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Raphael D’Antona1
Assim, o atual trabalho se debruça justamente sobre essa articulação, sobre esses tons
gradativos de um conflito ao mesmo tempo de visões de mundo, de formas de construção
estética e então, de ideias de beleza. Para tanto, tomarei como tópico principal a obra do
artista Édouard Manet (1832-1883) e o seu papel nos entremeios da academia e da vanguarda
modernista. Como meio de fundamentação, lançarei mão das perspectivas de Atsushi Miura,
pesquisador e professor do Centro de Filosofia da Universidade de Tokyo; e Hubert Damisch,
criador do Centro de História e Teoria das Artes da EHESS em Paris; e Jorge Coli, historiador
da arte, professor e pesquisador na Universidade de Campinas. A partir dessas abordagens
histórico-teóricas, intenta-se averiguar sua relação com a herança acadêmica através de sua
proximidade com Thomas Couture (1815-1879); e após isso, salientar um ponto-chave da
ambivalência paradoxal do artista para destacar sua posição ao mesmo tempo no
prolongamento e na oposição da tradição, abrindo espaço para se repensar as fronteiras e as
nuances das definições estilísticas, e os preconceitos que normalmente a elas se juntam.
1
Bacharel em Artes Visuais (2015) e atualmente graduando em História da Arte pela UFRGS.
2
Esta pesquisa teve início com o artigo O ‘Sarpédon’ de Henri-Lévy (1874), publicado pela revista
ArtConTexto (n. 14/2018). Disponível em: http://www.artcontexto.com.br/.
2 - Academia e Manet
A Academia Real de Pintura e Escultura funcionou de 1648 a 1793. Em 1667, pouco após
sua fundação, há o início das conferências teóricas, que tinham o objetivo de instruir os jovens
pinturas em seu ofício. Tão logo, porém, se iniciariam os desacordos. O motivo: o primado da
cor ou do desenho. De extrema importância é lembrar, como destaca Jacqueline Lichtenstein
em O desenho e a cor, que essa “querela” tem muito a ver com o lugar e a manutenção do status
do artista na corte monárquica, visto que:
Privilegiar a cor em relação ao desenho constitui uma ameaça certa à posição
que a pintura havia conquistado na cultura humanista graças ao primado do
desenho. Daí os esforços [...] para marcar bem a diferença que separa o
colorido do pintor da cor do tintureiro, e sua insistência sobre as qualidades
morais da pintura, sobre o modo de vida do artista e a adequação observada
em suas imitações. (2006, p. 12)
Acredito que este exemplo por si só nos possibilita compreender que os conflitos
estéticos se associam, de modo mais ou menos direto, a conflitos sociais e de status de classes
– que viriam a culminar na sociedade pós-revolução em visões de mundo divergentes.
A academia é abolida no período revolucionário de 1789-1793 em 1816, quando uma sessão
do Instituto Francês, o órgão responsável pela manutenção da vida cultural pós-revolução
passa a se chamar Académie, e assim restituiu valores como:
A pintura histórica grandiosa – o style historique – representando cenas da
história clássica, bíblica e contemporânea. O propósito era a edificação do
público, e a Academia garantia a adequação do currículo da École [de Beaux
Arts] a este fim. (FRASCINA, BLAKE, 1998, p. 59)
Édouard Manet foi aluno de Thomas Couture (1815-1879). O artista acadêmico é mais
conhecido por sua célebre pintura Os Romanos da Decadência, de 1847, que lhe valeu a
condecoração de Legião da Honra em 1848. A tela é enorme, de 4,72m por 7,72 metros, e
nela vemos uma típica cena neoclássica: em primeiro plano, temos uma proliferação de
figuras num festim bacante rodeado de esculturas e logo após, colunas que reforçam o sentido
de ordem com a teatralidade sendo centralizada pela escultura do meio, que se ergue acima
das demais. As cores são sóbrias e pouco saturadas. Couture foi mesmo comparado à Rafael a
seu tempo – e podemos esta como uma nítida pintura acadêmica. Mas seria um erro acreditar
que o artista era um acadêmico engessado na técnica e nos dítames do desenho. Como desta
Miura, a exemplo do trabalho Homem visto de costas (preparação para O Chamamento dos
voluntários em 1792):
Numa obra onde ele detalha seus métodos de trabalho, Métodos e
manutenção do ateliê, Couture aconselha de fazer cópias de bons esboços e
de conservar os originais, antes de prosseguir o trabalho a partir das cópias;
o que mostra quanto Couture era dividido entre a importância dada ao
trabalho preparatório e o objetivo último de ter de realizar uma obra final.
(2009, p. 65-66)
Assim, de acordo com o que também pontuam Michael Fried (1996) e Jorge Coli (2010),
fica demonstrado o quanto a situação da pintura francesa na altura da chamada “geração de
63” (Johan Jongkind, James Whistler, Gustave Courbet, Fantin-Latour e o próprio Manet) é
marcada por essa tensão que atingirá um cume em 1874, com o primeiro Salão Impressionista.
Tradição e inovação confrontam-se ao mesmo tempo que se dão as mãos, a tensão operando
ao mesmo tempo em prolongamento e em oposição.
Indecência essa ao mesmo tempo da nudez, do tema, das formas. A partir da modernidade
de Manet, as novas gerações de artistas iriam levar esses elementos a extremos antes nunca
imaginados, revolução estética fruto de uma sociedade de individualismo com um mercado
mais amplo de possibilidades de demanda e consumo, e de um arquivo histórico-artístico
nunca antes reunido: um passado disponível à pronta reconstrução pelo presente. E tendo quem
o comprasse.
REFERÊNCIAS
COLI, Jorge. O corpo da liberdade. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
DAMISCH, Hubert. Uma mulher, portanto: Le déjeuner sur l'herbe. Trad. Luiz Carlos
Oliveira Júnior. Ars, São Paulo, no 32, p. 59-72, 2018.
FRASCINA, Francis (Org.). Modernidade e modernismo: a pintura francesa no século XIX.
São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
FRIED, Michael. Manet’s Modernism, or the Face of Painting in the 1860’s. Chicago,
Londres: University of Chicago Press, 1996.
LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). O desenho e a cor. In: Pintura: textos essenciais. Vol.9,
São Paulo: Editora 34, 2006, p. 9-18.
MIURA, Atsushi. Histoires de peinture entre France et Japon. Tóquio: UTCP, 2009.