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ÉDOUARD MANET ENTRE A ACADEMIA E A MODERNIDADE

Raphael D’Antona1

1 - Arte entre polos: a colocação do problema


A inauguração do Museu d’Orsay a partir de 1986 em Paris tem possibilitado desde então
uma série de reflexões acerca da pintura francesa do século XIX2. Este trabalho visa lançar
um olhar sobre as intrincadas relações do classicismo e a modernidade manifestas nesse
período, partindo de uma necessidade de revisão do estatuto da pintura acadêmica como uma
arte declinante diante do triunfalismo vanguardista, tendo em vista que:
Uma verdadeira reflexão sobre a pintura francesa desse período em sua
totalidade mereceria, todavia, ser aprofundada. Pois assim como a realidade
histórica se compõe de uma multiplicidade de elementos complexos, a
história da arte do fim do séc. XIX na França, mesmo se ela tenha sido
dominada por duas principais correntes divergentes, uma “tradicional” e a
outra “progressista”, muitas vezes antagonistas, não foi menos testemunha
de contatos e trocas entras as duas, trazendo inegáveis influências mútuas.
Entre uma e outra, os pintores de uma grande diversidade evoluíram num
campo de expressão intermediário muito mais vasto do que se possa
imaginar. A pintura francesa desse período se revela numa riqueza toda em
nuances, longe de se resumir a uma visão simplista e reducionista a qual
temos a tendência de lhe atribuir. (MIURA, 2009, p. 58)

Assim, o atual trabalho se debruça justamente sobre essa articulação, sobre esses tons
gradativos de um conflito ao mesmo tempo de visões de mundo, de formas de construção
estética e então, de ideias de beleza. Para tanto, tomarei como tópico principal a obra do
artista Édouard Manet (1832-1883) e o seu papel nos entremeios da academia e da vanguarda
modernista. Como meio de fundamentação, lançarei mão das perspectivas de Atsushi Miura,
pesquisador e professor do Centro de Filosofia da Universidade de Tokyo; e Hubert Damisch,
criador do Centro de História e Teoria das Artes da EHESS em Paris; e Jorge Coli, historiador
da arte, professor e pesquisador na Universidade de Campinas. A partir dessas abordagens
histórico-teóricas, intenta-se averiguar sua relação com a herança acadêmica através de sua
proximidade com Thomas Couture (1815-1879); e após isso, salientar um ponto-chave da
ambivalência paradoxal do artista para destacar sua posição ao mesmo tempo no
prolongamento e na oposição da tradição, abrindo espaço para se repensar as fronteiras e as
nuances das definições estilísticas, e os preconceitos que normalmente a elas se juntam.

1
Bacharel em Artes Visuais (2015) e atualmente graduando em História da Arte pela UFRGS.
2
Esta pesquisa teve início com o artigo O ‘Sarpédon’ de Henri-Lévy (1874), publicado pela revista
ArtConTexto (n. 14/2018). Disponível em: http://www.artcontexto.com.br/.
2 - Academia e Manet
A Academia Real de Pintura e Escultura funcionou de 1648 a 1793. Em 1667, pouco após
sua fundação, há o início das conferências teóricas, que tinham o objetivo de instruir os jovens
pinturas em seu ofício. Tão logo, porém, se iniciariam os desacordos. O motivo: o primado da
cor ou do desenho. De extrema importância é lembrar, como destaca Jacqueline Lichtenstein
em O desenho e a cor, que essa “querela” tem muito a ver com o lugar e a manutenção do status
do artista na corte monárquica, visto que:
Privilegiar a cor em relação ao desenho constitui uma ameaça certa à posição
que a pintura havia conquistado na cultura humanista graças ao primado do
desenho. Daí os esforços [...] para marcar bem a diferença que separa o
colorido do pintor da cor do tintureiro, e sua insistência sobre as qualidades
morais da pintura, sobre o modo de vida do artista e a adequação observada
em suas imitações. (2006, p. 12)

Acredito que este exemplo por si só nos possibilita compreender que os conflitos
estéticos se associam, de modo mais ou menos direto, a conflitos sociais e de status de classes
– que viriam a culminar na sociedade pós-revolução em visões de mundo divergentes.
A academia é abolida no período revolucionário de 1789-1793 em 1816, quando uma sessão
do Instituto Francês, o órgão responsável pela manutenção da vida cultural pós-revolução
passa a se chamar Académie, e assim restituiu valores como:
A pintura histórica grandiosa – o style historique – representando cenas da
história clássica, bíblica e contemporânea. O propósito era a edificação do
público, e a Academia garantia a adequação do currículo da École [de Beaux
Arts] a este fim. (FRASCINA, BLAKE, 1998, p. 59)

Édouard Manet foi aluno de Thomas Couture (1815-1879). O artista acadêmico é mais
conhecido por sua célebre pintura Os Romanos da Decadência, de 1847, que lhe valeu a
condecoração de Legião da Honra em 1848. A tela é enorme, de 4,72m por 7,72 metros, e
nela vemos uma típica cena neoclássica: em primeiro plano, temos uma proliferação de
figuras num festim bacante rodeado de esculturas e logo após, colunas que reforçam o sentido
de ordem com a teatralidade sendo centralizada pela escultura do meio, que se ergue acima
das demais. As cores são sóbrias e pouco saturadas. Couture foi mesmo comparado à Rafael a
seu tempo – e podemos esta como uma nítida pintura acadêmica. Mas seria um erro acreditar
que o artista era um acadêmico engessado na técnica e nos dítames do desenho. Como desta
Miura, a exemplo do trabalho Homem visto de costas (preparação para O Chamamento dos
voluntários em 1792):
Numa obra onde ele detalha seus métodos de trabalho, Métodos e
manutenção do ateliê, Couture aconselha de fazer cópias de bons esboços e
de conservar os originais, antes de prosseguir o trabalho a partir das cópias;
o que mostra quanto Couture era dividido entre a importância dada ao
trabalho preparatório e o objetivo último de ter de realizar uma obra final.
(2009, p. 65-66)

E Manet, indo além, em seu Retrato de Antonin Proust de 1880:


Não hesitou a levar mais longe o ensinamento de seu mestre e a se dar a
liberdade da audácia e considerar como finalizada uma obra pintura que teria
sido julgado como inacabado segundo os critérios da Academia, operando
uma mudança de rumo estético que abrirá caminho para o impressionismo
(2009, p. 66-67)

Assim, de acordo com o que também pontuam Michael Fried (1996) e Jorge Coli (2010),
fica demonstrado o quanto a situação da pintura francesa na altura da chamada “geração de
63” (Johan Jongkind, James Whistler, Gustave Courbet, Fantin-Latour e o próprio Manet) é
marcada por essa tensão que atingirá um cume em 1874, com o primeiro Salão Impressionista.
Tradição e inovação confrontam-se ao mesmo tempo que se dão as mãos, a tensão operando
ao mesmo tempo em prolongamento e em oposição.

3 - O Almoço na Relva no Salão dos Recusados (1863)


Essa ambivalência é encarnada de forma exemplar e polêmica na obra Almoço na Relva.
Segundo Hubert Damisch (2018) e Atsushi Miura (2009), ao contrário do que alguns
historiadores pensaram no século passado, o Salão dos Recusados não assinala plenamente o
estabelecimento e uma conformidade da sociedade francesa à modernidade. Ao contrário, a
atitude do próprio imperador Napoleão III por expor as obras que não haviam sido aceitas
pelo júri se dá como uma tentativa de potencializar a repressão, visto que se tratar de obras
que há haviam sido recusadas. Expô-las à opinião do público, como dizia o decreto publicado
do jornal Moniteur, era assim uma manobra de “entregá-las ao escrutínio público em
condições nas quais o escândalo estava garantido” (DAMISCH, 2018). Escândalo entendido
aqui como ridicularização (ademais, uma carta de Fantin-Latour a James Whistler do mesmo
ano corrobora essa situação). E essa foi exatamente a reação que o quadro de Manet gerou. O
artista fora tido como “incapaz de compor um quadro” (PELLOQUET, 1863, p. 2-3, apud.
MIURA, 2009, p. 60), e um nu do tipo “pintado por homens vulgares”, que resulta num
caráter “inevitavelmente indecente” (HAMERTON, 1973, p. 85, apud. DAMISCH, 2018,
p.62). E a enxurrada de críticas só piora a partir daí.
Mas o que exatamente se reprova em Manet? Ora, a relação do quadro com a tradição é
evidente, visto que o grupo de figuras principal, dois homens vestidos e uma mulher nua, é
referência direta da gravura de Rafael (séc. XVI) feito sob o relevo de Marcantonio Raimondi,
da Vila Médici em Roma, que ilustra o Julgamento de Pâris. Cópias da gravura circulavam
pelos ateliês e eram plano-de-fundo comum da cultura artística corrente, assim como sua
outra referência direta à arte italiana: o Concerto Campestre de Giorgione, do Louvre. E no
próprio Salão oficial, duas obras como O Nascimento de Vênus de Alexandre Cabanel
(imediatamente adquirida pelo imperador), e A pérola e a onda de Paul Baudry, apesar
exibirem o nu feminino, são aclamadas pelo público. Em que essas obras diferem do quadro
de Manet?
Estamos aqui diante de uma mulher nua na companhia de dois homens vestidos com
trajes modernos, franceses, num parque que poderia ser o próprio Jardim de Luxemburgo. E
se estamos diante de uma cena tão presente, tão atual, não é uma deusa que somos levados a
imaginar diante de si. Podemos dizer que o nu mitológico, se de um lado garante a erudição
daqueles que reconhecem suas narrativas e o decoro exigido por suas instituições
legitimadoras, por outro, reveste a pintura do que eu gostaria de chamar de um efeito película.
Esse efeito serve como elemento apaziguante e distanciador que impediria o observador de
enxergar aquilo como uma alusão a uma realidade imediata na qual ele mesmo poderia estar
inserido. A operação perpetrada pela obra de Manet é a inversa: a familiaridade dos trajes
masculinos adjacentes à nudez gratuita da figura feminina nos jogam diante dos olhos uma cena,
diríamos, real. Dessacralizada e dessublimada. Não temos aqui nenhuma proteção, cai a
película apaziguadora e mediadora do desejo que a beleza desperta. Essa beleza, que agora vista
tão pura e tão natural, parece algo de indecente. Isso que permite Damisch a considerar o efeito
causado pelo quadro em sua época como algo semelhante à pornografia. Segundo o pensador:
O que não podia ser dito, muito menos mostrado [...] é que a beleza, ligada
como é ao corpo e à diferença sexual, é sempre, em qualquer parte,
necessariamente indecente. (2018, p.72)

Indecência essa ao mesmo tempo da nudez, do tema, das formas. A partir da modernidade
de Manet, as novas gerações de artistas iriam levar esses elementos a extremos antes nunca
imaginados, revolução estética fruto de uma sociedade de individualismo com um mercado
mais amplo de possibilidades de demanda e consumo, e de um arquivo histórico-artístico
nunca antes reunido: um passado disponível à pronta reconstrução pelo presente. E tendo quem
o comprasse.

REFERÊNCIAS
COLI, Jorge. O corpo da liberdade. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

DAMISCH, Hubert. Uma mulher, portanto: Le déjeuner sur l'herbe. Trad. Luiz Carlos
Oliveira Júnior. Ars, São Paulo, no 32, p. 59-72, 2018.
FRASCINA, Francis (Org.). Modernidade e modernismo: a pintura francesa no século XIX.
São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

FRIED, Michael. Manet’s Modernism, or the Face of Painting in the 1860’s. Chicago,
Londres: University of Chicago Press, 1996.

LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). O desenho e a cor. In: Pintura: textos essenciais. Vol.9,
São Paulo: Editora 34, 2006, p. 9-18.

MIURA, Atsushi. Histoires de peinture entre France et Japon. Tóquio: UTCP, 2009.

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