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Introdução
o iní io de 1926, O nascimento de Vêl!us, pintado por Alexandre Caba nel em 1863,
fo i depositado nos porões do Musé du Luxembourg, juntamente com. 180 ou tras
pinturas acadêmicas do século XIX e in ício do século xx, sob a ale gação de que
"ocupavam esp a o demais para seu valor pictórico" (ci tado em C Green, Cubism and
its Enel/lies, p. 131). Seus lu gares na principais galerias do museu, ao lado do gue
restara da cole ão acad êmica pertencente ao Estado fran ês, eriam pre nchidos com
obras de Monet, Renoir, Van Gogh, Degas, Matisse, Bonnard e outro artistas ligados
ao mo imento moderno. Assim, obras assoc iadas a interesses n ão ofi iais e
antiaca d êmico , do Impressionismo ao Fauvismo, foram incorporadas ao panteão da
arte oficialmente aprovada n a Fran a.
Ao admitir a arte não acadêmica no Lu embourg, os curadores da arte ofici al pro-
vavelmente não faziam mai que reconhecer simbólica e tardiamente o fa to de que a for-
ma ão e os valores acadêmi os haviam-se tornado amplamente irrelevantes no mu ndo
c n temporâneo e no mundo d a arte con temporânea - no ápic de um processo qu se
·• iciara da metade para o final do século XIX. Em pou as palavra , as exposi ões anuais
oficiai , ou Salõe , haviam sido deslo adas de sua po i ão omo centros econômicos e 1-
turais da arte por diversas for as, incluindo o de envolvim n to d e uma rede substan ial
,. de marcl1a11ds e colecionador s independentes em Paris. Sabemos (a partir de M. Gee, Den-
lers, Critics and Collectors of Modem Painting ) que esse mercado tornou-se a arena prin-
cipal onde a arte não acadêmica era exibida, comprada e vendida. ntes e d pois d a Pri-
meira Guerra Mundial, esse mercado expandiu -se largamente, a ponto d e ter tornado
quase de necessário a um artista submeter suas obras a um do Salões anuais, se pud s-
se garantir exposi õe individuais regulares em uma galeria comercial de renome. o
anos 20, dependendo do status d a galeria, tais exposições h aviam-se tornado mais aptas
d o que os Salões oficiais a gerar renda para os artistas e atrair a aten ão da crítica.
Mas i so não ignifica que - não havendo um a corrente principal aca dêmi a ( m
relação à qual os artistas ind ependente pudessem e posi ionar omo oposi ão críti ca)
- a arte moderna e tenha de envolvido livremente e sem d isputas ou di isões. Ao con-
trário: as divisões tornaram-se, na verdade, mais agudas no período entre as duas guer-
ra . A d iferença é que elas o arriam interior111cHte à série de obras que frouxamente se
agrupavam sob a , gide da arte moderna ou independente. A história desse período é, até
certo pon to, a história de grupos d e interesses competindo pelo tatus e pelo significado
da história da arte - tanto a história recente quanto aquela um pouco anterior - ; pelo
significado da arte moderna; e pela n atureza da vida moderna.
É importante re altar que investigar o caráter e o conteúdo d tais divisões não cons-
titui meramente uma que tão de detalhe sociológico. E as ques tões se encontram, m ais
4 "ESSA LIB ERDADE E ESSA ORDEM" : A ARTE N A FRANÇAAPÓSAPRIMETRAGUERRA MUNDIA L
exatamente, no terreno do sign ificado em arte. Por exemplo, da mesma forma que o cará-
ter e o valor de Oly111pia de 1863, de Édouard Manet, foram estabelecidos, em parte, por
sua diferenciação consciente em relação a modelos de competência acadêmica personi-
ficados em obras como O nascimento de Vênus, de Cabanel, poderíamos esperar que
obras do período do entre-guerras se engajassem em proce sos similares de contraposição
a paradigmas de gosto e competência artística mais estabelecidos ou rivais. Em grande
parte, é por esse pro esso de associação e dissociação que as obras de arte adquirem signi-
ficado, ou que significados são associad os às obras de arte. Em outras palavras, um aspec-
to fundamental do significado, ou do caráter expressivo, das obras de arte é estabeleci-
do pelo seu posicionamento d entro d e uma rede de alterna tivas.
Um exemplo pode esclarecer esse ponto. O caráter expressivo de uma linha ondu-
lad a, como a figura A, é em si indeterminado. Parece bastante sem sen tido perguntar:
"Isso expressa ordem ou caos?" . No entanto, se ela é colocada ao lado d e u m ziguezague
irregular como o da figura B, a mesma questão torna-se plausível. Provavelmente respon-
deríamos que a figura A sugere "mais ordem" do que a figura B. Se, contudo, no lu gar
da figura B introdu zíssemos uma linha mais regular, a figura C, e fizéssemos a mesma
pergunta, veríamos provavelmente a figura C como a que expressa mais ordem. Isso quer
dizer que um contexto de alternativas diferente irá alterar provavelmente o que perce-
bemos ser um caráter expressivo. Assim, se a figura A é a forma convencional de repre-
sentar o caos, a figura B parecerá um exagero, ao passo que, no contexto em que a figu-
ra B é a norma, a fi gura A aparecerá como um abrandamento.
Figura A
Fi gura B
Figura C
Obras d e arte são, no todo, coisas mais complexas do que linhas onduladas ou
zigu ezagues. Mas será parte do objetivo deste capítulo mostrar como tais exercícios são
relevantes n a investigação do significado na arte em geral e como são úteis para o estu-
do desse período em parti ular.
Considere a seguinte pequena seleção de pinturas produzidas ou exibidas em Paris
por volta de 1921: Os três músicos, de Picasso [1]; A odalisca com culotes verlllelhos, de Matis-
se [2]; Composiçiio em vermelho, amarelo e azu l, de Mondrian [3]; A estrada de Nantes, de Vla-
INTRODUÇÃO 5
2. Henri Matisse, L'Oda lisque à la rnlotte rouge (A odalisca com culotes vermelhos), 1921,
óleo sobre tela, 65 x 90 cm. Musée National d' Art Moderne, Centre Georg s
Pompidou, Paris.© Succession Matisse, Paris e DACS, Londres, 1993.
4. Maurice Vlaminck, Ln Route de Nantes (A estrada de Nantes ), 1922-23, óleo sobre tela, 55 x 65 cm.
Paradeiro desconhecido. Arquivos Fotográficos, The National Gallery of Art, Washington oc, a
partir de um negativo de Taylor e Dull para Parke-Bernet Galleries Inc. © ADAG P, Paris e DACS,
Londres, 1993.
minck [4]; Natureza-morta com pilha de pratos, de Jeanneret [18]; Os do is polichinelos, de Seve-
rini [5]; e A criança-carburador, de Picabia [6].
Todos esses artistas exp useram mais ou menos regularmente em galerias comerciais
e espaços públicos imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. Suas obras foram
compradas e vendidas por marcha11ds em leilões e d iscutidas e criticadas nos jornais
diários e na imprensa especializada. Ou seja, todos eles trab alharam no âmbito do
mesmo amplo espaço cultural e econômico, ainda que nele não gozassem do mesmo
su cesso crítico e comercial. Tod avia, como pod emos constatar pelos exemplos, esse
espaço ab rigava claramente uma considerável diversidade de obras.
Nem todos os estud iosos do período categorizaram e diferenciaram esse conjunto d e
material da mesma forma . M ais exatamente, a estrutura de diferencia ão era, ela própria,
um motivo de debate e con trovérsias. Mesmo no interior de um grupo de analistas p ró-
cubistas h avia nítidas diferenças de ênfase. Fernand Léger, por exemplo, na época do
Salon des Ind ' penden ts de 1921, reconhecia "três grupos ... os subimpres ioni ta , os
cubistas e os p intores de fim-de-semana" . O pintor cubista menos conhecido André
Lhote detectou qu atro categorias em lugar das três de Léger: "1. academicismo; 2.
impressionismo; 3. n aturalismo construtivo; 4. cubismo" . O crítico Maurice Raynal,
por sua vez, concebia apenas duas tendências distintas, "Realismo e Idealismo"; para
ele a divisão se resumia a uma questão de ser a pinh1ra baseada em uma representação
naturalista de formas observadas (Realismo) ou de o artista "elevar [sua arte] acima da
natureza" para produzir uma composição autônoma "nascida de sua imaginação" (cita-
do em Green, Cubism and its Enemies, pp. 124-5). Essa ú ltima categoria - o Idealismo - ,
INTRODU ÃO 7
5. Gü10 Severini, Les Deux Polic/1ú 1c/les (Os dois polichi11clos), 1922, óleo sobr tela, 92 x 61 cm.
H aag Gemeentemu eum, Haia. © i\ DAG P, Paris e DAC:'i, Lond r s, 1993.
8 "E SA LIBERDADE E ESSA ORDEM" : A.ART E NA rRANÇAAPc'JSA PRIMEIRA GUERRA MUND IAL
l ( NfA T CAR8URATtUR
6. Francis Picabia, L'E11fa11t cnrlmrate11r (A criança-carburador), 1919, óleo, douradura, lápi e pintura metálica em
compen ado, 126 x 101 cm. Acervo do Museu Solomon R. Gugg nheim, Nova York. © ADAC r / Sl'ADEM, Paris e
DACS, Londres, 1993.
O NATURA LI SMO, O CLASSIC ISMO, A ESCOLA DE PA RIS 9
Raynal a ociava à obra dos p intores cubistas. No entanto, um a linha comum per orr
e as ela sificações dos ríticos: tod o admitem uma distin ão fundam ental entre um ter-
reno pré-cubista d a pintura e outro pó -cubista, embora cad a um, provavelmen te, tenh a
fe ito essa distinção com per p ctivas um tan to diferen te .
8. Mauri ce U trillo, La Maison Bemot (A casa Bemot), 1924, óleo sobre tela, 99 x 146 cm. Musée de
l'Orangerie, Coleção Jean Walther e Paul Guillaume, Paris. Foto: Réunion d e Musé s
Nationau x Documentation Ph otographique. © ADAGr / SPAD EM, Paris e DACS, Lond res, 1993.
Examinaremos mais adiante algumas obras d e orienta ão cubista d esse período. Antes de
fazê-lo, é importante notar que havia d iferenças significativas dentro do conjunto de
pinturas natu ralistas produzidas em Paris na épo a. Por exemplo, embora hou vesse o
bastante na Odalisca d e Matisse [2] para agradar aos críticos p ró-naturalistas, ela é, em
quase tod os os aspectos, um tipo de pintura bastante diferente d a que p rodu ziam De
Segonzac ou Vlaminck. Seu tema exótico, as cores vivas, a leveza de retoque e a atenção
ao d ecorativo apon tam p ara u ma d ire ão bastante diversa d aqu ela indicad a pela rustici-
dade p rovinciana d e De Segonzac. Matisse estava longe de ser o único a utilizar u m a téc-
nica vagamente naturalista para retratar cena distan tes e aparentemente n ão realis tas.
Picasso, Derain, Severini, Gris e outros adotaram u ma técnica naturalista, d entro de uma
estrutura perspectiva convencional, na rep resentação d e composições com fi gu ras sin-
gulares ou múltiplas. A maioria deles retratava não um p resente rural m as imagens de um
passado clássico. Esse conjunto de pin turas também lidava mais com temas gerais da exis-
tência humana do que com aqueles específicos ao tempo, lugar e personalid ade.
Discutiremos em brev algumas das explicações que foram dadas para o surgimen-
to de temas expres amente clássicos técnica naturalistas nos círculos não acadêmicos.
Por enquan to, vale a pena observar algumas característica das obras desse tipo. O tema
d a maternidade tornou- e um dos mais comuns n a rep resentação d as mulheres, fre-
qüentemente associado à imagem d a figura feminina em im ples trajes hele1ústicos,
carregando produtos fre cos d a colheita ou água retirada da fonte. Em todos se a os,
a m ulher é representada primordialmente como a imagem d a fertilidade - a portadora
da nova vida e ustento, seja ele animal, vegetal ou mineral. (As pintura de Matisse cons-
tituem uma notável exceção.) Nos quadros de Pica o, ela é usualmente uma figura
monum ental num ve tido clássico d e algodão (ver Três mui/zeres 11a fo nte [9] e o desenho
sem título de c. 1922 [611). A representação da maternidade de Severini, Matemità [10], um
p ouco anterior, usa u m traje m ais modern o, m a eu natu ralismo um tanto suave mais
evoca um tema abstrato, universal, do que oferece uma ilustração específica da criação
de filh os. O amplo Carregador de cesta de Braque [11], consideravelmente menos na tura-
lista, é ain da mais d á sico e monumental em sua orientação.
O tema preferido p ara representar a fig ura masculina era, no mínimo, tão generali-
zante e his toricizad o quanto no tratamen to da mulher. Picasso, Gris, Derain, Severini,
Metzinger e outros, todos retrataram a figura m ascu lin a n os trajes da con1111edia dell 'arte
italiana (ver o Arlequim en tado, de Picasso [1 2], e O do is polichinelos, de Severini [51).
Todas essas obras estão r p leta de referências consciente a temas hi tóricos e fon tes d a
história da arte. O Arlequú11 entado de Pica o foi até mesmo execu tado em têmpera, uma
técnica tra dicional italiana que havia entrado em declínio com o de envolvimento da pin -
tura a óleo. Era como e o objeti o principal fo se retirar da obra qualquer referência
específica ao mundo mod erno e invocar, em vez disso, aquele lado da arte ligado à tra-
di ão e à continuidade. O naturalismo expres o nessas pintura parece inteiramente
O NATURALI SMO, O CLASSICISMO, A ESCOLA DE PAR IS 13
des tituído do realismo contemporâneo. Parece ter sido utilizado para fins bastante
distintos daquele do naturalismo de Vlaminck, De Segonzac e seu círculo. Detalhes
locais, simplicidade rústica e sua associa ão com objetivos diretos e descompli ados por
parte do artista são substituídos por referên ias à história d a arte e pela citação de fon-
te d á ica , alegorias, artifícios con ciente e a oda õe com a erudição e a ofistica ão.
14 "ESA LIBERDADE E ESSA ORDEM": A ARTE AFRAN A APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
12. Pablo Picas o, Arlequin as is (Arlequim sentado ), 1923, têmp ra sobr tela, 130 x 98 cm. Õffentliche
Kun tsammlung, Kunstmuseum Ba el, G1967.9. Foto: Colorphoto Hinz. © DACS, Londres, 1993.
O NATURA L! MO, O CLASSICISMO, A E COLA DE PARIS 15
Com o risco da simplificação excessiva se p ode dizer que, enquanto para um grupo de
artista o naturalismo é usado p ara invo ar os valore da natureza, para outro é mobili-
zado em favor de uma reflexão sobre a cultura.
A que tão da pintura n aturalista nesse período compli ar- e-ia mais tarde pelo fa to
de que alguns dos pintores classici tas aparentemente mais fervorosos continuaram a tra-
balhar também com estilos abertamente cubistas. A ampla tela de Pica so Os três m1ísi-
co [1], por exemplo, trata o mesmo tema da conm1edia dell'arte d maneira expli citamente
cubista, como em seu Arlequim de 1915 [13]. Em ambas as pinturas, toda a modelagem
e a perspe tiva são eliminada , e figuras e quemáticas ão dispostas em um espaço
pouco profundo de planos aparentemente sobrepostos ou interseccionados, com cores
chapadas. Um uso similar de urn espa~o raso com blocos de cores chapadas é evidente
no Carregador de cesta de Braque [11 ], embora o resultado seja uma figura muito menos
abstrata do que em Picasso. Gris também bus ou combinar sua técnica cubista com
temas explicitamente históricos, ma produzindo, ne e ca o, atualiza ões ubista de
algumas pinturas hi tóricas. Seu A mulher corn um bn!ldolim de 1916 [14] é uma releitura
do quadro de Corot, Sollhadora com um bandolim [15], de e. 1865, cujos principais elementos
da composi ão foram e quematizados, arranjados como formas com cores chapadas e
combinados com um tanto de detalh gráficos residuais.
Portanto, me mo dentro do conjunto da pintura naturalista produzida durante e após
a guerra, há ~inais de d iversidade e, em alguns casos, incompatibilidade direta de objetivos
e interesses. Mas a que tão permanece: como podemos interpretar esse aparente abandono
do radicalismo da arte não acadêmica do período pré-guerra em favor de formas mais con-
vencionais der presen ta ão? No últimos anos, vários historiadores da arte argumentaram
que as razões para e sas mudanças residem fora do domínio imediato da arte e no interior
dos desenvolvimentos culturai mais amplos precipitados pelos ef itos da guerra de 1914-18.
É difícil imaginar que evento de tamanho significado global como a Primeira Guerra Mun-
dial e a Revolução de Outubro na Rússia não afetariam a perspectiva dos artistas - tal como
afetaram a de outras pes oas. Mas talvez seja uma outra questão indicar exa tamente a
forma pela qual uma r spo ta a es es acontecimentos foi incorporada em obra de arte
específicas. Houve, em dúvida, maneiras bastante práticas pelas quais a guerra af tou o
O NATURALISMO, O C LASS I ISMO, A ESC LA DE PA RIS 17
desenvolvimento da arte moderna. Por exemplo, a economia parisiense ligada à arte foi efe-
tivamente arruinada nesse período: alguns artistas, incluindo Braque e Léger, foram con-
vocados; alguns morreram; outros emigraram; algtu1S permaneceram em Paris como estran-
g iro não-combatentes. As expo i õ s, incluindo os Salões anuai , foram canceladas; o
comércio estancou- e; e o marclwnd independente mais importante do período pré-guerra
- o alemão Daniel-Henry Kahnweiler - teve seu estoque in teiro de obras confiscado e foi
impedido de conduzir seus negócios. A sim, como seria de esperar, o período após a guer-
ra cara terizou-se pela confusão e pela falta de coe ão, enquanto os arti tas, 111nrcl11mds, crí-
ticos e outros buscavam reagrupar-se, recuperar o ímpeto perdido, retomar as linh as de
desenvolvimento e restabelecer sua posição em relação às correntes da arte pré-gu erra.
Em i, e se fato não diz muito sobre tipos específico de pintura, apenas delineia um
conjunto aproximado de rela ões sociais dentro das quais a pinturas eram produzidas e vei-
culadas. O historiador da arte Kenneth Silver argumen tou que os espectros da guerra e da
revolu ão exerceram uma influência bem mais direta e visível no desenvolvimen to da arte
ne se período (K. Sil er, Esprit de Corps ). Ele apontou a similaridade entre a retórica dos ana-
listas políticos de direita na França e a de vários artistas, críticos e teórico da cultura. Em par-
ticular, notou como o conjunto de termos e concepções que su stentavam as idéias de "cha-
mado à ordem" e "re onstrução" na França do pós-guerra ecoavam nos escritos e declarações
dos artistas e incorp oravam-se ao estilos e temas de ua arte. O imaginário em torno do
"chamado à ordem" foi, ele próprio, riado a partir do estabelecimento de oposiçõe entre
as supostas virtudes do período pós-guerra e a alegada decadência do período que a ante-
cedeu, atribuindo-se à própria guerra o papel de precipitadora das m udanças. Inicialmen-
te, a Fran a do pré-guerra foi representada como mergulhada em decadência moral e espi-
ritual: o país e seu povo eram frívolo , fracos, desorganizados e aprichosos. En tão, com a
interven ão da guerra, ela t ria sido purgada de sas afli ões, para ressurgir fiel ao seu ver-
dadeiro eu: di cipli.nado, forte, organizado e esclarecido. a retórica cultural da reconstru ão,
essa última série de termos foi agrupada sob um único título unificador - o Classici mo. A
tradição clássica, argumen tava-se, era a verdadeira tradi ão da ultura francesa - tendo a
na ão recebido, porém, vária influências estrangeiras, consideradas em sua maioria de ori-
gem germânica. Portanto, a retórica do Classici mo era, ao menos em um a pecto, o eí u-
lo para uma ideologia nacionalista levem ente v lada. Tudo claro, até aqui. Mas as similari-
dades q ue Silver apontou entre ar tórica política e a estética do período foram convertidas
or alguns autores em tipos de relação menos flexívei . Supôs-se, e em algun casos defen-
deu- e explicitamente, que forma e témicas de pintura mais tradicionais, mais "conserva-
doras", seriam efeitos diretos de uma cultura política mais autoritária, mais "conservadora"
(ver, por exemplo, B. Buchloh, "Figures of Authority, Ciphers of R gr ssion"). Essa me ma
uposi ão ba eava-se freqüentemente m um a outra anterior a ela, qual seja, o lugar-comum
de que formas de "radicali mo" artístico (um termo geralmente u tilizado para inovação téc-
nica) seriam, em i, indicadoras de "radicalismo" político. Seria então sensato afirmar que
todo o conjun to de obras om orienta ão la icista desse período onstihli uma prova irre-
futável de que os artistas internalizaram idéia políticas reacionárias? Trata-se portanto de
pin turas reacionárias? A ampla m udan a na direção de uma pintura mais" onservadora",
mais naturalista, eria uma correspondência direta da atmosfera política mais "con erva-
dora" na Fran a do pós-guerra? Que tões des e gênero me parecem importantes e vêm
sendo apresentada com freqüência nos anos re ente . Elas procuram tratar de uma que tão
básica sobre a rela ão da arte com as forças políticas e ideológicas mais amplas atuante em
uma cultura. Indagam sobre a relação da política com a e tética.
Tão importante quanto fazer tais perguntas é hesitar an te de re pondê-la , e também
observar os termos em que são colocadas. De eríamos notar que ela geralmente lidam om
amplas generaliza 'Õe , tratam um exten o conjunto de obras individuais como se fossem
todas idênticas e, acima de tudo, fazem julgamentos antecipadamente à observa ão da
evidências da obra. Embora a questão das rela õe entre a arte e a política s ja primordial
neste capítulo, quero resistir à po sibilidade de reduzir e sa questão a uma fórmula, a um
tipo de te te de toma sol por meio do qual se possa entender que a arte, em razão de algu-
18 "ESSA LIBE RDADE E ESSA ORDEM": A ARTE N A FRA ÇA APÓS A PRIMEIR A GUERRA M UNDIAL
mas características gerais, deva apresentar um certo viés político. Não estou convencido de
que as questões relativas à arte devam er resolvidas dessa forma. Seria injustificado admi-
tir, simplesmente porque um conjunto de pinturas trata um tema básico no mesmo estilo
geral, que elas sejam, de alguma forma significativa, similares como obras de arte. O que
podemos dizer, por exemplo, sobre uma cena da conm zedia dell'arte de Severini não será
necessariamente aplicável a urna pintura de Picasso sobre o mesmo terna. Ao contrário, é
preciso observar os detalhes particulares de cada obra e di cutir o tema caso por caso.
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tor, é m ais conhecid o como Le Corbusier - pseudônimo que ad otara no início dos an o 20,
em seu trab alho como jornalista e arquite to. Ozenfant, também p intor e escritor, h avia
an teriormente editado uma pequena revista entre 1915 e 1916, intitulada L'Élan. Sua primeira
contribuição foi p roduzir uma expo ição e um livreto que a acompanhava, intitulado Apres
/e Cubis111e, p ublicado em novembro de 1918, poucos dias após a assinatura do armistício. Sua
colaboração só terminou, efetivamente, com a extinção de L'Esprit Nouveau, em 1925.
N o mesmo ano em que seu manifesto "Purismo" foi publicad o em L'Esprit Nou veau,
Ozen fant e Jeanneret p intaram uma série de n aturezas-mortas (p or exemplo, figs . 17 e 18).
Eles viam, claramente, su a pintura e su a literatura como componentes susten tadoras d o
mesmo projeto. A seção de abertura d o m anifesto d á ênfase considerável a termos com o
"lógica", "ordem" (m encionado sete vezes) e "con trole". Em ou tra p arte d o texto, descre-
vem sua pin tura como "u ma associação de elem entos purificados, relacionados e arquite-
O PURISMO E L'ESPRIT NO U\'EA L/ 21
17. Amédée Ozenfant, Flnco11, guitnrre, verre et boutei/le ii ln tnble verte (Frasco, violão, copo e garrafa
e111mesa verde), 1920, óleo sobre tela, 81 x 101 cm. Kunstmuseum Base!, La Roche Bequest.
© DACS, Londres, 1993.
taaos" (p. 67). O Purismo, reconhecem, "oferece uma arte possivelmente severa, mas que
se' d irige às faculdades elevadas da mente" (p. 66). A ênfase em todo o texto recai na
racionalidade, na clareza de concepção e em uma execu ão precisa. E, assim como já foi clito
sobre outras pinturas do período, essas qualidades são enfatizadas não na obra em si, mas
por meio de um cuidadoso posicionamento desta contra outras tendências da arte francesa.
Uma vez estabelecido que o inhlito de seu trabalho é "controlar e corrigir" as tendências
cap richosas da intuição, passam a apresentar a arte purista d a "concep ão" contra "aque-
las ar tes cuja única ambi ão é agradar os sentidos" (p. 66). Obviamente, estavam se refe-
rindo à série de pinturas que Vauxcelles e outros buscavam promover, utilizando um
conjunto d e termos similares aos dos puristas, mas dando-lhes o valor exatamente oposto.
Portanto, seria ap ropriado comparar a tela Natureza-morta com pilha de pratos [18], pro-
duzida por Jeanneret em 1920, com a Natureza-morta com ovos [19], criada por De Segon-
zac por volta d e 1923. Embora o trabalho de Jeanneret tenha dimensões significativamente
maiores que o de De Segonzac (o primeiro, com 81 x 100 cm, e o segundo, com 59 x 38 cm),
eles compartilham, claramente, certas características básicas. Ambos retratam um conjun-
to de utensílios familiar s, corriqueiros, arranjados sobre uma superfície, provavelmen-
te o tampo d e uma mesa. Os objetos em cada tela ocupam a área central do retângulo
pictórico, enquanto a área superior dá lugar a u m espaço mais profundo, indefinid o. E há
alguma similaridade na gama de tons terra utilizados pelos dois artistas. As diferenças
mais claras entre as duas obras estão no tratamento - há um grau muito maior d e acaba-
mento na de Jeann eret - e no tipo de projeção espacial utilizado. Embora nenhum dos dois
artistas trabalhe com uma estmtura perspectiva defirlida (apenas Jeanneret indica algum
22 "ESSA U BERDADE E ESSA ORDEM": AARTE NAFRA T AAPÓSAPRIMEIRAGUERRAMUNDIAL
18. Charles-Édouard Jeanner t, Nnturc morte à ln pile d'ns iettcs (Nnt11 rc::n-111ortn com pilhn de pmtos), 1920, óleo
sobr tela, 81 x 100 cm. Ôffentliche Kunstsammlun g, Kuns tm useum Base!. Foto: Colorphoto Hinz.
© DACS, Londres, 1993.
19. André Dunoyer d e Segonzac, N11t11rc morte m1x ceufs (N11t11rez11-mort11 com ovos ), e.
óleo obre tela, 59 x 38 m. Courtauld Insti tute Galleries, Londres. © DACS, Londr s, 1993.
24 " ESSA LIBERDADE E ESSA ORDEM": A ARTE NA FRAN A APÓS A PR IME IRA GUERRA MUNDIA L
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ÜZESFAST
20. Pinturas de Ch arles-Éd ouard J anneret e Amédée 21. L'Esprit No11 veau, n" 5, p. 571, 1921. Reimpresso
Ozenfa nt, L'Esprit No11vcau, n" 17, p . 1993, 1922. por Da Capo Press, 1968, Nova York.
Reimpresso por Da Capo Press, 1968, ova York.
([) DACS, Londr s, 1993.
O PURISMO E L'ESPR/T NO L/VEAU 25
Jeanneret e Ozenfant, havia muito mais em jogo nas suas palavras, No número 17 de
L'Esprit Nouveau Qunho d e 1922), eles incluíram uma ilu stração [20] na qual reprodu ões
de suas naturezas-mortas apareciam sobrepostas por um traçado de linhas retas e de ângu-
los medidos. A implicação óbvia era que se tratava de obras estruturadas segundo algu-
ma form a de cálculo matemático, Em um número publicado havia pouco mais de um ano
(L'Esprit Nouveau, ni! 5, fevereiro de 1921), no interior de um longo ensaio de Jeanneret inti-
tulado "Linhas reguladoras", uma ilustração similar [21 ] retratava dois exemplos de
arquitetura clássica, cada qual sobreposto por uma série de linhas semelhantes. Essas ilus-
tra ões paralelas dão forma gráfica a u ma postulação que, na época, aparecia repe ti-
damente nos escritos de Jeanneret e d e O zenfant: a "ordem" qu e exaltavam era a
n:1esma orde1n que sustentava a arquitetura clássica. O que reivindicavam para su as pin-
turas, portanto, não era a idéia de constituírem formas mais elaboradas do Cubismo, mas
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23. L'Esprit Nozwenu , n 1, pp . 43 e 44, 1920. Reimpre so por Da Capo Press, 1968, Nova York.
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li faut tendre à l'établis,ernent de standarts pour affronter Le stan<lart e!it une néressitP.
le probleme de la perfution. Le standart s'établit surdes bases rertain s, 11011 pas arbi
Le Parthénon est un produit ele sélection appliquée à un trairement, mais nvec la sécuriLé dcs ch0ses n10Liv(-•es et, d'une
standart établi. Dcpuis déjà un siéclc le temple grac était logique contrlllée par l'expérimentation.
orgnnisé dans tous ses élémcnls. Tou� les hommes ont mêmc organisme, mêmes fonclions.
Lorsqu'un standart est é·tubli, le jeu do la comurrence irn Tous les hommcs ont mêmes bf'soins.
médiate ct violente s'cxcr,,c. C'est le match; pour gagner, il Le •ontrat social qui évolue à tra,·ers les Oges détermine des
faut faire mieux que l'adversairc dans toutes les parlies, dans la classes, des fonrtions, des besoins sto ndarts donnant des pro
ligne d'ensemble cL dans lous les <létails. C'est alars l'étude uits d'usage standart.
poussée dcs parties. Progrés. La maison est un produit nêc<"ssaire à Phomme.
Cfi<hi tu l·1 l'it .Julomobilt Jlnuu.:RT, 1907. ÜI l ,A(; 1', (,' ((111(/-.'t•/Hlfl ] 02 J .
24. L'Esprit Nouveau, nQ 10, pp. 1140-1, 1921. Reimpresso por Da Capo Press, 1968, ova York.