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APONTAMENTOS SOBRE CRÍTICA NA CONTEMPORANEIDADE 1


Elisa Campos

Palavras-chave: crítica; arte contemporânea; práticas artísticas; museu; relações


arte/público/crítica/instituição.

Resumo: Apontamentos sobre questões que envolvem a produção de arte


contemporânea, suas práticas de edição e publicação e seus agentes: artista, público,
crítico e instituição.

Proponho aqui uma série de reflexões sobre a crítica contemporânea


problematizando e sintetizando questões que envolvem a produção artística, sua edição
e publicação, e os diferentes agentes envolvidos nessa dinâmica. 2

1.
É pertinente pensar a crítica e a curadoria de arte na atualidade focadas nas questões da
leitura e da interpretação, em contraposição à visão mais tradicional que focaliza a
discussão na criação e no artista.

É preciso, para compreender melhor esse deslocamento da crítica, rever as idéias de


Hegel a respeito da “morte da arte”, não entendida negativamente, mas exatamente
como momento do nascimento da autonomia da arte. A pintura compreendida como
“janela que apresenta o real” colocava o artista como um ser especial, acima do homem
comum, mais sensível e capacitado para revelar essa realidade. “Fechada” a janela, a
arte deixa de ser um instrumento privilegiado de conhecimento e compreensão de
mundo para tornar-se pura subjetividade. Estamos, portanto, diante da “obra singular” e

1
AMARAL, Maria Elisa Martins Campos. Revista ASA PALAVRA/ Faculdade ASA de
Brumadinho. Ano 3, nº6 ago/dez 2006. Brumadinho: Faculdade ASA, 2007 (p.13 -20).
2
Para desenvolver tais reflexões foi fundamental a contribuição do crítico e curador espanhol
Martí Peran através do curso Curar e Criticar: Novos Modos da Crítica de Arte que ministrou em
abril de 2007 no Museu de Arte da Pampulha – BH/MG.
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ao mesmo tempo “plural”, exigindo agora uma abordagem hermenêutica sempre


cambiante e duvidosa, um “projeto” sem código de acesso imediato. A teoria estético-
filosófica se multiplica, a arte passa a corresponder a um cristal multifacetado, jamais
abarcado integralmente senão através de variadas versões, incluindo ambigüidades e
paradoxos.

2.
A crítica é uma questão de mediação. Importa, pois, localizar qual a direção dessa
mediação, que informações e questões ela articula e conecta.
Na tradição da experiência crítica e estética tínhamos, na interação artista / obra /
público, um fluxo caracteristicamente linear: O artista, com seu insuspeitado “dom”,
produzia a obra de arte para um público específico. Ao crítico - personagem que surge,
pela primeira vez no Renascimento, com uma atividade especializada distinta do
trabalho do filósofo - passou a caber o papel de intermediário entre obra e público.
Alguém que facilitava o “acesso” à “excelência” da obra.

Nesse sentido, percebemos que há muito tempo o crítico desempenhou a função de


tornar pública a obra através do desenvolvimento do que poderíamos denominar
“registros da leitura da obra de arte” que passam pela descrição (elementos formais,
símbolos, narrativas), pela competência técnica do artista, pela interpretação (relações
históricas, contextuais, conceituais) e pela avaliação (opinião e juízos de valor). Tal
função, por muito tempo, colocou na responsabilidade desse profissional conferir à
produção do artista seu estatuto de obra de arte e, conseqüentemente, seu valor no
mercado.

Artista ⎯⎯⎯→ Obra de arte ⎯⎯⎯→ Público



Crítico
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Há nessa vertente crítica uma valorização do processo de amadurecimento gradual da


produção e da experiência plástica. A cultura Bildung 3 - que acredita numa construção
processual a partir da experiência acumulada (e da dor), permitindo paulatinamente a
conquista de melhores resultados - desemboca, entretanto, numa “cultura da
promessa”: há sempre algo a mais a ser conquistado que estará sempre além daquilo
que o indivíduo pode acessar. Nesse sentido fica ainda mais enfatizado o papel da crítica
como legitimação. É a crítica que aponta a qualidade artística desse ou daquele artista,
dessa ou daquela obra de arte.

Já a crítica contemporânea se estrutura de outra maneira. O artista, não mais


sacralizado, ausenta-se da obra oferecendo a ela expressiva autonomia. E o espectador,
não mais um ser passivo que apenas absorve o que lhe é mostrado, participa da obra,
seja como “leitor/interprete”, seja como co-autor ao interagir com a obra.

Permanece para o crítico a função de tornar pública a arte, papel que na


contemporaneidade ganha um cunho eminentemente político, renovando a idéia da
“construção de sentido”, não como algo a ser alcançado, mas vivenciado a partir da
experiência no momento atual, o aqui e agora em tempo real.

A imagem abaixo propõe uma nova configuração nas relações entre artista / obra /
público / crítico, explicitando uma realidade mais complexa e evidenciando que
concordâncias e disparidades convivem na contemporaneidade conferindo à leitura da
obra de arte assim como à sua fruição, uma rica pluralidade de conexões sensíveis e
cognitivas. Vemos também um crítico/leitor que não se coloca como simples mediador,
mas como alguém que compartilha das questões da produção e potencializa as relações
de sentido que a obra possibilita.

3
Conceito germânico utilizado por Karl Marx que define que todo objeto de cultura, natural ou
social, surge do trabalho ou dos seus desdobramentos in Manuscritos econômico-filosóficos, de
1844.
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Observando o diagrama podemos concluir que a zona de compartilhamento que se


refere a um repertório comum a artista, crítico e público, em relação a uma obra de arte
é mínima, fugindo inclusive ao controle do próprio artista a abrangência de seu trabalho.

Sobre isso Duchamp dizia:

“(...) na cadeia de reações que acompanham o ato criador, falta um elo. Esta falha representa a
inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção: esta diferença entre o que quis
realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na obra de arte. Em
outras palavras, o ‘coeficiente artístico’ pessoal é como uma relação aritmética entre o que
permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente.”
(DUCHAMP apud DERDYK, 2001:12)

3.
A urgência do real na arte contemporaneidade põe em foco algumas categorias que
conferem à crítica não mais uma experiência interior e posterior à produção plástica,
mas uma experiência prática onde a fronteira de atuação entre artistas e críticos se
dissolve. Esses passam a se reconhecer como agenciadores de práticas tanto artísticas
como conceituais, dentro de uma dimensão experimental e ‘plurimidiática’ e, nesse
sentido, a observação da produção recente já nos possibilita localizar algumas categorias
bastante recorrentes, tais como:

• Práticas documentais e para-documentais.


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Tais práticas contaminam não somente as artes como também a literatura: há


nessa categoria o reflexo do conflito máximo vivenciado na nossa sociedade entre
preservação e descarte, patrimônio e lixo, memória e esquecimento com ênfase
em situações marginais (da sociedade, da comunicação, da natureza, da arte,
etc.). Um trabalho como O Colecionador onde a artista plástica mineira Mabe
Bethônico cria um personagem que tem por hábito colecionar imagens de jornal e
classificá-las por diferentes temas, seria um bom exemplo dessa categoria. A
Bibliotheca de Rosângela Rennó, com seus álbuns coletados e lacrados em
vitrines, relacionados a um arquivo de catalogação onde constam descrições
técnicas objetivas ao lado de narrativas que apresentam os supostos conteúdos
de cada álbum, seria mais um exemplo dessas práticas documentais.

• Práticas do dispositivo
Estratégias que permitem que a realidade se revele e tome a palavra. Exemplo
desse tipo de estratégia seria o trabalho de René Francisco, artista cubano que
participou da 26ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2004. O artista realizou
uma enquete num bairro muito pobre de Havana, a fim de localizar alguém a
quem pudesse ajudar com a bolsa que ganhara de uma residência artística; junto
com os moradores do bairro escolheu então a casa de uma senhora idosa e
enferma e procurou satisfazer muitas de suas necessidades mais prementes
como, por exemplo, refazer as instalações hidráulicas da casa que se
encontravam em situação crítica. Na Bienal foi apresentado o vídeo A la casa de
4
Rosa que documenta toda a intervenção.

• Práticas do acontecimento
Nessa categoria se estabelecem estruturas vivenciais, a criação de experiências a
serem compartilhadas com comunidades não exclusivamente artísticas. Exemplo
disso são as propostas relacionais do artista tailandês Rirkrit Tiravanija, que
propõem um encontro onde o público participa de uma ação conjunta como a
preparação de um grande banquete.

4
A experiência está relatada por Maria Vidal Hernández no catálogo da 26ª Bienal de São Paulo,
FBSP, 2004, pág. 116.
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Todas essas categorias trabalham prioritariamente com questões de cunho político


e social, promovendo uma interface entre a arte e a esfera pública, localizando
linhas de força que promovem suas dinâmicas do interior do corpo social servindo
de motivação, provocação e mobilização. Podemos relacionar a isso a critica de
intervenção que muitas vezes mapeia contextos artísticos, pontuando conceitos
da contemporaneidade, articulando atitudes, ações e relações, práticas que se
inserem na atualidade por estarem diretamente vinculadas e comprometidas com
ela, lidando com suas questões sociais, culturais, econômicas. A crítica de
intervenção lida com a lógica do palimpsesto, onde intertextos e para-citações
criam interseções de valores, dinâmicas e experiências.

4.
Segundo os critérios que organizam a cultura ocidental, deduzimos a noção de sentido a
partir da experiência. A esfera institucional, desde sua implantação, se constitui com a
função de assumir o “sentido” sobre a cultura. De certa maneira ela tomou para si a
responsabilidade de “administrar o sentido” de forma a liberar o indivíduo desse “fardo”.
Ao mesmo tempo, afirmou-se enquanto instância de poder, frustrando o indivíduo por
não conseguir acatar plenamente as diferenças e as várias manifestações de forma
equânime e democrática, promovendo assim a manutenção de uma tradição do gosto
que se alinha exclusivamente aos anseios da elite, sobretudo financeira. Especializando-
se, como ocorre em todas as outras esferas de poder, a instituição tende a cristalizar-se
e envelhecer.

Urge, portanto, uma crítica da instituição. Desde o início do século XX, movimentos
artísticos e iniciativas individuais se prontificaram a engendrar essa crítica que, de
maneira bastante incisiva, tratou de colocar em questão a própria arte e com isso suas
instituições e valores. Um posicionamento inaugural dessa prática crítica está na obra
emblemática de Marcel Duchamp, evidenciando que o artista, a partir de então, passa a
assumir um importante papel na produção crítica de pertinência histórica, ou seja, no
questionamento da produção de seu tempo.
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O Museu, reconhecido como uma das mais importantes instituições destinadas à cultura,
se sustenta a partir da justificativa básica de preservar a obra de arte assim como
objetos e documentos tidos como testemunhos de seu tempo. É preciso, entretanto,
redimensionar a atuação do museu na contemporaneidade, de forma que assuma
verdadeiramente seu papel na produção de conhecimento, na criação contínua de
discurso e sentido, para desempenhar plenamente sua atuação histórica. O Museu -
lidando com a preservação, pesquisa e difusão cultural - não deve somente pensar a
memória do que se foi, mas construir memória, assumindo também a invenção, a
produção e a experimentação como formas de intervenção no seu tempo.

5.
Traçando paralelos entre a modernidade e a contemporaneidade, inicialmente, podemos
concluir uma diferença fundamental: nossa cultura deixou de ser pictórica para tornar-se
fotográfica, sendo essa categoria tomada pelo conceito de reprodutibilidade na qual
Walter Benjamin localiza a substituição de uma cultura “aurática” – referenciada no mito
da originalidade - para uma cultura do simulacro, da apropriação e da acessibilidade.

Na modernidade, temos uma valorização e fetichização da autoria e da autenticidade da


obra de arte. A forte presença da fotografia, nesse momento, ainda evidencia o desejo
de captura do real e de sua pretensa objetividade, somente fugindo a isso as
experiências dadaístas e surrealistas que em muito contribuíram para a compreensão e
ampliação do uso da fotografia como linguagem autônoma e potência expressiva. A
contemporaneidade, aprendendo muito com as colagens de Heartffield, Kurt Shwitters e
outros, além da fotografia de Man Ray e Brassaï, passa a utilizar procedimentos como a
apropriação, a montagem e re-combinação de informações e materiais, mais
sintonizados com uma postura de pós-produção: uma cultura do DJ, da “pirataria” tida
como “licença-livre” que contradiz e põe em crise toda uma cultura do “copyright” ou de
“reserva-de-direitos”.
6.
Podemos ainda pensar uma abordagem da crítica a partir de duas de suas importantes
instâncias: a escrita e a literatura. Resgatando as inegáveis contribuições de Roland
Barthes e Maurice Blanchot, localizamos mudanças fundamentais quanto à prática
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literária, distinguindo os procedimentos modernos dos contemporâneos. O escritor, a


partir dos conceitos bartheseanos, é aquele que, a partir da estrutura lingüística,
engendra o “acontecimento” da escrita, diferentemente do “escrevente” que registra e
certifica uma informação ou narrativa. Ao escritor cabe, nesse sentido, construir
conhecimento ao invés de revelá-lo ou apresentá-lo. Já Blanchot enfatiza que o espaço
da escrita é o espaço da potência onde o acontecimento literário pode tomar forma. Para
ele, também os brancos do papel, as pausas, a imagem tipográfica, são instâncias onde
se efetiva a construção literária e a expressão. Para ambos, a apropriação e articulação
de fragmentos tornam-se importantes ferramentas para a produção literária, criando um
entrelaçamento de informações que se abrem a múltiplos nexos e composições,
abandonando assim a pretensão de uma abordagem integral do todo em benefício de
uma ampliação de sentidos na multiplicação das partes. Enquanto a visibilidade moderna
localiza o detalhe para melhor compreender o todo, e muitas vezes se perde na
vertigem de tal especialização, a visibilidade contemporânea caminha pelo
estilhaçamento sem a ilusão de abarcar o real, enfrentando, pois, a singularidade, a
literalidade e a fluidez do real.

A crítica contemporânea está intrinsecamente vinculada a tais conceitos. Há uma


espécie de comportamento “orgânico” relacionado às práticas artísticas e críticas, na
atualidade, que poderíamos associar à idéia da espiral: uma estrutura possível para
explicar que a construção de conhecimento ligada à produção cultural não tem nem
começo nem fim, se fazendo por fragmentos, promove tanto o crescimento quanto
contínuas destruições e apagamentos. Há, nessa mesma linha de raciocínio, um sentido
de “corporeidade”, uma “reabilitação do corpo”, bastante recorrente na cultura
contemporânea, apontando para questões como a temporalidade e valorização do
momento presente verificável através da forte presença de ações efêmeras na arte,
como as performances e intervenções no espaço urbano.

A crítica, atuando também no âmbito da curadoria, hoje acontece como exercício de


pós-produção, transformando o objeto artístico, reeditando-o, repensando-o,
problematizando-o. Os dispositivos da exposição ou, melhor definindo, da “publicação”
da arte (dispositivos para torná-la pública) se multiplicaram através da diversificação
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dos espaços (museus, galerias, espaços alternativos, espaço urbano, catálogos,


tablóides, Web, etc.) cabendo aos profissionais da área “gerar formatos de edição” para,
enfim fazer pensar, movimentar as idéias.

A obra, colocada em jogo - publicada através de peça gráfica ou exposição-, mesmo que
representante de um movimento passado da arte, independente da data em que foi
realizada, jamais será verdadeiramente histórica tendo em vista que, trazida ao
presente estará sempre contaminada pelo prisma da contemporaneidade: ela está
sempre sendo re-editada a partir dos olhares que se acumulam sobre ela re-
significando-a continuamente. Nesse sentido, torna-se fundamental a atuação crítica e
curatorial que atualiza a obra, colocando-a “em ato”, integrando-a a uma teoria da
história e dos conceitos. Segundo Stéphane Huchet 5 , a crítica nasce da falta de
comunicação, precisando assumir, portanto, a “produção de barulho”, algo como o
estranhamento e a dúvida, a crítica como intervenção cultural. Citando Ricardo
Basbaum, Huchet declara que a crítica não deve pensar sobre arte ou a partir da arte,
mas pensar “com a arte”.

Bibliografia:
BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.
____________. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BASBAUM, R. Arte Contemporânea Brasileira. Texturas, dicções, ficções estratégias. Rio
de Janeiro: Ed. Rios Ambiciosos, 2001.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. IN: Obras
Escolhidas - Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BLANCHOT, M. O espaço literário. São Paulo: Ed. Rocco, 1987.

DUCHAMP, M. Apud DERDIK, E. Linha de horizonte. Por uma poética do ato criador. São
Paulo:Escuta, 2001.

FOUCAULT, M. A palavra e as coisas. Lisboa: Portugália Editora, s/d.


HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os
Pensadores)

5
Stéphane Huchet é Doutor, pesquisador e curador francês radicado no Brasil (BH/MG),
professor da Escola de Arquitetura da UFMG e da Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da
UFMG.
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HUCHET, S. In: SEMINÁRIOS Espaços Críticos nas Artes. Coordenação: Ana Lúcia
Andrade. Escola de Belas Artes/ UFMG, 2007.
PERAN, M. Curso Curar e Criticar: Novos Modos da Crítica de Arte. Museu de Arte da
Pampulha, maio de 2007.

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