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GHT © 2009, Luciano Trigo


Luciano Trigo
CAPA
Elmo Rosa
FOTO DE CAPA
The Physical lmpossibility of DcatÍJ ;,, the Mind o{ Someone Living,
em foro de Stephen Poster..
PROJETO GRÁFICO DE MIOLO
Evclyn Grunu,ch e João de Souza Leite
DIAGRAMAÇÃO DE MIOLO
FA Editoração

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T747g Trigo, Luciano


A grande feira : uma reação ao vale~rudo na arte contcmpotânea
/ Luciano Trigo. - Rio de Janeiro: R«:ord, 2009.
ISBN 978-8S-200·0968·0 A grande feira
1. Arte moderna - Século XX. 2. Arte moderna - Século XXI.
3. Crítica de arte. 4. Arte e sociedade. I. Titulo. Uma reação ao vale-tudo
09-3968. CDD:709.04
CDU:7.036
na arte contemporânea

Todos os dii:eitos n:servados. Proibida a reprodução, armazenamento


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Impresso no Brasil
2009
Sumário

NOTA INTRODUTÓRIA

APRESENTAÇÃO

Sobre o estado da arte

O que virá depois do pós-moderno?

Alguns fatores que levaram a arte ao estado a que chegou, e não a


outros estados a que poderia ter chegado

Apropriações

O gabinete de curiosidades

Arte por designação

Os moedeiros falsos

A falência da crítica de arte

O mercado como critério estético


Nota introdutória

A capa deste livro reproduz a obra The Physical


Impossibility of Death in the Mind of Someone Living,
do artista plástico inglês Damien Hirst. Em 2004, o
tubarão mergulhado em formol foi vendido por 12
milhões de dólares ao administrador de fundos americano
Steve Cohen. Dois anos depois, Cohen recebeu uma má
notícia: o tubarão estava se decompondo. O pequeno
alvoroço no mundinho da arte foi logo abafado. Artista e
colecionador negociaram a substituição do animal
original e não se falou mais do assunto.
Por desimportante que seja, considero o episódio
emblemático da situação que vivemos hoje na arte
contemporânea, em diversos aspectos. O tubarão de Hirst
resume alguns temas que serão discutidos a seguir. Temas
ligados ao mercado - a especulação alucinada, a
importância crescente do marketing, o papel dos
diferentes atores e das redes sociais no sistema da arte -
e a conceitos e valores que não podem estar ausentes de
qualquer reflexão sobre a arte hoje: originalidade,
autoria, talento, relação com as vanguardas modernas,
relevância histórica.
Mas o tubarão em degeneração vale sobretudo como
metáfora, como a desagradável imagem no espelho de
uma parcela significativa da arte contemporânea - frágil
e efêmera como um cadáver mergulhado em formol.

Luciano Trigo
Julho de 2009
Alguns fatores que levaram a arte ao
estado a que chegou, e não a outros
estados a que poderia ter chegado

"Talvez a arte tenha sido apenas um curto pa-


rênteses na história da humanidade, aberto com o
Renascimento e hoje já fechado, enq,,anto a ima-
nência dos objetos, imagens e mídias substituíram a
transcendência.-P•
Jean Baudrillard

Submetendo-se à lógica da massificação cultural, a arte


vira uma encenação: continuam existindo obras, é claro,
mas sua finalidade não é mais artística, e sim mercadológi-
co-midiática; seu motor é a dinâmica consumista do mer-
cado, não apenas as negociações materiais e financeiras,
mas também e sobretudo a economia das trocas simbólicas
que constituem, para usar uma expressão superada, a su-
perestrutura ideológica na qual a arte hoje opera. É claro
que existem coisas interessantes sendo feitas, mas sempre
nesse horizonte.
Nesse processo, o lucro e a fama são fatores relevantes
para a cooptação dos agentes individuais do sistema, do
artista deslumbrado com a própria exposição na mídia ao
curador que debocha da pintura, do crítico que abre mão de
julgar ao colecionador que começa a ser aceito no circuitp
social de festas e badalações.

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LUC I ANO TR I GO A GRANDE FEIRA

Por isso, é natural que o sistema da arte negue o pen- me escreveu chamando a atenção para a página de abertura
samento: do público e da crítica, ele só espera uma atitude do site da EBA (www.eba.ufrj.br), que exibe não uma pin-
de passividade resignada, para que o modelo se reproduza tura ou uma escultura, mas urna ... casca de ovo quebrada, o
indefinidamente. E a beleza deste está na inconsciência com que é no mínimo sugestivo.
que todos os agentes participam dele, mesmo aqueles que fi- Sugestivo de quê? Do predomínio de uma já surrada vi-
cam apenas com as migalhas, mas rechaçam raivosamente, são conceitualista da arte. O ataque de Marcel Duchamp às
como cães-de-guarda, qualquer tentativa de reflexão crítica categorias estéticas tradicionais, realizado há mais de noven-
que ponha em questão os valores vigentes. ta anos, continua a ser recuperado como grande novidade
Não chega a surpreender, portanto, que qualquer voz - ignorando-se, ou fingindo-se ignorar, que já não existem
dissonante seja recebida com desdém. Mais do que qual- mais categorias tradicionais a atacar e que, portanto, insistir
quer outra esfera da cultura, as artes plásticas se converte- em emular Duchamp é um gesto não apenas inofensivo, mas
ram num clube social, no qual, no fundo, não importa o que vazio de sentido.
você faz, mas a rede de relações das quais participa - e aí
entram desde laços familiares (parentes "bem situados" etc.) • ••
até relações de classe e de tribo (incluindo preferências se-
xuais, o tipo de drogas que se consome etc.). A desestetização da arte foi um processo que o crítico
Paradoxalmente, essas redes se articulam em torno da americano Harold Rosenberg identifitou já em 1972, ao
arte, mas a obra de arte em si importa cada vez menos, na analisar o neodadaísmo e os happenings. Rosenberg foi o
medida em que se convecte em mero pretexto para o funcio- primeiro crítico a aplicar o termo "pós-moderno" às artes
namento das redes. Nesse sentido, quanto mais inofensiva e plásticas. Analisando a produç.ã o de Robert Rauschenberg, •
domesticada for a produção artística, maiores as suas chan- ele percebeu que algo diferente estava acontecendo: o deslo-
ces de êxito. Hoje não existe nada mais inofensivo e domes- camento do conteúdo artístico do objeto de arte em si para
ticado que a ousadia de butique, como demonstra a assimi- as intenções, atitudes e procedimentos do artista. Era um
lação de artistas "ousados" pelo mercado especulat ivo. Ou- daqueles momentos nos quais, segundo Walter Benjamin, de
sadia de verdade seria insistir numa arte que exija talento e tempos em tempos, o modo de percepção da sociedade se
técnica, que exija a mão do artista, que exija reflexão sobre transforma.
o papel da arte e sua relação com as instituições. Uma arte Redescoberta nos anos 1970, a caixa de Pandora aberta
que tenha ambição. por Marcel Duchamp com os ready-made, no começo do sé-
Não é isso o que se vê, mesmo naqueles lugares que, por culo passado, fez com que a arte deixasse de ser uma essên-
definição, deveriam estimular o pensamento crítico, como as cia para se tornar uma função, isto é, não mais importava p
escolas de arte. Uma aluna da Escola de Belas Artes da UFRJ objeto em si, mas a sua designação como arte pelo artista, e

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LUCIANO TRIGO

a sua legitimação pelos agentes do sistema. Com isso, toda a dos, por diversos motivos: as obras nem sempre estão dis-
produção artística se tornou, em alguma medida, conceituai: poníveis; uma mesma obra pode apresentar diferenças bru-
a natureza da criação mudou, e com ela o regime da arte, na tais de pre,ç o se for comprada num leilão ou numa galeria;
a regulamentação é tímida; o número limitado de agentes
sua totalidade. A obra, num certo sentido, desapareceu.
poderosos dá margem a diversos tipos de manipulação.
Por outro lado, os anos 1970 foram um período de efer-
Para quem tiver informações privilegiadas, com certeza
vescência e experimentação invejável, no qual se flexibiliza-
arte contemporânea pode ser um ótimo investimento - o
ram os limites da arte. A busca moderna do novo foi levada
que vale para qualquer tipo de especulação. Mas trata-se
a extremos: nada parecia impossível.
de um mercado com um comportamento particularmente
A semelhança com o pluralismo que observamos hoje
irracional.
é enganosa. Os próprios museus aderiram a uma dinâmica
Por exemplo, uma foto de Richard Prince - The en-
associada ao consumo, ao entretenimento e ao espetáculo:
tertainment series: Russel - que valia 11.500 dólares em
a arte se tornou uma ramificação a mais da indústria cultu-
1993 foi comprada por 75 mil dólares em 2004. E a pri-
ral, e hoje, em termos práticos, seu status é mais ou menos meira obra de Damien Hirst que foi a leilão, a instalação
semelhante ao da moda, com todas as suas características
God, em 1992, foi comprada por irrisórias 4 mil libras. Seis
(incluindo as famosas "tendências"). anos depois, a mesma instalação foi revendida por... 170 mil
A esfera da cultura reduz-se ao lazer e entretenimento libras. Mas isso jamais aconteceria se o megacolecionador e
comercializável, perdendo sua função crítica e espiritual. Não galerista Charles Saatchi não tivesse apostado em Hirst e em
se acredita mais no potencial transformador ou emancipa- outros artistas de sua geração.
dor da arte, nem muito menos na possibilidade de um gos- "Apostar", no caso, é modo de dizer: Saatchi adotou es-
to consensual, de uma "utopia da arte" baseada num julga- ses artistas, deu a todos eles o Turner Prize, que controlava
mento de valor universal e desinteressado. Perdida a crença indiretamente, promoveu megaexposições e depois vendeu
em todas as utopias, restam como alternat ivas a acomoda- suas obras a preços estratosféricos. Não foi à toa que Saatchi
ção, o desespero e o cinismo. fez fortuna como publicitário e marqueteiro, antes de se de-
Basta acessar o ranking dos artistas contemporâneos dicar ao múltiplo papel de colecionador, galerista e mecenas.
mais valorizados no site www.artprice.com para perceber Saatchi produz, coleciona, legitima, divulga e depois vende.
que hoje a arte é fundamentalmente business: todo o resto Hirst, nesse sentido, não foi uma descoberta: foi clara e aber-
- incluindo o próprio artista - é acessório. Não se trata tamente uma invenção, uma fabricação, e alguns livros publi-
mais de obras de arte, mas da negociação e circulação inces- cados na Inglaterra contam essa história em detalhes. Saatchi
sante de signos portadores de valor financeiro. colocou a serviço de Hirst e de seus colegas recursos financei-
O mercado de arte contemporânea é altamente volátil, ros, savoir-faire em matéria de marketing e, principalmente,
e com características peculiares em relação a outros merca- uma valiosa rede de relacionamentos.

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••• 4. Esse processo se profissionalizou, está integrado a um


business plan; não se trata mais, simplesmente, de comprar
Doze reflexões/provocações sobre a arte contemporânea: peças decorativas, mas de uma séria e dispendiosa ação de
marketing. Estima-se que, nos anos 1990, as vendas cor-
1. O movimento pós-moderno de integração da arte à cultu-
porativas corresponderam a 25% dos negócios realizados
ra de massa é a antítese da atitude modernista de resistência
no mundo da arte em Nova York. Ao associar-se à arte, as
à ideia da mercantilização da obra de arte. O pós-moder-
corporações estão comprando um valor simbólico que não
nismo assinala a rendição incondicional da arte e de toda a
encontram na mera publicidade paga. Daí a eficácia, por
produção cultural às forças do mercado neoliberal globali-
zado, que subordina a cultura aos interesses corporativos. exemplo, da campanha da vodca Absolut, que torna trans-
parente essa promiscuidade crescente entre arte e business.
2. É evidente que, ao longo de toda a história, o artista teve
que se relacionar de alguma maneira com o capital. Mas, 5. O museu como instituição de guarda e conservação de pa-
trimônio tem cada vez menos relevância. Mas em seu lugar
hoje, o fenômeno se diferencia por seu alcance e por suas
surgiram, às dezenas, museus fast-food e filiais caça-níqueis
implicações inéditas: acabaram as brechas, nada escapa da
de grandes grifes, com a função de multiplicar as conexões
atuação do capitalismo corporativo, ainda mais quando
da rede de produção e consumo num nível planetário - e
ele se associa ao Estado burocrático. A arte que esta alian-
estimular um novo e lucrativo entretenimento de massa, no
ça promove é instrumentalizada. O artista passa a atender a
qual se lançam novos produtos a cada temporada.
demandas orientadas para a maximização do lucro, a alie-
nação política e a reprodução do sistema como um todo. 6. Como o mundo editorial e o mundo fonográfico, o mun-
do da arte se aproximou do supermercado, onde é funda-
3. As grandes corporações tornaram-se os principais patro-
mental estar exposto para ser "vendido" - e onde o preço
cinadores da arte, formando coleções milionárias, conce-
alto é atrativo e garantia de qualidade, como nas lojas de
dendo fundos para megaexposições nos museus etc. Tudo
roupa sofisticadas (que se parecem cada vez mais com gale-
isso afeta não apenas a cotação dos artistas contemporâ-
rias de arte). Por outro lado, a linguagem da p ublicidade se
neos, mas também a sua própria produção, cada vez mais
aproximou da linguagem artística.
domesticada e alienante. As corporações compram barato
e em quantidade, forçando em seguida a escalada da cota- 7. A arte pós-moderna rejeita as ideias de progresso linear,
ção de jovens artistas. É claro que continuam existindo ar- bem como qualquer autoridade no juízo estético, ao mesmo
tistas de qualidade, mas muitos acabam funcionando como tempo que pilha caprichosamente a história. Sem um con-
inocentes úteis. Por outro lado, é natural que as corpora- senso sobre valores e crenças, o julgamento crítico perde a
ções invistam numa arte compatível com seus valores, sua função. Sem um horizonte temporal no qual se inserir, a arte
imagem e agenda. se atrela a uma lógica do espetáculo, e a produção artísti-

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ca perde a profundidade, apoiando-se nas aparências e nos lulas pintadas, tenha sido vendida, em 2007, por 19,1 mi-
impactos midiáticos instantâneos, numa série descontínua lhões de dólares. Até novembro de 2007, essa era a obra
de reelaborações deliberadamente efêmeras. Como estrelas mais cara de um artista vivo, mas foi superada por um co-
da cultura de massa, os artistas que conseguem se inserir no ração de Jeff Koons, ex-marido da Cicciolina: a obra de
circuito internacional passam a se preocupar com estratégias Koons, em metal vermelho e pesando uma tonelada e meia,
de marketing que os mantenham em evidência. foi leiloada na Sotheby's por 21,6 milhões de dólares.
8. No modernismo, o movimento de aproximação entre ar· 11. Um problema específico do mercado da arte contem-
tista e sociedade se inseria num projeto de transformação porânea é a autenticação das obras, fundamental para a for-
social. Hoje prevalece o imperativo capitalista de ampliar o mação de preços. Como autenticar uma obra em vídeo, por
público consumidor e reforçar gostos e valores que susten- exemplo, e distingui-la de uma cópia falsificada? Ou uma
tam o sistema, através de uma rede onipresente tão ramifi- obra sem original, como na arte virtual? Ou um múltiplo?
cada que fica às vezes difícil dizer quem está influenciando Ou uma obra que, por empregar material efêmero, precisa
quem. Os movimentos especulativos que sempre afetaram o ser refeita periodicamente?
mercado financeiro passaram a determinar mudanças espas- 12. Essa expansão das linguagens artísticas, originalmen-
módicas na arte: a obra de arte, como o dinheiro, se toma te associada a um movimento de contestação do mercado,
puro valor de troca. Transformada em puro capital especu- foi reintegrada ao sistema especulativo por meio dos mais
lativo, a arte se aproxima da condição da mais abstrata das conversadores recursos: a revalorização da- assinatura e dos
mercadorias: o próprio dinheiro. certificados de autenticidade, entre outros traços anacrôni-
9. A consolidação da arte pós-moderna se processa de fato cos e convenções do passado, que reassociam a arte, mesmo
com a passagem da cultura de massas para a cultura das mí- em suas manifestações supostamente mais radicais, a uma
dias. A arte contemporânea abraça sem qualquer constran- lógica de consumo de luxo e de afirmação simbólica de uma
gimento a superficialidade dos reality shows. classe social.
10. Tudo isso acontece com o beneplácito das elites inte-
lectuais, que demonstram uma receptividade acrítica sem •••
precedentes ao que lhes é vendido como arte. Essa tolerân-
"A arte e a moda sempre caminharam de mãos
cia total acaba se confundindo com a indiferença, e a arte,
dadas. Por vezes radicais e chocantes, ambas são
em algum aspecto essencial, se torna irrelevante - ain-
julgadas segundo padrões subjetivos de gosto. Cada
da que, economicamente, esteja cada vez mais valorizada.
uma representa a seu modo os humores e o espíri-
Só assim se entende que a obra Lullaby Spring (2002), de •
to das épocas. Elas estimulam ·os sentidos e criam
Damien Hirst, uma prateleira de aço e vidro com 6.136 pí-

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objetos de desejo como fetiches para a sociedade • Objetos de porcelana: Koons encomenda pequenos
afluente e legados culturais." objetos de artesanato - estatuetas religiosas, animais fofi-
Hugo Boss nhos (cachorrinhos, ursinhos) e ícones populares (Michael
Jackson, Popeye, Pantera Cor-de-Rosa etc.). Apropria-se de
ícones da cultura de massa, deslocando-os de seu contexto.
O artista contemporâneo precisa ser uma estrela: a fama é Sobre uma reprodução da Pantera Cor-de-Rosa abraçada a
um índice de seu valor. Tanto quanto sua produção artística uma loura, Koons declarou: "A pantera cor-de-rosa fala so-
propriamente dita, importa o seu desempenho como figura bre masturbação." (Pensando bem, acho que todas as obras
pública capaz de chamar a atenção: é o artista como perfor- de Koons falam sobre masturbação... )
mer. O mundo da arte tornou-se um palco sempre à cata de • Made in Heaven, a série de fotografias e esculturas
personagens interessantes. pornô-kitsch representando atos sexuais explícitos, que in-
Foi assim que, para se manter em evidência num merca- cluem cenas de sua vida conjugal com Cicciolina, com títu-
do cada vez mais competitivo, muitos artistas optaram por los sutis como "Jeff por cima", "Chupeta", "Ejaculação",
chamar a atenção da mídia com jogadas de marketing pe- "Jeff chupando Hona" etc. A ideia era discutir a validade da
riódicas. É o caso do americano Jeff Koons (1 ?55- ), que pornografia como arte. Aham.
chegou ao cúmulo de se casar com a atriz pornô e deputada Koons é a encarnação do artista pós-moderno, em vários
italiana Cicciolina, em 1991, num evento que recebeu gran- aspectos:
de publicidade - e virou tema de uma exposição em Lon- • a mão do artista está ausente da obra, pois uma equi-
dres. Tudo pela arte. pe se encarrega de produzi-la (foi o caso das pinturas que
Como artista midiático, Koons é uma ilustração viva de Koons apresentou na vigésima quinta Bienal de São Paulo,
um dos aforismos de Guy Debord em A sociedade do espe- feitas por profissionais contratados). Seu ateliê em Nova
táculo: "O espetáculo ( ... ) nada mais diz senão que o que York é uma verdadeira fábrica, com cerca de cinquenta as-
aparece é bom, o que é bom aparece. A atitude que ele exige sistentes, que dão materialidade às pinturas e esculturas que
por princípio é essa aceitação passiva que, na verdade, ele ele elabora em computador. Da arte conceituai Koons her-
já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu dou o princípio de que o artista concebe a obra mas não
monopólio da aparência." necessariamente participa da sua realização;
As mais famosas (portanto, as melhores) obras de Koons são: • ele usa a arte para falar da própria arte (masturbação);
• Puppy, um cachorro feito de flores, de 16 metros de • busca inspiração em elementos cotidianos e da cultura
altura. A escultura está no Museu Guggenheim de Bilbao. pop: aspiradores de pó, panelas de pressão, flores de plásti-
• Rabbit, um coelho inflável feito de metal prateado es- co, bolas de basquete, anúncios de cigarro e bebidas etc.; a,
pelhado. herança maldita dos ready-mades de Duchamp;

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- ocupa espaços não convencionais (mas acaba indo Picasso, mesmo que jamais fosse exposta, continuaria sendo
para os museus mais importantes); uma obra de arte. Ou seja, o local onde a obra era exposta
- transforma a si mesmo em personagem/objeto artístico; não interferia diretamente no seu significado. Ora, o mesmo
- supostamente questiona os valores e dogmas do não se dá com a arte contemporânea, na qual o objeto artís-
mercado - mas não se incomoda de vender suas obras por tico não pode mais existir sem sua exposição. Uma estante
pequenas fortunas. Em 2001, uma escultura em cerâmica do de vidro e aço com pílulas coloridas de Damien Hirst só se
cantor Michael Jackson e de seu macaco Bubbles foi ven- torna obra de arte quando é designada como tal pelo sistema
dida por 5,6 milhões de dólares. E a obra Blue diamond, da arte, exposta e comercializada por um preço exorbitante:
réplica tosca de um diamante com 2,5 metros de altura, antes disso, será apenas uma estante com pílulas coloridas.
foi avaliada em 20 milhões de dólares pela casa de leilões Assim, se no passado os museus e galerias vinham a re-
Christie's. boque da obra de arte, isto é, se a exposição era uma conse-
- Jeff Koons lidera toda uma linhagem de artistas que
quência ou um reconhecimento do seu valor artístico, hoje
mostram que uma parcela importante da arte contemporâ-
os museus e galerias determinam não apenas o valor artísti-
nea é feita por moedeiros falsos, por prostitutos da banali-
co e financeiro da obra, mas sua própria existência enquan-
dade. Aliás, antes de enveredar pelas artes plásticas, Koons
era corretor de valores e trabalhou em Wall Street - uma to arte. Pois não se trata mais de obras com qualidades in-
experiência perfeita para o artista contemporâneo. trínsecas, mas sim de obras que, ao serem designadas como
É assim que o crítico James Gardner se refere a Koons tal pelo sistema, ganham valor com essa designação. O local
no livro Cultura ou lixo?: "0 último, mas também o mais e o tipo da exposição, seu curador, sua presença na mídia
insignificante. Num mundo perfeito, nem falaríamos dele. etc. modificam a obra e lhe atribuem status, sel).do que de-
Veríamos a sua arte como uma brincadeira marota que, terminadas galerias e museus imprimem à obra mais valor
embora faça rir, está condenada ao esquecimento. Como que outros museus e galerias, e assim por diante.
Koons continua sendo levado a sério por gente que se leva Ou seja, a pós-modernidade estabelece novos mecanis-
mais a sério ainda, é impossível ignorá-lo numa discussão mos valorativos e consagrantes: hoje não existe mais opo-
sobre arte contemporânea. Pelo que sei, ele jamais fez uma sição entre obra boa e obra ruim (uma e outra podendo ou
obra de arte que fosse formal ou espiritualmente ambiciosa. não ser expostas), mas entre obra (exposta e reconhecida
Aliás, ele nunca fez uma obra de arte." pelo sistema) e não obra (não exposta, por maiores que se-
jam suas qualidades intrínsecas). É o velho mecanismo de
••• distinção (analisado exemplarmente pelo sociólogo Pierre
Bourdieu) inflado ao extremo, a ponto de se tornar o centro
Até o projeto moderno, uma obra de arte era autônoma em do sistema: o valor e a própria realidade da arte são artifi-
relação à sua exposição, isto é, uma pintura de Matisse ou cialmente constituídos.

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Hoje, literalmente, qualquer coisa pode ser designada próprio estabelecimento do significado de uma obra é vaciá-
como arte. O preço disso é o rompimento de um consenso vel, pois depende cada vez mais de dados externos a ela, a
tácito sobre o que é ou deve ser a arte. O sistema desliga-se tarefa do crítico fica muito dificultada.
assim da realidade e passa a operar num plano abstrato, vir- O famoso urinol de Marcel Duchamp foi concebido,
tual, puramente especulativo, sem qualquer lastro. A obra em 1917, como antiarte, como uma provocação, como um
circula entre a instituição e o mercado, num vaivém infinito, objeto para não ser exposto - pois foi recusado até pela
ou melhor: a instituição é absorvida pelo mercado, na me- exposição em Nova York que tinha como critério não recu-
dida em que perde sua autoridade de legitimação autônoma sar nenhuma obra, exposição da qual o próprio Duchamp
da arte, desprendida de seu valor de troca. era um dos curadores - nem muito menos comercializa-
No sistema da arte contemporânea, o artista e sua obra do. Aliás, um fato pouco mencionado é que o urinol origi-
ocupam o degrau mais baixo: subordinam-se às instituições, nal desapareceu pouco depois de ser fotografado por Alfred
e estas ao mercado. Os mecanismos de validação da arte já Stieglitz, naquele ano. Em 1968, traindo o espírito de sua
não se distinguem dos mecanismos através dos quais o mer- própria criação, Marcel Duchamp "produziu" e "assinou"
cado opera. Do papel ativo nas utopias artísticas revolucio- oito réplicas do ready-made, que foram compradas por di-
nárias dos anos 1960 e 1970, que questionavam o papel do versos museus e colecionadores. Dessa forma, enquadrou-se
mercado e das instituições, o artista passou ao papel de es- numa lógica institucional e mercadológica uma obra que foi
cravo do sistema mercadológico, de poderes irrestritos. produzida para escapar desta mesma lógica.
A aliança com o mercado e as instituições afeta todas as O mesmo processo vitimou diversos objetos dadaístas,
etapas da produção artística contemporânea. Há uma redis- hoje comportadamente expostos, para o deleite de turistas
tribuição de poderes entre o artista, o curador, o público, o apressados, em museus que viraram centros de entreteni-
galerista, o marchand. Na imprensa e na academia, a crítica, mento. Da mesma forma, foram esvaziados e enquadrados
por sua vez, acuada pelas pressões desses agentes, se limita os procedimentos da arte Site-specific e da Land Art, bem
a uma descrição não comprometida de forma e conteúdo, como das instalações e happenings.
que não coloca em questão os postulados e o contexto da O resultado disso tudo é que, ao ser exposta, a obra de
criação, nem os critérios de qualificação ou desqualificação arte contemporânea traz muitas vezes uma incompletude,
desta ou daquela obra ou tendência. um componente de falsidade. Se foi concebida para se re-
O processo de institucionalização da arte contemporâ- lacionar com algo que lhe é externo, algo passageiro e cir-
nea leva ao declínio do senso crítico. Num cenário onde não cunstancial, ao se submeter às salas convencionais dos mu-
existe mais um ponto fixo a partir do qual se possa analisar seus ou às quatro paredes do "cubo branco" da galeria, esta
a obra de arte, o papel do aparato crítico e historiográfico obra se mutila, torna-se apenas uma sombra ou um resíduo
se limita ao registro flácido e ao testemunho neutro: como o do original. •

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Nesse sentido, foi notavelmente coerente a argumenta- Algumas informações reveladoras sobre Damien Hirst:
ção de Richard Serra no caso de sua obra Tilted Are, que, • Para atender a demanda do mercado por obras suas,
instalada numa praça pública, gerou diversos protestos da Hirst administra uma equipe de mais de cem assistentes,
população local, por atrapalhar a circulação, quebrar a entre operários, artesãos, químicos, taxidermistas, biólo-
harmonia da paisagem etc. O governo determinou que a gos e engenheiros. Ele raramente coloca as mãos na massa,
obra fosse retirada da praça, e Serra argumentou que remo- apenas supervisiona tudo, a distância. Na melhor tradução
ver a obra seria destruir a obra, e tinha toda razão - da conceituai, Hirst garante que "o importante é a ideia, não a
mesma forma que a comunidade local tinha razão em pro- sua execução".
• Sobre as telas que assina, Hirst já declarou que são
testar. A escultura acabou sendo removida, num episódio
pintadas por assistentes: "Não estou a fim de me preocupar
bastante revelador da complexidade da relação entre a esfe-
com isso. A pessoa que melhor tem pintado para mim é Ra-
ra pública e a privada.
chel. Ela é brilhante, o melhor quadro meu que você pode
Seguindo a mesma lógica, expor o urinol de Duchamp
ter é um quadro pintado por Rachel." Quando outra assis-
num museu ou comercializá-lo é destruí-lo no que ele tem de
tente resolveu deixar o emprego, pediu a Hirst uma tela sua
relevante: é estabelecer com o urinol uma relação fetichista,
como lembrança, e ele sugeriu que ela própria a pintasse: "A
negando o que ele continha de deboche, contestação e revol- única diferença entre uma tela pintada por ela e uma pinta-
ta, e que era sua própria razão de ser. Comprar por milhões
da por mim é o preço", afirmou.
de dólares um muro grafitado pelo artista inglês Banksy e Ou seja, do artista não se espera mais que crie, apenas
removê-lo de seu local para uma instituição deveria signi- que assine. A criação, que exige talento e prática, é hoje me-
ficar destruir a obra de Banksy. Mas pouca gente parece se nos importante que a adequação a uma demanda que rati-
dar conta disso: só se fala nas cifras, que é o que interessa à fique a legitimidade do sistema, que em contrapartida legi-
mídia e ao mercado. timará o artista e sua obra - designando-os como artista
(De fato, em 2007, um muro em Londres pintado por e obra, justamente. Da mesma forma que a assinatura do
Banksy foi comprado por 420 mil dólares. O comprador artista consagrado transfere valor à sua obra (é arte aquilo
teve que arcar com os custos de remoção da obra e com a que o artista diz que é arte), o sistema transfere valor ao
reforma do muro.) artista, atestando sua inclusão como membro de um grupo
A grande pergunta é: existe alguma forma de o artista e (é artista aquele que o sistema aponta como artista}. Nos
sua obra driblarem esses mecanismos de apropriação e insti- dois casos, os gestos decisivos são de designação, quase de
tucionalização? indexação.
Mas a quem, fora as partes interessadas, Damien Hirst
••• convence ou engana? É essa iconoclastia de fachada que o

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sistema da arte valoriza? Em nome de que valores é possível financeiras privadas e· as coleções particulares absorvem as
justificar ou mesmo entender as informações acima? mais importantes obras brasileiras do passado e do presen-
Resposta: em nome do dinheiro. A importância da arte te. É a privatização da cultura.
de Damien Hirst está no fato de que ela cria dinheiro, e so- As corporações não entraram nesse negócio de manei-
mente nisso. Sem dinheiro, acabou o seu valor, porque é o ra desinteressada, mas com objetivos variados - a melhoria
dinheiro que lhe confere valor artístico. O dinheiro ocupou da própria imagem, a atração de novos clientes, a associa-
o vazio existencial deixado pela arte contemporânea, des- ção a urna atividade culturalmente valorizada pela mídia, o
provida de qualquer sentido espiritual. Isso reflete triste- contato com um público de elite, a fabricação do gosto; no
mente a realidade de que, na sociedade em que vivemos, o final das contas, todas essas metas desembocam numa só:
dinheiro tem um significado existencial mais importante do aumentar os lucros. Os museus, quase sempre endividados,
que a arte.
são pressionados a "se vender melhor" e precisam correr
atrás de grandes patrocínios - mas estes só aparecem para
••• projetos glamorosos que chamem a atenção da mídia, não
para o funcionamento regular da instituição, que se torna
Desde a década de 1980 - coincidentemente, ao mesmo
mais urna vítima da especulação cultural.
tempo que o neoliberalismo se instalava como ideologia ho-
mogênea em nível planetário - as grandes corporações pas- É claro que a injeção de capital no mundo da arte tem
saram a ter influência ativa no mundo da arte, comprando e um lado bom, que é evidente. Seu lado ruim é menos visí-
encomendando obras cada vez mais caras (um objeto de arte vel: a subordinação da arte aos negócios; dominada pelas
vendido por um preço exorbitante eleva o status do compra- corporações, a arte tende a seguir cada vez mais a lógica do
dor e do artista), patrocinando programas de bolsas, abrindo marketing, da publicidade, da celebridade, do espetáculo; a
galerias e espaços de exposição, integrando conselhos de ins- experiência estética é reduzida à moda e ao consumo passi-
tituições artísticas etc. Tudo isso faz com que cada centavo vo; megaexposições se sucedem nos grandes museus como
aplicado em mecenato tenha um enorme retorno. os blockbusters no cinema: sem reflexão crítica, sem hie-
Boa parte da produção contemporânea brasileira está rarquia, sem contestação, numa sociedade que reduz toda a
hoje sob a guarda de instituições financeiras privadas, como cultura ao entretenimento.
o Itaú Cultural. Os espaços culturais privados se multipli- Quanto aos artistas contemporâneos, são conduzidos
cam, enquanto os museus públicos passam por crises terrí- pelo sistema a produzir desta ou daquela maneira - e por
veis. Em março de 2006, o Masp já contabilizava uma dí- isso se tornam cada vez mais previsíveis e repetitivos, como
vida de 4 milhões de reais com o INSS. Os acervos públicos ecos de si mesmos, com obras esvaziadas de conteúdo críti-
são roubados ou literalmente apodrecem por falta de con- co verdadeiro. A ideia de "estilo" foi desvalorizada na art~
dições mínimas de conservação, enquanto as instituições contemporânea, porque ainda estava associada a uma his-

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tória linear e a evoluções da expressão pictórica: em lugar rio é sempre quem contesta a arte); a reciclagem de vocabu-
de ter um estilo, o artista deve simplesmente se repetir, para lários do passado, em frequentes revivais (o retorno do pop,
seu necessário reconhecimento dentro da rede simbólica do do happening e, até mesmo ... o retorno da pintura!).
sistema da arte. Mas se na moda se reconhece que existem as fashion
Não foi à toa que, quando esteve no Brasil em 2004, o victims, na arte sequer isso: livre do crivo da crítica, o artis-
artista americano Frank Stella declarou: "Para os artistas ta de hoje nunca se equivoca, nunca erra o alvo. Outra dife-
que estão começando hoje, é mais importante ter um bom rença: na moda, o êxito depende da aceitação de um deter-
agente do que talento. Aumentou muito o número dos que minado público; na arte, nem isso, já que as propostas são
conseguem um lugar ao sol, mas são pouquíssimos, infeliz- feitas e aceitas pelos mesmos agentes do sistema, e a opinião
mente, os que prestam." (Curiosidade: Stella veio ao Brasil do público em geral é indiferente. Ninguém questiona mais
entregar uma encomenda de 500 mil dólares ao banqueiro a existência de um abismo entre a produção artística e o
paulista Edemar Cid Ferreira: um painel de quase 15 metros gosto das pessoas comuns.
de comprimento.) Mas, da mesma forma que seria absurdo acusar os es-
tilistas das grandes grifes ou as top models de participarem
••• de uma conspiração diabólica, não faria sentido atribuir
qualquer má intenção aos artistas, individualmente. Se um
Nos últimos vinte anos, multiplicaram-se tendências que sujeito coloca cascas de ovo numa mesa de pingue-pongue e
enfatizam aspectos conceituais, contextuais e imateriais da o sistema absorve e legitima, por que ele estaria errado? Em
arte, a ponto de hoje elas constituírem o mainstream da geral, o artista acredita sinceramente no que faz. Mas quan -
produção artística. Práticas pluralistas (obras que enfati- do o sistema da arte se apropria de sua boa-fé para alimen-
zam a relação com o público, artistas que se apropriam de tar a própria dinâmica, não se pode falar de inocência.
códigos não artísticos, arte digital ou virtual etc.) têm em Nesse sentido, mesmo que existam artistas autênticos, o
comum a inserção num mercado globalizado que a tudo é fato é que, diante dos processos de espetacularização e de es-
capaz de acolher. Até mesmo a culinária está sendo incor- peculação alucinada, a arte contemporânea é hoje uma men-
porada à esfera da arte: uma Documenta de Kassel incluiu tira na qual se finge acreditar - e com a qual mesmo aque-
em sua programação uma criação "artística" do chef espa- les que não fingem são obrigados a conviver, já que ela ocu-
nhol Ferrán Adriá. pa os espaços materiais e simbólicos, públicos e privados,
Com a moda, a arte contemporânea compartilha alguns impressos e virtuais do que se entende por arte.
aspectos bem conhecidos: a busca periódica por "novida- O chamado pluralismo e a fragmentação de tendências
des", que camufla uma uniformidade essencial; a abolição dificultam, curiosamente, qualquer renovação profunda da
do senso crítico e do medo do ridículo (ridículo e reacioná- linguagem artística, já que não existe mais uma narrativa que

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amarre os (e dê coerência aos) diferentes projetos em curso Assim, por exemplo, no começo dos anos 1990, quan-
- mesmo que, no fundo, todas essas práticas, geralmente do a arte mexicana esteve na moda, os artistas que ganha-
vendidas como grandes novidades, repitam ideias e conceitos vam boas corações no mercado eram aqueles jovens de
que circulam no meio artístico desde a década de 1960. inspiração conceituai, como Gabriel Orozco e Miguel Cal-
Mas não é só isso. Os discursos da arte contemporânea derón, que aliás recebiam apoio de instituições americanas
se afinam cada vez mais com o discurso das grandes corpo- para exercer a função simbólica de passar ao mundo uma
rações globalizadas, que promovem a mobilidade, a interco- imagem "modernizada" da cultura mexicana, muito dis-
nectividadc, a ausência de fronteiras e a produção imaterial tante da arte politizada e popular de Diego Rivera e sua
como os valores que definem a nossa época. Os artistas re- geração, e mais assimilável pelo gosto dos grandes agentes
produzem e reforçam assim o espírito da globalização neo- do sistema - como o megaempresário e mecenas Emílio
liberal, cujos principais efeitos têm sido a mercanrilização Azcarraga, fundador da Televisa, que ajudou a patrocinar
das relações humanas, a ausência de alternativas políticas e esse processo.
a desva lorização do trabalho. Ao mesmo tempo, o sistema da arte promove cada vez
Conformados com a impossibilidade pós-moderna de mais, entre os artistas bem-sucedidos, aquilo que o crítico
qualquer projeto transformador, os artistas alimentam a francês Nicholas Bourriaud chama de estética relacional, isto
alienação do público e se tornam eles próprios sujeitos alie- é, a adoção de práticas, estratégias e métodos característicos
nados, incapazes de refletir criticamente sobre o sistema em da indústria de serviços. Marketing, assessoria de imprensa,
que estão inseridos. O mercado reduz a obra de arte e o ar- fabricação de uma imagem, rodo um lado social prevalece
tista a valores de troca. sobre a produção artística em si: não é à toa que artistas e
Por sua vez, o curador não apenas substituiu o críti- curadores passam cada vez mais tempo viajando. As obras e
co na função de avalista intelectual da arte, como também os projetos são desenvolvidos nas horas vagas dessa agenda
saiu dos bastidores para ocupar uma posição quase autoral, lotada. Não existe mais espaço para a reclusão.
competindo com os artistas em "projetos" (que, por sua vez,
ocupam o lugar das "obras"). E são projetos que, cada vez •••
mais, abrem mão de qualquer ambição de permanência para
valorizar o volátil, o descartável e o ilusório. Tudo que é di- O que vem acontecendo na arte contemporânea é uma re-
ferente é normatizado e enquadrado num sistema de valores volução conservadora. Não no sentido político estrito, já
familiares e palatáveis ao mercado, numa espécie de World que diversas manifestações artísticas têm a pretensão de um
Art (no sentido da world music), também chamada de Inter- conteúdo "de esquerda", mas sim por reverter processos de
national Style. emancipação que a arte moderna deflagrou.

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l A ideia de que a produção contemporãnea é "radical"


ou "revolucionária" não resiste a qualquer exame sério. Por
exemplo: parece inegável que, após décadas de um movi-
relação às convenções sociais, defende o uso de drogas, pro-
testa contra o que considera censura, frequenta as colunas
sociais, nega qualquer responsabilidade moral para a arte
mento em que a arte confrontava as instituições, nos últi- etc. Um dos resultados, paradoxalmente, é o distanciamento
mos vinte ou trinta anos verificou-se uma reinstitucionaliza- total do público em relação à obra de arte em si: o artista
ção clara da atividade artística. Mesmo aquelas práticas que passa a ter interesse como personagem, seja de publicações
por princípio eram opostas às ideias de museu, coleção e in, seja da revista Caras, e não pelo que produz.
mercado - happenings, instalações, obras deliberadamente
efêmeras (tanto nos conceitos quanto nos materiais) - fo-
ram apropriadas pelas instituições e pelo mercado.
{Entenda-se por "mercado" não somente o conjunto de
negociações financeiras nos estabelecimentos comerciais,
leilões e galerias, mas também o conjunto de espaços, insti-
tucionais e não comerciais, como museus e centros culturais,
por onde a obra de arte circula e adquire valor. Mesmo que
não haja comércio propriamente dito nestes locais, proces-
sa-se aí uma troca simbólica de valores que constitui o fun-
damento de um sistema mercantilista.)
Outro movimento em que houve um retrocesso foi o de
questionamento da noção de "autor" - paralelo às teses
de Roland Barthes e Michel Foucault, que demonstraram
a constituição histórica da própria ideia de autoria. O pós-
modernismo reverteu todas as tentativas de dissociar a cria-
ção artística de manifestação de uma individualidade ilumi-
nada: hoje o artista ocupa mais do que nunca a posição de
gênio iluminado, de pop star, mesmo que seu trabalho se li-
mite à assinatura de objetos prontos ou de imagens alheias.
Nesse papel, o artista sabe que precisa atrair atenção:
emite opiniões sobre qualquer assunto, faz gracinhas, adota
um comportamento exótico ou supostamente desafiador em

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