino e feminino que ela
digeria em devaneios durante as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual
possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinha-lhe
de imediato trombetas do Paraguai (SÁBADO, 1968, p. 2).

A cronista usa figuras para construir a ideia de uma briga física, e por isso ela
usa expressões, como “pernas de menino com braço de mocinha” e “monstro
masculino e feminino”. As palavras “pernas” e “braço” fazem parte dos membros do
corpo humano, mas que, na construção da frase, indicam socos e chutes de menina
e de menino. Essa briga se intensifica e cresce no qual não se pode ver mais onde
estão essas pessoas, e então essa mistura se transforma em um “monstro feminino e
masculino”. As trombetas do Paraguai é uma relação que a narradora faz com o
conteúdo que estava sendo dado no momento da aula, e que se assemelha com a
guerra entre os sexos, uma realidade característica dessa faixa de idade. É como se,
no início dessa história, ainda não havia despertado o interesse amoroso de ambas
as partes. Essa descrição de imagem era um “devaneio” que, no sentido da palavra
78

(AMORA, 2008, p. 225), significa sonho ou fantasia que estava sendo digerido, ou
seja, alimentado pela menina.
Uma atitude anônima muda todo o quadro de realidade dessa turma e choca
principalmente três meninas do terceiro ano do ginásio. Clarice Lispector antecipa
esse acontecimento como a frase: “Houve evidentemente a primeira vez” (SÁBADO,
1968, p.2), que está associada à temática sexualismo na adolescência dessa crônica-
conto. A menina apresentada no início do texto senta em sua cadeira na sala especial
para desenho e, como de costume, olha para a larga prancheta que é usada para
praticar o exercício de desenho geométrico. A mensagem de um escritor
desconhecido, ao mesmo tempo, assusta e interessa a menina, conteúdo no qual ela
apelida como “insultos de amor”.

Ao sentar-se em frente à prancheta, descobriu-a, logo ao primeiro olhar,


coberta dos mais miúdos hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo
apertado e nítido, todo com ar organizado. Antes mesmo de entender,
soubera com um choque: eram insultos de amor. Antes mesmo de entender
os desenhos e as minúcias simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de
curiosidade, de surpresa? Quanto aos escritos, ela quase não compreendia,
tanto a terminologia era técnica e especializada, quase técnica de outro país,
copilação laboriosa de um espírito analítico (SÁBADO, 1968, p. 2, grifo do
autor).

As palavras “insultos de amor” estão na mesma frase e, portanto, elas se


contradizem. A primeira figura significa “1. Injúria, ultraje, afronta” (AMORA, p. 394,
2008) e a segunda “4. Zelo, cuidado” (p. 38). Para mostrar a contrariedade do amor
do autor anônimo, Clarice Lispector usa a figura de linguagem paradoxo, a mesma
usada no texto “O Arranjo”.
Para mostrar ao leitor que nessa mensagem havia, além de palavras,
ilustrações, a cronista usou a expressão figurativa “miúdos hieróglifos” que remete a
antiga língua do povo egípcio. Esses sinais eram agrupados para construir uma ideia
harmoniosa e eram escritos dentro de quadrados imaginários. Logo, eles eram
“miúdos”, que significa “1. Muito pequeno (AMORA, 2008, p. 467)”. Esse conteúdo
informativo sobre sexo deixou a menina pálida por causa dos desenhos que ali
estavam e das “minúcias simbólicas”. A figura “minúcias” também remete a tamanho
pequeno: “1. Coisa muito miúda” (AMORA, 2008, p. 464). O que estava escrito na
larga prancheta, porém, a personagem compreendia pouco, pela razão de ser
79

mostrado por alguém supostamente “laborioso”, ou seja, trabalhador, ativo, diligente


(AMORA, 2008, p. 413) e de “espírito analítico”.
No momento que essa menina encontrou mais duas colegas que estavam
também sendo alvo das mensagens desse escritor anônimo, elas decidiram se unir
para encontrar essa pessoa. Clarice Lispector, nessa parte da história traz uma
discussão cultural sobre um perfil de mulher específico. As personagens principais da
crônica-conto eram duas morenas e uma loira. Para mostrar ao leitor os pensamentos
da loira, a cronista desenvolve uma das técnicas linguísticas que ela usava chamada
monólogo interior, que já foi explicado no início desse capítulo. Através dessa
estratégia na narração, uma crítica ao preconceito com as loiras é evidenciada.
A terceira era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar,
como material de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura,
pensava, era uma coisa infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os
anjos eram louros. Que lhe reservava o destino senão suas indecisões? Sua
alma bem lhe parecia morena, mas quem o descobria sob aquela aparência
o dourado violento? No entanto, uma menina ou uma máfia de meninos
(SÁBADO, 1968, p. 2).

Nesse trecho podemos encontrar substantivos concretos que representam


culturalmente a pureza e a inocência através da cor loiro: “divino”, “fadas” e “anjos”.
Essas figuras, segundo a menina, não representam a sua personalidade, mas sim
uma coloração menos suave e sutil, como a classificação “dourado violento”. A palavra
“alma”, no texto, associa-se ao sentido de “3. pessoa” (AMORA, 2008, p. 30), e isso
significa, apesar de aparentar ser inocente, na realidade ela não era. Portanto, a sua
alma é “morena”, como as outras colegas. Ainda, a expressão “máfia de meninos” que
a personagem loira os define no trecho, o leitor pode perceber que ela os vê como
rivais e possui a mesma concepção de briga física que foi mostrada no início da
crônica-conto.
Voltando à três meninas, mesmo elas não tendo um plano formado de como
descobrir quem era o escritor desconhecido das largas pranchetas, elas desejavam
agir. Sentiam-se vítimas e invadidas na sua privacidade por um homem do qual elas
não sabiam quem eram. Elas acreditavam ter o direito de protestar.

As três pareciam escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas


do Caminho do Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives
tontos; qual dos meninos, ou rapazes teria sido ousado? Perscrutavam cada
um deles, mas esses olhares insistentes não eram provocantes porque elas
80

estavam imbuídas do direito de...de que mesmo? Pois não é que não se
lembravam mais de que direito estavam imbuídas (SÁBADO, 1968, p. 2)?

No trecho, as figuras “escoteiras” ou bandeirantes estão associadas ao


escotismo, um movimento mundial que visa educar o jovem a ter valores como honra,
altruísmo, disciplina, respeito, entre outros. As três meninas do ginásio, no entanto,
incentivadas a descobrir o sujeito desconhecido, são corrompidas dos bons costumes
para virarem “detetives tontos”. Na última frase do texto, a cronista denuncia a vontade
das personagens de ter acesso a direitos, mesmo elas não compreendendo qual
desses pertenciam a elas.
A necessidade de protestar das três meninas pode estar associada ao
movimento feminista, que, no final da década de 1960, era um assunto debatido
intensamente. A segunda onda do feminismo se caracterizava pela busca de direitos
iguais entre os sexos e o fim da discriminação das mulheres. Essa manifestação
passou a criticar o papel da mulher como dona de casa e incentivava a entrada
feminina no mercado de trabalho. Esse movimento feminista, nesse momento
histórico, afirmava que as mulheres precisavam ter os mesmos direitos sociais que os
homens. De acordo com Hall (2006, p. 46): “o que começou com um movimento
dirigido à contestação da posição social das mulheres expandiu-se para incluir a
formação das identidades sexuais e de gênero”.
Segundo Pajolla (2010), as crônicas de Clarice Lispector abordam o tema
sobre feminismo através da construção da identidade dos personagens nas suas
inquietações existenciais. Esse assunto é tratado indiretamente nos textos clariceanos
através do jornal:

A transformação porque passa o sujeito, as mulheres em especial, é pano de


fundo de muitas crônicas escritas por Clarice no período de efervescência do
feminismo. Mas os textos publicados no jornal não tocam diretamente em
questões como a entrada das mulheres no mercado de trabalho ou a
revolução sexual em curso. Elas refletem a dimensão psíquica das
personagens, suas percepções existenciais e íntimas. Essa ideia confirma a
análise feita no capítulo anterior sobre a forte carga de interiorização como
uma das principais características da crônica clariceana (PAJOLLA, 2010, p.
72).

Movidas pela necessidade de chamar a atenção ou de se sentirem dignas, as


duas morenas e a loira contaram aos responsáveis da secretaria da escola sobre o
81

ocorrido: “As três graças orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um


mundo feminil tão amado e vilipendiado” (SÁBADO, 1968, p. 2). Essa oração tem
sentido contraditório, pois usa as figuras “desmoralizadas”, “amado” e “vilipendiado”.
A palavra “desmoralizado” significa “2. Desacreditado” (AMORA, 2008, p. 218),
enquanto que o verbo “vilipendiar” é “3. Desprezar” (p. 769). Quando a autora diz que
elas pertencem a uma realidade amada, desacreditada e desprezada, Clarice faz uma
crítica sobre a desvalorização da mulher na sociedade.
Após a denúncia do ocorrido, as três personagens nunca mais receberam a
mensagem na larga prancheta. Elas, porém, vieram a descobrir quem era o escritor
anônimo: um repetente de sua turma de nome grego. Para a surpresa das três
meninas, o seu colega era atraente e de personalidade forte, e por isso, elas
compararam ele a um espartano

Ele!? A quem seus pais haviam dado um nome grego. Decerto espartano:
pois para ele a mocinha que espartanamente sobrevivesse à severidade e
crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vivê-lo, ao amor. Nenhuma
das três atenienses sobrevivera à prova (SÁBADO, 1968, p. 2).

Nesse trecho fica claro que, até esse momento, as três meninas do ginásio
sentiam-se o centro das atenções de um escritor anônimo. Apesar de aparentar-se
revoltadas com o ocorrido, elas se interessavam por essa dedicação do até então
desconhecido autor. Quando descobriram quem era esse menino, sentiram-se
insuficientes para um dia relacionar-se com ele, pois a personalidade dele está
associada a força e a crueldade de um espartano. O verbo “sobrevivesse” e os
substantivos “severidade” e “crueza”, portanto, são figuras que indicam o grande
esforço que as personagens teriam que fazer para merecer os “insultos de amor” do
colega.
Ainda, elas foram associadas com os atenienses e ele aos espartas.
Historicamente, esses dois povos da Grécia Clássica tinham um estilo de vida
completamente diferente e, em consequência disso, também as suas mulheres. As
atenienses eram educadas para serem donas de casa:

A ateniense casada vivia a maior parte do tempo confinada às paredes de


sua casa, detendo no máximo o papel de organizadora das funções
domésticas, estando de fato submissa a um regime de quase reclusão
(TÔRRES, 2001, p. 49).
82

As mulheres espartanas, por outro lado, eram independentes, tinham um


caráter autoritário e eram insubmissas aos seus maridos. Essas atuavam também nas
guerras.

A mulher espartana, de acordo com Kennard & Cartet (1994) era audaz e
realizadora, autoritária com seus maridos, sendo admirada ou caluniada por
sua independência, dependendo daqueles que escreveram sua história. Essa
independência era consequência da ausência de seus maridos que
permaneciam à disposição do exército até os 30 anos e apenas
ocasionalmente tinham contato com suas esposas (RUBIO, 1999, p. 51).

Clarice Lispector afirmou que as três meninas eram as atenienses. De acordo


com a citação de TÔRRES (2001), mesmo que não esteja na crônica-conto “A
Perseguida Feliz”, algumas figuras e expressões podem ser associadas às
características femininas desse povo: confinada, funções domésticas e submissa.
Com relação a crítica de Clarice sobre o feminismo, as personagens principais de sua
história são consideradas mulheres do sistema tradicional.
Além disso, no final da crônica-conto, as meninas do ginásio não se sentem
mais a altura do escritor das pranchetas, e consideram não merecedoras desse amor
“cruel” e “severo” de um espartano. O quadro reverteu-se. As três personagens
arrependeram-se de ter denunciado, e as mensagens nunca mais apareceram em
suas pranchetas na sala especial para desenho.

Via-se que desprezava todas nós: parecia um homem entre tolos e tolas.
Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de olhos finos à flor da pele,
olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo com horror? (...).
O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um desdenhoso ar
de exilado: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que éramos,
pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general
(SÁBADO, 1968, p. 2).

A crônica-conto “A Perseguida Feliz” retratou as três meninas do ginásio


através de suas características físicas, como “morena” e “loira”. Essa foi associada
como “tola” e “sonsa”. Todas elas tornaram-se “detetives” e protestavam os seus
direitos. No fim, tornaram-se “desmoralizadas” e “amadas”, “atenienses” e
“desprezadas”. Clarice Lispector, em suma, quis mostrar a vulnerabilidade feminina
com as injustiças sociais, mas também destaca a necessidade feminina da atenção
do homem.
83

5.4 UMA CRIATURA FEITA PARA AMAR

“Uma História de Tanto Amor” é a crônica-conto publicada no “Caderno de


Sábado” em 10 de agosto de 1968 produzida por Clarice Lispector. A temática da
história é amor infantil e conta sobre o relacionamento de uma criança com as suas
galinhas. Essa menina representa a naturalidade e a potencialidade feminina de
entregar-se ao amor.
No interior de Minas Gerais há uma menina apegada as suas galinhas
chamadas Pedrina e Petronilha. Ela lhes conhece tão bem que reconhece os
sentimentos e as dores das suas amadas. Logo no início da crônica-conto, Clarice
Lispector mostra o relacionamento fora do comum de uma criança com as aves do
seu galinheiro:

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia
a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem
angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e
ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais
longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua
arte. (SÁBADO, 1968, p. 2).

Pode-se identificar no primeiro parágrafo do texto que a autora usa a figura


de linguagem prosopopeia19 para inserir sentimentos humanos a seres inanimados.
Ela usa palavras, como “ansiosa”, “angústia”, “amor verdadeiro”, “cantar”, “dever” e
“arte” e essas são inseridas na vida de animais domésticos. Além disso, a criança,
protagonista da história, cuida de Pedrina e Petronilha como se estivesse brincando
de médica com as suas bonecas.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela
cheirava embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que
considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva
não é de se brincar. Então pedia um remédio para a sua tia (SÁBADO, 1968,
p. 2, grifo do autor).

19 Figura de linguagem prosopopeia: “é o expediente de construção textual que consiste em se atribuir

qualidades ou acontecimentos próprios do ser humano a personagens não-humanos (animais, plantas


ou coisas). Esse mecanismo recebe o nome de prosopopeia ou personificação” (FIORIN, 2001, p. 131).
84

Para ilustrar ao leitor o modo como a menina buscava enfermidades que as


galinhas não tinham e desejava ver-lhes como seres humanos, a cronista usa figuras
e expressões que relacionam o universo da medicina: “cheirava”, “asas”, “simplicidade
de enfermeira” e “remédio”. A palavra “cheirava” é uma ação que indica a busca por
um sintoma em um indivíduo, as “asas” são como os braços de um ser humano, em
que a criança busca por um cheiro anormal. Ainda, a “simplicidade de enfermeira”
mostra o quanto a menina agia com normalidade e tratava esse cuidado das galinhas
com seriedade. Quando descobriu um sintoma, ao seu ver, pediu um remédio para a
sua tia, uma parente do qual tinha intimidade. A criança achava que ela iria entender
a sua preocupação com as duas aves.
A tia, então, deu à personagem “um líquido escuro que a menina desconfiava
ser água com uns pingos de café” (SÁBADO, 1968, p. 2). O cheiro embaixo das asas
de Pedrina e Petronilha, porém, permanecia forte. Não ocorreu na criança dar um
desodorante porque “nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim
como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia” (SÁBADO, 1968, p.
2). Clarice Lispector, durante a narração da crônica-conto “Uma História de Tanto
Amor”, fazia referências culturais e o sotaque característico de pessoas interioranas
de Minas Gerais como na oração acima, em destaque: “nas Minas Gerais, não eram
usados (desodorantes) e roupas íntimas de cambraia”. Além disso, pela família da
criança viver no campo, não havia uma farmácia para ela “consultar” as galinhas.
A personagem principal decidiu dar o remédio para as duas galinhas, Pedrina
e Petronilha, para garantir que essas não pegassem “contágios misteriosos”. Todo o
esforço e cuidado da criança com as aves, segundo o narrador, não surtia efeito, pois
para a menina parecia que elas não queriam ser curadas. Clarice Lispector, então,
relacionou as galinhas com os homens.

Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a


passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado.
(...). A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser
curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem
como a galinha têm misérias e grandezas (a da galinha é a de pôr um ovo
branco de forma perfeita) inerentes a própria espécie (SÁBADO, 1968, p. 2,
grifo do autor).

Nesse momento da crônica-conto, Clarice Lispector iguala os homens e as


galinhas, e essa relação é evidenciada através das figuras “curados”, “misérias”,
85

“grandezas” e “espécie”. A palavra “cura”, segundo o dicionário Soares Amora,


significa “fig regeneração; 5. Emenda, melhora” (p. 188, 2008). A figura “miséria” (p.
466) é “sf 1. Estado de penúria, 2. Estado mesquinho, vergonhoso, indigno”; enquanto
que “grandeza” (p. 349) tem o significado de “sf 1. Qualidade de grande; 2. Magnitude,
generosidade, bondade”. Esses dois últimos substantivos concretos ressaltam as
qualidades e os defeitos dos homens e das aves. A figura “espécie” (p. 281), por fim,
significa “sf 1. Qualidade, natureza; 2. Classe, categoria; 3. Conjunto de seres que
possuem características em comum”. A cronista, na história, coloca de igual para igual
o valor de dois seres do qual a menina interiorana e as mulheres se relacionam: as
galinhas para a criança, e os homens para as mulheres.
A menina frequentemente olhava para as galinhas e percebia algo que, a ser
ver, era necessário ser mudado. Um dia a personagem achou Pedrina e Petronilha
magras demais, e decidiu engordá-las. Ela não sabia que, alimentando as aves de
maneira exagerada como estava fazendo, essas iriam para o “destino da mesa”
(SÁBADO, 1968, p. 2) mais rápido do que o normal. A razão da criança de ser tão
atenciosa era porque tinha facilidade para o amor.

A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso


quintal das Minas Gerais. (...). A menina era criatura de grande capacidade
de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e, no entanto,
a menina continuava a amá-las sem esperar reciprocidade (SÁBADO, 1968,
p. 2).

A mensagem central da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor” é o


trecho acima. Clarice Lispector usa uma personagem feminina e infantil para mostrar
ao leitor que, através dessa “capacidade de amar” sem esperar reciprocidade é uma
ação evidenciada pelas mulheres brasileiras de 1960. As figuras “imenso quintal”
descreve ao leitor a percepção do ambiente através de uma criança, no qual é
indicado nesse adjetivo e substantivos concretos a média de idade que tem o
personagem principal da crônica-conto. Através da “intuição”, a menina conhecia suas
galinhas e, mesmo elas não correspondendo a esse amor, ela “continuava”, ou seja,
persistia no cuidado e carinho com as aves.
A cronista reflete também, em outras crônicas, o que o homem representa
para a mulher. No texto “Amor Imorredouro”, publicado no periódico “Jornal do Brasil”
em 9 de setembro de 1967, Clarice conta ao leitor uma situação cotidiana referente a
86

esse assunto. Na casa de uma amiga, Clarice está conversando por telefone com
outro amigo, e ela lhe contou sobre o seu trabalho de cronista no jornal paulista. Logo,
ela fez uma pergunta pertinente para ele sobre o interesse das mulheres.

E sem mais nem menos perguntei: o que mais interessa às pessoas? Às


mulheres, digamos. Antes que ele pudesse responder, ouvimos do fundo da
enorme sala a minha amiga respondendo em voz alta e simples: O homem.
Rimos, mas a resposta é séria. É como um pouco de pudor que sou obrigada
a reconhecer que o que mais interessa à mulher é o homem (LISPECTOR,
2012, p. 125).

No decorrer dessa crônica, a autora afirma que acredita que, para o homem,
o maior interesse dele também é a mulher. Com sinceridade, Clarice Lispector reflete
sobre como o homem faz as mulheres se sentirem aceitas e felizes. Ela conclui que,
por mais que o homem fira a mulher e a mulher ao homem, os dois não podem viver
sem o outro.

O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa fonte


de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é o nosso
inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O homem é o nosso
igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O
homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um
pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar
sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque
o homem gosta de mulheres interessantes? Somos. O homem é a pessoa
com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato?
Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos
(LISPECTOR, 2012, p. 126).

A menina da crônica-conto “Uma História de Tanto Amor” teve que lidar com
a morte de suas galinhas. Um dia, sua família fê-la visitar a casa de um parente muito
longe de sua casa, e eles comeram a Petronilha. Quando a menina soube que os
membros de sua casa fizeram isso, a criança ficou braba com todos, principalmente
com o seu pai, que era o que mais gostava de comer carne de galinha. A outra ave,
amada pela criança, também faleceu. A personagem principal acelerou a morte de
Pedrina colocando ela “em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das
minas-gerais” (SÁBADO, 1968, p. 2). Logo que viu a galinha tremendo de frio no
quintal, embrulhou-a em um pano preto e colocou Pedrina em cima de tijolos quentes.
Consequentemente, na manhã seguinte, a ave estava morta. Quando compreendeu
87

que apressara a morte de sua galinha de estimação, ficou entre “lágrimas


intermináveis” (p. 2).
Quando estava mais crescida, a menina teve outra galinha. O relacionamento
que ela teve com essa ave foi diferente: “O amor por Eponina: dessa vez um amor
mais realista e não romântico: era o amor de quem já sofreu por amor” (SÁBADO,
1968, p. 2). Sentindo-se mais experiente e madura para esse relacionamento com a
ave de seu quintal, a personagem entendeu que era o “destino fatal” dessa ser comida:
“As galinhas pareciam ter uma pré-ciência de próprio destino e não aprendiam a amar
os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo” (p. 2).
Por essa razão, a menina sabia exatamente o que fazer quando Eponina vir
a falecer. Lembrou-se que, quando a primeira galinha chamada Petronilha morreu, a
sua mãe disse para a criança que era importante comer a carne dessa ave. Era um
jeito de seus amados animais ficarem vivos dentro dela.

Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente,
estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos
Petronilha dentro de nós. É uma pena. (...). Mas a menina não esquecera o
que a sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina
mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer
quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se
tornaria sua do que em vida (SÁBADO, 1968, p. 2).

Na última parte da crônica-conto, a personagem principal mostra ao leitor que


o seu relacionamento com as galinhas era quase doentio, a ponto de, segundo o
narrador, ela comer a carne e o sangue do animal. No trecho acima, a primeira frase
é a fala da mãe que incentivou a criança a comer a carne de Petronilha, e após isso,
vêm a consequência desse conselho materno. A personagem principal, na sua
fantasia, realmente acredita que a ave Eponina permanecerá viva e se “incorporará”
(SÁBADO, 1968, p. 2) nela. Nessa refeição, a menina teve ciúmes de quem comia a
carne de Eponina. A cronista, por fim, termina a história com essa frase: “A menina
era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens” (p. 2).
“Uma História de Tanto Amor” apresenta uma criança como uma “criatura de
grande capacidade de amar”. Ela cuidava de suas galinhas com “simplicidade de
enfermeira”, e conhecia a “alma” e “os anseios mais íntimos delas". Na história, a ave
é relacionada com o homem. Vemos, na personagem principal, a persistência do amor
mesmo sem reciprocidade. Clarice Lispector cria a representação de uma mulher que
88

se entrega ao amor mesmo que o cuidado dela trouxe a tragédia naquele que ela
estava se relacionando.
89

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no


‘Caderno de Sábado’” investiga as figuras narrativas que constroem as perspectivas
femininas de 1960 sob o olhar da autora. Essa pesquisa tem como tema o jornalismo
cultural e discute sobre o papel dessa profissão na sociedade. A investigação tem
como pergunta central: “como se constrói a expressão da intimidade nas crônicas-
conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’”?
Essa investigação é relevante para a área do jornalismo porque defende a
importância da capacitação de um profissional de cultura. Como vimos, no século XXI,
há poucas referências de um trabalho de qualidade. A escolha de um gênero
jornalístico, portanto, como a crônica, abre uma discussão para compreender a
verdadeira função desse texto para os leitores brasileiros. A partir disso, explorar a
trajetória, as características e os principais autores que escreveram a crônica
contribuiu para investigar uma área na imprensa pouco “reconhecida” no mercado no
Brasil. Apesar de que, esse texto, é considerado o mais antigo do país e que define a
cultura do jornalista de ser o “porta-voz” da informação e, portanto, do cotidiano.
Ainda, pensar nos cadernos culturais para se entender uma época, mais
especificamente, a década de 1960, é importante porque o jornalista cultural tem o
papel de mapear os aspectos relevantes de um período no seu país. Por isso, é
possível fazer essa investigação através de periódicos de cultura. O “Caderno de
Sábado”, que é o suplemento em destaque nessa pesquisa, é considerado uma
referência desse jornalismo no Rio Grande do Sul. Resgatar, em suma, as crônicas-
conto de Clarice Lispector, que constroem as perspectivas femininas de sua década,
é importante para o Estado.
Apesar da autora não ser considerada uma jornalista cultural, Clarice era uma
escritora que investia em recursos estilísticos. Um profissional de cultura que quer
escrever um texto de qualidade, portanto, precisa conhecer e ter domínio de
estratégias de estilos da língua portuguesa. Isso é relevante porque, quanto mais o
jornalista é capaz de transmitir informações de forma clara e elaborada, maior será a
compreensão do leitor no texto. Conhecer, em suma, a forma de escrita inventiva e
expressiva que Lispector usa nas quatro crônicas-conto publicadas, em 1968”, no
“Caderno de Sábado”, poderá auxiliar o interessado a criar a sua forma de escrita.
90

A resposta da pergunta central, “como se constrói a expressão da intimidade


nas crônicas-conto de Clarice Lispector no ‘Caderno de Sábado’?”, portanto, está na
estratégia de linguagem que a escritora usou para escrever a sua opinião nas quatro
crônicas-conto. Entre muitos recursos estilísticos que Clarice Lispector oferece para a
investigação, foi escolhido as figuras de linguagem. Essas são palavras concretas que
criam um efeito de realidade no texto, pois se referem a elementos do mundo natural.
A partir da identificação dessas “palavras-chave” que caracterizam as personagens
femininas nos textos, podemos entender a subjetividade da cronista. As figuras
narrativas nos permitem compreender além do significado original da palavra, e, por
isso, podemos fazer explorar e interpretar as obras clariceanas.
Na crônica-conto “O Arranjo”, Clarice Lispector reflete sobre a relação de
negros, mulatos e brancos através da personagem escrava e de seus senhores. A
personagem principal é tratada durante a história com preconceito, desrespeito e
maus tratos. A representação dela é de uma mulher fácil aos homens, sem instrução
e controversa. No texto “A Bravata”, no entanto, a cronista discute sobre o esforço
feminino em mostrar para a sociedade outra personalidade e outro comportamento,
diferente do que a mulher é. A protagonista da história é tímida, insegura, que sente
indigna de viver a própria vida e de fazer escolhas. A crônica-conto “A Perseguida
Feliz” reflete sobre estereótipos, a falsa inocência feminina e a necessidade da mulher
de atenção masculina. As três personagens principais são representadas como
vulneráveis, amadas e, ao mesmo tempo, desprezadas, de acordo com o tratamento
que o homem dá a elas. O texto “Uma História de Tanto Amor”, por fim, mostra a
facilidade e a necessidade da mulher de amar o sexo oposto, em que a autora
relaciona a galinha e o homem. A protagonista infantil da crônica-conto é retratada
como perigosa, amorosa e, ao mesmo tempo, doentia (de amor).
Ainda no capítulo cinco, entendemos que as figuras de linguagem foram
usadas pela Clarice Lispector de acordo com a intensão que ela queria dar ao texto.
A autora usou a figura paradoxo, por exemplo, para indicar a contradição da escrava
mulata, e inseriu, Uma História de Tanto Amor”, a figura prosopopeia a fim de mostrar
que a criança associa as suas galinhas com os seres humanos. Além disso, a cronista
escolhe diversas figuras de linguagem para retratar as angústias e o vazio de Z.M,
como a sinestesia e metáfora, e, também, ela usa novamente o paradoxo para indicar
a contrariedade do amor oferecido pelo escritor anônimo pelas três colegas do ginásio.
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A partir desses resultados, podemos concluir que é possível ser subjetivo em


textos como as crônicas-conto, além de ser possível em outros gêneros jornalísticos.
Escolher, também, recursos estilísticos, como as figuras de linguagem, no seu texto é
uma estratégia que possibilita o interesse e a atratividade do seu trabalho. Ainda,
aprendemos que a sensibilidade do cronista e, portanto, do jornalista cultural, é uma
diferenciação no mercado. Identificar a sua forma de se expressar através da escrita
autoral é uma maneira de aproximar o público leitor no seu texto. Além disso, ter as
informações que quer transmitir de forma ordenada e clara torna possível uma maior
compreensão do receptor. O conhecimento prévio do jornalista sobre o tema cultura
é essencial, além de dominar a língua portuguesa e saber refletir sobre as questões
sociais é de sua importância.
Como foi escrito anteriormente, o mercado de jornalismo cultural está carente
de profissionais qualificados. Essa investigação quer destacar que o profissional tem
o poder de mudar essa situação através de sua melhor qualificação, como o domínio
de recursos estilísticos. Clarice Lispector é uma rica fonte de estudo para aqueles que
querem aprender a se expressar melhor e a colocar o aspecto mais humano no texto
jornalístico. A sensibilidade, portanto, a intimidade, abre o caminho da proximidade
com o público leitor a fim de dar a oportunidade de que ele seja mais informado e
capacitado em formular críticas e opiniões sobre a arte e o mundo.
Os “Rastros de Intimidade nas Crônicas-Conto de Clarice Lispector no
Caderno de Sábado”, em suma, é uma pesquisa que tem como temática o jornalismo
cultural. Essa investiga as figuras de linguagem criadas pela cronista que permitem
trazer perspectivas da mulher de 1960. A intimidade da cronista é indicada na forma
autoral de sua escrita, que a torna uma profissional sensível para registrar o cotidiano.
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7 ANEXOS

ANEXO A – crônica-conto “O Arranjo”, de Clarice Lispector.

Ela era cria da casa grande, desde menina. Distraía-se e divertia-se com
qualquer coisa, sem sorrir: não era alegre. Andava de corpo solto, boca aberta, olhos
redondos. Quando a dona de casa estava irada, chamava-a de débil mental. Diziam
que qualquer homem a teria, se quisesse. Ela não ficava contente mas grávida. Então
os patrões, realmente cansados de distribuir por famílias os seus filhos, a injuriavam.
Não usavam violência porque por princípio não eram violentos. Mas se ela almoçava,
diziam: é claro, a fome duplicou. Se não almoçava, diziam: é claro, perdeu o apetite.
Mandavam-na trabalhar com ironia: “mas não vá ter antes do tempo! Já arrumamos
com que família esse aí vai ficar!”. Ela não se ofendia. O corpo crescia, e ela ficava
cada vez mais amarela sob a cor de mulata quase branca. O que os patrões não
perdoavam é que dessa vez tivesse acontecido com um “negro sujo”, como se eles
tivessem para ela planos de um homem menos negro e mais limpo. Às vezes, quando
ela passava com a bandeja na mão, olhavam-na com curiosidade e diziam em tom
velado por causa dos netos presentes: logo um negro sujo. Um dia pareceu
compreender melhor e disse muito alto: mas foram só três vezes! As crianças
exaltavam felizes, o pai, a mão e os avós caíram em cólera pela pouca vergonha,
explulsaram-na da sala – ainda por cima tropeçou no tapete e caiu sobre a bandeja.
Mas não era escrava, como a outra cria da casa. A outra cria da casa de Laranjeiras
tornara-se uma mulher perfeita para cuidar das roupas e das crianças, uma verdadeira
escrava. Mas ela não era escrava: vivia independente deles e dava à luz os seus
próprios filhos, distribuídos depois como gatos, amarelados como a mãe.
Dois anos depois, encontrei-a na rua e ela me disse com modéstia e recato que
vivia com um português. “Estou agora mesmo esperando por ele, marquei encontro”,
me disse encostada no poste. Ele afinal apareceu na curva da esquina; velho, e era
por isso que ela não estava grávida, gordo, trôpego. “Ele é muito bom para mim”, disse
como se explicasse tudo. Ele se manteve a curta distância, ouviu a frase, e abaixou
os olhos escondendo nunca se saberá o quê.

ANEXO B – crônica-conto “A Bravata”, de Clarice Lispector.


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Z.M, sentia que a vida lhe fugia por entre os dedos. Na sua humildade esquecia
que ela mesma era fonte de vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava
convites. Não era mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a
menos que ele o dissesse – então se surpreendia e a aceitava.
De tarde – era primavera, primeiro dia de primavera – foi visitar uma amiga que
a pôs em brios. Como então ela, uma mulher feita, era tão humilde? Como é que não
percebia que vários homens a queriam? C omo não percebia que devia, dentro de
sua própria dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda que a vira entrar numa sala
onde todos eram conhecidos. E por acaso nenhum dos presentes chegara aos seus
pés. E no entanto entrou tímida como ausente, como uma corça de cabeça baixa.
“Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque é diferente,
cosmicamente diferente, então aceite que você não pode ter a vida burguesa, e entre
nua sala com a cabeça levantada”. “Mas entrar numa sala cheia de gente?”
“Exatamente. Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante”.
Lembrou-se de que no fim da tarde havia uma espécie de coquetel para os
professores primários, em férias. Lembrou-se da atitude nova que desejava, não
combinou a ida com nenhum professor ou professora – arriscar-se-ia toda só. Vestiu
um vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então – só o entendeu
depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto parecia uma
máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era
fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era
exatamente o que ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria
exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de pintura no rosto –
ah “persona”, como não te usar e enfim ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de
sua sala tão conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa que ia
se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-se-coragem,
levantou-se e foi.
Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa tímida jamais foram
completamente descritas. No táxi que rolava ela morria um pouco.
E ei-la de repente diante de um salão enorme com talvez muitas pessoas mas
pareciam poucas dentro do descomunal espaço onde se se processava como um
ritual moderno o coquetel.
94

Quanto tempo suportou de cabeça falsamente erguida? A máscara a


incomodava, ela sabia ainda por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem
pintura seria a nudez da alma. E ela não podia se arriscar nem se dar esse luxo.
Falava sorrindo com um, falava sorrindo com outro. Mas como em todos os
coquetéis, nesse era impossível a conversa e quando ela viu estava de novo sozinha.
Viu um homem que tinha disso seu amante. E ela pensou: por mais amor que
este homem tenha recebido, fui eu que lhe dei toda a minha alma e todo o meu corpo.
Os dois se olharam, perscrutaram-se, ele com certeza espantado com a máscara de
pintura. Não soube o que fazer senão perguntar-lhe se ele era seu amigo, se podia
ser. Ele disse que sim, para sempre.
Até que sentiu que não suportava mais manter a cabeça de pé. Mas como
atravessar a enorme extensão até à porta? Sozinha, como uma fugida? Então em
meias palavras confessou seu drama a uma das professoras e ela levou-a pela
enorme extensão da porta.
E no escuro da noite primaveril ela era uma mulher infeliz. Sim, era diferente.
Mas sim, era tímida. Sim, era super-sensível. Sim, vira um amor passado. O escuro e
o perfume da primavera. O coração do mundo batia-lhe no peito. Sempre soubera
sentir o cheiro da natureza. Achou finalmente um táxi onde se sentou quase em
lágrimas de alívio, lembrando-se que em Paris lhe acontecera o mesmo porém pior
ainda. Foi para casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é
que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando
estava lavando as mãos e viu a “persona” afivelada no seu rosto; a persona tinha um
sorriso parado de palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma
nua. Tomou então uma pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e
se prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de dormir começava
a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos começou.

ANEXO C - crônica “Lembrança de Filho Pequeno”, de Clarice Lispector.

Mas que sentir de filho? Se de algum modo fico toda sem um único sentimento
reconhecível. Que sentir? Vejo sua cara queimada de sol, cara inteiramente
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inconsciente da expressão que tem, toda concentrada que está como um bicho bonito,
delicado e feroz – nas lâmpadas de seu sorvete.
O sorvete é de chocolate. O filho lambe-o. Às vezes se torna lento demais para
o seu prazer, e ele então morde-o, e faz uma careta que é inteiramente inconsciente
da felicidade incômoda que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente. Essa, a
boca, é muito bonita. Olho o filho toda compacta, mas ele está habituado à burrice de
meu olhar concentrado de amor. Ele não me olha, e não se incomoda de ser
observado nesse seu ato íntimo vital e delicado: e continua a lamber o sorvete com a
língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada de material
de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa. Olho
com a rudeza de meu silêncio com meu olho vazio aquela cara que também é rude,
filho meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou,
recuada. Recuada diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de
obstinação áspera; impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela
natureza. Minha cara deve estar com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não
fala a língua do país. Parece um torpor. Não me comunico com pessoa alguma. Meu
coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões.
Estou ali, e vejo: o rosto do menino tornou-se por um instante ávido – é que
deve ter encontrado algum pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que
a língua esperta captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada, grande,
com as mãos calejadas não por mim mas pelos meus ancestrais. Sou uma
desconfiada que está em trégua. O filho come agora a casca do sorvete. Sou uma
imigrante que se enraizou em terra nova. Meu olho é vazio, áspero, olha bem. E vê:
um filho de cara concentrada que come.
A FOME
Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma
eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva.
MISTÉRIOS DE UM SONO
Estou dormindo. E embora pareça contradição suavemente de repente o prazer
de estar dormindo me acorda num sobressalto também suave. Estou acordada e
ainda sinto o gosto daquela zona rural onde subsolarmente eu espalhava de minhas
raízes os tentáculos de um sonho.
SEGUIR A FORÇA MAIOR
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É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre.


Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em
se ter um destino. Este é o nosso livre arbítrio.
SÓ COMO PROCESSO
Julgar de acordo com o bem e o mal é o único método de viver. Mas não
esquecer que se trata apenas de uma receita e de um processo. De um modo de não
perder na verdade, que esta não tem bem nem mal.
O QUE EU QUERIA TER SIDO
Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria
de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta
pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando
a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de
lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de a
protetora dos animais. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente
defende-la. E eu sentia o drama social com tanta intimidade que vivia de coração
perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes
manos privilegiadas. Em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa
empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não
deixaria aquilo continuar. Eu queria agir. Em Recife, onde morei até doze anos de
idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais
ninguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu
vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender
os direitos dos outros.
No entanto, o que terminei sendo e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que
procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.

ANEXO D - crônica “O Desaparecido”, de Rubem Braga


Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que
sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito
grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-
97

querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro
de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo
mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando
uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto,
eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino,
o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que
estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que
não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido,
estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os
jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto
de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido
que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de
uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti,
pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
ANEXO E - crônica Em Matéria de Automóveis de Fernando Sabino.
Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:

— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?

E se alguém lhe sugeria que aprendesse:

— Para que aprender, se não tenho automóvel?

Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e


apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:

— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro.
Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só
então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.

O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador,


98

embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.

— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito
importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine
se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os
acumuladores? falta de fôrça no chassi? falta de óleo na bateria?

Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no
radiador só se coloca água.

— Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de nôvo deve estar com algum defeito
no radiador, não gasta água nunca! Todas as vêzes que mando botar água o
homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa
do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é.
um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de nôvo, me
mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.

— Você não costuma lubrificar o carro?

— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer:
lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele
detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.

— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água distilada.

lsto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que
devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água
na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se êle fôsse
doido: tirar a água? Então êle disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:

— Verifiquem.

Verificaram, enquanto êle aguardava, meio ressabiado. O homem do pôsto se


99

aproximou, misterioso:

— Elemento sêco.

Olharam-se mùtuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão


perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos
semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira
a fôrça dos acumuladores.

— Elemento sêco?

Elemento sêco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segrêdo que faz o


poderio dos sêres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de
inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, êle sugeriu:

— Deve ser o giguelê.

Giguelê — palavra mágica que êle um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a
existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas
da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de
divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em tôrno à diminuta
imagem de Exu e outros deuses pagãos.

— No mais — arremata êle — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou


com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas
coisas: buzina e volante.

ANEXO E - crônica “O Suor e a Lágrima”, de Carlos Heitor Cony.

Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os
jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio.
100

Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo
menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em
poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que
também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou
meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte
para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o
suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos
sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em
torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o
suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa
e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive
sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso.
Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu
viesse a precisar nos restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus
sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo
suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano,
salgado como lágrima.

ANEXO F - crônica Atenção ao Sábado”, de Clarice Lispector.

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de


cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é
101

a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o


rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no
outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de
uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento
sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer,
com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito
e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.

ANEXO G - crônica “A Casa Demolida”, de Sérgio Porto.

Seriam ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e


talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus
por que guardamos.
Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de
passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora,
porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar
na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e
quatro felizes anos de minha vida.
Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as
coisas que nos são caras!
Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à
tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que,
mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis,
cartas, recibos e outras inutilidades.
102

Esta era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para
não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo,
enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se
recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.
A ideias de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de
madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram
inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho,
a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um
dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As flores, quando vinham, eram
tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam
para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raul
de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir
na vizinhança.
Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro,
rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada
janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à
cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!
Nas paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível
"Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor
desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada
num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido.
Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem
ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é
tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir
sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação.
O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali
pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um
brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de? Gemia
em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda
morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não mais que
na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.
Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com
a casa? Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A
103

saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou


atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas
onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar
pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia
foi a casa.
Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe.

ANEXO H - crônica “Desculpai-me”, de José de Alencar.

Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais
interessantes de minha vida de escritor. Aposto que nunca vistes escrever sem tinta!
Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é
possível no século atual, no século do progresso.
Eis o caso.
Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí
mesmo dispunha-me a escrever a minha revista.
Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o
que tem a dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando...
Talvez não acrediteis.
Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e
saiu intacta e pura. Não trazia nem uma niilidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi
debalde.
O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um
passo, creio que temperou a garganta, e pediu a palavra.
Estava perdido!
Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco
e seis horas. Que elementos para não trabalhar!
Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução
pronta e imediata.
Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois
empregados, que assim se esqueciam dos seus deveres.
O meio era bom, e sortiu o desejado efeito como sempre.
104

Entramos em explicações; e no fim de contas soube a causa dessa


dissidência.
A pena se tinha declarado em oposição aberta; o tinteiro era ministerial quand
même. E ambos tão decididos nas suas opiniões, que não havia meio de
fazê-los voltar atrás.
Era impossível, pois, evitar uma discussão; resignei-me a ouvir os prós e
os contrasdeste meu pequeno parlamento.
A pena do meu amigo fez um discurso muito desconchavado, a falar a
verdade. Por mais que lho tenha dito, não quer acreditar que a oratória não é o seu
forte; tirando-a da mesa e do papel não vale nada.
Enquanto, porém, ela falava, o tinteiro voltava-lhe as costas de uma maneira
desdenhosa, o que não achei bonito. Estive quase chamando-o à ordem; mas não
me animei.
Chegou finalmente a vez de falar ele, e defendeu-se dizendo que todas
as penas faziam oposição aos tinteiros logo que estes lhes recusavam
o elemento para trabalhar, e não lhes davam a tinta necessária para escrever, sem a
qual ficavam a seco.
— C'est trop fort! gritou a pena do meu amigo, que gosta de falar em francês.
Quebro os meus bicos antes do que receber uma só gota de tinta em semelhante
tinteiro.
E, se o disse, melhor o fez. Não houve forças que a fizessem molhar os bicos
no tinteiro e escrever uma só palavra com aquela tinta.
Atirei-a de lado, abri a gaveta, e tomei um maço de penas que aí havia de
reserva.
Mesma coisa: todas elas tinham ouvido, todas se julgavam comprometidas a
sustentar a dignidade de sua classe.
Por fim, perdi a paciência, zanguei-me, e, como já era mais de meio-dia,
larguei-me a toda pressa para a casa, a fim de escrever alguma coisa que pudesse
fazer as vezes de um folhetim.
Mas uma nova decepção me esperava.
A minha pena, de ordinário tão alegre e tão travessa, a minha pena, que é
sempre a primeira a lançar-se ao meu encontro, a sorrir-me a dar-me os bons dias,
105

estava toda amuada, e quase escondida entre um maço de papéis.

Quanto ao meu tinteiro, o mais pacato e o mais prudente dos tinteiros do


mundo, este tinha um certo ar político, um desplante de chefe de maioria, que me
gelou de espanto.
Alguma coisa se tinha passado na minha ausência, algum fato desconhecido
que viera perturbar a harmonia e a feliz inteligência que existia entre amigos de tanto
tempo.
Ora, é preciso que saibam que há completa disparidade entre esses dois
companheiros fiéis das minhas vigílias e dos meus trabalhos.
O meu tinteiro é gordo e barrigudo como um capitão-mor de província. A
minha pena é esbelta e delicada como uma mocinha de quinze anos.
Um é sisudo, merencório e tristonho; a outra é descuidosa, alegre, e às vezes
tão travessa que me vejo obrigado a ralhar com ela para fazê-la ter modo.
Entretanto, apesar desta diferença de gênios, combinavam-se e viviam
perfeitamente. Tinha-os unido o ano passado, e a lua de mel ainda durava. Eram o
exemplo dos bem casados.
Façam, portanto, idéia do meu desapontamento quando comecei a perceber
que havia entre eles o que quer que fosse.
Era nada menos do que a repetição da primeira cena.
Felizmente não veio acompanhada de discussões parlamentares, mesmo
porque na minha mesa de escrever não admito o sistema constitucional.
É o governo absoluto puro. Algumas vezes concedo o direito de petição; no
mais, é justiça a Salomão, pronta e imediata.
A minha pena, como as penas do meu amigo, como todas as penas de brio e
pundonor, tinha declarado guerra aos tinteiros do mundo.
Não havia, pois, que hesitar.
Lembrei-me que ela me tinha sido confiada há coisa de nove meses pura e
cândida, e que assim a devia restituir. Lembrei-me de muitas outras coisas, e tomei
uma resolução inabalável.
Atirei o meu tinteiro pela janela fora.
A pena saltou, de tão alegre e contentinha que ficou. Fez-me mil carícias,
sorriu, coqueteou, e por fim, fazendo-me um gestozinho de Charton no Barbeiro de
106

Sevilha, um gestozinho que me mandava esperar, lançou-se sobre o papel e


começou a correr.
Escrevia sem tinta.
Quero dizer, desenhava; esgrafiava sobre o papel quadros e cenas que eu
me recordava ter visto há pouco tempo; debuxava flores, céus, estrelas, nuvens,
sorrisos de mulheres, formas de anjos, tudo de envolta e no meio de uma confusão
graciosa.
E eu nem me lembrei mais de escrever, e fiquei horas esquecidas a olhar
esses quadros, que decerto não conseguirei pintar-vos.
Recordo-me de um.
Passava-se na segunda-feira, na baía de Botafogo.
A uma hora o tempo fez umas caretas, como para meter susto aos medrosos.
Daí a alguns momentos o sol brilhou, o azul do céu iluminou-se, e uma brisa
ligeira correu com os vapores do temporal que ainda toldavam a atmosfera.

ANEXO I - crônica “Conversinha Mineira”, de Fernando Sabino.

-- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?

-- Sei dizer não senhor: não tomo café.

-- Você é dono do café, não sabe dizer?

-- Ninguém tem reclamado dele não senhor.

-- Então me dá café com leite, pão e manteiga.

-- Café com leite só se for sem leite.

-- Não tem leite?

-- Hoje, não senhor.


107

-- Por que hoje não?

-- Porque hoje o leiteiro não veio.

-- Ontem ele veio?

-- Ontem não.

-- Quando é que ele vem?

-- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia
que devia vir em geral não vem.

-- Mas ali fora está escrito "Leiteria"!

-- Ah, isso está, sim senhor.

-- Quando é que tem leite?

-- Quando o leiteiro vem.

-- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?

-- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?

-- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma
coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?

-- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.

-- E há quanto tempo o senhor mora aqui?

-- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um
108

pouco mais, um pouco menos.

-- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?

-- Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.

-- Para que Partido?

-- Para todos os Partidos, parece.

-- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.

-- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa
mexida...

-- E o Prefeito?

-- Que é que tem o Prefeito?

-- Que tal o Prefeito daqui?

-- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.

-- Que é que falam dele?

-- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.

-- Você, certamente, já tem candidato.

-- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.

-- Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história


é essa?
109

-- Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí...

ANEXO J - crônica “Depois do Jantar”, de Carlos Drummond de Andrade.

Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de


Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua


frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.

— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?

— Não fumo, respondeu o outro.

Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou


o relógio:

— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.

— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.

— Como?

— Já disse. Vai passando o relógio.

— Mas ...

— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.

— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha
enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
110

O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio
mudou de dono.

— Agora posso continuar?

— Continuar o quê?

— O passeio. Eu estava passeando, não viu?

— Vi, sim. Espera um pouco.

— Esperar o quê?

— Passa a carteira.

— Mas...

— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa
idade?

— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio


qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...

— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?

— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.

— Diga.

— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.

— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o


produto do assalto?
111

— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?

— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na


testa do cara. Sou civilizado, manja?

— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele
me faz falta, palavra de honra.

— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.

— Não precisa, não precisa.

— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está


querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.

— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.

— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?

— Claro.

— Você, o assaltado. Certo?

— Confere.

— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.

— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem
mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de
um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não
reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado
mesmo.
112

— Tá bom, não se discute.

— Vamos, procure nos... nos escaninhos.

— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos
outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à
vontade.

— Deixe ao menos tirar os documentos?

— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com
você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.

— Nem uma de quinhentos? Uma só.

— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso
você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.

— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.

— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste
mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.

Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

ANEXO L - crônica “Mila”, de Carlos Heitor Cony.


113

Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-
la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela
não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela
também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me
para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a
patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o
vento?
Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos,
ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra
aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou,
solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria
disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma
ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla
porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu
"fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era umalady, uma
rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.
No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como
nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha
compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a
até o fim.
Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o
que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi
possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu
acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-
a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria
maior do que a saudade.

ANEXO M - crônica “Uma Galinha”, de Clarice Lispector.


114

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da
manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava
para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando
sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca
se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito
e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou —
o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de
onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado,
hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada
viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla
necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante
um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos
alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais
de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha
tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça.
O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o
grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.
Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava
outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia
tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que
havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que
não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o
galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo
uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-
a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa
através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta,
sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De
115

pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro.
Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe
habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e
desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava
as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina
estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso
bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste,
não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O
pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento
qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se
com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha
vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a
família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida
para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a
correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o
sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas
capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo
ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a
pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua
espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se
recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia
os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não
cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão
116

de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando
milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos
séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

ANEXO N - crônica “Viúva na Praia”, de Rubem Braga.

Ivo viu a uva; eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia


me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.
O enterro passara sob a minha janela; o morto eu o conhecera vagamente; no
café da esquina. a gente se cumprimentava às vezes, murmurando "bom dia"; era um
homem forte, de cara vermelha; as poucas vezes que o encontrei com a mulher ele
não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma
vez perguntei os horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu; agradeci; este
foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um "Citroen",
com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à
praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de
longe; sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a
olhava de frente.
A morte do homem foi comentada no café; eu soube, assim, que ele passara
muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por
sua falta, nem soubera de sua doença.
E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia?
Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso, vamos supor que ela
precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não
que o tenha comprado por luto; já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente;
não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.
Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois
minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem
bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta, de curvas discretas,
mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os
cabelos são bem negros; os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca
um pouco dentucinha, só um pouco; a linha do queixo muito nítida.
117

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n'água. Se eu


fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns
dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria
olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência,
antes de maneira discreta, como que distraído.
Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria
ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva,
essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa
ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele.
Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai
buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já
bem crescido. O esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas; é bela
assim, marchando com a sua carga querida.
Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho
rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está
brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão
diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo
seu homem se finar; vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha
e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável,
impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até
nojento...
Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre.
Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela
está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha
também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

ANEXO O - crônica “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade.

E como eu palmilhasse vagamente


uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
118

se misturasse ao som de meus sapatos


que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
119

teu ser restrito e nunca se mostrou,


mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
120

Mas, como eu relutasse em responder


a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

ANEXO P - crônica “Dois Entendidos”, de Fernando Sabino.

Dizem que tem uma memória extraordinária e sabe tudo sobre futebol. Suas
lembranças desafiam contestação.}
121

Um dia, porém, viu-se numa reunião em que se achava outro com igual
prestígio. E os dois acabaram se defrontando:
— Você se lembra da primeira Copa Roca disputada no Brasil? - perguntou-
lhe o outro.
— Se me lembro.
E disse o dia, o mês e o ano.
— Fazia um calor danado.
— Isso mesmo: um calor danado. Lembra-se da formação do time brasileiro?
— Quem é que não se lembra?
Cantou para o outro o time todo. O outro ia confirmando com a cabeça. Fez
apenas uma ressalva quanto ao extrema-esquerda.
— Eu sei: mas estou falando o time titular. Agora vou lhe dizer os reservas.
Declamou a lista dos reservas, e sugeriu, por sua vez:
— Você naturalmente se lembra da formação do time argentino.
O outro embatucou: o time argentino? Não, isso ninguém era capaz de dizer.
— Pois então tome lá.
E recitou o time argentino. O outro, meio ressabiado, procurou recuperar o
terreno perdido:

— Para nomes não sou muito bom. Mas me lembro que o goleiro argentino
segurou um pênalti. - Um pênalti mal cobrado, foi por isso: faltavam sete minutos
para acabar o jogo.
O outro, como que ocasionalmente, disse quem cobrara o pênalti, fazendo
nova investida:
— E lhe digo mais: o juiz apitou quinze "fouls" contra nós no primeiro tempo,
dezessete contra eles. No segundo tempo...
— Está aí; isso eu não sou capaz de garantir. Tudo mais sobre o jogo eu lhe
digo. Aliás, sobre esse jogo, ou qualquer outro que você quiser, de 1929 para cá.
Mas essa história de número de "fouls". . Como é que você sabe disso com tanta
certeza?
— Sei — tornou o outro, triunfante — porque fui o juiz da partida.
Com essa ele não contava. O juiz da partida.
— Como é mesmo o seu nome?
122

Ficou a rolar na língua o nome do outro.


— Você tinha algum apelido?
O outro deu uma gargalhada:
— Juiz, com apelido? Naquele tempo eu já me fazia respeitar.
— Sei, sei — e ele sacudiu a cabeça, pensativo.
— Engraçado, me lembro perfeitamente do juiz, não se parecia com você.
Chamava-se... Espera aí: se não me falha a memória...
— Ela costuma falhar, meu velho.
Ao redor a expectativa dos circunstantes crescia, ante o duelo dos dois
entendidos.
—...o juiz era grande, pesadão, anulou um gol nosso, houve um começo de
sururu...
— Emagreci muito desde então. E anulei o gol porque já tinha apitado quando
ele chutou. Houve realmente um ligeiro incidente, mas fiz valer minha autoridade e o
jogo prosseguiu.
— Você já tinha apitado...

— Já tinha apitado.

Os dois se olharam em silêncio.

— Quer dizer que quem apitou aquele jogo foi você - recomeçou ele,
intrigado.

— Fui eu. E lhe digo mais: quando Fausto fez aquele gol de fora da área...

— Já na prorrogação.

— Na prorrogação: quiseram protestar dizendo que ele estava impedido...

— Não estava impedido.

— Eu sei que não estava. Tanto assim que não anulei. Mesmo porque, a
123

regra naquele tempo era diferente.

— Nem naquele tempo nem hoje nem nunca aquilo seria impedimento. Se o
juiz me anula aquele gol...

—...teria que anular também o primeiro gol dos argentinos...

—...que foi feito exatamente nas mesmas condições.

Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de


acrescentar:

— Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado...


Ele saltou de súbito, brandindo o dedo no ar:

— Já sei! isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o
bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo
agitadinho, corria se requebrando... Tinha o apelido de Zuzú.

O outro não teve forças para negar e se rendeu à memória do adversário.


Mesmo porque, encafifado, fazia uma cara de Zuzú.

ANEXO Q – crônica-conto “A Perseguida Feliz”, de Clarice Lispector.

Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas! A classe do ginásio
misturava mocinhas e rapazes. Quando depois lembrava-se deles era como num
instantâneo fotográfico batido e depois imediatamente imobilizado. E esse
instantâneo apesar de nele todos estarem rígidos e bem comportados, parecia-lhe a
súbita imobilidade de uma briga física, onde se enovelavam pernas de menino com
braço de mocinha, formando um vívido mostro masculino e feminino que ela digeria
em devaneios durando as aulas da guerra do Paraguai. Guerra da qual
possivelmente nunca se refizera, pois quando pensava no ginásio vinha-lhe de
imediato trombetas do Paraguai.
124

Pois não é que ela fora uma das colegas escolhidas pelo escritor anônimo? E
onde é que este escolhera escrever? Nas pranchetas da sala de desenho. Nessa
escola, onde a desorganização imperava, havia no entretanto o privilégio de sala
especial para desenho e sala especial para química. Na de desenho geométrico
cada um dos alunos tinha diante da cadeira uma larga prancheta móvel.

Houve evidentemente a primeira vez.

Ao sentar-se em frente à prancheta, descobriu-a, logo ao primeiro olhar,


coberta dos mais miúdos hieróglifos: desenhos e palavras, tudo em tipo apertado e
nítido, todo com ar organizado. Antes mesmo de entender, soubera com um choque:
eram insultos de amor. Antes mesmo de entender os desenhos e as minúcias
simbólicas, já empalidecera. Empalidecera de curiosidade, de surpresa? Quanto aos
escritos, ela quase não compreendia, tanto a terminologia era técnica e
especializada, quase técnica de outro país, copilação laboriosa de um espírito
analítico.

Depois, sem intervalo de espanto, só com intervalo de dois dias, houve a


segunda vez. A terceira. A quarta.

A mais velha das meninas foi quem abriu o jogo e revelou a todas que tinha
uma prancheta especial. Então a segunda atingida brandiu a sua prancheta. A
terceira menina não se lembra mais do que disse e como disse. Só se sabia que
alguém, ou uma máfia de alguns, as visava. Duas visadas eram morenas; a terceira
era loura, com o desalento de ser loura, o que lhe parecia significar, como material
de capacidades, ser nula nessas capacidades. Loura, pensava, era uma coisa
infelizmente para o divino, tanto que as fadas e os anjos eram louros. Que lhe
reservava o destino senão suas indecisões? Sua alma bem lhe parecia morena, mas
quem o descobria sob aquela aparência o dourado violento? No entanto uma
menina ou uma máfia de meninos...

Tenho vergonha de, já no terceiro ano de ginásio, não entender a tecnocracia


de uma vida que – ei-la de súbito mecanizada na prancheta. Adivinhar ela
adivinharia, mas era só, e isso bastava. Se ao menos fosse angelical. Mas só o que
125

lhe faltava mesmo era essa coisa lenta e progressiva, a cultura especializada em
sexo.

Mentiu pra as outras dizendo que entendera tudo. Inútil dizer a verdade.
Ninguém acreditaria que ela, já tão construída e alta, não entendesse. Não entendia,
embora suprisse a ignorância com sólidos sonhos confusos que eram o seu esteio
secreto.

A indignação das três meninas foi ardente. “Como é que tinham tido
coragem!”, era só isso que repetiam, sem nenhum outro argumento. A loura, quem
sabe se por ser mais sonsa, não sugeriu medida prática nenhuma, enquanto as
outras duas, embora sem plano formado, se preparavam para agir. As três pareciam
três escoteiras ou bandeirantes que tivessem sido interrompidas no Caminho do
Bem, e agora se tivessem transformado em três detetives tontos; qual dos meninos,
ou rapazes teria sido ousado? Perscrutavam cada um deles, mas esses olhares
insistentes não eram provocantes porque elas estavam imbuídas do direito de...de
que mesmo? Pois não é que não se lembravam mais de que direito estavam
imbuídas?

Mas a cara dos colegas era inescrutável. E pelo contrário: assim examinados,
nunca se viu tanta cara inocente chupando bala ou fumando escondido.

A aula de desenho geométrico era duas vezes por semana. Como tardava o
dia de entrar na sala e poder olhar a prancheta onde os caracteres anteriores
sempre tinham sido apagados para dar lugar aos novos, que não passavam de
variantes dos primeiros. Tratava-se de um verdadeiro jornal impresso, editorial que
dava às três mocinhas as mais terríveis e emocionantes notícias sobre o que as três
eram. Eram? Liam avidamente sem escândalo – o escândalo só vinha depois de
garantida a leitura toda. Pena mesmo é que de fato nem tudo entendiam, isso
humilhava: mas o sentido geral, sim. O sentido geral lhes dava de choque o mundo
nas mãos trêmulas.

Mas o bom não dura. As duas morenas, levadas pela necessidade de


dignificação ou por uma tentativa de publicidade maior, tomaram a medida prática, à
qual a terceira se juntou muda: foram as três à Secretaria dar queixa. As três graças
126

orgulhosamente desmoralizadas, representantes de um mundo feminil tão amado e


vilipendiado. Das três, só duas falaram. A mais velha, mais que namorado, já
prometia noivar tão cedo – “bem que merecia a prancheta” – meditava a loura – nem
que já merecia os horrores que circundam o amor, quase noiva já era.

Pois bem. Bem feito, quem mandou. Não se sabe o que a Secretaria fez. Mas
as pranchetas – nunca mais.

No entanto, embora a coisa tivesse sido abafada pela Secretaria, vieram a


saber quem era o escritor das pranchetas. Ele!? A quem seus pais haviam dado um
nome grego. Decerto espartano: pois para ele a mocinha que espartanamente
sobrevivesse à severidade e crueza de tal amor, esta seria a única a merecer vive-
lo, ao amor. Nenhuma das três atenienses sobrevivera à prova.

As pranchetas limpas. Mas nunca, nunca mais? Pois é. O de nome grego


tinha uma cara que, por Deus, era bonita. Primeiro, tratava-se de um repetente, bem
mais velho do que os outros, e sabia das coisas: ser repetente dava-lhe um ar de
indiferença e insolência no andar. Via-se que desprezava todos nós: parecia um
homem entre tolos e tolas. Esse não chupava bala. Tinha rosto escanhoado, de
olhos finos à flor da pele, olhar curto, cabelos cortados à militar. Como não adorá-lo
com horror? A menina loura não o olhava sequer. Para que? Se já o sabia de cor e
com náusea. O espartano, depois de proibido pela Secretaria, tomou um
desdenhoso ar de exilado: fizera o que pudera, mas se nós não passávamos do que
éramos, pior para nós, ele lavava as mãos. Grande futuro o esperava, ao general.

E foi assim que daí em diante nas pranchetas só esquadros e compassos, só


desenho geométrico, nunca mais desenho de finesse. Também, quem mandou
reclamar.

ANEXO R - crônica-conto “Uma História de Tanto Amor”, de Clarice Lispector.


127

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia
a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase
humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar
a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o
mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina
possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava
embaixo das asas dela, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser
o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então
pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então,
com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio.
A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar
contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha
continuavam a passar o dia ciscado o chão e comendo porcarias que faziam mal ao
fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar
um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim
como não se usavam roupas íntimas de “nylon” e sim de cambraia. A tia continuava a
lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns
pingos de café – e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-
lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os
homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas:
tanto o homem como a galinha tem misérias e grandezas (a da galinha é a de pôr um
ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo
e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha
magras debaixo das pernas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina
não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E
recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande
conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando
cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo “galinha” tinha outra acepção.
Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
–,Mas é o falo, que é um nervoso, quem quer! Elas não fazem nada demais! E
é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
128

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia em casa de um


parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquele que em vida fora
Petronilha. Sua tia informou-lhe:
– Nós comemos Petronilha.
A menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não
corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-las sem
esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a
odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer carne de
vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ela quem mais gostava
de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe
– Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente,
estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha
dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo,
pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal
ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de embrulhadinha botou-a em
cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe
avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e
pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima de tijolos quentes. Quando na manhã
seguinte, Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas
intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico: era
o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Esponina ser comida,
a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia
galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência de próprio destino e não aprendiam
a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer
bichos amados: comeu Esponina mais do que todo o resto da família, comeu sem
fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Esponina se
incorporaria nela e se tornaria sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho
pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a
corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu o sangue. Nessa refeição tinha
129

ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até
que se tornou moça e havia os homens.
130

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LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora da língua Portuguesa –


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