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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Formação de Professores

Ronald Coutinho Santos

Relações de poder na construção do currículo praticado: uma


análise de conflitos na prática cotidiana de professores na
implementação da Lei 10.639 no ensino de geografia

São Gonçalo
2017
Ronald Coutinho Santos

Relações de poder na construção do currículo praticado: uma análise de


conflitos na prática cotidiana de professores na implementação da Lei 10.639
no ensino de geografia

Dissertação apresentada, como


requisito parcial para obtenção do título
de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Produção Social do Espaço: Natureza,
Política e Processos Formativos em
Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Renato Emerson N. dos Santos

São Gonçalo
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/D

S237 Santos, Ronald Coutinho.


TESE Relações de poder na construção do currículo praticado :
uma análise de conflitos na prática cotidiana de professores
na implementação da Lei 10.639 no ensino de geografia /
Ronald Coutinho dos Santos. – 2017.
224f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Renato Emerson N. dos Santos.


Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de
Professores.

1. Geografia – Estudo e ensino – Teses. 2. Práticas


pedagógicas – Teses. 3. Geografia – Ensino – Currículos –
Teses. I. Santos, Renato Emerson N. dos. II. Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Formação de
Professores. III. Título.

CDU 911:37

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta dissertação, desde que citada a fonte.

____________________________ ____________________________
Assinatura Data
Ronald Coutinho Santos

Relações de Poder na construção do currículo praticado: uma análise de


conflitos na prática cotidiana de professores na implementação da Lei 10.639
no ensino de geografia

Dissertação apresentada, como


requisito parcial para obtenção do título
de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Produção Social do Espaço: Natureza,
Política e Processos Formativos em
Geografia.

Aprovado em

Banca examinadora:

__________________________________________
Prof. Dr. Renato Emerson N. dos Santos (Orientador)
Faculdade de Formação de Professores - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Denílson Araújo de Oliveira
Faculdade de Formação de Professores - UERJ

__________________________________________
Prof.ª. Dr.ª Maria Tereza Goudard Tavares
Faculdade de Formação de Professores - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Eduardo José Pereira Maia
Universidade Federal do Rio de Janeiro

São Gonçalo
2017
AGRADECIMENTOS

Tendo em mente o ditado Zulu “umuntu ngumuntu ngabantu” (uma pessoa é


uma pessoa através de outras pessoas), inicio meus agradecimentos dedicando
essa dissertação e o meu processo de formação no Programa de Pós-Graduação da
UERJ-FFP a todas e todos que me concederam apoio, que acreditaram em mim e
que de forma direta e indireta tornaram possível a entrada no programa e a
realização deste trabalho.
A minha mãe Ana, agradeço pelo apoio incondicional ao longo desse
processo e de muitos outros de nossas vidas. Obrigado por acreditar em mim,
mesmo quando eu não acreditava e por ter me ensinado a não desistir dos meus
objetivos. Você é minha fortaleza.
A minha irmã Isabela, agradeço pelo amor e cumplicidade. Por sempre estar
ao meu lado e por entender, apoiar e investir em minhas opções acadêmicas. Se
hoje estou na faculdade, e tenho na minha prática uma perspectiva militante é
graças a você.
E a meu pai Raimundo, agradeço por tudo que você me deu e ensinou.
Obrigado pela sua generosidade e simplicidade. Pelo amor incondicional, pelo
carinho e afeto. Não encontro palavras que consigam te agradecer, simplesmente
fico imerso em um enorme sentimento de gratidão. Muito obrigado.
Ao Prof. Dr. Renato Emerson N. dos Santos (FFP-UERJ), meu orientador ou
“suleador”. Eu lhe agradeço pela liberdade e indiscutível confiança referente ao
presente trabalho, além da compreensão em momentos difíceis. Não posso
esquecer-me de agradecer pela oportunidade que me deu ao ingressar ao Núcleo
de Estudos e Pesquisa em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais
(NEGRAM) há cerca de 6 anos, onde pude aprender com seus exemplos de
comprometimento e caráter e obtive grande parte da formação como pesquisador.
E por falar no NEGRAM, tenho que falar dos companheiros que passaram
pelo núcleo e fizeram parte de meu crescimento. A começar por aqueles que me
acolheram no momento que iniciei na pesquisa, é o caso de Flávio Guimarães,
Gabriel Siqueira, Glauber Henrique, Raphael Costa e Thyago Araújo (em memória)
agradeço por terem me apoiado durante todos esses anos de pesquisa, repassando
seus conhecimentos, auxiliando nos trabalhos, dando conselhos, além da amizade
que construímos.
Agradeço também aos demais companheiros e companheiras que
fizeram/fazem parte do NEGRAM, pessoas com quem pude trocar experiências,
materiais e conhecimentos, além de se tornarem grandes amigos e amigas, que
transformam o dia-a-dia de trabalhos e debates mais agradáveis, estes são: Adriani
Theophilo, Ana Carolina Carvalho, André Tinoco, Dayana Leopoldo, Diego Borges,
Diogo Cirqueira, Fausto Cafezeiro, Gabriel Fortunato, Iviling Meloni, Jorge Azevedo,
Jorlandro Louzada, Júlio Brito, Karoline Santos, Lisy Ribeiro, Marina Baptista.
Aos amigos e amigas da turma de Mestrado, Carol Pinho, Cícero Simões,
Fabiana Ferreira, Felipe Fernandes, Jaciele Gralato, Jacira Calixto, Josi Farias,
Nathalia Santos, William Andrion, agradeço pela paciência e companheirismo, além
das contribuições e debates calorosos que tivemos durante esse período de
formação. E especialmente aos amigos de classe da graduação que se tornaram
amigos de classe do mestrado Isabel Linhares e Erich Moura, onde estou, em
grande parte, devo ao apoio de vocês.
Aos professores e funcionários que tive a oportunidade de conhecer ou
reencontrar no mestrado, em especial a secretária do Programa de Pós-Graduação
em Geografia Veronica Mateus e aos coordenadores Charlles da França Antunes e
Otavio Miguez da Rocha-Leão que não mediram esforços para conseguir as
melhores condições de trabalho para o programa e para os pesquisadores a eles
vinculados. Agradeço por confiarem a mim a bolsa da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Sem tal ajuda financeira
seria inviável realizar esta pesquisa, com toda dedicação que a mesma necessita.
Agradeço aos professores André Luiz Carvalho da Silva, Catia Antonia,
Denilson Araújo, Marcos Couto, Maria Tereza Goudard (PPGedu), Paulo Roberto
Raposo Alentejano e Ruy Moreira, com quem tive a oportunidade de aprender a ser
um profissional melhor. Também, gostaria de agradecer aos docentes Andrelino
Campos e Eduardo Karol, com quem não tive a oportunidade de ter aula no
mestrado, mas através de conversas nos corredores e salas de pesquisa da FFP-
UERJ, contribuíram igualmente para o meu processo formativo.
Aos meus amigos e amigas que a FFP-UERJ me proporcionou, Leonardo
Beliene, Amãna Vieira, Bruno Alves, Diogo “Piricas” Alchorne, Dona Tania, Dona
Dalva, Zenilda Silva, Milaysa Paz, Núbia Beray, Maycon Moura, Taina Salles, Thalita
Antunes, Isabel Tomaz, Thais Camelo, Ludmylla Gonçalves, Julia Zaroni, Tatiane
Jiquiriçá, Érika Azevedo, Estevão Pinho, Felipe Mariano, Otávio “Toru”, como
também outros e outras que já foram citados aqui. Vocês são pessoas brilhantes e
de luta, pessoas a quem admiro muito. Muito obrigado pelos momentos de
descontração, cumplicidade e amizade.
Agradeço aos companheiros e companheiras da Associação de Geógrafos
Brasileiros seção Niterói (AGB-Niterói), Lucas Honorato (grande companheiro sem o
qual eu não estaria no mestrado), Eduardo Maia, André Tinoco (mais uma vez),
Karina Araújo, Astrogildo de França Filho e Fabrícia Correa, profissionais e amigos
com quem tenho o prazer de poder contribuir na luta diária em promover o
desenvolvimento da Geografia, bem como estimular o estudo e o ensino da mesma.
Da mesma forma, não poderia deixar de citar os companheiros Andrea Ketzer
Osorio (AGB-PoA), Brunão “Dindo da Bia” (AGB-PoA), que mesmo de longe, através
das suas militâncias no campo da educação ajudaram/ajudam a evidenciar a
importância de se lutar por uma educação que se atente para os temas
marginalizados. A minha companheira Acácia Pereira, a quem tenho que agradecer
pelos puxões de orelha, pela fala compreensiva e pela leitura sempre atenta. Sem
você esse momento não seria possível, você faz parte da minha história e nada irá
apagar isso. Obrigado.
Ademais, mais uma vez agradeço a todos que, direta ou indiretamente,
contribuíram para a realização deste trabalho. Obrigado por vocês existirem.
Ler criticamente o mundo é um ato político-pedagógico; é inseparável do
pedagógico-político (...)
Paulo Freire
RESUMO

SANTOS, Ronald Coutinho. Relações de poder na construção do currículo


praticado: uma análise de conflitos na prática cotidiana de professores na
implementação da Lei 10.639 no ensino de geografia. 2017. 224f. Dissertação
(Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2017.

Mais que um ambiente de trocas de saberes e experiências, o cotidiano


escolar pode ser compreendido como um campo em disputa por diferentes projetos
de sociedade e concepções de mundo. Ao partir dessa premissa, e do entendimento
sobre a função histórica na Geografia na construção de visões de Mundo, o presente
estudo objetiva evidenciar as relações de poder existentes nas relações cotidianas
de professoras e professores de Geografia que tentam introduzir a discussão racial
em seu currículo praticado. No presente estudo, essas disputas aparecem como
“conflitos”, sendo estes uma chave de leitura que trabalharemos através das
dimensões: i) do conflitos cotidianos; ii) do currículo praticado; e iii) do racismo. A
opção de compreender as relações engendradas no cotidiano através da dimensão
dos conflitos representa uma leitura possível (mas não a única) para entender como
o racismo se inscreve no ambiente escolar e afeta de maneira direta e/ou indireta a
prática docente de professoras e professores e a Geografia enquanto disciplina
escolar.

Palavras-chave: Relações de poder. Prática docente. Lei 10.639/03. Ensino de


geografia. Currículo. Cotidiano escolar. Racismo.
RESUMEN

SANTOS, Ronald Coutinho. Las relaciones de poder en la construcción de planes de


estudio practicado : un análisis de los conflictos en la práctica diaria de los docentes
en la implementación de la Ley 10.639 en la enseñanza geografía. 2017. 224f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de Professores,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2017.

Más que un ambiente de intercambios de saberes y experiencias, el cotidiano


escolar puede ser comprendido como un campo en disputa por diferentes proyectos
de sociedad y concepciones de mundo. A partir de esa premisa, y del entendimiento
sobre la función histórica en la Geografía en la construcción de visiones de Mundo,
el presente estudio objetiva evidenciar las relaciones de poder existentes en las
relaciones cotidianas de profesoras y profesores de Geografía que intentan
introducir la discusión racial en su currículo practicado . En el presente estudio, esas
disputas aparecen como "conflictos", siendo estos una clave de lectura que
trabajaremos a través de las dimensiones: i) de los conflictos cotidianos; ii) del
currículo practicado; y iii) del racismo. La opción de comprender las relaciones
engendradas en lo cotidiano a través de la dimensión de los conflictos representa
una lectura posible (pero no la única) para entender cómo el racismo se inscribe en
el ambiente escolar y afecta de manera directa y / o indirecta la práctica docente de
profesoras y profesores y la Geografía como disciplina escolar.

Palabras-clave: Relaciones de poder. Práctica docente. Ley 10.639/03. Enseñanza


de geografía. Currículo. Cotidiano escolar. Racismo.
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Separação entre Embates e Dilemas relatados pelos 5


professores acompanhados de 2008 a 2011 ............................. 168
Gráfico 2 - Distribuição de Embates e Dilemas por Professor(a) ................ 169
Gráfico 3 - Interlocutores em relações de Embates ..................................... 170
Gráfico 4 - Porcentagem de opositores a prática dos professores
acompanhados............................................................................ 171
Gráfico 5 - Objetos em disputa nas relações de Embate ............................. 172
Gráfico 6 - Motivador/Interlocutor dos Dilemas............................................. 173
Gráfico 7 - Quantidade de Embates e Dilemas divididos por Mês/Ano ....... 178
Gráfico 8 - Quantidade de Embates e Dilemas divididos por Mês/Ano........ 181
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AGB Associação dos Geógrafos Brasileiros


DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
MEC Ministério da Educação
SEEDUC – RJ Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro
SEPE Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação
UERJ-FFP Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de
Formação de Professores
CPII Colégio Pedro II
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 13
1 RAÇA E RACISMO: ENTRE ESCALAS E TEMPORALIDADE .......... 22
1.1 A raça, racismo e o sistema-mundo moderno-colonial................... 23
1.2 As múltiplas faces do racismo no Brasil........................................... 34
1.2.1 Da sua forma oculta, à branquitude e branquidade: os mecanismos
“sutis” de perpetuação do racismo nas relações sociais brasileiras...... 36
1.2.2 As inculcações do racismo nas relações espaciais brasileiras.............. 50
1.3 Reflexões para a análise do racismo no presente estudo............... 55
2 RELAÇÕES DE PODER NA CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO: DE
INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO A CAMPO EM DISPUTA.............. 65
2.1 Cotidiano escolar e as relações de poder......................................... 70
2.2 Apontamentos acerca da construção do currículo.......................... 78
2.2.1 As teorias e as políticas de currículo..................................................... 78
2.2.2 Escalas da construção curricular: o prescrito, o praticado e o oculto... 85
2.3 Campos de disputa para construção de uma educação
antirracista........................................................................................... 89
2.3.1 A construção do conhecimento e o rebatimento na formação de
identidades............................................................................................. 90
2.3.2 Multiescalaridade do combate ao racismo na educação....................... 99
3 ANTIRRACISMO E ENSINO DE GEOGRAFIA: A DISPUTA
DO/PELO CURRÍCULO COMO PERSPECTIVA PARA A
CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA.................... 110
3.1 As mudanças na geografia que se ensina e a formação de uma
“Tradição Geográfica”......................................................................... 113
3.1.1 Da geografia corográfica à formação da geografia tradicional.............. 117
3.1.2 A renovação crítica da Geografia: ruptura, consolidação e
aprofundamento..................................................................................... 123
3.2 A geografia que se ensina, o racismo e as teorias pós-críticas:
diálogos para a construção de uma educação antirracista............. 133
3.2.1 Teorias raciais na geografia tradicional................................................. 134
3.2.2 A renovação crítica: rompimento com o racismo?................................. 142
3.2.3 Outros caminhos para o ensino de geografia........................................ 146
4 DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA NO ENSINO DE GEOGRAFIA: OS CONFLITOS
NA PRÁTICA COTIDIANA DE PROFESSORES.................................. 151
4.1 Acerca dos procedimentos metodológicos para a análise das
disputas no cotidiano escolar............................................................ 157
4.2 Conflitos na prática docente: entre embates e dilemas................... 161
4.2.1 Apresentação dos conflitos no cotidiano das/dos docentes
acompanhadas/os ................................................................................. 167
4.2.2 A prática docente antirracista e as tensões nas relações do/no
cotidiano escolar ................................................................................... 182
4.2.3 Cotidiano escolar e o ensino de geografia: de um palco de conflitos a
um campo de disputa............................................................................. 191
APONTAMENTOS FINAIS ................................................................... 203
REFERÊNCIAS .................................................................................... 209
APÊNDICE A – Quadro de Embates..................................................... 219
APÊNDICE B – Quadro de Dilemas...................................................... 223
13

INTRODUÇÃO

A presente dissertação tem como objetivo realizar uma análise sobre as


relações de disputa em torno da questão racial no ambiente escolar e a consequente
influência na prática cotidiana dos professores de Geografia. Com isso, busca-se
compreender como a releitura dos conteúdos trabalhados na geografia que se
ensina, pode causar tensões com saberes e práticas tradicionalmente engendradas
nesse ambiente (e vice-versa), além de ajudar a complexificar as leituras sobre o
racismo no ambiente escolar e na sociedade.
De início, é importante salientar que, apesar das inúmeras transformações,
desde sua consolidação como disciplina escolar no século XIX, a Geografia
apresenta embutido na forma de conteúdos e práticas, um discurso racializado de
sociedade e de mundo. Discursos que apesar das inúmeras transformações, ainda
se fazem em menor grau, ou de forma diferente, presente na Geografia que se
trabalha nas escolas brasileiras.
Sobre essas transformações, a maior e mais relevante para o presente
trabalho, remonta ao processo de renovação crítica da Geografia, movimento que
começou no final da década de 1970 e que ainda hoje permeia parte dos trabalhos
sobre o Ensino de Geografia. Dentre os diversos fatores internos e externos que
serão destacados posteriormente, se ressalta o impacto proporcionado pelas
mudanças trazidas com a lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 5.692 de 1971 1,
o que fez com que diversos pesquisadores e pesquisadoras buscassem a partir do
movimento de resistência a essa lei, construir uma nova identidade para a Geografia
brasileira. Identidade essa, que para além de ressaltar a importância da geografia
que se ensina, rompesse com a chamada Geografia Tradicional.
Ajudando-nos a compreender um pouco esse movimento, William Vesentini
(2008) destaca que a Geografia Crítica

[...] Trata-se de uma geografia que concebe o espaço geográfico como


espaço social, construído, pleno de lutas e conflitos sociais. Ele critica a

1
Regulamentada e definida pela resolução nº 8 do Conselho Federal de Educação, de 1º de
dezembro de 1971, essa lei promoveu a introdução do núcleo comum para os currículos de ensino de
1º e 2º graus em todo o país. Sendo este composto pelas matérias: a) Comunicação e Expressão – A
Língua Portuguesa; b) Estudos Sociais- a Geografia, a História e a Organização Social e Política do
Brasil; c) Ciências – a Matemática e as ciências Físicas e Biológicas.
14

geografia moderna no sentido dialético do termo crítica: superação com


subsunção, e compreensão do papel histórico daquilo que é criticado.
Essa geografia radical ou crítica coloca-se como ciência social, mas estuda
também a natureza como recurso apropriado pelos homens e como uma
dimensão da história, da política. (VESENTINI, 2008, p. 14)

Para tal, o movimento de renovação crítica promoveu diversas discussões,


impactando tanto no campo das teorias, quanto em relação às práticas e
metodologias de ensino. É importante evidenciar que, com o tempo, as práticas-
metodologias – um dos principais pontos criticados na Geografia Tradicional –
passaram a ganhar centralidade.
Ainda sobre esse movimento crítico, Marcos Antônio Campos Couto salienta
que:
Apesar do movimento de renovação crítica no pensamento geográfico –
com o fim da ditadura militar -, resgatando tendências críticas anarquistas e
desenvolvendo a influência do materialismo histórico e dialético e da
fenomenologia, persistem formatos tradicionais, que se misturam com
tentativas de construção de um discurso e uma prática crítica no ensino de
geografia. (COUTO, 2014, p.7)

É importante salientar, que junto ao movimento de renovação, se fizeram


presentes movimentos de “resistência”, que buscavam através de alguns pontos
considerados “tradicionais” no ensino e nessa ciência em questão, a continuidade de
suas práticas e de determinados conteúdos. Na nossa leitura, resistir a essas
mudanças (em grande parte) possibilitou a perpetuação de uma geografia “simplória
e enfadonha” nas palavras de Yves Lacoste (1988), uma geografia descritiva e
desconectada que dificulta a construção de raciocínios geográficos fundamentais
para os sujeitos pensarem as suas práticas sociais cotidianas.
Acerca da dimensão dos conteúdos, Antônio Carlos Castrogiovanni nos
lembra de que “a Geografia sempre teve uma função: servir para fortalecer a ideia
do nacionalismo, do expansionismo, do colonialismo, da alienação etc.”
(CASTROGIOVANNI & GOULART, 1990, p.112). Conteúdos e noções que em um
mundo repleto de relações de poder “servem para saber interpretar este mundo”
(SANTOS, 2013, p.29).
Adensando sobre essa dimensão das leituras de mundo, Helena Callai (2005)
alerta que,
Fazer a leitura do mundo não é fazer uma leitura apenas do mapa, ou pelo
mapa, embora ele seja muito importante. É fazer a leitura do mundo da vida,
construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias, como os
limites que nos são postos, sejam eles do âmbito da natureza, sejam do
âmbito da sociedade (culturais, políticos, econômicos). (CALLAI, 2005,
p.228)
15

É no diálogo entre a importância de nos atentarmos para o papel da geografia


na construção de leituras/visões de mundo, e a necessidade de conferir criticidade a
geografia, que Renato Emerson N. dos Santos (2013) indica que o principal sentido
do ensino de geografia é fazer os indivíduos aprenderem a se posicionar no mundo,

Quando falamos isso, estamos indicando na verdade uma dupla acepção do


que chamamos “se posicionar no mundo”: (i) conhecer sua posição no
mundo, e para isto o indivíduo precisa conhecer o mundo; (ii) tomar posição
neste mundo, que significa se colocar politicamente no processo de
construção e reconstrução deste mundo. Se posicionar no mundo é,
portanto, conhecer a sua posição no mundo e tomar posição neste mundo,
agir. Saber Geografia é saber onde você está, conhecer o mundo, mas isto
serve fundamentalmente para você agir sobre este mundo no processo de
reconstrução da sociedade: se apresentar para participar. (SANTOS, 2013,
p.27)

Ainda segundo Santos (2011), à medida que a geografia que se ensina, nos
faz pensar o espaço a partir de conteúdos e lógicas eurocentradas e racistas, ela
ajuda a criar ou reforçar visões de mundo que através de identidades geo-espaciais
acabam colaborando para a manutenção e construção de visões de mundo. Em
outras palavras, “Raça passa a ser, por esta ótica, um conceito geográfico, uma
noção que se assenta sobre leituras espaciais.” (idem, ibidem, p. 8).
Em percepção similar, Gabriel Siqueira Correa (2013) apresenta uma série de
situações que são recorrentes nas aulas de geografia e ajudam a pensar a prática
pedagógica, mesmo a engendrada e defendida por parte dos pesquisadores
defensores de uma renovação crítica da Geografia:

Em uma primeira situação imagina-se o fato de um aluno negro, morador de


uma área pobre – o que não é raro visto que a pobreza no Brasil, conforme
mostram as estatísticas, tem cor – apreendendo a realizar essa leitura do
seu espaço de vivência, e percebendo que grande parte daquelas pessoas
que ali vivem são negras. Quando deslocado para outros espaços, como
um shopping Center observa que os vendedores são brancos e os
seguranças e faxineiros são negros. Percebe também que a violência
policial é diferente entre negros e brancos, mesmo que esse branco seja um
amigo, e que more também na favela.
Será que a geografia, tendo a importância em trabalhar o cotidiano do
aluno, dará a importância a este principio de divisão de mundo, construtor
de uma hierarquia que não é apenas econômica e atinge a esfera étnico-
racial? Como a geografia vai possibilitar a este aluno entender os princípios
hierarquizadores da sociedade, dando ferramentas para ele lutar contra
isso? Como o ensino de geografia vai problematizar o conceito de lugar com
ele? Vai abordar como os lugares e as relações das pessoas desses
lugares mudam conforme a cor das mesmas?
Em outra situação, algo cotidiano da aula, o professor abre o livro didático,
trabalhando sobre a região sudeste. Fala-se da imigração italiana, sua
importância para o desenvolvimento industrial e sobre como isso influenciou
o desenvolvimento daquela região. Será que um dos alunos negros vai se
16

enxergar como pertencente aquele território? Onde estariam os negros


nesse momento histórico? Eles estariam apenas na escravidão, e sumiram
depois? (CORREA, 2013, p.176)

O supracitado autor continua com outros exemplos, mas estes colocados e as


questões apresentadas, nos levam a crer que, se não forem acompanhados por uma
revisão e posterior rompimento, as epistemologias da dominação (MIGNOLO, 2006)
presentes na geografia que se ensina, as mudanças propostas pela renovação
crítica da Geografia, não irão intervir nas visões racializadas de mundo construídas
nas aulas de geografia, podendo em diversos momentos reforçar essas visões. Em
suma, compreendemos que para ser crítica, a geografia precisa buscar outras
formas de pensar, ler e ensinar a ler o mundo.
Cabe ressaltar, que a escolha por esse caminho, nos reforça a necessidade
de ler as relações de poder existentes na construção do currículo de geografia, ao
mesmo tempo, que nos leva a questionar o papel das relações cotidianas e desse
próprio ambiente social, para a reprodução de di-visões racializadas de mundo.
Relações cotidianas essas, que podem ser vistas enquanto a expressão das
relações de poder presentes na construção curricular, e da própria “tradição seletiva”
que Michael Apple (2001) apresenta enquanto seleção engendrada pelo grupo
dominante, para definir o que tem – e o que não tem – legitimidade de ser discutido
e/ou ensinado no currículo escolar. Essa tradição que perpassa todo o currículo,
também se faz presente na geografia na forma de uma “tradição geográfica” como
bem apresenta Washington Aldy Ferreira (2009).
No que tange o ensino de geografia, assim como apresentado anteriormente,
essa tradição – que foi inventada (HOBSBAWM, 1984) e reinventada ao longo dos
anos – gera um impacto direto nas disputas cotidianas em relação à geografia que
se ensina através do currículo praticado2.
Cabe destacar ainda, que esse cotidiano escolar, e o próprio currículo, são
constituídos por relações de poder e saber que em diversos momentos ultrapassam
os muros das escolas, apresentando relações de simultaneidade entre disputas
ocorridas em diferentes escalas do sistema educacional e da sociedade.
Um exemplo desse movimento é a aprovação da lei federal 10.639 em 1999 e
promulgação, pelo então presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva em janeiro de 2003.
Essa lei que visou impactar diretamente o cotidiano escolar, ao mudar a Lei de
2
Acerca do conceito de currículo praticado ver Alves, 2005.
17

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e tornar obrigatório o ensino da


temática "História e Cultura Afro-Brasileira", foi construída a partir da atuação de
diversos atores, em diferentes escalas e tempos, que não a do cotidiano escolar.
Assim essa lei pode ser considerada o acúmulo de disputas que o Movimento Negro
vem construindo ao longo dos vários anos de atuação, dentro dessas diversas
escalas.
Ao mesmo tempo, a sua promulgação se tornou um ferramenta fundamental
para justificar a implementação de assuntos, que não eram “tradicionalmente”
trabalhados no currículo escolar, e no caso da presente dissertação, no ensino de
geografia.
Visto isso, para conferir densidade a esse debate, além de uma série de
estudos que discutem a questão racial e o ensino de geografia, de trabalhos que
buscam fazer a discussão do racismo e das suas múltiplas escalas de atuação, do
cotidiano enquanto um lócus para se entender construção de referenciais de mundo,
e do currículo enquanto produto de discursos que envolvem relações de poder-
saber, utilizar-se-á relatos gravados, transcritos e sistematizados de cinco
professores de geografia de diversas redes municipais e da rede estadual que foram
acompanhados em reuniões mensais na UERJ/FFP durante quatro anos (2008-
2011) pelo projeto de pesquisa “A lei 10.639/03 e o Ensino de Geografia”.
Relatos de professores que, através de sua prática, buscam combater o
racismo e as visões estereotipadas e homogeneizantes presentes no ensino. É o
caso de uma das professoras, que nos ofereceu o seguinte relato:

É a primeira semana de aula foi de planejamento no meu colégio, e pelo


menos o pessoal da Geografia resolveu fazer coletivo e então fiz desde o
sexto, sétimo, oitavo e nono ano. Só no ensino médio que eu leciono não
entreguei ainda, até porque eu queria estar aqui com vocês para elaborar
melhor a questão do ensino médio, só que o seguinte, eu não tinha comigo
o planejamento que a gente fez aqui, mas eu sabia mais ou menos né, nós
fizemos juntos aqui, então em cima disso, nós fizemos. Três professores
participaram comigo, sendo que uma professora, numa boa aceitou a
implementação dentro dos conteúdos pedagógicos, a implementação da Lei
10639, sendo um professor de geografia que tem formação aqui nessa
faculdade [UERJ-FFP], teve um pouco de resistência, ele dizia: “mas porque
ensinar isso ai, pra que colocar quilombo”. Sabe, questionou o tempo todo,
mas no fim ele aceitou, éramos três, duas queriam, ele tinha que entrar.
(Professora 4, março de 2010)

Através desse relato, podemos vislumbrar o currículo enquanto um artefato


em constante construção que tem nos embates cotidianos um dos seus reguladores.
18

Embates esses, que envolvem diferentes atores, em torno de diversos objetos em


disputa. Mais que isso, esse relato evidencia que dentro da Geografia que se ensina
existe um pensamento que invisibiliza a história da população negra e a importância
da mesma para a construção do Brasil. Sobre esse processo, Santos (2013) expõe:

Certa vez, ministrando a disciplina Geografia Agrária do Brasil, resolvi


abordar alguns temas que não fizeram parte de minha formação inicial, mas
que, diante da minha visão de mundo e da minha postura militante, não
poderiam estar ausentes na formação de geógrafos brasileiros – e, em
especial, porque se tratava da formação de professores de Geografia. Inseri
no programa, entre outros, tópicos relativos à questão indígena e às
comunidades remanescentes de quilombos. Na aula dedicada ao segundo
destes pontos, expus para a turma dois vídeos curtos, sobre duas
comunidades, cada uma com grau/forma diferenciado de
“isolamento”/relação com a “civilização branca” – ou, com o avanço do meio
técnico-científico-informacional –, e com diferenciados graus de
preservação de suas culturas ancestrais e distintas formas de relação
sociedade-natureza. Trabalhei e discuti materiais sobre remanescentes de
quilombo, com destaque para um mapa produzido do Brasil com a
distribuição espacial das comunidades e a discussão sobre a Geografia do
aprisionamento e as rotas de procedência de africanos escravizados de seu
continente para o Brasil. Após a apresentação e discussão, indaguei aos
alunos da turma “como eles inseririam e trabalhariam este conteúdo na aula
de Geografia deles”. Em meio ao silêncio (nada incomum), me veio a
seguinte resposta: “quando eu fosse falar de África”.
Após o momentâneo desapontamento, duas certezas me vieram. Primeiro a
de que aquela resposta era fruto de algo não banal: a Geografia do Brasil
assimilada e elaborada pelos meus alunos não comportava nem a ideia do
Negro enquanto ente social, e nem das relações raciais enquanto
constituintes de nossa estrutura social que grafa o espaço e produz geo-
grafias. Mesmo mostrando e trabalhando um mapa do Brasil que exibia
mais de mil comunidades remanescentes de quilombos, e discutindo o
quanto tais “rugosidades” eram a grafagem de lutas históricas, a Geografia
do Brasil que eles estavam cristalizando em seus corações e mentes
simplesmente apagava tais elementos do território, de forma que era mais
fácil (ou, possível) abordar tais assuntos na Geografia da África. Em
segundo, como decorrência disso, percebi o quanto era necessário reunir e
difundir materiais acerca destes temas em nossa Geografia. Afinal, o que foi
trabalhado era uma marca de lutas históricas presente por toda a extensão
do território nacional, uma rugosidade proeminente por todo o espaço
brasileiro, e que era percebida como incongruente e inassimilável com a
Geografia do Brasil tal qual meus alunos a concebiam. Por isso, era mais
fácil inserir tais conteúdos quando eles fossem falar de África! (SANTOS,
2013, p.13-14)

À medida que no presente estudo, assumimos que essas formas de ler o


mundo são disputadas no cotidiano escolar, e que a geografia é uma ciência que
historicamente está atrelada a lógica de dominação (CASTROGIOVANNI &
GOULART, 1990), fundamental para ler o mundo (CALLAI, 2005) e nele tomar
posição (SANTOS, 2013), diversas são questões as colocadas.
19

Como se dá o encontro entre aqueles que resistem e aqueles que tentam


introduzir a discussão a partir de uma perspectiva crítica e antirracista? Como
vivem/lidam com alunos, outros professores, instrumentos de ideologia, outras
situações e atores presentes no ambiente escolar? Até que ponto essas disputas se
configuram em uma arena de disputa contra o racismo (no ambiente escolar e na
sociedade)? Como as visões de mundo passadas nos/pelos conteúdos
programáticos de Geografia, ajudam a combater ou perpetuar as hierarquizações
raciais?
É na tentativa de responder esses questionamentos, que além do racismo,
destacamos o cotidiano, o currículo e a prática docente enquanto chaves
fundamentais para compreender como as relações de poder-saber de base racial se
estabelecem no ambiente escolar. Isso porque analisar a construção do currículo
através das práticas docentes no cotidiano, representa uma interessante esfera de
análise: a) para a área do Ensino de Geografia, uma vez que ajuda a problematizar
como se dá a construção e introdução de conteúdos programáticos e práticas
pedagógicas que visam através de uma leitura geográfica, romper com um
pensamento político-ideológico que cria uma leitura em que o racismo não aparece
como agenda na formação do espaço mundial, porém, mais que isso, cria para os
alunos e alunas uma leitura onde o componente racial é naturalizado a partir de uma
matriz euro-branca, impactando a forma de lerem as relações de poder presentes na
sociedade; b) para o campo do Ensino, uma vez que confere às relações presentes
no ambiente escolar e ao professor através da sua prática cotidiana, um
protagonismo na construção do currículo.
Visto isso, é com base em relatos que mostram as relações de entraves e
progressos, alianças e antagonismos, embates e dilemas na vivência cotidiana de
professores de geografia e com o objetivo de complexificar as questões
anteriormente colocadas que a dissertação foi estruturada em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, busca-se construir bases teóricas e metodológicas para
compreender como o racismo impacta os diferentes ambientes sociais de nossa
sociedade. Para tal, o capítulo está estruturado de forma a evidenciar o racismo
enquanto parte fundante das relações de poder existentes na sociedade e os seus
impactos nas relações presentes no dia-a-dia. No que tange a parte metodológica
propriamente dita, utiliza-se os recortes analíticos propostos por Goffman (1985)
20

para compreender os “estabelecimentos sociais” 3, de forma a enxergar esses


diferentes ambientes enquanto representações de uma totalidade orgânica das
relações e interações no tempo cotidiano, remetendo também a um diálogo com o
debate sobre escalas.
Já no segundo capítulo, o foco é a discussão acerca do currículo, elevando
esse enquanto percepção visível de um conjunto de normas e regulações presentes
no cotidiano escolar. Para tal, as regulações de poder-saber têm um papel
fundamental (junto às teorias de currículo), que é criar uma base teórica para auxiliar
na análise sobre como a questão racial é historicamente tratada no pensamento
curricular. Ademais, ao fazer a leitura deste como um campo de disputa com um
forte contexto racial (SILVA, 2010), evidenciou uma série de embates que serão
posteriormente analisados.
O terceiro capítulo tem a sua centralidade na leitura de como esse conjunto
de relações de poder-saber na sociedade e na educação, se fez/faz presente no
campo do Ensino de Geografia, ressaltando: i) como se deu a construção dessa
disciplina (trazendo à tona processos de continuidades e a necessidade de
adensamentos sobre o que é pesquisado e ensinado) ii) como historicamente se deu
a discussão racial no ensino de geografia e a importância da construção de outras
formas de ver e ler o mundo (evidenciando como essa ciência ajudou/ajuda criar
visões hierarquizantes de mundo); e iii) com os diversos reguladores podem acabar
interferindo de maneira direta e indireta na aula de geografia.
Por fim, o quarto e último capítulo têm a sua centralidade na ligação entre o
debate teórico-metodológico e a base empírica da dissertação. Dessa forma, a partir
dos relatos obtidos pela pesquisa, procura-se identificar as relações de conflitos no
cotidiano escolar, de forma a construir chaves de classificação para compreender a
existência de possíveis padrões de comportamento no que tange às resistências à
introdução da discussão racial nos bancos escolares. Em conjunto a essa análise,
empenha-se em, através do posicionamento dos professores, fazer o debate sobre a
prática socialmente referenciada, assim como a importância desta na luta pela
superação do racismo dentro deste ambiente e dentro da geografia que se ensina.
Entende-se que esse movimento possibilita responder às perguntas
inicialmente feitas e evidencia como o racismo se faz presente na sociedade,
3
Denominação utilizada por GOFFMAN (1985) para designar ambientes sociais onde são
engendradas relações passiveis de serem analisadas empiricamente.
21

estando também presente no cotidiano escolar, assim como as possíveis influencias


para a prática dos professores de geografia.
22

1 RAÇA E RACISMO: ENTRE ESCALAS E TEMPORALIDADES

É a partir da perspectiva de que “não seria possível entender a história, o


estado atual e os múltiplos efeitos da política educacional sem colocar a raça como
um elemento central dessas análises.” (APPLE, 2001, p.61) que se inicia discussão
desse primeiro capítulo.
O presente capítulo tem como pretensão evidenciar o racismo enquanto um
fenômeno social que é constitutivo do atual sistema-mundo e historicamente atua
em múltiplas escalas. Assim, se consegue dar densidade teórica para que
posteriormente seja possível discutir como o racismo aparece no ambiente escolar e
influencia na prática de professores e professoras de geografia.
De forma a construir novas bases epistemológicas para entender o racismo,
Carlos Moore (2007) apresenta-o como um padrão de relações de poder que,
através da mobilização dos fenótipos, serviu para dominar diversos povos em
diferentes momentos na história da humanidade. Nesse sentido, aponta que:

Produto de uma forma de consciência grupal historicamente originada, o


racismo visa à manutenção de redes de solidariedade endógena automática
em torno de fenótipo, redes que estão especificamente voltadas para a
captação, a repartição, a preservação e o controle monopolista dos recursos
básicos de uma sociedade. (MOORE, 2007, p.284).

É com base nessa perspectiva estrutural e histórica do racismo, e com os


aportes teóricos de Aníbal Quijano (2005), Kabengele Munanga (2004) e Ramon
Grosfoguel (2005, 2008, 2011, 2012), que apontam como o sistema-mundo
moderno-colonial, criado no processo de expansão europeia sobre o mundo, re-criou
esse fenômeno social e, através do modelo quadripartido das relações raciais
proposto por Pierre-André Taguieff4 (apud d‟Adesky, 2001), que tenta-se no decorrer
do primeiro subcapítulo construir um panorama sobre como se deu a mobilização da
raça e do racismo ao longo dos últimos cinco séculos, e a sua consequente função
na conformação do atual sistema-mundo.
É importante destacar, que segundo Taguieff (2002),
4
Jacques d‟Adesky utiliza o referido modelo para compreender o racismo e o antirracismo no Brasil,
contudo, entendemos que, para o presente estudo, é fundamental utilizar também para fazer a
análise dentro da conformação do atual sistema-mundo, uma vez que sua "[...] aprofundada reflexão
sobre o racismo e o anti-racismo baseia-se no estudo epistemológico e nas contribuições dos
biólogos e geneticistas, bem como na filosofia e na antropologia" (D‟ADESKY, 2001, p.25).
23

[...] aquilo a que chamamos de racismo, se distribui por três dimensões


distintas: as atitudes (opiniões, crenças, preconceitos, estereótipos,
disposições ou predisposições), os comportamentos (condutas, actos,
práticas, instituições, ou mobilizações) e as construções ideológicas
(teorias, doutrinas ligadas a nomes de autores, visões de mundo, mitos
modernos). O racismo exprime-se pelo menos em três sentidos, o que
problematiza a sua presumida unidade: o racismo-ideologia, o racismo-
preconceito e o racismo-comportamento. (TAGUIEFF, 2002, p. 67)

Com isso em mente, no segundo subcapítulo adensa-se o debate sobre o


racismo e as suas múltiplas formas de atuação, com vistas a criar bases para
compreender as relações socioespaciais de base racial na sociedade brasileira e as
múltiplas faces que o racismo pode assumir. Esse debate possibilita que se faça a
passagem do ponto de vista analítico do racismo como um intricado sistema de
dominação em uma escala mundo para as práticas concretas que materializam,
reproduzem ou invisibilizam esse sistema de dominação nas relações
socioespaciais.
Nesse sentido, no terceiro momento desse capítulo são feitas algumas
reflexões teórico-metodológicas para pensar a melhor forma de analisar o impacto
do racismo nessas relações socioespaciais em ambientes complexos, ou seja,
ambientes que apesar de terem influências externas, possuem um próprio conjunto
de objetivos, relações de poder, hierarquias e aspectos morais valorizados.

1.1 A raça, racismo e o sistema-mundo moderno-colonial

Com a pretensão de adensar o debate sobre o racismo, no presente


momento, buscaremos apoio em diversas correntes que tratam sobre a temática. Ao
caminhar nesse sentido, apesar de compreendermos que já havia experiências de
estratificações sociais sob a base racial antes do século XV (MOORE, 2007), é
somente durante o processo de expansão europeia (MUNANGA, 2004) – que
também ficou conhecido como “Período das Grandes Navegações” – que esse
processo vai ganhar uma escala mundo.
A vinculação da expansão do racismo com o início do processo de
desenvolvimento do capitalismo não é por acaso, uma vez que a racialização e
hierarquização dos diferentes povos, serviu principalmente para organizar e
24

operacionalizar um amplo e violento processo de expropriações. Junto com esse


movimento, buscou-se também, construir leituras de mundo que possibilitassem
manutenção das relações de poder durante um longo recorte temporal. Nesse
sentido, representações binárias como civilização vs tribos, civilizados vs selvagens,
metrópoles vs colônias, entre tantas outras, são leituras que possuem em seu plano
de fundo a manutenção das relações de poder e do racismo.
Guardado os seus respectivos momentos histórico, essa leitura vai possibilitar
que seja mobilizada uma série de classificações, tanto de cunho cultural, que vai
introduzir a ideia de que existem culturas que estão mais atrasadas e que, portanto é
missão das culturas mais evoluídas intervir e civilizar as menos evoluídas, quanto
também de cunho genético – sob o discurso da existência de diferentes raças
humanas (século XIX), sendo algumas inferiores na escala evolutiva e por isso
passível de dominação pela raça superior.
Cabe ressaltar, que essas classificações historicamente vão agir de maneira
imbricada, fazendo com que exista uma fluidez na forma de justificar e/ou mobilizar
as hierarquizações. Esse processo fica mais nítido quando grupos racialmente
hierarquizados são alvos de maior índice de desemprego, expulsão de suas terras,
assassinatos pelo Estado e por indivíduos da sociedade civil, mas ao buscarem
assistência e reparações são confrontados com discursos como “somos todos
iguais”, “não existe racismo, pois somos todos miscigenados”, “o maior racista é
aquele que diz que existem raças diferentes”, “não precisamos de consciência
negra, e sim de consciência humana”, ou seja, discursos que mobilizam uma
pretensa igualdade entre todos os seres humanos.
Para melhor complexificar esta leitura, encontra-se no modelo quadripartito de
Taguieff (apud D‟ADESKY, 2001) uma interessante forma para ampliar a maneira
como o racismo é tratado e analisado. Esse modelo busca fazer a leitura desse
fenômeno social através da divisão em quatro grandes formas de manifestação:
racismo universalista de base espiritualista, racismo universalista de base bio-
evolucionista, racismo diferencialista de base espiritualista e racismo diferencialista
de base biomaterialista (ibidem, p. 27-28).
As formas universalistas mobilizam o racismo através da negação das
individualidades dos grupos e da criação de desigualdades e estágios de evolução
da cultura (forma espiritualista) e “raça” (forma biomaterialista). Ao fazer esse
25

movimento, é criada uma ideia da existência de uma escala universal de valor entre
os grupos humanos com classificações e categorias variáveis (ibidem, p.26).
É importante enfatizar que o racismo universalista de base espiritualista
justifica um modelo civilizatório, em que diferentes culturas vão ser mais ou menos
“evoluídas”, “avançadas” e, consequentemente, assimiláveis (D‟Adesky, 2001) a
esse “novo mundo”. Por outro lado, o de base biomaterialista, legitima um processo
de seleção, hierarquização, dominação e em diversos casos o extermínio de raças
postas como inferiores.
Já as formas diferencialistas:

[...] absolutizam a diferenciação, a separação, a expulsão, até mesmo a


eliminação dos grupos diferentes, estranhos, que ameaçam a identidade
comunitária própria. Eles baseiam-se, assinala Taguieff, numa denegação
da humanidade comum dos grupos humanos. (D‟ADESKY, 2001, p. 26).

Dessa forma, o racismo diferencialista de base biomaterialista prega que


existem diferentes raças humanas, e essas são praticamente espécies humanoides
no sentido zoológico, não havendo possibilidade de passar de um grupo racial para
o outro, uma vez que não se muda de espécie. Nesse caso, o racismo aparece
principalmente no que tange as relações inter-raciais, uma vez que essas inter-
relações poderiam “criar” uma nova espécie “degenerada”.
Por outra via, a forma diferencialista espiritualista incide sobre a cultura dos
postos como outros/não europeus. Nesse sentido, mobiliza a necessidade de
defender a sua cultura e a sua estrutura social das culturas das diferentes raças,
etnias, nações e/ou civilizações, uma vez que a mistura acarretaria na destruição
das identidades dos povos colocados como superiores.
Esse fecundo modelo evidencia que para produzir esse amplo sistema de
relações de dominação sobre os outros povos que é o racismo, foi necessária a
mobilização de uma série de justificativas, ora embasadas pelo campo
religioso/cultural, ora alicerçadas em um campo científico.
Visto isso, a mobilização dos racismos universalistas e diferencialistas de
base espiritualista, enquanto formas de justificar a dominação e hierarquização de
“novos” povos através da justifica religiosa, teve um papel central. Esse movimento
que também instituiu ao europeu a centralidade na narrativa da história da
humanidade, o papel de desbravador novas terras, de “descobridor” de novos
territórios e povos.
26

As descobertas do século XV colocam em dúvida o conceito de humanidade


até então conhecida nos limites da civilização ocidental. Quem são esses
recém descobertos (ameríndios, negros, melanésios, etc.)? São bestas ou
são seres humanos como “nós”, Europeus? (MUNANGA, 2004, p. 1-2)

Em contribuição semelhante, Grosfoguel (2016) também aponta que em um


primeiro momento, o debate sobre a questão racial teve a sua centralidade em uma
apropriação do discurso religioso cristão. Ao utilizar as contribuições teóricas de
Nelson Maldonado-Torres, Grosfoguel (2016) aponta que:

[...] no fim do século XV, a noção colombiana de “gente sin secta” (“povos
sem religião”) significava uma coisa nova. Dizer “povos sem religião” hoje
em dia quer dizer que estamos nos referindo a “povos ateus”. Entretanto, no
imaginário cristão do fim do século XV, a frase “povos sem religião” possuía
uma conotação distinta. No imaginário cristão, todos os seres humanos são
religiosos. Eles podem ter o “Deus errado” ou “os deuses errados”, pode
haver guerras onde se derrama sangue na luta contra o inimigo equivocado,
mas a humanidade do outro, como algo a ser conquistado e uma forma de
dominação, não estava posta em questão. O que estava sendo questionado
era a “teologia” do outro. Tudo foi radicalmente modificado em 1492, com a
conquista das Américas e a caracterização de povos indígenas por
Colombo como “povos sem religião”. Como dissemos, uma leitura
anacrônica desta frase pode fazer parecer que Colombo se referia a “povos
ateus”. Mas, no imaginário cristão da época, não ter uma religião equivalia a
não ter uma alma, isto é, ser expulso da esfera do humano.
(GROSFOGUEL, 2016, p. 36)

Essa relação entre o racismo e o discurso religioso fica evidente quando


vemos que:

La categoría de «indio» constituye una nueva invención identitaria que


homogeneiza toda una heterogeneidad de identidades a partir de la idea
errada de los españoles de creerse haber llegado a la India. Ese debate fue
el primer debate racista en la historia mundial y la identidad de «indio» fue la
primera identidad moderna. La pregunta sobre si los «indios» tenían alma o
no era ya una pregunta racista que remitía directamente en la época a la
pregunta de si eran humanos o animales. En el imaginario cristiano de la
época esto tenía importantes repercusiones porque si no tenían alma
estaba justificado a los ojos de Dios esclavizarlos y tratarlos como animales.
Pero en caso de que tuvieran alma entonces era un pecado a los ojos de
Dios esclavizarlos, asesinarlos o maltratarlos. (GROSFOGUEL, 2012, p. 90)

Contudo, como elucida Munanga (2004), essa hierarquização racial


fomentada em um primeiro momento pela manipulação da teologia cristã, vai durar
até o início do século XVIII, quando, segundo Mignolo (2008), com pensadores como
Kant, Locke, Galileu e Copérnico, ocorre a substituição da crença pela razão
(masculina, branca, de “origem” europeia). Com isso, também se muda a forma de o
27

ocidental lidar e pensar os diferentes fenômenos no mundo. Essa mudança também


reverbera na legitimação da dominação sobre diferentes povos baseada no racial.
Dessa forma, entende-se que é nesse período que ocorre a mudança
tipológica do racismo diferencialista espiritualista, para o biomaterialista 5, ou melhor,
a justificativa diferencialista de base biomaterialista começa a ganhar força frente à
espiritualista.
Como apontam Munanga (2004) e Guimarães (2008), nesse período o
conceito de raça, que já existia na ciência, sendo utilizado principalmente pela
Zoologia e pela Botânica, passa a ser utilizado também pela Biologia Genética, sob
o pretexto de que:

[...] a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, tal como o


mundo animal, e de que tal divisão estaria associada ao desenvolvimento
diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e intelectuais entre os
seres humanos. (GUIMARÃES, 2008, p. 64).

Ao mesmo tempo, essa mudança também faz como que o racismo


universalista de base espiritualista mude para o de base biomaterialista.
Corroborando com essa análise, Grosfoguel (2012) aponta que:

El discurso racista biológico es una secularización en el siglo XIX del


discurso racista teológico de Sepúlveda. Al pasar la autoridad del
conocimiento en Occidente de la teología cristiana a la ciencia a partir de la
Ilustración y la Revolución Francesa en el siglo XVIII, se transmutó el
discurso racista teológico sepulvedano de «pueblos sin alma» en un
discurso biologicista de «pueblos sin genes humanos». Lo mismo ocurrió
con el discurso bartolomeniano que se transmutó de «pueblos bárbaros a
cristianizar» en el siglo XVI hacia un discurso racista culturalista de
«pueblos primitivos a civilizar» en el siglo XIX. (GROSFOGUEL, 2012, p. 91)

Dessa maneira, desde o debate teológico sobre as diferentes raças humanas,


passando pela sua transformação em conceito científico desenvolvido pela biologia
genética, a mobilização da raça serviu como uma categoria central para justificar
uma diferenciação entre grupos que não se enquadravam dentro de determinados
fenótipos. Adensando o debate, Quijano (2005) aponta que além de novas
identidades sócio raciais, também são criadas identidades geograficamente
referenciadas, uma vez que:

5
Essa mudança não significa o fim do racismo de base espiritualista, mas sim a mobilização de um
novo eixo de justificativa que vai coexistir no tempo e no espaço.
28

A formação de relações sociais fundadas nessa ideia produziu na América


identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde
europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país
de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas
identidades, uma conotação racial. (QUIJANO, 2005, p. 227-228)

Contribuindo para a leitura, Grosfoguel (2011 & 2012), ao fazer a


interpretação da construção do racismo à luz da interpretação de Frantz Fanon,
ressalta que, junto à mobilização da ideia de raça, existe a construção político-
histórico-social de uma racionalidade de mundo, onde o hemisfério sul está
subordinado em relação ao hemisfério norte. Essa hierarquização atinge diversas
dimensões, uma vez que, para além do poder político e econômico, também se
estabelecem hierarquizados saberes, formas de se relacionar com a natureza,
dentre outros pontos.

Quando, no século XVII, Descartes escreveu “penso, logo existo”, em


Amsterdã, no “senso comum” de seu tempo, o “Eu” não poderia ser um
africano, um indígena, um muçulmano, um judeu ou uma mulher (ocidental
ou não ocidental). Todos estes sujeitos eram considerados “inferiores” ao
longo da estrutura de poder global, racial e patriarcal e seu conhecimento
considerado inferior [...]. O único ser dotado de uma episteme superior era o
homem ocidental. [...] De acordo com Maldonado-Torres (2008b), o outro
lado do “penso, logo existo” é a estrutura racista/sexista do “não penso, não
existo”. O último expressa uma “colonização do ser” (Maldonado-Torres
2008b), pela qual todos os sujeitos considerados inferiores não pensam e
não desfrutam de uma existência inteira, pois sua humanidade é
questionada. Eles pertencem à zona que Fanon denomina “zona do não
ser” e que Dussel chama de “exterioridade”. (GROSFOGUEL, 2016, p.42-
43)

Esse movimento ajuda na criação de comunalidades histórico-geográficas


(SANTOS, 2009a), ou seja, novas identidades são criadas através da junção das
clivagens de dominação com os referenciais geográficos. Esse movimento ajuda a
promover uma invisibilização da heterogeneidade dos diferentes grupos, facilitando
a sua dominação física e epistêmica. Assim, Quijano (2005) indica que:

[...] na medida em que as relações sociais que se estavam configurando


eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às
hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas
delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em
outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como
instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, op.
cit., p. 227-228)
29

Dessa forma, podemos dizer que a moderno-colonialidade constituiu um


processo espacial que homogeneiza, invisibiliza, retira o protagonismo,
desempodera, hierarquiza experiências sociais e controla as formas de produção e
intervenção da realidade espacial. Esse processo que tem em seu cerne uma
dimensão escalar em aliança com a colonização do ser e do saber, constrói um
racismo epistémico que acaba perpetuando uma monocultura do saber, uma
monocultura que inventa um tempo linear e promove invisíveis sociais ao mesmo
passo que produz espaços produtivistas e espaços de poder.
Assim, ao criar papeis sociais para os grupos dominados, também se cria o
papel dos grupos sociais dominantes. Ou seja:

La noción de “europeo” nombra una localización de poder en la jerarquía


etno-racial global. Por eso “europeo” aquí se refiere no solo a las
poblaciones de Europa, sino también a las poblaciones de origen europeo
en todas partes del mundo que gozan de los privilegios de la supremacía
blanca en relación a poblaciones de origen no-europeo. Me refiero por
“europeos” a euro-norteamericanos, euro-latinoamericanos, euro-
australianos, etc. (Idem, ibidem, p. 3-4).

Essa perspectiva faz com que entenda-se a raça como um “[...] constructo
social, princípio de classificação que ordena e regula comportamentos e relações
sociais, tem vinculação direta com a Geografia” (SANTOS, 2009a, p.21). Mais que
isso, também possibilita compreender que o racismo teve um papel fundamental na
conformação do sistema-mundo moderno-colonial que colocou a Europa no centro
do mundo.
Sobre esse sistema-mundo, Quijano (op. cit.) aponta que é formado por uma
heterogeneidade histórico-estrutural que se vale da coexistência de “três elementos
centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da população mundial: a
colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo” (QUIJANO, op. cit., p. 233).
Ao partir desse prisma, o autor aponta que as sociedades atuais também são
formadas através da coexistência simultânea de diferentes formas de opressão,
exploração e hierarquização.
Como assinala Grosfoguel (2008), essa coexistência também atinge o campo
epistemológico, na medida em que a inculcação de pensamentos eurocêntricos
fazem com que não consigamos valorizar as contribuições de populações
historicamente postas enquanto inferiores. Para fazer essa crítica o autor aponta
que:
30

Salvo raras excepções, os estudos dedicados à globalização, os


paradigmas da economia política e a análise do sistema-mundo não tiraram
as ilações epistemológicas e teóricas da crítica epistémica proveniente dos
lugares subalternos cavados pelo fosso colonial, que encontraram
expressão no meio académico através dos estudos étnicos e dos estudos
feministas. Com efeito, essas abordagens continuam a produzir
conhecimento através dos olhos de Deus, a partir do “ponto zero” do
homem ocidental. Isto gerou importantes problemas no que respeita à forma
como conceptualizamos o capitalismo global e o “sistema-mundo”.
(GROSFOGUEL, 2008, p. 121).

Sob essa constatação e com o desenvolvimento desse debate, o autor


apresenta um conjunto de nove hierarquias que coexistem no espaço e no tempo, e
que tem como principal papel auxiliar na dominação dos diferentes povos ao redor
do mundo, sendo elas:

1) uma específica formação de classes de âmbito global, em que diversas


formas de trabalho (escravatura, semi-servidão feudal, trabalho assalariado,
pequena produção de mercadorias) irão coexistir e ser organizadas pelo
capital enquanto fonte de produção de mais-valias através da venda de
mercadorias no mercado mundial com vista ao lucro;
2) uma divisão internacional do trabalho em centro e periferia, em que o
capital organizava o trabalho na periferia de acordo com formas autoritárias
e coercivas (Wallerstein, 1974);
3) um sistema interestatal de organizações político-militares controladas por
homens europeus e institucionalizadas em administrações coloniais
(Wallerstein, 1979);
4) uma hierarquia étnico-racial global que privilegia os povos europeus
relativamente aos não-europeus (Quijano, 1993, 2000);
5) uma hierarquia global que privilegia os homens relativamente às
mulheres e o patriarcado europeu relativamente a outros tipos de relação
entre os sexos (Spivak, 1988; Enloe, 1990);
6) uma hierarquia sexual que privilegia os heterossexuais relativamente aos
homossexuais e lésbicas (e é importante recordar que a maioria dos povos
indígenas das Américas não via a sexualidade entre homens como um
comportamento patológico nem tinha qualquer ideologia homofóbica);
7) uma hierarquia espiritual que privilegia os cristãos relativamente às
espiritualidades não-cristãs/não-europeias institucionalizadas na
globalização da igreja cristã (católica e, posteriormente, protestante);
8) uma hierarquia epistémica que privilegia a cosmologia e o conhecimento
ocidentais relativamente ao conhecimento e às cosmologias não-ocidentais,
e institucionalizada no sistema universitário global (Mignolo, 1995, 2000;
Quijano, 1991);
9) uma hierarquia linguística entre as línguas europeias e não-europeias
que privilegia a comunicação e a produção de conhecimento e de teorias
por parte das primeiras, e que subalterniza as últimas exclusivamente como
produtoras de folclore ou cultura, mas não de conhecimento/teoria (Mignolo,
2000).
(GROSFOGUEL, 2008, p. 122-123).

Essas hierarquias são verdadeiros pacotes de dominação e se aproximam da


ideia anteriormente colocada por Quijano (2005), ao evidenciar a conformação do
sistema-mundo enquanto uma heterogeneidade histórico-estrutural dotada de uma
31

“matriz de poder colonial” que se propaga através de diferentes eixos de opressão e


hierarquização.
Ao evidenciar essas dimensões e, sobretudo, como a raça não está isolada
de outras dimensões da dominação, os dois autores citados conferem importantes
bases para combater possíveis reducionismos. Dessa forma, à medida que se
retoma as tipologias de racismo oferecidas por Taguieff, em conjunto com as
hierarquias apresentadas, observa-se que essas leituras também se configuram em
um fecundo campo de análise para compreender como o racismo aparece
objetivamente na sociedade.
Se atentar-se para o campo epistêmico, por exemplo, nota-se que:

O privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre o conhecimento


produzido por outros corpos políticos e geopolíticas do conhecimento tem
gerado não somente injustiça cognitiva, senão que tem sido um dos
mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais
no mundo. A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e
mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado
os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o
que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa legitimidade e
esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem gerado
estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico,
desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos
projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo.
(GROSFOGUEL, 2016, p.25)

Ao trilhar esse caminho, observa-se que além da hierarquia de dimensão


racial, as hierarquias linguísticas, epistêmicas, espirituais, interestatais, sexuais, de
gênero, de divisão internacional do trabalho e classes sociais, salvaguardadas as
suas particularidades, também contribuem para a perpetuação do racismo. Ou seja,
assim como Grosfoguel (2008) aponta, compreende-se que existe uma
interseccionalidade6 de múltiplas e heterogéneas hierarquias globais (heterarquias)
que tem na dimensão étnico-racial uma transversalidade que interfere em todas as
hierarquias.

6
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários modos:
discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação. A
interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata
especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades que estruturam as posições relativas de mulheres,
raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos
dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW, 2002, p. 177).
32

É importante ressaltar que essas múltiplas formas de hierarquização social,


também tem uma forte ligação com a institucionalização da modernidade na Europa.
Essa modernidade se apresenta enquanto um projeto de dominação que assim
como indica Enrique Dussel (2005), pode ser entendido a partir de dois eixos de
pensamentos distintos, mas complementares.

O primeiro deles é eurocêntrico, provinciano, regional. A modernidade é


uma emancipação, uma “saída” da imaturidade por um esforço da razão
como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo
desenvolvimento de ser humano. Esse processo ocorreria na Europa,
essencialmente no século XVIII [...]
Propomos uma segunda versão da “Modernidade”, num sentido mundial, e
consistiria em definir como determinação fundamental do mundo moderno o
fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia etc.) “centro” da
História Mundial. Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até
1492 (como data de início da operação do “Sistema Mundo”). Antes dessa
data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a
expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no
século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se
torna “lugar” de “uma só” História Mundial (Magalhães-Elcano realiza a
circunavegação da Terra em 1521). (DUSSEL, 2005, p.60-61).

Com essa contribuição, o autor nos possibilita entender, que uma dupla
acepção da modernidade: i) eurocêntrica “intra-europeia”, utilizada para criar uma
“subjetividade” capaz de colocar a Europa enquanto um continente autossuficiente e
independente; e ii) com destaque para o protagonismo em escala global, instituindo
o início da história do mundo, a partir do seu processo de expansão marítima.
Para justificar o primeiro ponto, pode-se destacar a mobilização simbólica do
Renascimento Italiano, da Reforma e da Ilustração alemãs, da Revolução Francesa
e do Parlamento inglês, para evidenciar uma “autossuficiência” capaz romper com
as “trevas” e libertar a Europa através da razão. Essa visão eurocêntrica perpassada
na modernidade permite vincular a Europa a uma posição de destaque, um exemplo
a ser seguido.
Já o segundo ponto evidenciado por Dussel (2005) surge como a construção
de uma narrativa, onde a Europa é o centro da história mundial. Com isso buscam
criar uma narrativa que justifique a ideia de que “[…] nunca houve História Mundial
até 1492 (como data de início da operação do „Sistema-mundo‟)” (DUSSEL, 2005, p.
61).
A modernidade, aliada com as múltiplas hierarquias faladas anteriormente,
acabam servindo para colocar a Europa em uma posição hierarquicamente superior
33

às outras sociedades da época. Assim, ao retomar Moore (2007), através dessa


perspectiva, buscamos compreender que a racialização das relações sociais e a
hierarquização dos diferentes povos engendrada ao longo recorte temporal adotado,
ocorre, principalmente, com o objetivo de organizar e operacionalizar um processo
violento de expropriações com vistas a construir bases para a consolidação do
capitalismo em um sistema-mundo baseado numa concepção eurocêntrica. Dessa
forma, quando o referido autor aponta que:

Nas sociedades atuais, os recursos vitais se definem em grande medida em


termos de acesso: à educação, aos serviços públicos, aos serviços sociais,
ao poder político, ao capital de financiamento, às oportunidades de
emprego, às estruturas de lazer, e até ao direito de ser tratado
equitativamente pelos tribunais de justiça e as forças incumbidas da
manutenção da paz. (MOORE, 2007, p. 284).

Compreende-se que a dominação desses recursos básicos/vitais na


atualidade serve para garantir a perpetuação desse pacote de relações de poder-
saber, em que as diferentes populações são selecionadas, classificadas e
hierarquizadas de acordo com o dato racial.
Por fim, é importante destacar que apesar de uma forma de racismo não
excluir a outra, na conformação dos Estados-Nação, os instrumentos discursivos
mobilizados para a perpetuação dessa hierarquização assumiram formas diferentes.
Isto é, cada país adotou e organizou as suas relações hierárquicas de base racial de
modo diferente.
Nesse sentido, diversos trabalhos mostram as diferentes formas que a
população negra foi tratada após o fim da escravidão ou da “independência” da
colônia. Nos Estados Unidos da América, na África do Sul e na Rodésia (atual
Zimbábue), por exemplo, o racismo foi institucionalizado no sentido de criar leis e
políticas de governo7 que evidenciavam um racismo de cunho eminentemente
diferencialista. Em outros países, existiu a tentativa de criar e mobilizar um racismo
através de uma base universalista, com mecanismos de controle que partem
principalmente através da construção de um ideário de branqueamento da nação.
Nessa perspectiva, podemos perceber que, apesar de ser um fenômeno
fundamental para sistematizar uma série de hierarquizações em uma escala-mundo,

7
Entre as leis destacam-se a Leis de Jim Crow e as Leis Antimiscigenação nos Estados Unidos da
América e a política de Apartheid na África do Sul.
34

o racismo é mobilizado de maneira diferenciada quando o debate vai para uma


escala intranacional. A sua articulação com outros sistemas de regulação
apresentados também expõem uma série de nuances dependendo do local e da
temporalidade em que é analisado.
Sendo o racismo um fenômeno mundial é, então, mobilizado de diferentes
formas em cada país. Como esse fenômeno presente nas relações sociais,
espaciais e econômicas, tem sido mobilizado no Brasil?

1.2 As múltiplas faces do racismo no Brasil

Antes de falar sobre as múltiplas formas de como o racismo se manifesta no


Brasil, há alguns apontamentos sobre o que considera-se ser a base do sistema de
acomodações das relações raciais do Brasil: o mito democracia racial a partir da
fábula das três raças e os efeitos discursivos e práticos das teses de branqueamento
da população e do território.
A democracia racial pode ser considerada uma ideologia que flerta com o
racismo universalista de base espiritualista. Engendrada pela elite intelectual e
política brasileira desde os primeiros anos do século XX, essa corrente de
pensamento que vai ganhar força, “nome” e status de ciência política em 1933, com
a publicação do livro “Casa Grande e Senzala”, do sociólogo brasileiro Gilberto
Freire, foi durante boa parte do século XX, a ideologia oficial das relações inter-
raciais no Brasil. Essa ideia é colocada, por diversos intelectuais e militantes do
Movimento Negro brasileiro, como um “mito”, uma vez que diversos estudos 8
evidenciam que pertencer a algum grupo racial no Brasil é um fator decisivo nas
experiências sociais (e espaciais) dos diferentes indivíduos.
Trata-se do contexto de criação da identidade brasileira, baseada na “fábula
das três raças”, ou seja, no pressuposto que a população brasileira, foi construída da

8
Conferir: SANTOS, Renato Emerson dos. (Org.). Questões urbanas e racismo. Petrópolis: DP;
Brasília, DF: ABPN, 2012; SANSONE, L. Nem somente preto ou negro: o sistema de classificação
racial no Brasil que muda. Afro-Ásia, n. 18, 1996, Salvador, pp. 165-188; HASENBALG, Carlos
Alfredo; SILVA, Nelson Valle. Estrutura social, Mobilidade e Raça. São Paulo: Vértice; RJ: Instituto
Universitário de Pesquisa, 1988; PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento Humano e Relações
Raciais. Rio de Janeiro: DP&A (Coleção Políticas da Cor), 2003.
35

miscigenação entre três povos/raças, sendo os europeus/brancos, os


africanos/negros e os índios/amarelos (CIRQUEIRA, 2010), produzindo-se uma
identidade nacional onde todos possuem uma origem comum, essencial na
construção de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008).
Mais que isso, essa fábula esconde que o processo de miscigenação no
Brasil em um primeiro momento foi baseado em estupros e posteriormente
fortemente incentivado por políticas eugenistas de branqueamento da população.
A convergência entre o problema da identidade nacional e a ideologia da
democracia racial subsequente resulta na criação de multifacetado sistema de
relações inter-raciais, que vai ser responsável por colocar um véu sobre as
discriminações e preconceitos de base racial 9 na sociedade brasileira.
Sobre a presença desse pensamento na sociedade, Guimarães (2008) aponta
que ideias como democracia racial e a formação da população brasileira a partir dos
três grupos citados se tornaram senso comum, recorrentemente utilizado para
justificar a não existência do racismo no Brasil. Essa organização baseada numa
ideologia de miscigenação também atinge a classificação racial no Brasil. Como
aponta Oracy Nogueira (2007), vivemos em uma sociedade onde o racismo é,
majoritariamente de marca, ou seja, incide sobre a cor da pele e outros traços
fenotípicos, diferente de outros países como os EUA, onde o racismo incide também
sobre a origem dos indivíduos, ou seja, aqueles que têm antepassados de grupos
racialmente postos como inferiores também estão sujeitos a toda sorte de
discriminações raciais.
Ajudando a compreender esse racismo de marca, Telles (2003) apresenta a
ideia que na sociedade brasileira existe um dégradé cromático, do branco ao negro
possuindo diferentes tonalidades. Esse dégradé funciona como uma forma de
relação social que, impactado pelos diferentes contextos em que a interação possa
ocorrer, influencia da mobilidade do indivíduo em direção a um grupo racial ou outro.
Essa ideia permite enxergar uma fluidez nos sistemas de classificação racial
brasileiro, valorizando e possibilitando que os indivíduos alocados nas classificações

9
Como destacado anteriormente, o racismo é um sistema complexo, podendo ser compreendido
através das diversas esferas em que está presente. Dessa forma, é de suma importância, ter a
compreensão de que “[...] o preconceito racial não é todo o racismo, ele não esgota de modo nenhum
todo o seu conteúdo. Resulta daí que a redução do preconceito racial a uma figura (moderna) de
atitude etnocêntrica, tão justificada quanto a possamos considerar, não implica a redução do racismo
ao etnocentrismo.” (TAGUIEFF, 2002, p.22)
36

intermediárias (pardo, moreno, mulato, e diversas outras utilizadas no cotidiano)


passem de um grupo racial para outro.
Dessa forma, ao criar o seu próprio padrão de brancura, a fluidez das
categorias intermediárias no sistema classificatório brasileiro se comporta como
ferramenta para acomodar as tensões presente na sociedade. Assim, o que Telles
(op. cit.) entende como inconsistência da operação dos critérios raciais, na
realidade, é todo um sistema complexo inter-relacionado de diferentes sistemas
classificatórios no campo das relações raciais sociais do Brasil.
Esse pequeno panorama sobre o que entende-se como a base das relações
raciais no Brasil, traz para o presente momento duas questões: i) Qual a influência
dessas ideologias na formação das identidades de brancos e negros na sociedade
brasileira e ii) Como esse pensamento influencia nas relações raciais atualmente?

1.2.1 Da sua forma oculta, à branquitude e branquidade: os mecanismos “sutis” de


perpetuação do racismo nas relações sociais brasileiras

Em seu estudo compartilhado sobre a face oculta do racismo na sociedade


brasileira, Leoncio Camino, Patrícia da Silva, Aline Machado e Cícero Pereira
(2001), indicaram que, devido ao combate promovido por militantes do movimento
negro e pelo Estado contra o racismo aberto, as formas tradicionais de evidenciação
desse fenômeno – através da discriminação e preconceito – estão sendo
substituídas por novas formas, mais sutis. De acordo com os autores, apesar de
diversos pesquisadores compreenderem a existência desse novo campo, muitos
trabalhos ainda apresentam problemas de ordem metodológica e conceitual: apesar
de apresentarem as novas formas de racismo, estão presos a processos
metodológicos antigos para entendê-las. Ao não trabalharem nas escalas do
contexto social e tratarem essas novas formas de uma maneira universal, diversos
pesquisadores e pesquisadoras acabam depauperando o debate.
Taguieff (2002), ao discorrer sobre os limites da repressão legal ao racismo,
aponta que,
37

Devemos [...] partir de um diagnóstico do racismo presente, ou antes dos


racismos, dos modos de racização observáveis, identificar e analisar as
novas formas argumentativas e prático-sociais de racismo, as quais não se
manifestam sempre de um modo claro ao olhar ingênuo (naïf). Na verdade,
antes de tudo, o racismo nunca aparece no estado puro, mas sempre no
estado imbricado: o racismo, este ou aquele racismo, pode estar imbricado
ou implicado no nacionalismo (esta ou aquela forma de nacionalismo), no
imperialismo colonial, no etnismo, no eugenismo e nos seus campos
conexos (a psicologia diferencial da inteligência), ou ainda no darwinismo
social (isso é, o elitismo imoderado implicado pelo liberalismo econômico
selvagem) etc. Aquilo a que temos direito de chamar racismo manifesta-se,
portanto, apenas no termo de uma análise de uma decomposição da
formação sincrética na qual ele entra na qualidade de ingrediente [...]
Encontramos assim o problema do racismo implícito. Este não se
proporciona facilmente à denúncia sob a forma claramente reconhecível de
condutas ou de teses que caem sob a alçada da lei. (TAGUIEFF, 2002,
p.57-58)

No ponto de vista conceitual, Camino et alii. (2001) realçam que devido ao


processo histórico da racialização das relações sociais, devemos tomar cuidado
para não apresentar como se todas as formas de racismo tivessem origem em
algum aspecto psicológico, apontando a necessidade de espraiar os aparelhos
explicativos de forma a compreender como essas novas formas do racismo se
manifestam na sociedade. À vista disso , os autores apontam que ao usarem os
mesmos aparelhos conceituais e metodológicos dos utilizados para estudar as
formas clássicas de racismo, muitos estudos não conseguem evidenciar o caráter
multifacetado dos impactos desse novo racismo na sociedade atual. No trabalho
citado, o argumento é de que é preciso construir uma leitura que possibilite analisar
como essas novas formas do racismo se manifestam no contexto atual. Para tal, os
autores também partem da compreensão de que apesar do racismo ter origem na
modernidade, essa modernidade chegou a uma nova fase, a da globalização. Com
isso, novas formas de racismo são engendradas, e novas escalas e formas de
analisa-lo são necessárias.
Esse debate entra em consonância com o que sendo trabalhado na
dissertação, e possibilita criar um caminho teórico-metodológico para compatibilizar
o debate sobre o racismo na conformação do atual sistema-mundo e as formas de
manifestação deste em diferentes aspectos da sociedade brasileira.
Com as novas formas do racismo se manifestar e, consequentemente, de
analisa-lo, as leituras que o enxergam somente através da dimensão do preconceito
e da discriminação passam a ser postas em cheque. Portanto, em uma sociedade
38

onde ser racista implica em uma coerção moral, o discurso de discriminação racial é
substituído por "favoritismo racial", ou como será visto a seguir, “privilégios raciais”.
Esse favoritismo/privilégio não implica na desvalorização e/ou negação das
contribuições dos outros grupos raciais para a formação da sociedade atual, mas na
supervalorização e favorecimento do grupo racial branco. Apesar de valorizar o
“outro”, e compreender a existência do racismo na sociedade, esse “novo racismo”,
não exerce um impacto negativo sobre a identidade branca, ao contrário, a
potencializa como sinônimo de desenvolvimento, modernidade.
Nesse sentido,

O novo racismo ideológico reformulou-se progressivamente como um


culturalismo e um diferencialismo, um e outro radicais, atacando assim pelo
flanco a argumentação antirracista centrada na recusa do biologismo e do
inigualitarismo, suposto constituírem as duas características fundamentais
do racismo doutrinal, nos quais se acreditada ingenuamente poderem opor
o relativismo cultural e o direito à diferença. O princípio da metamorfose
ideológica recente do racismo reside precisamente na deslocação da
desigualdade biológica entre as raças para a absolutização da diferença
entre as culturas. (TAGUIEFF, 2002, p.60)

Como consequência, ao mesmo tempo, o débito negativo de todo o processo


de hierarquização racial fica somente para a população negra, que apesar de serem
atribuídos alguns aspectos positivos, convivem os aspectos negativos como
constitutivos de suas identidades.
Desse modo, através de diversas pesquisas realizadas em países
colonizadores, ou onde com o fim da colonização foram mantidas políticas oficiais de
segregação racial, os autores citados apontam que atualmente existe uma nova
forma de perpetuação do racismo. Assim, apesar de não existir uma diferença
discrepante entre as características negativas atribuídas aos diversos grupos raciais,
essas novas formas agem na atribuição de valores positivos ao grupo racial branco,
e a negação dos mesmos ao negro.
Sobre esse ponto, é importante ressaltar que, apesar das normas antirracistas
presentes nas diferentes sociedades, estas acabam por inibir algumas das formas
clássicas de discriminação, mas isso não impede que essas novas formas
perpetuem o racismo presente na sociedade (CAMINO et alii, 2001).

O neo-racismo, simbólico ou velado, é o racismo próprio da idade do


antirracismo, isto é, um racismo adaptado à época pós-nazista
caracterizada por um consenso de base sobre a rejeição do racismo. O neo-
39

racismo é, por conseguinte, estruturado de maneira a abalar os modos


tradicionais de reconhecimento social do racismo (discursivo ou
comportamental), e a contornar as barreiras simbólicas estabelecidas pelas
legislações antirracistas. O que caracteriza é, portanto, em primeiro lugar o
seu volta-face dos valores do relativismo cultural (deslocação da “raça” para
a “cultura” e afirmação da incomensurabilidade radical das culturas); depois
o seu abandono do tema inigualitário e a sua erecção da diferença cultural
em absoluto, daí a condenação da mistura e a afirmação da não
assimilabilidade mútua, irremediável, das “culturas”; por fim, o seu carácter
simbólico, no que respeita às regras da aceitabilidade ideológica (daí uma
certa complexidade retórica: trata-se de rejeitar os diferentes, celebrando ao
mesmo temo a diferença). (TAGUIEFF, 2002, p.63-64)

Em uma sociedade como a brasileira, estruturada pelo Mito da Democracia


Racial, e pela fábula das três raças – dimensão do mito da democracia racial que,
devido à popularidade entre o senso comum, ganha corpo teórico próprio e se
descola do mito propriamente dito –, as novas formas do racismo se manifestar e a
forma de analisá-lo ganham contornos mais nebulosos.
Foi na busca por evidenciar essas novas formas do racismo que Camino et
alii (2001) fizeram uma pesquisa com 120 estudantes da Universidade Federal da
Paraíba da Área de Ciências Humanas. Apesar de ser uma amostragem pequena,
com um público que já sofreu uma perversa clivagem social que é a disputa para
entrar em uma universidade pública, os dados obtidos apresentam importantes
considerações para entender como o racismo se apresenta atualmente na
sociedade. Constataram, ao realizar a pesquisa nos mesmos moldes que foi feita
nos outros países, que no Brasil, as pessoas tentem a operar com dois padrões de
avaliação,

[...] um padrão mais concreto, destinado a avaliar a si mesmo, e


provavelmente também a seus familiares e amigos, e um padrão mais
abstrato e político, que visa à avaliação da sociedade brasileira. [...] estes
dois padrões interligados permitem aos brasileiros sustentar os princípios
modernos da igualdade racial, mesmo reconhecendo que no Brasil se está
muito longe de viver esta igualdade. (CAMINO et alii, 2001, p. 24-25)

Através desses dois padrões apontados, 98% dos estudantes entrevistados


apontaram que existe racismo na sociedade brasileira, mas ao responderem se os
mesmos eram racistas, apenas 16% dos estudantes responderam que eram. Ou
seja, esse padrão de avaliação faz com que permaneça todo um sistema de
dominação, onde ninguém se enxerga como parte do sistema de hierarquização
racial.
40

Numa pesquisa que atingiu todo o território nacional, Venturi e Paulino


(1995) constataram que 89% dos brasileiros reconhecia a existência de
preconceito racial no Brasil. Mas apesar da consciência da existência de um
preconceito generalizado, só 10% admitia ser pessoalmente
preconceituosos. [...] Venturi e Paulino (op. cit.) constataram também que
87% dos brasileiros, apesar de não se reconhecerem como
preconceituosos, revelavam, de forma indireta, algum tipo de preconceito.
Estes autores afirmam que “os brasileiros sabem haver, negam ter, mas
demostram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros”.
Rodriguez (1995) denomina este fenômeno de “Racismo Cordial”, afirmando
que esta atitude seria uma maneira de não ofender mais aquele que se
discrimina. (Idem, ibidem, p. 21)

Continuando a contribuição, os autores acrescentam que,

[...] este racismo à brasileira não tem nada de cordial; muito pelo contrário,
por ser mascarado, ele é não apenas terrivelmente eficiente em sua função
de discriminar as pessoas de cor negra, mas é também, lamentavelmente,
muito difícil de erradicar. Faz-se, pois, necessário conhecer as “novas
cabeças” desta velha e horrorosa Hidra; faz-se necessário analisar as
formas específicas que o racismo assume no Brasil. (Idem, ibidem, p .22)

Para compreender a forma de como o “novo racismo” aparece no discurso


brasileiro, os pesquisadores utilizaram em seu estudo o modelo de lista de adjetivos
(checklist). Junto a isso, visavam compreender qual a imagem que os indivíduos têm
sobre os diferentes grupos raciais do Brasil. Nesse ponto, ao contrário dos
indivíduos pesquisados em outros países, no Brasil as pessoas tenderam a atribuir
um grande percentual de características positivas e um baixo percentual de
negativas para a população negra. Contudo, a maior parte dos adjetivos girou em
torno do negro alegre e do negro simpático; em contrapartida, quando perguntado o
que os brasileiros acham dos negros, a maior parte apresentam o negro como
desonestos e agressivos. Além disso, no que concerne a capacidade cognitiva como
a inteligência, o adjetivo foi majoritariamente atribuído a indivíduos de pele branca.
Através disso, além de serem influenciadas pelas medidas antirracistas e
pelas pressões sociais em torno dos discursos “politicamente corretos” (Idem,
ibidem), compreende-se que o pensamento social brasileiro, em torno do incentivo a
miscigenação, faz com que esse indivíduo que em algum grau também é
miscigenado, se posicione dessa forma. Com tal característica, depreende-se que o
conjunto desses diferentes fatores faz como que exista uma preocupação (maior do
que em países onde houve segregação institucionalizada) em não mostrar o racismo
presente nas suas relações interpessoais.
41

Contudo, esses dados deixam evidentes que o combate ao racismo no plano


discursivo apresenta fortes impactos na hora de os brasileiros se posicionarem
acerca do assunto. Visto isso, enfatiza-se que a negação da existência no plano
discursivo não implica na inexistência no plano do cotidiano. Esse entendimento fica
nítido ao observar o posicionamento dos entrevistados quando o foco da discussão
mudou para a relação primeiro mundo versus terceiro mundo, ou desenvolvido
versus subdesenvolvido. Ao fazer esse movimento, os estudantes acabaram
atribuindo maiores características primeiro mundistas a pessoas do grupo racial
branco. Acerca das características terceiro-mundistas, os dados mostram uma maior
homogeneidade, com exceção do adjetivo pobre, que segundo os autores foi
aplicado aos negros em 78% dos casos.
Com a mudança metodológica e conceitual de análise, para compreender o
racismo em tempos de mundo globalizado, os pesquisadores conseguiram dados
que evidenciam que, assim como nas análises realizadas em países onde a
segregação tomou a forma de lei, existe uma maior quantidade de atribuições
“positivas” aos brancos e, predominantemente, se atribuem características
majoritariamente negativas aos negros.
À vista desse movimento, Camino et alii (2001) apontam que,

[...] novas formas de categorização estão se desenvolvendo, formas que se


destinam a substituir o conceito de raça pelo de modernismo, a cor branca
sendo associada aos valores do primeiro mundo e a cor negra aos valores
do terceiro mundo. Estas novas formas de categorização não se confrontam
com as normas anti-racistas, o que facilita a conservação dos processos de
exclusão. (Idem, ibidem, p. 32)

Para adensar e essa análise, compreendemos que esse novo racismo tem
como principal componente a criação e posterior mobilização de uma identidade
branca. Cabe ressaltar que, como grande parte das identidades presentes no atual
sistema-mundo estão atreladas a um emaranhado conjunto de opressões, essa
perspectiva nos ajuda a ampliar o escopo analítico-conceitual para compreender
como essas novas formas de racismo aparecem na sociedade, com as discussões
levantadas no início do capítulo10.
Sobre esse debate, Ruth Frankenberg (2004) aponta que:

10
Por ora, é importante lembrar que esse tema tem forte desdobramento na construção de leituras
espaciais e é trabalhada na agenda do ensino de geografia, ou seja, não é só na mídia que se
aprende essa leitura, mas também em sala, com a geografia.
42

[...] é crucial lembrar que, no contexto da colonização, os construtos


identificados como “povo(s)”, “nações”, culturas” e “raças” passam a ter um
entrelaçamento complexo. É por isso que, no presente, continuam a fundir-
se uns com os outros em termos racistas, de tal modo que “norte-
americano”, por exemplo, tende a ser entendido como o significado de
“branco”. (FRANKENBERG, 2004, p. 310)

Ao fazer a ponte entre as contribuições de Camino et alii (2001) e de


Frankenberg (2004) verifica-se que existe um conjunto de práticas e mecanismos
que não se enquadram nem no campo da discriminação e do preconceito, mas que
dão lastro para reprodução do racismo na sociedade. Um deles é o que vem se
chamando, na academia brasileira, de branquitude e branquidade. Estes dois
conceitos, ajudam a fazer a ponte entre as formas tradicionalmente engendradas de
hierarquização racial, e as novas formas apontadas por Camino et alii (2001).
Como indica Camila Jesus (2012), apesar de o termo branquitude aparecer
pela primeira vez na obra de Gilberto Freyre11, é somente nos anos 2000 que o
conceito se populariza na literatura acadêmica brasileira. Segundo Lourenço
Cardoso (2014), esta palavra pode ser considerada uma atualização do termo
“brancura”, proposto por Guerreiro Ramos no começo da segunda metade do século
XX, e vai se popularizar principalmente através das obras de Edith Piza 12 e de Maria
Aparecida Silva Bento13.
Segundo Cardoso (2014), para parte da academia brasileira, a conceituação
de branquitude também pode ser considerado uma versão brasileira do conceito de
língua inglesa whiteness. Contudo, como o próprio destaca, com o lançamento do
livro “Branquidade – Identidade branca e multiculturalismo” de Vron Ware (2004) o
conceito whiteness vai ser traduzido como branquidade.
Em virtude disso, Jesus (2012) indica que,

Embora o título do livro tenha sido traduzido para português como


Branquidade e não Branquitude, nota-se nas publicações que a palavra
branquidade deseja exprimir o mesmo conceito que pesquisadores aqui no
Brasil estavam utilizando. (JESUS, 2012, p.6)

11
O termo é criticado pelo autor, uma vez que junto com o termo “negritude”, representavam um
empecilho para a propagação da ideologia de democracia racial sob a base de um discurso de
mestiçagem.
12
“Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu” (2000) e “Porta de vidro: entrada para a
branquitude” (2002).
13
“Branqueamento e Branquitude no Brasil” (2002), e na sua tese de doutorado “Pactos narcísicos no
racismo: branquitude e poder nas organizações empresarias e no poder público” (2002).
43

Apesar disso, tanto a autora quanto Cardoso (2014) apontam que, com a
emergência do termo branquidade, alguns pesquisadores e pesquisadoras estão
caminhando no sentido da ressignificação do conceito de branquitude. É o caso de
Edith Piza, que segundo Jesus (2012) ao cita-la apresenta que,

Ainda que necessite amadurecer em muito esta proposta, sugere-se aqui


que branquitude seja pensada como uma identidade branca negativa, ou
seja, um movimento de negação da supremacia branca enquanto expressão
de humanidade. Em oposição à branquidade (termo que está ligado
também a negridade, no que se refere aos negros), branquitude é um
movimento de reflexão a partir e para fora de nossa própria experiência
enquanto brancos. É o questionamento consciente do preconceito e da
discriminação que pode levar a uma ação política antirracista (PIZA, 2005,
p. 07 apud JESUS, 2012).

Em resumo, Cardoso (2014) apresenta que dentro dessa proposta de


separação,

[...] A branquidade diria respeito à identidade racial do branco que não


questiona seus privilégios raciais e a branquitude se refere aquele que
questiona as vantagens raciais. (CARDOSO, 2014, p. 183)

Contudo, quanto a essa proposição, o referido autor faz uma crítica ao


conceito de branquidade defendido por Piza (2005 apud JESUS, 2012) uma vez
que:

[...] No contexto brasileiro, quem melhor se insere neste perfil é o


pesquisador branco de branquitude. Ou mais concretamente, a própria Edith
Piza. Isso significa que, a autora propõe um conceito para benefício próprio,
para se diferenciar; situar-se num patamar hierárquico acima. Isto é, o
branco com branquitude encontra-se num nível elevado superior ao branco
com branquidade. Em virtude de que é autocrítico contra os privilégios
raciais, enquanto o branco com branquidade não é. Porém, tanto branco
com branquitude quanto com branquidade serão tratados da mesma forma
pela sociedade. (CARDOSO, 2014, p. 183)

Apesar de concordar com a crítica feita pelo autor, a separação entre


identidades e tomada de atitude contida “ocultamente” na proposta de Piza (apud
JESUS, 2012) apresenta um profundo e espinhoso campo de discussão dentro do
que seria a identidade racial do branco brasileiro e a função dessa identidade nas
relações sociais brasileiras.
Não adentrando nessa seara, Cardoso (2014) opta por enxergar branquitude
e branquidade enquanto sinônimos. Em movimento contrário a opção de Cardoso
(2014), pretende-se aqui realizar algumas discussões de forma contribuir para o
44

debate sobre a identidade racial do branco brasileiro a partir dos conceitos de


branquidade e branquitude.
Apesar de considerar que ambos os conceitos possuem uma forte ligação,
também acredita-se que existem algumas diferenças no que tange à escala analítica
e no processo histórico de formação dos mesmos. Esse entendimento parte do
princípio de que, apesar de existir um processo de criação de uma branquidade em
uma escala-mundo, esta ganhou contornos próprios nos diferentes países onde foi
engendrada, fazendo com que diferentes indivíduos inculcassem diferentes formas
de se enxergar e também se posicionar na sociedade.
Nesse sentido, compreende-se que a branquidade diz respeito a construção
de um sistema de identidade que atingiu diversos países do mundo, construindo
uma imagem do que seria o grupo racial branco ideal, da mesma forma que o
processo de modernidade construiu uma identidade para os diversos grupos raciais,
como ressaltamos da discussão sobre a construção da raça na conformação do
sistema-mundo moderno colonial.
Através dessa discussão, entendemos que a branquidade, de maneira
indireta, também é capaz de influenciar na visão de diversos indivíduos para além do
grupamento branco. Já a branquitude, como diz Maria Aparecida Silva Bento (2002),
pode ser entendida enquanto os “traços da identidade racial do branco brasileiro a
partir das ideias sobre branqueamento” (BENTO, 2002, p. 25). Ao ressaltar a
dimensão do branco brasileiro, entende-se que a branquitude vai agir somente sobre
o grupo racial branco.
Através dessa perspectiva, concebe-se a branquitude como a inculcação do
modus operandi do branco atuar em sociedade, engendrado pela construção da
branquidade em escala mundo, e de mecanismos de homogeneização como a teoria
de branqueamento. Ao fazer esse movimento, se como busca construção de uma
leitura que possibilite enxergar esses termos como conceitos diferentes, mas
complementares.
No entendimento que se orienta aqui neste trabalho, o portador de
branquitude não tem a sua principal característica nem na atuação na luta
antirracista, como busca conceituar Piza (2005, apud JESUS, 2010), muito menos
no uso intencional do racismo para conseguir vantagens como aponta Cardoso
(2014). Ao buscar evidenciar o entrelaçamento entre a teoria de branqueamento e
45

as ações mais palpáveis e práticas presente nas atitudes do grupo racial branco, por
exemplo, Bento (op. cit.) indica que até nos estudos considerados mais
progressistas para evidenciar o papel do racismo na construção de identidades na
sociedade brasileira, existem traços dessa branquitude.
Essa perspectiva fica mais evidenciada na crítica realizada sobre as
apropriações hegemonicamente feitas às obras de pensadores antirracistas, como
Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Sobre os trabalhos de Florestan Fernandes,
em específico, Bento (op. cit.) elucida que, apesar do autor ter trabalhado outras
perspectivas no decorrer da carreira, em suas obras mais citadas, o autor trabalhou
com uma perspectiva que atribuía ao negro o problema envolvendo a questão racial.
Assim, a autora aponta que existe uma invisibilização acerca de como o processo
secular de formação do racismo influenciou no significado de ser branco, ou
apresentou essa influência sobre a identidade da população branca no país. Acerca
da hegemônica utilização de uma perspectiva que coloca o negro sempre como o
único atingindo pelo racismo, a autora entende que além disso,

Na descrição desse processo o branco pouco aparece, exceto como modelo


universal de humanidade, alvo da inveja e do desejo dos outros grupos
raciais não-brancos e, portanto, encarados como não tão humanos.
(BENTO, op. cit., p.25)

Ainda segundo a autora, outra estratégia para tentar invisibilizar essa


discussão, é a realocação para o debate de classe social. Nesse sentido, mesmo
sabendo que quando apresentados os números de exploração intra-classe, ou
mesmo quando são estudados os resultados em números gerais da classe social,
são os negros que estão na base da pirâmide social, os portadores de branquidade
buscam criar estratégias para negar a discussão, a essas estratégias Bento (op. cit.)
chamou de “acordo tácito”.
Simultaneamente a esse debate, para explicar a invisibilização dessa
discussão dentro de diferentes organizações coletivas, a autora utiliza ainda os
aportes teóricos de Denise Jodelet (1989 apud Bento, 2002). Segundo esta
pesquisadora, a necessidade de pertencimento a um grupamento social, pode fazer
com que invistamos nele a nossa própria identidade. Na tentativa de proteger
intencionalmente (ou não) o que quer ser, acaba se negando as discussões que
podem abalar os pilares dessa identidade coletiva.
46

É entendido que essa perspectiva também atinge a percepção de como as


políticas antirracistas devem ser engendradas. Para tal, será utilizado o exemplo
contido no estudo de Pierre-André Taguieff. Contudo, antes de falar sobre o
antirracismo contido nesse modelo, é importante destacar que diferente do racismo
em que se pode enxergar cortes analíticos nítidos, o antirracismo apresentado nesse
modelo envolve imbricações que fazem com que determinados antirracismos
também atinjam (in)diretamente outros. Mais que isso, apresentam posicionamentos
controversos no que tange a melhor forma de lutar contra o racismo postulado.
Acerca disso, d‟Adesky (2001), aponta que:

[...] as estruturas polêmicas simples e não-elementares relativas ao modelo


quadripartito mostram (eis a contribuição fundamental de Pierre-André
Taguieff) que cada racismo tem o seu "duplo" anti-racismo e, que cada tipo
de anti-racismo leva a um tipo de racismo que crítica, estigmatiza, denuncia
preferencialmente, e condena." (D‟ADESKY, 2001, p. 30)

É com um olhar crítico necessário que observa-se, em primeiro lugar, como o


antirracismo universalista de base espiritualista é trabalhado por Taguieff. Para o
pesquisador, essa forma de antirracismo defende que os grupos atualmente postos
enquanto inferiores são capazes de se beneficiar dentro da civilização. Nesse
sentido, o autor acredita que "por meio de uma educação que racionalize os
costumes, destrua os preconceitos e elimine os particularismos culturais
considerados 'arcaicos' ou 'bárbaros'" (D‟ADESKY, 2001, p. 28) as diferentes
sociedades humanas conseguiriam superar o racismo.
Ao fazer essa leitura evolucionista e hierarquizante de mundo, essa forma de
antirracismo acaba ratificando uma visão para a qual as populações são colocadas
em civilizadas ou arcaicas/bárbaras. Em uma sociedade onde podemos ver a
hierarquização racial através da mobilização de fatores econômico-sociais, como a
divisão em primeiro mundo versus terceiro mundo, ou desenvolvido versus
subdesenvolvido (Camino et alii, op. cit.), uma medida que em sua primazia seria
antirracista, acaba auxiliando na perpetuação do racismo.
Ainda dentro da discussão colocada por esse antirracismo, é compreendido
através das contribuições colocadas por Bento (2002), que essa forma de
antirracismo compactua perfeitamente com as perspectivas presentes dentro do que
a autora colocou enquanto branquitude, uma vez que não abala as estruturas do
47

papel do branco na sociedade e coloca o problema da opressão racial sobre a


população não-branca, considerada arcaica, ou bárbara.
Dessa forma, enxergar esse tipo de discurso engendrado dentro das relações
cotidianas em diferentes localidades, ajuda a evidenciar a influência da branquitude
das relações cotidianas, além de mostrar como o racismo pode ser mobilizado de
maneira mais sutil, para além das esferas da discriminação e do preconceito.
Essa impressão também está presente quando o autor aponta o antirracismo
universalista de base biomaterialista. Para o autor, essa forma de antirracismo
defende que não existem raças superiores e inferiores, contudo, assim como a
forma anterior defende a permanência de uma sociedade formada em volta dos
signos da modernidade.
Para tanto, essa forma de antirracismo defende a miscigenação da população
como um todo. Cabe destacar que a miscigenação defendida pelo modelo
universalista de base biomaterialista caminha no sentido de criar "uma assimilação
universal, de uma total fusão dos grupos humanos. A mistura das raças e das etnias
é o instrumento privilegiado dessa síntese final" (D‟ADESKY, 2001, p.28). Portanto,
essa perspectiva apresenta algumas similaridades com as políticas de
branqueamento, que, apesar de considerar a população negra um problema, partem
da mesma premissa para acabar ou acomodar as relações raciais na sociedade.
Em movimento contrário aos antirracismos universalistas, Taguieff apresenta
que o antirracismo diferencialista de base espírito-cultural, age na luta "contra o
racismo 'imperialista', uniformizador, homogeneizador, desenraizador dos indivíduos,
destruidor dos povos etc." (apud D‟ADESKY, 2001, p.28). Ao atuar nesse campo,
essa forma de antirracismo busca preservar tanto as identidades culturais quanto as
formas de relação com o mundo das diferentes sociedades humanas. Em outras
palavras, defende-se o direito dos diferentes grupamentos humanos serem
diferentes dentro de um sistema global que visa homogeneizar todas as esferas da
vida.
Por último, o antirracismo diferencialista de base biomaterialista, postula
acerca do respeito às diferenças culturais hipoteticamente ligadas diferenças
biológicas. Ao fazer isso, ele trabalha com a perspectiva de que existem diferenças
biológicas entre os diversos grupos humanos e que essas não são transmissíveis a
qualquer outra raça.
48

Respeitar essas diferenças bioculturais naturais é deixar cada raça


desenvolver-se livremente: "separadas mas iguais". Nessa perspectiva, toda
escala universal de valores é uma abstração vazia e uma ilusão, pois as
entidades raciais são incomparáveis. (D‟ADESKY, op. cit., p.29).

Mesmo tendo sido superada a discussão sobre as diferentes raças humanas


no campo da biologia (MUNANGA, 2004; GUIMARÃES, 2008), essa forma de
antirracismo visa contrapor o discurso do racismo engendrado por grupos radicais
como neonazistas, por exemplo.
Como citado anteriormente, cada forma de antirracismo apresentado traz
consigo elementos do racismo que buscam combater a evidenciação dessas formas
de discursos. Na fala de diversos pesquisadores, evidencia-se como as diferentes
teorias raciais influenciaram na conformação do pensamento sobre esse fenômeno
e, consequentemente, para a superação dele.
Ao retomar a leitura de Bento (2002) à luz do que é trazido por esse modelo
antirracista, é possível enxergar que o racismo não exerce influência somente
criando desvantagens para o negro, mas privilégios e vantagens para os brancos.
Ao realocar o debate, ela expande a análise da discussão racial, mostrando, assim
como Camino et alii (2001), que existem outros caminhos possíveis para se analisar
a perpetuação deste na sociedade brasileira.
Ao trazer o debate para a escala/tempo abordada por Camino et alii (2001),
ressalta-se a importância de pensar como o processo de globalização, ajuda na
ressignificação do racismo e da própria branquidade.
Entendemos que, com isso, novas branquidades passam a influenciar as
atitudes e posicionamentos dos indivíduos na sociedade atual. Uma dessas
influências é a atualização do recorte racial na nossa sociedade aos moldes do que
Camino et al (2001) apontaram.
Para ajudar a compreender um pouco mais a diferenciação conceitual que
está tentando ser o evidenciada nesta dissertação, serão utilizados os aportes de
Ruth Frankenberg (2004), que aponta oito pontos fundamentais para entender o que
é branquidade, sendo eles:

1. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades


estruturadas na dominação racial.
2. A branquidade é um „ponto de vista‟, um lugar a partir da qual nos vemos
e vemos os outros e as ordens nacionais e globais.
3. A branquidade é um lócus de elaboração de uma gama de práticas e
identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou
49

denominadas como nacionais ou „normativas‟, em vez de especificamente


raciais.
4. A branquidade é comumente redenominada ou deslocada dentro das
denominações étnicas ou de classe.
5. Muitas vezes, a inclusão na categoria „branco‟ é uma questão
controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de
branquidade são marcadores de fronteira da própria categoria.
6. Como lugar de privilégio, a branquidade não é absoluta, mas atravessada
por uma gama de outros eixos de privilégio e subordinação relativos; estes
não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas o modulam ou
modificam.
7. A branquidade é produto da história e é uma categoria relacional. Como
outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas
socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquidade
têm camadas complexas e variam localmente e entre os locais; além disso,
seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
8. O caráter relacional e socialmente construído da branquidade não
significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais
em seus efeitos materiais e discursivos. (FRANKENBERG, 2004, p. 312-
313, grifo nosso).

A autora ao apontar um conjunto de pontos que evidencia o caráter


heterogêneo da construção da branquidade, busca contribuir de forma que
espraiemos a forma de analisar e interpretar a construção dessa identidade em uma
escala global, e os reflexos na escala intranacional.
O rol de definições apontadas por Frankenberg (2004), não só ajuda a
compreender a construção social da branquidade, mas também auxilia a entender
como diversas formas de discriminação racial estão atreladas ao que autores como
Quijano (2005) e Grosfoguel (2008) apresentaram enquanto eixos simultâneos de
dominação.
Destarte Frankenberg (2004) proporciona um lastro teórico, para fazer a
ligação entre o debate sobre branquidade e outros eixos de dominação. Ou seja, ao
mostrar a branquidade estando relacionada não somente a uma forma
hierarquizante de ver o mundo, mas flexível e compreendida através de outras
categorias étnicas ou classe sociais, a autora mostra que a criação da identidade
branca traz consigo um enredado sistema de dominação.
Ao mesmo tempo, Frankenberg (2004) identifica enquanto fruto da criação de
uma identidade branca, o que Camino et al (2001) mostra ao evidenciar que existe
uma mudança das formas do racismo se manifestar, saindo do simples eixo de
discriminação e preconceito e indo em caminho a uma supervalorização de uma
população branca através atribuição de valores correlatos a características de
indivíduos de primeiro mundo em contraposição aos países de terceiro mundo.
50

Concomitantemente a esse processo, a inter-relação entre o debate realizado


por Camino et alii (2001) e os aportes teóricos de Bento (2002) possibilita enxergar
uma nova forma de racismo, um racismo que por um lado está ligado a uma
mudança do discurso de discriminação de base racial, para justificativas
teoricamente culturais e econômicas, mas permanecendo por outro com uma
branquitude, que a faz se ver deslocada de todo o papel histórico do branco na
formação/mobilização e perpetuação do racismo em uma escala mundo.
Então, é necessário, salientar que

[...] o racismo não se reduz a um discurso de aparência teórica ou de


aspecto científico. Também não se reduz a um discurso de conteúdo
ideológico-político, que veicula opiniões, representações, crenças. Ele
constitui também, e talvez antes de tudo, o que Memmi chama uma
“experiência vivida”, mista de motivações não conscientes e de “boas
razões” legitimadoras junto do racismo, uma experiência vivida e comum na
qual se entrelaçam afectos (emoções, paixões), narrativas lendárias,
convicções e interesses ligados a situações, a contextos institucionais,
assim como a práticas sociais dotadas de um valor funcional (legitimar,
racionalizar). (TAGUIEFF, 2002, p.83)

Em uma sociedade onde o racismo está engendrado de forma a invisibilizar o


negro nas relações sociais, entendemos que é necessário trazer algumas
perspectivas que possibilitem enxergar como o racismo aparece de múltiplas formas
nas relações raciais e espaciais no Brasil.

1.2.2 As inculcações do racismo nas relações espaciais brasileiras

A fluidez no sistema classificatório brasileiro junto à valorização de uma


identidade branca e a criação de novas formas de mobilizar o racismo, trazem em
seu bojo uma série de mecanismos sutis de manutenção do statu quo, que implicam
também nas relações socioespaciais. A partir dessa leitura, em aliança com o
debate feito no primeiro subcapítulo sobre a raça em uma escala-mundo, vemos que
as formas de dominação através do dado racial se modificaram e se adaptaram não
somente ao longo dos séculos, mas também em diferentes contextos espaciais.
Apesar do debate sobre o tratamento das relações raciais no Brasil e no
Mundo ter avançado nos últimos anos, quando observa-se esse debate através da
51

produção social do espaço, se vê que o espaço ainda é marcado por inúmeras


“grafagens” e visões de mundo racializadas.
Nesse ponto, problematizar a produção social do espaço construída com base
nas relações de poder presentes em nosso cotidiano, é fundamental para adensar o
debate proposto, uma vez que ao mesmo tempo em que entendemos o espaço
enquanto algo historicamente produzido como aponta Milton Santos (2006), deve-se
entender que a compreensão que temos sobre o mesmo também é uma construção
histórica-social como indica Doreen Massey (2008).
É desse ponto de partida e do questionamento de como o debate sobre
produção social do espaço pode ajudar a complexificar a leitura sobre o racismo,
que o presente subcapitulo visa analisar o racismo e as suas implicações espaciais
no que refere à sociedade brasileira.
Ao entender que existe uma produção social do espaço, se está tentando
demostrar que: (i) ao ser socialmente produzido, ele pode ser analisado através das
relações de poder nele inscrito, e que (ii) ao adicionar a dimensão do tempo, é
possível visualizar e dar visibilidade as diversas “grafagens” que variados grupos
sociais engendraram durante a história.
Caminhando nesse sentido, e ressaltando a dimensão das relações de poder
no espaço, assim como Michel Foucault (1979) – quando o referido autor discorre
sobre o nascimento dos hospitais – objetiva-se aqui, ressaltar alguns pontos que
interferem nas experiências espaciais dos indivíduos.
Contudo, em primeiro lugar, se deve destacar que:

A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não inteiramente


inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o
século XVIII. Historicamente as disciplinas existiam há muito tempo, na
Idade Média e mesmo na Antiguidade. [...] Os mecanismos disciplinares
são, portanto, antigos, mas existiam em estado isolado, fragmentado, até os
séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma
nova técnica de gestão dos homens. (FOUCAULT, 1979, p.61)

Devido a essa dimensão que mexe com as relações de poder, a disciplina se


configura, ainda hoje, enquanto uma série de regulações que influenciam nas
experiências espaciais dos indivíduos. Mesmo não sendo a intencionalidade do
autor, entende-se que o aperfeiçoamento da disciplina no período da expansão
europeia sobre o mundo, foi fundamental para alocar e dominar as diferentes
identidades, sendo assim, parte primordial do que foi apresentado anteriormente
52

enquanto Projeto de Modernidade. Assim, compreende-se que o espaço para além


de ser historicamente produzido, envolve uma dimensão política, esta última levando
consigo uma dimensão disciplinar (de regulação), visto que:

A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo


espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado,
classificatório, combinatório. [...] A disciplina exerce seu controle, não sobre
o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. (FOUCAULT,
1979, p.61-62).

Sobre o período anteriormente citado, Massey (2008) coloca que a


modernidade, ao espacializar a sua história através das fronteiras dos Estados-
Nação, vai ser responsável por inculcar a ideia de espaço enquanto algo gerado e
delimitado pautado nas diferenças. Nesse sentido concorda-se com a autora,
quando coloca que é preciso pensar o espaço para além da história escrita durante
a modernidade, criando novas bases para se pensar o mundo, uma vez que:

As implicações da espacialização/globalização da estória da modernidade


são profundas. [...] A trajetória europeia (apesar de ser a mais poderosa,
certamente, em termos militares e outros) deveria não apenas ser
“descentrada”, mas poderia, também, ser reconhecida como apenas uma
das histórias que estavam sendo feitas àquela época.
Além disso, uma vez que a multiplicidade de trajetórias tenha sido
reconhecida, torna-se claro um efeito adicional de espacializar, desta forma,
a estória da modernidade. [...] A espacialização dessa estória nos permite
uma compreensão de sua posicionalidade, de sua imbricação geográfica,
uma compreensão da própria espacialidade da produção do conhecimento.
Ademais, recontar a estória da modernidade através da
espacialização/globalização expõe as precondições da modernidade e seus
efeitos de violência, racismo e opressão. (MASSEY, 2008, p.100-101)

Ao assumir-se que as relações espaciais engendradas pelas sociedades


atuais, possuem uma forte ligação com as teorias sociais/raciais que remontam ao
período de expansão europeia sobre o mundo, entende-se que em diferentes
momentos, o racismo – enquanto fenômeno fundamental para a reprodução das
relações de poder – pode se manifestar espacialmente em nossa sociedade.
Renato Emerson N. dos Santos (2012) ajuda a entender esses diferentes
momentos onde o racismo aparece através do que ele apresenta enquanto
contextos de interação. Sobre esses contextos, o autor expõe que:

Há na nossa sociedade um complexo padrão de relações raciais que


mistura, no cotidiano das relações sociais, momentos onde há interações
marcadas por horizontalidade, integração e igualdade entre brancos e
negros e, ao mesmo tempo, outros momentos onde há verticalidades,
hierarquias e diferenças que são transformadas em desvantagens, ou
53

vantagens desiguais entre esses grupos. Esta mistura entre momentos de


horizontalidade e momentos de verticalidade é que permitirá que, a um só
tempo, convivam na sociedade (i) uma representação de si própria como
sendo uma “democracia racial” e (ii) a reprodução e a consolidação de
desigualdades sociais baseadas em raça, o que deveria ser extirpado caso
horizontalidade, integração e igualdade fossem princípios ordenadores das
relações raciais vigorando em todos os momentos da construção do tecido
social. (SANTOS, 2012, p. 44).

Por isso, dependendo do espaço onde este indivíduo está inserido, ele pode
ser classificado e tratado obedecendo a critérios raciais. Isso ocorre, pois como se
pode ver nas contribuições acima, os contextos em que interagimos com outras
pessoas envolvem uma gama de relações fluidas, mas também disciplinadas
através de barreiras/fronteiras invisíveis, simbólicas, que vão demarcar os espaços
que devem e espaços que não devem ser frequentados pela população negra.
Essas fronteiras são responsáveis por organizar as experiências das pessoas
no espaço:

[...] definindo comportamentos aceitáveis e pertencimentos – na verdade,


campos de possibilidades e limites, cujo aprendizado é crucial para a
reprodução social desta ordem. Afinal, são constructos ideológicos
inculcados em indivíduos e grupos que permitem esta reprodução –
expressões da colonialidade do ser nas relações sociais. (SANTOS, 2012,
p58)

Essa leitura permite particularizar e enxergar a existência de uma


multiescalaridade no que tange a questão racial no Brasil. Para explicar como essas
múltiplas formas racializadas de dominação aparecem nas relações espaciais dos
indivíduos e desvelar possíveis miragens sobre a posição social do negro nas
relações inter-raciais no Brasil, Lívio Sansone (1996) contribui de forma
fundamental, ao apresentar a ideia de que podemos compreender as relações
raciais no Brasil através de uma padronização em: (i) áreas duras (momentos em
que o pertencimento ao grupo racial pode influenciar as suas experiências sociais);
(ii) áreas moles (momentos em que a questão racial não causa tensões no tecido
das relações); e (iii) espaços negros (espaços onde o pertencimento a um grupo
étnico-racial negro, pode acarretar em vantagens).
Como se pode observar, a conformação desse padrão nas relações sociais,
também influenciam nas vivencias espaciais de cada indivíduo, assim quando o
autor indica que:
54

As áreas „duras‟ das relações de cor são: 1) o trabalho e em particular a


procura do trabalho; 2) o mercado matrimonial e da paquera; 3) os contatos
com a polícia. (...) As áreas „moles‟ das relações raciais são todos aqueles
espaços no qual ser negro não dificulta e pode às vezes até dar prestígio.
(...) Em seguida, vêm os espaços negros mais definidos e explícitos, os
lugares nos quais ser negro é uma vantagem: o bloco-afro, a batucada, o
terreiro de candomblé e a capoeira. Estes últimos espaços são
frequentemente chamados com o termo abrangente de „cultura negra‟.
(SANSONE, 1996, p. 183)

Enxerga-se que essas “áreas”, mais que um recorte social, representam uma
dimensão física, que apesar de ser somente mais uma forma de espacializar as
relações raciais no Brasil, constituem um fecundo campo de análise para ser
problematizado pela comunidade geográfica. Assim, para o presente estudo,
assume-se que os efeitos dos mecanismos sutis de hierarquização racial em
conjunto com esta forma de ler as relações socioespaciais no Brasil, devem ser
também entendidos através de uma apropriação geográfica sobre o conceito
“paraíso racial” (MAZAMA, 2009). Uma vez que é também através de recortes
emblemáticos da harmonia entre negros e brancos (a praia, o futebol, o
carnaval/samba etc.) que se propaga a ideia da existência de uma sociedade onde o
racismo inexiste no plano das relações sociais.
O paraíso racial, apesar de não ser um conceito usualmente evocado nas
relações cotidianas brasileiras, marca uma possível forma de lermos as expressões
preconizadas pelo ideário da “democracia racial”, como podemos ver em MAZAMA
(2009):

Os argumentos mais comumente usados para negar o racismo e a


supremacia branca no Brasil e em outros lugares, incluem: 1) aceitação
implícita da brancura como norma ideal; 2) negação da raça como categoria
socialmente relevante; 3) negação da raça como realidade física e louvação
da mistura racial; 4) negação da existência de uma especificidade cultural
africana e louvação da mistura cultural; 5) corte espacial (“aqui não”); 6)
corte temporal (“não mais”). (MAZAMA, 2009, p. 113, grifo nosso)

Esses argumentos são traduzidos na forma de um conjunto de imagens que


visam propagar (in)diretamente um imaginário de harmonia entre os diferentes
grupos raciais. Por isso, para usar os aportes relacionados à crítica engendrada pelo
Movimento Negro sobre a teoria da Democracia racial, entendemos que essa ilusão
da existência de um “paraíso racial” se constitui em “miragens de um paraíso racial”,
que influenciam diretamente na percepção das relações raciais no Brasil, já que
55

deslegitima uma série de denúncias feita em relação ao viés segregador do racismo


brasileiro.
Adensando a contribuição de Sansone, Denílson Oliveira (2014), ao discorrer
sobre o marketing urbano e a questão racial na era dos megaempreendimentos e
eventos no Rio de Janeiro, apresenta que essas áreas moles não podem ser
desprendidas de uma análise político-ideológica, já que a sua apropriação como
“paisagens paradigmáticas do espetáculo”, sobretudo pela mídia, torna essas áreas
exemplos objetivos das citadas “miragens de um paraíso racial”. Oliveira defende
que a mídia, em sua atribuição de produzir discursos e representações, tem um
papel central na difusão desses(as) ideários/miragens, principalmente quando
busca:

1. produzir e reproduzir o discurso paisagístico do povo cordial e da


democracia racial; 2. camuflar o conteúdo segregador do marketing urbano;
3. divulgar imagens de áreas gentrificadas para se tornarem centros de
atração turística nacional e internacional; e 4. difundir o discurso ideológico
das áreas moles como o estruturante de nossa sociedade. [...] A imagem
racializada da sociedade perfeita é o exemplo para o mundo. (OLIVEIRA,
2014, p.92-93, grifo nosso)

Assim se elucida como os diferentes discursos envolvendo a dimensão racial


aparecem sutilmente em nossa sociedade, muitas vezes lançando mão de um
discurso universalista para diluir as hierarquizações raciais. A presença dessa
pluralidade de discursos e mecanismos de reprodução nos faz retornar ao “modelo
quadripartido de racismo”, uma vez que diversas são as formas através das quais
podemos compreender esse fenômeno em nossa sociedade.
Ademais, o debate sobre o racismo no Brasil, e os mecanismos “sutis”
apresentados até o momento, nos provoca a mudar o foco de análise para a
manifestação do racismo nas interações sociais do cotidiano brasileiro.

1.3 Reflexões para a análise do racismo no presente estudo

O panorama feito até o presente momento possibilitou evidenciar o racismo


como um fenômeno socioespacial que se manifesta para além das dimensões da
discriminação e do preconceito, conformando um pacote de relações de poder e de
56

visões hierarquizantes do mundo capazes de influenciar nossas experiências


socioespaciais. Através da leitura dos diversos autores aqui apresentados, é
possível compreender que, à medida que os europeus criavam novas identidades
(como os índios/americanos e os negros/africanos), recriavam-se a si mesmos,
mostrando-se brancos/europeus símbolos da civilização, do avanço técnico-
científico e do período que ficou conhecido como modernidade.
Anthony Giddens (1991), ao fazer seu estudo “As consequências da
modernidade”, indica que esta pode ser entendida enquanto “estilo, costume de vida
ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.” (GIDDENS,
1991, p.8). A essa perspectiva, é crucial acrescentar que, com base nos
apontamentos de Walter Mignolo (2006), a “modernidade” também se constituiu em
um projeto de poder que levou para o exterior da Europa toda uma estratégia de
dominação sobre diferentes povos e culturas. Para esse autor (ibidem), o projeto de
modernidade historicamente esteve atrelado a violência e exclusão, e a conflitos de
diferentes naturezas, incluindo o racismo.
Mais que uma hierarquização com fins de dominação territorial, compreende-
se que a modernidade tem, como umas das principais características, a subjugação
de um conjunto saberes, experiências e formas de os indivíduos se relacionarem
com o mundo e com o outro. Ao se trabalhar a modernidade como um fenômeno
ligado a perpetuação do racismo, ressalta-se o entendimento de que assim como os
outros diversos aspectos da modernidade (FRANKENBERG, 2004; QUIJANO, 2005;
MIGNOLO, 2006, 2008; GROSFOGUEL, 2005, 2008, 2011),

[...] o racismo é fundamentalmente transversal, ou seja, atravessa todos os


segmentos da sociedade e todas as formas de organização social, partidos
políticos, religiões, ideologias, etc. Afeta, ainda todas as camadas da
sociedade, sendo um fator majoritário no universo onde se sustenta
emocionalmente e historicamente. (MOORE, 2007, p.286)

E à medida que a modernidade influencia na percepção dos indivíduos sobre


as estruturas sociais e na relação destes com outros sujeitos sociais, seu paradigma
torna-se fundamental para compreender também as relações raciais engendradas
nas mais diferenciadas escalas.

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de


todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não têm
precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua
57

intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais


profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos
precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer
formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos intensionais,
elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características
de nossa existência cotidiana. (GIDDENS, 1991, p. 10-11)

Ou seja, a modernidade impactou de uma forma estrutural no modo como as


pessoas se relacionam e enxergam os papeis dos diferentes atores e estruturas
sociais em diferentes escalas. Ao mostrar as influências tanto das propriedades
universais (plano extensional), quanto das esferas mais “íntimas e pessoais” das
relações cotidianas, o referido autor mais uma vez faz com que haja percepção de
que a modernidade acaba interferindo em diferentes esferas de organização da
nossa sociedade. Tendo sua análise construída sem separar os indivíduos das
estruturas sociais, o autor mostra que a modernidade e, consequentemente, seus
mecanismos de opressão, exercem influência tanto nas formas de organização dos
“estabelecimentos sociais”, como no contato com estes na nossa vida cotidiana.
Assim Giddens (1991 e 2003) consegue mostrar que existe uma série de
posicionamentos e formas de lidarmos com determinadas questões dentro das
nossas relações sociais diárias, que são influenciadas e rotinizadas pela
modernidade.
Ao buscar fornecer bases metodológicas através de uma perspectiva
sociológica para analisar as relações construídas pelos indivíduos nos diversos tipos
de “estabelecimentos sociais concretos”, o pesquisador Erving Goffman (1985)
auxilia a encontrar um campo analítico onde todas as esferas anteriormente
evidenciadas aparecem: o cotidiano. Para ele, o cotidiano é um campo complexo
onde vários fatores de origem social se manifestam. Devido a isso, o autor aponta as
necessidades de se atentar para alguns fatores importantes para a realização da
pesquisa nesta esfera de análise. Para o presente estudo, destaca-se dois fatores.
O primeiro diz respeito às interações interpessoais. No decorrer do seu
estudo sobre “A representação do Eu na Vida Cotidiana”, Goffman (1985) aponta
que além destas serem ligadas diretamente ao ambiente em que ocorrem, elas
também exercem influência através das informações repassadas de maneira direta e
indireta pelos diferentes indivíduos e pelas experiências pregressas de com quem se
dá o contato.
58

Sobre o campo da informação no contexto da relação interpessoal, o autor


afirma que,

A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação, tornando


os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e
o que dele podem esperar. Assim, informados, saberão qual a melhor
maneira de agir para obter uma resposta desejada. [...] Se o indivíduo lhes
for desconhecido, os observadores podem obter, a partir de sua conduta e
aparência, indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que
tenham tido com indivíduos aproximadamente parecidos com este que está
diante dele ou, o que é mais importante, aplicar-lhe estereótipos não
comprovados. Podem também supor, baseados nas experiências passadas,
que somente indivíduos de determinado tipo são provavelmente encontrado
em um dado cenário social. (GOFFMAN, 1985, p.11)

Com esse movimento, o autor aponta dois passos necessários para a análise:
i) compreender que o indivíduo quando em contato com o outro, busca
imediatamente construir uma série de informações; e ii) mais que isso, utiliza
informações pretéritas para antecipar as ações do indivíduo.
Essa leitura vai ao encontro do debate realizado sobre como o racismo insere
visões racializadas de mundo e como essas influenciam tanto na nossa
identificação, quando nas representações espaciais. É importante salientar que não
é necessário estabelecer contato verbal ou escrito para passar uma série de
informações com outros indivíduos. Com isso, objetiva-se dizer que através da
simples presença em determinados espaços, uma série de relações e contatos com
outros indivíduos presentes nos mesmos são estabelecidos. Sobre isso, Goffman
(1985) acrescenta que,

A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer


indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de
esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada. Ligado
a este princípio há um segundo, ou seja, de que um indivíduo que implícita
ou explicitamente dê a entender que possui certas características sociais
deve de fato ser o que pretende que é. Consequentemente, quando um
indivíduo projeta uma definição da situação e com isso pretende, implícita
ou explicitamente ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente
exerce uma influência moral sobre os outros, obrigando-os a valoriza-lo e a
trata-lo de acordo com que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar.
Implicitamente também renuncia a toda pretensão de ser o que não
aparenta ser, e portanto abre mão do tratamento que seria adequado a tais
pessoas. Os outros descobrem, então, que o indivíduo os informou a
respeito do que é e do que eles devem entender por “é”. (GOFFMAN, 1985,
p.21)

Em uma sociedade fortemente impactada por um projeto que criou


hierarquias também através de uma dimensão racial, a cor da pele e outros
59

fenótipos se constituem em um conjunto de informações que influenciam


diretamente nas experiências individuais dos diferentes sujeitos. Por isso, pertencer
a um grupo racial específico pode fazer desempenhar papeis diferenciados nas
nossas relações com os outros, isto é, nas nossas relações cotidianas.
Outro fator fundamental apontado por Giddens (1991) para compreender as
interações realizadas no cotidiano é a inter-relação com o ambiente social em que a
interação ocorre. Ao trabalhar os “estabelecimentos sociais” como “sistemas
relativamente fechados”, o autor busca elucidar que, apesar destes possuírem
dinâmicas próprias, não necessariamente estão isolados das dinâmicas existentes
na sociedade, uma vez que também fazem parte dela.
Visto isso, no momento em que confronta-se as contribuições de Mignolo
(2006) e Giddens (1991) sobre o impacto da modernidade na sociedade e na vida
cotidiana, acrescentando as análises dos contextos das interações de Goffman
(1985), emerge um questionamento central para o fechamento do presente capítulo
e a sequência do estudo: como compreender a reprodução do racismo nos diversos
ambientes sociais através de uma leitura racializada de cotidiano? E como conferir
uma dimensão geográfica a essa leitura?
Esses questionamentos se configuram em dois grandes problemas, à medida
que além da complexidade exigida para analisar o racismo em uma sociedade, onde
este se mostra impregnado nas formas de os indivíduos se relacionarem (BENTO,
2002; GUIMARÃES, 2001, 2008), e apresenta concomitantemente uma série de
mecanismos sutis e ocultos que permitem a sua perpetuação em diferentes escalas,
de diversas formas (CAMINO et alii, 2001). Muitas das leituras sobre o cotidiano se
configuram enquanto leituras desprovidas do seu impacto na dimensão espacial.
Contudo, ao mesmo tempo em que essas indagações apresentam um grande
desafio, o cabedal teórico construído até o presente momento oferece diversos
caminhos possíveis, e é buscando trilhá-los que, para tentar responder ao
questionamento e sanar o desafio, que há a tentativa de construir, assim como
Goffman (1985) algumas linhas de argumentação-investigação que possibilitem
estabelecer diálogos entre os indivíduos e as estruturas sociais de forma a criar
bases para se compreender como o racismo aparece nas instituições que está em
análise aqui.
60

Para avançar nesse debate, destaca-se que também serão utilizadas as


contribuições de Doreen Massey (2000), uma vez que a autora ajuda a entender
como as relações socioespaciais no cotidiano podem interferir não só na
compreensão sobre o tempo-espaço, mas nas relações sociais desses indivíduos ou
grupos sociais. Em seu estudo, “Um sentido global do lugar”, a autora aponta a
necessidade da ressignificação do sentido de lugar, apontando esse conceito
enquanto um interessante campo de análise para entender as relações sociais de
pessoas e grupos sociais. A contribuição da autora para o presente estudo fica mais
evidente, quando se observa que,

[...] o que dá a um lugar sua especificidade não é uma história longa e


internalizada, mas o fato de que se constrói a partir de uma constelação
particular de relações sociais, que se encontram e se entrelaçam num locus
particular. [...] Trata-se, na verdade, de um lugar de encontro. Assim, em
vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se
imaginá-los com momentos articulados em redes de relações e
entendimentos sociais, mas onde uma grande proporção dessas relações,
experiências e entendimentos sociais se constroem em uma escala muito
maior do que costumávamos definir para esse momento como o lugar em si,
seja uma rua, uma região ou um continente. Isso, por sua vez, permite um
sentido do lugar que é extrovertido, que inclui uma consciência de suas
ligações com o mundo mais amplo, que integra de forma positiva o global e
o local. (MASSEY, 2000, p.184)

Mais que isso, ao complexificar o conceito de lugar, esta geógrafa nos


permite, através de um olhar geográfico, compreender um caminho para desvelar o
racismo presente nos “estabelecimentos sociais” “relativamente fechados”
apontados por Giddens (1991). Sobre essas contribuições, a autora aponta alguns
pontos fundamentais para entender conceitualmente o lugar,

Em primeiro lugar, ele é absolutamente não estático. Se os lugares podem


ser conceituados em termos das interações sociais que agrupam, então,
essas interações em si mesmas não são coisas inertes, congeladas no
tempo: elas são processos. [...]
Em segundo lugar, os lugares não têm de ter fronteiras no sentido
demarcatórias. É evidente que as "fronteiras" podem ser necessárias, por
exemplo, para as intenções de certos tipos de estudo, mas ela não da
simples contraposição ao exterior; ela pode vir, em parte, precisamente por
meio da particularidade da ligação com aquele "exterior" que, portanto, faz
parte do que constitui o lugar. Isso ajuda a fugir da associação comum entre
penetrabilidade e vulnerabilidade, pois é esse tipo de associação que torna
a invasão do recém-chegados tão ameaçadora.
Em terceiro lugar, os lugares não têm "identidades" únicas ou singulares:
eles estão cheios de conflitos internos. Basta pensar, por exemplo, nas
London's Docklands, um lugar que no momento está bem definido pelo
conflito: um conflito sobre o que foi seu passado (a natureza de sua
"herança"), sobre o que deveria ser seu desenvolvimento presente, sobre o
que poderá ser seu futuro.
61

Finalmente, nada disso nega o lugar nem a importância da singularidade de


um lugar. A especificidade de um lugar é continuamente reproduzida, mas
não é uma especificidade resultante de uma história longa, internalizada. Há
várias fontes dessa especificidade – da singularidade do lugar. Há o fato de
que as relações sociais mais amplas, nas quais o lugar se encaixa, são
também geograficamente diferenciadas. A globalização (na econômica, na
cultura ou em qualquer outra coisa) não acarreta simplesmente a
homogeneização. Ao contrário, a globalização das relações sociais é uma
outra fonte (da reprodução) do desenvolvimento geográfico desigual e,
assim, da singularidade do lugar. (MASSEY, 2000, p.184-185, grifo nosso)

Apesar de não termos como objetivo nos aprofundarmos na discussão


conceitual sobre o conceito de lugar, é de suma importância salientar que a
interpretação apresentada por Massey (2000), em ligação com as discussão
presentes em Giddens (2003) permite para o presente estudo associar dos campos
fundamentais para compreender o cotidiano: o espaço e o tempo.
É a associação desses campos que permite (ligado a uma leitura sobre as
relações de poder/saber) compreender o cotidiano enquanto uma escala espaço-
temporal onde as interações ocorrem, um “cenário” (GIDDENS, 2003) onde as
relações de poder são visibilizadas e disputadas.
Essa leitura ganha contornos mais importantes, a partir do momento que
acreditamos, assim como Santos (2006), “ser a ação política uma (e fruto de uma
série de) experiência(s) de espaço-tempo, hipótese dentro da qual os raciocínios
escalares têm papel crucial” (idem, p.110).
Ainda sobre a relação entre a escala espacial e a escala temporal, Santos
(2006), acrescenta que:

As escalas espaço-temporais - resultantes da compatibilização entre escala


geográfica (ou espacial) e escala histórica (ou temporal) - são formas de
ordenamento de experiências vivenciadas diferencialmente pelos
indivíduos, grupos, sujeitos e agentes sociais. Isto significa afirmar a escala
como algo além de uma forma de representação ou um instrumento
heurístico-analítico, significa afirmá-la como um dado do real,
intrinsecamente vinculado à dinâmica dos fenômenos - no caso, dos
fenômenos políticos. (SANTOS, 2006, p.110)

É devido a isso, que para fazer a ligação entre as múltiplas formas de o


racismo aparecer na sociedade e os mecanismos que auxiliam na perpetuação
desse fenômeno socioespacial, além das discussões realizadas por Goffman (1985)
e Giddens (1991 e 2003) serão utilizados as contribuições teóricas de Massey
(2000) e Santos (2006), assim como as discussões apresentadas nos tópicos
anteriores.
62

Assim, constrói-se uma análise que evidencia como esse fenômeno, presente
em estruturas maiores, também influencia a escala das relações no cotidiano, sem
que com isso se caia em leituras universalizantes de pensar que todos os ambientes
são iguais.
Isto posto, assim como Goffman (1985), se compreenderá que ao analisar um
determinando cenário empírico, o foco deve estar na interação do indivíduo com a
instituição em questão e com os demais atores, ficando o estudo da relação do
estabelecimento com os outros estabelecimentos no campo das relações
institucionais.
Acerca das pesquisas empíricas nesses ambientes, o autor assinala que

Um estabelecimento pode ser “tecnicamente” considerado, em termos de


sua eficiência ou falta de eficiência, como um sistema de atividades
intencionalmente organizado para a realização de objetivos
predeterminados. Um estabelecimento admite ser “politicamente”
considerado em termos das ações que cada participante (ou classe de
participantes) pode exigir dos outros participantes, das formas de privações
e concessões que podem ser conferidas a fim de reforçar essas exigências,
e dos tipos de controle social que orientam este exercício de direção e uso
de sanções. Um estabelecimento pode ser considerado “estruturalmente”,
em termos das divisões, horizontais e verticais, de condições sociais e das
formas de relacionamento social que ligam estes vários grupos uns aos
outros. Finalmente, um estabelecimento pode ser considerado
"culturalmente", em termos dos valores morais que influenciam a atividade
nele, valores referentes à moda, aos costumes e questões de gosto, à
polidez e ao decoro, às finalidades últimas e às restrições normativas sobre
os meios, etc.” (GOFFMAN, 1985, p.219-220)

Posteriormente, ele adiciona a essas quatro dimensões, a perspectiva


dramatúrgica como uma dimensão possível de estabelecer contato com cada uma
das dimensões anteriormente citadas. Essa leitura possibilita enxergar o cotidiano
enquanto um grande palco, onde diferentes atores atuam, as dimensões
anteriormente apresentadas se imbricam e os cenários são ressignificados a partir
do contexto em que a atuação/interação ocorre,
Ao fazer essa leitura, torna-se fundamental compreender que apesar dos
ambientes onde ocorrem as interações sociais serem fundamentais na hora da
realização dos estudos, é preciso atentar-se para os contextos em que elas ocorrem.
Assim sendo, depreende-se que, além de ressaltar as interações inerentemente
ligadas a um campo técnico, político, estrutural, e cultural, se faz necessário, através
dessa leitura “teatralizada” das relações e de outros recursos metodológicos,
analisar o posicionamento dos indivíduos frente aos campos anteriormente
63

colocados, assim como o sistema de posições em relação aos outros indivíduos que
fazem parte do mesmo cotidiano.
Antes de avançar, é fundamental ressaltar, que essa leitura, também
demostra que como evidenciado anteriormente por Massey (2000), o lugar não é
estático, não tem “identidade” única ou singular e nele existe uma mistura das
relações sociais mais amplas com as mais locais. Da mesma forma, como
ressaltado através da leitura de Santos (2006), podemos compreender o cotidiano
como espaço-tempo das relações/interações.
Dessa forma, entendemos que a inter-relação desses campos confere uma
estrutura minimamente complexa, para aqueles que buscam trabalhar como o
racismo interfere no cotidiano de indivíduos dentro de um ambiente social. Contudo,
sendo o racismo parte constituinte de uma amálgama de relações presente no
cotidiano das relações sociais, é necessário somar à interpretação desses campos,
uma leitura que possibilite compreender a dimensão racial presente no interior
dessas localidades de interação social. Para tal, é necessário ressaltar tanto a
complexidade do debate sobre a formação da raça e do racismo no sistema-mundo
moderno colonial e a sua consequente influencia na formação de diversas
instituições, quanto as múltiplas formas do racismo se manifestar na sociedade
brasileira.
Por conseguinte, a problematização acerca das múltiplas faces do racismo
brasileiro atrelada ao debate sobre branquidade, branquitude e às dimensões
antirracistas do modelo quadripartido das relações raciais, compõem um caminho
que ajuda a entender também como o racismo aparece nesses ambientes, e quais
as os discursos mobilizados para combatê-lo. Existe no Brasil um intricado sistema
de relações sociais, que auxilia na perpetuação do racismo em nossa sociedade e
impregna também as visões de mundo daqueles que, teoricamente, se colocam
contra o racismo.
Dentro desse panorama, qual a influência do racismo na construção do
currículo escolar brasileiro? Como o ambiente escolar, que pode ser considerado o
principal socializador dos indivíduos, ajuda a construir uma branquitude brasileira? A
lei 10.639/03 exerce influência sobre essa correlação de forças presentes no
ambiente escolar? Quais as especificidades que o cotidiano da escola, coloca para a
64

leitura de cotidiano até então construída? Essas são algumas das perguntas que
orientarão os debates do próximo capítulo.
65

2 RELAÇÕES DE PODER NA CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO: DE


INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO A CAMPO EM DISPUTA

Quais os objetivos da escola? Que papel ela desempenha na sociedade


atual? Como a percepção sobre o objetivo da escola interfere no currículo construído
e praticado pelos profissionais nela atuantes? Somadas as questões deixadas pelo
capítulo anterior, essas são perguntas que ganham papeis centrais, conforme se
adentra no debate proposto na presente pesquisa. Na medida em que trata de uma
instituição social e historicamente produzida, é natural existir diferentes concepções
de escola. Dentre as diversas concepções presentes na sociedade, entende-se que
existem duas linhas de pensamento que apresentam enquanto pontos nodais que
interferem diretamente no entendimento sobre o papel da escola no Brasil e
consequentemente das disciplinas.
A primeira é a defesa e propagação da ideia de escola enquanto um aparelho
formador de capital humano para o mercado de trabalho. Esse entendimento é uma
construção que existe desde a “popularização” do ensino público no Brasil. Contudo,
é a Ditatura Militar brasileira (1964-1985), sobretudo com a criação de escolas
profissionalizantes, que vai ajudar a consolidar um sistema educacional pautado em
uma “pedagogia tecnicista” (SAVIANI, 2007) voltada para a formação de mão de
obra qualificada e indivíduos “obedientes”.
Ainda dentro dessa lógica, Marcos Couto (2014) destaca que na atualidade a
escola também é responsável pela formação de consumidores. Essa compreensão
vai do entendimento de que,

A partir da década de 1990, a teoria do capital humano ganha outro sentido,


agora no contexto das políticas neoliberais. Servindo ainda à preparação
dos jovens para o mundo produtivo, entretanto um conjunto de
transformações ocorre: do Estado como garantidor de direitos sociais em
regulador das atividades privadas, do fordismo em toyotismo, das políticas
de pleno emprego em desemprego que gera competição ou em
subemprego. Embora ainda caiba à escola a preparação dos alunos para o
trabalho, nem todos vão para as fábricas, bancos, empresas ou para o
emprego formal, pois o destino de muitos é o desemprego, o biscate, a
informalidade, as diferentes modalidades de “geração de renda”. É por isso,
então, que o sistema escolar também precisa ser flexível considerando esta
estratificação social e seus diferentes destinos. Da mesma forma, da função
de educar para o trabalho – formar trabalhadores, agora flexíveis –, à escola
cabe, neste novo contexto, formar consumidores. (COUTO, 2014, p. 6)
66

Destaca-se ainda, através da leitura de Marília Sposito (2010), que em uma


sociedade dominada pelos signos/códigos da escrita, a falta desse saber significa a
manutenção de uma série de relações assimétricas. Uma sociedade doutrinada com
visões meritocráticas e hierarquizantes de educação e de escola, passa a reafirmar
e ratificar a ideia de que aqueles “[...] que foram expropriados do saber são seres
inferiores.” (SPOSITO, 2010; p. 375).
Assim, como forma de ascender socialmente e superar uma série de
hierarquizações, essa parcela da população passa a enxergar na escolarização mais
que um objetivo, uma necessidade. Ao fazer o recorte racial desse debate, Sales A.
dos Santos, evidencia que:

A valorização da educação formal foi uma das várias técnicas sociais


empregadas pelos negros para ascender de status. Houve uma propensão
dos negros em valorizar a escola e a aprendizagem escolar como um “bem
supremo” e uma espécie de “abre-te sésamo” da sociedade moderna. A
escola passou a ser definida socialmente pelos negros como um veículo de
ascensão social [...]. (SANTOS, 2005, p. 21-22)

Apesar dessa leitura de escola enquanto veículo de ascensão social ser


projetada pela (e para a) população mais pobre, ela não foge de ser uma derivação
da ideia de que esse “estabelecimento social” é responsável por formar capital
humano, fato que aliado a discursos como o da meritocracia, faz com que a
população mais pobre veja nesse lugar a única oportunidade de mudar de vida.
É importante destacar ainda, que apesar de não ser o único, a escolarização
é compreendida enquanto um importante mecanismo para superar algumas
hierarquizações presentes em nossa sociedade. Todavia, não se pode incorrer em
erros, no sentido de indicar a escolarização pautada nesses termos como fator
promotor de igualdade, sob o risco de criar uma leitura que coloque a culpa pelo
desemprego, ou pelo “fracasso escolar” nas populações historicamente expropriadas
do poder. Esse cuidado ganha maior importância à medida que vemos uma série de
políticas educacionais engendradas pelo Estado e pelas Comunidades
14
Epistêmicas na tentativa de criar discursos de performatividade (LOPES, 2006).

14
As comunidades epistêmicas são compostas por grupos de especialistas que compartilham
concepções, valores e regimes de verdade comuns entre si e que operam nas políticas pela posição
que ocupam frente ao conhecimento, em relações de saber – poder. O que distingue as comunidades
epistêmicas de outros agentes sociais atuantes nas políticas é o fato de serem constituídas por uma
rede de profissionais com competência reconhecida em um domínio de conhecimento particular, ao
mesmo tempo que reivindicam uma autoridade política relevante em função desse conhecimento que
dominam (LOPES, 2006, p.41).
67

Estes discursos, com fortes bases eurocêntricas e meritocráticas, transformam os


conhecimentos obtidos no ambiente escolar, em mercadorias que podem ser
utilizadas para ascender socialmente, ou ser aceito em um determinado grupo
social. Com isso, a busca por uma melhor performance, quando o “eurocentramento”
das ideias e do conhecimento passa de seu valor de uso, para ter um valor de troca.
Visto isso, ambiguamente, apesar dessa forma de compreender o papel da
escola oferecer uma possibilidade de ascensão social para parte da população, em
uma sociedade racista, onde o acesso à educação é desigual, ela se torna, também,
uma forma de manter e ampliar as desigualdades econômicas e raciais.
Desigualdades que, para além da manutenção das relações de classe, como falado
no capítulo anterior, incorrem em um epistemicídio, na exclusão das formas de
conhecimento apresentadas por outros grupos sociais que não os hegemônicos.
A segunda linha que exerce grande influência na forma de pensar o papel da
escola no Brasil, é o entendimento da escola como aparelho social responsável pela
“formação humana” dos indivíduos. É importante destacar que internamente, essa
forma de pensar a escola apresenta uma diversidade de vertentes, dentre elas
evidencia-se o entendimento da escola enquanto espaço de formação do cidadão,
ou formação cidadã, ou ainda vertentes que buscam adicionar uma criticidade a
essa formação (fortemente influenciada pela concepção universalista de cidadão
presente no pensamento crítico marxista). Essa segunda forma de pensar a escola,
e as suas diferentes vertentes podem ser encontradas em diversos documentos
oficiais como nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN‟s) e no documento
“Pluralidade Cultural”, ambos de 1997.
Apesar da concepção adotada no presente trabalho estar dentro desse
grande campo que é o entendimento da escola enquanto espaço de formação
humana, assim como Ana Canen (2000) apreende-se também que o entendimento
de formação humana apresentado em ambos os documentos através da ideia de
formar cidadãos críticos, apresentam alguns complicadores no que tange a
formação para lidar com a diversidade étnico-racial. Esses complicadores aparecem
à medida que ambos os documentos buscam apresentar/criar uma identidade
nacional através de um debate homogeneizante, acabando por apresentar
contradições discursivas.
68

Canen (2000) deixa isso nítido ao mostrar que os temas e subtemas


colocados em ambos os documentos mostram a pluralidade cultural em termos que
se afastam tanto das dimensões temporais e espaciais, quanto da realidade
concreta da escola. A diversidade cultural é vista como um tom narrativo que se
limita a história dos diferentes grupos selecionados. Tratando os grupos por "outros",
impossibilitam de fazer ligações com a realidade do aluno. Além disso, é adotado um
tom que reduz diversidade cultural a um ponto de aceitação, tolerância. Nesse
sentido,

Até mesmo quando se mencionam o preconceito e a necessidade de


combatê-lo o discurso contém, em grande parte, um tom psicológico,
individual, evitando uma análise que localize, nas estruturas de poder, a
origem das discriminações que calam as vozes de grupos socioculturais
diversos em práticas pedagógicas que privilegiam padrões culturais
dominantes. (CANEN, 2000, p.145)

A pluralidade também é rompida pela tentativa de criar uma identidade


nacional, uma vez que nega, encobre e/ou hierarquiza as diferentes culturas que
fazem parte da sociedade brasileira. Mais que isso, sob um falso discurso de
pluralidade, invisibiliza diversos projetos de poder que visavam silenciar, exterminar,
subjugar diversos grupos sociais. Compreende-se então que essa perspectiva
impede a criação de um sujeito crítico (na acepção da palavra), uma vez que essa
perspectiva apresenta leituras hierarquizadas de mundo.
Visto isso, apesar da diferença entre essas duas linhas de pensamento sobre
o papel da escola, e apesar da segunda se aproximar da concepção de escola que
defendemos, ambas podem apresentar leituras hierarquizadas de mundo, leituras
que guardadas as devidas proporções, fazem com que esse ambiente reproduza e
aumente as diversas disparidades presentes na sociedade.
Em outras palavras, tanto os discursos baseados na meritocracia quanto os
que buscam a criação de um currículo comum, trazem consigo uma série de
relações de poder. Essas relações influenciam desde os documentos, até as
práticas cotidianas. Nesse contexto, “[...] algumas transgressões ou transcendências
ocasionais são permitidas, desde que a retórica e o gerenciamento das prescrições
não sejam desafiados.” (GOODSON, 2007, p.242). Em uma sociedade racialmente
hierarquizada, a aceitação desse pacote de relações de poder-saber faz com que a
escola se torne um lócus produtor e reprodutor do racismo.
69

É dentro dessas múltiplas concepções, que para pensar a responsabilidade


da escola na perpetuação da hierarquização racial, Isabel Aparecida dos Santos
(2001) buscou realizar um estudo em quatro Delegacias Estaduais de Educação da
região metropolitana de São Paulo. Com isso, a autora observou que:

a) A escola, embora reconheça que seu mais utilizado instrumento de


trabalho (o livro didático) seja um contentor de visões estereotipadas e
discriminatórias, tem dificuldades em perceber-se responsável pela difusão
desta visão, atribuindo a responsabilidade à família e à própria criança.
b) a falta de formação e habilidade dos educadores para lidar com as
relações do cotidiano escolar marcadas por discriminações os leva a
medidas não problematizadoras da diferença, apelando para convicções
tais como: "Todos merecem respeito porque são filhos de Deus" ou "E daí
que você é negro, o importante é que você tem saúde...".
c) Os educadores têm dificuldade em aceitar que a diferença para alguns
grupos, é sinônimo de desigualdade, de menores oportunidades, e assim,
quando se fala de desigualdade, buscam "muitos desiguais". São comuns
falas do tipo: "Mas o gordo também é discriminado"; "O japonês, o pobre...,
existem muitas piadas de português...", relativizando a discussão racial, que
pode estar combinada a todas as outras formas de discriminação. O que
dizer da mulher negra, pobre e gorda?
d) A discriminação, na maioria das vezes, é tratada como um problema do
discriminado sem incluir os discriminadores, os "privilegiados". "São eles
mesmos que se autodiscriminam, que se sentem inferiores" (SANTOS,
2001, p. 105).

Em contribuição parecida, Eliane Cavalleiro (2005), através de seu estudo


sobre a discriminação racial e pluralismo nas escolas públicas da cidade de São
Paulo, também apresenta alguns discursos que circulam nesse ambiente. Em linhas
gerais, a autora compreende que:

[...] os envolvidos no processo de escolarização (professores, diretores e


operacionais) apresentam um pensamento orientado e influenciado pela
estrutura racial da sociedade, segundo a qual:
• A existência de racismo é negada.
• Não são reconhecidos os efeitos prejudiciais do racismo para os negros.
• Não são reconhecidos os aspectos negativos do racismo também para as
pessoas brancas.
• Não se buscam estratégias para a participação positiva da criança negra,
mesmo quando se reconhece a existência da discriminação no cotidiano
escolar. (CAVALLEIRO, 2005, p.98)

Ambas as pesquisas mostram de maneira indireta, que apesar das diferentes


concepções de escola, as questões envolvendo a população negra geralmente são
relativizadas nesses ambientes. Através disso, as dimensões colocadas por Santos
(2001) e Cavalleiro (2005) fazem compreender que, para além do debate teórico
acerca dos processos e ambientes educacionais, faz-se necessário construir uma
leitura que discuta sobre o que está sendo ensinado. Sendo o ambiente escolar um
70

locus de re-produção de visões racializadas de mundo, é também nele que se deve


construir novas visões.
Assim sendo, para realizar o debate proposto neste capítulo, divide-se a
discussão em três eixos. Nos dois primeiros, problematizam-se as relações de
poder-saber no cotidiano escolar e no currículo. Com isso, busca-se contrapor
intepretações de pesquisadores e pesquisadoras que procuram compreender a
escola e o currículo como esferas neutras, homogêneas, autorreguladas,
desprovidas de relações de poder, assim como fornecer bases para ampliar a leitura
sobre os eixos de hierarquização presentes nesses campos. No terceiro, debate-se
sobre as dificuldades para a criação de um currículo antirracista em um ambiente
imerso em relações de poder. Para tal, a discussão é dividida de forma a evidenciar
os desafios na construção do conhecimento, os processos de perpetuação do status
quo presente no ambiente escolar e a ligação entre a luta antirracista na educação e
a prática docente.
Com essa discussão é possível a construção de um arcabouço teórico-
conceitual para realizar o debate sobre os desafios da introdução dessa discussão
no currículo de Geografia que é trabalhado no capítulo 3 e a análise dos conflitos
que permeiam a prática dos professores e professoras que será analisada no
capítulo 4.

2.1 Cotidiano escolar e as relações de poder

Sendo a escola uma construção histórico-social (devido a sua miríade de


influências) acaba se constituindo em um constante campo em disputa. Como indica
a pesquisadora Alice Casimiro Lopes (2006), essas contendas aparecem também na
forma de políticas que são pensadas e implementadas por diversos atores sociais.
Assim, a autora destaca que:

[...] a redução da política às ações do Estado e/ou à interlocução


privilegiada com o Estado, como se este fosse uma instância definidora dos
sentidos finais das práticas sociais, seja esvaziada de significação, na
medida em que a própria ação política do Estado é esvaziada. (LOPES,
2006, p. 36)

Continuando a sua contribuição, ela aponta que:


71

Por sua vez, os grupos de pesquisa que têm foco central na escola ou nos
movimentos sociais tendem a incorporar as discussões teóricas mais
contemporâneas sobre a cultura e a crítica aos marcos universalistas da
modernidade. Dessa forma, contribuem significativamente para o
questionamento da suposta homogeneidade e subordinação do cotidiano a
um poder central. Esses estudos salientam as lutas que se desenvolvem em
ações contingentes e avançam na superação de interpretações cientificistas
do mundo. Frequentemente, contudo, se afastam da interlocução com a
sociedade política, seja no nível nacional ou pelos processos globais que
definem restrições de ordem político-econômica aos Estados-Nação. Tais
grupos assumem, por vezes, a defesa de que as ações supostas como
alternativas ao oficial possam ser desenvolvidas à margem dos marcos
globais ou ao menos menosprezando a profunda interpenetração global-
local. Assim, nem sempre contribuem para a maior compreensão dos
diferentes efeitos que as ações centralizadas e os marcos político-
econômicos geram nas ações cotidianas locais, ou mesmo dos efeitos que
dimensões cotidianas locais têm na constituição das açõ es das agências
políticas do Estado. (LOPES, 2006, p. 36-37)

Compreendido isso, salienta-se que a discussão sobre o cotidiano escolar,


não pode ocorrer de maneira separada dos debates realizados em diversas escalas
da sociedade, entendendo estas como:

[...] uma construção social a partir de relações de poder – ela é contêiner de


poder. Nesse sentido, a escala, como instrumento heurístico, nos permite
distinguir níveis de análise do real, mas, no real, tais níveis não são níveis,
mas sim simultaneidades nas temporalidades - dos atores sociais, dos
objetos e das ações que constroem o espaço geográfico. (SOETERIK e
SANTOS, 2015, p.73)

Essa perspectiva traz desafios fundamentais, sendo o principal deles,


construir formas de leituras que consigam captar como as relações sociais e de
poder, ocorridas fora do ambiente escolar (em escala local, nacional, global)
apresentam simultaneidade com as relações presentes no cotidiano.
Esse entendimento implica em compreender que, estudar o cotidiano significa
operacionalizar uma série de conceitos, saberes e escalas, mas ao mesmo tempo,
rever ou criar novas formas de leitura. É na tentativa de responder a esse desafio
que se busca construir alguns debates teóricos sobre o cotidiano escolar,
apresentando-o como esfera de análise para entender as dinâmicas engendradas na
escola.
Contudo, antes nos adentrar nesse campo, cabe relembrar o esforço de
Massey (2000) em alargar e complexificar o conceito de lugar. Ao apontar interações
sociais enquanto possibilidade de leitura para compreender o lugar, a autora acaba
indiretamente evidenciando as relações no cotidiano enquanto um recorte fecundo
72

para complexar a leitura sobre as interações socioespaciais. Toda interação ocorre


em um tempo e um lugar, e:

[...] cada lugar é o centro de uma mistura distinta das relações sociais mais
amplas com as mais locais. Há o fato de que essa mesma mistura em um
lugar pode produzir efeitos que poderiam não ocorrer de outra maneira.
Finalmente todas essas relações interagem com a história acumulada de
um lugar e ganham um elemento a mais na especificidade dessa história,
além de interagir com essa própria história imaginada como o produto de
camadas superpostas de diferentes conjuntos de ligações tanto locais
quanto com o mundo mais amplo. (MASSEY, 2000, p.185, grifo nosso)

Em contribuição igualmente importante, Nilda Alves (2001) destaca que para


estudar o cotidiano é necessário rompermos com padrões de como se presume que
os diversos atores deveriam se comportar, e ressalta que o não rompimento faz com
que fiquem reféns dessas visões e impede que se enxergue a complexidade do
cotidiano. Ao mesmo tempo, é necessário romper com um olhar distante da
realidade do cotidiano ou um olhar que se tente constituir neutro. A partir dessa
crítica, Alves (2001) busca criar outra postura epistemológica para observar como os
diferentes indivíduos também produzem conhecimento no cotidiano. Nesse
movimento, a autora trabalha com a perspectiva de que o cotidiano precisa ser visto
como espaço/tempo de “prazer, inteligência, imaginação, memória e solidariedade”
(ALVES, 2001, p. 16).
Junto a essas dimensões, é importante enxerga-lo através das relações de
poder, das hierarquias, dos conflitos, enfim, das disputas entre diferentes atores
componentes desse “lugar”. A inclusão dessas dimensões fornece leituras para
compreender o cotidiano para além da dimensão das oportunidades, da construção
de igualdades, das relações construídas sem opressão e dominação. Essa análise
ocorre, sobretudo, através da história não-documentada (ROCKWELL e EZPELETA,
2007), que possibilita enxergar uma gama de relações presentes no ambiente
escolar e que não podem ser captadas através da análise dos documentos oficiais,
muito menos nas orientações estatais.
Visto isso, apesar da análise da escola através de documentos ser uma
metodologia interessante, salienta-se que uma análise meramente documental do
ambiente escolar visibiliza somente parte das relações ocorridas no cotidiano,
apresentando, assim, uma leitura parcial das relações construídas nesse ambiente.
Sendo a escola uma construção histórico-social, múltiplos são os fatores que
influenciam a origem desse ambiente. Nesse sentido,
73

As diferenças regionais, as organizações sociais e sindicais, os professores


e suas reivindicações, as diferenças étnicas e o peso relativo da Igreja
marcam a origem e a vida de cada escola. A partir daí, dessa expressão
local, tomam forma internamente as correlações de forças, as formas de
relação predominantes, as prioridades administrativas, as condições
trabalhistas, as tradições docentes, que constituem a trama real em que se
realiza a educação. É uma trama em permanente construção que articula
histórias locais – pessoais e coletivas –, diante das quais a vontade estatal
abstrata pode ser assumida ou ignorada, mascarada ou recriada, em
particular abrindo espaços variáveis a uma maior ou menor possibilidade
hegemônica. Uma trama, finalmente, que é preciso conhecer, porque
constitui, simultaneamente, o ponto de partida e o conteúdo real de novas
alternativas tanto pedagógicas quanto políticas. (ROCKWELL e EZPELETA,
2007, p.133).

Esta forma de compreender a escola ajuda a apreender a complexidade das


relações e atores, presentes nesse ambiente. Para entender essa multiplicidade de
atores, é necessário compreender os sujeitos responsáveis pela construção do
cotidiano de maneira complexa e múltipla.
Para tal, propõe-se a utilização do conceito de “área de movimento”,
entendendo este enquanto um conceito que possibilita compreender esse
entrelaçamento de campos das relações sociais que Massey (2000) aponta, assim
como viabiliza evidenciar não só o cotidiano enquanto tempo-espaço das interações
(SANTOS, 2006), mas os indivíduos presentes neste, enquanto sujeitos portadores
e produtores de conhecimento (ALVES, 2001).
Visto isso, essa “área de movimento” se configura enquanto áreas no tecido
social que,

[...] corresponderiam a campos de estruturação de identidades coletivas e a


espaços de recomposição da identidade (a qual estaria continuadamente
exposta à fragmentação na sociedade complexa).
Nesse caso, porém, os indivíduos e grupos encontrariam na área de
movimento um espaço para recomporem a identidade dividida pelo múltiplo
pertencimento e pelos diferentes tempos e papéis experimentados na
sociedade. (BURITY, 2001, p. 17)

Ao utilizar esse conceito, procura-se também demonstrar que os diferentes


atores (indivíduos e grupos) que compõem o cotidiano escolar e se apresentam de
forma solitária, também carregam consigo uma multiplicidade de questões,
indagações, que em diversas ocasiões encontram em um novo espaço, um novo
grupo, um ambiente possível para reconstruir sua identidade.
No caso do presente trabalho, devido as disputas em busca de um melhor
tratamento sobre a temática racial no cotidiano escolar, e as diferentes arenas em
que esses agentes precisam atuar para conseguir os seus objetivos, entende-se a
74

área de movimento enquanto singularidades cooperantes, uma vez que é a reunião


dos diversos indivíduos e ações que, sob as pautas debatidas com/no/pelo
movimento negro, acabam construindo diferentes formas para disputar as relações
do cotidiano em torno de uma mesma perspectiva antirracista. Em outras palavras, é
graças à luta antirracista que essas diversas singularidades se transformam em
coletivo.
Para analisar e compreender esses múltiplos caminhos, aspectos, regras,
histórias presentes no ambiente escolar, Nilda Alves (2001) mostra que é necessário
“beber de todas as fontes”, ou seja, é preciso valorizar as várias fontes de
informação para além daquelas valorizadas na academia, impregnadas de um
pensamento eurocêntrico. Essa perspectiva reforça a necessidade de analisar
também a história-não documentada.

Daí é que se compreende que o conteúdo histórico presente em seu


contexto é também constitutivo da escola. A continuidade no tempo e a
permeabilidade através da ambiência social limitam o poder decisório do
Estado com relação à realidade de cada escola. (ROCKWELL e
EZPELETA, 2007, p.138)

É fundamental fazer um esforço metodológico para ressaltar outras


dimensões para além da escrita, uma vez que, como aponta Certeau (1994 apud
ALVES, 2001), até mesmo a escrita está envolta a relações de poder-saber. Assim,
até a escrita e as metodologias derivadas delas podem apresentar algum tipo de
interferência nos dados obtidos. O esforço deve levar em consideração que “a
explicitação e reconstrução das relações peculiares e imprevistas desta realidade
possibilitaram a elaboração de categorias e a precisão de conceitos necessários a
uma conceituação alternativa da escola.” (ROCKWELL & EZPELETA, 2007, p. 135)
Apesar da necessidade de construir esse arcabouço teórico-metodológico,
Nilda Alves (2001), mostra que iniciar uma análise sobre essa dimensão das
relações presentes na escola, com uma teoria fechada, pode incorrer em erros
analíticos, uma vez que a demasiada conceituação interfere na compreensão das
realidades que a escola apresenta.
Em contrapartida, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude
Passeron no livro “A profissão do sociólogo”, apontam que:

Não basta que o sociólogo esteja à escuta dos sujeitos, faça a gravação fiel
das informações e razões fornecidas por estes, para justificar a conduta
75

deles e, até mesmo, as razões que propõem: ao proceder dessa forma,


corre o risco de substituir pura e simplesmente suas próprias prenoções
pelas prenoções dos que ele estuda, ou por um misto falsamente erudito e
falsamente objetivo da sociologia espontânea do "cientista" e da sociologia
espontânea de seu objeto. (BOURDIEU et al, 1999, p.50)

Essa compreensão se justifica à medida que se entende o cotidiano escolar


enquanto um lugar dinâmico e que varia de escola para escola. Dessa forma,
depreende-se que adotar embasamentos teóricos flexíveis que possibilitem
interpretar a complexidade desse ambiente e de seus integrantes, é fundamental,
principalmente em uma sociedade tão impactada pelas hierarquizações sociais. Em
suma, ter cuidado para não estabelecer noções baseadas em um senso comum é
fundamental para não incorrer em um erro analítico.
Desse modo, para construir bases para analisar o cotidiano escolar, tanto
Alves (2001) quanto Rockwell & Ezpeleta (2007) apresentam contribuições centrais
para a presente dissertação, principalmente no sentido de tencionar os conceitos
utilizados para entender o cotidiano escolar. Visto isso, como uma conceituação
fundamental para o presente trabalho, utiliza-se a ideia de “vida cotidiana”, uma vez
que ela aparece como uma opção metodológica e um corte empírico que alia a
leitura de lugar proposta por Massey (2000), de tempo-espaço proposto por Santos
(2006) com as contribuições de cotidiano escolar das autoras supracitadas.

O conceito de “vida cotidiana” delimita e, ao mesmo tempo, recupera


conjuntos de atividades caracteristicamente heterogêneas empreendidas e
articuladas por sujeitos individuais. As atividades observadas na escola, ou
em qualquer contexto, podem ser compreendidas como “cotidianas” apenas
em referência a estes sujeitos. (ROCKWELL & EZPELETA, 2007, p. 140)

Essa escolha se dá porque, ao mesmo tempo, esse conceito obriga-nos a


conservar a heterogeneidade na análise, umas das características mais notáveis de
qualquer escola. Mostra, ainda, que não existe apenas uma grande diversidade de
âmbitos, de sujeitos, de escolas, mas também coexistem, sobretudo em cada
conjunto de atividades, em cada microescala, elementos com sentidos divergentes.
O recorte através da vida cotidiana possibilita entender que o cotidiano
experimentado por um indivíduo, pode ser diferente do cotidiano de outros.
Consequentemente, é possível compreender o cotidiano dos professores, que não
necessariamente é o cotidiano da escola em sua totalidade.
Nesse caso, assim como exposto no capítulo anterior, as interações
rotinizadas presentes nesse cenário (GIDDENS, 2003), e os contextos em que elas
76

ocorrem, realçam a necessidade de se ter o cuidado metodológico e conceitual para


compreender qual a realidade que se pretende analisar, uma vez que “[...] a
realidade escolar não é idêntica à experiência direta que determinados sujeitos
(inclusive os que a pesquisam) têm dela, pois sua reconstrução requer a integração
de vários níveis de análise.” (ROCKWELL & EZPELETA, 2007, p. 141).
É importante destacar, que apesar da compreensão de que fazer a
contextualização é um movimento interessante, não se tem pretensão aqui de
reconstruir todas as relações presentes nos cotidianos. Ao privilegiar a visão do
professor e a sua relatoria sobre a sua relação com os demais atores do cotidiano
escolar, coloca-se em destaque uma série de situações que impactam diretamente
na vivencia destes nesse ambiente.
Essa contextualização é necessária, pois, como visto anteriormente, é no
cotidiano que notamos a influência mais direta dos movimentos sociais. Influências
que entram em choque com outras perspectivas de mundo.
Se tratando de um campo heterogêneo é importante fugir de tipologias que
visem eliminar essa diversidade. Pelo contrário, é necessário criar chaves de
compreensão que fomentem e deem bases para que essa multiplicidade de relações
seja compreendida. Por isso, tipologias podem/devem ser empregadas para
ressaltar a diversidade, de forma a conferir à pesquisa múltiplas formas de enxergar
o fenômeno.
Assim, para abordar a re-produção do racismo no cotidiano escolar,
compreendemos que é necessário fazer a ligação entre a história e a construção
desse aparelho social que é a escola.

Ao aproximar-nos novamente dos indícios e fragmentos significativos


recolhidos na riqueza cotidiana das escolas, a reflexão teórica sobre os
processos permite reordenar, noutro sentido, a desagregação da realidade
escolar, resultante do uso das categorias tradicionais. Estas categorias
marcam certos tipos de distinções entre os espaços, os momentos e os
eventos observados na escola. Excluem de seu âmbito legítimo numerosos
elementos e acontecimentos cotidianos da escola. Estabelecem dicotomias
e pressupõem relações: professores-alunos, escola-comunidade, sindicato-
burocracia, realidade técnica e administrativa. Separam aquilo que, na
realidade cotidiana, apresenta sua imbricação, como processo de controle
único do Estado, exercido por vias administrativas e sindicais. Escondem,
debaixo de um termo como “comunidade”, uma diversidade de elementos
que podem ter sentidos opostos, [...] uma vez analisados os processos
concretos de construção da escola. Eliminam partes da realidade, como as
numerosas interações em sala de aula, consideradas como “ruído” ou
“indisciplina”, que se mostram significativos para a apropriação dos
conteúdos escolares. (ROCKWELL & EZPELETA, 2007, p. 145)
77

Para realizar a leitura dessa multiplicidade no cotidiano e fazer a ligação com


a dimensão do currículo, além dos subsídios teóricos de Massey (2000), destaca-se
a contribuição de Ferraço & Carvalho (2012) que buscam analisar o cotidiano a partir
de três pontos: as redes de conversações, as práticas políticas e o comum no
currículo. Os autores trabalham com a perspectiva de que todas as práticas são
políticas e estão imersas em redes de conversações. Essas redes articulam esferas
da individualidade e da coletividade. A análise desses movimentos, em teoria,
permitiria evidenciar o comum no currículo.
Cabe destacar que, apesar disso, os autores realizam uma leitura sobre o
cotidiano onde as relações conflituosas não aparecem, uma leitura que ignora que
essas redes estão imersas em relações de poder/saber, que essas redes (como
destacado do Capítulo 1) em diversos momentos são mobilizadas para “a captação,
a repartição, a preservação e o controle monopolista dos recursos básicos de uma
sociedade.” (MOORE, 2007, p.284).
À vista disso, apesar de partir de uma ideia similar, diferentemente desses
autores, no presente estudo, busca-se formas de encontrar os conflitos no cotidiano.
Desse modo, ao analisar a construção do currículo praticado pelos professores
através do conceito de área de movimento (BURITY, 2001), percebe-se que essa
prática envolve uma série de relações não-documentadas presentes na vida
cotidiana (ROCKWELL & EZPELETA, 2007) dos diversos atores que compõem a
escola. Relações que se estabelecem através de redes de conversações, se
configuram em práticas políticas, mas ultrapassam o “comum no currículo” apontado
por Ferraço & Carvalho (2012).
Sendo as “vivências” do cotidiano escolar de professores e professoras de
geografia o primeiro recorte empírico, e a ligação com o currículo uma perspectiva
fecunda para atingir os objetivos da pesquisa, como realizar essa ligação, sem
perder a complexidade presente nesse campo de discussão? Assumindo o currículo
enquanto uma construção social, quais são os diálogos possíveis com a pesquisa
proposta? Essas são algumas questões trabalhadas no próximo tópico.
78

2.2 Apontamentos acerca da construção do currículo

De forma sintética, assim como Vera Candau e Antônio Moreira (2007)


compreende-se que

O currículo é um território em que se travam ferozes competições em torno


dos significados. O currículo não é um veículo que transporta algo a ser
transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que, ativamente, em meio a
tensões, se produz e se reproduz a cultura. Currículo refere-se, portanto, a
criação, recriação, contestação e transgressão. (CANDAU & MOREIRA,
2007, p. 28)

Para mostrar a multiplicidade de significados, opta-se didaticamente por


apresenta-los a partir de dois eixos de leituras que possibilitam em alguns pontos
fazer diálogo com o debate proposto na dissertação. O primeiro diz respeito às
teorias/discursos do currículo, já o segundo refere-se a suas dimensões analíticas e
interlocuções com relações de poder. Elas não chegam a se configurar em leituras
dicotômicas, uma vez que apresentam, dentro de suas limitações, potencialidades
para compreender a construção do currículo escolar.

2.2.1 As teorias e as políticas de currículo

Como Roberto Sidnei Macedo (2011) aponta, existe uma polissemia de


significados acerca do que se chama de currículo. Em constatação similar, Tomaz
Tadeu da Silva (2010) assinala que esses múltiplos significados podem ser
atribuídos às teorias curriculares, se configurando em discursos com função de
construir o campo conceitual.

[...] as teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o


currículo deve ser, não podem deixar de estar envolvidas em questões de
poder. Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de
conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre múltiplas
possibilidade, uma identidade ou subjetividade como sendo ideal é uma
operação de poder. As teorias do currículo não estão, nesse sentido,
situadas num campo “puramente” epistemológico, de competição entre
“puras” teorias. As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na
atividade de garantir o consenso, de obter hegemonia. As teorias do
currículo estão situadas num campo epistemológico social. (SILVA, 2010,
p.16)
79

Com essa contribuição, o autor apresenta o currículo como instrumento de


dominação. Assim, desde as teorias tradicionais até as pós-criticas, nota-se a
tentativa de criar chaves analítico-conceituais que ocultam ou evidenciam diferentes
dimensões das relações de poder existentes. Nesse campo, Silva (2010) aponta que
as teorias tradicionais surgiram em oposição ao currículo clássico, que era, de certa
forma, herdeiro do currículo das chamadas “artes liberais” que se estabeleceu
sobretudo na educação universitária da Idade Média e do Renascimento. Essa teoria
tem seus eixos analíticos focados no debate sobre o ensino, a aprendizagem, a
avaliação, a metodologia, o planejamento, dentre outros eixos analíticos. Apesar de
terem servido para atacar esse currículo clássico em diversas frentes, esses eixos
também acabaram ocultando as dimensões de poder presentes no próprio.
As teorias críticas, ao questionarem essa forma de compreender o currículo,
buscaram contrapor alguns dos fundamentos colocados pelas teorias tradicionais.

As teorias tradicionais eram teorias de aceitação, ajuste e adaptação. As


teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e
transformação radical. Para as teorias críticas o importante não é
desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos
que nos permitam compreender o que o currículo faz. (SILVA, 2010, p.30)

Segundo a teoria crítica, a escola transmite ideologia, visões de mundo,


através de formas diretas com “matérias mais suscetíveis ao transporte de crenças
explícitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais existentes, como Estudos
Sociais, História, Geografia” (SILVA, 2010, p. 31) ou ainda de uma forma indireta,
através de matérias de cunho técnico ou científico como a Matemática e as
Ciências. Assim, essa teoria entende que o currículo é um instrumento da
dominação que serve para manter uma estrutura social, que tem em sua clivagem
central a hierarquização em classes sociais. Para promover a perpetuação dessa
estruturação

O currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele é transmitido


através do código cultural dominante. As crianças das classes dominantes
podem facilmente compreender esse código, pois durante toda sua vida
elas estiveram imersas, o tempo todo, nesse código. Esse código é natural
para elas. Elas se sentem à vontade no clima cultural e afetivo construído
por esse código. É o seu ambiente nativo. Em contraste, para as crianças e
jovens das classes dominadas, esse código é simplesmente indecifrável.
Eles não sabem do que se trata. Esse código funciona como uma
linguagem estrangeira: é incompreensível. A vivência das crianças e jovens
das classes dominadas não os acostumou a esse código, que lhes aparece
como algo estranho e alheio. O resultado é que as crianças e jovens das
classes dominantes são bem-sucedidas na escola, o que lhes permite o
80

acesso aos graus superiores do sistema educacional. As crianças e jovens


das classes dominadas, em troca, só podem encarar o fracasso, ficando
pelo caminho. As crianças e jovens das classes dominadas tem sua cultura
nativa desvalorizada, ao mesmo tempo que seu capital cultural, já
inicialmente baixo ou nulo, se não sobre qualquer aumento ou valorização.
Completa-se o ciclo de reprodução cultura. É essencialmente através dessa
reprodução cultural, por sua vez, que as classes sociais se mantêm tal
como existem, garantindo o processo de reprodução social. (SILVA, 2010,
p. 35)

Apesar de as teorias críticas se estruturarem na leitura a partir de um único


eixo de relações de dominação (a classe), os aportes apresentados por seus
diversos teóricos críticos se configuram em uma contribuição importante para
compreender o currículo enquanto um instrumento de dominação. A partir da
discussão marxista acerca dos instrumentos de dominação, essa teoria “inaugura” a
ideia de que o currículo não é algo neutro, como as teorias tradicionais
preconizavam. Em outras palavras, sendo a educação um instrumento do
capitalismo, o currículo é um instrumento de dominação que deve ser disputado e
transformado em um instrumento contra essa dominação. Através dessa crítica à
teoria tradicional, a escola é compreendida como uma instituição com um caráter
homogeneizador e reprodutor de valores que servem para perpetuar a opressão de
classes. Contudo, como salientam Rockwell & Ezpeleta (2007), a teoria crítica não
quebra com esse entendimento do ambiente escolar, e passa a defender que esse
ambiente deveria servir como o locus para a construção de cidadãos críticos, todavia
apresentando uma visão homogeneizante de cidadão.
Esse entendimento vai ao encontro do que é defendido no presente trabalho,
entretanto, a visão essencialista do papel da economia e das classes sociais,
presentes em algumas análises, faz com que o currículo continue tendo um viés de
opressão e uniformizador. Esse entendimento se justifica na compreensão de que
ao inculcar visões que não conseguem enxergar outros eixos de hierarquização
social, ou que, mesmo as enxergando, estabeleça hierarquias entre esses eixos,
servem para manter uma série de privilégios para determinados grupos.
Ressalta-se que não se pode abandonar o cabedal teórico apresentado pela
teoria crítica, mas existe a necessidade de repensá-la na contemporaneidade. Esse
movimento tem uma importância maior ainda, visto que a construção de identidades
não tem a centralidade somente nas relações de produção: ela envolve outras
esferas, como as questões de raça e gênero. É caminhando para enxergar o
81

currículo como um conjunto de eixos de dominação, exploração e hierarquização


que aparecem aqui as teorias pós-críticas.
Diversas discussões presentes nessa teoria ajudam a compreender o caráter
multifacetado do currículo. Com isso, essas teorias trazem aportes para
compreender que o currículo não é somente um instrumento de poder (como se as
relações de poder fossem exteriores a ele), é também uma arena em disputa, onde
existem discursos atravessados e que são multidirecionados, de diferentes grupos,
de diferentes eixos de dominação.
Como aponta Ramón Grosfoguel (2005), esses eixos giram em torno de um
conjunto de opressões, fundamentais para a construção do atual sistema-mundo.
Dessa forma, ao compreender o currículo como uma arena em disputa, também se
entende que os discursos presentes nele não são desprovidos de identidade (SILVA,
2010). Então, cada relação de dominação imprime uma marca sobre o currículo, e
essas relações imprimem marcas diferenciadas de disputa entre si.
Dentre as diversas teorias passiveis de serem englobadas dentro das teorias
pós-críticas, o multiculturalismo é o que apresenta maior penetração nas discussões
acadêmicas brasileiras e da presente dissertação. Essa corrente de pensamento
tem origem como um processo de resistência nos países classificados como
desenvolvidos. Devido a sua origem, e a alguns contra movimentos, é considerado
por alguns pesquisadores uma teoria ambígua. Essa divisão faz com que se perceba
a existência de duas vertentes ligadas ao multiculturalismo, uma “(neo)liberal” e
outra que apresenta um viés “crítico”.
A apropriação de determinados pontos do discurso faz com que o
multiculturalismo (neo)liberal mostre-se como uma solução parcial para alguns dos
problemas dos marginalizados sem que, com isso, interfira nas relações hierárquicas
construídas pela cultura nacional dominante. Sobre esse tipo de multiculturalismo,
Catherine Walsh (2009) salienta que

Enquanto a dupla modernidade-colonialidade historicamente funcionou a


partir de padrões de poder fundados na exclusão, negação e subordinação
e controle dentro do sistema/mundo capitalista, hoje se esconde por trás de
um discurso (neo)liberal multiculturalista. Desse modo, faz pensar que com
o reconhecimento da diversidade e a promoção de sua inclusão, o projeto
hegemônico de antes está dissolvido. No entanto, mais que desvanecer-se,
a colonialidade do poder nos últimos anos esteve em pleno processo de
reacomodação dentro dos desígnios globais ligados a projetos de
neoliberalização e das necessidades do mercado; eis aí a “recolonialidade”.
(WALSH, 2009, p. 16)
82

Esse multiculturalismo (neo)liberal, também apresenta diálogo com o que


apresenta-se no capítulo anterior enquanto Racismo Universalista de base
espiritualista, principalmente, quando prega que as diferentes “culturas” tem em
comum a sua humanidade e devido a essa mesma humanidade “apela para o
respeito, a tolerância e a convivência pacífica entre as diferentes culturas.” (SILVA,
2010, p.86)
Com isso,

[...] o reconhecimento e respeito à diversidade cultural se convertem em


uma nova estratégia de dominação que ofusca e mantém, ao mesmo
tempo, a diferença colonial através da retórica discursiva do
multiculturalismo e sua ferramenta conceitual, a interculturalidade
“funcional”, entendida de maneira integracionista. Essa retórica e ferramenta
não apontam para a criação de sociedades mais equitativas e igualitárias,
mas para o controle do conflito étnico e a conservação da estabilidade
social, com o fim de impulsionar os imperativos econômicos do modelo
neoliberal de acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos
historicamente excluídos. (WALSH, 2009, p. 16)

Ou seja, essa visão (neo)liberal acaba criando uma leitura sobre a diferença
que deixa em segundo plano todo um conjunto de relações de poder que a
constroem. Em uma leitura na qual o “tolerar” e “respeitar” não fazem com que os
processos históricos de hierarquização e dominação sejam desconstruídos, a teoria
torna-se um movimento para acomodar as tensões promovidas pelo racismo ainda
presentes na sociedade. Por esse ângulo,

Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a ideia de tolerância, por


exemplo, implica também uma certa superioridade por parte de quem
mostra “tolerância”. Por outro lado, a noção de “respeito” implica um certo
essencialismo cultural, pelo qual as diferenças culturais são vistas como
fixas, como já definitivamente estabelecidas, restando apenas “respeita-las”.
Do ponto de vista crítico, as diferenças estão sendo constantemente
produzidas e reproduzidas através das relações de poder. As diferenças
não devem ser simplesmente respeitadas ou toleradas. (SILVA, 2010, p.88)

À vista disso, diferente da perspectiva (neo)liberal que separa as diferenças e


identidades culturais das relações de poder, para a “[...] perspectiva crítica não é
apenas a diferença que é resultado de relações de poder, mas a própria definição
daquilo que pode ser definido como humano” (SILVA, 2010, p.87). No lugar de um
movimento reivindicatório, a perspectiva crítica é capaz de conferir voz aos grupos
dominados e marginalizados dentro de um país fortemente hierarquizado, forçando
que suas culturas sejam representadas e reconhecidas dentro da cultura nacional. A
83

perspectiva crítica do multiculturalismo pode ser dividida em duas, a pós-


estruturalista e a materialista.
Para o multiculturalismo crítico pós-estruturalista, a diferença é basicamente
um processo linguístico e discursivo. Ela não pode ser entendida como algo natural,
senão produzida discursivamente. Portanto, não pode ser entendida fora dos
processos linguísticos de significação.
Silva (2010) explica que existe uma “relação de diferença”.

[...] o processo de significação que produz a “diferença” se dá em conexão


com relações de poder. São as relações de poder que fazem com que a
“diferença” adquira um sinal, que o “diferente” seja avaliado negativamente
relativamente ao “não diferente”. Inversamente, se há sinal, se um dos
termos da diferença é avaliado positivamente (o “não diferente”) e o outro
negativamente (o “diferente”), é porque há poder. (SILVA, 2010, p. 87)

A grande crítica ao multiculturalismo pós-estruturalista seria seu demasiado


textualismo, ou tentativa de criar uma leitura demasiadamente enviesada na
investida de mostrar como os processos discursivos podem produzir a diferença.
Igualmente a Silva (2010), compreende-se que “o racismo não pode ser eliminado
simplesmente através do combate a expressões linguísticas racistas, mas deve
incluir também o combate à discriminação racial no emprego, na educação, na
saúde” (SILVA, op. cit., p. 88).
Em virtude disso, o viés pós-estruturalista tem em sua contraposição o
multiculturalismo crítico materialista. Essa perspectiva, com forte inspiração no
marxismo, tem o seu foco na análise dos processos institucionais, econômicos e
estruturais, sendo esses os processos o alicerce da produção de discriminação e
desigualdades (com base na diferença cultural). Esse movimento surgiu através da
reinvindicação dos grupos “oprimidos” (Homossexuais, Mulheres, Negros) a um
currículo universitário que abrangesse toda a cultura, e não somente uma cultura
dita como “comum” (Heterossexual, Branca, Europeia, Masculina).
Apesar das diferenças, ambas concepções fazem com que busquemos não
separar o multiculturalismo das relações de poder. Uma vez que, “o multiculturalismo
transfere para o terreno político uma compreensão da diversidade cultural que
esteve restrita, durante muito tempo, a campos especializados como o da
Antropologia” (SILVA, op. cit., p. 86).

O currículo, nessa perspectiva, constitui um dispositivo em que se


concentram as relações entre a sociedade e a escola, entre os saberes e as
84

práticas socialmente construídos e os conhecimentos escolares. (CANDAU


& MOREIRA, 2007, p. 22)

Cabe destacar, que diferente de Silva (2010), Walsh (2009) aponta a


Interculturalidade crítica como a contraposição ao Multiculturalismo (neo)liberal.
Guardada as diferenças, principalmente sobre as filiações teóricas, assimila-se que
ambos os autores discorrem sobre o mesmo processo, principalmente ao
destacarem o papel dos grupos “oprimidos” na confecção dessa teoria político-
pedagógica.
Enquanto teorias que atingem os detentores de privilégios, o multiculturalismo
e a interculturalidade crítica sofrem fortes críticas dos grupos mais conservadores e
tradicionais, principalmente aqueles que agem em defesa da construção de uma
“cultura nacional comum”. Como já foi apresentado por Canen (2000) a grande falha
da defesa de um currículo que projeta uma cultura comum é que geralmente ele é
um reflexo de uma produção histórica envolta em relações de dominação e
exploração. Mais que isso, um currículo formado nesses moldes, ganha o poder de
indicar o que faz e o que não faz parte dessa cultura nacional.
Do ponto de vista epistemológico, as críticas se voltam em relação a um
possível relativismo presente no multiculturalismo. Essa análise se apoia na questão
de existirem alguns valores comuns ou “universais”. Contudo, não leva em
consideração como se deu a construção desses valores, se tornando um argumento
frágil.
Com isso, as diferenças presentes no currículo são muito mais do que uma
produção feita pela sociedade de classes, existem dinâmicas que são importantes
para entender os processos e a desigualdade presente na educação e no currículo.
As questões de gênero, raça e sexualidade devem estar presentes nas análises
curriculares e na produção de novos currículos, pois não haverá mudança nas
relações de poder, e, sobretudo, não haverá a formação de sujeitos críticos, se não
houver mudança no currículo.
Sendo o currículo, além de uma construção discursiva que envolve relações
de poder-saber (LOPES, 2006; SILVA, 2010), um mecanismo utilizado para dirigir e
controlar os professores e alunos, assim como a potencial liberdade nas salas de
aula (GOODSON, 2007), influenciado não somente pelos Estados, mas por
diferentes atores (LOPES, 2006) em diferentes escalas (SOETERIK & SANTOS,
85

2015); como compreender a influência desse artefato político na prática docente? E


na perpetuação do (e consequentemente o combate ao) racismo no cotidiano
escolar?

2.2.2 Escalas da construção curricular: o prescrito, o praticado e o oculto

O professor Albert Victor Kelly (1981) em seu estudo sobre o currículo,


apresenta-o através de três eixos analíticos: o currículo oficial, o currículo real e o
currículo oculto15; e oferece um profícuo caminho analítico. Apesar da separação na
apresentação da discussão, existe a possibilidade de compreender esses eixos
como escalas da construção do currículo.
A opção por entender as escalas da construção do currículo vai da
percepção, do mesmo modo que Elizabeth Macedo (2006), de que uma leitura que
apresenta a separação do currículo como criação e como ação pode levar a
entender somente aquele prescrito como currículo, sendo o professor meramente
um reprodutor do que foi criado por outrem. Assim, procura-se ajudar a superar uma
leitura que vê a escola somente como um espaço de reprodução, onde os saberes
são construídos de fora para dentro, aparecem de cima para baixo, entre outras
formas hierarquizantes de compreender a escola e o currículo.
Junto a isso, ao fazer a transição do ponto de vista das teorias para o ponto
de vista da análise, consegue-se observar de maneira mais nítida a sua influência
em diversas escalas da construção curricular, e que essas, servem para controlar o
que vai ser (e o que não vai ser) valorizado.
É dentro desse contexto em disputa, que Lopes (2006) indica existirem
políticas sobre o currículo, e que elas também se conformam em discursos. Assim,

Na medida em que são múltiplos os produtores de textos e discursos –


governos, meio acadêmico, práticas escolares, mercado editorial, grupos
sociais os mais diversos e suas interpenetrações –, com poderes
assimétricos, são múltiplos os sentidos e significados em disputa. (LOPES,
2006, p.38)

15
Na presente dissertação, busca-se compreender o currículo através dos eixos: prescrito (oficial),
praticado (real) e oculto.
86

Através de inúmeros instrumentos e estratégias, esses atores acabam


influenciando na construção e perpetuação de uma série de políticas e materiais que
acabam penetrando não só o campo da prescrição, mas também na dimensão da
prática.
É importante salientar que esse movimento de interferência é realizado por
grupos hegemônicos, mas também por grupos contra hegemônicos. Atores sociais
coletivos ou não, que, através de uma “política de escalas” (SOETERIK & SANTOS,
2015), lutam para diminuir e/ou acabar com os danos realizados pelos instrumentos
de homogeneização e uniformização geradora de desigualdades. Sobre essa
dimensão:

A riqueza de pensar em “política de escalas” é que tal conceito permite


juntar numa mesma leitura a complexidade dos jogos políticos organizados
de forma multiescalar e o realce ao protagonismo do movimento social que
cria e mantém a agenda no debate público e nas esferas de coordenação
social. (SOETERIK e SANTOS, op. cit., p. 75)

A constante disputa entre essas diferentes perspectivas podem ser


observadas através do currículo prescrito. Ou seja, na forma de leis aprovadas,
livros didáticos, paradidáticos, bases curriculares comuns, provas avaliadoras, entre
outras. É importante destacar que, ao criar políticas curriculares através de discursos
fechados sem a contraposição de ideias, os grupos hegemônicos acabam
implementando leituras rasas da sociedade. Nesse sentido, enquanto uma
prescrição curricular,

O livro deixa de ser uma produção cultural dentre outras e a defesa de sua
distribuição às escolas é primordialmente considerada como a forma mais
efetiva de apresentar uma proposta curricular aos professores e alunos.
Tem-se, com isso, a tendência de buscar a leitura unívoca do livro didático e
a elaboração do livro didático ideal, algo que, por exemplo, não é esperado
nem desejado dos livros não-didáticos. Parece que se espera,
especialmente por intermédio do livro didático, sanar os problemas que a
escola e os professores enfrentam em seu cotidiano. Tal concepção acaba
por reforçar políticas de avaliação do livro didático, pelo entendimento de
que seriam garantidoras da qualidade da proposta curricular a ser
apresentada aos professores. (LOPES, 2006, p. 48)

Como Costa (2010) apresenta, o livro didático, que deveria servir como um
material de apoio a prática do professor, se torna “norteador” das mesmas. Sendo a
adoção de determinadas prescrições a aceitação de um pacote de relações de
poder pré-estabelecidos, essa política curricular ganha faces de projeto de poder, a
medida em que compreende-se que “[...] a aliança entre prescrição e poder foi
87

cuidadosamente fomentada, de forma que o currículo se tornou um mecanismo de


reprodução das relações de poder existentes na sociedade.” (GOODSON, 2007, p.
243).
Visto isso, a dimensão prescrita influencia desde a seleção do “o que vai ser
ensinado” até o “como vai ser ensinado”. A própria criação e organização das
disciplinas são dimensões regulatórias que influenciam diretamente nas experiências
de vida do alunado e dos professores. À medida que fazem isso, também se
conformam em campos de disputa.
Esse entendimento vai ao encontro com o que Michael Apple (2001)
apresenta enquanto características presentes na construção de uma “tradição
seletiva”, principalmente quando o autor destaca que:

O currículo nunca é simplesmente uma montagem neutra de


conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros e nas salas de
aula de um país. Sempre parte de uma tradição seletiva, da seleção feita
por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja conhecimento
legítimo. Ele é produzido pelos conflitos, tensões e compromissos culturais,
políticos e econômicos que organizam e desorganizam um povo. (APPLE,
2001, p.53)

É importante destacar que essa “tradição seletiva” faz com que os envolvidos
no processo de construção do currículo acabem por ignorar (de forma consciente ou
não) aquilo que não é interpretado como “tradicional” para o currículo em questão.
Dessa forma, como indica Josefina C. D. de Mello (2002) é necessário considerar

[...] a elaboração do currículo como um processo que inventa tradição já


que, com frequência, emprega-se esta linguagem quando se justapõem
„disciplinas tradicionais‟ ou „matérias tradicionais‟ contra inovações cujos
temas estejam integrados ou centralizados na criança. Passamos a discutir
a visão de currículo como „tradição inventada‟. (MELO, 2002, p.20)

Posteriormente a autora complementa:

[...] para ser tradicional, uma determinada prática não precisa ter existido
por séculos. A persistência ao longo do tempo não é o que define
precisamente a tradição. O ritual e a repetição, sim. As tradições são
sempre propriedades de grupos ou comunidades que compartilham crenças
e sentimentos coletivos estruturados no presente pelo próprio passado
dessas mesmas comunidades. (MELO, 2002, p.20)

Ao colocar dimensão prescrita do currículo em interface com as relações de


poder e os mecanismos de regulação, percebe-se que elas acabam influenciando
também o currículo praticado pelos professores e professoras, assim como as
88

experiências dos estudantes. Contudo, para além das influências do currículo


prescrito na prática docente, essa dimensão da tradição também evidencia as
influências do/no chamado currículo oculto.
Como indicam Vera Candau e Antônio Moreira, o

[...] chamado currículo oculto, que envolve, dominantemente, atitudes e


valores transmitidos, subliminarmente, pelas relações sociais e pelas rotinas
do cotidiano escolar. Fazem parte do currículo oculto, assim, rituais e
práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de
organizar o espaço e o tempo na escola, modos de distribuir os alunos por
grupamentos e turmas, mensagens implícitas nas falas dos(as)
professores(as) e nos livros didáticos.” (CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 18)

Além dessa dimensão prescrita, na interlocução de Candau & Moreira (2007)


com as contribuições de Apple (2001), é possível entender uma série de outras
regulações que influenciam no currículo criado e praticado no cotidiano das relações
sociais. Relações que vão desde o contato com os estudantes ou professores da
sua área de conhecimento, até os mais altos escalões do sistema educacional. Para
além dessas interações, o currículo oculto consegue influenciar a própria
organização do espaço escolar (organização da sala de aula, disposição das salas)
e do tempo escolar (um tempo para cada tarefa, para cada disciplina, etc.).
Sobre essa interferência, Kelly salienta que em determinados casos,

[...] os valores implícitos nas disposições estabelecidas pela escola com


relação aos alunos estão claros na consciência de alguns professores e
planejadores e são, também consciente, aceites por ele como parte do que
os alunos deveriam aprender nas escolas, como embora não sejam
abertamente reconhecidos pelos alunos. Portanto, os professores
deliberadamente planejam a “cultura expressiva” das escolas. Nesses
casos, portanto, o currículo só é oculto para, ou dos, alunos. Se assim for, e
onde for assim, os valores a ser aprendidos claramente como parte do que
o professor planeja para os alunos devem, por isso, ser aceites como parte
legítima do currículo. (KELLY, 1981, p.2-3)

Essa manipulação do currículo oculto possibilita uma leitura para entender


como as relações de poder e os próprios racismos se reproduzem e são combatidos
no cotidiano. Traz contribuições também para compreender que tanto o currículo
prescrito quanto o praticado trazem consigo uma dimensão oculta.
Ao fazer essa leitura, nota-se que as três dimensões apresentadas são
caminhos para compreender parte da construção do currículo. Mais que isso, ao
juntarmos estas às teorias do currículo e políticas curriculares, vê-se que, apesar de
89

serem estudadas relativamente separadas, configuram-se em campos que estão


imbricados na construção do currículo.
Assim, as diferentes teorias de currículo em conjunto com as questões
analíticas e os debates apresentados, tornam o currículo um híbrido. Para entender
os espaços de formação desses híbridos, Elizabeth Macedo (2006) utiliza a noção
de fronteiras, sendo elas, espaços intelectuais onde discursos sobre o currículo
acabam sendo confrontados com outras perspectivas, e da interação entre essas
culturas nas fronteiras, nascem os currículos hibridizados do cotidiano escolar.
Esses contatos também são envoltos em relações de poder, nesse sentido,
Lopes (2006) ressalta que:

O híbrido não resolve as tensões e contradições entre os múltiplos textos e


discursos, mas produz ambiguidades, zonas de escape dos sentidos. Na
constituição do conhecimento escolar, entram em jogo as concepções
relativas ao que se entende como conhecimento legítimo, às relações de
poder e aos interesses envolvidos na produção desse conhecimento, como
discute a perspectiva crítica de currículo. (LOPES, 2006, p. 40)

Essa leitura mostra o currículo como um instrumento de controle que traz


consigo um pacote de relações de poder, diversas vezes escondidas na forma de
uma tradição que traz consigo uma forma ideal de saberes, avaliações, relações
cotidianas, entre outras coisas. Mais que isso, o currículo é campo em disputa que
mediante um processo histórico de homogeneização curricular, ajuda a criar
identidades hierarquicamente posicionadas. Em um panorama tão complexo, como
confrontar essas relações de poder e construir uma educação antirracista?

2.3 Campos de disputa para construção de uma educação antirracista

Como construção social, os currículos possuem história e intencionalidades.


Sendo o currículo, entre outras coisas, um texto racial (SILVA, 2010) e eurocentrado,
quais os campos de disputa para a construção de uma educação antirracista?
Ao analisar o currículo atentando-se para esse aspecto, observa-se que:

A questão da raça e da etnia não é simplesmente um “tema transversal”: ela


é uma questão central de conhecimento, poder e identidade. O
conhecimento sobre raça e etnia incorporado no currículo não pode ser
90

separado daquilo que as crianças e os jovens se tornarão como seres


sociais. (SILVA, 2010, p.102)

Concomitantemente a essa construção racializada do currículo, existem


diversos mecanismos de poder que influenciam o processo formativo dos diferentes
indivíduos presentes no ambiente escolar e pesquisadores sobre a temática
educacional, que inúmeras vezes são responsáveis por impedi-los de enxergar o

[...] potencial que o currículo possui de tornar as pessoas capazes de


compreender o papel que devem ter na mudança de seus contextos
imediatos e da sociedade em geral, bem como de ajudá-las a adquirir os
conhecimentos e as habilidades necessárias para que isso aconteça.
(CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 21)

Para a criação de uma educação antirracista, tem que se destacar dois


campos de disputa. O primeiro aparece na luta pela construção do conhecimento
escolar. Esse campo é capaz de trazer a discussão sobre as funções dos conteúdos
presentes no currículo, as formas de como esses conhecimentos na forma de
conteúdos são repassados, assim como as relações de poder presentes na
construção do currículo. Concomitantemente, o segundo campo de disputa aparece
na luta pela construção de uma leitura multiescalar sobre o racismo e o impacto
deste na educação. Desse modo, a luta para evidenciar o racismo enquanto sistema
de dominação que atinge diversas escalas, confere à luta antirracista a possibilidade
de disputar a criação de uma educação antirracista em diferentes escalas.

2.3.1 A construção do conhecimento e o rebatimento na formação de identidades

O campo da construção de conhecimento lastreia uma série de


reinvindicações e posicionamentos que dialogam com a necessidade de inserir e
rever os conteúdos presentes no currículo, e também com a necessidade de buscar
construir novas metodologias de ensino. Estas questões são assinaladas por Santos
(2011) e por diversos outros atores e pesquisadores do movimento negro e
indígena.
91

Para ressaltar a dimensão do conteúdo na construção do conhecimento,


buscou-se no debate sobre os currículos multiculturalmente orientados apresentados
por Candau & Moreira (2007), alguns caminhos interessantes para realizar o debate.
A primeira questão apresentada é a necessidade de adquirir uma postura que
possibilite fazer com que culturas historicamente marginalizadas adentrem o
ambiente escolar. Essa postura deve ajudar a superar o daltonismo cultural
(CANDAU & MOREIRA, 2007) instaurado nesses ambientes.
Junto com a mudança de postura, também existe a necessidade de pensar o
currículo com um espaço em que se reescreve o conhecimento escolar. Trabalhar
essa questão significa fazer com “[...] que os interesses ocultados sejam
identificados, evidenciados e subvertidos, para que possamos, então, reescrever os
conhecimentos.” (CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 32). Por ora é importante destacar
que essa mudança implica a necessidade de um posicionamento político forte.
Os dois itens apresentados acima ajudam a entender e assinalar a
necessidade de criar novas bases para a construção do conhecimento escolar e
assim além de inserir novos conteúdos, criar novas chaves de leituras para
apresentar os que já existem. Contudo, como bem indicam os autores:

Cabe esclarecer que não estamos argumentando a favor do efeito Robin


Hood (McCarthy, 1998), segundo o qual se tira de um para dar ao outro, ou
seja, não estamos recomendando que simplesmente se substitua um
conhecimento por outro. O que estamos sugerindo é que se explorem e se
confrontem perspectivas, enfoques e intenções, para que possam vir à tona
propósitos, escolhas, disputas, relações de poder, repressões,
silenciamentos, exclusões. (CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 33)

A construção de uma educação que lute contra o racismo e busque combater


essa monopolização cultural-conceitual da compreensão da “história do mundo",
deve promover uma reescrita do conhecimento. E dessa forma confrontar as
perspectivas totalizantes que conformam a “história oficial” da formação do atual
sistema mundo, do território brasileiro, das identidades globais, da ocupação dos
bairros, cidades, estados entre outros assuntos inerentes ao currículo (sobretudo de
geografia).
A imprescindibilidade de reescrever o conhecimento ganha contornos mais
densos ao se ver que “[...] a escola sempre teve dificuldade em lidar com a
pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais
92

confortável com a homogeneização e a padronização.” (MOREIRA & CANDAU apud


CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 35).
Por isso, pensar a necessidade de um currículo multicultural, também exige,
ao educador, ultrapassar uma série de barreiras presentes no seu próprio campo de
pensamento. Assim, colocar o currículo como um campo em que se explicita a
ancoragem social dos conteúdos (CANDAU & MOREIRA, 2007) se apresenta como
uma terceira dimensão para construir uma educação antirracista e multicultural.
Perguntas como: em que contexto social um dado conhecimento surge e se
difunde? Como um determinado conceito proposto historicamente se torna ou não
aceito? Por que permaneceu ou foi substituído? Que tipo de discussões provocou?
Como esse avanço propiciou benefícios (ou não) à humanidade (ou a certos grupos
da humanidade)? De que forma promoveu o avanço do conhecimento na área em
pauta? Tais indagações mostram a necessidade de tencionar como os conteúdos
aparecem na ciência. Esse movimento ajuda também a compreender as raízes
históricas do conceito e os processos de invisibilizações, superando possíveis
leituras que os coloquem como indiscutíveis, neutros, universais, atemporais.
Junto a essa explicitação, vem a necessidade de apresentar o currículo como
locus de reconhecimento das identidades culturais brasileiras, das desigualdades
historicamente produzidas e de questionamento de nossas representações sobre os
“outros” e sobre “nós”. Como colocam os autores,

Tendemos a uma visão homogeneizadora e estereotipada de nós mesmos


e de nossos alunos e alunas, em que a identidade cultural é muitas vezes
vista como um dado, como algo que nos é impresso e que perdura ao longo
de toda nossa vida. Desvelar essa realidade e favorecer uma visão
dinâmica, contextualizada e plural das identidades culturais é fundamental,
articulando-se as dimensões pessoal e coletiva desses processos.
(CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 38)

Ao realizar um estudo sobre as lutas contra essas desigualdades


historicamente produzidas no atual sistema político-econômico, Nancy Fraser (2007)
problematiza a centralidade na luta pela identidade e indica que além da
necessidade do reconhecimento identitário, existe a necessidade de reposicionar os
grupos socialmente inferiorizados. A autora propõe então

[...] tratar o reconhecimento como uma questão de status social. Dessa


perspectiva – que eu chamarei de modelo de status – o que exige
reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas a condição
dos membros do grupo como parceiros integrais na interação social. O não
93

reconhecimento, consequentemente, não significa depreciação e


deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação
social no sentido de ser privado de participar como um igual na vida social.
Reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento, mas
isso não significa mais uma política de identidade. No modelo de status, ao
contrário, isso significa uma política que visa a superar a subordinação,
fazendo do sujeito falsamente reconhecido um membro integral da
sociedade, capaz de participar com os outros membros como igual.
[...] Entender o reconhecimento como uma questão de status significa
examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de
seus efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais
padrões constituem os atores como parceiros, capazes de participar como
iguais, com os outros membros, na vida social, aí nós podemos falar de
reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando, ao contrário, os
padrões institucionalizados de valoração cultural constituem alguns atores
como inferiores, excluídos, completamente “os outros” ou simplesmente
invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na interação
social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de
status. No modelo de status, então, o não reconhecimento aparece quando
as instituições estruturam a interação de acordo com normas culturais que
impedem a paridade de participação. (FRASE, 2007, p.107-108)

Ao trazer esse debate para o campo da educação, compreende-se que existe


a necessidade de subjugar alguns bloqueios no que tange a compreensão acerca do
outro e de “nós”. Para tal, é necessário descolonizar o currículo, uma vez que esse
processo envolve descontruir os sensos comuns que impedem uma aproximação
com o outro.
Mignolo (2008) ressalta que, para tal, é preciso uma desobediência
epistêmica. É fundamental pensar o mundo para além da episteme eurocêntrica, é
preciso buscar formas que foram negadas por esse projeto de sociedade em que
vivemos. Ressalta-se que desobediência epistêmica não envolve somente escolhas,
mas também práticas. Ela envolve mudança de rumo. Nesse sentido, ela não é uma
“reformulação”.

Assim, toda mudança de descolonização política (não-racistas, não


heterossexualmente patriarcal) deve suscitar uma desobediência política e
epistêmica. A desobediência civil pregada por Mahatma Ghandi e Martin
Luther King Jr. foram de fato grandes mudanças, porém, a desobediência
civil sem desobediência epistêmica permanecerá presa em jogos
controlados pela teoria política e pela economia política eurocêntricas.
(MIGNOLO, 2008, p. 287)

Com isso, o autor indica que não há possibilidade de real transformação sem
criar “problemas”. Não é possível promover uma desobediência epistêmica,
reproduzindo epistemologias da dominação. Sendo mais nítido, não é possível
promover uma luta contra o racismo sendo machista, da mesma maneira que não dá
94

para fazer uma luta contra o racismo e o machismo, sendo homofóbico, elitista,
meritocrata e assim por diante.
Visto isso, compreende-se que a construção do conhecimento envolve mais
que a construção de conteúdos, envolve também a forma que são passados para os
alunos. Para além das relações de poder presentes na formulação desses
conhecimentos, outros processos ajudam a inculcar e construir conhecimentos
racialmente hierarquizados/hierarquizantes. Dentre eles, ressalta-se: a
contextualização e a descontextualização dos conteúdos; os limites e
potencialidades inerentes aos processos cognitivos dos estudantes e sua
interferência no processo de ensino-aprendizagem; e os diferentes mecanismos
avaliativos.
Os três processos são capazes de fazer a ligação entre o que está sendo
ensinado e como se ensinar. Assim, acerca do primeiro ponto elencado acima,
Candau & Moreira (2007) indicam que tanto contextualização, quanto a
descontextualização são movimentos necessários para o processo de ensino-
aprendizagem.
Esse posicionamento tem o sentido de problematizar que o profissional da
educação não tem condições de contextualizar todos os conteúdos ensinados.
Entretanto, apesar de a descontextualização ser fundamental em diversos
momentos, esta não pode ser utilizada de forma a esconder a dimensão política do
conteúdo em questão. Conforme os autores indicam que

Conhecimentos totalmente descontextualizados não permitem que se


evidencie como os saberes e as práticas envolvem, necessariamente,
questões de identidade social, interesses, relações de poder e conflitos
interpessoais. (CANDAU & MOREIRA, 2007, p.24)

A apresentação desse tipo de conhecimento descontextualizado implica em


uma série de violências epistêmicas sobre os grupos oprimidos. Essas violências
epistêmicas também são violências físicas, à medida que a inculcação de valores
racialmente hierárquicos de sociedade ajuda a criar identidades também
posicionadas de maneira hierárquica dentro da estrutura social.
Um segundo aspecto da construção do conhecimento é a necessidade de se
atentar para a cognição dos estudantes no processo de ensino e aprendizagem.
Como destacam Candau & Moreira (2007), geralmente os conhecimentos escolares
95

são selecionados e organizados com base nos ritmos e nas sequências propostas
pela psicologia do desenvolvimento. A relevante questão colocada pelos autores é
se as etapas canonizadas pelos grandes pensadores do século passado ainda são
as mesmas.
Em uma sociedade signo de um mundo globalizado, onde o fluxo de
informações é imensurável, e inúmeros jovens estão inseridos em múltiplas
realidades, através da internet e de diversos outros mecanismos, será que as etapas
de desenvolvimento cognitivo deles ainda são os mesmos?
Essa questão não é central no presente estudo, mas provoca os atuais
pesquisadores sobre essas etapas de ensino-aprendizagem a voltarem aos
clássicos de maneira crítica e rever algumas das suas contribuições de forma a
entender a sociedade atual.
Apesar de se depreender que a sociedade atual existe uma desigualdade
econômica entre os diversos indivíduos, esse linha de pensamento faz com que se
atente a necessidade de compreender como ocorre o processo de formação da
psique dos jovens estudantes.
A terceira dimensão que interfere na construção/reprodução do conhecimento
é a avaliação. Sobre esse debate, é notório que diferentes conhecimentos precisam
ser avaliados de diferentes formas. Contudo, em um ambiente fortemente impactado
por relações de poder-saber e por um discurso da performatividade (LOPES, 2006)
os conhecimentos colocados como mais importantes tendem a ter a centralidade
nos estudos dos/das estudantes.
Nesse sentido, os conteúdos colocados no currículo prescrito na forma de
exercícios dos livros didáticos, em testes e provas, se configuram como elementos
centrais para os alunos, enquanto aqueles avaliados de outra forma – apêndices dos
livros, análise de obras cinematográficas, perguntas dos professores durante a aula
– são colocados enquanto menos significativos, como um apêndice ao
conhecimento importante.
Essas três dimensões, somadas com as relações de poder na escolha dos
conteúdos, conformam uma provocação sobre a necessidade de pensar como o
conhecimento escolar formado e repassado também ajuda a construir diferenças no
plano prático.
96

Esse debate realça a necessidade de pensar como diversos artefatos


culturais e políticos presentes na sociedade e, consequentemente, no ambiente
escolar agem na construção do conhecimento, e como esses “conhecimentos” agem
na construção de identidades.

Tais artefatos, como se tem insistentemente acentuado, desempenham,


junto com o currículo escolar, importante papel no processo de formação
das identidades de nossas crianças e nossos adolescentes, devendo
constituir-se, portanto, em elementos centrais de crítica em processos
curriculares culturalmente orientados. (CANDAU & MOREIRA, 2007, p. 42)

Cabe salientar que as identidades historicamente criadas através das


diferentes políticas curriculares influenciam alunos, professores, funcionários,
gestores, ou seja, exerce impacto sobre todos os indivíduos presentes no ambiente
escolar.
Com isso, os diversos atores presentes nesse ambiente tendem a ter, em
alguma perspectiva, as suas práticas inconscientemente impactadas por
posicionamentos racialmente hierarquizantes. Ou seja, mesmo sem a intensão
direta, são responsáveis por produzir ou reproduzir desigualdades dentro da escola.
Para Michael Apple (2001), a crítica a esses posicionamentos deve girar em
torno das dimensões racistas da prática adotada, uma vez que a simples crítica ao
indivíduo pode ser considerada um erro. Esse destaque é importante, pois, ao
analisar as relações cotidianas, aparecem posicionamentos “ambíguos” de
diferentes atores em interlocução. É necessário ter cuidado de não cimentar as
críticas em bases frágeis.
Para ajudar a entender como algumas políticas de currículo ajudam a ampliar
as desigualdades raciais na educação, o referido autor remonta a um relatório que
visava compreender o rebatimento dessas políticas na relação raça e educação.

[...] no relatório dos resultados da investigação de Gillborn e Youdell, sobre


os efeitos do estabelecimento de padrões nacionais e de reformas similares
nas escolas com grupos significativos de crianças de cor, os autores
afirmam que os dados disponíveis sugerem que “sob os ganhos superficiais,
indicados por melhorias ano a ano em relação ao critério padrão... em
algumas áreas houve uma expansão da desigualdade entre estudantes,
escolas e, em alguns casos, entre grupos étnicos”, especialmente no caso
da relação entre alunos brancos e afro-caribenhos. (APPLE, 2001, p.63)

Destarte, a criação de uma educação antirracista perpassa por uma análise


crítica a conformação de currículos e avaliações nacionais. Uma vez que enquanto
97

políticas que tem como premissa uma homogeneização de conhecimentos, acabam


ocultando as particularidades das diferentes populações.
Essa percepção remonta às influencias relatadas por Lopes (2006),
principalmente o debate sobre o currículo comum e a cultura da performatividade.
Por outro lado, a questão da faceta monocultural do currículo se faz fortemente no
debate realizado por Canen (2000) e Candau (2007).
Sobre a questão monocultural, Boaventura de Sousa Santos (2002) indica
que essa “monocultura racional” é responsável por produzir processos de “não-
existência”, e que pode ser dividida em cinco vertentes: i) monocultura do saber e do
rigor do saber (lógica que transforma da ciência moderna e da alta cultura em
critérios únicos de verdade e de qualidade estética); ii) monocultura do tempo linear
(lógica de que a história tem único sentido e direção conhecidos); iii) monocultura da
naturalização das diferenças (lógica da classificação social); iv) monocultura das
escalas (lógica da escala dominante); e v) monocultura dos critérios de
produtividade capitalista (lógica produtivista).
A amálgama de políticas e posicionamentos apresentadas anteriormente,
junto com as monoculturas apresentadas por Santos (2002) ajudam a entender, por
exemplo, como branquidade presente no sistema educacional ajuda a criar,
preservar, perpetuar uma identidade branca. Identidade essa que se beneficia da
produção de não-existências e da monocultura apresentadas anteriormente.
Em contraposição a esse processo, Santos (2002) defende a criação de uma
sociologia das ausências, sendo esta responsável por

[...] revelar a diversidade e multiplicidade das práticas sociais e credibilizar


esse conjunto por contraposição à credibilidade exclusivista das práticas
hegemónicas. A ideia de multiplicidade e de relações não destrutivas entre
os agentes que a compõem é dada pelo conceito de ecologia: ecologia de
saberes, ecologia de temporalidades, ecologia de reconhecimentos e
ecologia de produções e distribuições sociais. Comum a todas estas
ecologias é a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe.
Trata-se de uma versão ampla de realismo, que inclui as realidades
ausentes por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, isto
é, as realidades que são ativamente produzidas como não existentes.
(SANTOS, 2002, p.253)

Como se é capaz de ver através dos apontamentos de Apple (2001), a


construção de outra lógica curricular não ocorre de maneira simples, isso fica mais
evidente à medida que o autor salienta que a branquidade começa ganhar forma na
educação conforme o indivíduo branco começa a perder seus privilégios. Em outras
98

palavras, a perda da soberania monocultural da narrativa é interpretada pelos


indivíduos que já tinham inculcado e naturalizado esses privilégios, enquanto uma
possível perseguição e/ou construção de privilégios a outros grupos.
Isto é, a produção de não-existências, faz com que esses grupos dificilmente
consigam enxergar as desigualdades raciais, ou quando enxergam, coloquem
exclusivamente como algo produzido no passado, desvinculando na maioria das
vezes, com as desigualdades existentes no sistema de expropriação de riquezas em
que vivemos. Esse posicionamento é ainda mais compreensível à medida que:

Raça é uma categoria usualmente aplicada a pessoas “não brancas”. As


pessoas brancas usualmente não são vistas nem nomeadas. Elas são
posicionadas no centro, como a norma humana. Os “outros” são
racializados; “nós” somos apenas pessoas. (APPLE, 2001, p.65)

Essas múltiplas identificações, como trabalhado no capítulo anterior, fazem


com que a construção dessa branquidade envolva uma gama de outras opressões
presentes na sociedade como a de gênero, sexual e classe. Visto isso, como indica
Apple (op. cit.), existe a necessidade de reconhecer que “os sujeitos são produzidos
através de múltiplas identificações” (APPLE, op. cit., p. 66).
Por isso, as políticas curriculares se conformam em um campo de disputa.
Um campo que força a observar que para além de se debater “como ensinar” e “o
que ensinar” é fundamental estabelecer uma política antirracista que evidencie
"porque ensinar", uma vez que as relações raciais também estão presentes nos
processos de formação e produção do conhecimento falado anteriormente. Assim,

Aquilo que é considerado como “conhecimento oficial” carrega de forma


consistente a marca de tensões, lutas, e compromissos nos quais a raça
desempenha um papel importante (Apple, 1993, 1999). Além disso, como
Steven Selden mostrou claramente em sua recente história das estreitas
relações entre eugenia e prática e política educacionais, quase toda prática
atual em educação – padrões, avaliação, modelos sistematizados de
planejamento curricular, educação para superdotados, e muitos outros
temas – tem suas raízes em preocupações como “melhoramento da raça”,
medo do outro etc. (Selden, 1999). (APPLE, 2001, p. 66)

Compreender que o “conhecimento oficial” como uma dimensão que ajuda a


perpetuar/criar um ideário de branquidade e a formação de branquitudes, leva a
entender que, para além da construção de conhecimento e metodologias para
passá-los, existe a necessidade de disputar essas identidades. Ainda tratando a
branquidade como mote para o debate, até que ponto a sua presença nas relações
99

educacionais-políticas-econômicas invisibilizam o eurocentrismo presente no


currículo e na sociedade? Mais que isso, até que ponto os profissionais da educação
são impactados por essa ideologia?
Assim como Candau & Moreira (2007), compreende-se que, enquanto um
importante ator na construção social e intelectual do aluno, o professor deve se
posicionar politicamente frente a esses embates do dia-a-dia. Deve se colocar
enquanto construtor de políticas contra o racismo existente no cotidiano escolar.
Mas esse é um debate que haverá um aprofundamento a seguir.

2.3.2 Multiescalaridade do combate ao racismo na educação

Sendo o racismo um sistema de dominação e a escola um ambiente em


disputa, para além de construir conhecimentos pautados em valores antirracistas, é
necessário construir políticas que ajudem a combater o racismo nas diferentes
esferas da sociedade. Nas últimas décadas, a construção de políticas de combate
ao racismo vem ganhando força, não apenas no Brasil, mas em escala internacional,
inclusive com a realização de uma conferência da ONU sobre o tema, como a III
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata16. No Brasil, a promulgação da Lei Federal
10.639 em 2003 foi um marco, mas é preciso lembrar que ela foi precedida de outras
legislações estaduais e municipais na década anterior, como as

[...] Constituições Estaduais da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de Janeiro


(Art. 306), de Alagoas (Art. 253), assim como de Leis Orgânicas, tais como
a de Recife (Art. 138), de Belo Horizonte (Art. 182, VI), a do Rio de Janeiro
(Art. 321, VIII), além de leis ordinárias, como lei Municipal nº 7.685, de 17 de
janeiro de 1994, de Belém, a Lei Municipal nº 2.251, de 30 de novembro de
1994, de Aracaju e a Lei Municipal nº 11.973, de 4 de janeiro de 1996, de
São Paulo. (MEC/SEPPIR, 2004, p. 9).

Estes marcos prescritivos de currículo, fruto das lutas históricas do Movimento


Negro, dialogam diretamente com o cotidiano escolar. Acreditamos aqui que o

16
Também conhecida como “Conferência de Durban”, essa conferência foi realizada na cidade de
Durban (África do Sul), no ano de 2001, e teve como principal objetivo discutir políticas que
ajudassem a combater o racismo e outras formas hierarquização com base na diferenciação racial ou
étnica.
100

conceito de “escala” é útil pra compreender esta ação e estas disputas pelo
currículo.
Com isso em mente, para o presente momento, buscaremos estabelecer um
diálogo com o debate sobre políticas de escalas, apresentado por Soeterik & Santos
(2015). Com esse dialogo tenciona-se evidenciar que os atores no cotidiano escolar
também mobilizam escalas da política para construir uma educação antirracista,
configurando a multiescalaridade do combate ao racismo na educação, uma
dimensão também importante na prática docente. Em outras palavras, o movimento
negro, enquanto um movimento social complexo, ao mobilizar diversas escalas da
política e, em algumas situações, executar uma política de escalas, acaba fazendo
com que a atuação em uma escala surta efeito em outra, possibilitando que esses
atores presentes no cotidiano escolar mobilizem essas escalas da política para a
sua atuação no cotidiano.
Contudo, antes de iniciar esse debate, é fundamental fazer alguns
apontamentos acerca da definição de movimentos sociais adotada no presente
trabalho. Em primeiro lugar, é importante destacar que assim como Alberto Melucci
em “A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas”
entende-se que:

Um movimento é a mobilização de um ator coletivo, definido por uma


solidariedade específica, que luta contra um adversário para a apropriação
e o controle de recursos valorizados por ambos. A ação coletiva de um
movimento se manifesta através da ruptura dos limites de compatibilidade
do sistema dentro do qual a ação mesma se situa. [...]Um movimento não
se limita, portanto, a manifestar um conflito, mas o leva para além dos
limites do sistema de relações sociais a que a ação se destina (rompe as
regras do jogo, propõe objetivos não negociáveis, coloca em questão a
legitimidade do poder, e assim por diante). (MELUCCI, 2001, p.35)

Com isso, o referido autor, defende que se deve compreender os movimentos


sociais como a expressão de um conflito e não como a resposta a uma crise, fato
que é comumente vinculado. Essa distinção se faz importante, pois o
reconhecimento da existência de um conflito visibilizado por um movimento social
implica em admitir a existência de uma disputa pela ressignificação e/ou dominação
de algum ponto nas relações sociais, políticas ou econômicas em vigor. Contudo, a
resposta a uma simples crise não é o suficiente para definir uma ação coletiva como
um movimento social. Como citado anteriormente, mais do que a luta contra uma
crise, um movimento social age através da ruptura dos limites do sistema.
101

Em contribuição igualmente importante, Alain Touraine (1977) entende que os


movimentos sociais podem ser entendidos enquanto uma “ação conflitante de
agentes das classes sociais lutando pelo controle de ação histórica” (TOURAINE,
1977, p. 335). Mais que isso, o autor contribui ainda ao falar sobre a questão da
identidade, uma vez que coloca que o princípio da identidade é a definição do ator
por ele mesmo, e que é a partir do conflito que se constitui o ator. Essa relação
conflituosa se dá através da identificação de seu adversário para a realização da
organização do movimento. “O conflito faz surgir o adversário, forma a consciência
dos atores presentes” (TOURAINE, 1977, p.347).
Ao analisar esse panorama exposto por Touraine, entende-se como uma
possível ponte para falar sobre a questão da solidariedade exposta por Melucci.
Uma vez que o termo solidariedade, elencado por Alberto Melucci, indica a
capacidade dos indivíduos se identificarem e serem identificados como parte de um
movimento social complexo. Dentro dessa discussão, o entendimento sobre a
“solidariedade” é fundamental para o entendimento de como um movimento social
pode ser plural, com diversas escalas de luta e, ao mesmo tempo, ser considerado
um movimento único.
O autor ainda indica que não devemos confundir a ação coletiva (movimento
social) com as formas e meios por onde ela avançará (atores singulares, entidades
coletivas etc.). Com isso, assim como Alberto Melucci (1989 e 2001), entende-se
que os “novos movimentos sociais” agem dentro de sociedades complexas
(MELUCCI, 1989) e essa luta envolve uma gama de problemas, atores e objetivos,
que os fazem operar no interior de diversos sistemas organizativos, em diferentes
escalas (MELUCCI, 2001). Assim para compreender as formas de atuação dos
movimentos sociais na sociedade atual, torna-se fundamental entender a questão da
identidade/solidariedade e junto a isso multiescalaridade da atuação que a
sociedade complexa exige ao Movimento Social.
É dentro desse panorama apresentado, que, como evidenciado
anteriormente, considera-se esses atores que buscam construir uma pauta
antirracista na educação como agentes do movimento negro.
É importante destacar, que para além da ideia de solidariedade exposta por
Melucci (2001), essa leitura de movimentos social em grande parte é possível
graças ao conceito de “área de movimentos” explicitado anteriormente por Joanildo
102

Burity (2001) e à definição de Movimento Negro brasileiro, oferecido por Joel Rufino
dos Santos (1994), que o apresenta como:

(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de


qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à
autodefesa física e cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos e
negros (...). Entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por
exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como
“clubes de negros”], artísticas [como os inúmeros grupos de dança,
capoeira, teatro, poesia], culturais [como os diversos “centros de pesquisa”]
e políticas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização
política, de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia
armada, de movimentos artísticos, literários e „folclóricos‟ – toda essa
complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana,
constitui movimento negro. (SANTOS, 1994 apud DOMINGUES, 2007,
p.102)

Sobre a essa forma de ler os movimentos sociais, Soeterik & Santos (2015)
indicam que:

Tal leitura nos permite dar unidade analítica a todos os indivíduos e grupos
que se posicionam e agem pelo combate ao racismo e que se apresentam
na sociedade como negros na figura de um movimento social que é plural,
chamado Movimento Negro. Portanto, cisões, diferenças (de forma de
organização, de atuação e mesmo de projetos) e divergências dentro do
campo devem ser lidas como diversidade na unidade. (SOETERIK &
SANTOS, 2015, p.81)

Essa leitura ajuda a complexificar a definição apresentada por Joel Rufino


(1994), evidenciando uma forma analítica de compreender as ações desse
movimento social. É importante salientar que de acordo com essa perspectiva, pode
haver a predominância de uma determinada forma de ação, ou campo em disputa.
Da mesma maneira, essa leitura, ao dar ênfase à área de movimento e ao campo de
solidariedade, possibilita enxergar que os diferentes grupos e indivíduos que fazem
parte do Movimento Negro brasileiro podem possuir posicionamentos diferentes
frente a algum embate.
Essa compreensão de Movimento Negro brasileiro possibilita a evidenciação
da ampla área de atuação desse movimento social. Ressalta-se aqui, mais uma vez,
que a pluralidade de arenas de atuação não significa a inexistência de um campo
prioritário de luta. Como Soeterik & Santos (2015) assinalam, atualmente, esse
movimento tem tido, no campo da educação, uma das principais arenas de disputa.
Isso fica nítido quando os autores indicam que
103

A inserção da temática racial como base para políticas educacionais nos


últimos dez anos se transformou em tema de discussão nacional. Algumas
políticas, como as de cotas para ingresso de negros em universidades,
geraram uma das discussões mais polêmicas em todo o país. Dentro de um
marco de políticas contra o racismo e seus impactos, que incluem a criação
em 2003 de um ministério para a igualdade racial e nos anos seguintes
mais de uma centena de órgãos municipais e estaduais com formato
semelhante, o campo que mais se destaca é a Educação. Há políticas
raciais na saúde, direitos humanos, mercado de trabalho, planejamento
urbano, valorização de patrimônio histórico, entre outros. Mas, a educação é
o campo de maior profundidade. (SOETERIK & SANTOS, 2015, p.76)

Essa pluralidade de formas de atuação e multi interescalaridade das arenas


de luta contra o racismo conforma um elemento central na compreensão desse
estudo. Ao apresentar o exemplo da anteriormente citada Conferência de Durban, os
autores mostram um pouco dessa leitura multi interescalar, e como ela ajuda a
compreender a política de escalas engendradas pelo movimento negro. Nesse
sentido, apontam que os

[...] principais impactos da Conferência na criação de políticas públicas no


Brasil não estão relacionados à declaração que foi assinada pelo governo
brasileiro, mas sim às ações (em diversas escalas: local/municipal,
regional/estadual e nacional) levadas a cabo pelo Movimento Negro
brasileiro durante o processo que envolveu a Conferência de Durban
(SANTOS & SOETERIK, 2010). Argumentamos, portanto, no caso da
Conferência de Durban, que houve um complexo processo multi e
interescalar de fortalecimento e tensão, no qual o Movimento Negro utiliza a
existência de um fato global para fortalecer e implementar sua agenda nas
escalas local, regional e nacional. (SOETERIK & SANTOS, 2015, p.86)

Para o presente estudo, essas disputas ao envolverem o uso político das


escalas possibilitam mobilizar ações em: i) âmbito nacional, estadual, municipal
(macro escalas), com a aprovação da lei 10639/03, do estatuto da igualdade racial,
da lei pró-cotas, entre outras; e ii) nas relações cotidianas (micro escalas), como a
realização de semanas de consciência negra, debates sobre políticas de ação
afirmativas, implementação da discussão racial dentro dos bancos escolares, por
exemplo.
Contudo, é

Importante mencionar que enquanto as respostas às reivindicações do


Movimento Negro na esfera federal ainda eram tímidas na década de 1990,
a atuação de diferentes organizações e atores do movimento no processo
de redemocratização nos anos 1980 levou alguns governos estaduais e
municipais a criarem conselhos, comissões, coordenadorias e assessorias
para enfrentar questões de racismo e desigualdade racial (SOETERIK &
SANTOS, 2015, p. 84-85)
104

Como a centralidade na presente dissertação está no debate sobre


professores da educação básica, a discussão é desenvolvida através da segunda
área apontada sem que com isso se perca a dimensão multi interescalar. A política
de escalas vista/mobilizada, nas relações engendradas na esfera do cotidiano,
também possibilita a utilização da existência de um fato local, regional e nacional
fortalecer e implementar sua agenda na escala do cotidiano. Essa leitura oportuniza
compreender os profissionais da educação, enquanto agentes na construção de
uma educação antirracista e a lei 10.639/03 17 – uma política de ação afirmativa
construída na macro escala – como ferramenta de luta nas micro escalas.
Contudo, é importante destacar, que enquanto fruto direto da luta do
movimento negro em uma sociedade onde o racismo é institucionalizado, ela
também apresenta fragilidades que acabam sendo utilizadas por determinados
grupos para resistir à sua aplicação nos bancos escolares. Visto isso, compreende-
se essas fragilidades presentes no texto final da lei, como “rugosidades” da luta
antirracista no embate direto com a estrutura racista que é o Estado brasileiro. Ou
seja, a presença de pontos conflitantes em sua configuração final são resquícios do
processo de construção e disputa política pela aprovação em plenário.
Dentre os pontos passiveis de dupla interpretação e consequentemente
disputas, tem o 2º parágrafo do Artigo 26-A, que traz em seu texto a orientação de
que a lei deve ser aplicada em todo o currículo escolar, mas, em seguida, destaca
que deve ser “em especial” nas disciplinas de Educação Artística, de Literatura e
História Brasileira. Apesar desse “adendo” presente no texto final do artigo, garantir
a obrigatoriedade em pelo menos algumas disciplinas, ele também se apresenta

17
Esta prescrição jurídica é uma conquista do Movimento Negro Brasileiro, que após décadas de luta,
viabilizou uma forma de “forçar” a obrigatoriedade da discussão racial nos bancos escolares, em todo
o território nacional. Nesse sentido, a referida lei alterou a LDB, que passou a vigorar acrescida dos
artigos 26-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
o
§ 2 Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como „Dia Nacional da Consciência
Negra‟." (BRASIL, 2003).
105

como um dos principais entraves para que a lei seja implementada por todas as
disciplinas presentes no currículo escolar.
Ainda dentro das disputas interpretativas em torno da referida lei, o artigo 26-
B (que institui o dia 20 de novembro como dia da consciência negra no calendário
escolar) merece um destaque em especial. Esse destaque ocorre pois, apesar do
Movimento Negro pautar a necessidade de fazer a discussão durante todo o ano
letivo, existe uma leitura hegemônica por parte dos professores e demais
responsáveis por aplicar a lei, de que entendem e defendem que a mesma só deva
ser aplicada no mês de novembro. Por outro lado, em ambientes onde a discussão
racial é rechaçada, essa data ganha um uso político, sendo ferramenta fundamental
para pleitear a existência da discussão esse ambiente.
Em ambos os pontos, é possível ver que mesmos as fragilidades presentes
no texto podem ser utilizadas por diversos atores enquanto ferramentas políticas
para lutar contra o racismo no ambiente escolar.
Junto a essas interpretações, outro ponto que gera disputas no cotidiano é a
luta pela revisão dos conhecimentos e conteúdos já problematizados em sala de
aula e tensão a aqueles que partem de uma visão eurocêntrica. Para além de
reposicionar o negro no mundo da educação, ao defender uma interpretação e uma
aplicação mais complexa da lei, o movimento negro busca disputar tanto o currículo
do ensino fundamental e médio, quanto do ensino superior, uma vez que para
preparar professores aptos ao debate sobre a questão racial, as faculdades devem
também modificar o seu currículo e/ou os professores (conscientes de sua função
social) mudarem suas práticas.
Essa leitura possibilita compreender, que somado a inserção e revisão dos
conteúdos, é também necessário rever as práticas, os materiais e os métodos
pedagógicos presentes no cotidiano escolar e na educação enquanto uma
totalidade.
Nesse sentido, a luta pela implementação da lei 10.639/03, ou do próprio 20
de novembro enquanto estratégia para forçar a escola a aceitar trabalhos sobre a
questão racial configuram-se em uma agenda mobilizada por professores e demais
atores ligados à educação (pertencentes através da leitura de “área de movimento”
106

ao movimento negro) que buscam como ressaltado anteriormente, em uma atuação


multiescalar 18, formas de lutar contra o racismo nessa arena de disputa.
É importante ressaltar, que ao compreender o ambiente escolar enquanto
uma arena em disputa, ele também se torna uma escala da política. Ou seja, a
escala é a arena, podendo essa escala ser o cotidiano da escola, o currículo
praticado, a rede de ensino, ou ainda um conjunto orgânico de arenas com
funcionamento articulado.
Ainda dentro dessa leitura, é importante salientar que compreende-se a
prática docente como um local de posicionamento político, de afirmação de uma
postura e de ação militante. Assim, para além de dar aula e/ou passar conteúdos, a
prática docente é um “espaço/tempo” de resistência, onde, por excelência,
posicionamentos contra-hegemônicos podem entrar em choque com o que é
tradicionalmente praticado e consequentemente com o habitus19 presente no
cotidiano escolar.
Entende-se, portanto, que a perspectiva militante do professor é,
essencialmente, uma ação política em busca de ter e/ou conferir um sentido a sua
prática docente. No que tange aos professores por acompanhados pela pesquisa,
esse sentido vem de uma postura, que visa reposicionar o negro no mundo e fazer
entendê-lo sua posição no mundo (SANTOS, 2011), criando assim uma ambiência
para que o aluno consiga se posicionar psíquica e corporalmente através de
consciência negra auto afirmada.
Ao partirem de um novo lócus de enunciação, esses professores tendem a
entrar em choque com a “tradição seletiva” Apple (2001) fazendo com que a prática
docente se configure, pois, uma reveladora e/ou resultado das tensões entre os
diversos graus de intencionalidades na política de escalas e as regulações

18
Em tempo, é importante salientar que essa leitura escalar da atuação dos movimentos sociais se
dá, em grande parte, graças a fragmentação e atomização assinalado por Petrônio Domingues
(2008). Esse processo, que ocorreu após a década de 1980, com a redemocratização brasileira, foi
importante pela a expansão da área de atuação desse movimento social, visto que multiplicou e diluiu
a ação do movimento em diferentes escalas da sociedade, multiplicando consequentemente as
arenas de disputa.
Concomitantemente a esse processo, entende-se que a “onguização” da luta, criou novas formas do
movimento social intervir na sociedade, assim como possibilitou a qualificação dos quadros desse
movimento social (SOETERIK & SANTOS, 2015).
19
Entendemos Habitus como um “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto
estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das
práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2007, p. 191). Para
se aprofundar ler BOURDIEU (2002), SETTON (2002).
107

presentes no ambiente escolar, mas também via de embate com a estrutura escolar,
com a política educacional, com as teorias educacionais presente no ambiente
escolar e com o currículo – tanto nas suas hierarquizações como no que se refere
ao saber disciplinar e ao saber curricular.
Essa natureza reguladora da prática docente também exerce influência sobre
o habitus presente no cotidiano escolar, uma vez que a sua ação não é resultado
das “estruturas” e ao mesmo tempo é resposta de intencionalidades definidas e
defendidas no cotidiano escolar.
Sobre essas intencionalidades, é importante destacar que elas pressupõem o
diálogo entre os diferentes atores que compõe esse cotidiano. Diálogo esse que
pode ocorrer conscientemente (ou não) através do entendimento comum enquanto o
que é tradicionalmente aceito, mas que, independentemente, se tornam centrais
para rever a produção de conhecimento nesse ambiente. Sobre esse debate, Milton
Santos (2006) acrescenta que

[...] a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção


do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do
processo de produção e de produção das coisas, considerados como um
resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu
entorno. (SANTOS, 2006, p.58)

E continua,
A intencionalidade seria uma espécie de corredor entre o sujeito e o objeto.
Assim, essas coisas não são apenas externas, já que atingem o agente
"clandestinamente". (SANTOS, 2006, p.58)

Com isso, Santos (2006) evidencia a existência de um movimento consciente


e voluntário do agente em direção as coisas, ao mesmo tempo que redefine a ação
ao mostrar esses sujeitos enquanto protagonistas ação.
Ou seja, à medida que a prática do professor militante intervém na pratica dos
demais atores, este acaba por disputar as intencionalidades ali presentes, e
consequentemente a criação de novos habitus, permitindo (ou não) a mobilização de
estratégias/possibilidades para aplicação do debate sobre a questão racial no
cotidiano escolar.
Visto isso, ao retomar o diálogo com a atuação do movimento negro e a sua
política de escalas, a partir da perspectiva da ação militante, evidencia-se que
através das relações presentes na vida cotidiana de cada professor, e das
influências diretas e indiretas desse movimento social, esses professores cooperam
108

para a construção de um currículo que potencializa a denúncia às relações de poder


envolvidas em sua construção. Esse processo, junto com as micro-ações afirmativas
(JESUS, 2009), possibilita evidenciar as relações ocorridas no cotidiano, como
potencial espaço de superação do racismo.
Ações essas, que visam “[...] oferecer referenciais de identificação às crianças
e jovens afrodescendentes de forma a potencializar seu pertencimento étnico-racial.”
(JESUS, 2009, p.1). E podem ser compreendidas enquanto ações políticas, uma vez
que “[...] a política se faz, também, e de forma intensa, por microrrelações, como nos
apontaram a micropolítica de Foucault (1979) ou as relações microbianas de
Certeau (1994)”. (FERRAÇO & CARVALHO, 2012, p. 7)
Ainda essas relações, é importante destacar que ao partir da análise do
cotidiano, assim como aponta Foucault (1979), as relações de poder devem ser
percebidas a partir da sua capacidade de circular por canais cada vez mais “sutis”.
Essa percepção fica mais nítida, quando o autor destaca que o poder é capaz de
chegar “até os próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus
desempenhos cotidianos” (FOUCAULT, 1976, p. 118).
A fluidez dessas relações de poder faz com que “[...] o poder, mesmo tendo
uma multiplicidade de homens a gerir, seja tão eficaz quanto se ele se exercesse
sobre um só.” (FOUCAULT, 1976, p. 118). Esse olhar permite entender que o poder,
ou melhor, as relações de poder permeiam as diversas microrrelações que
acontecem no plano do cotidiano, e estando o poder em toda a parte, em todas as
relações, é no cotidiano e nessas relações nele desenvolvidas que se pode ver os
processos de resistência.
Assim, essa dimensão de análise nos permite enxergar que as professoras e
os professores militantes, através de suas práticas cotidianas, praticam uma série de
resistências que confrontam as relações de poder hegemonicamente construídas.
Essas resistências são entendidas aqui, enquanto micro ações afirmativas
cotidianas (JESUS, 2009). Essas micro-ações podem ser vistas, em parte dos
relatos sistematizados, catalogados (ANEXO A e B) e no capítulo 4 quando
devidamente apresentados e problematizados.
Contudo, antes de fazer essa análise é necessário fazer uma discussão sobre
algumas especificidades do campo da Geografia, discussão essa que possibilita
enxergar de maneira mais nítida os dilemas e embates que os professores
109

perpassam. Para elucidar o debate dentro do campo da Geografia, no próximo


capitulo discorre-se sobre como essas teorias curriculares influenciam/podem
influenciar a geografia que se ensina na educação básica, e como as relações de
poder/saber se instauram de forma a criar percalços para a implementação do
debate sobre a temática racial nessa disciplina.
110

3 ANTIRRACISMO E ENSINO DE GEOGRAFIA: A DISPUTA DO/PELO


CURRÍCULO COMO PERSPECTIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

“As relações da geografia com o ensino são íntimas e inextricáveis, embora


pouco perscrutadas tanto pelo geógrafo como pelos estudiosos da questão escolar.”
(VESENTINI, 2014, p.30). Como o mote da dissertação é o debate sobre as disputas
cotidianas presentes na prática de professoras e professores que buscam em seus
currículos praticados, a implementação da 10.639/03, faz-se necessário também
problematizar a geografia presente nesse ambiente em disputa. Dessa forma, assim
como no capítulo anterior, busca-se fazer um debate sobre as relações de poder na
construção do currículo (de geografia), evidenciando-o enquanto um campo em
disputa no cotidiano escolar.
Para realizar tal debate, é preciso entender que compreender o papel das
comunidades epistêmicas (LOPES, 2006) da Geografia em ligação com o seu
processo de inserção na educação básica, as metodologias presentes e os
conteúdos tradicionalmente defendidos, aparece enquanto um caminho para debater
e criar pontes de diálogo, tanto com as disputas em torno da temática racial, quanto
com as teorias curriculares apresentadas no capítulo anterior.
Sobre esse último diálogo em específico, é importante ressaltar que apesar
do currículo de geografia presente da educação básica atualmente, representar
grandes avanços quando comparados com aqueles defendidos pelas teorias
tradicionais do currículo, outros avanços ainda são necessários. Dentre esses
avanços, ressalta-se a necessidade de expandir a leitura em direção de uma
geografia que permita perceber as múltiplas formas de hierarquias presentes na
sociedade, uma leitura que permita os estudantes se perceberem para além
daqueles sujeitos trabalhadores universalistas.
Uma geografia que, como evidencia Renato Emerson N. dos Santos (2011 e
2013), possibilite os alunos aprenderem a sua posição frente as diversas relações
socioespaciais, e a partir disso, tomarem posição. Não está se falando aqui de uma
simples substituição na forma de ler as relações socioespaciais, mas da
necessidade de compreender e complexificar as leituras realizadas.
111

Em suma, é preciso construir leituras que ajudem a compreender os múltiplos


movimentos, as múltiplas disputas, os múltiplos conflitos, que tem em outras formas
de hierarquização (para além do capital), o lócus da ação. Cabe salientar ainda, que
o cotidiano escolar é um ambiente diverso, com uma variedade de indivíduos, que
trazem consigo uma variedade de questões. É com isso em mente que se deve
entender que,

[...] O educando, via de regra (estamos falando de 1º e 2º graus,


evidentemente), não é um trabalhador (às vezes é) e sim uma criança ou
um adolescente que está se formando em termos de personalidade, e
apresenta diferenças importantes conforme a faixa etária ou a condição
socioeconômica. E a escola não é seu local de trabalho, nem um sindicato e
nem um partido político. (VESENTINI, 2014, p.114)

A escola, como também exposto no capítulo anterior, é um ambiente que traz


consigo um conjunto de relações de saber-poder. Um conjunto de relações que faz
com que assim, como Tomaz Tadeu da Silva (2010), entenda-se que o currículo
enquanto um texto racial, ou melhor, um texto geopolítico, onde a Europa é posta
(epistemologicamente e geograficamente) em uma posição central e superior.
Visto isso, é importante destacar, que a geografia enquanto disciplina escolar
desempenhou e desempenha um papel fundamental nessa construção e na
propagação dessa forma de ver e ler o mundo. Ao mesmo passo, sendo a geografia
uma disciplina responsável por trazer à tona uma série de debates fundamentais
para construir essas visões, ela também tem um papel fundamental na construção e
problematização de leituras não hierarquizantes.
Em tempo, é importante salientar que apesar das diversas ligações entre a
geografia desenvolvida nas universidades e a produzida nas escolas, no presente
trabalho, o ponto de partida sempre será a geografia escolar, entendendo esta
enquanto possuidora de uma dinâmica própria, com conhecimentos, histórias e
“tradições” às vezes destoantes daqueles presentes nas universidades. Nesse
sentido, assim como Lopes (2008),

[...] argumento que o conhecimento escolar e o científico são instâncias


próprias de conhecimento, e que as disciplinas escolares possuem uma
constituição epistemológica e sócio-histórica distinta das disciplinas
científicas, não cabendo, assim, uma transposição tão direta de
interpretações das ciências de referencia para o contexto escolar. (LOPES,
2008, p.46)

Atentar-se para essa diferenciação possibilita compreender não só as


especificidades e potencialidades da disciplina, mas evidenciar uma série de
112

relações de poder-saber presentes no processo de construção do currículo de


Geografia.
Ao levar esse debate para o campo das relações de poder-saber e a inscrição
do racismo na construção dessa disciplina, busca-se evidenciar que o ensino de
geografia é um campo disputado por diferentes correntes de pensamento e
indivíduos, com diferentes concepções e objetivos. Dessa forma, assim como
destacado no capítulo anterior, o currículo não é estanque, neutro, e muito menos
linear, ou contrário disso, ele é dinâmico, atende a diversos interesses e devido as
suas intensas disputas, em inúmeros momentos pode se apresentar enquanto um
híbrido das diferentes concepções presentes no campo da educação e no ambiente
escolar em si.
Em outras palavras, ao pensar o processo de construção da Geografia que se
ensina na educação básica, é primordial entender que ela é fruto de diferentes
concepções de mundo, de escola e de geografia.
Com isso em mente, para além das discussões inicialmente apresentadas,
também é preciso se atentar para uma série de questões, tais como: Qual papel a
geografia tem desenvolvido no currículo escolar? Quais são as limitações teóricas e
metodológicas enfrentadas por professoras e professores de geografia, que tentam
através de suas práticas, romper com o currículo hegemonicamente praticado? Até
que ponto a “tradição seletiva” dessa disciplina impede que se construa uma
geografia sobre outras bases teorias e metodológicas?
Com o intuito de responder as perguntas levantadas, busca-se levantar
alguns debates que possibilitam compreender o percurso da Geografia tanto no que
tange às correntes de pensamento, quanto às suas especificidades relacionadas à
institucionalização na educação básica brasileira.
Ao fazer esse movimento, objetiva-se contribuir para que o campo avance no
debate sobre a importância de reforçar o viés crítico da geografia, evidenciando o
currículo da disciplina e o próprio cotidiano escolar enquanto um espaço diverso,
onde diferentes disputas ocorrem. Em igual patamar de importância, busca-se no
decorrer do capítulo, evidenciar as relações de poder-saber e a narrativas raciais
que marcaram e marcam o seu histórico no ambiente escolar e na sociedade.
Dessa forma, para além da história da Geografia na educação básica, ou os
diversos sentidos e objetivos da geografia que se ensina, há aqui a tentativa de
113

estabelecer uma discussão sobre a importância da prática docente e as disputas


existentes na tentativa de construir uma Geografia que avance sobre bases não
hierarquizantes do ponto de vista da questão racial.

3.1 As mudanças na geografia que se ensina e a formação de uma “Tradição


Geográfica”

Em seu celebre livro “Geografia - Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a
Guerra”, Yves Lacoste aponta que se pode identificar no mundo, desde o fim do
século XIX a existência de duas Geografias: i) a Geografia dos Estados Maiores; e ii)
a Geografia dos Professores. Sobre essas geografias o autor afirma que:

 uma, de origem antiga, a Geografia dos Estados Maiores, é um conjunto


de representações cartográficas e de conhecimentos variados referentes
ao espaço; esse saber sincrético é claramente percebido como
eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o utilizam como
instrumento de poder.
 a outra geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um
século, se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções
inconscientes, é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios
centrados no espaço. Não somente essa geografia dos professores é
extirpada de práticas políticas e militares como de decisões econômicas
(pois os professores nisso não têm participação), mas ela dissimula, aos
olhos da maioria, a eficácia dos instrumentos de poder que são as
análises espaciais. (LACOSTE, 1988, p.31)

Sobre o papel da geografia dos professores na época de sua criação, Lacoste


ainda aponta que,

Desde o fim do século XIX, primeiro na Alemanha, depois sobretudo na


França, a geografia dos professores se desdobrou como discurso
pedagógico de tipo enciclopédico, como discurso científico enumeração de
elementos de conhecimentos mais ou menos ligados entre si pelos diversos
tipos de raciocínios, que têm todos um ponto em comum: mascarar sua
utilidade prática na conduta da guerra ou na organização do Estado.
(LACOSTE, 1988, p. 32)

Ao indicar que a Geografia (dos professores) carregava um caráter


excessivamente enciclopédico, despolitizado, enfadonho, que não permitia aos
alunos a criação de reflexões de caráter mais sociais, o autor faz uma crítica
fundamental para repensar a forma (metodologia), os conteúdos e o próprio objetivo
da Geografia que se ensinava nas escolas.
114

Não contrapondo a função do discurso pedagógico em si, mas a origem


proposta por Lacoste (1988), o pesquisador Genylton O. R. da Rocha (1998)
defende que:
[...] a "geografia dos(as) professores(as)" é um construto social e histórico,
resultante de um processo de seleção realizado a partir de um leque maior
de conhecimentos geográficos produzidos e disponíveis. Ela não surgiu nos
fins do século XIX, como tem afirmado Yves Lacoste (1988), mas sua
existência é contemporânea ao surgimento do próprio sistema público
escolar. Assim, podemos afirmar que suas origens são anteriores ao
surgimento da geografia científica, apesar de, posteriormente, de ela ter
sofrido influência. A "geografia dos (as) professores (as)" nunca foi a
geografia acadêmica (seja na sua concepção clássica, seja na sua
concepção científica), apesar de ter seguido a "passos curtos" a trajetória
desta última. (ROCHA, 1998, p. 10)

Ao ler a construção da geografia que se ensina através desse processo, o


autor nos mostra: i) a existência de uma autonomia entre a “geografia dos(as)
professores(as)” e a geografia posta enquanto dos Estados Maiores; e ii) a
antiguidade dessa disciplina, estando ela relacionada ao próprio processo de
formação do sistema escolar.
Ambos os pontos evidenciam que a chamada “geografia dos professores” tem
um histórico particular, que merece ser analisada como tal. Mais que isso, assim
como já mostrou Lopes (2008):

Acreditamos que para melhor entendermos a dinâmica da disciplina


geografia em sua trajetória curricular, não basta só conhecer a história da
ciência geográfica e o rebatimento das suas mudanças epistemológicas na
geografia ensinada, mas, também, precisamos desvelar e compreender a
própria cultura escolar que influencia e é influenciada pelas diferentes
disciplinas escolares, dentre elas a geografia. (ROCHA, 1998, p.9-10)

Também contribuindo para compreender as particularidades presentes na


geografia que se ensina, Washington Aldy Ferreira (2009) indica que no ambiente
escolar, existe uma tradição geográfica20. Essa tradição fez e faz com que diversos
conteúdos e práticas inseridos na Geografia, mesmo com movimentos de
renovações e reformulações, ou tenham que se adequar a um padrão que remete a
uma geografia de estrutura “tradicional”, ou encontrem dificuldades de serem aceitos
enquanto saberes válidos (verdadeiramente geográficos) pela comunidade escolar.
Sobre essa relação entre novos conteúdos e pensamentos e o que é
tradicionalmente ensinado, Rocha (1998) também destaca que:

20
Conceito desenvolvido para representar dentro da geografia, do conceito de “tradição seletiva”
apresentado por Apple.
115

[...] ao longo da trajetória da geografia escolar brasileira, inúmeros


mecanismos foram sendo utilizados para tentar tornar a "geografia oficial"
em algo "natural", "único" e "verdadeiro". Um dos principais foi a instauração
de um processo de tradição seletiva, responsável pela construção da ideia
de que só existe um modelo de geografia escolar. No nosso ponto de vista,
uma das principais consequências dessa tradição seletiva é a dificuldade de
eliminarmos, ainda hoje, a chamada "geografia tradicional" de nossas salas
de aula. (ROCHA, 1998, p.10)

Sobre essa tradição, entende-se que ela é “resultante das concepções


hegemônicas que determinados grupos ou escolas reificaram na Geografia brasileira
que, de certa forma, apresentam suas marcas em nossos currículos escolares.”
(FERREIRA, 2009, p.42). Concepções hegemônicas essas, que junto com as
ponderações apresentadas faz com que alguns questionamentos acabem ganhando
centralidade no decorrer desse subcapítulo: Como essa tradição geográfica foi
construída? Quais são os elementos que se pode dizer enquanto constituintes dessa
tradição? Quais as contribuições das teorias curriculares mais recentes e da
renovação crítica da geografia nesse processo?
Para responder tais questionamentos, é abordado no presente trabalho o
processo de institucionalização da Geografia enquanto uma disciplina escolar,
buscando durante esse movimento, apresentar as teorias ligadas ao ensino de
geografia e alguns acontecimentos relacionados a constituição da própria educação
escolar. A escolha por esse caminho, vem da percepção de que para além das
matrizes do pensamento geográfico, “grande parte das mudanças curriculares no
ensino de Geografia no Brasil estão relacionadas as reformas realizadas no ensino
de forma geral.” (PINHEIRO, 2003, p.17)
Para fazer esse pequeno panorama, o ponto de partida das contribuições de
Washington Aldy Ferreira (2009) e Marcos Couto (2015), uma vez que ambos os
autores buscaram por caminhos diferentes, problematizar a geografia ensinada na
educação básica.
A partir de uma leitura das escolas de pensamento da Geografia em ligação
com as teorias curriculares, Ferreira (2009), entende que a construção dos currículos
escolares de Geografia pode ser entendida a partir de três grandes movimentos. O
primeiro tem início da década de 1930 até meados da década de 1970 e
corresponde ao período da Geografia Tradicional. Segundo o autor “este período,
por ser o mais duradouro, talvez, tenha impresso em nossos currículos escolares
116

conteúdos que reificaram grande parte de nossa „tradição geográfica‟” (FERREIRA,


2009, p.42).
O segundo movimento surge na ruptura com o anterior e com a emergência
de uma Geografia Crítica (predominantemente marxista) e vai ser construído ao
longo da década de 1980 até meados dos anos de 1990. Já o terceiro, que se iniciou
no final dos anos 1990 dura até os dias atuais, pode ser considerado como um
movimento de consolidação e aprofundamento de uma perspectiva crítica da
geografia. É importante destacar, que para o autor, esse terceiro momento se dá a
partir de um diálogo maior com a pedagogia, as teorias curriculares crítica e pós-
crítica e o socioconstrutivismo.
Por outro lado, Couto (2015), ao partir do diálogo entre as matrizes de
pensamento da Geografia e a história das ideias pedagógicas no Brasil, indica que:

O cruzamento da história da geografia com a evolução da escola brasileira


pode tomar como ponto de partida o século XIX, com a inclusão, por
exemplo, da disciplina geografia no currículo do Colégio Pedro II (Rocha,
2000). Tomando como referências as matrizes do pensamento geográfico
(Moreira, 2008b, 2009, 2010) e a história das ideias pedagógicas no Brasil
(Saviani, 2010), se propõe distinguir três períodos dessa história: 1) O
século XIX, 2) A virada do séc. XIX para o séc. XX, se estendendo pelas
décadas de 1930/1940 e de 1950-60 e 3) As décadas de 1970-1980 e de
1990-2000. (COUTO, 2015, p.111)

Com isso, diferente de Ferreira (2009), o referido autor apresenta que apesar
da geografia trabalhada no século XIX ter algumas características parecidas com a
da virada do século XIX para o século XX, ambas foram formadas por escolas de
pensamento diferentes (mas não dissonantes), e serviam a uma concepção de
educação diferente da que vai emergir no final do século XIX, início do século XX.
Da mesma forma, o terceiro período apresentado pelo autor evidencia que,
junto com o processo de renovação crítica da geografia ocorreram outros
movimentos que não se configuravam em rupturas com a Geografia ensinada,
apesar de apresentar um cabedal teórico metodológico diferente do
hegemonicamente empregado. Algo que também é alertado por Ferreira (2009),

É preciso deixar claro, por um lado, que no interior de cada período, há


movimentos, contra-hegemônicos de cada corrente teórico-metodológica,
mas que de certa forma sempre há grupos que se tornam hegemônicos e
que acabam por influenciar de forma mais significativa o pensamento da
época. O currículo, portanto, não será usualmente unitário, mas ele próprio
corporificará tendências contraditórias. E isso vai ocorrer com a Geografia
em cada momento. Em cada período de maior domínio teórico metodológico
117

de um pensamento hegemônico, incorporaremos saberes produzidos por


movimentos contra-hegemônicos. (FERREIRA, 2009, p.43)

Ao trabalhar com a geografia desde a sua institucionalização na educação


básica, Couto (2015) apresenta bases para problematizar o início do que Ferreira
(2009) chamou de “tradição geografia”.
Como o objetivo nesse tópico é compreender como ocorreu a construção
dessa tradição no currículo de geografia da educação básica, esse processo será
dividido em dois grandes momentos: i) séc. XIX até meados da década de 1970 –
momento que compreende o período de institucionalização de uma geografia de
base corográfica no Colégio Pedro II (CPII), até construção e consolidação de uma
Geográfica Tradicional, e ii) de meados da década de 70 até os dias atuais – que
engloba o movimento de renovação crítica da Geografia e outras teorias que visam o
seu aprofundamento.

3.1.1 Da geografia corográfica à formação da geografia tradicional

De início, é importante destacar essa geografia de base corográfica existe no


Brasil desde antes da sua institucionalização no currículo oficial de escolas da
educação básica. Corroborando essa compreensão Adriany de A. Melo, Vânia R. F.
Vlach e Antônio C. F. Sampaio (2006) informam que

[...] uma das primeiras “formas” oficiais de inserção da Geografia como


matéria escolar foi sua presença nos exames preparatórios para o ingresso
nas Faculdades de Direito. Porém, a Geografia já fazia parte do programa
do Curso de formação de Engenheiros Geógrafos Militares da Academia
Real Militar da Cidade do Rio de Janeiro, desde 1810. (MELO et alii, 2006,
p. 2691)

Feito esse pequeno destaque, foi somente no final da década de 1830 que a
disciplina Geografia vai surgir de forma institucionalizada no currículo prescrito de
um colégio de influência em âmbito nacional, com a chegada da disciplina no
currículo do Colégio Pedro II e em variadas escolas secundárias em várias
províncias brasileiras (COUTO, 2014).
Nos ajudando a melhor compreender esse processo, Rocha (2014) evidencia
que:
118

O ensino da geografia escolar no Brasil não teve no Colégio Pedro II o seu


berço, porém foi neste estabelecimento de ensino, por intermédio de seus
regulamentos, que ocorreu a sua institucionalização e consolidação
enquanto componente curricular obrigatório no Brasil. (ROCHA, 2014, p.32)

Sobre o público-alvo e a inserção da disciplina no currículo escolar desse


colégio em questão, também é importante destacar que,

[...] no século XIX, primeiro sob o Império e depois sob a República, a


educação brasileira continuava sendo voltada para a classe dominante: um
seleto grupo de "intelectuais, profissionais liberais, militares, funcionários
públicos, pequenos comerciantes e artesãos".
Foi de certa forma por causa desta classe dominante que a Geografia
tornou-se uma matéria escolar específica quando, em 1831, passou a ser
requisito nas provas para os Cursos Superiores de Direito. Ser Bacharel em
Direito e futuro administrador de Cargos Públicos era um dos objetivos das
principais famílias da época. (MELO et alii, 2006, p. 2685)

Ademais, mesmo sendo criada e institucionalizada em um período de


intensas mudanças,

Durante todo o período imperial, o ensino de geografia manteve-se quase


que totalmente inalterado. Tanto metodologias quanto conteúdos
programáticos permaneceram imutáveis no currículo prescrito oficialmente
por décadas seguidas. No máximo, as diferentes legislações voltadas para
dar organização ao ensino do Imperial Colégio de Pedro II promoveram
algumas mudanças superficiais a fim de melhor reordenar o programa de
ensino dando-lhe uma feição mais coerente. (ROCHA, 2014, p.32)

Ao contextualizar esses dados à época da sua formação, percebe-se que


desde o seu processo de construção, a escola e consequentemente a geografia
trabalhada nesses ambientes possuía também um recorte de raça, uma vez que
apesar da independência política do Brasil em 1822, o processo de escravização só
vai ser legalmente abolido em todo o território nacional no ano de 1888 e a escola só
vai se popularizar no século XX.
Também se atentando para esse recorte político-social da época, mas sem
perder o viés pedagógico, Marcos Couto (2015) adverte que a Geografia presente
no CPII durante o século XIX, além de ser lecionada em uma escola direcionada
para uma elite branca, possuía um viés descritivo, centrado em uma pedagogia
tradicional. Para além disso, o referido autor indica que nesse currículo já
apresentava algumas ideias vinculadas a algumas escolas de pensamento de
origem europeia, como o positivismo cientificista e o liberalismo.
Também contribuindo para entender o currículo desse colégio e a geografia
que era ensinada, Rocha (1998) explica que:
119

As disciplinas escolares foram concebidas mais como sendo instrumentos


de divulgação de uma cultura universal a qual os filhos de nossas elites
deveriam ter acesso para estarem paripassus com o “mundo civilizado”, o
mundo branco europeu, do que, como recursos de inculcação de uma
ideologia nacionalista como teimam afirmar alguns. Somente mais tarde, à
medida que o projeto nacional de nossas elites começa a se consolidar, a
finalidade do currículo escolar e da disciplina geografia mais
especificamente, passa a ter como finalidade a construção do nacionalismo
e do patriotismo. (ROCHA, 1998, p.11)

A consolidação desse projeto nacional, em aliança com a Proclamação


República e o intenso movimento de reformas na educação básica, vai fazer com
que a geografia passe por intensas mudanças. Sobre essas reformas, Couto (2015)
elucida que:

[...] neste período a educação brasileira sofre várias Reformas nacionais


(Fonseca, 1956; Colesanti, 1984): Benjamin Constant (1890), Epitácio
Pessoa (1901), Rivadávia Correa (1911), Carlos Maximiliano (1915), Rocha
Vaz (1925), Francisco Campos (1932), Gustavo Capanema (1942) e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB de 1961). É, sobretudo, o
período do movimento da escola nova na educação brasileira da década de
1920 e que tem no Manifesto dos Pioneiros da Educação de 1932, um dos
seus episódios marcantes. [...] Neste período a escola pública se expande
acompanhando a transição do Brasil agrário-exportador para urbano-
industrial e a luta do povo por ascensão social. (COUTO, 2015, p.111-112)

Nesse interim, a geografia de base corográfica que permaneceu praticamente


inalterada durante todo o período imperial, vai começar a perder espaço e de certa
forma se hibridizar para formar o que é conhecido atualmente como Geografia
Tradicional. Buscando elucidar o processo, Antônio Carlos Pinheiro (2003) indica
que, influenciado pelo escolanovismo, Delgado de Carvalho, enquanto professor do
Colégio Pedro II, vai introduzir no Brasil uma perspectiva de geografia que
tensionava a base corográfica presente até então.
Apesar de complexificar a geografia de base corográfica, as publicações de
Carvalho coadunavam com o pensamento hegemônico da época, principalmente
com a procura por difundir o nacionalismo para as gerações mais novas e demais
setores da sociedade (ZUSMAN e PEREIRA, apud PINHEIRO, 2003). Cabe
destacar ainda que

[...] Delgado de Carvalho não conseguiu ultrapassar o estudo das relações


entre o homem e o meio, "valorizando o estudo das características naturais,
deixou a sociedade em segundo plano como objeto de estudo da Geografia,
dando a natureza um caráter de base para a compreensão dos fatos
humanos". (PINHEIRO, 2003, p.21-22)
120

Ainda sobre o processo de “modernização” da geografia, Rocha (2014)


salienta que:

A negação ao modelo de geografia implementado e mantido no Brasil


durante todo o período imperial, só passou a sofrer críticas oficiais quando
as ideias cientificistas, fundamentadas no positivismo, ganharam adeptos
em uma nação que se quis moderna. Somente em fins do XIX é que
debates oficiais se deram em torno da proposta de se implantar nas salas
de aulas brasileiras a chamada geografia moderna, paradigma então
emergente no seio da ciência geografia e que, segundo a historiografia hoje
existente, só viria se manifestar no Brasil nos anos 20 do século passado.
(ROCHA, 2014, p.33)

Nesse período, a geografia ganha uma forma mais parecida com a que
conhecemos hoje, principalmente a passar de uma corografia desconexa e
descritiva para uma geografia centrada nos aspectos naturais das regiões do Brasil
– em grande parte, com o objetivo de criar uma imagem de Brasil e
consequentemente, uma identidade nacional.
Cabe salientar, que apesar da mudança, a Geografia vai continuar descritiva,
sendo a grande diferença essa passagem para uma Geografia centrada nos
aspectos naturais das diferentes regiões do Brasil, como forma de criar a imagem de
identidade nacional (ROCHA, 1998). Assim, apesar da incorporação de um viés um
pouco mais explicativo e da adoção de uma visão regional, no campo pedagógico, a
geografia vai permanecer com um viés tradicional de currículo, marcado pela
descrição e memorização dos conteúdos. É importante destacar ainda, que essa
forma de ensinar geografia foi incorporada na nossa tradição geográfica, e até certo
ponto, permanece nos livros didáticos e na prática de professores e professoras até
os dias atuais.
Segundo Pinheiro (2003), nesse período, a geografia ensinada nas escolas
valorizava mais as características naturais do que a sociedade, “dando a natureza
um caráter de base para a compreensão dos fatos humanos" (PINHEIRO, 2003,
p.22). Dessa forma, nessa geografia acabava-se estudando uma relação humano-
natureza sem que nesse processo se fizessem ligações com as relações sociais
existentes no período.
Um fator fundamental na consolidação desse olhar de Geografia na educação
básica e consequentemente na construção de uma tradição geográfica, foi
inauguração dos cursos de Geografia na Universidade de São Paulo (USP) e na
Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) e a
121

contratação de diversos geógrafos vinculados a uma escola francesa de base


lablacheana. Com o surgimento desses cursos vai aparecer também a figura do
licenciado em Geografia (COUTO, 2015), ou seja, nesse período passam a ser
formados profissionais com o objetivo específico de lecionar a disciplina em questão.
Concomitantemente, a esse processo é

[...] neste período que há grande expansão da escola pública que salta de
1.142.702 matrículas em 1920 para 18.896.260 em 1970, para a população
de 5 a 19 anos (Romanelli, 1991). [...] A educação, sobretudo a escola
secundária, passa a ter uma nova função, a de formar para o trabalho, e
não apenas ser passagem para estudos superiores. Ou seja, a escola,
mesmo que aos poucos, vai sendo ocupada por novos personagens:
setores médios e, depois, os pobres. (COUTO, 2015, p. 116)

Junto com isso, Pinheiro (2003) destaca que graças às reformas iniciadas no
governo Getúlio Vargas – em especial a reforma Capanema de 1942 – a escola vai
passar a ter o papel de educar para a pátria, com o nítido objetivo de construir e
consolidar um nacionalismo patriótico. Para atender a esse objetivo, a Geografia
passa a ser obrigatória em todo o território nacional.
Assim, os novos geógrafos formados a partir desses cursos anteriormente
falados, além de atuar principalmente nessa escola pública que estava em franca
em expansão, vão implementar em seus currículos uma geografia fortemente
influenciada pelos estudos regionais de Vidal de La Blache. Entende-se que esse
processo ajudou com que se popularizasse e “normatizasse” essa forma de pensar e
ensinar Geografia.
Ainda sobre a ascensão desse modelo francês, diante da geografia
anteriormente ensinada, Rocha (1998) ressalta que,

[...] duas foram as orientações que nortearam a trajetória desta disciplina.


Não houve entre elas um simples processo de substituição por evolução,
mas um complexo processo de conflitos que resultou numa
complementaridade tornada modelo hegemônico em nossas salas de aulas
até por volta das décadas de 70 e 80 deste século, quando se iniciou um
novo processo de conflitos no interior desta disciplina. (ROCHA, 1998, p.4)

Com isso, apesar das inúmeras reformas educacionais, e das disputas


internas do campo, até meados de 1970 a Geografia que se ensinava vai ser um
hibrido entre a geografia corográfica, a geografia lablacheana e a teoria neokantista,
fato que só vai começar a mudar com o crescimento do debate sobre a necessidade
de uma renovação crítica da Geografia.
122

Ainda sobre essa influência francesa na geografia que se ensinava, Rocha


(1998) aponta que “O modelo francês foi invocado pelas elites/autoridades políticas
brasileiras para dar organização a nossa educação escolar como um todo, e ao
ensino de geografia em particular.” (idem, ibdem, p.11).
Adensando o debate, Pinheiro (2003) destaca que além dos cursos
específicos para a formação dos geógrafos, grande parte dos materiais didáticos
produzidos também vai refletir o modelo dos livros didáticos produzidos na França.
Sobre essa extensão dessa influência, o autor elucida que:

Anteriormente, no final do século XIX e começo do XX, eram copiados


integralmente, segundo o modelo francês, depois foram sendo adaptados
introduzindo dados sobre o Brasil. Portanto, os alunos estudavam
basicamente a Geografia referenciada na França. (PINHEIRO, 2003, p. 24)

Ainda sobre o papel dos materiais didáticos, Ferreira (2009) aponta que os
livros didáticos de Aroldo Azevedo21 tiveram um papel fundamental para a
consolidação dessa escola francesa na geografia. Devido a sua ampla penetração
nas escolas, esses livros podem ser considerados como um dos responsáveis por
consolidar o estudo da geografia a partir dos eixos “Natureza-Homem-Economia”,
um padrão estruturante para o ensino de geografia até os dias atuais.
Sobre esse padrão, é importante destacar ainda que,

Na Escola, o ensino de Geografia, baseado no padrão N-H-E reificou um


modelo de explicação do mundo baseado na descrição das características
das regiões. Neste sentido o objeto de estudo da Geografia é o de explicar
a região. Com isto desenvolveu-se uma abordagem fragmentada moldada
pelas “especialidades da Geografia” – o estudo do relevo, dos diversos
climas, das formas vegetais, da distribuição da população, das redes de
cidades, da localização das principais atividades econômicas. Por outro
lado, a fragmentação da abordagem – principalmente a cisão entre as
chamadas Geografia Física e Geografia Humana – consolidou o caráter
descritivo da Geografia Tradicional. A Geografia Física tornou-se o terreno
da classificação de tipos (de unidades de relevo, climas, hidrografia,
vegetação) e de sua delimitação territorial. (FERREIRA, 2009, p. 45)

21
“Silva (1996) afirma que durante o período de 1930 a 1970 consagrou-se um ensino de Geografia
compartimentalizado na estrutura Natureza-Homem-Economia que exaltava o Estado e que esta
estrutura foi muito difundida no ensino escolar pelas obras de Aroldo Azevedo que no período de
1934 a l974 vendeu mais de 11 milhões e 200 mil exemplares, cifra bastante expressiva para o
período e até para os dias atuais. Afirma ainda, que não se tem notícia de em outra área de ensino de
tamanha hegemonia. Aponta que a disseminação do livro didático da maneira como ocorreu
caracterizou a difusão de forma e conteúdo arraigado de uma concepção de mundo, consolidando na
sociedade brasileira uma forma exclusiva de ler geograficamente o Brasil e/ou outros fenômenos.”
(FERREIRA, 2009. p. 44)
123

Como essa perspectiva de geografia vai se fazer hegemônica até meados da


década de 1970, essa concepção baseada nos estudos das regiões a partir do
modelo N-H-E vai construir grande parte da tradição geográfica brasileira. É essa
tradição, que permite que mesmo com mudanças de perspectivas nos currículos
prescritos e nos livros didáticos, esse ainda seja um modelo utilizado para organizar
ou propor formas de ensinar geografia até os dias atuais.
Mas se esse padrão é utilizado atualmente, qual a contribuição do movimento
de renovação crítica da geografia para a geografia que se ensina hoje? Quais as
principais perspectivas envolvidas nesse processo? Qual a sua contribuição para a
formação da tradição geográfica? Quais os conhecimentos foram valorizados e
quais foram renegados com essa renovação? Essas são algumas das questões que
buscaremos trabalhar a seguir.

3.1.2 A renovação crítica da geografia: ruptura, consolidação e aprofundamento

Como mencionado anteriormente, até meados da década de 1970, a


geografia tradicional orientava teórica e metodologicamente grande parte da
geografia praticada/ensinada no ensino superior e na educação básica. Contudo, por
volta da metade da década de 1970 e início da década de 1980 vai emergir na
geografia brasileira uma forte crítica a geografia ensinada na educação básica e na
educação superior. A esse movimento se deu o nome de Renovação Crítica da
Geografia.
Segundo Vesentini (2013),

Pode-se dizer que os pressupostos básicos dessa “revolução” ou


reconstrução do saber geográfico consistiram e consistem na criticidade e
no engajamento. Criticidade entendida como uma leitura do real – isto é, do
espaço geográfico – que não omita as suas tensões e contradições, tal
como fazia e faz a geografia tradicional, que ajude a esclarecer a
espacialidade, das relações de poder e de dominação. E engajamento visto
como uma geografia não mais “neutra” e sim comprometida com a justiça
social, com a correção das desigualdades socioeconômicas e das
disparidades regionais. (VESENTINI, 2013, p.222-223)

Esse movimento vai ser incorporado por diversas universidades e secretarias


estaduais e municipais de educação.
124

Os licenciados egressos sobretudo das universidades públicas ou que


acompanhavam os vários eventos da AGB vinham participando dos debates
entre os representantes das diferentes tendências da Geografia produzidas
nas universidades e que, direta ou indiretamente, influíam no ensino
fundamental e médio. Nas décadas de 80 e 90, variada produção sobre o
ensino da disciplina foi posta à disposição de seus professores e dos
responsáveis pela formação docente no País.
As Secretarias de Educação de vários Estados do País, ao produzirem suas
propostas curriculares de Geografia para o primeiro grau, via de regra em
convênio com as universidades, organizaram cursos para a capacitação
docente, possibilitando o acesso às diferentes metodologias ligadas aos
movimentos de renovação do ensino da disciplina. (PONTUSCHKA,
PAGANELLI e CACETE, 2007, p.67)

Sobre esse processo, é importante destacar que ele não foi homogêneo, e
nem deve ser entendido como tal. Em linhas gerais, é possível entender a
renovação crítica da geografia a partir de dois amplos movimentos: i) o movimento
de ruptura, que vai ser marcado pela negação de assuntos e práticas geográficos,
mas em certa metida vinculados à Geografia Tradicional e ii) o movimento de
consolidação das críticas, e com isso uma gradativa retomada e inserção de
diversos assuntos antes negados.
Contudo, assim como aponta Ferreira (2009), além da retomada de algumas
matérias como a Cartografia, esse segundo momento vai ser responsável por
aprofundar a renovação crítica, principalmente através do contato com outras
críticas que não estavam nitidamente postas no momento da ruptura.
Com isso, optou-se nesta dissertação por trabalhar processo de renovação
crítica da geografia com um só movimento, mas dividido três momentos interligados,
complementares e de certa forma concomitantes. São eles: i) O momento de ruptura
com a geografia tradicional, ii) o momento de consolidação de uma geografia crítica
– sobretudo de base marxista, iii) a emergência de novas temáticas vinculadas as
teorias pós-critica e a pedagogia.
Sobre a ruptura com a geografia tradicional, é importante destacar que esta
se deu através do entrecruzamento de fatores internos à Geografia (como a tentativa
de criar uma geografia que fosse mais próxima da realidade do aluno, trazer a tona
uma geografia que refletisse as tensões políticas e econômicas da época) e fatores
externos (como o aumento do debate sobre a perspectiva crítica dentro da
educação, as reformas que atingiram todo o sistema educacional, e a emergência de
diversos atores na luta pela redemocratização do país).
125

Esse entrecruzamento de fatores internos e externos faz com que seja


necessário, mesmo que de forma sucinta, vincular o contexto político brasileiro, com
a eclosão de lutas educacionais no Brasil, e em outras partes do Mundo, e as
próprias disputas presentes no interior da Geografia.
No que tange ao sistema educacional brasileiro, uma das principais
mudanças vai ocorrer com a reforma praticada pelo governo que assumiu o poder
após o golpe civil-militar de 196422. Com essa reforma, o governo federal –
fortemente influenciado pela Teoria do Capital Humano e pela Tecnologia
Educacional – assumiu como discurso oficial, a luta por tornar a escola mais
eficiente (PINHEIRO, 2003).
Na prática, a eficiência defendida pelos militares e seus apoiadores carregava
a tentativa de ampliar o objetivo dado às escolas públicas, possibilitando criar para
além de um sujeito nacionalista, uma “engrenagem” para o “progresso”. Dessa
forma, uma escola eficiente seria responsável por criar um grande exército de mão-
de-obra qualificada, o que seria, no discurso do governo, fundamental para o
desenvolvimento econômico do país.
Nesse panorama, disciplinas como Geografia e História (obrigatórias em todo
o currículo escolar desde a reforma de Capanema), são substituídas pela disciplina
de Estudos Sociais.

[...] O texto original da Lei Federal 5.692/71, em relação a Estudos Sociais,


expressava o seguinte: "proporcionar ao educando a formação necessária
ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-
realização, qualificação para o trabalho e prepare para o exercício
consciente da cidadania" (HOFLING, 1986 p.13-14). Percebe-se, por essa
ideia, a orientação voltada ao ensino técnico-profissional, desvalorizando
disciplinas consideradas "não-técnicas", como História, Geografia e
Filosofia, destinadas a formação geral do aluno, e suas cargas horarias
diminuídas dando lugar as disciplinas de caráter "mais-técnico", como as
ciências exatas e naturais. (PINHEIRO, 2003, p.29)

Como salienta Couto (2015), essa reforma no ensino básico vai se configurar
em um relevante momento do processo de mudança da concepção de escola e da
geografia ensinada na escola básica. Ao contextualizar o período em que ocorreram
essas mudanças, o autor relembra que nas décadas de 1970-80 e 1990-2000 (esse

22
Realizado em um período de eclosão de governos ditatoriais em toda a América Latina, esse golpe
vai se estender até 1985, com a eleição indireta de um civil. É importante salientar que atualmente,
diversos documentos evidenciam o papel do governo estadunidense nessa ditadura que perseguiu
minorias e os movimentos sociais.
126

segundo em um contexto de efervescência do neoliberalismo em diversos países da


América Latina), vai ocorrer o crescimento das ideias de educação produtivista, onde
o estudante é preparado somente para o mercado de trabalho.
Contudo, “[...] entre os dois momentos da educação produtivista, houve
grande retomada das pedagogias críticas de diferentes tendências da educação
popular, da perspectiva anarquista e do materialismo histórico-dialético.” (COUTO,
2015, p.112).
Adentrando um pouco mais no processo de ruptura com a Geografia
Tradicional, e ressaltando a contraposição com essa educação produtivista, André
Tinoco de Vasconcelos (2015) aponta que “na geografia se buscava novas formas
de ler o mundo com o objetivo de transformá-lo; e no Brasil o Encontro Nacional de
Geógrafos (ENG) de 1978 foi o marco” (VASCONCELOS, 2015, p.132).
Pinheiro (2003), Melo et alii (2006), Ferreira (2009), entre outros autores, ao
discorrerem sobre esse período, também ressaltam a importância de entidades
como a AGB, não só no que se refere a denúncia ao projeto de educação e
sociedade defendido pelo governo civil-militar brasileiro e seus apoiadores, mas na
articulação de diferentes profissionais e estudantes de Geografia através dos seus
encontros nacionais.
Como aponta Charlles da França Antunes (2008),

O movimento que se estruturou na geografia brasileira no final dos anos 70


e avançou pela década de 1980, caracterizou-se por um forte conteúdo
ideológico e isso tinha perfeita razão de ser, em virtude de estarmos em
plena luta pela abertura política do país. Almeida (2000:103), ressalta que,
no caso da Geografia, três espaços foram prioritários de lutas, “enquanto se
aguardava os movimentos do tabuleiro do poder político nacional que se
desenrolava no Congresso Nacional”. O primeiro desses espaços foi a
universidade; o segundo foi AGB; e o terceiro espaço era a “geografia
oficial”, isto e as instituições de planejamento governamental, e nesse
espaço o destaque era o IBGE.
No entanto, foi na AGB, o objeto dessa tese que essas transformações
tiveram maior impacto, principalmente se considerarmos o curto intervalo de
tempo percorrido nesse processo de transformação. Entre as instituições
mais fortemente ligadas à Geografia brasileira, foi sem dúvida a AGB àquela
que mais rápida e profundamente sentiu em sua estruturação e projeto
político o movimento de transformação/renovação em curso a partir do final
dos anos da década de 1970. (ANTUNES, 2008, p.270)

Esse viés político também pode ser percebido no III Encontro Nacional de
Geógrafos que ocorreu na cidade de Fortaleza. Segundo Ferreira (2009),

O 3º ENG foi rigorosamente um encontro. Não apenas no sentido formal


dos profissionais de Geografia, mas um encontro de experiências que
127

vinham se desenvolvendo em todo o Brasil, em diferentes lugares, por


diferentes pessoas, dentro de uma perspectiva crítica. Um encontro que
acontece num momento onde a sociedade brasileira passava por grandes
transformações, com o reaparecimento de importantes agentes sociais,
como o movimento operário e o movimento estudantil. (FERREIRA, 2009, p.
37)

Além do ENG, Moreira (2000) destaca que obras como “A geografia - isso
serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, de Yves Lacoste (1976), “Por uma
Geografia Nova” de Milton Santos (1978) e “Marxismo e Geografia” de Massimo
Quaini (1979), foram fundamentais para criar bases teóricas para que essa ruptura
ocorresse. Junta-se a essas obras, as revistas, uma vez que,

[...] em todo processo de ruptura, a ação dos grandes corpos de batalha,


esses “exércitos clássicos”, pesados, que são os livros, necessitam da
ajuda do trabalho leve dos pequenos e ágeis grupos de guerrilha que são os
textos das revistas. É através das revistas que em geral se toma o primeiro
conhecimento do que está circulando nos embates. Portadoras em geral de
ensaios, cumprem elas o papel de agitar as idéias, reciclar o vocabulário,
ecoar os paradigmas, pavimentar a nova fronteira, mobilizar os intelectuais
para a novidade dos debates. Por meio delas, os velhos assuntos
assimilam-se e se reciclam na trama das novas informações e idéias,
contemporaneizando-se com elas. São as revistas as caixas de ressonância
dos temas em voga e que os leva a transbordar para além das próprias
fronteiras acadêmicas.
Foi esse o papel cumprido por Antipode, Herodote, Boletim Paulista de
Geografia, Território Livre, Contexto, Temas de Ciências Humanas,
Encontros com a Civilização, Vozes, revistas que costuraram o imaginário
das novas idéias e alimentaram o circuito das mudanças, como Milton
Santos esclarece na resenha-balanço Sobre Geografia Nova, nos
Periódicos. (MOREIRA, 2000, p.32)

Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira,

Esse movimento crítico aparece entre nós como geografia nova, geografia
crítica, etc., tem como elemento unificador a utilização do materialismo
histórico e dialético como corpo teórico e metodológico de investigação da
realidade. [...] Ou seja, resgatamos para a geografia, um século depois, a
teoria e o método que abriram caminho à superação dessa “questão” –
dessa falsa questão, portanto, nos limites da própria geografia. E que,
certamente, vem para abrir caminho e fazer avançar além da geografia
(OLIVEIRA, 2014, p.27)

Apesar da proeminência da matriz teórica marxista, é possível ver que alguns


dos principais autores como Lacoste não eram marxistas, para além, é perceptível
que existiam outras matrizes teóricas como a fenomenologia, que também foram
responsáveis por desenvolver críticas a Geografia Tradicional (MOREIRA, 2000).
Devido a isso, assim como Moreira (2000), no presente estudo entende-se que
128

apesar da hegemonia da matriz marxista, o que vai existir desde o momento de


ruptura é a formação de “geografias críticas”.
Além dessas dinâmicas internas ao campo, destaca-se que essa renovação
também tem forte influencia do campo das teorias curriculares apresentadas no
capítulo anterior. Dentre essas influências, destacam-se primeiramente as ligações
com teorias críticas que vão surgir através da ruptura com as teorias tradicionais de
currículo.
Sobre essa ruptura ocorrida dentro do campo das Teorias Curriculares, Silva
(2010) indica que a crítica ao currículo tradicional se deu através da mobilização de
conceitos como resistência e ideologia, conceitos esses que vão ter como bases
referenciais importantes como Paulo Freire, com “A pedagogia do Oprimido” (1970),
Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passaron, com “A reprodução” (1970), Michael
Young, com “Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education”
(1971), Michael Apple, com “Ideologia e currículo” (1979), entre outros.
Dessa forma, assim como Ferreira (2009), entende-se que:

De certo modo a Geografia Crítica no Brasil também surge contestando a


Geografia Tradicional positivista e a Geografia Nova de fundamentação
teórica neopositivista. Em comum, a teorização crítica do currículo e
Geografia Crítica apresentam uma contestação de cunho social, ambas são
reflexos dos movimentos sociais de caráter classista, de liberdade e
emancipação, que vão emergir nos anos de l960 pela Europa e Estados
Unidos e no Brasil nos anos de 1970, junto com o movimento de
redemocratização do país e pelo fim da ditadura militar. (FERREIRA, 2009.
p. 32-33)

É importante destacar que atualmente tem crescido o contato da geografia


com as teorias pós-críticas do currículo. Sobre esse contato, Vasconcelos (2015)
destaca que “elas buscam ampliar o campo de análise, que nas teorias críticas fica
restrito às relações econômicas e a clivagem de classe, a crítica ao poder e a
dominação é alargada para as clivagens de raça, gênero, sexualidade, etc.”
(VASCONCELOS, 2015, p. 135).
Contudo, como será visto posteriormente, a ampliação e desenvolvimento
desse campo de análise só vai ser possível após a consolidação da renovação
crítica dentro da geografia. Isso se dá, pois como falado anteriormente, esse
primeiro momento de ruptura, vai ser marcado pela negação de diversos saberes
vinculados com a Geografia Tradicional, inclusive aqueles atualmente considerados
fundamentais para desenvolver os raciocínios centrados do espaço.
129

Sobre esse processo de negação, ressalta-se que a retirada e a inserção de


determinados conteúdos, não rompeu totalmente com a lógica enciclopédica, tão
pouco com o viés conteudista presente na Geografia Tradicional. Sobre a primeira,
Jean-Michel Brabant (2014) destaca que “O enciclopedismo contribuiu para a
abstração crescente do discurso geográfico, ao mesmo tempo em que alimenta o
tédio das gerações e de alunos que classificam a geografia entre as matérias a
memorizar.” (BRABANT, 2014, p.19)
Já sobre o viés conteudista, destaca-se que a movimento de renovação crítica

[...] a princípio, minimizou a reflexão sobre novos procedimentos de ensino-


aprendizagem fazendo prevalecer à lógica conteudística que predominava
no período anterior. Os novos currículos e programas priorizaram o acúmulo
de informações em detrimento da ênfase no desenvolvimento de novas
formas de linguagem. (FERREIRA, 2009, p.48)

Apesar de existirem autores que buscaram traçar outros caminhos


(FERREIRA, 2009), a partir de uma percepção similar, André Tinoco de Vasconcelos
(2015) aponta que, apesar das discussões críticas no currículo de geografia, a
manutenção dessa lógica conteudística, pode ser umas das responsáveis pela
manutenção do ensino pautado na estrutura N-H-E, presente nos espaços escolares
desde a Geografia Tradicional. Sobre essa manutenção, Ferreira (2009) elucida que,

Parece claro que a Geografia crítica busca trazer para dentro de si e do


ensino uma aproximação, cada vez maior da ciência com a realidade dos
educandos. Contudo a tradição conteudística leva em primeiro lugar as
transformações dos conteúdos, mas o como ensinar esses novos conteúdos
é uma questão a ser construída e desenvolvida. (FERREIRA, 2009, p. 50-
51)

Ao discorrer sobre essa dimensão dos conteúdos e o período de transição


entre a ruptura com a Geografia Tradicional e a consequente consolidação da
geografia de base crítica no ensino básico, Vasconcelos (2015) destaca que

Esses novos elementos que farão parte de currículos de geografia ganham


foco a partir do fim da década de 80, mas principalmente nos anos 90;
consideramos uma ampliação da geografia crítica na escola, pois naquele
momento ganhavam espaço na escola algumas questões antes
negligenciadas, por exemplo, a preocupação com o processo de ensino e
aprendizagem, não se limitando aquela discussão de novos conteúdos, mas
sem atentar para buscar um rompimento também com os métodos de
ensino tradicional.
Antes, então o que importava era o “o quê ensinar em geografia” a busca
pela inserção de conteúdos que façam a crítica da sociedade como está,
mas hoje se destacam também reflexões de “para quê ensinar” e “como
ensinar”. (VASCONCELOS, 2015, p. 135)
130

À vista disso, uma discussão mais profunda sobre as metodologias utilizadas


para ensinar geografia vão ganhar espaço com a consolidação dessa geografia
crítica, sobretudo de base marxista. Sobre esse momento, Ferreira (2009) aponta
que ele também vai ser caracterizado pela introdução de outros temas não
tradicionais ao ensino de Geografia, e pela produção de saberes críticos ao Estado e
ao grande capital.

Neste momento os conteúdos tornam-se meios para atingir determinados


objetivos e não o fim em si mesmo. Os conteúdos são instrumentos para
formar conceitos geográficos e esses conceitos servem para formar um
raciocínio espacial. A preocupação agora é de construir um método que
leve o aluno a pensar e ler o espaço geográfico. Nas novas propostas
curriculares para o ensino de Geografia o professor é visto como mediador
do processo de alfabetização do espaço geográfico, ensinar Geografia e
aprender a ler o mundo através de através de uma rede ou um sistema
conceitual próprio desta ciência (Espaço, Território, Lugar, Paisagem,
Região, Natureza, Sociedade, etc.). (FERREIRA, 2009, p. 48-49)

Partes dessas novas propostas foram apresentadas no “I Encontro Nacional


de Ensino de Geografia - Fala Professor”, realizado pela AGB em Brasília em 1987,
ou seja, nove anos após o 3º ENG. Esse encontro possibilitou consolidar e de certa
forma ampliar as discussões envolvendo a renovação crítica da geografia na
educação básica, fazendo com que os professores tivessem um espaço privilegiado
para essas discussões.
Sobre esse encontro, Astrogildo L. de França Filho, Charlles da F. Antunes e
Felipe M. Fernandes (2015), indicam que

[...] O objetivo maior que orientava a sua realização era debater e elaborar
estratégias capazes de transformar o ensino de Geografia do 1º e 2º graus,
referindo-se a uma ciência que tivesse como premissa buscar
dialeticamente a integração do arranjo espacial com as relações existentes
em cada momento histórico, ou seja, uma geografia comprometida com a
realidade social. (FRAÇA FILHO, et alii, 2015, p.351)

Assim, além de impactar nos conteúdos abordados, esse encontro levantou


sérios questionamentos sobre as metodologias utilizada no ensino de geografia,
assim como os seus objetivos. Nesse sentido, Nídia N. Pontuschka, Tomoko I.
Paganelli e Núria H. Cacete (2007) apontam que nesse encontro:

[...] alguns dos professores idealizadores da proposta explicitaram suas


posições teóricas e a necessidade de novas metodologias para a
compreensão do espaço geográfico, com base em uma ciência que,
dialeticamente, buscasse a integração do arranjo espacial com as relações
sociais existentes em cada momento histórico.
131

As 2 mil pessoas presentes nesse evento instigante e polêmico refletiram


sobre as ansiedades e dúvidas dos professores de Geografia de todos os
Estados do País, ou seja, sobre o que ensinar, como ensinar e como avaliar
os conhecimentos geográficos dos diferentes níveis de ensino com base na
chamada Geografia Crítica. (PONTUSCHKA, PAGANELLI e CACETE,
2007, p.71)

Por sua estrutura não ter sido organizadas a partir de eixos e sub-eixos
definidos (FRANÇA FILHO et alii, 2015), e por ter sido um encontro direcionado aos
professores da educação básica, ele possibilitou reunir diversos profissionais que
tem na educação básica o seu campo de atuação. Dessa forma, assim como o 3º
ENG, foi importante para a discussão na geografia de uma forma geral, pode-se
considerar o Fala Professor como um marco da Geografia Crítica, só que esse
referente especificamente ao debate na educação básica.
É importante destacar que, concomitantemente a essa consolidação, houve
tanto na academia, quanto na educação básica, uma aproximação com o campo
pedagógico e consequentemente um aprofundamento não só do que deveria ser
trabalhado, mas como se deveria ser ensinada a Geografia nas escolas. Sobre isso,
salienta-se que,

No final dos anos 1980 e ao longo dos anos de 1990, passa a ocorrer um
incremento na inovação da discussão sobre o papel da Geografia na escola,
vários autores e propostas curriculares, procuraram trazer para dentro da
discussão da Geografia escolar o papel dos conteúdos desta ciência no
processo de ensino-aprendizagem. As novas propostas curriculares do
período mudam o foco do debate e levam as questões relativas aos
conteúdos para dentro da discussão pedagógica. (FERREIRA, 2009, p. 48)

Contudo, ao problematizar a chegada da discussão no ambiente escolar,


Jorge Luiz Barcellos da Silva (2002) aponta que o movimento de renovação crítica
demorou a adentrar a sala de aula. Sobre essa demora, o autor destaca que a

[...] grosso modo, poderíamos assinalar que essa problemática teve maior
repercussão inicialmente no plano acadêmico, chegando posteriormente de
forma descompassada ao ensino de Geografia. Fato considerado revelador
de uma tradição da geografia formulada em sala de aula: um saber
desprovido de questionamentos sobre o seu significado, tanto de parte de
quem ensina, como de quem aprende. (SILVA, 2002, p. 314)

Ao problematizar os porquês da Geografia Crítica demorar a entrar nas salas


de aula, Pontuschka et alii (2007) apontam que essa demora reflete problemas
internos ao campo da Geografia, mas também indicam que existem diversas
barreiras externas a geografia que acabam influenciando a geografia que vai ser
132

praticada no ambiente escolar. Sobre essas barreias externas as autoras elucidam


que,

Segundo pesquisas realizadas junto aos professores, a impossibilidade de


mudanças foi atribuída às precárias condições de trabalho oferecidas pelas
escolas, ao número elevado de horas que se viam obrigados a cumprir e ao
grande número de alunos em sala de aula.
Os salários não condiziam com a necessidade de sobrevivência do
professor e de sua contínua atualização para o exercício consciente da
docência. (PONTUSCHKA, PAGANELLI e CACETE, 2007, p.67)

Contribuindo para compreender a presença da Geografia Crítica na sala de


aula, Cesar Augusto Caldas dos Santos (2013), também evidencia que:

[...] as mudanças pelas quais a Geografia enquanto ciência passou não


foram incorporadas no mesmo ritmo e no mesmo “tom” – ou seja, ipsiliteris -
pela disciplina escolar: se, por exemplo, a corrente geográfica que
predomina hoje nas universidades é a vertente crítica (com todas as suas
variações), na escola fica difícil definir a hegemonia de uma ou outra
corrente pelo caráter eclético da Geografia nas salas de aula. (SANTOS,C.,
2013, p.62)

Conscientes dessas dificuldades encontradas na consolidação da renovação


no ambiente escolar, inúmeros estudos e estudiosos, desde a década de 1980,
passaram a focar na discussão acerca do como ensinar geografia, contudo
diminuindo a importância da discussão sobre o que estava/está sendo ensinado.
Essa diminuição de importância fica latente quando se vê discussões a respeito dos
conteúdos, ficando restritas ao potencial metodológico deles em sala de aula.
Com isso, salvo algumas exceções, a cartografia e as representações
gráficas, por exemplo, deixam de ser problematizadas enquanto um
produto/produtoras de relações de saber-poder, e passam a ser utilizadas enquanto
um saber capaz ajudar o estudante a conhecer a sua posição no espaço geográfico
(mas não de tomar posição). Da mesma forma, matérias referentes ao processo de
formação do território brasileiro (e de sua população), tornam-se conteúdos
privilegiados, por exemplo, para ligar as discussões teóricas com “realidade” do
discente.
Tendo em mente que a tradição geográfica também anexou diversas
demandas da renovação crítica que emergiu no pós década de 1970, quais os
efeitos dessa não problematização para a geografia que se ensina hoje? Mais do
que isso, sendo essa tradição, uma amálgama de teorias e práticas de diferentes
tempos e espaços, qual papel a discussão racial ocupou na sua construção?
133

3.2 A geografia que se ensina, o racismo e as teorias pós-críticas: diálogos


para a construção de uma educação antirracista

Para além de compreender a construção da tradição geográfica, se faz


necessário entender como a temática racial esteve presente durante esse processo.
Ao mesmo passo que também é fundamental pensar caminhos para superar as
possíveis limitações presentes no campo do Ensino de Geografia.
É visando fazer esse duplo movimento que, no decorrer desse subcapítulo,
apresenta-se algumas discussões acerca da temática racial desde o processo da
institucionalização da geografia no CPII até os dias atuais. Junto a isso, busca-se
expor – através do diálogo com os debates realizados no segundo capítulo –
caminhos para superar possíveis limitações teóricas e metodológicas.
Antes de prosseguir com as ponderações, cabe destacar que o objetivo não é
cristalizar ou invisibilizar as múltiplas formas de ensinar e/ou aprender geografia, da
mesma forma que não se pretende tratar a geografia que se ensina enquanto um
campo estanque que somente sofreu/sofre influência de outras formas. Pelo
contrário, objetiva-se mostrar como a geografia que se ensina fez e faz parte da
construção do pensamento social brasileiro, tendo no seu processo de construção
agentes externos e internos com grande importância.
Cabe salientar ainda, a geografia se institucionalizou em uma época que a
educação era uma “exclusividade da elite branca, vetada aos escravos e aos
pobres” (COUTO, 2015, p.112-113). Mais que isso, foi institucionalizada em uma
época que tanto em âmbito nacional, quanto internacional, a dimensão racial era
central para as relações sociais.
Sendo assim, qual o papel a geografia realizou durante esse primeiro
período? Como era tratada a temática racial? Com o fim da escravidão e décadas
depois com a popularização da escola, houveram mudanças significativas no que se
refere o tratamento sobre a temática racial? Quais teorias foram mobilizadas para
(re)produzir o racismo? E quais ajudaram e/ou podem ajudar a combater o racismo
na geografia que se ensina? Se for observar a geografia ensinada e aprendida nos
tempos atuais, quais os caminhos para superar o racismo? Esses são alguns dos
debates que se pretende fazer a seguir.
134

3.2.1 Teorias raciais na geografia tradicional

Ao se iniciar pelo período da geografia de base corográfica, salienta-se que


devido ao seu poder de influência, o currículo do CPII é tomado como base para
fazer os apontamentos sobre a geografia que se ensinava e as teorias raciais por ela
passada. Essa escolha se dá devido ao seu alto grau de influência durante grande
parte da história do Brasil Império, e as primeiras décadas da República (ROCHA,
2014) e sobretudo, pelo fato CPII estar situado na atual cidade do Rio de Janeiro,
influenciando diretamente na geografia ensinada em todo o Estado.
Para realizar tal problematização, utiliza-se as contribuições de Rocha (2014)
que, ao tomar como base o currículo prescrito da disciplina de geografia para discutir
o processo de institucionalização da geografia na educação básica brasileira,
apresenta (in)diretamente uma série de contribuições para compreender quais os
conteúdos programáticos eram valorizados nessa instituição. Dentre essas
contribuições, destaca-se a sistematização dos conteúdos programáticos presentes
no currículo escolar do CPII no período do Brasil Império. Ao fazer isso, Rocha
(2014) apresenta em linhas gerais, qual era o currículo de geografia do ensino
secundário do referido colégio:

1- Terra, sua superfície, seus movimentos, principais circulos que nella se


traçam para localizar as terras e determinar as zonas thermaes.
2- Divisão das terras e do oceano.
3- Clima e sua influência sobre a distribuição dos vegetaes e animaes pela
superficie da terra. Das cinco grandes divisões das terras:
4- Mares, golfos, estreitos, seus accidentes physicos.
5- Ilhas, seus accidentes physicos.
6- Lagos, rios, lagunas, seus limites, suas dimensões e posições.
7- População absoluta e relativa. Governo e suas principaes formas.
Confederação. Estados soberanos e meio soberanos.
8- Divisão dos povos segundo seu desenvolvimento moral e suas raças.
Dos principaes paízes do globo:
9- Posição, limites, superfície.
10- População, governo, religião.
11- Divisão, aspecto e clima.
12- Producção, commercio e industria; importancia politica.
13- Cidades principaes.
(ROCHA, 2014, p.31, grifo nosso)

Apesar desse currículo ser datado (1887), como destacado no subcapítulo


anterior, o próprio autor indica que não houveram mudanças significativas nos
conteúdos programáticos. Dessa forma, se observar o ponto 8 da citação acima, é
135

possível ver que nesse currículo, que servia de referencia para as demais escolas
espalhadas pelo Brasil, existia um discurso racializado que buscava dividir o povo a
partir do seu “desenvolvimento moral” e da “raça”. Mais que isso, ao apresentar que
essa divisão deveria ser feita nos “principais países do mundo”, de forma (in)direta,
também inseria uma dimensão espacial, criando e/ou reafirmando um padrão de
hierarquização entre os países, quais eram os principais povos do mundo.
Como já apresentado no tópico anterior, essa geografia de base corográfica
vai ser hegemônica até as primeiras décadas do século XX, quando, através de um
processo de hibridização com a chamada “Geografia Moderna”, vai formar a
Geografia Tradicional. Ainda sobre esse processo, é importante destacar apesar das
suas particularidades e semelhantemente a outros campos científicos e
educacionais, o paradigma positivista vai ter uma grande influência na formação da
geografia enquanto ciência moderna (DINIZ, 2014) e também enquanto disciplina
escolar (COUTO, 2015).
Sobre esse período e a sistematização das ciências modernas nele ocorrido,
Diogo Marçal Cirqueira (2015) destaca que,

As ciências modernas que se conformaram no século XIX foram


severamente marcadas por processos históricos globais que envolviam o
colonialismo, o imperialismo, o incremento do capitalismo e a formação dos
Estados-nacionais. No discurso científico produzido então, ao lado do
desejo de universalidade e neutralidade herdado do iluminismo, existia – as
vezes silenciosamente as vezes de forma explícita – um senso de
hierarquização, etnocentrismo e vontade de poder profundos. A ciência
moderna (e colonial) de forma alguma foi um ato retórico e inocente sobre o
mundo; foi sim um discurso de poder que buscou definir, capturar e
subjugar "o mundo". Não é por acaso que essa ciência ajudou a criar e
consolidar as categorias, na verdade as “ficções”, mais eficientes e duráveis
da modernidade-colonialidade: as ideias de nação e raça - e de alguma
forma, a de classe. Por essas “insígnias” muitos povos iriam matar, morrer
ou serem mortos. (CIRQUEIRA, 2015, p.198)

Esses dados reforçam a percepção de que a “geografia moderna” também


apresentava elementos que coadunavam com a geografia de base corográfica,
ensinada durante o período imperial. Oferecendo dados valiosos para a leitura sobre
esse processo de sistematização da Geografia, Flávio Guimarães Diniz (2014),
destaca que,

Dois fatos históricos impulsionaram esse movimento do conhecimento


geográfico: a chegada do capitalismo a sua fase imperialista e a realização
de duas Conferências (A Conferência de Geografia, em 1876, em Bruxelas
e a Conferência de Berlim, entre os anos de 1884 e 1885) onde o continente
africano foi um dos panos de fundo para as disputas que ocorreram entre as
136

principais potências imperialistas da Europa Ocidental na época. (DINIZ,


2014, p.17)

Ao apresentar esses dados, assim como apresentado por Cirqueira (2015),


Flávio G. Diniz (2014) evidencia de forma direta que, junto ao processo de
sistematização dessa ciência, também esteve presente a mobilização de um amplo
cabedal teórico, conceitual e técnico, fundamental para justificar e solidificar um
conjunto de relações de poder, mas também através da sua mobilização no sistema
educacional, um conjunto de relações de saber
Se contextualizar com a época em que as conferências foram realizadas, é
possível observar, assim como apresentado no primeiro capítulo, que essas
relações de poder-saber se retroalimentavam e incorporavam diversos estudos que
objetivavam através de racismos de base espiritualista e/ou biomaterialista, justificar
essa expansão para novos territórios e consequentemente a sua exploração.
Ainda com relação a essa mobilização que exerceu influência no campo
cientifico e no campo educacional, se observar o continente africano, por exemplo,
nota-se que,

[...] a África, enquanto território e posteriormente como conteúdo escolar,


está intimamente ligada ao início do processo de constituição da Geografia
no campo científico, onde os conhecimentos geográficos foram utilizados
em prol da colonização, da reprodução do capitalismo e do aumento do
poder das potências imperialistas, ou seja, o conhecimento retirado de
longos estudos e expedições se transformaram numa arma que tinha a
dominação de territórios e povos originários como fim. (DINIZ, 2014, p.18)

Concomitantemente a esses processos que causavam uma série de


transformações nas relações socioespaciais ao redor do mundo, o Brasil também
passava por grandes mudanças na estrutura política, econômica, cultural e social. E
é na busca por mecanismos que pudessem solucionar as profundas diferenças
trazidas a tona durante esse período, que os intelectuais e políticos da época vão
encontrar na mobilização de preceitos da ciência positivista, horizontes
fundamentais para acomodar as tensões que emergiam no período (CIRQUEIRA,
2015).
Sobre o positivismo, a chegada dele no Brasil e a sua consequente influência
da construção de uma leitura que pudesse acomodar essas linhas divergentes
presentes em parte da sociedade brasileira, o supracitado autor, indica que:
137

A ciência positivista trouxe uma gama de leituras que (re)formaram


representações sociais e justificaram intervenções empreendidas pelo
Estado na realidade. Contudo, sem dúvida, as leituras sobre raça, a partir
dessa ciência objetiva, foram as que mais trouxeram efeitos a sociedade
brasileira. Na verdade, ao longo do século XIX, são muitos os momentos em
que a questão racial foi colocada em pauta, o que envolvia principalmente a
contenção de sujeitos tidos como “perigosos” para o sistema - escravizados
principalmente. Contudo, nos últimos anos da escravidão, concomitante aos
movimentos abolicionistas e aos graduais projetos de leis que extinguiam o
trabalho forçado, aumentavam as sublevações, fugas em massa e “greves”
de escravizados no campo, enquanto nas cidades se intensificavam as
mobilizações populares. [...]
Assim, terminada a escravidão, novos padrões de hierarquia se
estabeleceram, sendo precisamente a raça, definida pela ciência positiva, o
guia rumo a “ordem” e o “progresso”. Como presente na fala de vários
testemunhos de época (BARRETO, 2010) e na historiografia (SPITZER,
2001; GOMES, 2005; SCHWARCZ, 1993; SKIDMORE, 1976), o
determinismo racial no pós-abolição validou práticas e políticas que
afetaram grande parte da população e conformou um contexto de
exclusivismos e de isolamentos sociais extremos. (CIRQUEIRA, 2015, p.41)

Ao continuar sobre a influência do positivismo, Cirqueira destaca que:

A ciência positiva racialista lançava uma série de discursos que ligavam


aspectos externos da corporeidade de indivíduos a moral e a capacidade
cognitiva. Esse discurso, resguardado pela “objetividade” e “imparcialidade”
científica, afetou negativamente negros, mestiços e indígenas - os “grupos
inferiores”. Por outro lado, essa mesma ciência enaltecia e exaltava a
população brancóide existente na Europa; de forma simplista e reducionista,
esse continente e a sua população eram eleitos como o topo da civilização
e do desenvolvimento humano. Fruto de uma operação “lógica”, a
conclusão que muitos dos pensadores da época chegaram foi que o Brasil
não era desenvolvido porque éramos constituídos por uma grande
população de raça inferior e de degenerados. Rapidamente, a solução para
esse problema foi dado pela ciência positiva: para alcançar um lugar ao lado
das nações desenvolvidas e civilizadas deveria se constituir um estoque de
“raça superior”, a qual semearia as terras férteis e clementes do Brasil e
fomentaria a modernização com mão-de-obra apta ao trabalho livre e ao
modelo industrial. (Idem, ibidem, p.42)

Mas o que esses pensamentos têm a ver com a geografia que se ensinava?
Como é perceptível, as ideias defendidas por essa ciência positivista racialista
trouxeram à tona uma série de narrativas intrinsecamente ligadas a geografia, ideias
essas responsáveis por vincular os diversos grupos raciais a diferentes contextos
socioespaciais. Mais que isso, ao observar o currículo programático apresentado no
início do tópico, é visível que a geografia ensinada no CPII apresenta pontos de
similaridade com o que foi exposto pelo supracitado autor.
Da mesma forma, ao retomar as discussões realizadas no primeiro capítulo,
atenta-se que essas narrativas racializadas tiveram um grande efeito na sociedade
brasileira, fazendo com que várias problematizações referentes ao padrão de
138

relações raciais da sociedade brasileira possam ser visto (em formados parcialmente
diferentes) no imaginário de grande parte da população até os dias atuais.
Dentre essas narrativas que vão ter forte influência na geografia escolar e no
pensamento da sociedade brasileira, destaca-se: i) o determinismo geográfico,
enquanto uma conceituação racista que mobiliza a relação entre o meio e o povo
para justificar as disparidades sociais, econômicas e consequentemente as
hierarquizações raciais; e ii) o branqueamento, primeiramente enquanto teoria e
posteriormente como política mobilizada para justificar uma melhor exploração e
ocupação territorial.
Destaca-se essas duas narrativas, pois ao problematiza-las em conjunto, se
consegue ver como as inscrições da racialidade no pensamento geográfico na
passagem do século XIX para o século XX vão possibilitar tanto o engendramento
de políticas de cunho racista, quanto a difusão e propagação desse pensamento
através das aulas de geografia, uma vez que como já visto, não destoava do que já
era prescrito no currículo.
Apesar de não destoar no que tange a temática racial, como já verificado, da
década de 20, o geógrafo Delgado de Carvalho em conjunto com outros professores
do CPII vão ser responsáveis pela introdução e divulgação da Geografia Moderna do
Brasil, e por uma grande reformulação curricular na geografia ensinada no CPII.
Tendo em mente que essa Geografia Moderna tinha no positivismo uma das suas
fontes de influência, como a temática racial vai passar a ser tratada? Ou melhor,
frente a geografia racializada que já existia no currículo e as teorias positivistas que
influenciavam o pensamento social brasileiro e a Geografia Moderna, quais as
mudanças a reforma de Delgado de Carvalho vai trazer para a leitura sobre temática
racial?
Uma forma de observar isso é vendo como essa temática se faz presente da
obra do referido autor. A escolha por destacar essa temática na obra de Delgado e
não no próprio currículo do CPII ocorre pois, para além de influenciar diretamente a
geografia que era se ensinava nessa escola, o seu livro “Methodologia do Ensino
Geographico (introdução aos estudos de geografia moderna)” vai ser uma referência
para os mais diversos campos da geografia na época (ROCHA, 2000).
Sobre a obra do referido autor, Cirqueira (2014) indica uma série de
problemáticas, sendo a principal delas a compreensão da formação da população
139

através do conceito de "typos humanos". Ao fazer isso, o autor opta por hierarquizar
a população em tipos ideais, onde o individuo branco é posto como o ideal e os
outros são postos como degenerados. Junto com essa conceituação, Delgado
buscou vincular esses “typos” a diferentes “regiões”, apresentando assim a ideia de
que o meio era capaz de influenciar o desenvolvimento dos seres humanos – mote
central do determinismo geográfico e para entender a gênesis das discriminações de
base racial a determinadas regiões do Brasil.
Cabe salientar, que esse determinismo geográfico, principalmente através da
mobilização de "ideologias geográficas" e "geografias imaginativas", vai ser uma
peça fundamental para legitimar e justificar o processo de exploração não só no
Brasil, mas no mundo (CIRQUEIRA, 2015).
Para além do determinismo geográfico, Delgado também defendia a
mestiçagem e o branqueamento da população como forma de combater os “atrasos”
encontrados em determinadas regiões do Brasil. Cabe destacar, que ao olhar essa
ligação já falada anteriormente, a partir de uma visão “crítica” e atenta para o seu
reflexo no espaço geográfico, percebe-se que ela foi/é fundamental para a imagem
que se tem de Brasil atualmente.
Nesse sentido, assim como Gabriel Siqueira Correa (2015) indica, para além
da dimensão do indivíduo, o branqueamento, também está intrinsecamente ligado a
uma dimensão territorial, a uma geografia imaginativa que constrói uma falsa leitura
de realidade sócio-espacial. Para desmascarar esse véu racista sobre a história dos
territórios, é necessário ver o processo de branqueamento:

[...] a partir de três dimensões, (R. SANTOS, 2009): uma atuando


diretamente no ordenamento da ocupação do território, o branqueamento da
ocupação, outra criando uma imagem – uma geográfica imaginativa – do
território, o branqueamento da imagem e, por fim, a normatização de uma
cultura eurodescendente, o branqueamento da cultura. Essas dimensões
sintetizam a tentativa de invisibilização e reconstrução sob a lógica
eurocêntrica de “territórios não brancos”, ou seja, o apagamento da
presença das grafagens espaciais, (R. SANTOS, 2009), das geo-grafias
(PORTO-GONÇALVES, 2003) negras e indígenas do território brasileiro.
Estas dimensões se articulam mutuamente, estão interconectadas, de modo
mais ou menos visível conforme o ângulo de análise em que o território que
está sendo trabalhado. Porém todas são influenciadas por um padrão nas
relações de poder sob o aspecto racial. Envolvem o imaginário e a
construção da ideia de raça, e a sua aplicação do Brasil. (CORREA, 2014,
p.137)

Ao não extrapolar a visão racista, Delgado de Carvalho acabou contribuindo


para que durante grande parte da nossa história, a Geografia produzisse e
140

reproduzisse uma série de visões racistas de mundo e Brasil. Visões essas que já
existiam desde a geografia de base corográfica, mas que vão ganhar arcabouço
científico, em parte, através de sua obra.
Contudo, apesar da sua importante contribuição para esse processo,
considera-se Aroldo de Azevedo, o geógrafo que vai exercer a maior influência na
consolidação da Geografia Tradicional, e consequentemente nos olhares da
geografia sobre a temática racial. Também compreendendo a importância desse
geógrafo para entender o campo do ensino, Rosemberg Ferracini (2012) indica que
as suas as obras no campo acadêmico e no campo educacional, além de
demonstrarem um posicionamento intelectual, com visões sobre o sistema
educacional e as metodologias de investigação no campo da geografia, também
foram fortemente marcadas com a sua visão de mundo e por conseguinte o seu
posicionamento político-social.
Ao analisar as leituras sobre o continente africano presentes nessas obras,
Ferracini (2009, 2012) apresenta uma leitura que permite extrapolar as limitações do
recorte, e elucida características importantes sobre a leitura de Aroldo acerca da
população, do território e de outros temas que serão demonstrados a seguir.
Parte desses posicionamentos podem ser vistos desde as suas primeiras
publicações em meados da década de 1930. Ao pegar o livro “Geografia Geral,
Geografia Astronômica, Geografia Física e Geografia Humana” como material de
análise, Ferracini (2009) apresenta, por exemplo, que:

No capítulo XII, intitulado Raças e Povos da Terra, [...] Aroldo inicia o


capítulo propondo a divisão [das raças e povos] em “cor da pele, forma do
crânio, qualidade do cabelo, forma do nariz, do queixo e classificações de
raças” (p. 187). Não existe no livro uma apresentação do continente africano
e sim diretamente a descrição da população. (FERRACINI, 2009, p.6-7)

Chama a atenção a mobilização da população como forma de leitura da


formação do continente, fazendo com que grupos humanos, com determinas
características (como cor de pele, textura do cabelo, formato do nariz), sejam
vinculados a determinadas porções territoriais, nesse caso específico, o continente
africano.
Em livro datado do mesmo ano, mas na capa de apresentação, observa-se
um pouco melhor a visão de Aroldo de Azevedo acerca da divisão do mundo.
141

Quem percorrer as páginas deste livro realizará, com o autor, uma longa
viagem através de todos os continentes. Conhecerá algo a respeito daquele
em que vivemos, tão variado nos seus aspectos, mas uno em sua essência;
e compreenderá os motivos que nos levam a ter orgulho de haver nascido
em terras da América. Percorrerá as paisagens da Europa, com a emoção
de quem estivesse pisando o solo em que habitaram os seus ancestrais; e
saberá por que devemos admirar os que ali vivem, autores de uma
civilização que também é nossa. Fará uma ideia das multidões da Ásia e do
caleidoscópio vivo que elas representam. Sentirá o continente africano em
todos os seus contrastes, suas areias ardentes e suas florestas
impenetráveis. Tomará conhecimento da existência, em plena Oceania, de
terras em que os europeus ergueram uma civilização que em quase nada
difere da que brilha da Europa. Imaginará, finalmente, qual deve ser a
paisagem nas solidões geladas que circundam os polos da Terra.
(AZEVEDO, 1938, p. 1 apud FERRACINI, 2012, p.65, grifo nosso)

Ao esmiuçar essa citação em conjunto com a anterior, é possível observar a


presença de um pensamento racista que mobiliza não só a hierarquização e
sistematização, de acordo com traços exógenos, mas também uma leitura de mundo
que apresenta um etnocentrismo de base europeia. Em contrapartida, assim como
apontou Cirqueira (2015), existe no pensamento social brasileiro, uma acomodação
de diversas teorias, o que faz com que esse pensamento que também serve para
hierarquizar metrópoles e colônias/ex-colônias, sejam utilizados por aqueles que se
dizem seus descendentes diretos, para hierarquizar os demais grupos.
Mesmo correndo o risco de soar repetitivo, é importante reforçar que esses
livros que vão fazer com que essa leitura atinja um número incalculável de pessoas,
uma vez que vão servir não só como material de formação para diversas gerações
de estudantes secundaristas, mas também professores de geografia.
Essa visão racializadas também pode ser vista no livro “Geografia Geral” de
1952, também publicado pela Companhia Editora Nacional. Apesar de serem
encontradas pequenas mudanças nos conteúdos tratados por Aroldo de Azevedo.
Essa lógica e esse olhar se fazem presentes nos livros de Aroldo, pois o “[...] seu
pensamento está ligado a uma escola francesa de formação, que valoriza os ideais
positivistas, os conteúdos geopolíticos imperialistas, os ideais liberais que de certa
forma eram elitistas e autoritário” (FERRACINI, 2012, p.205).
Com isso, afirma-se que “Aroldo Azevedo (1938-1978) publicou obras
escolares propagando um olhar colonialista e racista do continente africano”
(FERRACINI, 2012, p.134). Mais que isso, a territorialidade presente em sua obra é
uma concepção eurocêntrica acerca dos fatos geográficos. Mais que isso, os
conteúdos escolares ao apresentarem uma lógica que dividia e explicava o
142

continente a partir dos domínios coloniais e seus colonizadores, estimulavam uma


falsa ideia de submissão e reforçava uma visão da África enquanto um continente
colonizado que serve para exploração. Além disso, cabe destacar que essa forma de
divisão fazia parte de um modelo descritivo e positivista existente na época.
Essas visões de mundo presentes nas obras de Aroldo de Azevedo foram
amplamente divulgadas, fazendo parte da geografia brasileira da década de 1930,
até meados da década de 1970, quando, com a chegada de renovação crítica da
geografia, vão ocorrer uma série de mudanças.

3.2.2 A renovação crítica: rompimento com o racismo?

Com o processo de renovação crítica, a geografia vai deixar de se posicionar


enquanto uma ciência neutra, ao mesmo tempo que através de leituras sobre
desigualdades socioeconômicas e das disparidades regionais, vai passar a criticar a
leitura até então feita sobre o espaço geográfico, buscando não omitir as tensões e
contradições, diferentemente do que fazia e faz a geografia tradicional. Com isso,
esse processo de renovação vai buscar construir leituras que ajudem a evidenciar a
espacialidade, não só das diversas relações de poder, mas dos processos de
dominação (VESENTINI, 2013).
Isso fica mais nítido ao se reparar que no movimento de ruptura com a
geografia tradicional, os geógrafos e geógrafas se atentaram, por exemplo, para a
vinculação entre Geografia e Imperialismo, fazendo com que se desenvolvessem
diversas críticas, “uma vez que o saber se manifestava como aliado de um poder
opressivo” (C.SANTOS, 2013, p.72).
A chegada desse viés crítico a geografia, faz com que levante-se algumas
questões orientadoras para o desenvolvimento deste tópico: i) Sendo o racismo uma
dimensão presente no campo das relações de poder, e que é utilizado em diversos
processo de dominação, qual o impacto desse movimento nas visões racistas até
então construídos? ii) Mais especificamente, como as leituras envolvendo a temática
racial vão se fazer presentes após esse processo de renovação?
143

Passados quase 40 anos do início do processo de renovação crítica, busca-


se as respostas para as questões acima no currículo prescrito da geografia que se
ensina hoje. Essa escolha se mostra interessante, pois como Pontuschka, Paganelli
e Cacete (2007) evidenciaram no final do tópico anterior, vários foram os processos
até que a geografia adentrasse a geografia escolar e como também apresentamos
anteriormente, passados os momentos de ruptura e “consolidação”, vive-se
atualmente, um momento de aprofundamento e conflito com diversas outras escolas
de pensamento e relações de poder-saber que convivem na educação básica.
Para Renato Emerson N. dos Santos (2013), o movimento de renovação é
teórico/científico, mas também político, e com isso “[...] traz novos temas e
preocupações para dentro do escopo da Geografia, implica sua revisão, provoca
inserções e releituras de um conhecimento” (SANTOS, 2013, p.21). Ao continuar o
referido autor indica que:

Dentro do amplo conjunto de temas e enfoque que vêm construindo novas


tendências e ramos na Geografia (Cultural, da Religião, da Saúde, do
Turismo, etc.), chamamos aqui a atenção para o interesse de alguns (ainda
pouco) geógrafos na produção de uma (re)leitura de dimensões espaciais
das relações raciais na sociedade brasileira. A promulgação da Lei 10.639,
em 2003, trouxe esta releitura para o ambiente escolar e, ainda que as suas
atenções na implementação da lei ainda pareçam partir de outras
disciplinas, professores de Geografia por todo o Brasil começam a se
preocupar com o tratamento das temáticas apontadas por ela em suas
aulas” (SANTOS, 2013, p.21-22)

Dessa forma, ao adentrar na discussão propriamente dita, vê-se que o


movimento de renovação crítica, apesar de em certa medida “universalizar” a leitura
das hierarquizações presentes no ensino de geografia, abre um campo profícuo para
que outras formas de ver e ler o mundo, que não as tradicionais, comecem a
emergir. No que tange ao campo etnicorracial, entende-se que essas formas devem
passar inevitavelmente pela necessidade de revisão dos conteúdos e métodos
presentes na geografia que se ensina, assim como pela inserção de novos temas e
conteúdos que permitam romper com os diversos fatos e marcos que possuem no
eurocentrismo o seu ponto de partida.
Sobre esses fatos e marcos, Gabriel S. Correa (2013) defende que,

Os marcos ensinados na geografia demonstram bem esse teor eurocêntrico


e estadunidense nas narrativas sobre o mundo e consequentemente sobre
o Brasil. Descrevemos o mundo a partir das “Grandes Navegações”, do
colonialismo, Imperialismo, Guerras Mundiais (que são guerras europeias) e
Guerra Fria. Conhecemos as guerras e revoltas europeias e americanas, e
144

pouco entendemos como as revoltas internas aconteceram, e qual o


impacto delas para a formação das relações sociais no Brasil. O que
acontece na Europa e nos Estados Unidos é visto em uma escala global,
fato do mundo, que nos afeta, já o que acontece internamente é deslocado
para um fato local, isolado, sem importância. Mudar os marcos é mudar
conteúdos. Deslocar pontos de vista, referências. Ensinar sobre o processo
de ocupação do território, não a partir da chegada dos europeus, mas das
disputas entre os impérios indígenas, dota o território de outra visão.
Ensinar a acumulação de capital durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX,
como fruto, principalmente de trabalhos e técnicas de africanos-
escravizados, e não como resultado da existência de barões do açúcar e
café ou dos bandeirantes no minério, gera outra interpretação sobre a
construção da riqueza no Brasil. (CORREA, 2013, p.57)

Essa percepção de Correa (2013) coaduna com o que defende-se nesta


dissertação e com a percepção de que “a educação escolar tem um papel
fundamental na superação das desigualdades raciais do racismo” (SANTOS, 2013,
p.24). Dentre as pesquisas que também visam discutir a geografia que se ensina
atualmente, na interface com a temática racial, destaca-se, para esse primeiro
momento, as contribuições de Leomar dos Santos Vazzoler (2006).
Durante sua dissertação “A questão racial no Ensino de Geografia”, a autora
apresenta diversas perspectivas para a inserção da temática racial, no ensino
fundamental da rede pública municipal de Vitória/ES, ao mesmo passo que analisa
essa viabilidade “a partir dos conhecimentos científicos disponíveis no âmbito da
geografia e do ponto de vista dos professores de geografia da rede pública municipal
de Vitória.” (VAZZOLER, 2006, p.13). Apesar das grandes contribuições, para este
momento problematizaremos a justificativa apresentada pela autora para a
existência da dissertação. Segundo o seu relato, o citado trabalho:

[...] surge como conseqüência de minha vivência em sala de aula. Tal


vivência proporcionou-me um olhar reflexivo e crítico sobre as práticas
pedagógicas impregnadas de racismo, como, por exemplo, o uso de
material didático que fortalece a construção de uma imagem negativa de
pretos e pardos. (VAZZOLER, 2006, p.11).

Ao fazer isso, a autora chama a atenção para a necessidade de ampliar o


olhar para como os conteúdos que aparecem no ensino de geografia, e como esse
ensino é capaz de construir imagens negativas sobre a população negra. Contudo, a
autora também destaca que, dentre os problemas existentes para a inserção dessa
temática em sala de aula, se apresentam: i) a falta de estudos bem esquematizados;
ii) o despreparo dos professores; e iii) a ausência de material disponível.
145

A essas lacunas, pode se adicionar iv) as regulações internas do campo, que


buscou-se evidenciar no tópico anterior – principalmente ao trazer a crítica sobre
falta de trabalhos e estudos que problematizem o que se ensina sobre a temática
racial e sobre o pouco aprofundamento no debate sobre a importância dos
conteúdos presentes na geografia que se ensina (em parte, devido a “Tradição
Geográfica”) e v) as regulações externas, que serão analisadas em conjunto com as
regulações internas do campo no próximo capítulo.
Ainda sobre as regulações internas, ressalta-se o estudo de Diogo M.
Cirqueira e Gabriel S. Correa (2012), que na busca por compreender a questão
etnicorracial na geografia brasileira, acabaram fazendo uma alarmante e, ao mesmo
tempo, profícua análise sobre a produção acadêmica nas pós-graduações de
geografia. Alarmante, pois os dados presentes nessa análise ajudam a evidenciar e
ratificar a primeira e, em certa medida, a terceira lacuna apresentada por Vazzoler
(2006), e profícua pois assim como indicou Santos (2013), existe uma mudança
ocorrendo, sobretudo se observar o período pós promulgação da lei 10.639/03. Isto
posto, de acordo com o levantamento dos autores:

[...] ao todo temos cinquenta e quatro (54) trabalhos, dentre teses (13) e
dissertações (41), que tem como temática a questão étnico-racial. Destes,
dezessete (17) dizem respeito à tendência "espaço e relações étnico-
raciais", dezenove (19) a "identidades e territorialidades negras", dez (10) a
"geopolítica dos países africanos" e oito (08) a "territórios e manifestações
culturais e religiosas".
Com base nos dados recolhidos, podemos verificar [...], um predomínio na
produção da região Sudeste, que corresponde a mais de 50% dos trabalhos
realizados. Este alto número se deve principalmente a dois fatores: esta
região possuir um maior número de pós-graduações (um total de quinze) e
estes serem as mais antigas do país, principalmente os programas
localizados no Rio de Janeiro (UFRJ) e em São Paulo (USP). Adjacente a
esta constatação levantamos a hipótese de que por serem centrais e
consideradas de maior proeminência elas atraem estudantes de várias
partes do Brasil, abarcando uma multiplicidade de temáticas que acaba por
aumentar a possibilidade de projetos que abordem a temática racial.
(CIRQUEIRA e CORREA, 2012, p.6)

Apesar dessa quantidade de trabalhos não representar uma aceitação dessa


temática na geografia, ainda mais se analisar o espaço que ocupa escala nacional
(CIRQUEIRA e CORREA, 2012), é importante ressaltar que destes 54 trabalhos, 47
foram produzidos entre os anos 2000 e 2011, sendo os outros 7 produzidos entre
1977 e 1999. Em contraposição a esse dado que mostra um nítido crescimento na
discussão, os referidos autores ressaltam a existência de um distanciamento entre
esses trabalhos e o campo do Ensino de Geografia.
146

Esse distanciamento fica mais evidente ao ver que se adotar o recorte dos
programas de pós-graduação de geografia, durante todos esses analisados, não
foram defendidos nenhum trabalho que articulassem a temática racial e o ensino de
geografia. Apesar de existirem trabalhos que fazem esse vinculo em outros
programas de pós-graduação – como os de educação – essa informação evidencia
dados em certa medida perturbadores. Ou existe uma resistência dos programas em
aceitarem esses tipos de trabalho, ou existe uma percepção desses pesquisadores e
pesquisadoras que esses estudos têm campo mais fértil em outros programas, que
não o de geografia.
Mesmo se ignorar essa falta de reflexão sobre a temática no ensino de
geografia, ou as particularidades, e considerar que todas essas publicações são
apropriadas pelo campo do ensino, se observar as áreas em que os estudos estão
localizados, pode-se reparar que existe nesses programas de pós-graduação e na
geografia brasileira, uma certa compreensão de onde a temática racial pode ou não
ser inserida. Regulação interna essa, que como está se tentando evidenciar no
decorrer deste capítulo, tem na tradição seletiva, um caminho de compreensão.
Afinal de contas, por que essa restrição?

3.2.3 Outros caminhos para o ensino de geografia

Isto posto, destaca-se que em conjunto com tais lacunas e problemáticas, se


faz necessário tanto no campo científico, quanto na geografia que se ensina a:

[...] descolonização de concepções que ainda hoje marcam os conteúdos


nos quais a questão racial é passível de reflexão. Deve-se conceber como
uma das propostas da lei [10.639/03], para aqueles e aquelas que
enxergam como instrumento de transformação, a descolonização das
referências eurocêntricas sobre os conteúdos, em especial a história da
África sinalizada, de forma explícita no texto do ordenamento jurídico.
Descolonizar os conteúdos, libertar-se das amarras do pensamento europeu
(contestando-o e não o negando de forma arbitrária) contribui não só para o
ensino, mas também para o combate às desigualdades sociais
engendradas a partir do preconceito racial. (DINIZ, 2014, p.42-43)

Sobre essa descolonização, há no campo teórico-conceitual, as contribuições


de autores como Grosfoguel (2005, 2008, 2011, 2012), Quijano (2005), Boaventura
147

(2002), ao questionarem o statu quo e utilizarem diversas metáforas espaciais para


tentar entender múltiplos sujeitos a partir de diferentes clivagens da sociedade,
apresentam uma potencialidade de leitura que avança sobre pontos que a leitura
crítica não conseguiu avançar. Leituras que permitam espacializar a formação do
sistema-mundo moderno-colonial, exaltando uma multiplicidade de clivagens sociais,
fazendo com que a relação de classe, por exemplo, seja mais uma clivagem, no
mesmo patamar de outras, como a raça, o gênero e a sexualidade.
Sobre a importância dessas discussões dentro da educação, Thyago Araújo
(2010), indica que,

[...] ao contrário da visão eurocêntrica/economicista-reducionista, as


relações raciais, sexuais, espirituais, epistêmicas e de gênero não são
apêndices das estruturas econômicas e políticas do Sistema-Mundo
Capitalista, mas são parte integral e constitutivas das relações de poder que
caracterizam o Sistema-Mundo Moderno-Colonial. [...]
Toda essa discussão é trazida para a esfera do currículo, resignificando as
suas teorizações. (ARAUJO, 2010, p. 10)

Nesse sentido, as discussões sobre currículo já realizadas são fundamentais


para compreender como essas novas discussões e novas formas de pensar se
apresentam na sociedade, na escola e mais especificamente no ensino de
geografia.
As discussões apresentadas pelas teorias pós-criticas de currículo,
evidenciam o que no primeiro capítulo busca-se problematizar através do processo
de construção do racismo. Ou seja, é necessário construir uma leitura que se atente,
e permita compreender os múltiplos sujeitos a partir de diferentes clivagens da
sociedade. Ao não avançar nesse ponto, a geografia que se ensina perde uma
grande potencialidade para entender como essas múltiplas clivagens se apresentam
também através de uma dimensão espacial.
Uma possibilidade de avançar nesse debate, como falado anteriormente, é a
utilização de conceitos ligados a teorias epistemologicamente oriundas do sul.
Teorias como a teoria descolonial, que como princípio básico, visa descolonizar nas
relações epistêmicas, possibilitando que se amplie o debate e vislumbre uma
possibilidade viável de avançar sobre bases que superem as lacunas presentes na
geografia crítica hegemonicamente praticada.
Sobre esse debate, Araújo (2010) indica ainda que:
148

Assim como Grosfoguel fala que a cultura e as relações econômicas se


articulam em múltiplas relações de poder, Silva também nos coloca que a
teoria pós-crítica deve se combinar a teoria crítica para que possamos
entender de que forma, através de relações de poder e controle, nos
tornamos o que somos. Segundo o autor, ambas nos ensinam, de diferentes
formas, que “currículo é uma questão de saber, identidade e poder” (SILVA,
1999. Pág. 147). Se o currículo é uma questão de saber, identidade e poder
e se é a ideia de raça e racismo é a que organiza e estrutura todas as
múltiplas hierarquias - as quais são também de saber, identidade e poder –
então a discussão da questão racial no currículo escolar torna-se
fundamental para uma educação mais igualitária, mais plural, uma
discussão que revela mais do que obscurece ou silencia. (ARAUJO, 2010,
p.18)

Ao constatar esse descompasso, entende-se a necessidade de aprofundar os


debates postos pela renovação crítica da geografia, assim como buscar inserir na
geografia que se ensina, uma série de assuntos fundamentais para os indivíduos
conseguirem se posicionar nesse mundo desigual. Não se está aqui defendendo que
a geografia seja ainda mais conteudista, mas passados quase 40 anos do inicio da
renovação crítica, um longo caminho ainda é necessário para repensar os conteúdos
e as práticas no ensino de Geografia.
Nesse sentido, como bem destaca Cesar A. C. dos Santos (2013),

O tempo de rompermos os laços que prendem as nossas mentes às ideias


e aos interesses dos colonizadores já passou, e já passou há muito tempo.
Temos nos relacionado com o mundo e com as pessoas, a partir de
representações que nos foram transplantadas e não condizem com a
realidade que vivenciamos. É hora de rompermos com isso e
contemplarmos um novo mundo, a partir de outras representações, não de
uma outra epistemologia que se sobreponha à eurocêntrica e a submeta,
juntamente com tantas outras que existem no planeta, mas, a partir de uma
ecologia de saberes, conforme elaboração de Boaventura de Souza Santos
(2010), onde o “reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo, o
reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de
conhecimento além do conhecimento científico” (p.54) induza a renúncia de
qualquer epistemologia geral, para que cada grupo humano tenha a
possibilidade de enxergar o mundo com seu próprio “olhar”. (SANTOS, C.,
2013, p.169-170)

Também entendendo a necessidade de avanço, Jorge Luiz Barcellos da Silva


(2002) destaca que apesar do grande debate feito na academia e na educação
básica, o que é chamado aqui de “tradição geográfica” – construída sobretudo no
período da Geografia Tradicional – vai impor resistências a grande parte das
transformações iniciadas com o movimento de renovação da Geografia, e,
consequentemente, tentativa de uma maior integração e complexificação dos
conteúdos e práticas presentes na geografia escolar.
149

Com isso, apesar da renovação crítica ter avançado no debate sobre a


formação de professores, as metodologias e a própria história da disciplina, esses
debates apresentam, em certo ponto, uma grande dificuldade de percepção não só
da realidade da geografia presente no ambiente, mas da realidade do aluno inserido
nesse ambiente.
Salienta-se ainda que, em diversos livros e estudos, os debates sobre o
ensino de geografia se focam atualmente no debate sobre a construção de conceitos
e metodologias não se atentam para a realidade do docente e dos alunos presentes
no ambiente escolar. Desconsideram as situações precárias que existem nas
diversas redes públicas de educação, se desatentam para o papel da violência no
cotidiano escolar, ignoram a diversidade que é a sala de aula, ou seja, solapam
fatores importantes que influenciam diretamente na prática docente, parecendo que
todos os professores e alunos vivem em um mundo ideal.
Ao mesmo tempo, como já ressaltado anteriormente, muito desses estudos
também não consideram o que está sendo ensinado, o seu papel social, o seu papel
dentro das relações de saber-poder. Sem pensar a prática, e sem pensar os
conteúdos, esses estudos não problematizam quais são os dilemas práticos de
implementar os conceitos da geografia.
Apesar de ter disponível no meio acadêmico alguns trabalhos que tentam
tratar isso, até que ponto, o campo do ensino de geografia é um campo cego a
aquilo que trata da prática docente presente no cotidiano escolar, ou ao próprio
cotidiano dos alunos?
Com isso em mente, é importante tomar o sistema educacional enquanto um
sistema diverso. Um sistema onde existem escolas com condições favoráveis a
prática e implementação de discussões salutares para o ensino de uma forma geral,
no entanto, diversos professores, trabalham em outras condições. Trabalham em
escolas que sofrem com interferência de grupos paramilitares e de conflitos oriundos
da política genocida de combate as drogas, que existem relações de disputas
pessoais e/ou disputas ideológicas (para além do conservadorismo presente no
embate entre as escolas de pensamento), escolas que devido as suas
particularidades, apresentam desafios para a implementação de determinadas
discussões.
150

Visto isso, que desafios a tradição geográfica impõe para esses professores e
professoras que visam através da sua prática militante, inserir no currículo praticado
um novo cabedal teórico? Quais são as limitações e as potencialidades dessa
prática militante? Além do campo teórico, quais outros reguladores impactam a
prática de professores e professoras? O racismo se faz presente nessa regulação?
Essas e outras discussões estão presentes no capítulo a seguir.
151

4 DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA


NO ENSINO DE GEOGRAFIA: OS CONFLITOS NA PRÁTICA COTIDIANA DE
PROFESSORES

Feito esse breve histórico da geografia enquanto disciplina escolar e da


racialidade nela inscrita, entende-se em linhas gerais, que essa “tradição geográfica”
que vem sendo construída, desde a implementação da disciplina no currículo de
diversas escolas de importância regional e nacional, dentre elas do CPII (ainda no
século XIX), através de reformas e contra reformas chegou ao século XXI se
conformando em um hibrido de teorias e metodologias.
Em outras palavras, a leitura até então realizada permite compreender que o
choque entre a “tradição geográfica” construída até meados da década de 1970 e as
pautas colocadas pelo movimento de renovação crítica da geografia vai gerar um
descompasso, que fez e continua a fazer com que se criem hibridismos. Essa
convivência de pautas e concepções fez com que se conformasse uma nova
“tradição geográfica” na geografia que se ensina, com elementos novos e antigos.
Dessa forma, a mesma disciplina – na qual é fundamental compreender uma
série de relações hierárquicas presentes no cotidiano, através dos resquícios e
acordos tácitos - acaba apresentando elementos importantes para a reprodução do
racismo na geografia e consequentemente no cotidiano escolar.
À luz desse descompasso, a emergência de novos assuntos (sobretudo a
partir dos anos 2000) acaba por reforçar grande parte das críticas postas
inicialmente pelo movimento de renovação, evidenciando o longo e complexo
caminho para se criar uma geografia sobre outras bases. Na busca pelo
aprofundamento dessa crítica, fortemente influenciada por diversos atores (coletivos
e individuais), vão emergir estudos e práticas dentro do campo da geografia,
defendendo uma maior discussão da temática racial, de gênero, da sexualidade
entre outras.
Contudo, como falando anteriormente, existem diversos reguladores internos
ao campo da geografia (e incluímos a tradição geográfica), e externos, que acabam
por impedir que esses assuntos avancem na educação básica. Essa dificuldade,
como se buscou trabalhar no segundo capitulo, vem, em parte, graças a percepção
152

da escola enquanto um espaço permeado de relações de poder e saber,


fundamental para formar e perpetuar as visões hegemônicas.
Como também argumentado neste capítulo, ao entender a importância desse
espaço, as peculiaridades e armadilhas, também se torna fundamental para
construir e perpetuar outras visões de mundo, formas de ler e se posicionar que
possibilitem derrubar barreiras impostas pela sociedade sexista, racista, machista,
homofóbica e classista em que se vive.
Tomando como exemplo a temática racial, discussão central do trabalho,
Ratts (2007) mostra que se tem na educação escolar, e por conseguinte nos
currículos construídos nesse ambiente, um dos principais campos de disputa pelos
movimentos sociais. Essa disputa se justifica, “uma vez que esta se mostra
impregnada de práticas racistas, além de se formar como aparelho difusor e
legitimador de ideologia que negativiza os segmentos não-brancos da sociedade”
(RATTS, 2007, p.46). Ao extrapolar isso para as outras formas de opressão, é
possível ver que diversas são as formas em que elas, ou conteúdos a elas ligados,
adentram o cotidiano escolar através dos conteúdos de geografia.
Contudo, cabe salientar que enquanto um espaço repleto de relações de
poder-saber, aqueles e aquelas dispostos a construir um ensino pautado em
conteúdos anti-hierarquizantes, acabam se deparando com reguladores que
ultrapassam os reguladores internos ao campo de saber. Reguladores que
institucionalizados (na forma de lei) e não institucionalizados (no campo das
relações sociais) acabam de diferentes formas interferindo em suas práticas.
Ao nos atentarmos para esse conjunto de regulações nas escolas nota-se
como esses diferentes reguladores agem de forma a normatizar um conjunto de
atitudes presentes no cotidiano das escolas.
Para melhor compreender a forma de ação desses reguladores externos e
internos, recorremos a Renato Emerson N. dos Santos (2011), que apresenta
importantes contribuições para compreender alguns fatores que exercem influência
direta na prática docente. Dentre eles, destaca-se como reguladores internos: o livro
didático de geografia, as relações com os outros professores de geografia. Já como
reguladores externos: as relações com os professores de outras disciplinas, com a
coordenação pedagógica, com outros atores da gestão escolar (como a secretaria
de educação). A esses fatores externos, adiciona-se os exames de avaliação da
153

educação básica, que apesar de serem aplicados por vários organismos e


secretárias com ligações ao governo Municipal, Estadual e Federal, na maioria das
vezes seguem uma cartilha neoliberal na educação.
Entre os fatores citados acima, se tem no livro didático de Geografia um dos
principais reguladores da prática docente. Sobre esse regulador, Cesar Santos e
Raphael Costa (2011) indicam que esse material que deveria servir como um
material de apoio a prática do professor, inúmeras vezes acaba se tornando o
norteador de suas práticas. Para além, os autores destacam que em alguns casos é
esse livro a única referência bibliográfica que o professor possui para preparar as
suas aulas.
Ao assumir essa posição, apesar de diversos estudos e pesquisas mostrarem
que “o livro didático não é simplesmente uma transmissão dos conhecimentos. Ele
também é um local onde, ativamente, se produzem e se inventam significados
culturais, que estão estreitamente ligados a relações de poder.” (TONINI, 2002,
p.117), esse material passa a ser o currículo que vai ser aplicado, currículo esse
que, como já falado, perpetua para os novos profissionais uma “tradição” do que
deve e como deve ser ensinada a geografia na educação básica.
Ao partir desse pressuposto, o livro ganha contornos mais complexos, uma
vez que somado a esse material existem os problemas de falta de tempo, dinheiros,
recursos didáticos, entre outros fatores que Pontuschka, Paganelli e Cacete (2007)
indicaram como fatores que impedem os docentes de terem um aprofundamento e
uma melhor preparação para a aula.
Docentes esses, que para além do livro didático, têm na relação com seus
colegas de disciplina uma interferência (direta e/ou indireta) no currículo praticado.
Como busca-se evidenciar no decorrer da análise, essas regulações são visíveis
principalmente quando esses professores tentam fugir da tradição seletiva
construída pela própria disciplina.
Em tempo, é importante evidenciar que a tradição geográfica também é
mobilizada pelos professores para validar da prática docente do companheiro ou
companheira de disciplina. Ou seja, a tradição é um pretexto que regula desde o
próprio material didático que será trabalhado com os estudantes, até a aceitação da
sua prática – enquanto a prática de um professor ou professora de geografia.
154

Diferente da regulação exercida pelos livros didáticos e pelos demais


professores da disciplina, a regulação exercida pelos outros professores e pelos
gestores da escola geralmente afetam um campo mais amplo do que somente o
currículo praticado na sala de aula. Como esses profissionais tem seus próprios
embates ou são responsáveis pela organização e administração de todo o ambiente
escolar (desde a organização da grade escolar, até a liberação da infraestrutura
para alguma atividade), essa regulação vai incidir diretamente nas atividades
interdisciplinares.
É importante destacar, que essas atividades tem um papel fundamental para
o campo das relações existentes no cotidiano escolar, uma vez que geralmente são
nelas que se rompe a lógica tradicional do currículo particionado, e faz com que
diferentes atores interajam não só em um plano teórico-metodológico, mas também
político-pessoal. Isso indiretamente afeta todo o conjunto de relações construídas no
próprio cotidiano, e de maneira direta o currículo praticado pelos docentes na sala
de aula.
Somada a essas relações internas e externas, a emergência de provas de
cunho avaliativo nos últimos anos, tem se evidenciado enquanto um grande
regulador do que deve ser ensinado no ambiente escolar. Essas avaliações ganham
contornos mais drásticos a partir do momento que o desempenho nessas avaliações
passa a ser base para investimento nas escolas com melhores notas, bônus salarial
para os profissionais dessas escolas e de forma não oficial, o fechamento das
escolas mal avaliadas.
Esse breve panorama possibilita compreender que para além de uma
discussão teórico-metodológica, é preciso atentar-se para a discussão sobre os
problemas que acabam interferindo na prática desses professores. A partir do
momento que professoras e professores passam por uma gama de relações que
inúmeras vezes acabam regulando a sua prática, quais são os dilemas práticos de
implementar a temática racial na disciplina de geografia?
Para realizar tal análise, utiliza-se na presente dissertação os dados
empíricos obtidos junto ao projeto de pesquisa “A lei 10.639/03 e o Ensino de
Geografia” vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações
155

Raciais e Movimentos Sociais (NEGRAM)23. Nesse projeto, foi acompanhado, de


abril de 2008 a novembro de 2011, um total de três professores e quatro professoras
de geografia que lecionavam em diversas redes públicas do Estado do Rio de
Janeiro, que buscavam através de suas práticas introduzirem a lei 10.639/03 em
suas aulas. Destes, cinco foram acompanhados desde abril de 2008 e outros dois
passaram a ser acompanhados a partir de fevereiro de 2011.
Esses acompanhamentos eram feitos através de reuniões mensais em forma
de “processo interacional”.

[...] denomina de “processo interacional, onde, justamente as interações


produzidas por uma condução mais flexível do grupo é que se constituem
como os elementos básicos para o processo investigativo”. Neste sentido, o
esforço deveria se direcionar para a criação de uma ambiência onde, ao se
sentirem à vontade, os membros do grupo passassem a compartilhar feitos,
dúvidas, problemas, possibilidades, materiais, ideias, enfim, trocassem
acertos e erros, sucessos e insucessos, elementos que contemplassem (i)
as suas práticas, (ii) as múltiplas dificuldades e facilidades encontradas (de
informação, de material, de resistências e acolhidas no cotidiano escolar, de
reações dos alunos, etc.), (iii) seus planos e, com isso tudo, (iv) seus
desejos e sonhos na prática docente vinculada à implementação da Lei
10.639. (SANTOS, 2009b, p.17)

Para além de uma captação de dados, essas reuniões serviam como um dos
processos de pesquisa-ação, “tomada aqui como uma perspectiva de investigação
militante, que tem o sentido político assumido como motor do trabalho, o que
valoriza o rigor nas ações.” (idem, 2011, p. 5-6). Nelas, era oferecido aos
professores um processo de formação complementar para que estes, através da sua
prática, inserissem um novo eixo de discussões em suas aulas. Dessa forma, após
os relatos de experiências, era realizada uma série de palestras e atividades
interligando o debate sobre a questão racial e a educação.
A primeira fase desse projeto de pesquisa resultou em um quadro analítico
contendo as estratégias teóricas e metodológicas que os professores utilizavam para
inserir a lei 10.639/03 no Ensino de Geografia, e em diversos artigos e monografias
de graduação que buscavam “atacar” uma série de lacunas presentes para
aplicação da referida lei. Para atacar essa agenda, a pesquisa se organizou em
torno de 5 (cinco) vertentes de investigação: (i) Inserção e Revisão de Conteúdos,
(ii) Revisão de Práticas, Materiais e Métodos Pedagógicos, (iii) Gestão das Relações

23
O NEGRAM está vinculado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e dedica-se ao fortalecimento
da relação entre a produção de conhecimento e lutas sociais, no campo da Geografia.
156

Raciais no Cotidiano Escolar, (iv) Relações de poder na construção do currículo


praticado na escola, (v) Movimento Negro e as escalas da política. Vertentes essas,
que foram o ponto de partida para a confecção dos trabalhos individuais e coletivos
e tem forte rebatimento nas discussões aqui levantadas.
Além desses trabalhos, a pesquisa também proporcionou um “material bruto”
de 1413 páginas de transcrições contendo relatos e atividades realizadas durante os
encontros. Apesar de inicialmente os relatos terem como principal objetivo
reconstruir o currículo praticado por esses professores no cotidiano escolar, ao final
da primeira fase da pesquisa e com os dados brutos em mãos, observou-se que ao
expor as suas experiências, esses professores relataram uma gama de relações que
ultrapassam o momento da sala de aula, ou a própria disciplina. Com isso, também
foram construídos mais dois quadros analíticos (ANEXOS A e B), além de tabelas e
gráficos que sistematizam os entraves e dificuldades que os professores tiveram nas
suas ações de implementação da discussão racial no cotidiano escolar.
Concentramo-nos, portanto, nos entraves, resistências e enfrentamentos que
estes professores encaram, mas é importante destacar que a leitura a partir dos
conflitos é um caminho possível (mas não o único) para compreender os
posicionamentos contrários à introdução da discussão sobre a questão racial e a
própria prática militante24 desses professores e professoras. Visto isso, analisa-se
também a relação destes e destas com o ambiente escolar e até que ponto eles
acabam confrontando o habitus construído no cotidiano escolar e a tradição seletiva
produzida na geografia.
É importante salientar também, que para a presente dissertação trabalha-se
somente com os relatos dos cinco professores que perpassaram todo o processo de
pesquisa-ação. Sobre esse processo em si, é importante destacar que a proposta
ultrapassava da dimensão de uma formação continuada, pois tinha como ponto
basilar a implementação da Lei 10.639/03 pelos professores participantes da
pesquisa. Ou seja, para além de um processo de revisão de suas práticas e
metodologias, ou de formas de ler as relações raciais no cotidiano, se incentivava
intervir nesses campos.

24
O termo militante aparece em um duplo sentido: i) de implementar, em seu currículo praticado,
interpretações defendidas e construídas pelo/no/com o Movimento Negro; ii) na medida em que,
mesmo enfrentando resistências de alunos, professores, coordenadores, direção, secretarias e outros
atores do cotidiano escolar, continuam a defender uma outra maneira de abordar a questão racial
através da sua prática dentro e fora da sala de aula.
157

A pesquisa e as reuniões funcionavam como “um movimento constante de


construção, reconstrução e compartilhamento de conhecimentos e experiências que
contemplassem as demandas política e pedagógica delineadas pela proposta”
(DINIZ, 2014, p.82)
Desta forma, a escolha por analisar os conflitos presentes nestes dados,
ocorre, pois seus depoimentos possibilitam compreender de maneira mais efetiva,
como o processo de pesquisa-ação apresentado anteriormente interferiu
efetivamente em seus trabalhos. Cabe salientar que objetiva-se observar os
professores e professoras acompanhados/as enquanto profissionais ativos, que
buscavam na transformação das suas práticas e na disputa do currículo praticado
um meio para combater o racismo no ambiente escolar.
Visto isso, para melhor sistematizar e analisar esse conjunto de dados, no
primeiro tópico do presente capítulo apresenta-se os procedimentos metodológicos
utilizados para compreender essas disputas e suas relações no cotidiano.
Posteriormente, expõe-se esses conflitos de forma a evidenciar através dos dados
sistematizados um duplo movimento: i) a interferência dos conflitos na prática dos
professores acompanhados; e ii) a interferência dos professores acompanhados na
leitura predominantemente presente nestes cotidianos.
Por último, aliando os procedimentos escolhidos e os dados sistematizados
pretende-se fazer uma análise qualitativa desses conflitos, de forma a compreender
possíveis tipologias do racismo no cotidiano escolar e os impactos no Ensino de
Geografia.

4.1 Acerca dos procedimentos metodológicos para a análise das disputas no


cotidiano escolar

Como assinalam Vanderléa Pereira e Maria Lima,

Tecer um traçado metodológico não é tarefa fácil, exige tomada de decisão,


escolha, limite e um cuidado fundamental como o rigor. Exige travessia
entre o pensar em investigar para o começar a investigação, exige um olhar
para dentro de nós mesmos, para nos percebermos também enquanto
sujeitos da pesquisa, participantes de um mundo a ser desvelado, revelado,
apreendido, analisado e interpretado. (PEREIRA & LIMA, 2010, p. 12)
158

Assim, escolher um procedimento errado pode implicar em retornos que


representem somente parte do objetivo inicial, ou mesmo respostas que pouco
dialoguem com a pesquisa desenvolvida. Para evitar tal posicionamento, nesse
momento discorre-se aqui um pouco sobre a metodologia adotada para analisar as
relações de disputa presentes no cotidiano dos professores e professoras de
geografia.
Contudo, antes de adentar nos procedimentos propriamente ditos, destaca-se
que também faz parte da pesquisa a utilização de conceitos que possibilitem
complexificar os dados obtidos. Visto isso, propõe-se a ideia de ação militante,
exposto no segundo capítulo, enquanto uma dimensão interessante para
compreender a atuação desses profissionais da educação que buscam através das
suas práticas, lutar contra alguma forma de hierarquização e/ou opressão no
cotidiano escolar.
Ressalta-se também, que somado aos procedimentos que têm nos indivíduos
as fontes das informações chave, uma série de outras ferramentas como a
observação participante, as análises documentais e o próprio histórico dos sujeitos
participantes podem ser utilizadas para compreender diversas formas de
interferência na dinâmica cotidiana. Contudo, sendo os de discriminação e
preconceito de base racial um fenômeno social alvo de represália moral e legal, e
sendo o racismo um padrão de poder/dominação, que estabelece privilégios (como
apresentado no primeiro capítulo), dependendo do contexto em que o indivíduo está
presente, ele pode ser “facilmente” escondido no plano discursivo Mais que isso,
sendo a escola, um ambiente social complexo, onde diversos atores constroem
hábitus através do contato com os outros na vida cotidiana, é possível compreender
que um ator externo interferiria nas relações construídas nesse cotidiano, fazendo
com que os dados fossem potencialmente contaminados.
Como na presente pesquisa não se tem como objetivo central fazer uma
leitura acerca do cotidiano escolar em si, mas das relações cotidianas desses
professores de geografia que através de uma formação sobre a questão racial,
interferem na escala do ambiente escolar, e em que medida, outros atores
interferem e/ou buscam interferir em seus trabalhos, procedimentos como
observação participante e analise documental acabam sendo opções menos efetivas
para construir as leituras pretendidas.
159

Visto isso, para reconstruir e analisar como o racismo aparece no contato


desses professores com o ambiente escolar, utiliza-se os relatos dos professores
acompanhados pela pesquisa, como principal fonte de análise para reconstruir a
vivencia deles neste aparelho social chamado “escola”. Para tal, busca-se através
de uma leitura integrada entre as dimensões utilizadas por Goffman (1985) para
analisar os “estabelecimentos sociais”, uma forma de alinhar a discussão entre as
diferentes formas de o racismo aparecer na sociedade – apresentado no primeiro
capítulo através do modelo Taguieff (apud D‟ADESKY, 2001), o “novo” racismo
(CAMINO ET ALII, 2001) e da discussão entre branquidade & branquitude (BENTO,
2002) e (FRANKENBERG, 2004) – e o cotidiano escolar enquanto ambiente em
disputa por diversos atores, realizado no segundo capítulo do presente trabalho.
Acerca dessas dimensões, cabe relembrar que Goffman (1985) compreende
que um determinado estabelecimento pode ser analisado tecnicamente,
estruturalmente, politicamente e culturalmente.
Ao analisar a escola tecnicamente, busca-se compreender as
intencionalidades presentes nesse lugar. Ou seja, como a escola era organizada
estruturalmente? Quais os objetivos colocados para os professores? Quais
atividades eram permitidas e quais não eram?
No mesmo caminho, ao analisar politicamente a escola, tenciona-se através
do posicionamento militante dos professores acompanhados, compreender os
limites existentes entre o que é aceito e o que não é aceito, as relações de aliança e
divergências, as arenas de/em disputa, assim como os tipos de controle social e
sanções impostos a esses profissionais. Juntando-se a esses movimentos, é viável
observar estruturalmente esse ambiente social, à medida que se vê camadas de
disputas e relações de horizontalidade e verticalidade nas relações interpessoais.
Por fim, ao analisar culturalmente o ambiente escolar, se pode notar quais os
valores morais intrínsecos as relações cotidianas presentes naquele espaço.
Concomitantemente a esse movimento, também observar-se quais são os pontos
valorizados e até que ponto isso ajuda na perpetuação do racismo. Nesse sentido,
essa dimensão ajuda fundamentalmente a ressaltar os aspectos visíveis de um
recorte racial presente nesse ambiente.
Para expor a análise integrada dessas dimensões do ambiente social em
questão, se faz o uso da leitura teatralizada proposta por Goffman (1985),
160

entendendo que esse movimento possibilita analisar os posicionamentos que


perpassam as quatro dimensões anteriormente apontadas. Tal leitura possibilita
analisar essas dimensões através da relação desses professores com o espaço
físico do ambiente escolar. Dessa maneira, as relações construídas na sala dos
professores, por exemplo, que em muitos casos é uma “região de fundo” (onde são
preparadas as representações), na realidade vira palco de conflitos entre esses
professores. Da mesma maneira, a sala de aula que em um primeiro momento
poderia ser considerada o palco da atuação desses profissionais, na realidade se
torna uma região de fundo, os bastidores onde são construídas alianças e pactos.
Segundo o autor,

O acesso a estas regiões é vigiado, a fim de evitar que o auditório veja os


bastidores e para impedir que estranhos participem de uma representação
que não lhes é endereçada. Sabemos que entre os membros da equipe
prevalece a familiaridade, sendo provável criar-se a solidariedade, e que
são compartilhados e guardados segredos que poderiam prejudicar a
representação. (GOFFMAN, 1985, p. 218).

Sobre esse ponto salienta-se que, em diversos momentos indivíduos de um


dado grupo acabam desenvolvendo papéis opostos mesmo aparentemente
pertencendo a equipe. Isso ocorre pois esses indivíduos que estão atuando no
cotidiano escolar na realidade também pertencem a outras esferas de atuação e
formação, com outras relações de poder presentes dentro e fora do cotidiano
escolar. Esferas e pertencimentos que tenta-se compreender através das “áreas de
movimento” (BURITY, 2001) e do “campo de solidariedade” (MELUCCI, 2001).
Sobre a opção por analisar o racismo no cotidiano e as relações de poder-
saber nele inscritas, é importante destacar que assim como viu-se com Rockwell &
Ezpeleta (2007), o cotidiano tem a capacidade de delimitar, ao mesmo tempo em
que evidencia uma série de movimentações eminentemente diversas, mas
articuladas por indivíduos complexos que mobilizam no cotidiano uma “política de
escalas” (SOETERIK & SANTOS, 2015), que evidenciam que este “lugar” (a escola)
pode ser lido enquanto centro de uma mistura diversa entre as relações sociais
construídas em esferas mais amplas e aquelas existentes somente nesse local
(MASSEY, 2000).
Da mesma forma, ao atentar-se para as questões apresentadas no interior da
disciplina, é necessário compreender as relações de conflito inerentes a geografia.
Seja uma disputa pela implementação de um cabedal teórico-conceitual que fuja da
161

hegemonicamente apresentada, sejam enfrentamentos em torno dos critérios


utilizados na escolha do material didático – entendendo este último em especial
enquanto um importante momento de negociação curricular com os seus pares.
Através disso, esses indivíduos formam "relações invisíveis com a equipe" e
promovem algumas tensões no espetáculo que os demais atores visavam
apresentar. Para evitar tais tensões, entende-se que são engendradas no ambiente
escolar o que é chamado no primeiro capítulo de regras e decoro, ou o que
apresenta-se no segundo e no terceiro capítulo enquanto tradição seletiva (do
ambiente escolar e da disciplina). Cabe destacar que compreende-se que estas, na
realidade, constituem parte do que Bourdieu (2002, 2007) chamou de habitus, e
influenciam diretamente nas relações rotinizadas (GIDDENS, 1991) presentes no
cotidiano escolar.
Visto isso, a opção pela análise através dos diferentes conflitos existentes na
fala dos professores acompanhados se justifica, uma vez que no lugar de sujeitos
que estavam inseridos nesse ambiente, foram eles que através de negociações,
alianças e da própria prática, criaram aberturas para ocupar de diferentes esferas do
cotidiano escolar e assim colocar pauta a discussão sobre a questão racial.

4.2 Conflitos na prática docente: entre embates e dilemas

Antes de adentrar na análise dos conflitos, é importante fazer algumas


observações sobre as professoras e professores acompanhados durante esse
processo de pesquisa-ação. Contudo, como destacado no início do texto, com o
objetivo de preservar a identidade desses docentes, adota-se os termos “professora”
ou “professor” seguidos de numerações.
Essas observações são interessantes, pois assim como destacado no
segundo capítulo, e no debate sobre os procedimentos metodológicos, neste
capítulo, cada professor e professora tem na sua vida cotidiana um conjunto de
relações que ultrapassavam as relações engendradas na escola. Eles possuem
diferentes processos de formação acadêmica e/ou militante, formas de se
posicionar, personalidades, enfrentamentos etc. Ao lecionar e buscar a
162

implementação da lei 10.639/03 no ambiente escolar, esse conjunto de arenas de


formação, essa “área de movimento” também se fazem presentes, de formas diretas
e indiretas.
Isto posto, e tendo em mente os adendos colocados acerca dos cuidados
sobre os procedimentos metodológicos, e da necessidade de complexificar a leitura
sobre quem são esses profissionais acompanhados, buscaremos apresentar esses
professores, para além da sua relação com a geografia, ou com a educação básica
– ressaltando de forma direta e indireta o que os levou a debater a lei 10.639/03 e a
interferência do projeto em suas práticas docentes.
Para tal procedimento, utilizaremos os dados e relatórios do projeto de
pesquisa “A lei 10.639/03 e o Ensino de Geografia”, e da dissertação “A Formação
contínua de professores de Geografia para implementação da Lei Federal nº
10.639/03: A partir de um projeto de pesquisa-ação” defendida por Flávio Guimarães
Diniz (2014).
Ao começar pelo processo de entrada de cada docente nesse projeto de
pesquisa-ação, se vê um pouco da diversidade de interesses e objetivos. Fatores
que vão influenciar diretamente na atuação desses professores no cotidiano escolar.
É o professor 1, por exemplo, que desde o convite do coordenador do projeto,
tinha como objetivo rever conteúdos da geografia a partir de uma nova visão, um
formato mais próxima a realidade do aluno. Ou seja, este professor tinha como
objetivo discutir formas de ensinar e aprender Geografia e um novo lócus
epistêmico, nesse caso, a sua relação com a lei 10.639.
Assim como o professor 1, a professora 3, teve a sua inserção no grupo pelo
convite do coordenador para participar de um grupo sobre o Ensino de Geografia.
Apesar de já conhecer a Lei 10.639/03, inicialmente a professora não se atentou que
que o grupo visava fazer uma relação entre a geografia que se ensinava e a referida
lei. Esse descompasso pode ser explicado pela interpretação que a professora tinha
antes de entrar no grupo, uma vez, que como já foi discutido no segundo capítulo,
muitos professores possuem uma interpretação restrita, se atentando para a
recomendação da implementação em algumas disciplinas.
Já consciente da possibilidade de discutir o ensino de Geografia e a Lei, a
professora viu no projeto a possibilidade de (re)pensar formas de trabalhar a
temática racial em sala de aula.
163

Diferente da professora 3, o professor 2 não conhecia a lei 10.639/03, mas


segundo relato dado a Diniz (2014), ele apresenta que antes de entrar no grupo já
havia tentado trabalhar a temática racial em uma escola:

Quando eu trabalhei na Ilha do Governador, propus um trabalho, na


verdade, sobre desigualdade com pessoas de características cromáticas
diferentes e o resultado foi praticamente um desastre. Ao invés de eu
estimular a igualdade, houve um agravamento do preconceito racial. Na
verdade, eu tive boa vontade em fazer o trabalho, de tentar resolver o
problema que existia. Percebi que só com boa vontade a gente não
consegue aplicar de maneira eficiente... Eu comecei a ler e a pesquisar
questões ligadas ao racismo e à educação. (DINIZ, 2014, p.93)

Com o convite do coordenador do grupo, o professor 2 viu nesse projeto a


possibilidade de melhorar a sua base para atuar na luta contra o racismo nas aulas
de geografia e na educação. Perspectiva parecida com a professora 4, que entrou
no grupo em uma época em que se encontrava isolada, após sair de um colégio
onde existia um grupo consolidado, onde se fazia um grande trabalho sobre a
temática racial. Cabe destacar que neste grupo, existiam

[...] 18 projetos e os projetos eram de pesquisa-ação a gente pesquisava e


agia; e tinham eventos do início ao final do ano com participação da
comunidade e dos convidados começamos a fazer parcerias com a UFF,
UERJ RIO, PUC porque um vai indicando o outro [...] (Professora 4,
Outubro de 2009)

Isso fazia com que o grupo se formasse enquanto um importante espaço de


formação pedagógica e militante para a professora. Contudo, mesmo estando na
nova escola desde 2003, ela ainda estava tentando criar laços com diversos
membros do cotidiano escolar. Desta forma, a professora entrou na busca de
fortalecer a sua prática militante e ampliar o seu processo de formação.
Cabe salientar que diferente de outros professores e professoras, ela foi
selecionada para trabalhar no grupo após participar do Encontro Estadual de
Professores de Geografia (EEPG), realizado na capital fluminense, no final de 2007.
Diferente dos demais professores, a professora 5 teve a sua inserção no
grupo por meio do convite do professor 1, com quem lecionava em uma escola, e viu
neste grupo a possibilidade de discussão sobre a questão racial no ambiente
escolar, perspectiva que ela sempre buscou na sua atuação.

O que me motivou a participar é que a temática racial sempre foi importante


na minha prática docente. Acho que porque eu sou negra, acredito que a
tensão racial já se faz presente com minha presença e a segunda questão
164

que faz com que essa temática seja relevante na minha prática docente, é
que a maior parte dos alunos com os quais eu trabalhei na minha carreira
são, na sua maioria, não brancos. Essas tensões raciais estavam postas,
estavam colocadas de diversas formas. Participar de um grupo que iria
discutir essas questões era para mim de grande interesse. (DINIZ, 2014,
p.98)

Sobre o processo de formação, antes de entrar no grupo, ela já havia feito


cursos oferecidos pela rede municipal do Rio de Janeiro e cursos de fora. Apesar de
conhecer a lei, e de buscar formação sobre, é importante destacar que os cursos
ligados ao ensino de geografia não debateram a temática racial, e os cursos
voltados para a temática, tinham como enfoque outras disciplinas, que não a
geografia.
Sobre o conhecimento da lei 10.639/03, retirando o professor 2, todos os
professores tiveram algum tipo de contato antes de começar o processo de
pesquisa-ação. O professor 1, por exemplo, conheceu a lei através de um projeto do
governo federal chamado “A Cor da Cultura”, apesar de ser um programa mais
direcionado para as áreas de Artes, História e Língua Portuguesa.
Outro exemplo interessante de conhecimento sobre a lei é a professora 4, ao
indicar que: “Já conhecia a lei. Inclusive, antes dela sair, a gente já sabia que estava
tramitando pelo congresso nacional, já vinha todo um grupo que, uma década antes,
vinha fazendo essa luta para que na educação [...]” (DINIZ, 2014, p.97-98)
Feito esse breve panorama sobre o processo de inserção desses docentes no
projeto de pesquisa-ação, e seus objetivos perante o projeto, cabe mais uma vez
destacar que eles lecionavam em diferentes realidades, alguns em mais de uma
rede. Ao somar essas diferentes realidades com os objetivos de cada professora e
professor, se tem diferentes formas de atuação e enfrentamento.
É o caso do professor 1, que durante o projeto de pesquisa-ação, lecionava
na rede municipal do Rio de Janeiro, em uma escola localizada na comunidade de
Nova Aliança (Bangu) e na rede estadual por 6 anos em uma escola localizada no
bairro de Copacabana. Como é possível ver a seguir, a maioria dos seus conflitos
giram em torno dos conteúdos aplicados, e da situação de insegurança que a escola
vive.
Por outro lado, a professora 5, que no início da pesquisa lecionava desde
2007 em uma escola localizada no bairro de Água Santa e há cerca de 7 anos na
mesma escola que o professor 1 (em Bangu), devido a sua atuação, dentro sala de
165

aula na (re)conceituação dos conteúdos de geografia, e fora na busca por mudanças


sobre como os alunos e alunas eram tratados – devido a conflitos que serão
problematizados mais adiante – durante os anos em que era acompanhada pela
pesquisa se viu impelida a mudar da escola de Bangu, sendo transferida para uma
escola localizada no bairro Lins de Vasconcelos.
Também atuando de maneira incisiva junto aos membros do cotidiano
escolar, mas em uma realidade bastante diferente, no início da pesquisa a
professora 3 lecionava desde 2004 pela rede Municipal de São Pedro da Aldeia (em
uma escola localizada afastada do centro), e começou a lecionar em 2008 na rede
Estadual, atuava nos municípios de Tanguá e Itaboraí, municípios do Leste
Metropolitano, que possuem em linhas gerais uma realidade distinta de diversas
escolas da capital fluminense.
Durante o processo de pesquisa-ação o professor 2 trabalhou entre 2007 e
2010 em uma escola localizada em Venda das Pedras/Itaboraí (rede Estadual do
Rio de Janeiro) e começou a lecionar em 2008 em uma escola no bairro de
Bonsucesso, pela rede Municipal do Rio de Janeiro, e buscava implementar a lei
dentro dos conteúdos, e através de projetos interdisciplinares.
Já a professora 4 lecionava pela rede Estadual e estava lotada em uma
escola localizada no centro de Niterói, colégio esse que por sua centralidade recebia
um público diverso, tendo inclusive estudantes no município vizinho – São Gonçalo.
Visto isso, para melhor visualizar em que regiões cada um desses
professores e professoras atuavam, optamos por construir uma pequena tabela, com
o objetivo de destacar as redes públicas de ensino em que estavam locados, e as
localidades em que essas escolas estavam inseridas.

Tabela 1 - Relação dos professores e professoras acompanhados pela rede pública


de ensino/localidade em que a escola está inserida
Professor(a) Rede Pública de Ensino/Localidade da Escola
Professor 1 Rede Municipal do Rio de Janeiro/Escola localizada no bairro de
Bangu (Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro)
Rede Estadual do Rio de Janeiro/Escola localizada no bairro de
Copacabana (Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro)
Professor 2 Rede Municipal do Rio de Janeiro/ Escola no bairro de
166

Bonsucesso (Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro)


Rede Estadual do Rio de Janeiro/Escola localizada em Venda das
Pedras/Itaboraí (Município do Leste Metropolitano do Estado do
Rio de Janeiro)
Professora 3 Rede Municipal de São Pedro da Aldeia/Escola localizada na zona
Rural de São Pedro da Aldeia (Região dos Lagos do Estado do
Rio de Janeiro)
Rede Estadual do Rio de Janeiro/Escolas localizadas nos
municípios de Tanguá e Itaboraí (municípios do Leste
Metropolitano do Estado do Rio de Janeiro)
Professora 4 Rede Estadual do Rio de Janeiro/ Escola localizada no centro de
Niterói (Município do Leste Metropolitano do Estado do Rio de
Janeiro)
Professora 5 Rede Municipal do Rio de Janeiro/Escola localizada no bairro de
Bangu (Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro) e escola
localizada no bairro de Água Santa (Zona Norte da cidade do Rio
de Janeiro)
Fonte: O autor, 2017.

Além dessa diversidade de realidades, como destacado anteriormente, o


próprio processo de formação política/acadêmica desses profissionais ocorreu de
forma diferenciada. Entre os professores e professoras, existem graduados e pós-
graduados formados na Faculdade de Formação de Professores – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ), na Universidade Federal Fluminense (UFF),
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), na Faculdade de
Filosofia de Campo Grande (FFCG) e na Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO), o que apresenta uma diversidade de perspectivas sobre geografia
e sobre educação.
Para além da graduação, esses professores também possuíam uma formação
junto a movimento sociais e movimentos de área. É o caso do professor 1, que
durante a sua formação chegou a atuar junto ao movimento de pré-vestibular
comunitário, e na Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) seção local Rio de
Janeiro. Sobre a atuação AGB, cabe salientar que assim como visto no capítulo
167

anterior, esta instituição teve um importante papel na renovação crítica da geografia.


Outra professora que também militava na Associação dos Geógrafos Brasileiros
(AGB), mas na seção local Niterói, era a professora 3, que além dessa instituição,
tinha no Partido dos Trabalhadores (PT) um dos campos de atuação/formação.
Por fim, cabe salientar que as professoras 3, 4 e 5, enquanto professoras
assumidamente negras, também tinham neste dado, um conjunto de enfrentamentos
que mobilizavam não só o tratamento sobre o campo disciplinar, mas o próprio
tratamento que elas recebiam, enquanto mulheres, e enquanto negras.
Visto isso, como indicado no inicio do capítulo, o acompanhamento desses
professores já resultou em um rico material na forma de áudios e transcrições,
através dos quais foram montados quadros analíticos, tabelas e gráficos. É no
panorama evidenciado pelo quadro de conflitos na aplicação da lei 10.639/03, que
serão sistematizados e apresentados no decorrer deste subcapítulo uma série de
dados, que mostram o cotidiano escolar e o currículo de geografia enquanto um
ambiente e uma esfera em disputa por professores e professoras que tentam
através de suas práticas, combater o racismo na educação.

4.2.1 Apresentação dos conflitos no cotidiano das/dos docentes acompanhadas/os

A fim de apresentar as diferentes escalas e tensões que envolvem a disputa


do/pelo currículo praticado, protagonizados por esses professores, primeiramente
foram sistematizados os dados e apresentadas algumas questões sobre os embates
e dilemas, para posteriormente buscar entender os “tipos” de racismos presentes
nos conflitos relatados.
Para melhor problematiza-los, esses conflitos foram sistematizados em dois
campos passíveis de análise: os embates e os dilemas. O primeiro está ligado a
uma variedade de conflitos perceptíveis através de ações diretas e/ou indiretas,
engendradas por outros atores do cotidiano escolar. São ações que vão desde
mudanças de comportamento/tratamento, até o boicote deliberado às atividades
realizadas por esses professores. Já os dilemas não têm a dimensão explícita do
embate com outros atores do cotidiano, mas se configuram em relações de disputa
168

para a introdução da discussão racial, ocasiões que colocam os professores em


situações de difícil escolha. Elas podem envolver desde problemas estruturais, como
a falta materiais para fazer uma atividade, até relações que inúmeras vezes fogem
do ambiente escolar como a violência em torno do colégio, a relação com a
secretaria de educação etc.
Ao longo das 35 reuniões que ocorreram nesses quatro anos, foi relatado um
total de 89 conflitos, sendo 84 foram relatados pelos cinco professores
acompanhados desde o inicio. Destaca-se ainda, que destes, 54 giraram em torno
dos embates, se conformando na maior parte dos conflitos enfrentados pelos
professores acompanhados desde o início da pesquisa.

Gráfico 1 – Separação entre Embates e Dilemas relatados pelos 5 professores


acompanhados de 2008 a 2011

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Como o objetivo principal dos relatos não era apresentar os conflitos


presentes no cotidiano cabe ressaltar que alguns professores, ao reconstruírem a
sua prática no cotidiano escolar, privilegiavam algumas formas de enfrentamentos
em detrimento de outras. Como efeito disso, se consegue obter de forma
“espontânea” um amplo banco de dados sobre os entraves para o tratamento da
questão racial em várias esferas do cotidiano escolar.
Nesse sentido, como é possível ver no gráfico a seguir, existe uma maior
incidência de alguns professores no quesito relato de embates, e de outros
professores, no quesito relato de dilemas.
169

Gráfico 2 – Relação entre Embates e Dilemas por Professor(a)

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Cabe salientar, além das diferentes formas de relato, devido a precarização


do sistema educacional, e do regime de trabalho imposto aos profissionais da
educação, alguns desses professores não conseguiam dentro de sua prática
cotidiana, perceber algumas relações de poder-saber existentes no cotidiano
escolar. É o caso do professor 2, que frente aos dilemas e embates dos outros
professores, relata que:

Para mim fica mais difícil de observar essas coisas porque eu trabalho em
uma “cacetada” de escolas ficando cada vez menos tempo então eu não
tenho muito contato com os professores, diretor e muito menos com
coordenador. [...]
Acaba que a gente não se dedica muito a nenhuma das instituições que a
gente trabalha, mas o que dá para perceber de certa forma que o tipo de
relacionamento, esse tipo de debate entre alunos dá para perceber porque
o maior tempo a gente está em sala de aula, [...] e é onde a gente tenta dar
uma equilibrada na relação. (Professor 2, Setembro de 2009)

Ao fazer esse relato, o professor 2 apresenta uma das faces desse regime de
trabalho, que é a impossibilidade de diversos professores vivenciarem seus
cotidianos escolares de uma maneira densa. Ou seja, o fato de lecionar em diversos
lugares, faz com que as suas relações cotidianas sejam abaladas, inclusive para
perceber esses “desvios” presentes no cotidiano escolar. Em outras palavras, o
regime de trabalho imposto a diversos profissionais faz com que esse amplo campo
seja cortado das suas vivências cotidianas.
170

Cabe realçar, que além desse regime restringir a interação dele com outros
professores, ele também impede uma maior interação com os alunos. Isso faz com
que processo educacional seja prejudicado, restando ao professor, o esforço de
articular as discussões com os conteúdos, transformando os conteúdos em uma
saída para tensionar o racismo no cotidiano escolar.
Essa baixa interação somada as diferentes formas de relato, anteriormente
apresentados, faz com que esse professor apresente em seus relatos uma situação
de baixa conflitividade (gráfico abaixo) quando comparado com os conflitos relatados
pelos seus pares, em especial a professora 4 – única professora que trabalha em
uma única escola.

Gráfico 3 – Total de Conflitos por Professor(a)

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Através desses relatos, também conseguimos experiências que evidenciam o


conflito com diferentes atores, em diferentes espaços e em torno de diferentes
objetos. Para melhor organizar esses dados os mesmos foram sistematizados de
forma que visibilizassem os interlocutores no caso dos embates, assim como os
motivos para os conflitos acontecerem, no caso dos dilemas.
Tratamos enquanto interlocutores os diferentes atores com quem os
professores mantiveram uma relação conflituosa e de alianças no cotidiano escolar.
Como forma de analisar a recorrência de um determinado tipo de interlocutor, estes
foram divididos nos seguintes grupos: a) Aluno(s), b) Professor(es), c)
Coordenação/Direção da escola, d) Comunidade Escolar, e) Secretaria Municipal de
171

Educação/ Secretaria Estadual de Educação, e f) Outro(s) ator(es). Dessa forma,


podemos visibilizar a recorrência das relações de alianças e disputas construídas no
cotidiano desses professores.
Cabe salientar que alguns relatos apresentavam mais de um interlocutor,
exercendo papeis de alianças e/ou disputas. Devido a isso, o número de
interlocutores extrapola o número de relatos, como se pode ver no gráfico a seguir.

Gráfico 4 - Interlocutores em relações de Embates

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Nesse gráfico, a comunidade escolar, entendida aqui como o corpo social da


escola composta por discentes, os diversos profissionais da escola e pais ou
responsáveis pelos alunos, apresenta relação de aliança dos embates relatados.
Contudo, podemos observar que existe um número maior de opositores em relação
a aliados, com destaque para o papel da Coordenação/Direção, e dos professores
que juntos somam 76% dos opositores as práticas engendradas e defendidas pelos
professores acompanhados.
172

Gráfico 5 - Porcentagem de opositores a prática dos professores acompanhados

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

O que faz com que existam tantas relações de embates entre os professores
acompanhados e a direção e outros professores? Quais são os catalizadores dessas
relações de conflito? Em torno de que giram essas disputas? Quais são os “objetos”
mais disputados nessas relações cotidianas?
Com o objetivo de compreender melhor essas relações de embate, sem que
com isso se perca algumas particularidades, agrupa-se os objetos em disputa em
torno dos eixos: Evento interdisciplinar, Currículo praticado, Disputa político-
pedagógica, Tratamento/Comportamento sobre a temática racial e Outros. Apesar
de compreender que algumas dessas disputas dialogam entre si, como é o caso dos
eventos interdisciplinares e a questão do currículo praticado, e as disputas políticas
e o comportamento/tratamento sobre a temática racial no ambiente escolar, optamos
por apresenta-las de maneira separada para ressaltar a dimensão do objeto em
disputa.
Visto isso, apesar de existir uma concentração das relações de embates, com
a distribuição por professores, e com alguns interlocutores, como é evidenciado pelo
gráfico a seguir, não existe uma concentração no que tange aos objetos em disputa.
173

Gráfico 6 - Objetos em disputa nas relações de Embate

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

No que tange aos embates envolvendo os eventos interdisciplinares, a maior


parte girou em torno da construção de semanas que tratassem a temática sobre a
questão racial de maneira interdisciplinar. Enquanto um momento que os
professores eram “obrigados” a se reunirem com seus pares, as diversas visões de
mundo se chocavam, fazendo com que os posicionamentos políticos e ideológicos
aparecessem. Isso fica nítido quando uma das professoras relata em abril de 2010
que a direção definiu que naquele ano os projetos iriam ser construídos por área,
cabendo aos professores das disciplinas de Geografia, História, Sociologia e
Filosofia fazer o “Dia da Consciência Negra”. Sobre a construção desse evento a
professora 3 relata:

[...] dos professores que tinham participado da reunião por área foi tranquilo,
eram os professores de História e Geografia. Não tinha ninguém de
Sociologia e Filosofia. E ai tiraram umas linhas iniciais de como seria o
projeto, ali eles definiram que iria fazer durante o ano, tentar, ai eu tinha
dado essa sugestão e eles ficaram de tentar dentro dos conteúdos, que no
início da reunião eles fizeram com base na proposta que a secretaria
estadual mandou sobre o currículo, todas as áreas lá, todos os professores
resolveram pegar a base curricular e discutir em cima disso. Não quiseram
fazer nada diferente e enfim, teve área da escola que: “não, está ótimo!” e
teve área que: “não, aqui está ruim!” E aí eles fizeram isso, e aí dentro do
que eles definiram dos conteúdos eles iriam buscar temas que pudessem
trabalhar no sentido de dar a consciência do porque do dia 20. Então o tema
que eles sugeriram é: “Resistência Negra – O Porquê do dia 20 de
Novembro”, esse é o tema que cada área vai trabalhar. Só que não tinha
ninguém de Sociologia e nem de Filosofia. [...] E aí, tinha marcado outra
reunião, e já ampliando para que os professores de Filosofia e Sociologia
estivessem para poder passar o que o pessoal de História e Geografia tinha
definido. E aí foi aonde foi o conflito. Que uma professora de filosofia, que
174

eu já tinha relatado que ela da aula de código de trânsito na aula de


filosofia, e ela virou e falou que era contra o dia 20, que não concordava,
mas que já que era uma coisa definida, ela não ia mesmo conseguir reverter
isso não é, mas que ela não ia fazer nada! Aí eu fui puxar a discussão do
por quê? Aí ela veio com um discurso que tem que trabalhar a diversidade:
onde ficam os indígenas, os brancos, e enfim... Não ficou uma coisa muito
boa. (Professora 3, abril de 2010)

Cabe destacar que esse não foi o único embate entre as professores,
posteriormente, a professora acompanhada informou que essa professora de
filosofia estava desestimulando os alunos negros a pleitearem as cotas nos
vestibulares falando que era contra e colocando motivos falsos para isso.

[...] ela de certa forma joga contra, ela foi uma que espalhou na escola que
a UERJ estava formando turmas para ser contra as cotas. Porque eu tinha
feito um debate com os terceiros anos no início do ano sobre vestibular,
falando de ações afirmativas, que os alunos na verdade não tem
informação, então eles ficam formando ideias de coisas que eles não têm e
aí fui esclarecer. E eu acho que deve ter isso. Acho que ela foi falar, e
espalhou isso na escola, espalhou isso na turma, que a UERJ estava
formando turmas só para cotistas e por isso era contra. Que uma professora
amiga dela foi convidada para dar aula pra essas turmas. Eu não aguentei,
disse que não. Que isso é mentira. Que é um absurdo. O problema é
reverter isso. (Professora 3, abril de 2010)

Ainda sobre o papel dos eventos nas disputas ocorridas no cotidiano escolar,
é interessante destacar o papel da lei 10.639/03 e da instituição do dia 20 de
novembro enquanto dia da consciência negra. Em setembro de 2008, uma das
professoras que estava planejando fazer um evento sobre profissionais negros
oriundos de escola pública, teve o seu projeto substituído por um que iria tratar
sobre “meio ambiente” sob a alegação de que o 3º bimestre estaria curto. Isto
colocado, o professor relata:

Aí eu falei: “Geralmente o quarto (bimestre) é mais curto do que o terceiro”.


Aí eles disseram “Se não der para fazer nesse, nós fazemos no início do
ano que vem”. Eles vão empurrando com a barriga. O grande lance é que
está chegando o dia 20 de novembro aí, e aí eles não têm como escapar de
um projeto relacionado à questão negra, então a gente vai procurar
trabalhar e elaborar um projeto voltado mais para 20 de novembro, porque
aí a gente deixa os caras de “calça-curta” e aí não tem como eles fugirem
da discussão. (Professor 2, setembro 2008)

Com isso, mesmo defendendo que a discussão deveria ocorrer em todo o ano
letivo, e propor que tivessem eventos relacionados com a questão racial em outros
bimestres, a professora garantia a existência do debate, pelo menos no mês de
novembro. É importante destacar também que esses eventos se desdobravam em
175

disputas pelo currículo praticado por outros professores, fazendo com que tivessem
que “em tese” introduzir o debate em suas aulas. Contudo, nem sempre isso ocorria,
como expõe a mesma professora em um relato de 2009:

[...] os alunos estavam fazendo exercício normal que ela passou para copiar
no quadro e ela sozinha montando um cartaz para dizer que foi a turma que
fez, mas não foi a turma foi ela quem fez. [...] Ela está impedindo que a
turma dela participe porque ela não acredita que exista o racismo e acabou,
mas para ela não ficar mal na fita ela produziu uns cartazes e foi lá e
colocou o nome da turma. [...] É só pedir para ela trabalhar uma semana a
África na escola, um projeto junto com os alunos em sala de aula que você
começa a perceber as coisas e como elas acontecem ainda mais que eu
fiquei lá a semana toda e eu entrava na sala de aula então eu via como as
crianças eram tratadas. (Professora 4, novembro de 2009)

Esses relados mostram como os professores em suas atividades fora do


ambiente da aula também disputavam a introdução do debate no ambiente escolar,
expõe também uma interpretação mais complexa da lei, e a mobilização dela
enquanto um artefato político que fazia com que a rotina construída no cotidiano
escolar fosse em parte abalada. Para além dessa disputa na forma de eventos, elas
ocorriam também, no momento da aula, disputando a ressignificação dos conteúdos
da disciplina através de seu currículo praticado.
Ao tentar aplicar a lei 10.639/03 esses professores e professoras acabam
disputando a criação de uma educação pautada em outras formas de conhecimento,
outras bibliografias que não a hegemonicamente presente nos livros didáticos e nas
aulas de outros professores 25.
Outro importante campo destacado no gráfico 6 são as disputas em torno do
tratamento/comportamento sobre a temática racial, de forma a tensionar o modus
operandi com que os diversos atores do ambiente escolar tratam e se comportam
quando alguma problemática envolvendo uma das dimensões do racismo aparece
nas relações cotidianas. É como aconteceu com uma das professoras, que ao
discordar de como alguns colegas de profissão tratavam os alunos e alunas negros
e negras, acabou relatando que:

[...] surgiu todo mal estar de uma conversa que eu tive com a coordenadora
de colocar que essas relações dentro da escola estão presentes, de varias
situações preconceituosas, inclusive partindo da direção, assim teve um
momento que eles decidiram impedir que os alunos que fossem negros, não
poderiam pintar o cabelo de loiro. Então assim, uma série de situações que
reforçam o preconceito, acontece na escola que ela se omite. E eu coloquei

25
Relato 1 do Anexo A.
176

minha posição contra aquilo e que o fato de ser a escola com a maioria de
alunos, mesmo que eles não se identifiquem como negros, mas que eles
são, e eles são estigmatizados, ainda tem o descaso da escola em relação
a todos esses problemas que se apresentam porque e uma população
pobre, negra, favelada. (Professora 5, setembro de 2009)

Sobre a relação dela com os demais professores a professora relatou que:

[...] eu passei a ser logo a chata, fiquei falada por professores, questionando
quem era eu para falar sobre a postura, o comportamento de alguns
professores. [...] discordo da maneira que questionam a postura de alunas,
que é errada em muitos momentos, mas não é por isso que na sala eu vou
chamar uma aluna de piranha, não é por isso que eu vou chamar um aluno
de pobre, preto e favelado. Não é por isso que eu vou dizer para você, que
sua mãe não faz nada é uma desocupada, e você também é desocupado.
E eu tentava colocar para a direção que essas questões tinham cunho racial
sim, que eles acham que não, que essa clientela ouve isso porque merece
ouvir. E aí esse primeiro grupo teve essa discussão, e eu me coloquei no
que eu tinha dito, de fazer uma critica a postura da direção, porque eu acho
que a direção tinha que fazer isso, só o que aconteceu, eu virei a antipática,
já não era bem vista, passei a ser mais odiada ainda e o que mais me
surpreendeu é que a escola sabe, e é o que mais me irrita, é que a direção
sabe dessas questões, não é nada feito escondido [...]. Essas falas são
comentadas na sala dos professores, no conselho de classe e a direção em
nome da perpetuação de seu poder, ela se cala. É o mais impressionante é
que a escola se cala e afirma que não há preconceito, quer dizer não há
preconceito em uma professora entrar e falar um monte de coisa, e ela falou
isso outras vezes, na frente de outros colegas, de que “a eu entrei naquela
sala e vocês sabem né, ficou tudo escuro porque só tem preto na sala”, e a
escola afirma que não existem problemas de questão racial. [...] eu acho
que a escola como instituição não pode ser reprodutora de preconceitos e
eu acho que cotidianamente a escola faz isso e é isso que me incomodou e
hoje me incomoda tanto de eu não acreditar que a escola vai resolver isso,
não acredito que a atual direção ela se de conta e queira trazer tal
discussão. E há pouquíssimos parceiros, porque se eu já não era simpática
hoje eu sou menos ainda, teve uma colega que falou “chegou a inimiga
número um [do colégio]” sou eu né, dificilmente vou estabelecer parcerias
para desenvolver um trabalho diante do que foi falado. (Professora 5,
setembro de 2009)

Como desdobramento desse posicionamento, a professora sofreu uma série


de represálias, que culminou posteriormente, na sua transferida desse colégio que
ficava em Bangu, Rio de Janeiro. Isso faz com que essas disputas tenham uma forte
ligação com outro objeto de disputa apresentado no gráfico 6, que são as disputas
político-pedagógicas, entendidas aqui sobretudo enquanto disputas contra o
sucateamento físico e pedagógico das instituições de ensino onde estes professores
e professoras trabalhavam.
Visto isso, diante de casos de fechamento de turmas, laboratórios de
informática, restrição do uso de determinadas salas e espaços, não cumprimento ou
esvaziamento político dos Projetos Políticos Pedagógicos, entre outros fatores,
177

esses professores entravam em uma disputa política e pedagógica com outros


professores, com a direção e com as secretarias de educação a nível Municipal e
Estadual.
Assim como nas disputas sobre o tratamento/comportamento sobre a
temática racial, essas disputas influenciam nas experiências dos professores com o
ambiente escolar, com os colegas, com a própria estima do professor. É o que relata
uma das professoras acompanhadas nesse depoimento:

Professor sofre em todos os sentidos, porque o professor compromissado


que não quer um trabalho alienado ele sofre porque a escola atropela tudo o
tempo todo, a secretaria de educação atropela tudo. Se falar que somos
obrigados a fazer um projeto político pedagógico e o pessoal quer fazer um
projeto sério é criticado. Ele pega e manda um projeto de gaveta, a escola
pega e manda e pronto, é tudo assim “para inglês ver” nada é verdadeiro
entendeu, é tudo assim e isso me irrita. Tem hora que eu não aguento, ai eu
falo na frente de todo mundo ai cria aquele mal estar total enfim. Depois
elas tentam contornar. Mas isso cria um mal estar muito grande dentro da
escola, tem professores que são até mais sensíveis do que eu e por conta
disso quebra o dialogo com a escola totalmente. Tipo assim, tem professor
na escola que da sua aula e na hora do intervalo toma seu cafezinho lá em
baixo nem entra na sala dos professores, por não concordar com a direção.
Primeiro aquela direção foi imposta, ela não foi eleita por ninguém é cargo
político uma pessoa totalmente alienada a serviço dos interesses de nem
sei de quem. Acho que elas nem sabem o que estão fazendo lá. Omissas,
não tem voz nem pedagógica, nem política não tem nada, não sei o que
estão fazendo lá. A escola acabou, desde que ela pegou fechou a sala de
computadores, a escola só quebra, quebra, quebra, não fica nada inteiro,
cada dia que eu chego lá, que é isso tem um novo buraco. (Professora 4,
novembro de 2010)

Através desses relatos, percebe-se que a introdução da discussão sobre a


questão racial implica em uma série de relações que ultrapassam a dimensão das
tessituras do cotidiano (ALVES, 2001). Ou seja, a discussão sobre a questão racial e
sobre a própria escola não se limita a um conjunto de conteúdos a serem passados
em sala de aula, mas também abrange uma série de posicionamentos dentro e fora
desse ambiente. Com isso, os relatos reforçam, assim como foi trabalhado no
capítulo anterior, que nos seus cotidianos, professores perpassam por diversas
relações que ultrapassam a sala de aula, relações que impactam na relação com o
outro, mas também na relação consigo mesmo.
É o que se pode ver quando adentra-se nas discussões presentes nos
conflitos envolvendo dilemas. Como são relações de entrave, que nem sempre tem
um ator com que se possa dialogar, trabalha-se aqui com a ideia de
178

Motivador/Interlocutor, da mesma forma que em vez de objetos em disputa,


apresenta-se o Núcleo dos Dilemas/Objetos de Disputa.

Gráfico 7 – Motivador/Interlocutor dos Dilemas

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Como é possível observar no gráfico anterior, os dilemas, geralmente


acontecem graças às dinâmicas internas da Escola, à precarização do Ensino
Público e ao entorno sócio-espacial, somando os 3 em conjunto 80% dos dilemas
relatados.
Ao analisar os casos individualmente, nota-se que a maior parte dos dilemas
que envolve o entorno sócio-espacial, são questões envolvendo o tráfico de drogas,
e a intervenção militarizada da polícia nas comunidades onde as escolas estão
inseridas, ou são vizinhas. É como relata um dos professores:

O problema é que dentro da estrutura do município, de organização da


escola, tivemos várias aulas paradas, dois tiroteios fortes, quatro detidos na
DPO local e tivemos que sair com o “caveirão” escoltando a gente, o
“caveirão” na frente, duas blazers e oito carros de professores atrás,
lotados. (Professor 1, abril de 2009)

Em março de 2010 ele volta a relatar sobre a situação na localidade onde


trabalha:

Esse é um ano que eu tenho duas turmas muito boas a 91 é muito boa, a 92
é uma boa turma, partiu da 92 pra 96 aí é um Deus me livre total, mas a
gente vai conseguindo acertar mais ou menos. Chatos são os problemas ao
redor da escola, a comunidade anda meio tensa demais, a escola anda
meio tensa e isso esta sendo refletido no comportamento dos alunos que
estão muito tensos dentro de sala . (Professor 1, março de 2010)
179

Ainda sobre o entorno sócio-espacial, é importante destacar que a violência


atinge sobretudo os estudantes, como relata uma das professoras, ao notar o
desaparecendo de diversos alunos:

[...] essa é uma discussão que eu já venho travando desde o primeiro


bimestre com a turma do primeiro ano. Como os primeiros anos é um caos
total, com a turma uma vez vem um, outra vez vem outro, e no conselho a
gente perguntou, cadê os alunos que estavam naquele “acelera” que não é
“acelera” no Estado? Sumiram? Aí é super triste a gente saber que fulano
está no tráfico, fulano está não sei aonde, sei que lá, sei que lá, sei que lá.
Todos negros, aí me dá uma tristeza, me dá uma angustia de mais um ser
morto. Que aquela área do Centro de Niterói, os alunos começam a roubar,
os seguranças vão e matam, são vários alunos, que já foram mortos dessa
maneira. Que ali é lugar, onde tem as lojas, onde tem o shopping aquilo,
então é um lugar que as ruas têm segurança particular, até na Rua São
João tem segurança. E eles falam, se for pego outra vez, não sei o que lá. A
diretora cansa de salvar aluno lá: "vão pegar o aluno tal e vão matar" e vai
todo mundo correndo pegar o aluno, que dizer, isso no século 21, no centro
de Niterói, e acontece predominantemente com os alunos negros.
(Professora 4, outubro de 2011)

Com isso, percebe-se que as atividades do tráfico de drogas (comuns em


algumas comunidades do Rio de Janeiro), a política do governo do Estado de
combate as drogas e a própria militarização da sociedade acabam interferindo de
maneira direta "vida escolar", nas relações cotidianas e dessa forma na Dinâmica
interna da Escola. Sobre esse campo, além das inferências causadas pelo entorno
sócio-espacial, o cotidiano escolar é fortemente impactado diversos outros fatores.
Entre os relatos obtidos, questões relacionadas à obras, excesso de feriados,
falta de água, reuniões pedagógicas, em suma, questões que quando aparecem
acabam interferindo de forma direta ou indireta com a comunidade escolar. É o caso
da professora 3, que estava organizando uma jornada de ciência, cultura e
tecnologia, mas a escola entrou em obra. Sobre esse episódio ela relata, “[...] Há
oito anos eu estou querendo realizar essa jornada, mas também a semana [afro]
demorou oito anos e aconteceu no ano passado, enfim.” (Professora 3, julho de
2010). Nos meses seguintes a professora informou que o que começou com um
pequeno dilema, pois existiam problemas pontuais para a realização da jornada,
acabou se tornando um embate, uma vez que pressionaram dentro das disputas
políticas – faladas nos embates – para que ela escolhesse entre a “Jornada” e a
“Semana”.
Já no que se refere a precarização do ensino público, são dilemas envolvendo
(em sua maioria) o sucateamento da escola pública, que inserida em um modelo
180

neoliberal de educação acaba perdendo a sua identidade. Nesse sentido, esse


recorte junta desde o fechamento de turmas para a introdução de projetos de
parcerias público-privadas, passando pela flexibilização do trabalho do professor,
que tem que dar aula em diversos colégios e não tem tempo para desenvolver um
trabalho maior na escola, chegando as políticas de bonificação dos professores que
estiverem em colégios com alunos bem pontuados em mecanismos de avaliação
externa. Sobre esse último ponto, uma das professores relata:

[...] cada vez que eu vejo a direção trabalhando em gestão, que agora ela
tem que ser gestora como se a escola fosse uma empresa, só que fica uma
confusão gente. [...] Enfim, mas assim, criou uma desordem essa coisa do
“Saerjnho” teve professor que não pôde aplicar a prova dele por conta
disso, uma confusão, mandaram a gente agilizar o provão pra auxiliar.
Porque tinha que agilizar pra entregar senão a escola ia perder ponto e os
professores não iam ganhar os quinhentos reais de Maio. (Professora 4,
abril de 2011)

Esse processo, somado a outros vai fazendo com que os professores


questionem as suas práticas, e o próprio sentido de escola que está sendo
construído. Ademais, cabe relembrar (como destacado no início desse debate), que
no momento da reconstrução sobre a sua prática docente na tentativa de
implementação de um viés antirracista nas aulas de Geografia, alguns professores
destacavam mais algumas dimensões das relações no cotidiano escolar do que
outra.
Esses relatos de dilemas reforçam a percepção que para a introdução de uma
educação antirracista, todo o modelo de educação deve ser questionado. Isso fica
mais nítido ao analisar a diluição dos embates e dilemas durante o ano letivo. Essas
formas de conflito aparecem de maneira diluída durante o ano, mesmo tendo alguns
picos nos meses de abril, setembro e novembro.
181

Gráfico 8 - Quantidade de Embates e Dilemas divididos por Mês/Ano

Fonte: NEGRAM. Projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o ensino de Geografia”, 2013.

Sobre esses picos, é importante salientar que com exceção dos relatos de
novembro, que em sua maioria são sobre a construção de atividades que abordam a
discussão sobre a questão racial. Já os conflitos referentes a abril e setembro não
possuem nenhum padrão. Ou seja, são conflitos variados, que não apresentam
recorrência de objetos de disputa ou interlocutores.
Ainda sobre os conflitos ocorridos no mês de novembro, é importante
destacar que devido a especificação na lei 10.639/03, de que no dia 20, é
considerado no calendário escolar o Dia da Consciência Negra, esse mês acaba
sendo ou o ponto de culminância de diversas atividades que abordam a questão
racial, ou o dia em que essas atividades são feitas.
Contudo, é importante ressaltar que para além do panorama apresentado
pelas informações sistematizadas e apresentadas, o principal objetivo aqui é
analisar e compreender como o professor de geografia, ao tentar implementar a lei
10.639/03, encontra em diversos atores e em diferentes escalas do cotidiano
escolar, antagonistas e aliados. E principalmente como essas relações acabam
através dos embates diretos e dos dilemas, moldando como se é tratado o debate
sobre a questão racial dentro deste ambiente escolar.
182

Feita essa apresentação dos dados, algumas perguntas acabam sendo


levantadas: Por que a mudança na forma de tratamento da temática racial, gera
tantos embates e dilemas? Existem locais específicos em que esses conflitos
ocorrem? Como essas interações influenciaram nas vivências cotidianas desses
professores? Qual é o rebatimento em seus currículos praticados? Essas são
algumas questões que trabalharemos a seguir.

4.2.2 A prática docente antirracista e as tensões nas relações do/no cotidiano


escolar

Como destacado no primeiro capítulo, as interações são centrais para a


leitura de cotidiano, uma vez que possibilita entender o cotidiano enquanto um
ambiente complexo, mas que só existe a partir de um conjunto de relações e
interações nele existente. Como observado no segundo capítulo, esse cotidiano é
organizado por relações de poder-saber, o que faz com que se tenha uma
multiplicidade de palcos de interações – para começar a usar a leitura teatralizada
de Goffman (1985).
Para além, a leitura até então realizada, e os dados acima sistematizados,
evidenciam que o cotidiano tem em sua estruturação, hierarquias de poder-saber
que ultrapassam os muros da escola. Uma estruturação que se faz presente através
das secretarias de educação, das provas de regulação, das comunidades
epistêmicas ou da própria tradição seletiva do currículo.
Da mesma forma, ao retomar as contribuições de Goffman (1985), pode-se
ver na inter-relação entre a análise técnica, politica, estrutural e cultural do cotidiano,
e no conjunto das interações rotinizadas (GIDDENS, 2003) realizadas nesse lugar (o
cotidiano escolar), a possibilidade de evidenciar a existência de uma leitura espacial.
Ou seja, para além de um lugar que representa a materialidade do cotidiano, são as
relações interpessoais que nele acontecem.
Em tempo, é fundamental reforçar, que o cotidiano escolar é um lugar
complexo, possuidor de um padrão único de interações e relações de poder-saber,
183

que atende a interesses de grupos hegemônicos, mas que também é palco de


atuação de grupos insurgentes.
Essa forma de entender o cotidiano escolar possibilita complexificar algumas
leituras que buscam cristalizam o cotidiano enquanto meramente local de encontros,
ponto final (ou inicial) de um fluxo de diferentes experiências, ou trajetórias.
O presente estudo destoa dessa leitura, pois entende o cotidiano, enquanto
palco de uma série de interações imbricadas, que servem: i) para assegurar a
própria re-produção desse lugar; e ii) para garantir o funcionamento de acordo com o
que a sociedade exige dele. Cabe ressaltar, que não se tem a intenção aqui de falar
que o cotidiano não possui a confluência de diferentes experiências, mas sim, que
além dessas, apresenta outras relações, interações, trajetórias, que permitem
evidenciar a existência de um complexo padrão de relações, que se organizam de
forma rotinizada.
Ao somar-se a essa leitura, o papel dos contextos em que elas ocorrem,
reforça-se a leitura que o espaço físico não é materialidade do cotidiano, mas sim as
interações e os contextos em que elas ocorrem. Ou seja, dependendo do contexto
de interação o mesmo palco pode servir para uma finalidade e em outros contextos
ele serve para outra. Isso aparece em diversos relatos, como por exemplo, quando a
professora 4 indica que tem professores que na hora do intervalo optam por não ir
para a sala dos professores, e acabam ficando em outros lugares 26.
Com isso, pode-se observar que as estruturas presentes no cotidiano escolar
fazem com que estes professores e professoras não adentrem e/ou apropriem de
determinadas formas de interação, ao mesmo passo que constroem outros (com a
mudança do seu palco de interação). Com isso, pode-se notar um reordenamento
daquelas interações realizadas durante o período do intervalo, a partir do momento
em que alguns docentes vão para a sala dos professores e outros vão para outros
espaços do colégio.
Esse “cenário” apresenta contextos e interações que acabam construindo
campos, tipos e espaços de interações, que consequentemente re-funcionalizam a
própria estrutura da escola.
Isto é, dependendo do contexto de interação, os mesmos cenários do
ambiente escolar podem ser palco para um determinado tipo de interação e em um

26
Relato 34 do Anexo A.
184

momento posterior, ser utilizado para outra forma de interação. Complexificando um


pouco mais essa leitura, pode-se observar, que o mesmo cenário, pode ser
organizado através de diversos tipos de interação, no mesmo tempo.
Ao retomar o relato da professora 4, é visível que ao ir tomar um café no
pátio, por exemplo, esse mesmo cenário que para os alunos é um lugar de
brincadeiras, conversas ou fazer bagunça, pode ser o lugar onde uma professora ou
um professor interage com outros atores, conversa sobre determinados assuntos,
que não poderiam ser colocados na presença dos outros docentes – na sala dos
professores. Ou melhor, o relato apresenta: i) a existência de um cenário (o pátio
durante o recreio) com múltiplas formas de interação; e ao mesmo tempo apresenta
ii) a existência de um outro palco de interação (a sala dos professores) que devido
ao fluxo rotinizado das interações, deveria ser o ambiente em que esse docente
deveria estar.
Com isso em vista, ao extrapolar essa leitura para todo o ambiente escolar, é
perceptível que o mesmo palco pode servir de cenário para interações distintas, em
diferentes momentos. São as relações e interações construídas nesses palcos, em
conjunto com o ordenamento das táticas (CERTEAU, 1994), que permite a
possibilidade de observar a variedade de interações, que por si, mostra um
encadeamento das interações e com isso o rompimento ou não com fluxo rotinizado
(GIDDENS, 2003) apresentado anteriormente.
É importante destacar também, que esse encadeamento de interações é
fundamental: i) para manter um conjunto de relações que conformam o habitus
presente no ambiente escolar; e ii) para acomodar as tensões que existem no
cotidiano escolar.
Sobre o segundo ponto, é interessante observar que essa acomodação se
torna complexa à medida em que os conflitos aparecem e se intensificam. Conflitos
esses que se explicitam, não somente em embates inerentes ao campo da
Geografia e das relações internas da escola, mas às vezes dilemas envolvendo
questões externas à escola.
É o caso da violência urbana explicitada anteriormente pelo professor 1 27, ou
o “sumiço” de alunos, relatado pela professora 4 28. Situações que de diferentes

27
Relato 1 e 3 do Anexo B.
28
Relato 24 do Anexo B.
185

formas rompem com os ordenamentos e as hierarquias tradicionalmente construídas


na escola.
Da mesma forma, ao ler o currículo praticado enquanto um desses campos
disruptivos, evidencia-se que existe neste uma amálgama de relações, interações e
regulações que podem interferir não só prática docente, mas nas relações presentes
no cotidiano escolar. Contudo, cabe pôr em evidência que para além do currículo,
esse conjunto de relações, interações e regulações também são objetos de disputa
e ressignificação dentro do ambiente escolar.
Como pode-se ver através dos relatos, essa organização, que visa manter um
determinado habitus presente no cotidiano escolar, também se dá através de
processos de fragmentação da prática docente e do próprio currículo praticado,
como foi exposto em parte, no relato da professora 4, que ao adentrar a sala da
colega de profissão observou a mesma fazendo cartazes sobre a temática racial, por
não acreditar na existência do racismo29. Ou do professor de inglês, por também não
acreditar no racismo, falou que após a atividade iria dizer que não existe racismo no
Brasil.

[...] que quando a gente sabe que o professor não está na nossa a gente
pede: Posso fazer a oficina na sua aula? Eles falam que pode. [...] E aí
quando eu falei pra ele [um professor] do que se tratava o filme, ele falou
assim “Bem, já que você está aqui, você vai ficar, mas vou falar pra minha
turma: no Brasil não tem racismo!”, [...] Olha, foi uma confusão, aí eu o
deixei ele falando, não vou discutir na frente das crianças, mas você permite
que eu passe o filme, aí ele disse “permito”, aí ele ficou o tempo todo lendo
e não viu o filme. Você acredita num negócio desse? (Professora 4,
Novembro 2009)

É importante ressaltar que esse tipo de posicionamento é ratificado por um


acordo tácito existente em grande parte das escolas, bastante presente no processo
de invisibilização dos conflitos de ordem racial, como visto no caso da professora 5,
quando a mesma – devido a conflitos com outros professores e com a direção – se
viu “obrigada” a mudar da escola que trabalhava em Bangu, para uma nova escola
em Lins de Vasconcelos.
Esse relato evidencia no cotidiano escolar, uma articulação das relações de
poder, em prol da ratificação das práticas tradicionalmente realizadas nesse
ambiente. Um acordo que quando abalado, pode causar retaliações, como pode-se

29
Relato 23 do Anexo A.
186

ver no relato da professora 5. Salienta-se que essa articulação envolve relações de


poder, pois ratifica posicionamentos contrários a implementação de novas práticas
que visem combater as hierarquias presentes no cotidiano escolar. Com isso ao
mesmo tempo fragmenta as práticas construídas no cotidiano da escola “[...] já que
você está aqui, você vai ficar, vou falar pra minha turma: no Brasil não tem racismo”,
cristaliza um conjunto de relações de poder-saber, acomodando assim as estruturas
já construídas nesse ambiente.
Ou seja, essa articulação, legitima politicamente (GOFFMAN, 1985)
determinadas ações, ao mesmo tempo em que impede que novas práticas sejam
engendradas. Com isso, este ambiente deixa de ser o lugar do novo, do diferente,
ou o palco do exercício e da liberdade pedagógica como é visto em diversas leituras
sobre o cotidiano escolar, pois essa articulação busca congelar esse cenário, e com
isso, normatiza um conjunto de saberes e práticas passiveis ou não de serem
implementadas.
Concomitantemente, essa articulação através das dimensões técnicas e
estruturais (GOFFMAN, 1985) cristaliza uma organização espaço-temporal de
funções, de papéis, de atos que são organizados e mobilizados para acomodar
tensões ou possíveis tensões dentro do ambiente escolar. Esse debate se torna
ainda mais importante para o presente estudo à proporção que observa-se a lei
10.639/03 enquanto uma ferramenta mobilizada para a ruptura dessas articulações.
Esse movimento permite observar que à medida que os professores e
professoras inserem em seus cotidianos outras práticas (teóricas-conceituais e no
campo do tratamento dos indivíduos) que não as “tradicionais”, acabam mexendo
com hierarquias, relações, e as próprias as relações de trabalho até então
acordadas. Esses professores e professoras passam a questionar dentro do campo
das relações construídas no cotidiano escolar e da própria geografia, o que até
então era hegemonicamente aceito. Com isso, esses e essas docentes passam a
ser essa disrupção da ordem até então estabelecida.
Ao discutir hierarquias e privilégios, os professores e professoras
acompanhados/as estão rompendo com essa articulação e ao fazer esse movimento
tensionam a continuidade desse padrão de relações. Rompem, pois ao complexificar
a leitura da lei 10.639/03, por exemplo, levam para o cotidiano escolar, diversas
discussões e debates que questionam o que é nele construído, ao mesmo passo
187

questionam as práticas pedagógicas e os conteúdos tradicionalmente aceitos. Em


um ambiente onde os saberes já estão acomodados e ratificados pelos diversos
acordos, isso acaba por pressionar ordenamentos das relações presentes no
ambiente escolar.
Ou seja, ao tentar implementar no currículo escolar uma interpretação da a
Lei 10.639/03 construída no/pelo Movimento Negro, entendimento esse que não é o
hegemônico nas políticas publicas de Estado, ou dentro da linha de quem escreve e
concebe os livros didáticos, ou como se pode ver através de alguns relatos, entre
professores e professoras, os/as docentes acompanhados/as, começam a levar para
dentro do cotidiano escolar as visões desse movimento social que historicamente
luta contra o racismo.
Esse movimento faz com que a lei 10.639/03 entre no campo da educação
em primeiro lugar como prescrição jurídica para equilibrar a representatividade do
negro dentro do currículo prescrito, e a partir da complexificação, como uma
ferramenta mobilizada na disputa pelo padrão de relações raciais presentes no
cotidiano e na educação.
Ao partir desse prisma, a lei 10.639/03 aparece no cotidiano, enquanto
elemento transformador de um ordenamento instalado dentro do ambiente escolar,
um ordenamento que como observado anteriormente, serve para acomodar uma
série de tensões presentes no cotidiano. Portanto, é importante salientar, que uma
prescrição também pode servir para acomodar essas tensões, na medida em que
permite realizar as articulações faladas em um momento anterior, ou ainda, serve
como reguladores da prática docente, como se viu no início do capítulo.
Isto posto, é importante destacar que a experiência do projeto evidencia que a
simples promulgação da lei, sem a revisão e implementação dos conteúdos e das
metodologias presentes no cotidiano escolar, não foi/é capaz de equilibrar a
relações raciais.
Somado a isso, a análise dos quadros de conflitos, para além dos números de
embates e dilemas, permite observar que são variados os enfrentamentos que
permeiam a prática de professores e professoras que visam trabalhar a temática
racial no ambiente escolar. Da mesma forma, ao partirem de um ponto de vista
social, cultural e político específico, a prática desses docentes indica de forma direta
188

e indireta, conflitos com as dimensões técnicas, politicas, estruturais e culturais


presentes no cotidiano da escola.
Ao utilizar o conceito de áreas de movimento de Melucci (2001), apreende-se
que esses professores ao levarem para o cotidiano da escola as interpretações
construídas no/pelo Movimento Negro, deixam de ser agentes de uma dada
complexidade social chamada escola, para serem agentes múltiplos, que articulam
através de suas práticas, interpretações e disputas oriundas outros campos, como o
Movimento Negro.
Esses atores dentro de um campo de solidariedade escolar passam a ser
promotores de tensionamentos, a partir do momento que seus pensamentos e
comportamentos passam a ser formados também com atores desse outro campo de
solidariedade. Ou seja, nessa movimentação que é complexa, eles começam a
entrar em choque com interpretações “conservadoras” da lei 10.639/03, com a forma
em que os alunos negros são tratados neste ambiente, em suma, com os acordos
tácitos e as articulações que visam manter uma dada relação de poder-saber.
Contudo, assim como falado anteriormente, ao romper com as relações de
poder-saber que estão acomodadas dentro desse cotidiano, ou do fluxo rotinizado
(GIDDENS, 2003) de interações, os demais sujeitos do cotidiano escolar mobilizam
uma série de ferramentas, para deslegitimar os promotores do tensionamento à
ordem que oculta o racismo.

[...] sempre fui perseguida na escola pela direção e por um grupo de


professores e então o que a gente procura fazer dentro da escola? A gente
procura fazer o nosso melhor. A gente procura não chegar atrasado, não
faltar, dar os conteúdos e ter uma boa relação com os alunos, porque...
assim... qualquer deslize nosso, vão falar “Aquele bando de gente que só
vive falando da questão de negro” (Professora 4, setembro 2009)

Ou seja, ao romper com o hábitus, com o conjunto de práticas e de relações


que se organizam espacial e temporalmente no cotidiano escolar, o professor
adentra em um intenso e múltiplo campo de conflito. Um pouco dessa multiplicidade,
pode ser vista no relato abaixo:

A escola vem fazendo um trabalho já, sobre a questão. O negro na


educação, observando a raça no cotidiano escolar, isso é feito de maneira
fixa por cinco professores que já vem anos fazendo até de outras escolas
também. Só que há uma decisão desse grupo de fazer isso de uma maneira
não institucional, porque há sim um medo da instituição estar usando isso
de uma maneira errada, ou então de que a gente não concorda com aquela
direção, agora veio outra que a gente bateu de frente, aí a que entrou agora
189

também o grupo já... Enfim, então reafirmamos o pacto que a gente vai
continuar trabalhando isso com nossos alunos e cada vez mais a gente vai
agregando outros professores, sem estar no Projeto Político Pedagógico. O
que eu não concordo mais, mas eu sou voto vencido, os outros pensam
assim e como eu sou parte do grupo e é uma democracia, eu tenho que
aceitar não estar no PPP o nosso trabalho, nem a Lei 10.639 [...]
(Professora 4, setembro 2009)

Esse relato faz com que se observe que existem múltiplas disputas no
cotidiano escolar e algumas dessas disputas se tocam e nelas os sujeitos mudam de
posições, fazem como foi visto em outro relato, com que pessoas que disputavam
num campo se dividam e se tornem antagonistas, e atores que disputam em outros
campos acabem se aproximando. Ou seja, ao mudar a disputa, esses atores
observam a estruturação de posições e se reposicionam dentro daquela que eles
consideram mais fortes.
Isso faz com que se entenda o cotidiano escolar como um ambiente composto
por diversos campos de disputas, que apresenta múltiplas esferas ou arenas e
agendas. Como se vê no relato, a disputa pelo/no poder da escola é um campo que
tem o seu próprio sistema de posições (direção, aliados, oposição, etc).
As disputas pelas políticas pedagógicas, por exemplo, se apresentam
enquanto um outro campo de disputa, que também tem em seu próprio sistema de
posições, relações antagônicas. Da mesma forma, (apesar de poderem se inserir
dentro da arena anterior) existem as disputas em torno da inserção da temática
racial, mas a intrínseca relação entre racismo e educação, faz dessa disputa um
campo separado.
Além dessas arenas e campos, há na mobilização das relações pessoais,
enquanto uma quarta camada que quando mobilizada articula elementos de foro
pessoal, mas que de forma indireta reforçam as disputas políticas, pedagógicas, e
pela temática racial. Ou seja, para além de não poderem se atrasar, são chamados
de “xiitas”30 como apresenta uma professora em julho de 2010:

[...] havia uma divisão. O pessoal do movimento e o pessoal que odiava a


gente, falavam que éramos um bando de malucos, que nós éramos uns
xiitas, que nós não éramos democráticos e que nós queríamos impor uma
coisa para a escola. Quando a gente dizia que a escola tinha um cotidiano
que era racista, nossa, a direção fazia a gente tirar aquilo “vocês vão tirar
isso do papel! Isso não existe na minha escola”. Olha, não é mole não,
trabalhar com essa questão. (Professora 4, julho de 2010)

30
Termo usado de forma pejorativa, para indicar que a professore era radical na luta contra o
racismo.
190

Ou seja, como explicitado nos capítulos anteriores e no início desse tópico, o


cotidiano escolar, é uma ambiência que possui no seu interior diversos cenários,
onde ocorrem variadas interações e disputas ocorrem. Cada cenário serve de palco
para diferentes formas de interação, que não estão isoladas das múltiplas disputas
que ocorrem no restante do cotidiano, ou mesmo da sociedade.
Ao seguir essa lógica, é viável dizer que ao mesmo tempo que essas
interações constroem o currículo, elas são construídas/alicerçadas por ele. O
currículo enquanto campo de/em disputa apresentam diferentes camadas, com
múltiplos atores que dependendo dos contextos de interação podem concordar ou
discordar das proposições.
Nessa perspectiva, as práticas cotidianas na disputa pela implementação da
temática racial, também são permeadas por outros campos de disputa – que podem
acontecer dentro e fora da escola.
Em suma, essas análises possibilitam observar que a complexidade das
interações existentes no cotidiano faz com que as disputas se imbriquem, e que
desse entrecruzamento, relações de embates e dilemas sejam evidenciados.
Visto um panorama geral sobre os conflitos envolvendo a tentativa de
implementar a discussão sobre a temática racial no cotidiano escolar, pode-se
observar que existe de maneira “não oficial” uma acomodação de relações sociais e
um padrão de relações raciais, que determina até que ponto os professores podem
avançar com a discussão sobre a temática racial – sem que estes entrem em conflito
com outros atores do cotidiano escolar.
Foi possível ver também que durante a tentativa da criação de uma educação
antirracista, diversos são os conflitos travados dentro do ambiente escolar. Quando
se leva para o campo do currículo, nota-se que essas disputas se tornam recorrente
no cotidiano desses profissionais da educação. Essa recorrência apresentada
permite enxergar esses professores enquanto militantes, que através de suas
práticas cotidianas e de suas micro-ações afirmativas cotidianas – apresentadas no
segundo capítulo – buscam reposicionar o negro na educação.
Professores militantes, pois possuem no “currículo praticado” a sua principal
ferramenta de luta contra o racismo, fazendo de suas práticas, e de sua militância,
um instrumento do Movimento Negro na luta para a criação de uma educação
antirracista.
191

4.2.3 Cotidiano escolar e o ensino de geografia: de um palco de conflitos a um


campo de disputa

Apesar da análise sobre os conflitos e o destaque para o papel da prática


docente no tensionamento das relações hierárquicas construídas no cotidiano
escolar, algumas questões ainda cabem ser problematizadas. Dentre elas, destaca-
se: i) a influência desses conflitos na geografia que se ensina; ii) como a leitura
sobre os contextos das interações, pode ajudar a compreender como o racismo se
reproduz através da geografia.
Essa segunda questão, pode ser desdobrada em 2 eixos de discussão: a)
Quais os momentos que os assuntos referentes a população negra são abordados?
Ou melhor, quais as interações promovidas pelo ensino de geografia? b) Em que
contexto os estudantes tem contato com assuntos referentes a temática étnico-
racial?
Esses questionamentos partem do entendimento de que apesar do currículo
prescrito atualmente não apresentar características clássicas do racismo, as
imagens presentes no livro didático (C. SANTOS, 2013; TONINI, 2002), a
organização de seus conteúdos (TONINI, 2002), a história da formação e ocupação
do território brasileiro (CORREA, 2014), a forma que se apresenta o continente
africano (DINIZ, 2015), a posição em que os negros são colocados no plano das
relações raciais (SANTOS, 2013), evidenciam a existência do que foi apresentado
através de Boaventura de Sousa Santos (2002) como epistemicídio.
Esse epistemicídio ocorre de forma implícita e explícita, por exemplo, quando
a população negra aparece sem protagonismo nos marcos de construção da
sociedade brasileira, ou quando é representada de forma anacrônica, quando suas
formas de organização socioespaciais são negadas etc. Também ocorre quando as
articulações, apresentadas no tópico anterior, impedem que novas práticas e novos
conteúdos adentrem o cotidiano escolar, e no caso do presente trabalho, na
geografia que se ensina. Por fim, ocorre quando a tradição seletiva no currículo de
geografia, homogeneiza e invisibiliza as especificidades, ao mesmo tempo que
ressalta de forma indireta as diferenças.
192

É um epistemicídio, pois exclui as formas de conhecimento construídas pela


população negra. Isso pode ser visto nos livros didáticos:

[...] a colonialidade nos permitiu apontar a presença do racismo nas páginas


dos livros didáticos de Geografia analisados. Não um racismo que se
manifesta de forma explicita, mas, velado, que se vale de critérios
comparativos, que utiliza como modelo, como ápice do padrão de
humanidade e civilização, a sociedade europeia e que, grosso modo, se
vale disso para inferiorizar os outros grupos humanos pertencentes a outros
grupos raciais. Tal fato não poderia deixar de ser diferente, uma vez que é
assim que, muitas vezes, o racismo se manifesta na sociedade brasileira,
de forma velada, mas mal maquiada, pois que um olhar, um pouco mais
perspicaz, consegue apontá-lo. (C. SANTOS, 2013, p.168-169)

Essa dificuldade em perceber o racismo também pode ser visto no relato


apresentado no início da dissertação, quando a professora 4, indica a existência de
uma disputa curricular e política com um colega professor de geografia. Uma disputa
política, pois a professora via nessa arena, uma possibilidade de combater o racismo
no cotidiano escolar, mas também curricular, pois via na temática quilombola, uma
possibilidade de inserir algumas das pautas presentes na lei 10.639/03 na geografia
que se ensinava.
Além disso, e já entrando na primeira questão, assim como observamos no
decorrer do segundo e do terceiro capítulo, o currículo é um campo permeado por
relações de poder-saber e em constante disputa. Relações e disputas, que como
exposto anteriormente, ajudam, através da mobilização de diversos reguladores
curriculares, a perpetuar uma série de visões/concepções fundamentais para manter
o habitus construído no cotidiano escolar e os conteúdos tradicionalmente ensinados
na disciplina em questão.
Dentre esses reguladores, ressalta-se o currículo prescrito, que em aliança
com a sua dimensão oculta, além de indicar o currículo pretendido pelo Estado e/ou
pelas comunidades epistêmicas, também cumpre um papel fundamental, o de
“normatizar” e “rotinizar” uma série de interações presentes neste ambiente.
É o que pode ser visto no depoimento do professor 2, que ao relatar sobre o
seu currículo praticado, expõe:

PROF. - A gente trabalha África na sétima série [oitavo ano], que é o mundo
subdesenvolvido - América Latina, África e Ásia. África, até aqui... Neste
ano eu ainda não trabalhei África... O que eu trabalhava de África era aquilo
que todo mundo praticamente sabe de África, todo mundo que não se
interessa e quer dar aula de África. Que é a questão do exótico... zebra,
elefante, etc. e das relações de dependência, da fraqueza, vamos falar
193

assim, fraqueza econômica, os problemas sociais...é a África que não tem


jeito, então a gente foca muito isso. “A África é um continente miserável por
causa disso...” por causa da dominação do homem branco. Fragmentou,
colocou tribos de etnias rivais num mesmo território, então o problema todo
é esse. Sempre passiva. Ela é assim, porque fizeram ela assim, Então a
gente sempre trabalha assim. É basicamente isso que a gente trabalha.
Quando falamos de América Latina, pouquíssimas vezes a gente cita
escravos, ou cita negros. Quando citamos negros é sempre nessa posição
de escravo. Que reforça, ainda mais, aquela mentalidade de que o negro é
pro trabalho pesado, que veio para isso, e que tem que ficar assim e etc.
Em Ásia a gente nunca cita negros.
PESQUISA - Quando você fala de África, você fala só de África ou quando
fala de dependência, fala de Europa também?
PROF. - Também, a gente frisa que há a África branca e a África negra. A
gente fala sobre o processo de industrialização... Segunda Revolução
Industrial, que foi o momento da partilha da África, da necessidade de
matérias-primas, essas coisas todas, o que praticamente deixa sempre – e
isso está nos livros didáticos - o negro ausente do processo todo. Eu dava
essa aula, eu não citava nem as resistências que aconteciam. Parece que o
Europeu chegou, pegou, “Estou pegando suas terras e agora você vai
trabalhar pra mim”. Nenhum tipo de resistência a gente costuma... citar, ou
seja, como se fosse um espaço vazio, no máximo, negros parados,
incapazes de reagir e que os europeus foram lá, cercaram e “O negócio é
assim agora, é comigo e vocês ou se submetem ou...” É aquela coisa bem...
descaracterizando mesmo o processo de... Até porque, vamos falar a
verdade, e aí a gente entra em outra realidade que é a desculpa de todo o
professor: eu preciso estudar sobre isso. Pra eu falar sobre essas
resistências eu preciso estudar as resistências e eu não tenho tempo de
estudar essas resistências. Então eu vou falar o que está no livro didático.
Se eu tiver algum conhecimento lá por trás, então eu pego e jogo. Mas a
princípio a gente esbarra também neste processo. E aí isso compromete
ainda mais o processo de desvendamento da realidade. Mas infelizmente é
a realidade.
PESQUISA - E quando você fala de Europa, você fala de África?
PROF. - Não! Quando a gente cita África, quando a gente fala de continente
Europeu a gente só cita a África como extremamente permissiva. As
migrações de africanos para a Europa, levando a miséria para aquele
continente. Aí os livros didáticos, ainda não olhei os livros didáticos do
oitavo ano (da coleção a ser analisada), mas puxando aqui pela memória, tá
lá aquele favelão na França e argelinos, marroquinos e etc. Esse é o negro
na Europa. Não li ainda os livros desta coleção tratando em relação à
migração de africanos sobre a Europa. (SANTOS, 2009a, p. 8-9)

A autocrítica feita pelo professor 2, apresenta alguns flancos de


problematização que ajuda a compreender como os conflitos impactam na geografia
se ensina. Um dos principais flancos, se relaciona com o que foi apresentado no
capítulo anterior enquanto “tradição geográfica” e os reguladores curriculares, que
em certa medida, se apresentam profundamente enraizados nos currículos
praticados de inúmeros professores e professoras, e acabam se perpetuando
através de materiais didáticos, currículos prescritos e demais diretrizes curriculares.
Outro flanco, se relaciona com a precarização do trabalho docente, que diversas
194

vezes, impede o professor melhorar o próprio currículo praticado e se aproximar de


uma concepção mais próxima a que acredita.
Como aponta o professor, essa forma de trabalhar, também influencia na
forma que os alunos enxergam o continente africano, implicando na construção de
uma visão hierarquizante de mundo.
Somado a isso, se nos atentarmos, para o fato de que grande parte da
população negra tem na escola pública um dos principais momentos de socialização
e formação, a necessidade de ler como o racismo se inscreve nesses ambientes e
na geografia se intensifica ainda mais. Consciente desse processo, e da função que
a escola tem cumprido, Gabriela Oliveira (2011) indica que:

Por ser a escola um local de transmissão e socialização do conhecimento,


ela tornou-se um espaço por onde as imagens negativas sobre o negro
foram e ainda são difundidas. E por isso, ela também pode ser um local
onde estas representações pejorativas podem ser superadas (OLIVEIRA,
2011, p.89)

Da mesma forma, também é importante salientar que assim como


evidenciado durante a análise e nos capítulos anteriores, o currículo é um campo em
constante disputa. Mais do que isso, o currículo apresenta uma grande
complexidade, o que faz com que ele nunca seja um só, assim como apresenta
Vasconcelos (2015):

[...] ele é um conjunto de conteúdos prescritos, mas ao chegar aos


ambientes de ensino ele é transformado por processos de
recontextualização (Lopes, 2005), ou seja, ele vai sendo transformado pelos
diferentes agentes, coordenadores, professores; o que se dá é a construção
de currículos híbridos, fruto das diferentes demandas e desejos. Há um
currículo oculto, como dizem teorias críticas, aquilo que não está escrito,
mas, além disso, há as alterações do que está escrito transformando os
sentidos do currículo conforme o objetivo; nos dizeres de Certeau (1994)
existem estratégias, imposições do poder, mas no fazer cotidiano os atores
desenvolvem táticas que permitem escapar dessas determinações e criar
algo novo. (VASCONCELOS, 2015, p.205)

Desta forma, ao mesmo passo que existem processos de regulações e


articulações que buscam ratificar essas relações de poder-saber, existem
professores e professoras que possuem nos seus currículos praticados formas de
complexificar tanto o currículo prescrito, quanto as interações construídas no
cotidiano.
No que tange a geografia que se ensina na escola, como demonstrado no
relato do professor 2, para além dos reguladores externos, ainda existem os
195

reguladores internos, que apesar de não ser exclusividade da geografia, faz com
que também se tenham relações conflituosas envolvendo a dimensão dos conteúdos
propriamente ditos. Conteúdos esses que, como apresentados no terceiro capítulo,
tradicionalmente possuem uma visão racializada, amplamente baseado em autores
eurocêntricos. É em parte, o que é relatado pelo professor 1:

PROFESSOR 1: Eu tentei exatamente fazer a grande virada lá na questão


dos conteúdos trabalhando em sala.
[...] Na oitava série eu tentei com duas turmas, mas do que eu realmente
senti falta foi do material didático [...] Como eu já tinha começado, eu fui
tentar fazer o bate-bola, o pingue-pongue de tentar apontar diferenças de
um lado e de outro, formas de visão de mundo etc. E aí, alguns alunos
conseguiram pescar a discussão, outros assim ficavam olhando para o livro,
olhava pra mim e falavam “pô, mas em História a gente trabalha diferente".
Assim, eu acho que é uma coisa que a gente tem que começar a se
preocupar mais com a produção de material didático. Porque a gente acaba
ficando numa sinuca de bico assim, porque fica a minha fala contra o livro,
contra a aula de História e aí a gente fica numa sinuca de bico.
Eu acho que deu para introduzir a discussão, muitos ficaram mais ligados,
outros nem tanto, mas assim, eu acho que a questão do material didático é
uma coisa que a gente tem que pensar. Fazer tipo, um livro de geografia do
“B”. Ter tipo uma contrapartida, um material que a gente possa usar, um
texto, um mapa, qualquer coisa diferenciada assim, e aí eu acho que ajuda
na discussão, até mesmo porque, por exemplo, na maior parte das vezes a
gente pode até trabalhar diferenciado né, distante, mas assim, a aula de
história não é, então assim de repente a gente pode usar como contraponto
mesmo na aula de história, ou até mesmo na comparação, que até mesmo
é uma forma equivocada segundo aqueles textos que a gente leu, mas
assim, é uma forma de se estar trabalhando também. E aí tentar utilizar
como contraponto para você botar o moleque pra olhar, pensar e refletir, eu
acho que é isso assim.
Eu acho que foi uma primeira experiência positiva, mas assim ainda foi
muito devagar, estou rateando ainda, mas eu acho que foi uma experiência
bem proveitosa no sentindo assim né. Alguns discordaram, outros
concordaram com a discussão. [...] Mas é uma forma de olhar, é uma forma
de ver, a gente tem que ver todas as visões. Mas algumas vezes eu fui
indagado na questão “o livro didático é a aula de história”, “mas a
professora de história falou assim”, “o professor falou que no livro tá
mostrando assim”, eu falei assim “não tudo bem, isso é uma outra visão que
eu estou trazendo para gente ter uma noção”. Também eu não aprofundei
muito porque eu senti que iria complicar para eles, pela experiência deles
mesmo.
PESQUISA: Qual discussão você fez com eles?
PROFESSOR 1: Eu estava trabalhando a questão da organização do
espaço em países desenvolvidos e subdesenvolvidos, focando nos países
desenvolvidos e mostrando o porquê desse desenvolvimento em relação
aos demais né. É a questão da exploração do trabalho, em relação ao
trabalho, indo muito nessa linha. E aí eu fui buscando algumas coisas na
leitura, mostrando aquela questão da organização, que os negros é que... A
divisão internacional do trabalho ela representa não só uma divisão
econômica, mas também uma divisão racial mostrando que isso é uma
tentativa de organização e aí eu fui seguindo nessa linha. [...] Mas assim, eu
fui mais ou menos por essa linha e aí foi legal a discussão né, eu acho que
foi bem legal, mas muitos tem aquela visão do econômico como eu tenho
também, como eu já tinha dito, muito marcado então assim, segurando:
196

“Não pô, mas e a questão econômica, assim...”, eu “não, calma gente


vamos lá”, aí tentando puxar.
A discussão foi legal, não foi ruim não, mas eu acho que a gente tem que
pensar mais em material didático, mas não só filmes né, texto, qualquer
coisa assim para usar de contraponto mesmo caso seja necessário ou você
utilizar ele sozinho, você elimina o livro e usar ele sozinho, eu acho que a
gente tem que pensar alguma forma de produzir tal coisa. Minha
experiência foi essa. (Professor 1, Setembro de 2008)

Tanto o relato acima, quanto o relato do professor 2, evidenciam que não


basta inserir a temática racial no currículo escolar, ou especificamente na geografia
que se ensina, existe a necessidade de rever esses conteúdos, a prática e os
materiais utilizados durante a prática pedagógica – uma vez que como evidenciado
no relato anterior, estes também apresentam leituras enviesadas de mundo.
Em suma, assim como indica Santos (2009a), para implementar a discussão
sobre a temática racial, se faz necessário rever

[...] uma série de posturas e atitudes que influenciam na definição de seu


currículo praticado – ou seja, vai além da inserção de conteúdos.” Ou seja,
realizar o “ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”, objetivo
textualmente escrito no caput da Lei 10.639, é uma tarefa muito mais
complexa do que pode parecer. (SANTOS, 2009a, p.13)

Dentro dessa complexidade, durante o processo de pesquisa-ação, foi


desenvolvido um Temário31 com o objetivo de auxiliar esses professores e
professoras a implementar a lei 10.639/03 na geografia que ensinava. Contudo, para
além do temário desenvolvido pela pesquisa, os professores através de suas
práticas e interações cotidianas, viram a oportunidade de inserir a temática racial em
outras áreas também. É o caso da cartografia, que quando problematizado em uma
perspectiva antirracista se mostrou enquanto um campo profícuo para relevar como
as relações de poder se fazem presentes nas representações cartográficas.
Esse processo se deu por vias mais “tradicionais” como o debate sobre a
história da cartografia, a problematização sobre as projeções cartográficas
(problematizando as projeções terceiro mundistas com a de Mercartor), as
subjetividades da cartografia (evidenciando a cartografia como um instrumento de
poder), mas também através de novos debates, como o da “etnocartografia”.

31
O “temário” é um rol de assuntos que dialogam diretamente com a Lei 10.639 e com o ensino de
Geografia. Este temário foi desenvolvido pela pesquisa devido a necessidade de inserir e rever os
conteúdos presentes no currículo escolar. O temário é composto por discussões sobre: Raça e
Modernidade, Ensino sobre África, Quilombos – Geo-grafias de lutas históricas ocultadas,
Segregação sócio-espacial nos meios urbanos, Política de Branqueamento, entre outros assuntos.
197

Junto com o debate sobre raça e modernidade, a professora 4, também viu a


possibilidade de fazer o debate sobre raça e capitalismo, evidenciando o racismo
como uma fundamentação do próprio capitalismo.
Outro caminho escolhido foi a problematização da questão racial junto a
questão ambiental, trabalhando com o conceito de racismo ambiental. Essa temática
foi trabalhada em especial pela professora 4, que levou para sala de aula
experiências dos negros na produção do espaço e a sua consequente repressão.
Esses conteúdos e posturas refletem parte do potencial de mudança que
um ensino de geografia que trate de forma crítica as relações étnicos raciais. Sobre
essa percepção, a professora 5, nos primeiros meses de acompanhamento da
pesquisa aponta que:

A gente já começou a falar e eles já começaram a fazer a pesquisa das


tribos africanas que chegaram no Brasil. E aí a gente vai começar a falar de
diferenças, igualdade e tem uma proposta de montar um painel com esses
três momentos, a gente chama de três momentos: O primeiro momento é o
do encontro do indígena com o português, esse segundo momento com a
chegada dos africanos e o terceiro momento que é essa constituição da
população brasileira. Então no caso, a gente está nesse segundo momento
e assim, a receptividade tem sido boa. Não significa que haja uma mudança
né, porque na hora discussão todo mundo concorda, mas assim a prática, a
gente ainda tem algumas práticas, falas racistas em sala de aula. Então, a
discussão para a efetivação da mudança de comportamento a gente não
alcançou efetivamente não. Mas eu acho que eles [os alunos] estão mais
conscientes, até porque outro dia um aluno fez um comentário e outro falou
“Isso é racismo!”, “Professora isso não é racismo?”, aí eu falei: “Isto é
racismo”. Aí o outro ficou assim sem graça. Então assim, isso já está
suscitando uma discussão. (Professora 5, Setembro de 2008)

Isto posto, a disputa interna tem uma grande relevância para a construção de
uma educação focada em bases antirracistas. Ao disputarem o currículo, esses
docentes também buscam confrontar os acordos tácitos, as homogeneizações, a
pretensa neutralidade (proposta pelo pensamento ocidental moderno). Eles
contrariam o hábitus e os padrões de poder construídos no cotidiano da escola, e
por isso os embates e dilemas problematizados até então.

[...] tudo que acontecia e que eu percebia na sala, eu tentava transformar


aquela situação numa coisa que todo mundo percebesse que aquilo não era
legal e eu fazia esse trabalho em sala. Mas eu sempre ia para sala dos
professores e fala que aconteceu isso e isso e toda vez que um professor
falava uma coisinha “Ai porque uma situação tá negra!” eu ia lá e batia “A
situação não tá negra, a única coisa negra é o seu passado!”... Para evitar a
questão dos termos que reforçam o racismo. E na própria relação do
município [referindo-se a São Pedro da Aldeia] aquela questão quando se
tinha coordenação que foi levado, o que eu levei. Que eu fiz uma fala de
que a escola era a maior reprodutora do racismo e os professores “Não!
198

Como assim? Por que a escola é?” e tinham sugerido que lessem o livro do
[...] Racismo no cotidiano escolar [...] consegui em pdf e dei para os
professores e tal, porque assim, eu percebi que eles tinham a consciência
que na escola não existe racismo “Como a escola vai ser o espaço que
mais reproduz o racismo?”. Então, existia essa negação, ou seja, negação
no sentido que eles não sabiam que isso era possível e aí vendo e falando
das práticas e assim, em São Pedro eu acho que teve um avanço é... A
partir da minha realidade na escola e que eu acho que está se perdendo
porque a realidade do município hoje é nada, de concepção de educação
nenhuma é... O diretor atual é gente boa, mas ele diz assim “Olha, a
questão pedagógica é com vocês”, então se virem, tomem conta é... Enfim,
em São Pedro é assim. (Professora 3, Setembro de 2009)

Devido a leitura até então construída, entende-se que esse processo ocorre,
pois,

A disciplina escolar de Geografia pode fornecer aos sujeitos, de forma


simultânea (e não linear), ferramentas para entender as causas e as
consequências dos fenômenos que ocorrem em diversas escalas, do local
ao global e do global ao local e que afetam, diretamente, suas vidas. (DINIZ,
2015, p. 30)

Ou seja, esses conflitos apresentados e a dimensão prescrita do currículo,


muitas vezes materializada na forma de currículo mínimo, “provas de avaliação” e
principalmente nos livros didáticos, indicam uma tentativa de “organizar” a prática
desses e dessas docentes, com o intuído final de “esvaziar” a dimensão política
dessa disciplina. Em outras palavras, conscientes da potencialidade da geografia,
diversos dos conflitos e das prescrições curriculares tencionam organizar o fluxo,
criar rotinas, encadear o que vai e o que não vai ser discutido no decorrer do ano
letivo.
Ao fazer a relação entre as disputas os fluxos construídos e rotinizados no
cotidiano escolar, o racismo e a geografia que entende como ideal, a professora 5,
relata que:

Eu acho que na escola isso [o racismo] está institucionalizado [...] Na hora


em que os alunos são escolhidos, por exemplo, para participar de um
evento que tenha uma maior visibilidade, na hora que se organizam as
turmas e são definidas as turmas boas e ruins, isso está presente, na
valorização ou desvalorização do discurso dos professores. Então existe, e
até essa questão da troca de dádivas né, de maior valoração, entre os
professores isso também está presente. E eu acho que quando a gente
tenta a discussão inicial né, e até conversando com o Renato e depois a
gente trocando, o que mais, para mim, o que mais chamou atenção para
participar do grupo foi justamente de que a questão racial não fosse um
apêndice. [...] É que a geografia ela permite a gente a estar fazendo essa
análise do tempo e espaço, e permite ao aluno perceber essas questões.
Até quando o Renato fala dessa coisa da desconstrução ou de se
desestabilizar, aconteceu um episódio a uns 15 dias na outra escola, em
que uma aluna se viu confrontada com uma fala que eu tive com ela, de
chamar atenção da postura. Aí ela falou que tinha a mandado calar a boca,
199

para justificar aquilo eu falei não. Essa fala não é minha. Eu quero que
alguém da direção vá à sala e converse. E aí qual foi espanto. Todos os
professores saíram em solidariedade a minha pessoa, mas por quê? Não
porque acreditassem no que eu estivesse falando, é porque todo mundo
achava muito normal mandar o aluno calar a boca né. A aluna em questão
“eu tinha mais é que mandar calar a boca” e eu tentava mostrar que não era
essa a discussão que eu queria. Eu queria uma outra discussão, que não
tinha sido essa fala, que não era essa a minha prática. Para convencer as
pessoas disso foi uma dificuldade. “Mas o quê que tem mandar calar a
boca?”, mas não é nisso que eu acredito. Por que é... Você esta falando de
mudar essa postura né, na [escola de Bangu] existem assim umas críticas
em relação a minha postura, porque eu sou aquela professora que eles não
entram né... Eles vão tirar o boné, eles vão sentar de maneira diferente,
mas as pessoas não compreendem que essa construção ela não é feita na
questão do mando, embora eles tenham essa “Ela é a autoridade, ela tá
mandando!”, mas esse mando se dá no estabelecimento das regras, no
estabelecimento do limite onde cada um pode ir e que isso as pessoas
acreditam que não é possível, que para aqueles alunos, para aquele
espaço, naquele tempo essas questões não são possíveis.
[...] no caso do ensino da geografia, a geografia é capaz dessa análise
espacial ajudar na desconstrução dessa subalternidade. Porque é nisso que
eu quero, eu não gostaria de um ensino de geografia que falasse
exclusivamente da questão racial, eu não acredito nisso, mas a questão
racial ela é um recorte que permite que ele esteja vendo outros enfoques
dessa subalternidade dentro do espaço, até porque a maior parte dos
alunos que a gente atende, eles estão dentro dessa subalternidade não só
econômica e social, mas também racial. Então assim, eu acho que os dois
discursos se complementam e os meus questionamentos foram
respondidos a contento. (Professora 5, Setembro de 2008)

Cabe salientar, que assim como discutido no presente trabalho (quando


apresentamos a lei 10.639/03), a prescrição não garante a implementação de
determinadas discussões no cotidiano escolar, daí a atenção para o hábitus, e para
as demais articulações e regulações apresentadas durante este capítulo.
Concomitantemente a esses processos ocorridos no campo educacional,
assim como debatido no primeiro capítulo, existe no Brasil um padrão de relações
raciais que mascara o racismo aberto, um racismo que atua de forma implícita,
através da valorização de uma identidade branca, e não mais pela interiorização de
forma explicita dos grupos não-brancos, como observou-se nas obras de Delgado de
Carvalho e Aroldo de Azevedo.
Essas múltiplas formas do racismo atuar no sistema educacional prescreve
um currículo oculto. Um currículo que em diversos momentos são invisíveis (ou não)
aos olhos de alunos e professores, mas que tem intencionalidades bem claras.
Em contrapartida a esses múltiplos processos que tem forte rebatimento
sobre a temática racial presente na geografia que se ensina, evidencia-se, mais uma
vez, o currículo praticado enquanto dimensão capaz de unificar o cotidiano escolar e
200

o ensino de geografia. Esse entendimento se dá, pois como destacado no tópico


anterior, sem as interações, não existe cotidiano, e sem a prática, não existe
interações.
Sobre essa prática, incide uma concepção de geografia, e assim como
apresentado no início desse estudo, compreende-se que a geografia serve para
aprender a se posicionar e para tomar posição (SANTOS, 2013) frente as diversas
formas de hierarquização socioespacial presente no mundo.
Da mesma forma, as interpretações sobre a lei 10.639/03 e a necessidade de
inseri-la na geografia escolar, também perpassam pela concepção de geografia que
se adota. Sobre tal percepção, Diniz (2015) indica que:

O instrumental teórico e prático da Geografia escolar é capaz de


desempenhar um papel relevante na formação acadêmica e política de
sujeitos, assim como contemplar as demandas da lei 10.639/03 [...]. Se for
interpretada e concebida de forma crítica, a disciplina de Geografia pode
ajudar os futuros e os atuais educadores e seus educandos, a localizarem-
se e se posicionem no mundo, haja vista que todos os fenômenos da
sociedade se dão no/com/pelo espaço, que é um dos conceitos-chave da
Geografia. (DINIZ, 2015, p.32)

Ao fazer um diálogo sobre alguns dos assuntos pautados pela lei, Correa
(2013) exemplifica algumas das questões fundamentais para inserir na geografia
que se ensina uma visão mais complexa sobre as relações socioespaciais.

[...] é urgente a necessidade de inserirmos efetivamente a lei 10.639/03 no


ensino de Geografia. Ela traz uma imensa gama de informações e
conteúdos que atuam reestruturando o currículo. A história da África e dos
africanos, por exemplo, é um tema que abarca uma imensidade de estudos,
questões, e problematizações, que são pouco tratados hoje na escola.
Questões referentes às visões produzidas pela mídia, processo histórico de
formação e posterior invenção sob uma geo-identidade cultural (QUIJANO
2005), informações anteriores ao deslocamento da rota de comércio para o
Atlântico (MIGNOLO, 2005) diásporas originárias do processo de
escravidão entre muitas outras.
A luta dos negros no Brasil é outro tema que vai atuar de maneira conjunta
com o negro na formação da sociedade nacional, levantando
questionamentos acerca de todos os movimentos de lutas para o fim da
escravidão, bem como toda a contribuição social pretérita e presente, e
participação na formação e conformação do território brasileiro – dentro as
quais a quilombagem possui grande destaque.
Tem-se ainda o estudo da cultura negra brasileira, valorizando a
participação do negro como agente cultural, o que inclui as esferas das
religiões, musica, alimentação, costumes, escrita, conhecimentos técnicos
etc.
Mas na verdade o que esse conjunto de temas – atuando em conjunto -
vem propor é outra interpretação de mundo, muito vai além da inclusão de
uma gama de conteúdos no currículo escolar [...] (CORREA, 2014, p.250)
201

Cabe ressaltar que é através do conjunto de interações (e consequentemente


práticas) ocorridas no cotidiano escolar, que o currículo ganha forma e serve para
promover ou romper com as relações de poder-saber construídas para legitimar
diversas hierarquias sociais, como a de raça, gênero, sexualidade etc. À vista disso,
as interação presentes no cotidiano escolar, em ligação com o currículo praticado,
são campos de leitura e de ação, para lutar contra as influências diretas e indiretas
que a geografia que se ensina sofre. Apesar de não ser o único, essa leitura que
confere ao professor, e ao seu currículo praticado, um protagonismo na luta contra o
racismo no cotidiano escolar. Fato que pode ser evidenciado por exemplo, com o
relato do professor 2, sobre um trabalho que estava desenvolvendo em Itaboraí:

A gente está fazendo um trabalho em Itaboraí, uma espécie de projeto para


a Semana do dia 20 de novembro e vai ser aprovado na verdade dia 25,
cada turma está com um projeto específico. Então eu tenho uma turma que
está estudando quilombos em Itaboraí e já descobriram coisas muito
bacanas sobre quilombos dali sobre relação entre senhores e escravos
naquele município é... Eu tenho outro grupo que está trabalhando com
relacionamento inter-racial pegando três gerações diferentes: a geração
deles (alunos), a dos pais e a dos avós pra ver se teve alguma mudança, se
a aceitação mudou... relacionamento inter-racial. E tudo isso em cima de
documentários, serão filmados, serão expostos para depois chamar para o
debate, a ideia é essa. A gente está falando também sobre racismo em
igreja evangélica e isso foi bem bacana, pois eles descobriram coisas que
me surpreenderam muito, por exemplo, que os espíritos que os evangélicos
consideram malignos a maioria são expulsos dessas religiões, eles tem uma
origem geográfica que é da África e justamente no mesmo local em que o
negro tem os seus ancestrais, os ancestrais dos membros negros da igreja
tem a mesma origem geográfica dos demônios que o pastor costuma
expulsar nos cultos evangélicos. E aí uma menina que foi entrevistar um
pastor, eles entrevistaram 6 pastores, apenas um reconheceu que havia
racismo na igreja, os outros “aqui na igreja todos somos iguais”... O pastor
que reconheceu que havia racismo na igreja era negro ele se chama pastor
Abel e foi vítima de racismo, pois ele se apaixonou na adolescência por uma
menina da igreja que era negra e os pais foram contra o relacionamento
então ele diz que foi vítima e que o racismo existe e menina perguntou “O
que o senhor faz para combater essa prática na sua igreja?” e ele falou
assim “Aqui nós estimulamos o amor fraternal”, uma coisa extremamente
vaga. [...] O outro é sobre racismo na escola e até teve um caso
interessante que eu falei para o Renato e para a [Professora 5] de um aluno
e a gente estava na sala discutindo isso, o nome dele é Thiago e ele disse
assim “Olha só professor eu já passei por isso na escola sim porque no dia
em que sumiu o dicionário de inglês da professora ela me acusou de ter
roubado!” e ele é o único negro da sala, “Ela me acusou de ter roubado”,
todo mundo ficou surpreso porque já sabia o motivo e eu falei assim ”Thiago
o quê que você sentiu quando ela te acusou?”. O garoto começou a
gaguejar, o olho encheu d‟água, como não era o momento dele se expor,
pois eu quero que ele faça isso na entrevista do documentário para
despertar a emoção das pessoas que assistirem... Eu disse que ele não
precisava falar nada naquela hora não.
[...] Aí todo mundo meteu a mão na boca porque não sabia que a vítima do
racismo sofria naquela intensidade. Então as pessoas começaram a pedir
desculpas a ele por brincadeiras que fizeram. Então foi bem interessante.
202

Outras meninas de outras salas passaram pela mesma coisa, foram


acusadas de roubo, parece que é supernormal quando ocorre esse episódio
dentro de sala acusar o negro. Então vamos trabalhar essas questões
também, vamos perguntar as diretoras, são três colégios de Itaboraí –
Venda das Pedras que eles escolheram para pesquisar e vamos perguntar
as diretoras o que se tem feito para combater, vamos perguntar também se
existe racismo à direção e para os alunos, para depois contrapor as
opiniões porque de repente para liderança não tem, é melhor que não tenha
ou que não seja visto, mas em relação aos alunos a gente vai ver se tem ou
não e depois a gente bota em choque a opinião dos alunos e da direção e
perguntar a direção o que tem sido feito para aniquilar essa prática.
Basicamente é isso que a gente está fazendo nestes meses. (Professor 2,
Novembro de 2009).

Apesar de não se constituir em um dilema propriamente dito, esse relato


evidencia como o racismo presente no cotidiano escolar influencia diretamente na
experiência do alunado. Para além das atividades interdisciplinares, os relatos acima
evidenciam a necessidade de um aprofundamento no debate dentro do próprio
campo do ensino de geografia, apresentado anteriormente através do binômio
inserção-revisão.
203

APONTAMENTOS FINAIS

O momento em que a presente dissertação está sendo feita, é um contexto de


intensas disputas na educação básica e superior. A construção de uma educação
pública gratuita, com a possibilidade de construção de um saber socialmente
referenciado, com liberdade pedagógica, está em cheque, encontrando nos setores
mais conservadores da sociedade e do cotidiano escolar fervorosos apoiadores. É
principalmente em um momento como esse, que o sentido e a necessidade de se
estudar a geografia também fica em cheque, não somente pelas críticas aqui
levantadas, mas pelo potencial dessa disciplina em criar visões de mundo que
contrariem as visões hegemônicas.
Da mesma forma, esse momento coloca para o campo do Ensino de
Geografia a necessidade criar novas leituras, pautadas em questões que
possibilitem compreender os diversos padrões de opressão que ainda se inscrevem
na geografia que se ensina. Mais do que isso, se faz necessário aumentar o escopo
da geografia que se ensina, para além da crítica às relações desiguais de trabalho,
possibilitando emergir questões e debates que formem verdadeiramente cidadãos
críticos e conscientes das desigualdades socioespaciais presentes no Brasil.
Ao retomar a contribuição de Santos (2013), se faz necessário construir uma
geografia que permita aos indivíduos “se posicionar” e “tomar posição” frente as
diferentes formas de opressão e hierarquização presentes na sociedade brasileira.
Imbuído na missão de ajudar a compreender os efeitos desse conjunto de
relações de poder-saber, em especial como o racismo, se inscreve no cotidiano
escolar, objetivou-se centralmente discutir como os conflitos presentes nas relações
cotidianas de professores e professoras, influenciam de maneira direta e/ou indireta:
i) no currículo praticado; ii) na geografia que se ensina; e iii) no tratamento sobre a
temática racial no cotidiano escolar.
Apesar de não ser a única forma de ler as relações construídas no cotidiano
escolar, a opção de compreender essas relações a partir da dimensão dos conflitos
representa uma leitura interessante para evidenciar como as interações (e as
relações de poder-saber nelas inscritas) afetam a prática cotidiana desses docentes.
Em outras palavras, essa é uma leitura que por excelência possibilita complexificar
204

as interações cotidianas e o próprio cotidiano escolar, uma vez que permite


compreender como o currículo praticado por estes docentes causavam tensões com
saberes e práticas tradicionalmente engendradas nesse cotidiano (e vice-versa).
Junto a isso, objetivou-se demostrar que os conflitos presentes no cotidiano
desses docentes, apesar de em primeiro momento parecerem “problemas”
individuais, na verdade fazem parte de uma miríade de relações de poder-saber que
não se restringem a hierarquizações construídas no ambiente escolar. São relações
que, como debatido no primeiro e no segundo capítulo, possuem no racismo e em
outras formas de hierarquização/opressão alguns dos seus eixos formadores.
Por fim, mas não em menor grau de importância, buscou-se aprofundar
teoricamente e metodologicamente, formas “ler” as interações ocorridas no cotidiano
escolar, entendendo estas enquanto eixos para ler espacialmente as disputas entre
os diferentes atores do ambiente escolar.
Na tentativa de alcançar os objetivos apresentados, a dissertação foi
estruturada em quatro capítulos, sendo os três primeiros centrados em discussões
teóricas e/ou metodológicas, e o último na sistematização e análise dos conflitos
presentes na prática cotidiana dos professores e professoras acompanhados/as pela
pesquisa “A lei 10.639/03 e o Ensino de Geografia”.
Isto posto, e a partir do reconhecimento de que para a construção de uma
educação pautada em bases antirracistas, existe também a necessidade de pensar
como o racismo se inscreve na sociedade, buscou-se construir já no primeiro
capítulo, uma leitura que mostrasse como o racismo se manifesta de diferentes
formas nas relações cotidianas.
Essa leitura só foi possível graças as contribuições de Taguieff (2002) e
D‟Adesky (2001) que através do modelo quadripartido do racismo, possibilitou
enxergar a multiplicidade de formas com que o racismo pode ser mobilizado. Junto a
essa contribuição, as discussões sobre o novo racismo (CAMINO et alii, 2001) e
branquidade & branquitude (BENTO, 2002; FRANKENBERG, 2004) também se
mostrou um caminho fecundo para evidenciar como esse fenômeno adentra e se
perpetua em diversas esferas da sociedade brasileira.
Dessa forma, as contribuições teóricas levantadas no primeiro capítulo,
possibilitaram enxergar o racismo (e a raça) enquanto um artifício de dominação
socialmente produzido (MUNANGA, 2004; GUIMARÃES, 2008), que tem origem na
205

Antiguidade (MOORE, 2007), mas que passou a ser utilizado como um instrumento
de dominação e hierarquização em escala mundial a partir do processo de expansão
europeia sobre o mundo (QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2005) e que serve para
construir privilégios.
Feita a primeira parte da leitura, apresentou-se duas problemáticas para o
prosseguimento do estudo: i) como compreender a reprodução desse fenômeno nos
diversos ambientes sociais através de uma leitura de cotidiano; e ii) como conferir
uma leitura geográfica a essas relações.
No intento de sanar tais questões, também procurou-se construir no primeiro
capítulo, as primeiras chaves para compreender como o racismo interfere nas
relações socioespaciais construídas no cotidiano. Para tal, a discussão sobre a
rotinização das interações proposta por Giddens (1991 e 2003), a leitura sobre os
contextos em que elas ocorrem de Goffman (1985) e o olhar sobre a espacialidade
das relações de Massey (2000) funcionaram como eixos fundamentais para construir
tal leitura.
Contudo, a partir do entendimento que o ambiente escolar tem o seu próprio
padrão de relações, no segundo capítulo, buscou-se compreender como essas
relações que envolvem questões de poder-saber acabam interferindo não só na
construção do currículo, mas nas relações existentes no cotidiano escolar. A
discussão realizada no decorrer desse capítulo foi fundamental para compreender
de forma crítica as nuances das relações no cotidiano deste ambiente complexo que
é a escola.
Cabe destacar, que Rockwell e Ezpeleta (2007) através da atenção para a
história não-documentada e para a vida cotidiana, foi uma das principais
contribuições para entender um pouco dessa complexidade. Esses conceitos em
aliança com os aportes teóricos de Giddens (1991), Goffman (1985) e Massey
(2000), possibilitou enxergar (de forma mais integrada) como as disputas pelo/do
currículo interferem no cotidiano escolar e a prática docente. Da mesma forma,
através das contribuições desses autores já citados, e de outros como Melucci (1989
e 2001), Burity (2001), Domingues (2007) e Soeterik & Santos (2015) pode-se
observar que as disputas engendradas pelos professores acompanhados, levavam
para o cotidiano escolar uma série de reivindicações que foram construídas em
outras arenas de disputa pelo/no Movimento Negro, fazendo desses professores que
206

mobilizavam uma política de escalas, em prol da inserção do debate sobre a


temática racial. Essa leitura também possibilitou compreender esses professores
enquanto agentes, militantes desse movimento social.
Já no terceiro capítulo, com a mesma consciência que existem
especificidades nas diferentes camadas de análise, buscou-se realizar debates
sobre as características da geografia que se ensina na educação básica.
Isto posto, é importante salientar que sendo uma das poucas disciplinas que
perpassa todos os anos da educação básica, ela tem um papel fundamental na
construção identitária e nas leituras e posicionamentos que fazemos a partir dela.
A partir desse entendimento, buscou-se compreender como essa disciplina
adentrou o currículo escolar, assim como o que tradicionalmente foi aceito ou não no
currículo dessa geografia. No decorrer desse processo, fez-se alguns diálogos com
as discussões realizadas no segundo capítulo, evidenciando que existia uma certa
“tradição geográfica” no currículo dessa disciplina.
Concomitantemente, ao fazer um elo com o que foi discutido no primeiro
capítulo, evidenciou-se que algumas leituras tradicionalmente presentes nessa
disciplina também foram responsáveis por fazer com que a raça (enquanto uma
construção histórico-geográfica) se perpetuasse enquanto um importante elemento
regulador das relações socioespaciais.
Essas leituras possibilitaram compreender que essa tradição seletiva presente
na geografia, historicamente produziu e reproduziu: i) um processo de
hierarquização no campo das relações socioespaciais; e ii) uma invisibilização
seletiva no campo cultural e educacional. Ao usar as discussões apresentadas no
segundo capítulo e os aportes teóricos de Boaventura de Sousa Santos (2002), foi
possível observar que na realidade esses processos se configuram em um
epistemicídio.
Da mesma forma, as contribuições de Santos (2009a e 2013), Diniz (2015),
Correa (2014), C. Santos (2013), Vasconcelos (2015) entre outros autores e autoras,
evidenciam de forma direta e indireta que para combater esse o racismo (que não é
exclusividade do ensino de geografia) mais que inserir novos conteúdos, precisa-se
rever os conteúdos já ensinados. Da mesma forma, é necessário rever as práticas e
os contextos em que essa população é retratada. Ou seja, é necessário criar uma
207

lógica que permita romper com a cultura eurocêntrica, uma teoria que se constitua
em uma verdadeira desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008).
Foi essa discussão, que permitiu que ao chegar no quarto e último capítulo,
principalmente através da análise dos relatos dos professores e professoras
acompanhados, evidenciasse-se que vários são os conflitos perpassados para
implementar uma interpretação mais complexa da lei no cotidiano escolar e no
currículo praticado de geografia. Esses conflitos se intensificavam a medida que ao
mesmo tempo em tinham as suas práticas reguladas, engendravam novas formas
de se debater e tratar a temática racial no cotidiano escolar.
Dentre esses conflitos divididos em embate e dilemas, apresentou-se conflitos
inerentes ao próprio campo, como a recusa em trabalhar determinados temas, a
contrariedade em relação ao assunto trabalhado, até conflitos motivados por
questões externas ao campo da geografia, como os embates com a direção, com a
secretaria de educação, ou dilemas envolvendo a violência urbana.
Essa multiplicidade de conflitos, mostra a necessidade do próprio campo do
cotidiano escolar aprofundar e complexificar suas análises, uma vez que são
mínimos os estudos que evidenciam as relações de poder-saber presentes nessas
interações. Da mesma forma, é necessário construir uma geografia que ajude a
desvelar o racismo e as demais formas de opressão.
E no segundo capítulo, como a escola, apesar do seu imenso potencial, ainda
serve enquanto um ambiente produtor e reprodutor de desigualdades, buscou-se
demostrar que a necessidade de criar uma educação de base antirracista é real,
necessária e fundamental para complexificar e combater as diversas formas de
hierarquias presentes na nossa sociedade e na própria geografia.
Com isso em mente, durante a dissertação buscou-se construir caminhos que
possibilitassem entender formas de atuação do racismo na nossa sociedade, ao
mesmo passo, compreender como o racismo influencia no sistema educacional e na
geografia que se ensina. Desta forma, construiu-se, através das práticas docentes
engendradas no cotidiano escolar, uma forma evidenciar este enquanto um
ambiente repleto de relações de poder-saber, mas fundamental para construir uma
outra geografia.
Isto posto, sendo a escola um espaço-tempo heterogêneo e multifacetado
onde se produz e reproduz hierarquias de base raciais, ela também é um espaço de
208

(re)produção da vida cotidiana crucial onde novas práticas podem e devem ser
construídas.
209

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APÊNDICE A – Quadro de Embates

Nº Nomes Local da Data do Interlocutores Objetos em Núcleo da


Transcrição Relato do episódio Interlocutor
Fantasia Escola Relato Discriminados disputa disputa
Ao passar um conteúdo, os alunos
Na oitava série eu tentei [fazer a discussão sobre a questão
começaram a indagar o professor,
racial] com duas turmas, mas do que eu realmente senti falta
falando que o mesmo havia sido dado
foi do material didático [...] Como eu já tinha começado, eu
na aula de história e que no livro
fui tentar fazer o bate-bola, o pingue-pongue de tentar
estava diferente. Com isso, quando o A aplicação (a
apontar diferenças de um lado e de outro, formas de visão
professor foi adentrar no conteúdo partir de uma visão
de mundo etc. E aí, alguns alunos conseguiram pescar a
Professor Bangu, Agosto trazendo a temática racial, alguns Turma da 8ª Currículo antirracista) de um
1 discussão, outros ficavam olhando para o livro, olhava pra Aluno(s)
1 Rio de Janeiro 2008 alunos que já tinham construído uma série Praticado conteúdo já visto
mim e falavam “pô, mas em História a gente trabalha
visão de acordo com o que foi com outro
diferente”. Assim, eu acho que é uma coisa que a gente tem
explicado na aula de história, professor.
que começar a se preocupar mais com a produção de
sentiram dificuldades, fazendo com
material didático. Porque a gente acaba ficando numa sinuca
que o professor entrasse em embate
de bico, porque fica a minha fala contra o livro, contra a aula
direto com as visões de mundo
de História e aí a gente fica numa sinuca de bico.
passadas em salas de aula.

Então o que acontece, esse mês, esse bimestre, passou


muito rápido e não deu para fazer muita coisa não. Na
verdade o que aconteceu, é que a gente tinha elaborado um
projeto, não sei se vocês lembram. Sobre trabalho, ética,
colocar profissionais negros que fossem oriundos de escola
pública pra poder servir de exemplo pra garotada lá e tal,
porque eles mesmos não acreditam que podem ir muito
longe, isso foi relato deles mesmos. Então a gente ia pegar
esse projeto e tocar, mas só que esse projeto foi substituído
por projetos relacionados a meio ambiente, aí quando eu
O professor tentar fazer um projeto
perguntei a direção “por que vocês fizeram isso, o projeto Projeto para levar
em que leva profissionais negros Coordenação
Professor Venda das estava tão legal e tal”, aí eles “Não porque o terceiro Setembro Direção da Evento(s) negros bem
3 oriundos de escolas públicas, mas a /Direção da
2 Pedras, Itaboraí bimestre está muito curto, então a gente vai passar isso pro 2008 Escola Interdisciplinar(es) sucedidos para o
direção o substitui por outro que trata escola
quarto, então a gente vai colocar um troço mais simples colégio
sobre meio ambiente.
agora”.
Aí eu falei: “Geralmente o quarto [bimestre] é mais curto do
que o terceiro”. Aí eles disseram “Se não der para fazer
nesse, nós fazemos no início do ano que vem”. Eles vão
empurrando com a barriga. O grande lance é que está
chegando o dia 20 de novembro aí, e aí eles não têm como
escapar de um projeto relacionado à questão negra, então a
gente vai procurar trabalhar e elaborar um projeto voltado
mais para 20 de novembro, porque aí a gente deixa os caras
de “calça-curta” e aí não tem como eles fugirem da
discussão.
220

[...] dos professores que tinham participado da reunião por


área foi tranquilo, eram os professores de História e
Geografia. Não tinha ninguém de Sociologia e Filosofia. E ai
tiraram umas linhas iniciais de como seria o projeto, ali eles
definiram que iria fazer durante o ano, tentar, ai eu tinha
dado essa sugestão e eles ficaram de tentar dentro dos
conteúdos, que no início da reunião eles fizeram com base
na proposta que a secretaria estadual mandou sobre o
currículo, todas as áreas lá, todos os professores resolveram
pegar a base curricular e discutir em cima disso. Não A direção propôs uma atividade
quiseram fazer nada diferente e enfim, teve área da escola dividida pelas matérias, ficando
Atividade sobre a
que: “não, está ótimo!” e teve área que: “não, aqui está ruim!” juntas, as matérias de história,
temática racial e
E aí eles fizeram isso, e ai dentro do que eles definiram dos geografia, filosofia e sociologia. A Evento(s)
resistência dos
conteúdos eles iriam buscar temas que pudessem trabalhar reunião foi marcada e só Interdisciplinar(es)
professores
no sentido de dar a consciência do porque do dia 20. Então o compareceram os professores de
Professora Nova Cidade, Abril Professora de trabalharem os
10 tema que eles sugeriram é: “Resistência Negra – O Porquê história e geografia, que decidiram Professor(es) E
3 Itaboraí 2010 Filosofia assuntos em suas
do dia 20 de Novembro”, esse é o tema que cada área vai trabalhar a temática na inserção do
aulas
trabalhar. Só que não tinha ninguém de Sociologia e nem de conteúdo, entretanto em outra Currículo
Filosofia. [...] E aí, tinha marcado outra reunião, e já reunião, a professora de filosofia foi Praticado
ampliando para que os professores de Filosofia e Sociologia contra, afirmando que se deveria
estivessem para poder passar o que o pessoal de História e trabalhar a diversidade, como índio,
Geografia tinha definido. E aí foi aonde foi o conflito. Que brancos etc.
uma professora de filosofia, que eu já tinha relatado que ela
da aula de código de trânsito na aula de filosofia, e ela virou
e falou que era contra o dia 20, que não concordava, mas
que já que era uma coisa definida, ela não ia mesmo
conseguir reverter isso não é, mas que ela não ia fazer nada!
Aí eu fui puxar a discussão do por quê? Ai ela veio com um
discurso que tem que trabalhar a diversidade: onde ficam os
indígenas, os brancos, e enfim... Não ficou uma coisa muito
boa.

[...] os alunos estavam fazendo exercício normal que ela


Uma professora que não acreditava
passou para copiar no quadro e ela sozinha montando um
na existência do racismo, fazia
cartaz para dizer que foi a turma que fez, mas não foi a
cartazes sobre a questão racial
turma foi ela quem fez. [...] Ela está impedindo que a turma
enquanto os alunos copiavam os Impedimento dos
dela participe porque ela não acredita que exista o racismo e
exercícios que ela passava no alunos
Professora Centro, acabou, mas para ela não ficar mal na fita ela produziu uns Novembro Currículo
23 quadro. No final a professora Professor(es) Professora desenvolverem
4 Niterói cartazes e foi lá e colocou o nome da turma. [...] É só pedir 2009 Praticado
colocava o nome dos alunos, trabalho sobre a
para ela trabalhar uma semana a África na escola, um
impedindo assim que a turma temática racial
projeto junto com os alunos em sala de aula que você
trabalhasse com a temática, mas ao
começa a perceber as coisas e como elas acontecem ainda
mesmo tempo fazendo parecer que
mais que eu fiquei lá a semana toda e eu entrava na sala de
eles trabalhavam.
aula então eu via como as crianças eram tratadas.
221

É a primeira semana de aula foi de planejamento no meu


colégio, e pelo menos o pessoal da Geografia resolveu fazer
coletivo e então fiz desde o sexto, sétimo, oitavo e nono ano.
Só no ensino médio que eu leciono não entreguei ainda, até Na semana de planejamento do que
porque eu queria estar aqui com vocês para elaborar melhor vai ser aplicado em sala de aula
a questão do ensino médio, só que o seguinte, eu não tinha durante o ano, um professor com
comigo o planejamento que a gente fez aqui, mas eu sabia formação na FFP-UERJ teve uma Resistencia de
mais ou menos né, nos fizemos juntos aqui, então em cima resistência para colocar nos Professor(es) de trabalhar com a
Professora Centro, Março Professor(es) Currículo
25 disso, nós fizemos. Três professores participaram comigo, conteúdos a questão do Quilombo. A Geografia temática de
4 Niterói 2010 de Geografia Praticado
sendo que uma professora, numa boa aceitou a outra professora aceitou a quilombos nas
implementação dentro dos conteúdos pedagógicos, a implementação da Lei 10.639 sem aulas de Geografia
implementação da Lei 10639, sendo um professor de nenhuma restrição e como eram 2
geografia que tem formação aqui nessa faculdade [UERJ- professores contra 1, o professor que
FFP], teve um pouco de resistência, ele dizia “mas porque tinha resistência teve que aceitar.
ensinar isso ai, pra que colocar quilombo”. Sabe, questionou
o tempo todo, mas no fim ele aceitou, éramos três, duas
queriam, ele tinha que entrar.

Professor sofre em todos os sentidos, porque o professor


compromissado que não quer um trabalho alienado ele sofre
porque a escola atropela tudo o tempo todo, a secretaria de
educação atropela tudo. Se falar que somos obrigados a
Alguns professores romperam com a
fazer um projeto político pedagógico e o pessoal quer fazer
direção a ponto de não entrar na sala
um projeto sério é criticado. Ele pega e manda um projeto de
dos professores para não precisar ter
gaveta, a escola pega e manda e pronto, é tudo assim “para
um dialogo. Isso aconteceu, pois Coordenação
inglês ver” nada é verdadeiro entendeu, é tudo assim e isso
desde que a Diretora foi empossada, /Direção da Professores,
me irrita. Tem hora que eu não aguento ai eu falo na frente
está havendo uma série de situações escola Sucateamento e
de todo mundo ai cria aquele mal estar total enfim. Depois
que está causando um desgaste e Direção da "fechamento" dos
elas tentam contornar. Mas isso cria um mal estar muito
segundo o relato um "fechamento da E Escola espaços físicos da
grande dentro da escola, tem professores que são até mais
Professora Centro, Novembro escola". Ela faz essa análise vendo Disputa Político- escola, levando a
34 sensíveis do que eu e por conta disso quebra o dialogo com
4 Niterói 2010 desde o fechamento da sala de Secretaria E Pedagógica um rompimento
a escola totalmente. Tipo assim tem professor na escola que
computadores até as obras que estão Municipal de entre os
da sua aula e na hora do intervalo toma seu cafezinho lá em
impedindo os professores de fazer o Educação/ Secretaria professores e a
baixo nem entra na sala dos professores, por não concordar
seu trabalho. A professora ainda Secretaria Estadual de direção.
com a direção. Primeiro aquela direção foi imposta, ela não
relata que os professores que Estadual de Educação
foi eleita por ninguém é cargo político uma pessoa
buscam fazer um trabalho sério Educação
totalmente alienada a serviço dos interesses de nem sei de
dentro do colégio, tem a sua prática
quem. Acho que elas nem sabem o que estão fazendo lá.
"atropelada" pela direção e pela
Omissas, não tem voz nem pedagógica, nem política não
secretaria de educação.
tem nada, não sei o que estão fazendo lá. A escola acabou,
desde que ela pegou fechou a sala de computadores, a
escola só quebra, quebra, quebra, não fica nada inteiro, cada
dia que eu chego lá, que é isso tem um novo buraco.
222

A professora relata sobre as relações


preconceituosas que são
estabelecidas pela escola. Assim
[...] surgiu todo mal estar de uma conversa que eu tive com a
como quanto a escola contribui para
coordenadora de colocar que essas relações dentro da
a reprodução de estigmas, Posicionamento
escola estão presentes, de varias situações preconceituosas,
estereótipos e preconceitos. Este Professores, entre os
inclusive partindo da direção, assim teve um momento que Coordenação
preconceito é estabelecido em professores, a
eles decidiram impedir que os alunos que fossem negros, /Direção da
diferentes esferas: sala de aula, Coordenação coordenação
não poderiam pintar o cabelo de loiro. Então assim, uma escola Comportamento/
Professora Bangu, Setembro conselho de classe, sala dos pedagógica pedagógica e a
45 série de situações que reforçam o preconceito, acontece na Tratamento sobre
5 Rio de Janeiro 2009 professores. As falas são sempre direção com os
escola que ela se omite. E eu coloquei minha posição contra E a temática racial
pejorativas e negativas quando E alunos. Modos de
aquilo e que o fato de ser a escola com a maioria de alunos,
retratam os alunos. Quando a tratamento e
mesmo que eles não se identifiquem como negros, mas que Professor(es)
professora demonstra que não Direção. relações de
eles são, e eles são estigmatizados, ainda tem o descaso da
concorda com esta forma de relação poderes.
escola em relação a todos esses problemas que se
estabelecida na escola, cria-se um
apresentam porque e uma população pobre, negra, favelada.
conflito e aumenta as tensões entre
ela e os demais companheiros da
escola.

Fonte: O autor, 2017.


223

APÊNDICE B – Quadro de Dilemas

Nomes Local da Data do Motivador/ Núcleo do Dilema/


Nº Transcrição Relato do episódio
Fantasia Escola Relato Interlocutor Objetos em Disputa

No oitavo ano eu comecei a ver as diferentes formas de regionalização do mundo, a


questão geográfica, a questão econômica, a questão cultural e aí falei disso tudo. Só
que, abril é um mês complicado, a gente teve várias paradas na escola para a
discussão do planejamento da escola, para a discussão do planejamento do PPN
[Planejamento Pedagógico do Núcleo], a escola vai participar agora do PBE
[Programa Bairro Escola]. [...] muita burocracia para ser feita e mais duas avaliações,
uma avaliação primeira do ensino de português, outra avaliação de português e
matemática, teve correção, organização dos dados, distribuição de boletins, O professor não consegue dar
informação com os responsáveis, tivemos dois tiroteios fortes nesse mês, na qual a andamento na matéria pois as
Embate entre o Tráfico de
escola ficou fechada, então, estamos caminhando ainda. aulas são constantemente
Entorno sócio- drogas e a Polícia Militar;
Professor Bangu, Então assim, o pontapé inicial eu dei essa semana ao começar a trabalhar e a Abril interrompidas. Seja por semana
1 espacial; Dinâmica Reuniões Pedagógicas -
1 Rio de Janeiro acompanhar essas coisas. Então assim, eu estou num processo muito embrionário 2009 de planejamento, seja por
Interna da Escola. Atrapalham o andamento
ainda, mas assim, já preparando pra fazer a discussão naquele ponto que a gente veio tiroteios entre a polícia e o tráfico
das aulas.
falando na aula passada que é pra buscar e mostrar que não é essa coisa que a gente da comunidade onde a escola fica
tem como conteúdo verdadeiro desde sempre, tentar questionar isso e apontar outras situada.
questões, outros pontos em relação ao tema em que a gente está. Mas assim, muito
embrionário ainda.
O problema é que dentro da estrutura do município, de organização da escola,
tivemos várias aulas paradas, dois tiroteios fortes, quatro (não entendi a palavra)
detidos na DPO local (não entendi uma parte do áudio) saímos com o “caveirão”
escoltando a gente, o “caveirão” na frente, duas “blazers” e oito carros de professores
atrás, lotados.

[...] Esse é um ano que eu tenho duas turmas muito boas a 91 é muito boa, a 92 é
uma boa turma, partiu da turma 92 pra 96 aí é um Deus me livre total, mas a gente vai Professor questiona que a
conseguindo acertar mais ou menos. Chatos são os problemas ao redor da escola, a violência na comunidade onde a
comunidade anda meio tensa demais, a escola anda meio tensa e isso esta sendo escola está situada que atinge
refletido no comportamento dos alunos que estão muito tensos dentro de sala. Mas indiretamente a escola como um
assim, a gente vai levando. No mais, é isso! A... Vai ser feita a avaliação agora, todo. Os alunos não conseguem
Embate entre o Tráfico de
Professor Bangu, semana de prova, daí vem o “feriadão”, ai depois tem conselho, depois tem centro de Março prestar atenção na aula. A Entorno sócio-
3 drogas e a Polícia Militar -
1 Rio de Janeiro estudo, então assim... Umas duas ou três semanas no município é um momento que a 2010 direção e os alunos ficam muito espacial
Causa tensão nos alunos.
gente vai andar pouco com conteúdo, matéria. Até nossos encontros com nossos tensos por causa da violência. E
alunos vai ser menor não é?! Porque vai ter a semana de prova... Não. É o feriadão, a ainda tem os dias que a escola
semana de prova, depois tem a semana dos centros de estudos e ai vai ter o conselho fica fechada por conta do tráfico.
de classe. Então, vai ser um período mais conturbado agora pra gente, não deve São dois fatos que atrapalham o
andar muita coisa... Mas assim, estamos andando em passos curtos, mas estamos trabalho do professor
andando.
224

A professora reparou o
Enfim, essa é uma discussão que eu já venho travando desde o primeiro bimestre com desaparecimento de alguns
a turma do primeiro ano. Como os primeiros anos é um caos total, com a turma uma alunos que participavam do
vez vem um, outra vez vem outro, e no conselho a gente perguntou, cadê os alunos programa "Acelera" do Governo
que estavam naquele “acelera” que não é “acelera” no Estado? Sumiram? Aí é super do Estado. Como complemento
triste a gente saber que fulano está no tráfico, fulano está não sei aonde, sei que lá, desse relato, ela diz que muitos
Desaparecimentos de Alunos
sei que lá, sei que lá. Todos negros, aí me dá uma tristeza, me dá uma angustia de alunos do colégio, acabam
Entorno sócio- - Choque entre Professores,
Professora Centro, mais um ser morto. Que aquela área do Centro de Niterói, os alunos começam a Outubro entrando no tráfico de drogas ou
24 espacial; Dinâmica Alunos, Direção e
4 Niterói roubar, os seguranças vão e matam, são vários alunos, que já foram mortos dessa 2011 cometendo outros tipos de crimes
interna da Escola. "Seguranças particulares" do
maneira. Que ali é lugar, onde tem as lojas, onde tem o shopping aquilo, então é um e como no entorno da escola,
entorno do colégio.
lugar que as ruas tem segurança particular, até na Rua São João tem segurança. E opera alguns grupos de
eles falam, se for pego outra vez, não sei o que lá. A diretora cansa de salvar aluno lá: segurança, quando esses alunos
"vão pegar o aluno tal e vão matar" e vai todo mundo correndo pegar o aluno, que são pegos roubando as lojas da
dizer, isso no século 21, no centro de Niterói, e acontece predominantemente com os região, a diretora tem que agir
alunos negros. rápido se não esses seguranças
acabam sumindo com os jovens.

[...] cada vez que eu vejo a direção trabalhando em gestão, que agora ela tem que ser
gestora como se a escola fosse uma empresa, só que fica uma confusão gente. [...]
Enfim, mas assim, criou uma desordem essa coisa do “Saerjnho” teve professor que
não pôde aplicar a prova dele por conta disso, uma confusão, mandaram a gente
Devido a uma falta de
agilizar o provão pra auxiliar. Porque tinha que agilizar pra entregar senão a escola ia
organização, professores que não
perder ponto e os professores não iam ganhar os quinhentos reais de Maio. Aí um
são de matemática tiveram que
professor falou: “A não, então eu vou ajudar a corrigir isso aqui porque eu preciso dos
fazer o gabarito e corrigir as
quinhentos reais que vamos ganhar de prêmio”.
provas de matemática. Isso
Aí eu fico observando essa desorganização. A e outra coisa, as provas foram
ocorreu devido a uma pressa da
aplicadas todas erradas. Porque não tinha ninguém para explicar como aplicar a Precarização da Educação
Professora Centro, Abril direção e dos professores Precarização do
20 prova. Eu como sou muito distraída e sei da minha distração, preparei tudo antes e li Pública - Bonificação do
4 Niterói 2011 entregarem as notas, já que Ensino Público
toda a norma da prova e vi que cada prova tinha uma numeração. Ai eu pensei em Governo
receberiam uma bonificação de
avisar a todos os outros professores, eu vi isso só no final quando já tinha distribuído o
500 reais. Além disso, houve um
cartão. Comecei a ver: 1103; 1104; (...) e tal, aí quando eu pedi pra avisar a escola
problema na hora da distribuição
disso, todos os professores já tinham entregado para as crianças e estava tudo errado
das provas, mas a direção pediu
e a escola não tinha como dar outro cartão. Quer dizer, na hora da correção, tem
pra botar uma observação na
aluno que zerou, tem turmas que a média foi menos de 20, de tanto que errou. Aí a
hora de enviar para o Estado.
direção para não ser prejudicada pediu aos professores para botar na parte de
observação que a escola, que grande parte dos professores não sabia que a prova era
toda diferente, que fazia de acordo a numeração e o cartão de respostas, de acordo
com a apostila da prova.

Fonte: O autor, 2017.

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