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CAPÍTULO 1

"ESSA LIBERDADE E ESSA ORD EM" : A ARTE NA


FRA NÇ A APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
David Batchelor

Introdução
o iní io de 1926, O nascimento de Vêl!us, pintado por Alexandre Caba nel em 1863,
fo i depositado nos porões do Musé du Luxembourg, juntamente com. 180 ou tras
pinturas acadêmicas do século XIX e in ício do século xx, sob a ale gação de que
"ocupavam esp a o demais para seu valor pictórico" (ci tado em C Green, Cubism and
its Enel/lies, p. 131). Seus lu gares na principais galerias do museu, ao lado do gue
restara da cole ão acad êmica pertencente ao Estado fran ês, eriam pre nchidos com
obras de Monet, Renoir, Van Gogh, Degas, Matisse, Bonnard e outro artistas ligados
ao mo imento moderno. Assim, obras assoc iadas a interesses n ão ofi iais e
antiaca d êmico , do Impressionismo ao Fauvismo, foram incorporadas ao panteão da
arte oficialmente aprovada n a Fran a.
Ao admitir a arte não acadêmica no Lu embourg, os curadores da arte ofici al pro-
vavelmente não faziam mai que reconhecer simbólica e tardiamente o fa to de que a for-
ma ão e os valores acadêmi os haviam-se tornado amplamente irrelevantes no mu ndo
c n temporâneo e no mundo d a arte con temporânea - no ápic de um processo qu se
·• iciara da metade para o final do século XIX. Em pou as palavra , as exposi ões anuais
oficiai , ou Salõe , haviam sido deslo adas de sua po i ão omo centros econômicos e 1-
turais da arte por diversas for as, incluindo o de envolvim n to d e uma rede substan ial
,. de marcl1a11ds e colecionador s independentes em Paris. Sabemos (a partir de M. Gee, Den-
lers, Critics and Collectors of Modem Painting ) que esse mercado tornou-se a arena prin-
cipal onde a arte não acadêmica era exibida, comprada e vendida. ntes e d pois d a Pri-
meira Guerra Mundial, esse mercado expandiu -se largamente, a ponto d e ter tornado
quase de necessário a um artista submeter suas obras a um do Salões anuais, se pud s-
se garantir exposi õe individuais regulares em uma galeria comercial de renome. o
anos 20, dependendo do status d a galeria, tais exposições h aviam-se tornado mais aptas
d o que os Salões oficiais a gerar renda para os artistas e atrair a aten ão da crítica.
Mas i so não ignifica que - não havendo um a corrente principal aca dêmi a ( m
relação à qual os artistas ind ependente pudessem e posi ionar omo oposi ão críti ca)
- a arte moderna e tenha de envolvido livremente e sem d isputas ou di isões. Ao con-
trário: as divisões tornaram-se, na verdade, mais agudas no período entre as duas guer-
ra . A d iferença é que elas o arriam interior111cHte à série de obras que frouxamente se
agrupavam sob a , gide da arte moderna ou independente. A história desse período é, até
certo pon to, a história de grupos d e interesses competindo pelo tatus e pelo significado
da história da arte - tanto a história recente quanto aquela um pouco anterior - ; pelo
significado da arte moderna; e pela n atureza da vida moderna.
É importante re altar que investigar o caráter e o conteúdo d tais divisões não cons-
titui meramente uma que tão de detalhe sociológico. E as ques tões se encontram, m ais
4 "ESSA LIB ERDADE E ESSA ORDEM" : A ARTE N A FRANÇAAPÓSAPRIMETRAGUERRA MUNDIA L

exatamente, no terreno do sign ificado em arte. Por exemplo, da mesma forma que o cará-
ter e o valor de Oly111pia de 1863, de Édouard Manet, foram estabelecidos, em parte, por
sua diferenciação consciente em relação a modelos de competência acadêmica personi-
ficados em obras como O nascimento de Vênus, de Cabanel, poderíamos esperar que
obras do período do entre-guerras se engajassem em proce sos similares de contraposição
a paradigmas de gosto e competência artística mais estabelecidos ou rivais. Em grande
parte, é por esse pro esso de associação e dissociação que as obras de arte adquirem signi-
ficado, ou que significados são associad os às obras de arte. Em outras palavras, um aspec-
to fundamental do significado, ou do caráter expressivo, das obras de arte é estabeleci-
do pelo seu posicionamento d entro d e uma rede de alterna tivas.
Um exemplo pode esclarecer esse ponto. O caráter expressivo de uma linha ondu-
lad a, como a figura A, é em si indeterminado. Parece bastante sem sen tido perguntar:
"Isso expressa ordem ou caos?" . No entanto, se ela é colocada ao lado d e u m ziguezague
irregular como o da figura B, a mesma questão torna-se plausível. Provavelmente respon-
deríamos que a figura A sugere "mais ordem" do que a figura B. Se, contudo, no lu gar
da figura B introdu zíssemos uma linha mais regular, a figura C, e fizéssemos a mesma
pergunta, veríamos provavelmente a figura C como a que expressa mais ordem. Isso quer
dizer que um contexto de alternativas diferente irá alterar provavelmente o que perce-
bemos ser um caráter expressivo. Assim, se a figura A é a forma convencional de repre-
sentar o caos, a figura B parecerá um exagero, ao passo que, no contexto em que a figu-
ra B é a norma, a fi gura A aparecerá como um abrandamento.

Figura A

Fi gura B

Figura C

Obras d e arte são, no todo, coisas mais complexas do que linhas onduladas ou
zigu ezagues. Mas será parte do objetivo deste capítulo mostrar como tais exercícios são
relevantes n a investigação do significado na arte em geral e como são úteis para o estu-
do desse período em parti ular.
Considere a seguinte pequena seleção de pinturas produzidas ou exibidas em Paris
por volta de 1921: Os três músicos, de Picasso [1]; A odalisca com culotes verlllelhos, de Matis-
se [2]; Composiçiio em vermelho, amarelo e azu l, de Mondrian [3]; A estrada de Nantes, de Vla-
INTRODUÇÃO 5

2. Henri Matisse, L'Oda lisque à la rnlotte rouge (A odalisca com culotes vermelhos), 1921,
óleo sobre tela, 65 x 90 cm. Musée National d' Art Moderne, Centre Georg s
Pompidou, Paris.© Succession Matisse, Paris e DACS, Londres, 1993.

3. Piet Mondrian, Compositie met rood, gi!el en


blauw (Composição em vermelho, amarelo e azul),
1921, óleo sobre tela, 80 x 50 cm. Haags
Gemeentemuseum, Haia. CE DACS, Londres,
1993.
6 "ESSA LIBERDA DE E ESSA ORDEM" : A ARTE NA FR ANÇA APÓS A PR IMEIRA GUERRA MUNDIAL

4. Maurice Vlaminck, Ln Route de Nantes (A estrada de Nantes ), 1922-23, óleo sobre tela, 55 x 65 cm.
Paradeiro desconhecido. Arquivos Fotográficos, The National Gallery of Art, Washington oc, a
partir de um negativo de Taylor e Dull para Parke-Bernet Galleries Inc. © ADAG P, Paris e DACS,
Londres, 1993.

minck [4]; Natureza-morta com pilha de pratos, de Jeanneret [18]; Os do is polichinelos, de Seve-
rini [5]; e A criança-carburador, de Picabia [6].
Todos esses artistas exp useram mais ou menos regularmente em galerias comerciais
e espaços públicos imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. Suas obras foram
compradas e vendidas por marcha11ds em leilões e d iscutidas e criticadas nos jornais
diários e na imprensa especializada. Ou seja, todos eles trab alharam no âmbito do
mesmo amplo espaço cultural e econômico, ainda que nele não gozassem do mesmo
su cesso crítico e comercial. Tod avia, como pod emos constatar pelos exemplos, esse
espaço ab rigava claramente uma considerável diversidade de obras.
Nem todos os estud iosos do período categorizaram e diferenciaram esse conjunto d e
material da mesma forma . M ais exatamente, a estrutura de diferencia ão era, ela própria,
um motivo de debate e con trovérsias. Mesmo no interior de um grupo de analistas p ró-
cubistas h avia nítidas diferenças de ênfase. Fernand Léger, por exemplo, na época do
Salon des Ind ' penden ts de 1921, reconhecia "três grupos ... os subimpres ioni ta , os
cubistas e os p intores de fim-de-semana" . O pintor cubista menos conhecido André
Lhote detectou qu atro categorias em lugar das três de Léger: "1. academicismo; 2.
impressionismo; 3. n aturalismo construtivo; 4. cubismo" . O crítico Maurice Raynal,
por sua vez, concebia apenas duas tendências distintas, "Realismo e Idealismo"; para
ele a divisão se resumia a uma questão de ser a pinh1ra baseada em uma representação
naturalista de formas observadas (Realismo) ou de o artista "elevar [sua arte] acima da
natureza" para produzir uma composição autônoma "nascida de sua imaginação" (cita-
do em Green, Cubism and its Enemies, pp. 124-5). Essa ú ltima categoria - o Idealismo - ,
INTRODU ÃO 7

5. Gü10 Severini, Les Deux Polic/1ú 1c/les (Os dois polichi11clos), 1922, óleo sobr tela, 92 x 61 cm.
H aag Gemeentemu eum, Haia. © i\ DAG P, Paris e DAC:'i, Lond r s, 1993.
8 "E SA LIBERDADE E ESSA ORDEM" : A.ART E NA rRANÇAAPc'JSA PRIMEIRA GUERRA MUND IAL

l ( NfA T CAR8URATtUR

6. Francis Picabia, L'E11fa11t cnrlmrate11r (A criança-carburador), 1919, óleo, douradura, lápi e pintura metálica em
compen ado, 126 x 101 cm. Acervo do Museu Solomon R. Gugg nheim, Nova York. © ADAC r / Sl'ADEM, Paris e
DACS, Londres, 1993.
O NATURA LI SMO, O CLASSIC ISMO, A ESCOLA DE PA RIS 9

Raynal a ociava à obra dos p intores cubistas. No entanto, um a linha comum per orr
e as ela sificações dos ríticos: tod o admitem uma distin ão fundam ental entre um ter-
reno pré-cubista d a pintura e outro pó -cubista, embora cad a um, provavelmen te, tenh a
fe ito essa distinção com per p ctivas um tan to diferen te .

O Naturalismo, o Classicismo, a Escola de Paris


Os tipos d e diferenciação que acabamos de ver, entre os terrenos pré e pós-cub istas d a
pintu ra, p arecem simplificadore d em ais. Ele tornaram-se as u n to em voga im ed iata-
mente após a guerra - em esp cial, tal ez, para os e critores d e tend ência cubi sta - , quan -
do u ma ampia varied ad e de pinturas na turaiistas ressurgiu em Paris. O retorno a estilos
de pintura m ais onservador s por par te dos an teri ormen te f rw ves Matisse, Vlam inck e
Derain (ver A 111esa de cozi11'1a, de And ré Derain [7]) foi re ebido por esses escritores
como u m retrocesso em relação às conquistas d o Cubi mo pré-g uerra. Além d isso, um
grupo d e ar tistas cuja obra n ão hav ia recebido d estaque antes d a guerra - entre eles De
Segonzac, Utrillo, Kisling e La urencin (ver Natmeza-morta com ovos, de De Segonza c
[19], e A casn Bernot, de Utrillo [8]) - começou , no início dos anos 20, a atrair considerá-
vel aten ção crítica e com ercial.
O rótulo "Escola d e Paris" é geralm ente apli cado a esse agrupamento indefinid o d e
pintore que trabalha am, ne sa época, em um estilo inform al e nahiralista. Na verdade,
o termo fo i concebido somen te no final d os anos 20 e aplicado retrospecti vamen te - e, a
partir daí, de formas d i ersas por vários au tores. No entanto, na metad e da dé ada esse
tipo de pintura estava gozando de extraordinário sucesso comercial, ao passo que as obras
de tendência cubista al ançavam p r ,os comparativam ente muito baixos. Alguns exem-
plos são ilustrativos. Em 1924, Lavatório (1912), de Juan Gris, foi vendido por apenas 330
francos. Ma folie (1911 ), de Picasso, alcançou 6.500 fra ncos posteriormen te no mesmo
a.no, enquanto Bebedores (1910), obra de De Segonzac, foi vendida por m ais de 100 m il fran-
os em 1925. Em 1926, quando o m ercad o p ara obras cubistas havia em geral prosperado,
uma pintura m ais ab trata de Mon drian alcançava apenas o valor de 700 francos. (Green
forn ece m ais d etalhe sobre preços no capíhilo 8 d e seu Cubi 111 and its Enen ries.)
O extraordinário suces o comercial d e arti tas como De Segonza , Vlam inck e Derain
f,>i a ompanhado om a me ma intensid ade pela aclama ão da críti ca . Um d e eu m ais
proeminente e respei tados ad vogados foi o crítico Louis Vau xcelle . Para ele, o trabalho

7. André Derain, Ln Ta/Jlc de rnisi11c


(A 111e n de cozi11hn ), 1921-22,
óleo sobre t la, 59 x 58 cm. Musée
d e l'Orangerie, Cole ão Jean Wal ther
e Paul Gu.illaume, Paris.
Foto: Réunion des Musées
N ationaux Docu mentation
Photographique. © ADAG I', Paris e
DAC, Londre , 1993.
10 " ESSA LlBERDA DE E ESSA ORDEM " : A A RTE NA FRAN A A P S A PRI ME IR A GU ERR A M UNDI AL

8. Mauri ce U trillo, La Maison Bemot (A casa Bemot), 1924, óleo sobre tela, 99 x 146 cm. Musée de
l'Orangerie, Coleção Jean Walther e Paul Guillaume, Paris. Foto: Réunion d e Musé s
Nationau x Documentation Ph otographique. © ADAGr / SPAD EM, Paris e DACS, Lond res, 1993.

desses artistas incorporava um conjunto de virtudes - em particular, o amor e o respei-


to pela natureza e uma abordagem intu itiva e sensual baseada em sen timento, honesti-
dade, franqueza e inocência. A Natureza-morta com ovos d e De Segonzac (e. 1923) [19]
baseia-se claramente na observação; além d isso, seu motivo rústico, as core terra, os tons
escu ros, a superfície e o tratamento pesado eram evocativos de um grupo de naturezas-
mortas rurais e realistas que iam de Courbet a Van Gogh. Juntos, e ses elementos podiam
ser indicadores da dire ão geral sugerida por Vau xcelles. Mas isso não parece razão sufi-
ciente para que Vauxcelles e outros os aclamassem tal como o fizeram. Na verdade, os
au tores deram pe o às suas defesas não tanto por meio da análise de obras individuais,
mas por se posicionarem cuidadosamente dentro de uma rede de oposições estratégicas.
Em particulai~ o valor dessas obras naturalistas era estabelecido à medida que eram
disp ostas em contraste direto com os "excessos" e as "fa lhas" do Cubismo. Para Vau x-
celles, o Cubismo sempre personificara a antítese de tudo o que tinha valor em arte: era
excessivam ente intelectual, frio, calculado, artificial e carente de espontaneidade ou
sentimento. Mais que tudo, parecia rejeitar a natureza:
Mas n ada v álido é criado sem a na tureza. Cria-se apen as com ela. E sem ela, cubista, você ter-
minará apenas com espectros, com fantasmas abstratos, com arabescos bizarros ... ou seja, com
o nada. (Vnu xcell es, citad o em Gree n, C11 bis111111/d its E11c111ics, p. 168 )
Em 1920, Vauxcelles estava ainda alertando para os "perigos do intelectualismo sedutor,
da lógica e da álgebra desenfreadas!" . Assim, em face d e tais calam idades, pinturas
naturalistas como as de De Segonzac ou d e Vlaminck podiam ser vistas como veicula-
doras de calor, intuição, realismo e assim por diante - tudo o que fora negado pelo
Cubismo. Muitos dos comentários da época sobre esses artistas deram menos ênfase ao
natura lismo das obras do que à naturalidade dos temperamentos dos artistas e à sua
maneira extremamente pessoal de abordar o trabalho. De Segonzac " fechou-se em seu
O NATURALISMO, O CLASSICISMO, A ESCOLA DE PARIS 11

naturalismo", dessa forma "manteve-se distante de toda a influência [cubista]", segun-


do o crítico Roger Allard. E o próprio artista assim o afirm a:
No que me concerne, procuro expressar com o melhor de minha aptidão, com todo o m eu
amor, aquilo qu e me é caro: urna paisagem fran cesa, u rna bela m u lh er com um corpo nobre.
As pessoas decidirão mais tarde se isso é arte .. . Acredito muito na obra solitária; o es tado de
1:
,· graça é revelado em contato com a natureza. Um h omem do cam po fran cês d isse-me um dia:
"É estranho corno o m undo se torna burro quando há m u ito ensin amento". (De Segonzac, cita-
do em Green, Cubism al1(/ its En~mies, p. 174)

Examinaremos mais adiante algumas obras d e orienta ão cubista d esse período. Antes de
fazê-lo, é importante notar que havia d iferenças significativas dentro do conjunto de
pinturas natu ralistas produzidas em Paris na épo a. Por exemplo, embora hou vesse o
bastante na Odalisca d e Matisse [2] para agradar aos críticos p ró-naturalistas, ela é, em
quase tod os os aspectos, um tipo de pintura bastante diferente d a que p rodu ziam De
Segonzac ou Vlaminck. Seu tema exótico, as cores vivas, a leveza de retoque e a atenção
ao d ecorativo apon tam p ara u ma d ire ão bastante diversa d aqu ela indicad a pela rustici-
dade p rovinciana d e De Segonzac. Matisse estava longe de ser o único a utilizar u m a téc-
nica vagamente naturalista para retratar cena distan tes e aparentemente n ão realis tas.
Picasso, Derain, Severini, Gris e outros adotaram u ma técnica naturalista, d entro de uma
estrutura perspectiva convencional, na rep resentação d e composições com fi gu ras sin-
gulares ou múltiplas. A maioria deles retratava não um p resente rural m as imagens de um
passado clássico. Esse conjunto de pin turas também lidava mais com temas gerais da exis-
tência humana do que com aqueles específicos ao tempo, lugar e personalid ade.

9. Pablo Picasso, Tra is Fe111mes à la


sourcc (Três mulheres na fonte), 1921,
óleo sobre tela, 204 x 174 cm .
Acervo, The Museum of Modem
Art, Nova York; doação do Sr. e
Sra. Allan D. Emil.
© DACS, Lon dres, 1993.
12 " ESSA LIBERDADE E ESSA ORDEM" : A ARTE NA FRAN A APÓS A P RIME IRA G UERRA MUN DIAL

10. Gino Severini, Ma tem ità


(Maternida1fr ), 1916, óleo sobr tela,
92 x 65 cm . Coleção Jeanne Severin i.
Foto: Girau d on . © ADAC P, Paris e
DACS, Londres, 1993.

Discutiremos em brev algumas das explicações que foram dadas para o surgimen-
to de temas expres amente clássicos técnica naturalistas nos círculos não acadêmicos.
Por enquan to, vale a pena observar algumas característica das obras desse tipo. O tema
d a maternidade tornou- e um dos mais comuns n a rep resentação d as mulheres, fre-
qüentemente associado à imagem d a figura feminina em im ples trajes hele1ústicos,
carregando produtos fre cos d a colheita ou água retirada da fonte. Em todos se a os,
a m ulher é representada primordialmente como a imagem d a fertilidade - a portadora
da nova vida e ustento, seja ele animal, vegetal ou mineral. (As pintura de Matisse cons-
tituem uma notável exceção.) Nos quadros de Pica o, ela é usualmente uma figura
monum ental num ve tido clássico d e algodão (ver Três mui/zeres 11a fo nte [9] e o desenho
sem título de c. 1922 [611). A representação da maternidade de Severini, Matemità [10], um
p ouco anterior, usa u m traje m ais modern o, m a eu natu ralismo um tanto suave mais
evoca um tema abstrato, universal, do que oferece uma ilustração específica da criação
de filh os. O amplo Carregador de cesta de Braque [11], consideravelmente menos na tura-
lista, é ain da mais d á sico e monumental em sua orientação.
O tema preferido p ara representar a fig ura masculina era, no mínimo, tão generali-
zante e his toricizad o quanto no tratamen to da mulher. Picasso, Gris, Derain, Severini,
Metzinger e outros, todos retrataram a figura m ascu lin a n os trajes da con1111edia dell 'arte
italiana (ver o Arlequim en tado, de Picasso [1 2], e O do is polichinelos, de Severini [51).
Todas essas obras estão r p leta de referências consciente a temas hi tóricos e fon tes d a
história da arte. O Arlequú11 entado de Pica o foi até mesmo execu tado em têmpera, uma
técnica tra dicional italiana que havia entrado em declínio com o de envolvimento da pin -
tura a óleo. Era como e o objeti o principal fo se retirar da obra qualquer referência
específica ao mundo mod erno e invocar, em vez disso, aquele lado da arte ligado à tra-
di ão e à continuidade. O naturalismo expres o nessas pintura parece inteiramente
O NATURALI SMO, O CLASSICISMO, A ESCOLA DE PAR IS 13

11 . Georges Braque, Le Canéplwre


(O carregador de cesta ), 1922, óleo sobre
tela, 180 x 73 cm. Musée N ational
d' Art Moderne, Centre Georges
Pompidou, Paris. © ADAG P, Paris e
DACS, Londres, 1993.

des tituído do realismo contemporâneo. Parece ter sido utilizado para fins bastante
distintos daquele do naturalismo de Vlaminck, De Segonzac e seu círculo. Detalhes
locais, simplicidade rústica e sua associa ão com objetivos diretos e descompli ados por
parte do artista são substituídos por referên ias à história d a arte e pela citação de fon-
te d á ica , alegorias, artifícios con ciente e a oda õe com a erudição e a ofistica ão.
14 "ESA LIBERDADE E ESSA ORDEM": A ARTE AFRAN A APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

12. Pablo Picas o, Arlequin as is (Arlequim sentado ), 1923, têmp ra sobr tela, 130 x 98 cm. Õffentliche
Kun tsammlung, Kunstmuseum Ba el, G1967.9. Foto: Colorphoto Hinz. © DACS, Londres, 1993.
O NATURA L! MO, O CLASSICISMO, A E COLA DE PARIS 15

Com o risco da simplificação excessiva se p ode dizer que, enquanto para um grupo de
artista o naturalismo é usado p ara invo ar os valore da natureza, para outro é mobili-
zado em favor de uma reflexão sobre a cultura.
A que tão da pintura n aturalista nesse período compli ar- e-ia mais tarde pelo fa to
de que alguns dos pintores classici tas aparentemente mais fervorosos continuaram a tra-
balhar também com estilos abertamente cubistas. A ampla tela de Pica so Os três m1ísi-
co [1], por exemplo, trata o mesmo tema da conm1edia dell'arte d maneira expli citamente
cubista, como em seu Arlequim de 1915 [13]. Em ambas as pinturas, toda a modelagem
e a perspe tiva são eliminada , e figuras e quemáticas ão dispostas em um espaço
pouco profundo de planos aparentemente sobrepostos ou interseccionados, com cores
chapadas. Um uso similar de urn espa~o raso com blocos de cores chapadas é evidente

13. Pablo Picas o, Arlequin (Arlequim),


1915, óleo sobre tela, 184 x 105 cm.
A ervo, The Museum of Modem Art,
Nova York; adquirido através do Lillie
P Bliss Beque t. © DACS, Londres, 1993.
16 "ESSA LIBERDADE E ESSA ORDEM" A ARTE NA FRAN A APÓS A PRMElRA GUERRA MU DIAL

15. Jean-Baptiste Camille Corot, Rêve11 e à la 1111mdoli11e


(S on/iadora co11111111 ba11doli111), 1860-65, óleo sobre tela,
51 x 37 cm. Th e Saint Louis Art Museum, Mi souri,
31:1988.
14. Jua n Gris, La Fc111111e à la ma11doli11e (d 'aprcs Corot)
(A 11111/l,er com 11111 l>a11do/i111 [sobre Corot]), 1916, óleo
obr tela, 92 x 60 cm . Óffen tliche Kunstsammlu ng,
} unstmuseum Base!.

no Carregador de cesta de Braque [11 ], embora o resultado seja uma figura muito menos
abstrata do que em Picasso. Gris também bus ou combinar sua técnica cubista com
temas explicitamente históricos, ma produzindo, ne e ca o, atualiza ões ubista de
algumas pinturas hi tóricas. Seu A mulher corn um bn!ldolim de 1916 [14] é uma releitura
do quadro de Corot, Sollhadora com um bandolim [15], de e. 1865, cujos principais elementos
da composi ão foram e quematizados, arranjados como formas com cores chapadas e
combinados com um tanto de detalh gráficos residuais.
Portanto, me mo dentro do conjunto da pintura naturalista produzida durante e após
a guerra, há ~inais de d iversidade e, em alguns casos, incompatibilidade direta de objetivos
e interesses. Mas a que tão permanece: como podemos interpretar esse aparente abandono
do radicalismo da arte não acadêmica do período pré-guerra em favor de formas mais con-
vencionais der presen ta ão? No últimos anos, vários historiadores da arte argumentaram
que as razões para e sas mudanças residem fora do domínio imediato da arte e no interior
dos desenvolvimentos culturai mais amplos precipitados pelos ef itos da guerra de 1914-18.
É difícil imaginar que evento de tamanho significado global como a Primeira Guerra Mun-
dial e a Revolução de Outubro na Rússia não afetariam a perspectiva dos artistas - tal como
afetaram a de outras pes oas. Mas talvez seja uma outra questão indicar exa tamente a
forma pela qual uma r spo ta a es es acontecimentos foi incorporada em obra de arte
específicas. Houve, em dúvida, maneiras bastante práticas pelas quais a guerra af tou o
O NATURALISMO, O C LASS I ISMO, A ESC LA DE PA RIS 17

desenvolvimento da arte moderna. Por exemplo, a economia parisiense ligada à arte foi efe-
tivamente arruinada nesse período: alguns artistas, incluindo Braque e Léger, foram con-
vocados; alguns morreram; outros emigraram; algtu1S permaneceram em Paris como estran-
g iro não-combatentes. As expo i õ s, incluindo os Salões anuai , foram canceladas; o
comércio estancou- e; e o marclwnd independente mais importante do período pré-guerra
- o alemão Daniel-Henry Kahnweiler - teve seu estoque in teiro de obras confiscado e foi
impedido de conduzir seus negócios. A sim, como seria de esperar, o período após a guer-
ra cara terizou-se pela confusão e pela falta de coe ão, enquanto os arti tas, 111nrcl11mds, crí-
ticos e outros buscavam reagrupar-se, recuperar o ímpeto perdido, retomar as linh as de
desenvolvimento e restabelecer sua posição em relação às correntes da arte pré-gu erra.
Em i, e se fato não diz muito sobre tipos específico de pintura, apenas delineia um
conjunto aproximado de rela ões sociais dentro das quais a pinturas eram produzidas e vei-
culadas. O historiador da arte Kenneth Silver argumen tou que os espectros da guerra e da
revolu ão exerceram uma influência bem mais direta e visível no desenvolvimen to da arte
ne se período (K. Sil er, Esprit de Corps ). Ele apontou a similaridade entre a retórica dos ana-
listas políticos de direita na França e a de vários artistas, críticos e teórico da cultura. Em par-
ticular, notou como o conjunto de termos e concepções que su stentavam as idéias de "cha-
mado à ordem" e "re onstrução" na França do pós-guerra ecoavam nos escritos e declarações
dos artistas e incorp oravam-se ao estilos e temas de ua arte. O imaginário em torno do
"chamado à ordem" foi, ele próprio, riado a partir do estabelecimento de oposiçõe entre
as supostas virtudes do período pós-guerra e a alegada decadência do período que a ante-
cedeu, atribuindo-se à própria guerra o papel de precipitadora das m udanças. Inicialmen-
te, a Fran a do pré-guerra foi representada como mergulhada em decadência moral e espi-
ritual: o país e seu povo eram frívolo , fracos, desorganizados e aprichosos. En tão, com a
interven ão da guerra, ela t ria sido purgada de sas afli ões, para ressurgir fiel ao seu ver-
dadeiro eu: di cipli.nado, forte, organizado e esclarecido. a retórica cultural da reconstru ão,
essa última série de termos foi agrupada sob um único título unificador - o Classici mo. A
tradição clássica, argumen tava-se, era a verdadeira tradi ão da ultura francesa - tendo a
na ão recebido, porém, vária influências estrangeiras, consideradas em sua maioria de ori-
gem germânica. Portanto, a retórica do Classici mo era, ao menos em um a pecto, o eí u-
lo para uma ideologia nacionalista levem ente v lada. Tudo claro, até aqui. Mas as similari-
dades q ue Silver apontou entre ar tórica política e a estética do período foram convertidas
or alguns autores em tipos de relação menos flexívei . Supôs-se, e em algun casos defen-
deu- e explicitamente, que forma e témicas de pintura mais tradicionais, mais "conserva-
doras", seriam efeitos diretos de uma cultura política mais autoritária, mais "conservadora"
(ver, por exemplo, B. Buchloh, "Figures of Authority, Ciphers of R gr ssion"). Essa me ma
uposi ão ba eava-se freqüentemente m um a outra anterior a ela, qual seja, o lugar-comum
de que formas de "radicali mo" artístico (um termo geralmente u tilizado para inovação téc-
nica) seriam, em i, indicadoras de "radicalismo" político. Seria então sensato afirmar que
todo o conjun to de obras om orienta ão la icista desse período onstihli uma prova irre-
futável de que os artistas internalizaram idéia políticas reacionárias? Trata-se portanto de
pin turas reacionárias? A ampla m udan a na direção de uma pintura mais" onservadora",
mais naturalista, eria uma correspondência direta da atmosfera política mais "con erva-
dora" na Fran a do pós-guerra? Que tões des e gênero me parecem importantes e vêm
sendo apresentada com freqüência nos anos re ente . Elas procuram tratar de uma que tão
básica sobre a rela ão da arte com as forças políticas e ideológicas mais amplas atuante em
uma cultura. Indagam sobre a relação da política com a e tética.
Tão importante quanto fazer tais perguntas é hesitar an te de re pondê-la , e também
observar os termos em que são colocadas. De eríamos notar que ela geralmente lidam om
amplas generaliza 'Õe , tratam um exten o conjunto de obras individuais como se fossem
todas idênticas e, acima de tudo, fazem julgamentos antecipadamente à observa ão da
evidências da obra. Embora a questão das rela õe entre a arte e a política s ja primordial
neste capítulo, quero resistir à po sibilidade de reduzir e sa questão a uma fórmula, a um
tipo de te te de toma sol por meio do qual se possa entender que a arte, em razão de algu-
18 "ESSA LIBE RDADE E ESSA ORDEM": A ARTE N A FRA ÇA APÓS A PRIMEIR A GUERRA M UNDIAL

mas características gerais, deva apresentar um certo viés político. Não estou convencido de
que as questões relativas à arte devam er resolvidas dessa forma. Seria injustificado admi-
tir, simplesmente porque um conjunto de pinturas trata um tema básico no mesmo estilo
geral, que elas sejam, de alguma forma significativa, similares como obras de arte. O que
podemos dizer, por exemplo, sobre uma cena da conm zedia dell'arte de Severini não será
necessariamente aplicável a urna pintura de Picasso sobre o mesmo terna. Ao contrário, é
preciso observar os detalhes particulares de cada obra e di cutir o tema caso por caso.

Grupos, revistas, programas


Até aqui, consideramos apenas obras produzidas por indivíduos trabalhando aproxi-
madamente sob as mesmas condições culturais e econômicas na Paris do pós-guerra. Tra-
tar todas as obras dessa maneira seria ignorar um traço característico de grande parte da
produção artística do período - o de que muito artistas se organizaram em grupos
definidos e produziram um conjunto de trabalhos textuais, pictóricos e organizacionais
em nome desses grupos.
De fa to, parte da história da arte moderna é a hi tória de artistas se organizando em
grupos. Quando os artistas e outros membros da intelligentsia cultural começaram a iden-
tificar seus interesses como distintos, ou mesmo opostos, aos da academia ou da arte ofi-
cial, eles foram forçado a buscar uma estrutura independente que viabilizasse a realização
de tais interesses. Essa estrutura deveria prover um espaço concreto para que os artistas
pudessem divulgar suas obras mas, também, e igualmente importante, um espaço.,inte-
lectual para que os interesses do grupo se desenvolvessem e fossem defendidos. O grupo
impressionista é o primeiro exemplo óbvio dessa tendência, embora haja a opinião de que
a mostra independente de Courbet, centrada no Realismo, na Exposição Universal de
Paris em 1855, tenha sido o primeiro evento desse tipo. Demonstrações conscientes de
independência, de uma forma ou de outra, são uma característica dos principais momen-
tos da arte do final do século , IX e início do sé ulo xx. Uma lista de ses momentos inclui-
ria o grupo de Pont Aven, formado na Bretanha em torno de Gauguin no final dos anos de
1880, a Sala Fauve no Salon d' Automne de 1905, a exposição do grupo Die Brücke na fábri-
ca Seifert em Dresden no decorrer de 1906, as exposições do grupo Blaue Reiter de 1911 e
1912 em Munique, a Sala Cubista no Salon des Indépendents de 1911 e as atividades futu-
ristas em Milão desde cerca de 1910. Ademais, uma vez que organizações desse tipo setor-
naram um pré-requisito da arte de vanguarda, elas tenderam a constituir, em si, um foco
de maior atenção. Ensaios e manifestos declarando os objetivos dos grupos e pro laman-
do a adesão de várias personalidades caracterizavam cada vez mais esse tipo de ativida-
de, a ponto de, no caso dos futuristas, tornarem-se um dos principais campos de produção
para o grupo.
Deve-se notar que muitos desses grupos atraíam não apenas artistas, mas um amplo
círculo de pessoas envolvidas de alguma forma com a produção cultural. Poetas, escri-
tores, críticos, músicos e arquitetos, todos eles, em um ou outro período, compuseram a
maioria dessas adesões. O período do entre-guerras é caracterizado não apenas pela pro-
liferação desses grupos de artistas, mas também pelo elevado destaque que tais grupos
adquiriram. Dava-se muita atenção ao desenvolvimento do lado teórico do trabalho
dos grupos, e também ao traçado de estratégias de autopromoção. Um grupo, tipica-
men te, tomaria certas ini iativas, que incluíam: dar-se um nome (que, como veremos,
com freqüência carregava um significado considerável); publicar um manifesto de obje-
tivos e interesses; produzir uma revista; organizar encontros, conferências, exposições ou
eventos; e, em alguns casos, fazer todo o p ossível para sabotar o trabalho de outros. Os
grupos almejavam fazer muito mais do que simplesmente promover um novo estilo ou
técnica. Os três grupos que examinaremos adiante (em torno do Purismo, Dadá e Sur-
realismo), e muitos outros similares, viam sua obra como ativamente engajada em lidar
com os problemas de um mundo em dramática mudança.
O PURISMO E L'ESPRIT N OU VEA U 19

É nesse ponto que as similaridades começam a dar lugar às diferenças, e a diferenças


come ama gerar complica ões. Embora todo es es grupos se consideras em significati-
vamente envolvidos em proce os substanciais de mudança, havia pouco con enso sobre
o tipo de mudança qu estavam experimentando ou que de eria er encorajado; tampouco
havia acordo sobre o papel que os artistas poderiam, ou deveriam, assumir na realização
de tais mudanças. Alguns se viam como profetas da transformação, outros como analistas,
ou agitadores, outros ainda como observadores. Por meio das revistas e dos manifestos
e a pretensões e proje ões eram apresentadas, debatidas, respon didas e desenvolvidas.
É o caso de afirmar que a importância de sas revistas e das formas de atividade de seus par-
ticipante era, com freqüência, equivalente ou à vezes até maior que a própria arte pro-
duzida em nome do grupo. Por isso mesmo, é provável que, se olharmos para a arte inde-
pendentemente do 1 que mais amplo de atividad s, orremos o risco de desenvolver uma
compre nsão m uito restrita do que essa arte possa ter significado.
Deve haver muitas razõe para que um determinado grupo de artistas, poe tas, escri-
tores e outros se organizassem dessa forma, E diferentes indivíduos devem ter sido
atraídos para cada grupo por diferentes motivos. Sem dúvida, o propósito m ais freqüente
era akan ar uma po ição p ública ex ternamente e em oposi ão às formas conven cionais
de legitima ão intele tual e institucional. A adesão a um grupo deve também ter servi-
do a arti tas pau o conhecidos como uma forma de tornar- e vi íveis aos curad or s, crí-
ticos et ., quando do contrário teriam permane ido na ob uridade. Em relação ao
anos 20, o que se afigura é que a formação de grupos independentes radicai servia a
ambos os propósitos: da mesma forma que repre entava um posicionamento fora das
normas e dos padrões de legitima ão estabelecidos, podia também representar um
degrau no alcance de uma carreira artística mais ortodoxa.

O Purismo e L'Esprit Nouveau


Em Paris, em março de 1920, Charle -Édouard Jeanneret e Amédée Ozenfant, os artistas
que juntos haviam fundado o grupo purista, publicaram seu manifesto, "Purismo", na
r vis ta do grupo, L'Esprít Nou veau ("O e pírito novo"). O manifesto de larava:
A lógica, nascida de constantes humanas e sem a qual nada é humano, é um instrumen to de
l controle e, para aquele que é inventivo, um guia para a descoberta; ela corrige e controla a mar-
cha - à vezes caprich osa - da intui ão, e permite que prossigamos om certeza .. .
Um dos mais altos deleites d a mente h umana é perc ber a ordem da natureza e medir a s ua
própria participação n o arranjo d as coi as; a obra de arte nos par ce tratar-se de um trabalho
de alocar coisas m ordem, uma obra-prima da ordem humana .. .
Pois bem, uma lei nada mais é q ue a verificação de uma ordem. Em suma, uma obra de ar te
deve induzir a sensa ão de ordem ma temática, e os meios de induzir e sa ordem ma temática
devem ser buscados entre os meio uni ersais. ( .-E. Jeanneret e . Ozentant, "Pu rism", pp. 59, 61)
L'Esprit Nouveau teve 28 números publi ado entre 1920 e 1925, continha em média mais
de em páginas por número, era produzida em papel de boa qu alidade e incluía repro-
du ões em cores. Compunha-se de longos ensaios, do tipo acadêmico, sobre um amplo
leque de temas, intercalados om reproduções fotográficas e anúncios. O projeto da
capa e a diagram a ão do miolo permaneceram inalterado durante os cinco anos de
publi a ão. Cada capa li tava o conteúdo do número e o título gerai das se õe :
"estética experimental, pintura, e cultura, arquitetura, literatura, música, engenharia
estéti a, teatro, espe táculos musicai , cinema, irco, esporte, moda, livros, móveis e esté-
tica da vida moderna". No todo, o tamanho, a diagrama ão e a coerência estética da re-
vista reforçavam graficamente a implica ão contida no tom in isivo do manif sto: o
Puri mo era um projeto sério, elaborado e ambi io o [16].
Ape ar da quantidade considerável de material produzido por olaboradore , a re ista
permaneceu, fundamentalmente, o veículo de seu dois editores. Jeanneret, o pintor e escri-
20 "ESSA LIBERDADE E ESSA O RD EM" : A ARTE NA FRANÇA A P S A PRIM EIRA GUERRA MU N DIAL

16. Capa de L'Esprit No uveau,


nQ1, 1920. Reimpresso por
Da Capo Press, 1968,
No a York.

REVUE IN T ERNAT I ONALE D'ESTHÉT IQUE


PARAIS SANT l f /5 DE CHAOU MOIS DIREC TEUR : PA UL OE RM{E.
E:JTHlrlQU E EXPlRIMCNTAlE
PillVTUf(E SCULPT'.IRE ,MCHITECTL'FE
LITTll'fA TUM MUSIQUE
ESTHE.T/QUE 0[ l 'IIVG~MIEUR
lE TlltATRE l [ M USl·'·HA LL l [ CtNl MA LE CIRQUE 1...rs SPorr:;
L E COSTUM E LE UVR E Lf MEUBLE
ESTHErlQUE DE LA V/E M0DOt/VE

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J,; 1 ,\l1 1, iq11t• J'., t,,u ,1i-.1•,
L ;i li l l ,·r:1 l 11r,· d,· l 1n g-uc t'"l" ' i-,'li" I,·
lli •r11·.1· l' n 1 , 1f; 11 r ,; ', 'l d'.0 11 j,11 11"d ' li ui,
I.,· d,·11x r u ul ,·-.: \ j,.,nl(- fl l l Hótlll•,11 1J \
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tor, é m ais conhecid o como Le Corbusier - pseudônimo que ad otara no início dos an o 20,
em seu trab alho como jornalista e arquite to. Ozenfant, também p intor e escritor, h avia
an teriormente editado uma pequena revista entre 1915 e 1916, intitulada L'Élan. Sua primeira
contribuição foi p roduzir uma expo ição e um livreto que a acompanhava, intitulado Apres
/e Cubis111e, p ublicado em novembro de 1918, poucos dias após a assinatura do armistício. Sua
colaboração só terminou, efetivamente, com a extinção de L'Esprit Nouveau, em 1925.
N o mesmo ano em que seu manifesto "Purismo" foi publicad o em L'Esprit Nou veau,
Ozen fant e Jeanneret p intaram uma série de n aturezas-mortas (p or exemplo, figs . 17 e 18).
Eles viam, claramente, su a pintura e su a literatura como componentes susten tadoras d o
mesmo projeto. A seção de abertura d o m anifesto d á ênfase considerável a termos com o
"lógica", "ordem" (m encionado sete vezes) e "con trole". Em ou tra p arte d o texto, descre-
vem sua pin tura como "u ma associação de elem entos purificados, relacionados e arquite-
O PURISMO E L'ESPRIT NO U\'EA L/ 21

17. Amédée Ozenfant, Flnco11, guitnrre, verre et boutei/le ii ln tnble verte (Frasco, violão, copo e garrafa
e111mesa verde), 1920, óleo sobre tela, 81 x 101 cm. Kunstmuseum Base!, La Roche Bequest.
© DACS, Londres, 1993.

taaos" (p. 67). O Purismo, reconhecem, "oferece uma arte possivelmente severa, mas que
se' d irige às faculdades elevadas da mente" (p. 66). A ênfase em todo o texto recai na
racionalidade, na clareza de concepção e em uma execu ão precisa. E, assim como já foi clito
sobre outras pinturas do período, essas qualidades são enfatizadas não na obra em si, mas
por meio de um cuidadoso posicionamento desta contra outras tendências da arte francesa.
Uma vez estabelecido que o inhlito de seu trabalho é "controlar e corrigir" as tendências
cap richosas da intuição, passam a apresentar a arte purista d a "concep ão" contra "aque-
las ar tes cuja única ambi ão é agradar os sentidos" (p. 66). Obviamente, estavam se refe-
rindo à série de pinturas que Vauxcelles e outros buscavam promover, utilizando um
conjunto d e termos similares aos dos puristas, mas dando-lhes o valor exatamente oposto.
Portanto, seria ap ropriado comparar a tela Natureza-morta com pilha de pratos [18], pro-
duzida por Jeanneret em 1920, com a Natureza-morta com ovos [19], criada por De Segon-
zac por volta d e 1923. Embora o trabalho de Jeanneret tenha dimensões significativamente
maiores que o de De Segonzac (o primeiro, com 81 x 100 cm, e o segundo, com 59 x 38 cm),
eles compartilham, claramente, certas características básicas. Ambos retratam um conjun-
to de utensílios familiar s, corriqueiros, arranjados sobre uma superfície, provavelmen-
te o tampo d e uma mesa. Os objetos em cada tela ocupam a área central do retângulo
pictórico, enquanto a área superior dá lugar a u m espaço mais profundo, indefinid o. E há
alguma similaridade na gama de tons terra utilizados pelos dois artistas. As diferenças
mais claras entre as duas obras estão no tratamento - há um grau muito maior d e acaba-
mento na de Jeann eret - e no tipo de projeção espacial utilizado. Embora nenhum dos dois
artistas trabalhe com uma estmtura perspectiva defirlida (apenas Jeanneret indica algum
22 "ESSA U BERDADE E ESSA ORDEM": AARTE NAFRA T AAPÓSAPRIMEIRAGUERRAMUNDIAL

18. Charles-Édouard Jeanner t, Nnturc morte à ln pile d'ns iettcs (Nnt11 rc::n-111ortn com pilhn de pmtos), 1920, óleo
sobr tela, 81 x 100 cm. Ôffentliche Kunstsammlun g, Kuns tm useum Base!. Foto: Colorphoto Hinz.
© DACS, Londres, 1993.

espaço profundo específico, no canto esquerdo superior do quadro), os objetos n a pintu-


ra de De Segonzac estão dispostos obliquamente em relação ao plano d a composição, ao
passo que na de Jeanneret os objetos são "achatados" contra o plano do quadro - suas
su perfícies verticais e horizontais são mo tradas simultaneamen te no me mo p lano.
Além disso, h á um caráter bem mais formal na tela de Jeanneret: a verticai e as hori-
zontais dominam toda a composi ão; a linha que r presenta a borda da me a estende-se
qu ase exatamente no centro do quad ro, e todo os objetos conformam-se a e sa estrutu-
ra; o detalhe específico é eliminado, uma vez que as superfície planas são pintadas em
cores chapadas, uniformes, e a modelag m é esquematizada.
Essas diferenças de detalhe foram istas na época como altamente ignificativas .
Cada uma elas e taria invocando um diferente conjunto de pontos de referência na
história da arte e diferentes suposiçõe sobre como uma pintura é feita e quais recursos
intelectuais e culturais a constituem. Isso servia para situar as obras em trajetórias inte-
lectuais e artí ticas distintas, mais obviamente no que se referia ao pas ado recente. A divi-
são da arte efetuada por Raynal, entr tendência "realistas" e "idealistas", é um exemplo
de como esta obras eram vistas como personificações de posturas totalm nte eparadas
e antagônicas. Os puri tas desenvolveram uma linha de raciocínio s melhante.
O PUR ISMO E LESPRIT NOUVEA U 23

19. André Dunoyer d e Segonzac, N11t11rc morte m1x ceufs (N11t11rez11-mort11 com ovos ), e.
óleo obre tela, 59 x 38 m. Courtauld Insti tute Galleries, Londres. © DACS, Londr s, 1993.
24 " ESSA LIBERDADE E ESSA ORDEM": A ARTE NA FRAN A APÓS A PR IME IRA GUERRA MUNDIA L

De várias maneiras, a natur za-morta d Jeanner t faz referências laras à pintura


cubista do pré-guerra. lsso se relaciona mais com como os objetos são representado do que
com quai objeto são incluídos no quadro. Entretanto, em aspecto importantes, e sa obra
difere dos modelos cubista do pré-guerra . Embora os objetos sejam e quematizados e pla-
nos, cada um deles permanece autocontido e retratado sem ambigüidades: eles dif ren-
ciam-se claramente, tanto entre si como em rela ão ao espaço que habitam. A esquemati-
za ão jamais se equipara à quase diagramá tica codificação de partes alcançada na obra de
Braque ou de Picasso. Tampouco encontramo aqui a ambigüidade deliberada ou o para-
doxo freqüentemente mostrado pelas primeiras pinturas e colag ns cubi tas.
Assim, a pintura de Jeanneret faz o que qualquer obra de arte candidata a "moder-
na" deve fazer. Ela incorpora uma série de indicadores que ser em, simultaneamente,
para associá-la com e dissociá-la de um a série de precursores e alternativa . Em primei-
ro lugar, ela se di tingue d a pintura naturalista corrente ao in ocar o legado do Cubismo.
Em segundo, diferencia-se do Cubismo do pré-guerra, pretendendo er ista como algo
que, de certa forma, progrediu em relação àquele. É esse segundo a pecto da obra que
necessita agora ser examinado.
É fácil afirmar q ue estas são naturezas-mortas de um cubismo "organizado", e que
portanto correspondem à idéia de ordem enalte id a no m anifesto purista. Mas, para

J EAS:<ERET l .",\"'J' lt. 1/'J' J)J,_'.,; C0.1/J /J .'\T 1/Jll.'S .\JP..l/f."., IJ/ . /IU JSOl: f .
.'I CU .,. 1 1'0/fTJ: ,\, 1/ S T- I H •.'.\' I ., ( l 'mr 1·11 /,Ir dr 1'11rtic!t:).

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lt nut ,· 11 r 1·t r n l argr 11r. r('glf' lrn1I ~ur l'unil i'• d11 rn t• 11 ir nomhrr.

/, / ,' l'J ."f'/'I' '/'UI! \' /) .\

ÜZESFAST

20. Pinturas de Ch arles-Éd ouard J anneret e Amédée 21. L'Esprit No11 veau, n" 5, p. 571, 1921. Reimpresso
Ozenfa nt, L'Esprit No11vcau, n" 17, p . 1993, 1922. por Da Capo Press, 1968, Nova York.
Reimpresso por Da Capo Press, 1968, ova York.
([) DACS, Londr s, 1993.
O PURISMO E L'ESPR/T NO L/VEAU 25

Jeanneret e Ozenfant, havia muito mais em jogo nas suas palavras, No número 17 de
L'Esprit Nouveau Qunho d e 1922), eles incluíram uma ilu stração [20] na qual reprodu ões
de suas naturezas-mortas apareciam sobrepostas por um traçado de linhas retas e de ângu-
los medidos. A implicação óbvia era que se tratava de obras estruturadas segundo algu-
ma form a de cálculo matemático, Em um número publicado havia pouco mais de um ano
(L'Esprit Nouveau, ni! 5, fevereiro de 1921), no interior de um longo ensaio de Jeanneret inti-
tulado "Linhas reguladoras", uma ilustração similar [21 ] retratava dois exemplos de
arquitetura clássica, cada qual sobreposto por uma série de linhas semelhantes. Essas ilus-
tra ões paralelas dão forma gráfica a u ma postulação que, na época, aparecia repe ti-
damente nos escritos de Jeanneret e d e O zenfant: a "ordem" qu e exaltavam era a
n:1esma orde1n que sustentava a arquitetura clássica. O que reivindicavam para su as pin-
turas, portanto, não era a idéia de constituírem formas mais elaboradas do Cubismo, mas

Si Claude Monet est déjà périmé, c'es t qu' il a méco nnu la


physique de la plastique. Rod in idem.

llAUVA U ~
(Monn ef) ( Rodi n )

E.!?!:
Ju,1n Gris)

BO:-i DO:f
( Stu ra,/J ( Grec

22. L'Esprit Nou veau, n il 1,


p. 45, 1920. Reimpresso
por Da Capo Press, 1968,
Nova York.
26 "ESSA LIBERDADE E ESSA ORDEM" : A ARTE NA FRAN A APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIA L

« Tout est spheres et cyl indres. "

\ ·oilà I'<'X<'mple J'un l•ll'mnnt "ylindr,---primair·c m()d i íi,·~y:-.lA.· -


mntiq uemf'.'nt, dfr l,,nr hant un jnu df' scno:;atinn~ ~uhjr,,ti,·c!-
En yo iri l' appliration f'l l:l demf)n~t raliim.

Les mêmrs prupridt'.~ g,:nn1 1 ·lri-


qucs gt? renl lr>S surfaees rt d,•tc r-
mincnt le mêmf' jru de scn!-al iun-=.

II y a des for mes simpl es décl ancheuses de sensations


constantes.
De modifications in- jeur au mineur), avec
Le1Tiennent, dêriv ées, et t oute la gamme inter-
ronduisent la sensalion
prcmi erc (de l'ordre ma-
ô médiairc dcs combinai-
so ns. Exemples:

i
23. L'Esprit Nozwenu , n 1, pp . 43 e 44, 1920. Reimpre so por Da Capo Press, 1968, Nova York.

de representarem um desenvolvim nto moderno da tradição clássica da Grécia antiga.


Grande parte de seu manife to de dezessete páginas, "Purismo", e muitos dos artigo sobre
arte e arquitetura que dominaram L'Esprit Nouveau elaboraram essa idéia. Numero os
ensaios expuseram sua concepção da tradição artí tica que teria originado o Purismo, e
dis utiram figuras-chave de sa tradição. Estavam incluídos nessa linhagem: Rafael, Pous-
sin, Chardin, Ingre , Corot, Cézanne, Seu.rate Rous eau. O argumento que reunia essas per-
sonalidade - e que incluía também categorias mais gerais, tais como arte grega e escultura
"negra" - era que todas ela lidavam com um nível de realidade mais profundo do que o
representado nas "sensações superficiais" do Impressionismo e do Naturalismo. Assim, em
uma ilustração do primeiro número de L'Esprit Nouveau [22], comp osta d ei fotos abran-
gendo arte antiga e recente, Monnet (sic) e Rodin são listados na ategoria "ruim", enquan-
to Grise Seurat são agrupados, com arte "negra" e arte grega, como "bom".
A tese básica que viabilizou o de envolvimento de sas oposi ões categóricas originou-
se da crença platônica em um reino de "formas ideai " indep ndente do mundo fí ico r al.
Defendia-se que e sas formas cm tituíam um prinápio estruturador wu versal e invariável,
que se encontrava no cerne de todas a manifestações cultu.rai . Para Jeanneret e Ozenfant,
elas denominavam-se "el mentos primários" e consistiam nas formas geométricas básicas,
o círculo, o triângulo e o quadrado, e m seus correspondente tridimensionais, a esfera, a
pirâmid e e o cubo. Em todas as culh1ras, pro eguiam, es es elementos e truturadores
wu ver ais eram empre e nece ariamente mediado por "sensaçõe secw1dária " - um
termo que utilizavam para indicar tanto a ornamentação prosaica quanto a refinada e o
tipos de alusão e a sacia ão por meio dos quais vemos habitualmente as formas . Portanto,
O PURlSMO E CESPRIT NOUVEAU 27

PAesttM, de 8()0 d sso mi. J.. c ClicM Albtrl Moranci. PAl!.TlltSO)o; 1 d� 4J7 li 431- ot'. J .. C.

li faut tendre à l'établis,ernent de standarts pour affronter Le stan<lart e!it une néressitP.
le probleme de la perfution. Le standart s'établit surdes bases rertain s, 11011 pas arbi­
Le Parthénon est un produit ele sélection appliquée à un trairement, mais nvec la sécuriLé dcs ch0ses n10Liv(-•es et, d'une
standart établi. Dcpuis déjà un siéclc le temple grac était logique contrlllée par l'expérimentation.
orgnnisé dans tous ses élémcnls. Tou� les hommes ont mêmc organisme, mêmes fonclions.
Lorsqu'un standart est é·tubli, le jeu do la comurrence irn­ Tous les hommcs ont mêmes bf'soins.
médiate ct violente s'cxcr,,c. C'est le match; pour gagner, il Le •ontrat social qui évolue à tra,·ers les Oges détermine des
faut faire mieux que l'adversairc dans toutes les parlies, dans la classes, des fonrtions, des besoins sto ndarts donnant des pro­
ligne d'ensemble cL dans lous les <létails. C'est alars l'étude uits d'usage standart.
poussée dcs parties. Progrés. La maison est un produit nêc<"ssaire à Phomme.

Cfi<hi tu l·1 l'it .Julomobilt Jlnuu.:RT, 1907. ÜI l ,A(; 1', (,' ((111(/-.'t•/Hlfl ] 02 J .

24. L'Esprit Nouveau, nQ 10, pp. 1140-1, 1921. Reimpresso por Da Capo Press, 1968, ova York.

o�,elemento primário" do cubo ou da esfera, argumentavam, omente existiria por meio da


i.nser ão de re sonâncias "secundárias": nós experimentaríamo e as formas, por exemplo,
no formato de um tijolo ou de uma bola. Mais uma vez, e sas idéia eram expre as dia­
gramaticamente por meio de uma série de ilustrações em L'E prit Nouveau [23].
E a postulaçõe gerais ganharam um caráter históri o quando Jeanneret e Ozen­
fant argumentaram que, em grande parte como re ultado dos requisitos da produção
industrial, os objetos propriamente ditos estavam "evoluindo" e tornando- e mai "puri­
fi ados", à medida que os excessos ou a ornamentação não essencial eram eliminados.
Para os puristas, esse proce so era a principal característica definidora da cultura: "A
civilizações avançam", afirma Jeanneret em L'Esprit Nouveau nQ 10 Qulho, 1921). "A cul­
tura é fruto do esfor o de eleção. Selecionar significa rejeitar, podar, limpar; a mergên­
cia clara e nua do Essencial." E e argumento - de que, paralelamente à evolu ão orgâ­
nica, egundo o conceito darwiniano de ele ão natural, exi te um sistema equivalente
de "seleção mecânica" - é ilustrado em uma página dupla de L'Esprit Nouveau intitula­
da "Evolução das formas do automóvel 1900-1921". Em outra página dupla com com­
parações fotográficas, Jeanneret e Ozenfant relacionaram o desenvolvimento do carro ao
de envolvimento da arquitetura dás ica [24]. a página da esquerda, o Paestum aparece
acima de um automóvel Humbert de 1907, e ambos são comparados com um exemplo
po terior mais "purifi ado" - o Partenon e um Delage Grand-Sport 1921 - na página da
direita. A concepção de que a forma moderna do clássico é encontrada no produto da
atividade industrial avançada foi aplicada pela dupla de autores não apenas ao que, na
épo a, eram artigos exóticos, tai como carros e aeroplanos, ma também aos objeto mai

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