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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Henrique Marques Samyn

A pastora e a alegoria: a pastorela alegórica, da lírica occitânica aos Carmina Burana e ao


trovadorismo galego-português

Rio de Janeiro
2010
Henrique Marques Samyn

A pastora e a alegoria: a pastorela alegórica, da lírica occitânica aos Carmina


Burana e ao trovadorismo galego-português

Tese apresentada, como requisito


parcial para a obtenção do título de
Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Literatura Comparada.

Orientadora: Prof. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval

Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

M313 Samyn, Henrique Marques.


A Pastora e a alegoria: a pastora alegórica, da lírica occitânica
aos Carmina Burana e ao trovadorismo galego-português / Henrique
Marques Samyn. – 2010.
371 f.

Orientadora: Maria do Amparo Tavares Maleval.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.

1. Marcabrun, séc. 12. L’Autrier jost’ una sebissa – Teses. 2.


Poesia latina medieval e moderna – Séc. XII-XIII – Teses. 3. Alegoria
– Teses. 4. Literatura comparada – Galega e portuguesa – Teses. 5.
Poesia lírica – Teses. I. Maleval, Maria do Amparo Tavares. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III.
Título.

CDU 840-14"11/12"

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese

__________________________ __________________
Assinatura Data
Henrique Marques Samyn

A pastora e a alegoria: a pastorela alegórica, da lírica occitânica aos Carmina Burana e ao


trovadorismo galego-português

Tese apresentada, como requisito


parcial para a obtenção do título de
Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Literatura Comparada.

Aprovado em 15 de março de 2010.

Banca examinadora:

___________________________________________________
Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora)
Instituto de Letras da UERJ

___________________________________________________
Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira
Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP

___________________________________________________
Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves
Instituto de Letras da UFF

___________________________________________________
Profa. Dra. Mary Kimiko Guimarães Murashima
Instituto de Letras da UERJ

___________________________________________________
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez
Instituto de Letras da UERJ

Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA

À Lina,
pulchrior quam Flora
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, devo agradecer à Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval, orientadora
que colaborou ativamente para este trabalho desde quando ele não passava de um projeto; e à
Lina Arao, companheira de vida e de labor, primeira leitora de muitas das páginas desta tese.
Agradeço igualmente àqueles que colaboraram diretamente para que este trabalho fosse possível:
Profa. Dra. Mary Kimiko Guimarães Murashima, que durante anos ajudou-me a percorrer as
trilhas da latinitas; Prof. Dr. William D. Paden, cujo trabalho serviu como base para esta tese, e
que me ajudou fornecendo comentários e explicações adicionais; Profa. Dra. Yara Frateschi
Vieira e Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior – que estiveram na banca de qualificação deste
trabalho, colaborando com proveitosos comentários e críticas que me ajudaram a evitar trilhas
equivocadas e duvidosas; e à Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez, cujo auxílio para a
obtenção de recursos que possibilitaram a realização deste trabalho foi inestimável. Devo também
agradecer à Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves, que aceitou fazer parte da banca de
avaliação deste trabalho. Também me ajudaram, enviando artigos e outros itens bibliográficos:
Prof. Dr. Carlos Paulo Martínez Pereiro; Profa. Ms. Alva Martínez Teixeiro; Profa. Ms. Daniele
Gallindo Gonçalves e Souza; Profa. Maria do Carmo Serén Viana; Prof. Dr. Paulo Roberto
Sodré; e funcionários da divisão digital da biblioteca da Universidade de Edinburgo – a todos,
envio meus sinceros agradecimentos.
Li mot fan de ver semblansa.
(“As palavras têm aparência de verdade.”)

– Marcabru, “Dirai vos senes duptansa”


RESUMO

SAMYN, Henrique Marques. A pastora e a alegoria: a pastora alegórica, da lírica occitânica aos
Carmina Burana e ao trovadorismo galego-português. 2010. 371 f. Tese (Doutorado em
Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2010.

Este trabalho tenciona investigar o conceito de pastorela alegórica, desde sua emergência
na obra do trovador occitânico Marcabru – mais precisamente, em sua obra L’autrier jost’ una
sebissa – até seus desenvolvimentos nos corpora líricos occitânico, médio-latino e galego-
português. Nosso trabalho compreende, assim, um estudo comparativista sobre a poesia medieval
composta nos séculos XII e XIII, por intermédio do qual tencionamos abordar a relação entre
discurso literário e alegoria no âmbito medieval.

Palavras-chave: Pastorela. Alegoria. Trovadorismo occitânico. Poesia médio-latina.


Trovadorismo galego-português. Poética medieval comparada.
ABSTRACT

This thesis aims to investigate the concept of allegorical pastourelle, from its emergence
in the poetry of the Occitan troubadour Marcabru – more precisely, in his lyric L’autrier jost’ una
sebissa – until its developments in the Occitan, Medieval Latin and Galician-Portuguese lyric
corpora. Through a Comparative Study of the medieval lyric of the XII and XIII centuries, this
work aims to examine the relation between literary discourse and allegory in the medieval period.

Keywords: Pastourelle. Allegory. Occitan troubadour lyric. Medieval Latin Poetry. Galician-
Portuguese troubadour lyric. Comparative poetics.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 1

Audiau AUDIAU, Jean. La pastourelle dans la poésie occitane du Moyen Âge.


Genève: Slatkine Reprints, 1973. Fac-símile da edição: Paris: E. de
Boccard, 1923.

Bartsch BARTSCH, Karl. Romances et pastourelles françaises des XIIe et XIIIe


siècles. Altfranzösische Romanzen und Pastourellen. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesselschaft, 1967. Fac-símile da edição: Leipzig:
F.C.W. Vogel, 1870.

Brea BREA, Mercedes (coord.). Lírica profana galego-portuguesa. Santiago de


Compostela: Xunta de Galicia, 1996. 2v.

De Riquer DE RIQUER, Martín. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona:


Editorial Ariel, 1975-2001. 3v.

Dejeanne DEJEANNE, J.-M.-L. Poésies complètes du troubadour Marcabru. Nova


Iorque: Johnson Reprint Corporation, 1971. Fac-símile da edição:
Toulouse: Imprimerie et Librairie Édouard Privat, 1909.

Guida GUIDA, Saverio. Il trovatore Gavaudan. Modena: Mucchi, 1979.

Hilka-Schumann HILKA, Alfons; SCHUMANN, Otto. Carmina Burana. Mit Benutzung der
Vorarbeiten Wilhelm Meyers; kritisch herausgegeben von Alfons Hilka und
Otto Schumann. I Band: Text – 2: Die Liebeslieder – Herausgegeben von
Otto Schumann. Heildelberg: Carl Winter’s Universitätbuchhandlung,
1941.

Paden PADEN, William D (ed.). The Medieval Pastourelle. Trad. William D.


Paden. Nova Iorque: Londres: Garland, 1987. 2v.

Walsh WALSH, Patrick G. (ed.) Love lyrics from the Carmina Burana. Edited and
translated with a commentary by Patrick G. Walsh. North Carolina: The
University of North Carolina Press, 1993.

Wright WRIGHT, Thomas. The latin poems commonly attributed to Walter Mapes.

1
Optamos por empregar essas abreviações para facilitar o reconhecimento das edições mencionadas no
texto; assim, fizemos seguir o título do texto mencionado pela correspondente abreviação, entre parênteses, sem
caixa alta (para diferenciar das outras citações bibliográficas) e o número da obra como ocorre na edição. Desse
modo, Exiit diluculo (Hilka-Schumann, 90; Paden, 47; Walsh, 28) refere-se ao texto 90 da edição de Alfons HILKA
e Otto SCHUMANN (Carmina Burana. Mit Benutzung der Vorarbeiten Wilhelm Meyers; kritisch herausgegeben
von Alfons Hilka und Otto Schumann. I Band: Text – 2: Die Liebeslieder – Herausgegeben von Otto Schumann.
Heildelberg: Carl Winter’s Universitätbuchhandlung, 1941), que aparece como texto 47 na edição de William D.
PADEN (The Medieval Pastourelle. Trad. William D. Paden. Nova Iorque: Londres: Garland, 1987. 2v.) e como
texto 28 na edição de Patrick WALSH (Love lyrics from the Carmina Burana. Edited and translated with a
commentary by Patrick G. Walsh. North Carolina: The University of North Carolina Press, 1993).
Nova Iorque: AMS Press, 1968. Fac-símile da edição: Londres: Camden
Society, 1841.
SUMÁRIO
NOTAS PRÉVIAS 13

INTRODUÇÃO 14

PARTE I. A INVENÇÃO LITERÁRIA 19

1. O NASCIMENTO DA PASTORELA 20
1.1. O lugar da tradição 22
1.2. Origens latinas? 28
1.3. Origens vernáculas? 33
1.4. Uma questão perene 37

2. A INVENÇÃO LITERÁRIA 41
2.1. Acerca da alegoria 50
2.2. A vigência do modelo: as pastorelas alegóricas 58
2.2.1. A fidelidade à infiel: L’autrier le primier jorn d’aost, de Giraut de Bornelh
60
2.2.2. O ciclo de pastorelas de Guiraut Riquier 64
2.2.3. Gavaudan e a inversão da alegoria 72
2.2.4. A clivagem radicalizada: Ogan, ab freg que fazia, de Joan Esteve 77
2.2.5. L’autrier, a l’intrada d’Abril, de Guilhem d’Autpol: a seguidora de frei Johan 80
2.2.6. Em defesa da virtude: Quant escavalcai l’autrer 82
2.3. A variante: as pastorelas pseudo-alegóricas 84
2.3.1. L’autrier, al quint jorn d’Abril: em defesa da honra 85
2.3.2. O amor como consolo: L’autrier, cavalcava, de Gui d’Ussel
87
2.3.3. A falsa resistência em L’autrier, el gay temps de pascor, de Joan Esteve 89
2.3.4. Per Amor soi gai, de Guiraut d’Espanha 92
2.4. O modelo e as exceções 93

3. PASTORELAS E PASTORAIS 96
3.1. As pastorelas francesas 97
3.1.1. A vitória da pastora 98
3.1.2. A derrota da pastora 100
3.1.2.1. A argumentação de Kahtryn Gravdal: camuflagem e celebração do estupro 101
3.1.2.2. A réplica de William Paden: o lugar da ficção 107
3.1.3. A pastora e o lobo 112
3.1.4. O embate da carne contra o embate do espírito 115
3.2. As pastorelas e o antibucólico 117
3.2.1. A poesia bucólica na tradição clássica 119
3.2.2. O antibucólico nas pastorelas alegóricas 123

PARTE II. AS MARCAS DO TEMPO 126

4. A PASTORA E A ALEGORIA 127


4.1. A figura da pastora: o percurso histórico 128
4.2. A pastora na tradição religiosa judaico-cristã
131
4. 2. 1. O contexto pré-medieval: Raquel e o bom Pastor 132
4. 2. 2. A tradição medieval: a vida de santa Margarida 138
4.3. A defesa da virtude 146

5. A CONSTRUÇÃO DA ALEGORIA 150


5.1. As origens da alegoria medieval: dos antigos a Eriúgena 150
5.2. Da percepção alegórica à literatura 167
5.3. Da pastora enquanto alegoria 182

6. O LUGAR DAS INTENÇÕES 189


6.1. O ato e a intenção 190
6.2. O primado da consciência 196
6.3. A pastorela como instância de embate moral
205

PARTE III. DESDOBRAMENTOS E HIBRIDIZAÇÕES 210

7. A PASTORA E A PUELLA: AS PASTORELAS ALEGÓRICAS MÉDIO-LATINAS


211
7.1. Os Carmina Burana: notas introdutórias 212
7.2. Pastorelas e pastorais na lírica latina medieval 220
7.3. A pastorela alegórica em Gualterus de Castellione e nos Carmina Burana
229
7.3.1. Sole regente lora, de Gualterus de Castellione: uma obra pioneira? 233
7.3.2. Estivali sub fervore: o desejo e a renúncia 237
7.3.3. Lucis orto sidere: a dupla alegoria 240
7.3.4. Vere dulci mediante: violência e caritas 244
7.4. As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido 246

8. A PASTORA E A AMIGA: AS PASTORELAS PSEUDO-ALEGÓRICAS GALEGO-


PORTUGUESAS 251
8.1. Trovadorismo occitânico, trovadorismo ibérico 252
8.2. Cantigas de amigo e pastorelas peninsulares 256
8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas 270
8.4. As pastorelas pseudo-alegóricas galego-portuguesas
282
8.4.1. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela, de Pedro Amigo de Sevilha: a pastorela e o código
amoroso cortês 283
8.4.2. Pelo souto de Crecente, de João Airas de Santiago: o motivo da rejeição na pastorela
peninsular 287
8.4.3. Vi oj’ eu cantar d’ amor, de D. Dinis: o resgate do modelo de Marcabru 289
8.5. Da pastora enquanto amiga 291

9. À GUISA DE CONCLUSÃO 296

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 301

APÊNDICE A – Antologia de pastorelas medievais alegóricas 319

APÊNDICE B – Tabelas 371


13

NOTAS PRÉVIAS

A fim de obter uma uniformização dos nomes de autores medievais aqui citados,

normalizamos os nomes occitânicos de acordo com a edição de De Riquer (1975-2001) e os

nomes galego-portugueses de acordo com a edição de António Resende de Oliveira (1994); para

autores médio-latinos, preferimos os nomes latinizados mais comuns.

Com o objetivo de facilitar a leitura dos trechos de textos literários originais, optamos por

inserir as citações na língua original no corpo do texto, entre parênteses, logo após a tradução do

fragmento em questão; isso nos permite também evitar o uso excessivo de notas de rodapé, que

utilizamos para transcrição dos textos originais de obras não especificamente literárias. Nas

ocasiões em que estrofes inteiras foram traduzidas, inserimos a obra original e a tradução no

corpo do texto, lado a lado, também com a exclusiva finalidade de facilitar a leitura e o cotejo.

Todas as pastorelas alegóricas e pseudo-alegóricas occitânicas, médio-latinas e galego-

portuguesas analisadas no texto foram antologiadas e integralmente traduzidas no primeiro anexo

desta tese.
14

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa começou a germinar no ano de 2004. Aquele foi o ano em que, tendo

defendido uma dissertação de mestrado em Filosofia e prestes a defender outra em Psicologia

Social, optei por enveredar por outra área acadêmica: os estudos literários. Se havia aí uma

ruptura com relação à trajetória anterior, essa era apenas aparente; desde a minha primeira

graduação – em Filosofia – , interessavam-me as relações entre a arte e a cultura, algo

transparente na produção da época, concentrada em estudos sobre artes plásticas e fotografia. Por

não ter conseguido abordar esses temas da maneira desejada em Filosofia, transferi-me para a

Psicologia Social, onde também não logrei realizar o trabalho desejado; a transição para a área de

Letras era, portanto, uma nova tentativa nesse sentido.

Foi com esse intento que cheguei ao Programa de Estudos Galegos (PROEG) da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ciente de que ali havia um centro de pesquisas em

torno da literatura ibérica, assunto que me interessava há tempos, fui recebido pela professora

doutora Maria do Amparo Tavares Maleval, que desde o princípio encorajou a minha

participação nas atividades do núcleo – graças a que iniciei, quase que imediatamente, uma

colaboração com o PROEG, apresentando trabalhos e ajudando na organização de eventos. Ali

pude conhecer melhor a literatura portuguesa e a literatura galega; ali começou a esboçar-se o

doutorado que teria início dois anos depois.

Como não poderia deixar de ser, foi lento o processo de escolha de um tema em que eu

pudesse aproveitar minha experiência prévia em novas investigações. Ao longo de um ano,

esbocei diversas possibilidades, diversas das quais renderam temas investigados posteriormente

em artigos e comunicações. A princípio, ocorreu-me trabalhar com as cantigas satíricas galego-


15

portuguesas e os sirventeses occitânicos, em perspectiva comparada; depois, cogitei investigar a

relação entre as produções literárias médio-latinas e peninsulares. O anteprojeto que me levou ao

doutorado consistia, fundamentalmente, em uma – um tanto quanto vaga – tentativa de aproximar

o temário das cantigas satíricas galego-portuguesas e aquele constante dos Carmina Burana;

proposta que, apesar da originalidade, era indubitavelmente muito ambiciosa para o tempo e os

recursos de que disporia para a pesquisa. Assim, dediquei todo primeiro ano do doutorado a

leituras da lírica peninsular e médio-latina, em busca de um tema mais viável para a pesquisa.

A busca por um tema fértil, que suscitasse questões não abordadas na literatura específica,

chegou ao término quando me deparei com as pastorelas. Instigou-me perceber algumas

semelhanças temáticas entre exemplares galego-portugueses desse gênero e certos Carmina

Burana: em ambos os casos, tratavam-se de composições sobre trovadores ou cavaleiros que, em

cenários campestres, deparavam-se com jovens pastoras que tentavam seduzir; não obstante,

havia diferenças perceptíveis entre as referidas obras, tanto no que tange à forma quanto no que

diz respeito ao desenvolvimento: as cenas de violência sexual presentes em certas pastorelas

médio-latinas, por exemplo, jamais se faziam presentes nos textos ibéricos. Aprofundando

leituras sobre esse tema, cheguei à matriz occitânica – a obra de Marcabru, L’autrier jost’ una

sebissa –, que parecia ter de alguma forma influenciado aqueles exemplares; assim, pude esboçar

uma primeira proposta de trabalho: compreender como, a partir do modelo de Marcabru,

nasceram obras ao mesmo tempo tão semelhantes e tão diferentes quanto as pastorelas médio-

latinas e galego-portuguesas.

Entretanto, novas questões começaram a surgir conforme a pesquisa avançava. A busca

por um conceito de pastorela que pudesse ser adotado na investigação levou-me em direção ao
16

conceito de pastorela alegórica, portadora de um conjunto de características temáticas e de uma

estrutura narrativa própria. Investigando esse modelo na lírica em langue d’oc, percebi que havia

ali também algumas variantes – obras em que a alegoria não aparecia de forma explícita, ou que

encerravam um desfecho amoroso. Parecia-me frutífero investir também no estudo dessas

variantes, já que se assemelhavam às obras ibéricas e médio-latinas; contudo, logo notei que

certos exemplares franceses também apresentavam características que os aproximavam do

modelo alegórico. Um estudo exaustivo de todas essas obras superaria, em muito, os limites

impostos para a pesquisa – sobretudo no que tange ao tempo previsto para sua conclusão (48

meses, de acordo com os parâmetros acadêmicos brasileiros) e aos recursos disponíveis,

mormente de ordem bibliográfica. Era preciso, desse modo, estabelecer um recorte estreito,

definindo um corpus que fosse possível estudar de forma devidamente aprofundada.

O primeiro corpus a ser estudado já estava, naturalmente, determinado: seria impossível

estudar o modelo de pastorela alegórica sem investigar a lírica occitânica, no seio da qual emerge

e consolida-se o referido modelo. Já a opção de dedicar-me aos corpora médio-latino e galego-

português consolidou-se principalmente pelo fato de as pastorelas produzidas nessas línguas

apresentarem uma notável consistência. Ao longo da investigação, constatei que, se todas as

pastorelas médio-latinas que seguem o modelo occitânico podem ser consideradas alegóricas,

todas as constantes da lírica peninsular correspondem a um modelo melhor qualificável como

pseudo-alegórico – ou seja: no que diz respeito à estrutura narrativa, assemelham-se à obra de

Marcabru, sem contudo apresentarem o teor moralizante característico de L’autrier jost’ una
17

sebissa 1 . Isso decerto enriqueceria minha proposta comparativista, já que suscita questões em

torno dessas particularidades: que tipo de fatores podem ter determinado essa consistência?

Investigar essa questão parecia um assunto mais instigante do que analisar, por exemplo,

as pastorelas em langue d’oïl em que é perceptível a influência do modelo de Marcabru. Num

recenseamento inicial, identifiquei algumas dessas composições 2 , que ora se apresentam como

uma mescla do referido modelo occitânico com elementos típicos das pastorelas francesas, ora

constituem legítimos exemplares alegóricos compostos em língua francesa, o que denuncia uma

transposição da invenção de Marcabru para aquele âmbito literário. Não obstante, a incorporação

dessas pastorelas à pesquisa estenderia o corpus para além do tempo disponível para a

investigação; desse modo, optei por debruçar-me sobre as pastorelas médio-latinas e galego-

portuguesas – que, além das características anteriormente mencionadas, possuíam a

particularidade de terem sido produzidas no âmbito de tradições líricas distantes

(geograficamente) e distintas (literariamente) da occitânica, na medida em que os seus autores

dialogaram intensamente com a tradição latina, de um lado, e com a tradição peninsular ibérica,

de outro lado.

Desse modo, o corpo da tese compreende três partes. A primeira parte, que inclui os

capítulos de 1 a 3, tenciona investigar o surgimento da pastorela alegórica occitânica como

acontecimento literário: suas origens, características e o que a diferencia de outros modelos de

pastorelas. A segunda parte, que compreende os capítulos de 4 a 6, visa explorar a relação entre a

pastorela alegórica e elementos extra-literários, ou seja: inscrevê-la em seu tempo, analisando

alguns dos fatores que podem ter suscitado sua emergência e situando historicamente seus
1
Esse tipo de pastorelas ocorre também no âmbito occitânico, como veremos mais à frente; cf. 2.3. A
variante: as pastorelas amorosas pseudo-alegóricas.
2
Assunto de que tratamos no capítulo 3. Pastorelas e pastorais.
18

elementos – esses capítulos investigam a figura da pastora na tradição judaico-cristã, bem como

seu possível caminho até as pastorelas alegóricas; o próprio conceito de alegoria na Idade Média;

e o surgimento de uma nova perspectiva moral no século XII, consistente com as atitudes que os

protagonistas apresentam nas pastorelas. Por fim, os capítulos 7 e 8 tencionam investigar a

influência da pastorela de Marcabru nos âmbitos literários médio-latino e galego-português,

analisando seu processo de desenvolvimento e suas particularidades. A tese também traz um

apêndice com todo o corpus de pastorelas alegóricas e pseudo-alegóricas nela analisado.

Se, a princípio, os capítulos que constituem a tese podem parecer desarticulados ou mal

equilibrados, é preciso compreender que tudo isso ocorre por exigência do tema de nossa

pesquisa. O reconhecimento de um modelo arquetípico na pastorela de Marcabru exigia que se

dedicasse maior espaço à compreensão de suas especificidades, bem como à investigação de suas

condições de emergência: apenas assim se tornariam claros os motivos pelos quais a obra exerceu

tamanha influência. Por outro lado, os capítulos dedicados às pastorelas médio-latinas e galego-

portuguesas representam uma primeira tentativa de investigar esse corpus a partir da nova

perspectiva que aqui proponho, de modo que não há neles a pretensão de apresentar respostas

definitivas, mas apenas de sugerir novas vias e possibilidades interpretativas. Espero, finalmente,

que as lacunas deste trabalho, de cuja existência estou ciente, possam ser preenchidas em futuras

investigações.
19

PARTE I:

A INVENÇÃO LITERÁRIA
20

1. O NASCIMENTO DA PASTORELA

No século XIII, um novo tipo de poesia difunde-se pela Europa medieval. O que a

caracteriza não são padrões formais, mas sua temática: trata-se do encontro, em um ambiente

campestre, entre uma pastora e um homem – muitas vezes, um cavaleiro – , que tenta, de algum

modo, seduzi-la. Inúmeras vezes repetida, a história pode ter diversos desfechos, favoráveis ora à

pastora, ora ao sedutor, o que faz com que assuma os mais variados tons: algumas vezes, há uma

mensagem moral mais ou menos explícita na composição; outras vezes, a poesia é francamente

matizada pelo erotismo.

Se o que desejamos é compreender o contexto histórico de surgimento desse gênero

poético, podemos ousar partir da indagação mais ingênua – não obstante, muito útil, na medida

em que suscita diversos outros questionamentos: onde nasce a pastorela? A resposta é

inequívoca: em alguma parte do território que, hoje em dia, pertence à França; entretanto, não é

tarefa simples, embora indubitavelmente relevante, descobrir se o berço da pastorela seria o Norte

ou o Sul dessa região. E encontramos, assim, um (problemático) ponto de partida para nossa

investigação.

A mais antiga composição documentada que podemos denominar como pastorela, de

acordo com os critérios temáticos anteriormente mencionados, é a obra do trovador occitânico 3

Marcabru L’autrier jost’una sebissa (De Riquer, IV, 14; Audiau, I), certamente composta entre

1130 e 1149, período de atividade literária do referido autor. Trata-se de uma obra

3
Embora o termo “occitânico” date de fins do século XIX, consideramos que sua utilização é preferível a
fim de evitar a imprecisão relacionada ao termo “provençal”, que sugere uma enganosa restrição da língua à região
da Provença; ademais, seguimos assim a orientação adotada pela maioria dos estudiosos da língua occitânica, exceto
na França. Sobre essa questão, ver a introdução de Paden (1998).
21

importantíssima, não apenas por sua condição pioneira, mas também por suas singulares

características textuais. Analisaremos meticulosamente essa poesia no momento apropriado 4 ; por

agora, uma síntese nos é suficiente. O texto descreve o encontro entre uma pastora e um

cavaleiro-trovador, em um ambiente campestre – “perto de uma sebe”. Em treze estrofes,

desenvolve-se um longo diálogo em que o cavaleiro tenta seduzir a pastora; essa escapa,

habilmente, de suas investidas, rechaçando cada um de seus avanços. O discurso poético afigura-

se uma espécie de campo de batalha: temos, de um lado, o trovador, que argumenta em função de

suas intenções lascivas; de outro, a pastora, inflexível defensora de sua virtude.

Deve ficar claro que, na composição, Marcabru descreve-nos uma pastora que não possui

qualquer verossimilhança: certamente uma jovem camponesa, no período medieval, não seria

capaz de sustentar uma argumentação do nível que encontramos nessa obra – na verdade, a

esmagadora maioria das camponesas não recebia qualquer educação, exceto por alguns

rudimentares conhecimentos religiosos (POWER, 1997, p. 78; SHAHAR, 1983, p. 248) – , o que

sugere uma condição simbólica ou alegórica. Além disso, a obra suscita um questionamento

ético, também desenvolvido em outras pastorelas, que guarda relação com um novo campo de

problematização moral que emerge no século XII – portanto, seu contemporâneo –, expresso

principalmente na chamada “ética da intenção” de Abelardo: o que está em jogo não são os atos,

mas as intenções daqueles que se embatem.

Essas características representam as maiores inovações que Marcabru e os trovadores

occitânicos trazem para um gênero que certamente lhes era anterior. Ocorre que, embora a mais

antiga pastorela conservada seja a de Marcabru, portanto occitânica – tendo sido composta pelo

4
Mais especificamente, no segundo capítulo desta tese.
22

menos cinqüenta anos antes da primeira pastorela documentada em francês antigo (ZINK, 1972,

p. 42-43) – , há uma assombrosa diferença entre a quantidade de pastorelas compostas pelos

trovadores occitânicos e pelos trovadores franceses: para que se o constate, é suficiente realizar

um breve cotejo entre as coletâneas organizadas por Jean Audiau (1973), que reúne pouco mais

de duas dezenas de pastorelas em langue d’oc, e por Karl Bartsch (1967), que reúne mais de uma

centena e meia de pastorelas em langue d’oïl. Precisamos, a essa altura, adotar uma orientação

metodológica que nos permita dar conta dessa situação; é preciso rechaçar a crença, derivada de

um apego excessivo aos registros documentais, de que a pastorela haja surgido, subitamente, na

Occitânia, e que em apenas meio século tenha se propagado e florescido entre os trovadores

setentrionais – inclusive porque as obras compostas pelos últimos apresentam características

discursivas bastante diferentes das composições em langue d’oc 5 .

Se desejamos proceder com alguma cautela, devemos considerar que o fato de só

dispormos de pastorelas documentadas a partir do século XII não nos permite afirmar,

categoricamente, que não havia pastorelas anteriores a esse período, que desconhecemos tão-

somente porque não dispomos de documentos que as tenham registrado. Seria possível, afinal,

crer que Marcabru tenha criado sua pastorela ab nihilo, e que todas as pastorelas francesas

tenham se derivado de uma tradição occitânica que teria ali sua fonte originária?

1. 1. O lugar da tradição

5
Trataremos dessas diferenças no terceiro capítulo deste trabalho.
23

Levantar essas questões implica tangenciar uma querela que os estudos literários,

mormente os medievalísticos, conheceram em tempos recentes: trata-se da crítica dirigida por

Peter Dronke (1981) à opção metodológica adotada por Ernst Robert Curtius em sua obra sobre

as relações entre a literatura européia e a Idade Média latina (1957) 6 . Curtius defendia a

existência de uma continuidade na tradição literária européia perceptível através da permanência,

ao longo da história, de um conjunto de topoi literários. Seu ponto de partida fora o

reconhecimento da utilização, por Gregório 7 , do topos do puer senex, aplicado em relação a são

Bento; procedendo a uma investigação sobre ocorrências anteriores, chegou a Sílio Itálico 8 e

Plínio o Novo 9 . Em busca de outros topoi de longa duração, Curtius dedicou-se ao levantamento

de uma “tópica histórica”, o que o levou a perceber a existência de uma “tradição latina ignorada

pela ‘filologia moderna’” (1957, 398-399).

Há que se notar a relação entre esse procedimento e a concepção da tarefa filológica por

ele defendida. Segundo Curtius, para empreender devidamente a pesquisa filológica, faz-se

primeiro necessário recorrer à observação, a fim de desvelar a função de elementos

aparentemente desimportantes, em busca de um fenômeno literário significativo que sirva como

ponto de apoio; depois, é preciso “penetrar na estrutura concreta da matéria literária” em busca de

outras ocorrências daquele fenômeno, de maneira a obter “um sistema de pontos, que se podem

ligar por meio de linhas, das quais resultam figuras. Observando-as e concatenando-as, chegamos

a uma urdidura firme e extensiva”. Através dessa análise que conduz à síntese” constitui-se o que

6
Apresentamos de forma crítica a refutação de Dronke a Curtius em Samyn (2007b); a síntese aqui
apresentada foi elaborada a partir desse texto, do qual foram utilizados também alguns trechos, com pequenas
modificações.
7
Gregório I (c.540 – 604), papa de 3 de Setembro de 590 até a data da sua morte.
8
Sílio Itálico (Tiberius Catius Silius Italicus) (c.25 – 101), poeta latino.
9
Plínio o Novo (Caius Plinius Caecilius Secundus) (c.61 – c.113), escritor e orador latino.
24

Curtius denomina método filológico, por ele considerado o único que “penetra no âmago desta

matéria” (CURTIUS, 1957, p. 400).

O que é necessário perceber é que, na metodologia advogada pelo filólogo alemão, as

evidências textuais ocupam um lugar central, uma vez que apenas a partir delas os topoi podem

ser colhidos. Ademais, a percepção mesma da existência de uma continuidade na tradição

literária européia, possibilitada pelo levantamento daqueles topoi, não pode prescindir das

referidas evidências. Isso quer dizer, em outras palavras, que os registros textuais são uma

condição de possibilidade para a investigação filológica na concepção de Curtius – o que, se por

um lado, concede-lhe uma sólida base sobre a qual pode erigir sua “urdidura firme e extensiva”,

por outro lado leva-o a uma supervalorização das evidências; é o que lhe permite, por exemplo,

estabelecer uma continuidade direta entre a gênese da poesia francesa e a poesia latina – que, em

sua percepção, haveria efetivamente desencadeado aquela. Senão vejamos: para Curtius, há uma

“íntima relação” entre a poesia latina e a poesia francesa, o que o leva a afirmar que a “cultura e

poesia latinas precedem, a francesa vem a seguir. O latim desatou a língua do francês”; e,

explicitando a relação de causalidade entre as duas instâncias de produção literária: “Porque a

França era portadora do studium, porque as artes, com a gramática e a retórica à frente, ali tinham

seu quartel general, ali, em primeiro lugar, floresce a poesia em língua vulgar” (1957, p. 401).

Sobre esse ponto, embora não só sobre ele, incide a crítica de Dronke. Objeta o teórico

que, em inúmeros casos, o alto nível de elaboração formal dos poemas vernáculos presentes nos

manuscritos mais antigos afasta qualquer possibilidade de que possam ser considerados,

efetivamente, pioneiros; ademais, argumenta Dronke que o cotejo entre obras sincrônicas

vernáculas e latinas, portadores de alguma similaridade significativa, não raro revela uma
25

sofisticação muito maior nas primeiras do que nas segundas. Um dos exemplos que cita é o

Sponsus, drama lírico que, em exemplares vernáculos, possui o que qualifica como “intensidade

poética”, em comparação com a qual as versões latinas parecem “sem vida”, uma “gravidade” em

cotejo com a qual o texto latino parece “desastrado”, o que o leva a concluir que “qualquer

hipótese que se adote sobre a relação entre as qualidades latinas e provençais (sic) desse drama, é

o latino que revela um poeta relativamente principiante”; e, com mais contundência: “é a Igreja

que está ‘perecendo’ sobre as oferendas poéticas e dramáticas já evidentes e estabelecidas em

uma tradição vernacular, que até então não havia sido posta por escrito”10 (DRONKE, 1981, p. 29-

30).

O mais relevante na crítica de Dronke está no fim dessa última citação: trata-se da

aquiescência a uma tradição vernacular não-documentada (e, portanto, incognoscível) que, não

obstante, é percebida como estando necessariamente na origem de uma produção literária

específica. Essa admissão seria dificilmente compatível com a metodologia advogada por

Curtius, uma vez que implicaria admitir que os topoi podem derivar não da tradição literária, mas

de fontes obscuras e não necessariamente relacionadas a esse âmbito produtivo; na verdade,

Dronke fará precisamente essa observação quando proceder à desconstrução de análises de

Curtius sobre o locus amoenus no Anticlaudianus de Alain de Lille 11 , por exemplo. A concepção

que o poeta medieval tem do locus Naturae, consoante Dronke, não se reduz à sucinta descrição

de Curtius: “um alto castelo, rodeado de um bosque, que oferece o máximo de beleza natural [...]

É o ‘lugar dos lugares’ (locus ille locorum), portanto, o que há de melhor em locus amoenus”

10
“Cualquier hipótesis que se adopte sobre la relación entre las cualidades latinas y provenzales de este
drama, es el latino el que revela un poeta relativamente principiante, es la Iglesia que está ‘pereciendo’ sobre las
ofrendas poéticas y dramáticas ya evidentes y establecidas en una tradición vernacular, que hasta entonces no había
sido puesta por escrito”.
11
Alain de Lille (Alanus ab Insulis) (c.1128 – 1202), teólogo e poeta francês.
26

(CURTIUS, 1957, p. 204). O que Alain pretende não se reduz nem à concepção tradicional do

locus amoenus, nem à concepção cristã do paraíso terrestre: trata-se efetivamente de uma

construção de cunho cosmológico, que representa a fonte de toda a Criação, onde aquilo que

conhecemos como plural existe enquanto unidade originária. Desta maneira, observa Dronke que

o “lugar da Natureza” concebido no Anticlaudianus não é propriamente um locus locorum,

enquanto melhor locus amoenus, mas vai muito além disso: é na verdade forma formarum,

“forma das formas”, matriz e fonte de toda a Criação (DRONKE, 1981, p. 42).

Por outro lado, a adoção dessa perspectiva teórica implica a aceitação de um novo

conjunto de limitações metodológicas cuja relevância está longe de ser desprezível: torna-se

necessário, afinal, admitir a existência de uma tradição não-documentada cuja influência no

corpus analisado é, contudo, determinante. Isso quer dizer, em outras palavras, que o que está em

questão é uma troca: troca-se a frágil certeza ancorada no apego às evidências textuais pela

incerteza da postulação de uma incognoscível tradição cuja influência está, todavia, presente nos

textos investigados.

No caso das pastorelas, é forçoso admitir a existência dessa “tradição obscura” por um

conjunto de motivos: assim estabelecemos as bases que nos permitem compreender, com alguma

plausibilidade, não apenas a existência das numerosas pastorelas francesas, cuja origem apenas

com temeridade poderia ser encontrada na pastorela de Marcabru, mas também o fato de haver

diferenças notáveis entre as composições em langue d’oc e as em langue d’oïl; para além disso,

há pelo menos uma indicação documentada que nos permite considerar que havia pastorelas

anteriores à de Marcabru – e, portanto, a todo o conjunto de pastorelas occitânicas.


27

O referido indício está na brevíssima Vida do trovador occitânico Cercamon, onde lemos:

Cercamon foi um jogral da Gasconha, e compôs versos e pastorelas à maneira antiga. E


percorreu todo o mundo até onde ele pôde ir, e por isso fez-se chamar Cercamon.
(“Cercamons si fo un joglars de Gascoingna, e trobet vers e pastoretas a la usanza
antiga. E cerquet tot lo mon lai on el poc anar, e per so fez se dire Cercamons.”) (DE
RIQUER, 2001, p. 222; trad. nossa)

A passagem que mais nos interessa é, evidentemente, a que menciona as “pastorelas à

maneira antiga”. A que se refere essa expressão? Qualquer resposta será necessariamente

especulativa, já que, entre as poucas obras conservadas de Cercamon, não há nenhuma

composição desse gênero; não obstante, alguns estudiosos já tentaram responder a essa questão, o

que suscitou diversas hipóteses relacionadas ao esquivo problema das origens das pastorelas.
28

1. 2. Origens latinas?

Postula Edmond Faral (1923, p. 242) que aquela passagem da biografia de Cercamon faria

alusão a certas pastorelas em latim derivadas das Bucólicas de Vergílio; isso quer dizer que “à

maneira antiga” deveria ser lido como “à maneira dos antigos”, ou seja, dos autores clássicos.

Essa conclusão está, por sua vez, relacionada à teoria de Faral em torno das origens da pastorela –

que, em sua visão, constituiriam um gênero literário escolástico relacionado às composições

bucólicas pseudo-vergilianas criadas na Idade Média. A admissão dessa teoria descartaria a

necessidade de admitirmos a existência de uma “tradição obscura” de pastorelas, há pouco

mencionada: nesse caso, bastaria considerarmos que todas as pastorelas, inclusive as francesas,

derivam de uma matriz latina. Vale a pena, por conseguinte, aprofundarmos a discussão em torno

dessa hipótese, hoje em dia descartada, mas que foi outrora considerada por eminentes estudiosos

do gênero.

Consoante Faral (1923), são diversas as evidências que denotam essa dupla origem das

pastorelas, aristocrática – já que isenta de influências folclóricas – e escolástica – já que

elaborada no seio de uma cultura erudita, familiar aos autores clássicos. Há, tanto nas

composições bucólicas da tradição vergiliana quanto nas pastorelas, a nomeação de determinados

personagens: nas primeiras, Títiro, Melibeu; nas últimas, Robin e Perrin, dentre outros. Nos dois

corpora, os personagens fazem-se acompanhar por animais correspondentes às suas posses, como

cães ou ovelhas; também são descritos com seus cajados e, muitas vezes, instrumentos musicais;

sua comida e suas vestes são ocasionalmente mencionadas. Percebe-se, ademais, similaridades
29

na ambiência das pastorelas e das composições bucólicas, além da presença, em ambas, de uma

retórica que visa ressaltar a simplicidade da situação representada.

Até aí, a argumentação não é afinal tão convincente: como observou William Jones (1930,

p. 210), há na verdade não mais do que a percepção de que, em ambos os casos, os poemas tratam

da vida pastoral. O maior problema é que aquilo que Faral tem a apresentar de mais convincente

em defesa de sua hipótese – uma bucólica da tradição pseudo-vergiliana composta por Johannes

de Garlandia 12 que corresponderia às pastorelas – revela-se uma prova de eficácia demasiado

discutível. Para além das incoerências relacionadas à datação, já que a referida bucólica data do

segundo quarto do século XIII – sendo, portanto, bastante posterior às pastorelas francesas e

occitânicas –, há enormes diferenças entre a obra de Johannes e as pastorelas, tanto no tocante à

forma quanto em relação ao conteúdo, o que não permite que se faça mais do que uma vaga

aproximação entre ambas.

Maurice Delbouille foi um dos primeiros a rechaçar as idéias de Faral, apresentando ele

mesmo sua teoria sobre as pastorelas: também para ele as fontes seriam latinas, mas não as da

Antiguidade clássica. O que Delbouille (1926) faz é traçar uma relação entre as pastorelas e

algumas composições latinas do século XII – mais especificamente, obras da escola poética de

Ripoll que, na época da publicação de seu ensaio, haviam sido há pouco resgatadas por Lluis

Nicolau D’Olwer. Argumenta o teórico que esses textos aproximam-se mais do erotismo

goliárdico do que do lirismo amoroso dos autores clássicos; e não só eles, mas também

composições latinas presentes em outros manuscritos médio-latinos – os Carmina

12
Johannes de Garlandia (c.1190 – c.1270), poeta médio-latino de origem britânica.
30

Cantabrigiensia e os Carmina Burana – podem ser aproximados das composições francesas, a

partir de vários elementos: a ambiência pastoral, o diálogo amoroso, o motivo erótico.

Todavia, também no texto de Delbouille não encontramos nenhuma prova cabal da

relação entre as pastorelas e as composições em latim, de modo que não podemos, efetivamente,

especificar influências de uma em relação às outras. O próprio Delbouille reconhece-o, em certa

medida, quando realiza um cotejo entre uma composição médio-latina que transcreve

integralmente – De somnio, um dos textos da escola de Ripoll – e as pastorelas. O que as obras

têm de comum é o lugar de sedutor ocupado pelo poeta, que solicita à mulher seus favores

sexuais; por se apresentar como um homem de alta condição social, é ele capaz de propiciar

várias vantagens àquela que se tornar sua amante. Isso, no entanto, é muito pouco, algo que o

próprio Delbouille não deixa de reconhecer ao afirmar que “grandes diferenças separam a obra

latina das canções em língua vulgar. [...] A canção não é uma pastorela. Ela tem, contudo,

grandes afinidades com o gênero.” 13 (1926, p. 29-39; trad. nossa, grifo nosso). Não podemos,

efetivamente, chegar a conclusões mais profundas a partir dessas aproximações.

A teoria das origens latinas da pastorela, hoje em dia, representa uma hipótese de difícil

sustentação. As razões para isso foram apresentadas de modo claro por Frederic Raby que, em

diferentes artigos (1932, 1933), e de forma definitiva em sua história da poesia secular médio-

latina (1934), apresentou fortes argumentos contra aqueles que sustentavam essa teoria.

Dirigindo-se, sobretudo, a Hennig Brinkmann, investigador da poesia medieval em alemão que,

13
“Je ne nierai pas que de grandes différences séparent la pièce latine des chansons en langue vulgaire.
Communément, dans celles-ci, le poète tient le rôle de séducteur; c’est lui qui va au devant de la bergère ou de la
dame mal mariée et lui demande ses faveurs; c’est lui qui se présente comme l’homme de bonne condition et, dans la
pastourelle au moins, fait miroiter aux yeux de la belle les avantages qu’elle retirera du jeu qu’il lui propose.
D’autre part, la virgo pulcerrima de l’Anonyme n’a rien de la naïve pastoure qui se laisse séduire par le chevalier
poète et, loin d’être une humble fille des champs, ell ese présente en noble demoiselle issue de sang royal. Le songe
n’est pas une pastourelle. Il a cependant de grandes affinités avec le genre.”
31

em suas obras (1925, 1926), situava a cultura clerical e latina na origem da poesia occitânica e

germânica, argumenta Raby que há fortes razões formais que nos impedem de acreditar que a

lírica secular médio-latina seja anterior à vernácula: as formas de versificação utilizadas no

discurso poético vernáculo raramente são aquelas presentes na versificação litúrgica em língua

latina; ademais, sendo os recursos técnicos dessa última utilizados na poesia sacra e profana,

houve uma adaptação da versificação latina a estruturas absorvidas das canções vernáculas (1934,

v. 2, p. 337).

Todavia, observa Raby, a influência da cultura vernácula sobre a médio-latina torna-se

mais clara em relação aos temas e à ambiência presente nas composições. Durante toda a Idade

Média, pode-se perceber um amplo uso de temas derivados da cultura vernácula sobre a lírica

médio-latina, tanto temas populares quanto “literários”, e apenas a compreensão dessa influência

torna inteligíveis os motivos explorados pelos poetas médio-latinos. Consoante o historiador, é

provável que as pastorelas de Gualterus de Castellione 14 , bem como aquelas dos Carmina

Burana, sejam derivadas de modelos literários anteriores; de modo mais explícito, afirma o

historiador: “Devemos, portanto, deixar de lado a idéia de que a poesia latina tenha a prioridade e

a preeminência. Ela era propriedade de homens eruditos [...] Sua virtude jaz no fato de que ela

buscou amparo fora das escolas e da retórica escolástica” 15 (1934, v. 2, p. 337-338). Portanto, de

acordo com Raby, devemos pensar nos autores médio-latinos como poetas que souberam buscar,

14
Gualterus de Castellione, teólogo e poeta francês do século XII, autor de diversos poemas em latim, entre
os quais o épico em hexâmetros Alexandreis, sive Gesta Alexandri Magni, e alguns dos Carmina Burana. Uma de
suas composições consta do corpus de pastorelas alegóricas médio-latinas que analisaremos no sétimo capítulo deste
trabalho; cf. 7.3.1. Sole regente lora, de Gualterus de Castellione: uma obra pioneira?
15
“We must, therefore, lay aside the idea that the Latin lyric has the priority over and the preeminence. It was
the property of leaned men (…) Its virtue lies in the fact that it drew its sustenance from something outside the school
and school-rhetoric (…).”
32

nas composições vernáculas, temas e estruturas que poderiam ser – e efetivamente foram –

utilizados para uma renovação da cultura latina e escolástica 16 .

16
Voltaremos a tratar da relação entre a cultura escolástica/latina e a cultura vernácula quando tratarmos das
pastorelas médio-latinas, no sétimo capítulo deste trabalho.
33

1.3. Origens vernáculas?

Descartada a hipótese de uma origem na tradição latina, pode-se indagar sobre

antecedentes no âmbito da própria literatura vernácula. A questão que se coloca, então, diz

respeito ao local de origem das pastorelas: seria o Norte da França ou a região occitânica? Há

quem defenda cada uma dessas possibilidades.

Um dos mais importantes defensores da teoria de uma origem occitânica para as

pastorelas, Alfred Jeanroy (1965, cap. 1) postula que esse processo deu-se pela convergência de

um conjunto de motivos poéticos. Primeiro, há o tema do debate amoroso, em que uma jovem

mulher, depois de muita relutância, acaba cedendo às demandas de seu galanteador – motivo cujo

registro mais antigo é o Contrasto de Cielo d’Alcamo, desenvolvido em estrofes alternadas que

representam as vozes masculina e feminina 17 ; próximo desse situa-se o motivo do reencontro e

união dos amantes – que Jeanroy designa por oaristys, em referência à obra de Teócrito (Idílio

XXVII). Desses dois temas poéticos originaram-se gêneros mistos; um exemplo são as canções

de metamorfoses, nas quais a mulher assume uma pluralidade de formas a fim de fugir de seu

galanteador, ao qual, não obstante, acaba por se entregar.

Um terceiro elemento que se viria somar aos já mencionados, de acordo com Jeanroy, é

uma tendência para a gabolice – o hábito de se gabar, depois de beber, de façanhas “mais ou

menos imaginárias” (1965, p. 17); costume a partir do qual se haveria originado um gênero

literário anterior aos registros escritos que, não obstante, neles deixou indícios – em obras de

trovadores occitânicos como Guilhem de Peitieu, Marcabru, Giraut de Bornelh e Peire Vidal, por
17
Vale ressaltar que a referência ao Contrasto não implica afirmar que essa obra especificamente tenha
influenciado as pastorelas, mesmo porque Cielo d’Alcamo nasceu no século XIII; contudo, como ressalta Jeanroy, o
Contrasto não é uma obra isolada, e sim o mais belo e conhecido exemplar de um gênero poético.
34

exemplo. Todavia, embora todos esses elementos se façam presentes nas pastorelas, é preciso

considerar a objeção de Zink (1972, p. 45-46), para quem Jeanroy deixa de analisar um ponto

fundamental ao não apresentar uma hipótese sólida para a associação da figura da pastora a essas

diversas tendências poéticas.

De todo modo, a teoria de Jeanroy também busca tratar, de forma mais específica, da

anteriormente discutida passagem da biografia de Cercamon. Sua percepção é de que já deviam

existir pastorelas na região da Occitânia, provavelmente a partir do primeiro terço do século XII –

Jeanroy descarta datas mais antigas, oferecendo como justificativa apenas que a referência “à

maneira antiga” se tratava de uma idiossincrasia do autor da biografia 18 . Marcabru teria composto

duas pastorelas cujo texto supunha a existência de textos anteriores desse gênero: uma paródia,

L’autrier jost’una sebissa (De Riquer, IV, 14; Audiau, I); e uma sátira moral e social – L’autrier

a l’issida d’abriu (Paden, 9).

Para Jeanroy, como já dissemos, o berço das pastorelas situa-se na região occitânica. Suas

refutações têm como alvo principal as teorias de dois historiadores literários do século XIX:

Julius Brakelmann e Oskar Schultz-Gora. Esses dois autores defenderam hipóteses que

apontavam para uma mesma direção: para eles, as pastorelas haviam seguido uma direção oposta

à postulada por Jeanroy, surgindo no Norte da França e chegando posteriormente à Occitânia.

Quanto a Schultz-Gora (1884), observa Jeanroy que o historiador ancora sua hipótese em

eventos de importância secundária – por exemplo, a postulação de que alguns trovadores

franceses teriam divulgado o gênero poético, inventado no Norte, em meio às cruzadas contra os

18
“Alguém poderia sentir-se tentado a crer [...] que ela [a pastorela] existia já há muito tempo. Mas
provavelmente a pastorela não era um gênero antigo, exceto no ponto de vista do autor da biografia.” (“On serait
même de croire tenté de croire, d’aprés ces mots, qu’elle existait alors depuis longtemps déjà. Mais probablement la
pastourelle n’était un genre ancien qu’au point de vue de l’auteur de cette biographie.” ) (JEANROY, 1965, p. 23, n.
3)
35

albigenses – ou questionável – por exemplo, a idéia de que o encontro entre um poeta e um pastor

só surgiria, em langue d’oc, em obras de Cadenet (L’autrier, lonc un bosc fullos: Audiau, V) e

Gui d’Ussel (L’autre jorn, cost’ una via: Audiau, VI). No tocante ao último ponto, Jeanroy

contra-argumenta mencionando a já citada L’autrier a l’issida d’abriu (Paden, 9); ainda assim,

cabe considerar o registro de L’autrier jost’una sebissa (De Riquer, IV, 14; Audiau, I).

Já a hipótese de Brakelmann (1868) apresenta, de acordo com Jeanroy (1965, p. 26), dois

problemas fundamentais: de um lado, simplesmente ignora as pastorelas de Marcabru, que opta

por denominar romances; e, de outro lado, desqualifica o biógrafo de Cercamon, sem no entanto

apresentar qualquer justificativa válida para isso. Desse modo, Brakelmann elimina a

possibilidade de qualquer existência de pastorelas na região occitânica anterior aos exemplares

franceses, o que lhe permite concluir que o gênero fora inventado pelos trovadores setentrionais e

imitado, posteriormente, pelos trovadores occitânicos.

Jeanroy (1965, p. 24-25) defende, como já mencionamos, a hipótese de que a pastorela

surge na Occitânia, só posteriormente chegando ao Norte da França; para tanto, baseia-se na

anterioridade dos registros occitânicos em comparação com os franceses, e na percepção de que

as pastorelas francesas apresentam inevitavelmente indícios de imitação do modelo meridional 19 ;

em outras palavras: de acordo com sua postulação, os trovadores setentrionais não fizeram mais

do que imitar as pastorelas criadas pelos trovadores occitânicos.

Hipótese que poderíamos qualificar como complementar em relação à de Jeanroy é a

advogada por William Jones (1931), na medida em que este defende um processo de

desenvolvimento oposto ao percebido por aquele – não obstante, baseado em hipóteses diferentes

19
Trataremos detalhadamente das diferenças entre as formas poéticas occitânicas e francesas no terceiro
capítulo deste trabalho.
36

das que Jeanroy refuta. Consoante Jones, embora o termo pastorela tenha sido influenciado pelo

uso occitânico, o gênero propriamente dito nasceu no Norte da França, nos séculos XII e XIII,

sendo uma derivação de chansons populaires procedentes de uma tradição oral francesa –

portanto, não documentada (1931, p. 33). Essas composições teriam inspirado, de forma mais

imediata, os trovadores franceses, que as acolheram de forma mais entusiástica preservando seu

caráter “objetivo”, distante do que Jones denomina “filosofia subjetiva ou introspecção lírica”

(1931, p. 3).

Quando, posteriormente, os trovadores occitânicos acolheram o gênero poético, não

souberam fazê-lo sem adotar uma perspectiva radicalmente diversa. No âmbito occitânico, a

pastorela sofreu, consoante Jones, um processo de elaboração poética que acabou por transformá-

la em um gênero de grande sofisticação artística (1931, p. 25-27); compositores como Marcabru e

Guiraut Riquier submeteram o modelo “clássico” francês ao seu próprio crivo estético, o que

ocasionou a perda da “objetividade” original do gênero em favor de uma subjetivação das

pastorelas. O resultado desse processo, de acordo com Jones, é uma decadência desse gênero

poético, que acaba perdendo seu frescor original e tornando-se intelectualizado e inautêntico.

Uma posição não de todo distante é defendida por Jackson (1985, p. 67), para quem as pastorelas

francesas são “mais diretas e apresentam a pastorela em um estágio anterior de seu

desenvolvimento” 20 ; as obras occitânicas seriam criações mais afeitas à poesia pastoral clássica –

o que, decerto, seria índice de maior erudição de seus autores. De acordo com Jackson, foi a

partir do “brutal” modelo francês que os modelos occitânicos, mais refinados, se desenvolveram

(1985, p. 68).

20
“The writers of langue d’oïl are coarser and more direct and show the pastourelle at an earlier stage of its
development.”
37

Há, por fim, uma terceira linha especulativa, de acordo com a qual as pastorelas não

teriam nascido nem no Norte, nem na Occitânia, mas em uma região intermediária,

desenvolvendo-se posteriormente nessas duas regiões de maneira mais ou menos independente.

Essa posição foi defendida por Gaston Paris 21 (1912) em um texto que é, efetivamente, um

comentário crítico à obra de Jeanroy. A partir das diferenças marcantes entre os dois modelos

poéticos, Paris recusa-se a estabelecer a anterioridade de qualquer um dos corpora, occitânico e

francês, em relação ao outro; ademais, há dois elementos que, consoante o estudioso, foram

negligenciados por Jeanroy: primeiro, a caracterização da jovem mulher como pastora; segundo,

o cenário primaveril em que se desenvolvem os poemas.

Esses elementos, observa Paris, são comuns nas populares festas de maio, e o que

provavelmente ocorreu foi sua transformação, no âmbito literário, pelos poetas aristocráticos –

processo que teria dado origem às pastorelas (1912, p. 569-571). No tocante ao desenvolvimento

independente dos dois modelos poéticos, sustenta Paris que isso se explica porque o gênero não

teria nascido nem nas terras setentrionais, nem na Occitânia, mas em uma região intermediária –

nas regiões de Poitou, Marche, Limousin – , a partir da qual ter-se-ia propagado para aquelas

duas direções. Há aqui, não obstante, um problema que atinge, em última instância, também a

hipótese de William Jones: seu resultado final é sugerir um possível modelo originário, por trás

das pastorelas occitânicas e francesas, cujo conhecimento é efetivamente impossível.

1. 4. Uma questão perene

21
A linha investigativa de Paris seria retomada por Pillet (1902), que também admitia a possibilidade de um
desenvolvimento independente das pastorelas occitânicas e provençais, postulando que a pastorela seria, a princípio,
não mais que uma forma poética popular de diálogo amoroso.
38

Nenhuma dessas respostas pode ser considerada definitiva. Os três questionamentos que

convergem para a indagação sobre as origens das pastorelas – a anterioridade da pastorela de

Marcabru; a enorme quantidade de pastorelas em langue d’oïl; a menção a “pastorelas à maneira

antiga” na Vida de Cercamon – dificilmente podem ser articulados de forma consistente: qualquer

pretensão de resposta tende a favorecer um deles, e qualquer um dos outros inevitavelmente

avulta como forte refutação. Por isso é tão pertinente a conclusão de Michel Zink (1972, p. 51),

para quem a discussão não está encerrada, e talvez jamais venha a sê-lo: de um lado, observa o

teórico, a hipótese que postula origens populares, seja qual for a forma em que se apresente, tem

o inconveniente de estar condenada a permanecer uma hipótese, uma vez que está baseada na

concepção de uma literatura oral e de costumes folclóricos que, por definição, desapareceram; de

outro lado, a hipótese que postula origens latinas, antigas ou clericais, é muito menos plausível,

visto que “basta ler as Bucólicas de Vergílio e as pastorelas para que se dê conta de quanto é

improvável que as primeiras possam ter uma influência, mesmo indireta, sobre as segundas”;

ademais, “nenhum dos poemas médio-latinos sobre o encontro amoroso, que são anteriores às

pastorelas em língua vulgar, põe em cena a pastora” 22 .

Falamos anteriormente sobre a inevitável necessidade de se falar em uma “tradição

obscura”, no tocante às pastorelas; talvez agora as razões para essa inevitabilidade tenham se

tornado mais evidentes. A observação de Zink sobre as maiores dificuldades suscitadas pelas

teorias sobre a origem latina deve ser levada a sério, o que nos leva a considerar a hipótese de que

a pastorela tenha nascido a partir de origens populares como mais provável (ou menos

22
“Il suffit de lire les Bucoliques de Virgile et les pastourelles pour se rendre compte combien il est
improbable que les premières aient pu avoir une influence même indirecte sur les secondes. D’autre part, aucun des
poèmes medio-latins de recontre amoureuse, qui sont antérieurs aux pastourelles en langue vulgaire, ne met en
scène de bergére.” (ZINK, 1972, p. 51)
39

improvável). É fato que as pastorelas que encontramos nos primeiros registros occitânicos e

franceses são obras elaboradas, apresentando modelos característicos que certamente derivam de

algum gênero poético anterior. Procurar especificar essas influências, todavia, não nos levará

além da mera especulação.

Há, no entanto, uma outra possibilidade de interpretação para a menção na Vida de

Cercamon que nos pode indicar, ao menos operacionalmente, um caminho de investigação.

Sabemos que Marcabru e Cercamon foram contemporâneos – e, mais ainda, que esses trovadores

não apenas se conheceram, como também conviveram: diz-nos uma das Vidas de Marcabru que

esse conheceu Cercamon, e que neste período começou a trovar 23 . Se associamos a afirmação na

biografia de Cercamon com o fato de a primeira pastorela documentada ser a de Marcabru,

podemos considerar que ambos foram autores de pastorelas. Por outro lado, há que se considerar

que Marcabru foi um dos mais influentes trovadores occitânicos, possuindo ascendência tanto

sobre seus contemporâneos quanto sobre as gerações seguintes. Como é bastante provável que o

autor da Vida de Cercamon tenha conhecido também a obra de Marcabru, podemos especular: ao

afirmar que Cercamon compôs “à maneira antiga”, não teria ele em mente a pastorela de

Marcabru, reconhecida como uma inovação no gênero?

Não decorre disso, é claro, qualquer pretensão de identificar as pastorelas francesas com o

modelo folclórico, tampouco de estabelecer sua ascendência em relação às occitânicas, ou vice-

versa; todas essas afirmações parecem-nos demasiado temerárias. Temos, no entanto, motivos

razoáveis para sustentar pelo menos três hipóteses: primeiro, que é possível falar em dois

23
“[...] Apres estet tant ab un trobador que avia nom Cercamon, qu’el comensset a trobar. [...]” (“Depois
esteve tanto com um trovador que tinha por nome Cercamon, que começou a trovar.” (DE RIQUER, 2001, p. 179; trad.
nossa). Não cabe deduzir a partir daí que Cercamon tenha ascendência sobre Marcabru; é provável, inclusive, que
essa influência tenha ocorrido na direção oposta . Para uma discussão sobre o assunto, cf. KASTNER (1931).
40

modelos diferentes de pastorelas – o francês e o occitânico – , que se desenvolveram de forma

mais ou menos independente, algo que podemos inferir pela diferença qualitativa e quantitativa

de exemplares nas duas línguas produzidos em um intervalo reduzido de tempo; segundo, que é

provável que a pastorela de Marcabru seja efetivamente a obra inaugural de um novo modelo

poético, haja em vista o fato de ser a primeira a apresentar um conjunto de características

discursivas que serão amplamente reaproveitadas por outros trovadores occitânicos; terceiro, que

é possível traçar uma história específica desse modelo occitânico, acompanhando inclusive sua

presença em outras tradições poéticas 24 .

Marcabru pode ser considerado, portanto, um divisor de águas, na medida em que criou

um modelo poético de grande importância não apenas para a literatura occitânica, mas também

para outras tradições literárias. Se afirmamos que o biógrafo de Cercamon pode ter tido a

intenção de ressaltá-lo ao estabelecer, implicitamente, uma diferença entre o novo modelo criado

por Marcabru e um outro tipo de pastorelas compostas “à maneira antiga”, não o fizemos de

forma categórica, mesmo porque nossa hipótese não se sustenta nessa interpretação; acreditamos,

todavia, ser essa uma instigante possibilidade de resposta para aquela enigmática passagem da

Vida. Passemos, afinal, a tratar do que de fato nos interessa: a pastorela “à maneira nova”

inventada por Marcabru.

24
Como faremos em capítulos posteriores deste trabalho, analisando pastorelas compostas consoante o
modelo occitânico nas tradições poéticas médio-latina e galego-portuguesa.
41

2. A INVENÇÃO LITERÁRIA

Tomemos como ponto de partida o que de fato nos interessa, ou seja: a obra de Marcabru

L’autrier, jost’ una sebissa (Audiau, I; Paden, 8; De Riquer, IV, 14). A composição é ambientada

em um cenário campestre – perto de uma sebe. Já na primeira estrofe, a descrição da pastora pelo

narrador-cavaleiro apresenta alguns elementos que não podem ser desprezados. O primeiro

adjetivo com que ela é qualificada, mestissa, refere-se simultaneamente à sua aparência física25 e

à sua baixa condição social 26 ; não obstante, o poeta destaca, já no terceiro verso, duas

características da personalidade da pastora – a alegria e a sensatez – que serão explicitadas ao

longo do poema, associação que já encerra uma intenção moralizante: há aí, afinal, uma oposição

entre o aspecto humilde da camponesa e sua, por assim dizer, “nobreza interior”, no que já pode

ser percebida uma forte influência cristã.

No texto bíblico, não há um elogio da pobreza em si mesma; em textos

veterotestamentários, a pobreza é percebida mesmo como uma condenação por infidelidade ou

preguiça. Não obstante, com a passagem dos hebreus da vida nômade à fixação em Canaã,

principiaram as desigualdades sociais que foram acentuadas com a monarquia. Intensifica-se,

então, a atuação de profetas que defendem os pobres, o que culmina na identificação da causa

desses com a causa de Deus (MARA, 2002, p. 1173): “Por três transgressões de Israel e por

quatro, não sustarei o castigo, porque os juízes vendem o justo por dinheiro e condenam o

necessitado por causa de um par de sandálias. Suspiram pelo pó da terra sobre a cabeça dos

25
Vale mencionar a hipótese de Meneghetti (1993, p. 196-197), que, postulando influências ibéricas para a
pastorela de Marcabru, sugere que o adjetivo se refira a uma possível origem muçulmana.
26
De Riquer (2001, p. 180) traduz por “humilde”; Audiau (1973, p.3) traduz por “de condição pobre” (“de
pauvre condition”).
42

pobres e pervertem o caminho dos mansos”, lemos no livro de Amós (2, 6-7); em Isaías (11, 3-4):

“Deleitar-se-á no temor do Senhor; não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá

segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com justiça os pobres e decidirá com eqüidade a

favor dos mansos da terra”.

Como observa Maria Grazia Mara (2002, p. 1173), a noção de “pobres de Javé”

constituiu-se no momento posterior ao exílio, associada a elementos que acabaram por fazer parte

da história de Israel – pobreza, poder político, impiedade, terra, justiça – , servindo como modelo

para as primeiras comunidades cristãs. No texto neotestamentário, o “servo de Javé” anuncia o

Cristo sofredor e redentor,o que faz da pobreza não um puro mal, mas um sinal de plenitude

escatológica. Assim é que, em Mateus, o pobre torna-se um sinal da presença de Cristo no meio

dos homens; todo aquele que socorre quem tem fome ou sede, ou está nu, ou é forasteiro, ou está

enfermo ou preso, presta um favor a Deus: “Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a

um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25, 31-46). Em decorrência disso,

desde a Antigüidade os cristãos desenvolveram uma “moral social” relacionada a um conjunto de

valores que enfatizava a misericórdia e o respeito no tocante aos pobres (MONDONI, 2006, p. 83);

já na Idade Média, o surgimento das ordens mendincantes representou uma renovação desse

sistema axiológico.

No texto de Marcabru, a pobreza da pastora está nitidamente relacionada à sua função no

poema: é ela, efetivamente, a defensora do que pode ser caracterizado como uma ética pessoal

matizada com princípios cristãos, em oposição ao comportamento vicioso e sedutor do cavaleiro-

narrador. Nessa medida, as adjetivações que o último aplica à pastora – “mestiça”, “repleta de

alegria e sensatez” – implicam um reconhecimento tácito da vinculação dessas qualidades;


43

efetivamente, no decorrer da composição, veremos como a pastora, assumindo a humildade de

sua condição, fará disso a base a partir da qual defenderá seus princípios morais.

Ao dirigir pela primeira vez a palavra à sua interlocutora, o narrador utiliza o termo

“toza”, opção léxica que, explicitando a tenra idade da jovem, também sugere sua condição

casta 27 ; por outro lado, vale notar a diferença que há, nesse primeiro momento, entre os termos

utilizados quando o cavaleiro descreve a pastora, que fazem sobressair sua condição social –

“pastora mestissa”, “filha de vilana” – , e o termo utilizado quando se dirige a ela – “toza”. Esse

jogo vocabular permanecerá durante toda a composição: se a pastora, como já mencionamos,

assume sua condição humilde como algo honroso, o cavaleiro insistirá em cobri-la de elogios

relacionados à idéia de nobreza, com a ardilosa intenção de lisonjeá-la ocultando sua origem –

artifício que exprime, sem dúvida, uma postura crítica de Marcabru. explicitada sobretudo na

estrofe final, como veremos mais adiante.

Já as primeiras palavras trocadas entre a pastora e o cavaleiro explicitam o teor do debate

que se prolongará até o final da composição. Declarando-se preocupado com o vento que atinge a

pastora, por ele aqui chamada “encantadora criatura”, o narrador se oferece para protegê-la,

nitidamente ocultando segundas intenções. A jovem, por seu lado, esquiva-se da investida,

percebendo de imediato os reais propósitos do cavaleiro: graças a Deus e à sua ama, está

“alegrinha e sadia”.

Em uma segunda investida, o cavaleiro se oferece para ajudar a pastora a apascentar seu

rebanho: não poderia, sendo tão jovem, realizar sozinha essa tarefa. A pastora, todavia, volta a

27
Honnorat (1847, t.2, p. 1301) e De Rochegude (1819, p. 508) traduzem como ‘jovem donzela’ (jeune fille);
De Rochegude apresenta ainda, como equivalente, o vocábulo latino puella. Optamos pela tradução ‘donzela’ pela
sugestão de castidade que há nesse vocábulo, embora sua carga de significação sexual seja talvez maior do que a do
termo occitânico.
44

rechaçá-lo, e sua fala reitera sua função no poema: ao afirmar que conhece bem “o que é senso ou

tolice”, a jovem se reconhece capaz de determinar o verdadeiro sentido ético das ações daquele

que a tenta seduzir. Embora não haja indícios de uma relação direta entre essa passagem e o texto

bíblico, vale ressaltar que aqui ressoa um dos mais importantes topoi veterotestamentários: a

“árvore do conhecimento” constante da narrativa do Gênesis (2,16–3,24). O texto de Marcabru

não utiliza essa expressão, mas refere-se explicitamente à capacidade de discernimento moral em

um contexto que envolve a sexualidade; e o que há de instigante nessa possível articulação é

justamente a relação comumente feita entre o provar da árvore, com o conseqüente conhecimento

do bem e do mal, e a experiência da sexualidade.

Na verdade, como observa Wallace (1992), o motivo sexual no Gênesis, embora presente,

não é predominante; ainda assim, a idéia de que a árvore conduz os homens ao conhecimento da

sexualidade é bastante disseminada popularmente, e não são poucos os especialistas que a

consideram pertinente 28 . A interpretação que aqui poderia ser feita é que, se a pastora sabe

discernir o senso da tolice, ou seja, o bem do mal, é porque, como mortal – portanto, marcada

ontologicamente pelo pecado original – , também ela conhece a sexualidade, apesar de sua

provável virgindade, e sua vinculação com o pecado. No entanto, como ressaltamos, não há um

indício convincente da relação entre esse topos bíblico e essa passagem específica do texto de

Marcabru; tratamos apenas de contextualizá-la no âmbito da tradição cristã, a fim de destacar

ressonâncias possíveis.

Na estrofe seguinte, vemos como o narrador – que inicialmente descrevera em detalhes a

pobreza perceptível na aparência pastora, o que lhe havia permitido qualificá-la como “filha de

28
Embora não caiba desenvolver longamente aqui esse assunto, cabe registrar os teóricos mencionados por
Wallace (1992): J. Coppens, L. Hartman, I. Engnell, e R. Gordis.
45

camponesa” – , tenciona lisonjeá-la ocultando essas evidências: afirma que, por seu porte, deve

ser filha de um cavaleiro e de uma “cortês camponesa” (“corteza vilana”). A referência ao título

cavaleiresco tem uma função não apenas encomiástica, mas visa também estabelecer uma via de

aproximação entre o sedutor, ele próprio um cavaleiro, e a pastora; por outro lado, a menção à

“cortês camponesa” intenta, decerto, conferir alguma confiabilidade à fala do sedutor, uma vez

que não oculta o que demonstram as evidências – mais especificamente, a aparência da pastora –

, mas busca uma forma de valorização mais relacionada ao caráter e ao comportamento do que à

condição social exclusivamente.

No entanto, também essa tentativa é frustrada, uma vez que a pastora não está disposta a

recusar sua origem humilde. Se em sua fala percebe-se, inicialmente, não mais que uma aceitação

dos fatos – cresceu vendo seus pais dedicarem-se ao trabalho duro, sempre voltando e retornando

à foice e ao arado –, logo a camponesa trata de valorizar essa faina, estabelecendo uma oposição

entre a lida e o comportamento do cavaleiro que, conforme insinua, é por demais ocioso: também

ele deveria trabalhar durante os seis dias da semana. Note-se, não obstante, que apenas as

condições específicas do momento em que Marcabru compõe sua obra permitem que a pastora

faça essa censura: entre os séculos XI e XIII, há uma valorização coletiva do trabalho no âmbito

da sociedade cristã, motivada pela reforma monástica, o que gera a idéia de que todos trabalham,

inclusive clérigos e cavaleiros – idéia que se contrapõe à clivagem entre os trabalhadores manuais

e os nobres ou intelectuais (LE GOFF, 2006, p. 568-570), que noutro âmbito poderia servir como

justificativa para o ócio do cavaleiro.

Diante da refutação, não resta ao cavaleiro outra saída, senão optar pela forma mais óbvia

de elogiar sua amada: apelar para o louvor à beleza. Assim, sauda-lhe a “beleza esmerada”, de tal
46

modo assombrosa que apenas uma fada pode tê-la concedido; beleza que, não obstante, pareceria

ainda maior se o cavaleiro visse a pastora por cima de seu corpo – ou seja, se ele pudesse

contemplá-la durante o ato sexual. A investida, no entanto, só faz acentuar a verve irônica da

pastora, que se diz tão lisonjeada que, como retribuição, deixará o cavaleiro pasmo, como um

tolo, esperando-a sob o sol do meio-dia. Note-se que o ditado “Espera em vão, tolo, espera em

vão!” (“Bada, fol, bada!”), citado por Marcabru na composição, aparece também em uma canção

de Bernart Martí 29 , com sentido idêntico: em ambos os casos, refere-se ao ato de deixar

esperando em vão aquele que, desejoso de amor, é no entanto rechaçado por sua amada.

As duas cartadas finais do cavaleiro estão relacionadas a um mesmo motivo: à idéia de

que, à mulher, cabe submeter-se à vontade masculina. Primeiro, argumenta que seu

comportamento arredio pode ser devidamente aplacado pela vontade masculina, visto que o

homem pode domesticar “pelo uso” o “cruel coração, e selvagem” que habita a jovem donzela;

na verdade, apenas com este breve encontro pôde convencer-se de que pode constituir com a

pastora “uma valiosa parceria”, de maneira que amansá-la é tão-somente uma questão de tempo.

A jovem replica essa investida afirmando, por um lado, que conhece a natureza masculina,

propensa a fazer juras e promessas quando acossada “pela intemperança” de cunho

evidentemente sexual; reitera, por outro lado, que não está disposta a renunciar à sua virtude, e

assumir o “nome de prostituta”, por tão pouco.

O argumento final do cavaleiro recorre a um princípio supostamente ontológico, segundo

o qual devem as criaturas retornar à sua natureza, o que implicitamente sugere que também ela

deve entregar-se a ele, respeitando assim suas inclinações naturais. A refutação da pastora

29
Cf. “Bel m’es lai latz la fontana” (De Riquer, VIII, 30).
47

manifesta uma ironia de notável engenhosidade: contra a idéia de “lei natural” advogada pelo

cavaleiro, a jovem recorre a referências culturais, de modo a sugerir que, na verdade, é o homem

quem determina seu próprio destino a partir de seu caráter ou sua condição social – “o tolo

procura a tolice, / o cortês, a cortês aventura, / e o camponês, a camponesa”. Arrematando seu

argumento, a pastora recorre justamente ao senso moral e à moderação, em clara oposição à idéia

de que deve o homem seguir sem refreios seus impulsos – “falha o bom senso” “onde o homem

não guarda a medida”.

Observemos que esse conflito guarda algo de curioso. De encontro à “moral popular”

advogada pela pastora, o pensamento predominante nas literaturas filosófica e teológica

medievais aproxima-se da argumentação do cavaleiro, defendendo portanto a superioridade do

homem sobre a mulher a partir de uma argumentação efetivamente baseada em supostas “leis

naturais”. Citemos apenas dois exemplos: primeiro evoquemos, do princípio da Idade Média, as

afirmações de Agostinho 30 em seu tratado sobre o matrimônio e a concupiscência (De nuptiis et

concupiscentia, escrito em 418-419), segundo o qual, assim como está mais de acordo com as leis

naturais o governo de um sobre muitos do que o de muitos sobre um, também é mais conforme a

natureza o governo dos homens sobre as mulheres do que o inverso – declaração que

complementa com diversas citações bíblicas, como a de Paulo Apóstolo: “O homem é a cabeça

da mulher” 31 (AGOSTINHO, 1845, I, IX, 10: 419). Em segundo lugar, podemos citar, já do fim da

Idade Média, as declarações de Tomás de Aquino 32 na Summa Theologiae (escrita entre 1265 e

30
Agostinho de Hipona (354 – 430), filósofo e teólogo cristão; um dos Padres da Igreja.
31
“Nam et principatus magis naturaliter unius in multos, quam in unum potest esse multorum. Nec dubitari
potest naturali ordine viros potius feminis, quam viris feminas principari. Quod servans Apostolus ait, Caput
mulieris vir (I Cor. XI, 3) ; et, Mulieres, subditae estote viris vestris (Coloss. III, 18): et apostolus Petrus, Quomodo
Sara, inquit, obsequebatur Abrahae, dominum illum vocans (I Petr. III, 6)”.
32
Tomás de Aquino (c. 1225 – 1274): filósofo e teólogo, um dos mais importantes nomes da escolástica.
48

1274), consoante as quais a submissão da mulher ao homem diz respeito à própria organização da

sociedade humana: só existe uma boa ordem quando os menos sábios são governados pelos mais

sábios; assim, é natural que o homem governe a mulher, já que nele a razão naturalmente

predomina 33 (TOMÁS DE AQUINO, 2001, I, q. 92, a. 1, ad. 2).

Não obstante, na situação figurada na obra de Marcabru, quem representa a razão e resiste

aos impulsos sexuais é a pastora. Mais do que isso, é importante perceber que a sua recusa em

entregar-se ao cavaleiro não envolve qualquer outro amante ou pretendente; não há sequer um

único verso, na composição de Marcabru, que nos permita inferir que a pastora tem qualquer

pretensão de entregar-se a um homem que seja diferente do que aqui tenta seduzi-la. Se

somarmos a isso o valor atribuído por ela à sua virgindade, observaremos que seu comportamento

se adequa a um modelo normativo elaborado no âmbito do cristianismo desde a Antigüidade,

consoante o qual a recusa do matrimônio e a defesa da virgindade estavam associadas à

disposição de servir a Deus.

Na raiz disso está a percepção de que as responsabilidades derivadas do casamento

conduziam, necessariamente, às “coisas do mundo”, ou seja, a um afastamento de Deus; todavia,

sendo essa a única via de escape para a luxúria, melhor seria o celibato no interior da relação

conjugal – ou, na melhor das hipóteses, renunciar de uma só vez às tentações da luxúria e aos

grilhões do casamento. Para as mulheres, abraçar a virgindade significava, afinal, livrar-se do

domínio do marido e das exigências dos filhos, ou seja, vivenciar na terra uma liberdade quase

33
“Ad secundum dicendum quod duplex est subiectio. Una servilis, secundum quam praesidens utitur
subiecto ad sui ipsius utilitatem et talis subiectio introducta est post peccatum. Est autem alia subiectio oeconomica
vel civilis, secundum quam praesidens utitur subiectis ad eorum utilitatem et bonum. Et ista subiectio fuisset etiam
ante peccatum, defuisset enim bonum ordinis in humana multitudine, si quidam per alios sapientiores gubernati non
fuissent. Et sic ex tali subiectione naturaliter femina subiecta est viro, quia naturaliter in homine magis abundat
discretio rationis.” (Textum Leoninum Romae 1889)
49

absoluta, com a vantagem adicional de assegurar um lugar no paraíso; isso tudo era

potencializado no âmbito teológico, onde a virgindade estava associada à idéia de uma

transcendência da própria natureza sexual (MCNAMARA, 1976). No período medieval, por outro

lado, encontramos uma preocupação especial com a castidade das mulheres, que chega a

transcender quaisquer critérios associados à classe social, vocação ou estado marital: a literatura

cristã didática e homilética preocupa-se, então, em guardar a virtude sexual das mulheres e

resguardá-las do pecado; obedecer ao marido e cultivar a castidade são concebidas como as mais

importantes qualidades femininas (SHAHAR, 1983, p. 109).

O que encontramos, por conseguinte, em L’autrier jost’una sebissa é uma representação,

algo radicalizada, desse modelo feminino: a pastora, afinal, revela-se não só uma intransigente

defensora de sua castidade, como também portadora da sensatez e da moderação, qualidades

percebidas como estranhas ao seu sexo; é ela, em outras palavras, quem usa a razão para advogar

sua virtude, em oposição ao cavaleiro, que nitidamente argumenta em função de seus impulsos

sexuais.

As linhas finais do diálogo, compostas pelas duas últimas estrofes da composição,

explicitam esse antagonismo. Frustrado pela resistência inabalável demonstrada pela pastora, ao

cavaleiro só resta maldizer a “atrevida” jovem de “pérfido” coração. A pastora, por seu lado,

lança ao mesquinho sedutor uma mensagem final que pode, porventura, servir como um

derradeiro chamado à sabedoria: enquanto “um tal se embevece com a pintura / enquanto o outro

espera pelo maná” – palavras que simultaneamente denunciam o hedonismo do cavaleiro e


50

reiteram as virtuosas aspirações da jovem 34 . O espírito, enfim, venceu a carne por meio da razão

– uma estrutura cuja aparência alegórica35 está longe de ser enganosa.

2.1. Acerca da alegoria

A respeito das condições de emergência da pastorela de Marcabru, cabe considerar a

instigante semelhança que pode ser observada entre o personagem masculino presente em

L’autrier jost’una sebissa e o narrador de uma composição de outro trovador occitânico: Farai

un vers, pos mi sonelh, de Guilhem de Peitieu. Embora não haja razões sólidas que nos permitam

considerar que a obra de Marcabru seja efetivamente uma resposta à outra composição referida,

julgamos interessante analisar as semelhanças que podem ser constatadas entre os dois

personagens e entre as duas composições, o que justifica a breve digressão que agora

realizaremos.

Farai un vers, pos mi sonelh (De Riquer, I, 7), obra do duque da Aquitânia composta em

primeira pessoa, descreve como o narrador, quando passava pelo Alvernhe, deparou-se com duas

damas, Agnes e Ermessen, descritas como esposas de Guardi e de Bernart (“... moiller d’em

Guari / e d’En Bernart”). O cenário é constituído de modo a transmitir uma ambiência de

romaria: não só o narrador está vestido com pelerine (“a tapi”) como as mulheres saúdam-no

evocando são Leonardo (“Saint Launart”), o que nos permite inferir que a história se passa em

34
O maná, é um símbolo de origem bíblica – é o alimento que, consoante as escrituras, Deus concedeu aos
israelitas durante os quarenta anos de exílio; no contexto do poema, deve, por conseguinte, ser entendido como
“alimento divino”. O símbolo também aparece em um poema de Jaufré Rudel (De Riquer, III, 10), trovador
contemporâneo de Marcabru cuja obra também suscitou interpretações de cunho religioso; Grace Frank (1942, p.
532-533), por exemplo, identificou em seu principal topos, o “amor distante”, o ideal de ir para Jerusalém, comum a
tantos homens que, na Idade Média, ansiavam alcançar a salvação como peregrinos ou cruzados.
35
A dimensão alegórica das pastorelas será objeto de nossa análise no quinto capítulo deste trabalho.
51

Saint-Léonard-de-Noblat, região do Limousin que constituía um centro de peregrinação na Idade

Média, principalmente a partir do século XI.

Uma das mulheres cumprimenta o falso peregrino, elogiando sua bela aparência (“mout

mi senblatz de bel aizi” 36 ) e insinuando ver nele alguma argúcia, já que lamenta a quantidade de

tolos que tantas vezes são encontrados pelo mundo (“mas trop vezem anar pel mon / de folla

gent.”). No entanto, o “peregrino” é ainda mais astuto do que podem imaginar e, fazendo-se

passar por mudo, responde com balbucios sem significado (“Babariol, babariol, / babarian.” 37 ).

Confiantes na mudez do desconhecido, as duas damas trocam insinuantes palavras:

“Encontramos o que estávamos buscando!” (“trobat avem que anam queren!”), diz Agnes; “Irmã,

alberguemo-lo, pelo amor de Deus” (“Sor, per amor Deu l’alberguem”), concorda Ermessen,

“pois bem é mudo, / e por ele o nosso concílio38 / não será divulgado” (“que bem es mutz, / e ja

per lui nostre conselh / non er saubutz.”).

Confortavelmente hospedado, o falso peregrino participa de um farto banquete; não

suspeita, contudo, que logo passaria por uma dura provação. A fim de certificar-se de sua mudez,

as damas trazem um gato ruivo, grande e com longos bigodes (“granz et ac loncz guinhos”), e

fazem-no arranhar o falso peregrino desde as costelas até os calcanhares (“del costat / tro al

talon”). Como esse, resistindo à dor, não pronuncia palavra alguma, as damas têm certeza de sua

36
De bel aizi: consoante Honnorat (1847, t.1, p. 68), ‘de bela composição’.
37
Durante muito tempo, discutiu-se a razão de esses versos, em um dos cancioneiros (mais especificamente, o
manuscrito do século XIV conservado na biblioteca de Paris), aparecerem de modo muito diverso, soando como
palavras sírias, árabes e turcas (Tarrababart, marrababelio riben, saramahart). Todavia, não faria sentido que o
peregrino se fizesse passar por um mudo pronunciando palavras de outras línguas, como observa Martín de Riquer
(1991, p. 133-134), que ademais evoca argumentação de István Frank em torno das modificações e reparos não raro
produzidos pelo copista do referido manuscrito.
38
Conselh, no contexto dessa composição, é comumente traduzido como ‘plano secreto’ ou ‘propósito’ (cf.
PADEN, 1998, p. 382; DE RIQUER, 1991, p. 136); todavia, essa acepção não é registrada por dicionaristas como
Raynouard (1844) e Honnorat (1847). Acreditamos, por outro lado, que seja possível traduzir o termo como
‘concílio’, tratando-se evidentemente de um “concílio de amantes”; essa tradução pode também guardar relação com
o ambiente satírico, de cunho religioso, desenvolvido na composição, que analisaremos mais adiante.
52

mudez; diz Agnes a Ermessen: “É mudo, isso pode ser bem percebido” (“mutz es, que bem es

conoissen.”).

Permanecendo albergado por oito dias, informa-nos o narrador sobre seus afazeres

durante essa estadia: “tanto as fodi 39 quanto ouvireis: / cento e oitenta e oito vezes” (“Tant las

fotei com auzirets: / cent et quatre-vinz et ueit vetz”), o que acaba por render-lhe uma terrível

doença (“e no·us puesc dir los malavegz , / tan gran m’en pres”). Por fim, na estrofe final da

composição, o trovador envia uma mensagem às suas generosas anfitriãs por meio de seu

interlocutor, Monet: que esse vá “diretamente à mulher de Guari / e de Bernat: / e diga-lhes que,

por meu amor, / matem o gato!” (“dreg a la molher d’En Guari / e d’En Bernat: / e diguas lor

que per m’amor / aucizo·l cat!”).

Analisemos melhor essa obra de Guilhem de Peitieu 40 . O fato de, na estrofe inicial, o

trovador aludir ao motivo do conflito entre o cavaleiro e o clérigo 41 , tão comum na poesia

medieval, antecipa em certa medida o teor da composição: trata-se de uma poesia na qual o duque

da Aquitânia deposita toda a sua notória fanfarronice – como sintetizou Dronke (1968, p. 110),

embora tratando de outra composição: um estilo inconfundivelmente bem-humorado,

autoconfiante e egocêntrico –, não hesitando em satirizar costumes religiosos para vangloriar-se

de suas (por vezes inverossímeis) façanhas, que exigem uma resistência física assombrosa mesmo

para um valoroso cavaleiro.

Na síntese que apresentamos, é facilmente perceptível que em Farai un vers, pos mi

sonelh há uma inversão no desenvolvimento comum do tema da sedução: ao invés de as damas

39
Sendo a raiz latina do verbo occitânico futuo, -ere, como registra Raynouard (1844, t. 3, p. 380), e
conhecida a verve poética do duque da Aquitânia, não vemos motivo para optar, nessa tradução, por eufemismos – à
maneira de Saraiva, que se reduz a anotar, pudicamente: “Rem veneream exercere” (2006, p. 515).
40
Desenvolvo aqui observações apresentadas em Samyn (2008).
41
Para uma sucinta exposição sobre o tema, cf. Spina, 1997, p. 55-56.
53

serem seduzidas pelo falso peregrino, cabe àquelas a iniciativa – e a própria composição deixa

claro que, na verdade, elas já se haviam dirigido ao caminho de peregrinação tendo em mente

essas “segundas intenções”. É preciso perceber, por outro lado, que também aqui encontramos

um outro topos comum na poética medieval: o motivo da falsa peregrinagem, incluindo mulheres

que, fazendo-se passar por peregrinas, percorriam os caminhos à procura de sexo – faz-se

presente em diversos outros textos medievais, como demonstrou Isabel de Riquer (1991) 42 .

Temos, portanto, toda a configuração de um cenário religioso: duas mulheres que, em um

caminho de romaria, deparam-se com um homem vestido como peregrino, a quem saúdam

evocando são Leonardo. A seguir, também consoante costumes religiosos, as damas oferecem

hospedagem ao romeiro, utilizando uma fórmula que evoca uma obra de cunho religioso: “Irmã,

alberguemo-lo, pelo amor de Deus” (“Sor, per amor Deu l’alberguem”). O restante da

composição, todavia, demonstra como toda essa aparente religiosidade era falsa: na verdade, as

damas eram falsas peregrinas que não fizeram mais do que seduzir um outro – também falso –

peregrino; é fácil perceber, afinal, que todos os três estavam na peregrinação com interesses

meramente sexuais.

Faz-se necessário lembrar que a irreverência de Guilhem de Peitieu, inclusive no tocante a

assuntos religiosos, rendeu comentários desabonadores de seus contemporâneos. É famosa a

afirmação segundo a qual Guilhem era “inimigo de toda pudicícia e santidade” 43 (GAUFRIDUS

GROSSUS, 1854, 1396B); de forma ainda mais contundente, Guillelmus Malmesburiensis

descreve o duque da Aquitânia como “frívolo e lúbrico” 44 : um homem que “se lançava a cada

pocilga de vícios como se acreditasse que todas as coisas são movidas pelo acaso, e não que são
42
Sobre as motivações e experiências dos peregrinos de Compostela, cf. o terceiro capítulo de Singul (1999).
43
“totius pudicitiae ac sanctitatis inimicus.”
44
“fatuus et lubricus.”
54

governadas pela providência” 45 , atitude efetivamente incorrigível, visto que “suas frivolidades,

por cuja falsa beleza era agraciado, levavam-no outra vez às facécias que distendiam a gargalhada

da boca aberta da audiência” 46 (GUILLELMUS MALMESBURIENSIS, 1855, 1384B).

A índole de Guilhem de Peitieu, transparente em sua poesia, era afinal diametralmente

oposta à de Marcabru, trovador cuja obra transmite um forte sentimento moralizante. Assumindo

com freqüência uma posição francamente judicativa, Marcabru parece contemplar uma sociedade

decadente e corrompida, cujos vícios denuncia implacavelmente em versos nos quais critica a

perda de valores, o relaxamento de costumes e os comportamentos que, embora socialmente

tolerados, são por ele considerados inaceitáveis. O fundo religioso dessa condenação pode ser

entrevisto, por exemplo, na famosa quarta estrofe de Pus mos coratges s’es clarzitz (Dejeanne,

XL), em que chega a utilizar uma estrutura discursiva próxima do texto bíblico (RONCAGLIA,

1969):

Homicidi e traïdor, Homicidas e traidores,


Simoniaic, encantador, simoníacos, comerciantes,
Luxurios e renovier, luxuriosos e agiotas,
Que vivon d’enujos mestier, que vivem de anojosos misteres,
E cill que fan faitilhamens, e aqueles que fazem feitiçarias,
E las faitileiras pudens e as feiticeiras imundas
Seran el fuec arden engau. estarão todos, por igual, no fogo ardente.

Do mesmo modo, a própria concepção de amor advogada por Marcabru opõe-se àquela

presente nos textos de Guilhem de Peitieu. O duque da Aquitânia, trovador bifacetado, é capaz de

compor tanto canções sensuais e obscenas, como a que analisamos anteriormente, quanto obras

corteses e amorosas, o que inclusive ensejou a proposta de divisão tripartite de sua produção

45
“vitiorum volutabrum premebat quasi crederet omnia– fortuitu agi, non providentia regi.”
46
“Nugas porro suas, falsa quadam venustate condiens, ad facetias revocabat, audientium rictus cachinno
distendens.”
55

poética – sendo o grupo restante composto unicamente pelo conhecido canto de despedida e

arrependimento de Guilhem, Pos de chantar m’es pres talenz. Marcabru, por seu lado, defende

tipicamente um conceito de fin’amor relacionado ao amor conjugal não-adúltero ou a um

sentimento efetivamente divino, de nítidos matizes cristãos; e é em nome dessa concepção que

critica e censura o amor cortês ou sensual, que outros podem nomear fin’amor, mas que para ele

não passa de fals’amor. É o que entrevemos, por exemplo, nesta estrofe de Dirai vos senes

duptansa (De Riquer, IV, 15):

Amors soli’esser drecha, O amor costumava ser direito,


mas er’es torta e brecha mas está agora torto e defeituoso,
et a coillida tal decha e adquiriu tal doença
– Escoutatz! – – Escutai! –
lai on non pot mordre, lecha quando não pode morder, lambe:
plus aspramens no fai chatz. mais asperamente não o faz o gato.

Há que se considerar, ademais, que a concepção particular de fin’amors defendida por

Marcabru tem profundas raízes cristãs, razão pela qual condena qualquer tentativa de sedução

motivada unicamente pela luxúria – caso, evidentemente, de composições como Farai un vers,

pos mi sonelh –, cujas terríveis chamas antecipam o fogo infernal (NELSON, 1982, p. 237-238).

Levando-se em conta esses elementos, é possível observar que há efetivamente uma

oposição entre as temáticas abordadas nas obras de Guilhem de Peitieu e de Marcabru, tanto pela

irreverência com a qual a primeira trata assuntos religiosos quanto pelo comportamento

promíscuo adotado pelos personagens nela presentes; é preciso, ademais, reiterar que a presença,

em caminhos de peregrinação, de pessoas com interesses amorosos ou meramente sexuais era

efetivamente comum – e não são de outra espécie os que encontramos em muitas das chamadas

“cantigas de romaria” ibéricas, ainda que certamente menos maliciosos do que na canção de
56

Guilhem de Peitieu 47 .

Na pastorela de Marcabru, o que vislumbramos é um empreendimento moralizante de

cunho simultaneamente religioso e amoroso, que se opõe à promiscuidade e à sensualidade

presentes na obra do duque da Aquitânia. A hábil argumentação da pastora – ela mesma um

símbolo cristão 48 – desconstrói todas as viciosas investidas do narrador que tenta, em vão, seduzi-

la; trata-se, efetivamente, de uma defesa da religiosidade e da virtude contra a sensualidade e o

vício representados pelo cavaleiro-narrador.

Também é interessante observar que, no que diz respeito à estrutura narrativa, há um

conjunto de semelhanças perceptíveis entre as duas composições 49 . Em ambos os casos,

deparamo-nos com um narrador que, enquanto caminha através de um cenário campestre,

encontra-se com figura(s) feminina(s) – as falsas peregrinas, no caso da obra de Guilhem de

Peitieu; a pastora, na composição de Marcabru – ; segue-se a isso, em ambos os poemas, uma

tentativa de sedução; ademais, temos nos dois casos uma mescla de narrativa e diálogo, sempre

de um ponto de vista masculino. Esses cinco elementos, diga-se de passagem, são o que

caracteriza propriamente as pastorelas stricto sensu, ou seja, as que seguem o modelo

estabelecido pioneiramente em L’autrier jost’una sebissa: a ambiência pastoral; a presença de um

homem e uma mulher; o contexto de encontro acidental e tentativa subseqüente de sedução; a

mescla de narrativa e diálogo; e o ponto de vista masculino 50 .

Observe-se ainda que esses elementos não se fazem presentes dessa maneira na outra obra

de Marcabru em que aparece uma pastora, L’autrier a l’issida d’abriu (Paden, 9): ali, o cavaleiro

47
Cf. Maleval, 1999, cap. 2.
48
Trataremos da pastora como alegoria no quarto capítulo desta tese.
49
Esses elementos foram-me sugeridos por William D. Paden em correspondência pessoal, a quem registro
aqui meu débito.
50
Esse é o modelo que Paden denomina “pastorela clássica”. Cf. Paden, 1999, p. 111-112.
57

não se encontra com uma pastora solitária, mas com uma jovem que está acompanhada de um

pastor – de fato, o poema explicita que a voz masculina é ouvida antes da voz feminina pelo

protagonista: “Eu ouvi a voz de um pastor / cantando com uma manceba” (“auzi la voz d’un

pastoriu / ab una mancipa chantar”). Posteriormente, o trovador encontra-se a sós com a pastora,

quando tenta seduzi-la; não obstante, o diálogo não se apresenta ao longo de toda a composição:

mais da metade do texto (aparentemente a quarta estrofe, perdida, inscreve-se na fala da jovem

que domina a composição desde o segundo verso da terceira estrofe até o fim da sexta, que

encerra a obra) encerra um longo discurso moralizante da pastora que trata do adultério na

nobreza e da degeneração das linhagens nobres.

Cabe reiterar que, se é possível estabelecer as diversas aproximações sugeridas entre

L’autrier, jost’ una sebissa e Farai un vers, pos mi sonelh, apenas temerariamente seria possível

afirmar que Marcabru pretendeu compor, de fato, uma “resposta” à composição de Guilhem de

Peitieu, uma vez que desconhecemos qualquer evidência documental que forneça uma base sólida

para uma afirmação desse tipo; ademais, não há semelhanças formais suficientes entre as duas

composições que nos permitam falar em contrafactura 51 . O que pretendemos com essa breve

digressão é apenas demonstrar em que medida essas duas composições contemporâneas e, em

certa medida, similares podem ser aproximadas, o que nos permite perceber o constraste entre os

personagens e as situações delas constantes.

Se na composição de Guilhem de Peitieu encontramos o registro de situações

verossímeis 52 , Marcabru emprega um discurso de tons alegóricos, algo nítido pelo pendor

argumentativo da pastora, impensável no caso de uma jovem de origem social humilde nos
51
Devo agradecer à Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira essas observações.
52
Embora não seja o caso de considerar a obra “realista”, algo explicitado pelo verso inicial da obra, em que
Guilhem menciona o fato de havê-la composto enquanto adormecia (“Farai un vers, pos mi sonelh”).
58

tempos medievais, e pela própria atitude do narrador – que, interessado em obter os favores

sexuais de uma jovem que encontra, solitária, no campo, renuncia à força e se entrega a um

embate dialético, acatando sua humilhante derrota ao final. Em oposição às lascivas damas

presentes em Farai un vers, pos mi sonelh, Marcabru cria uma pastora – certamente lançando

mão de uma tradição poética pré-existente, mas que renova de maneira decisiva, ao criar uma

nova espécie de pastorela –, figura cujo potencial religioso desenvolve até um ponto máximo: o

que vemos em sua canção é, afinal, uma jovem que defende, com intransigência, sua própria

virtude, rejeitando cada uma das investidas do sensual narrador.

2.2. A vigência do modelo: as pastorelas alegóricas

O que nos leva a constatar a renovação realizada por Marcabru nas pastorelas são as

várias composições em langue d’oc que seguem estritamente o modelo por ele inaugurado.

Tendo argumentado em favor de seu pioneirismo, cabe agora fundamentar essa segunda parte de

nossa hipótese, demonstrando as ressonâncias da referida composição nas obras de outros

trovadores occitânicos.

Antes de mais nada, é preciso explicitar dois conceitos que utilizamos e utilizaremos com

freqüência neste trabalho, e que podem sugerir caminhos de leitura diferentes daqueles por nós

propostos. Quando nos referimos aqui à pastorela alegórica como um modelo, não pretendemos

sugerir que haja uma regularidade formal nas referidas pastorelas; o que nelas se repete é uma

estrutura narrativa e argumentativa – não um esquema métrico rímico ou rítmico, métrico ou

estrófico, motivo pelo qual não nos debruçamos aqui sobre esses detalhes. Por outro lado, quando
59

falamos sobre a pastorela como um gênero, empregando assim um conceito necessariamente

multifacetado e equívoco 53 , pretendemos utilizá-lo para designar todo o conjunto de obras que,

compostas segundo o modelo (narrativo e argumentativo) há pouco mencionado, constituem um

grupo de textos literários que apresentam uma série de características em comum – a saber: as

semelhanças estruturais mencionadas anteriormente.

De resto, é preciso reiterar que a influência de Marcabru sobre outros compositores

occitânicos não se restringe às pastorelas; é ele considerado não apenas o inaugurador de diversos

gêneros poéticos “popularizantes”, mas também de toda a vertente poética que se tornaria

conhecida como trobar clus (ROUBAUD, 1971, p. 82) – o “trovar fechado”, hermético ou obscuro

por seu deliberado rebuscamento ou pela excessiva variedade vocabular, que inclusive lança mão

de termos popularescos, em oposição ao mais acessível trobar leu; como constata Rosenstein

(1995), a influência temática e estilística de Marcabru no trovadorismo posterior foi “massiva e

difusa” (“massive and pervasive”). É, portanto, perfeitamente possível que as inovações por ele

introduzidas na pastorela enquanto gênero tenham se disseminado entre os outros trovadores.

Outro elemento relevante para a compreensão desse fenômeno, mormente no que tange

aos trovadores que atuaram ao longo do século XIII – âmbito em que se inscrevem diversos dos

autores que aqui analisamos, inclusive autores de pastorelas alegóricas em langue d’oc: Guiraut

Riquier, Guilhem d’Autpol e Joan Esteve – , é o combate ao catarismo que ocorre sobretudo com

a cruzada empreendida entre 1209 e 1229. Embora, no pequeno conjunto de trovadores cuja

associação com os albigenses é postulada 54 , não encontremos nenhum autor relacionado ao

53
Como observa Massaud Moisés (1997, p. 200), o gênero, pode ser concebido como “resultado do esforço
de expressão dum conteúdo: ao exprimi-lo, o artista empresta-lhe forma, ou antes, descobre-lhe a estrutura própria,
enquadra-o num molde que, à custa de repetido, se converte no gênero”.
54
A saber: Raimon de Miraval, Guilhem Figueira e Aimeric de Peguilhan. Cf. Paterson, 1995, p. 342.
60

corpus que estudamos – e, mesmo no caso deles, não haja uma influência religiosa discernível no

texto poético, cuja sensualidade pouco se coaduna com a percepção negativa da matéria pelo

catarismo (PATERSON, 1995, p. 342-343) – , a violência com que a perseguição foi empreendida

inevitavelmente ressoou na produção cultural da época, fortalecendo tendências para a

espiritualização e para a alegorização, o que posteriormente ensejaria a composição de obras

francamente devocionais (LAZAR, 1995, p. 92). Esse direcionamento da cultura para a temática

religiosa pode ter efetivamente exercido influência sobre autores como Guiraut Riquier, Guilhem

d’Autpol e Joan Esteve, todos autores de pastorelas alegóricas.

Vejamos, enfim, as pastorelas em langue d’oc que seguem o modelo de Marcabru de

maneira mais fiel. Para uma melhor localização das composições abaixo citadas em termos

cronológicos, apresentamos aqui uma cronologia comparativa dos períodos de produção dos

autores das pastorelas occitânicas, incluindo tanto as pastorelas alegóricas quanto as pseudo-

alegóricas que examinaremos num segundo momento 55 :

Autores de pastorelas alegóricas 56 Autores de pastorelas pseudo-alegóricas


Marcabru (1130-1149)
Giraut de Bornelh (1162-1199)
Gui d’Ussel (1195-1196)
Gavaudan (1195-1211)
Guiraut d’Espanha (1240-1270)
Guiraut Riquier (1254-1292)
Guilhem d’Autpol (1269-1270)
Joan Esteve (1270-1288) Joan Esteve (1270-1288)

2.2.1. A fidelidade à infiel: L’autrier le primier jorn d’aost, de Giraut de Bornelh

55
Cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas pseudo-alegóricas.
56
Por dificuldades de datação, não incluímos no quadro a pastorela anônima L’autrier, al quint jorn d’Abril.
61

Giraut de Bornelh, trovador do fim do século XII que, como o autor de L’autrier jost’una

sebissa, concedia às suas canções fortes matizes moralizantes, compôs uma pastorela, L’autrier le

primier jorn d’aost (Audiau, II; De Riquer, XIX, 87), em que desenvolve de maneira instigante o

modelo estabelecido por Marcabru. Nesse texto, deparamo-nos com um narrador que, no

primeiro dia de agosto, chega à Provença, na região para além de Alès (“L’autrier le primier jorn

d’aost, / Vinc en Proensa part Alest”); cavalga sóbrio, com o semblante entristecido, quando é

surpreendido pelo canto de uma pastora, perto de uma sebe (“E chivauchava·m, semblan mest, /

Qu’ira·m tenia sobrieira / Quan auzi d’una bergieira / Lo chan, just’ un plaissaditz”). Ao vê-lo, a

pastora estreita sua saia e, antes que o cavaleiro pudesse dizer qualquer coisa, indaga-lhe,

segurando seu estribo: “Por que direção / vieste, e de onde saíste? / Me parece que estás aflito”

(“E, sitot s’avia pel brost / Estrecha·l gonelha que vest, / Ans que li demandes: ‘don est?’ / Ela·m

tenc a l’estrubieira; / Pueis dis me: ‘per cal dressieira / Vengues ni don es issitz?/ Ja·m sembla

siatz marritz”).

O narrador explica à pastora que está à procura de uma boa amiga, gentil e sincera: acaba

de separar-se de uma dama pérfida que, se não fosse tão volúvel, seria sua senhora e guia (“De

bom’ ami’ ay netsieira / Que fos fin’ e vertadieira, / Qu’ eras me sui departitz / D’una fals’

abetairitz / Que·m fa camjar ma carrieira, / E fora·m capdels e guitz / Si no fos tan volatieira”).

A pastora adverte-o que todo aquele que se une ao “rico amor” (ric’amor), ou seja, a damas de

elevada condição social, enfrenta o arrependimento: volúveis, o que elas sempre esperam é que se

lhes faça o bem em gestos e que se esqueça o que fazem de mal; quando encontram alguém que

não está disposto a satisfazer seus caprichos, não tardam a dispensá-lo (“Senher francs, ja qui que
62

s’ajost / Ab ric’amor non er, per Crist, / Sitôt s’a pro auzit e vist, / Ses clam; qu’una cavalieira /

Vol bem qu’om en fag li mieira / Sos bes e·l mals si’oblitz; / Qu’ades no·n siatz garnitz /

Tornara·us d’autra manieira! / Qu’estas autras camjairitz / Segon tost autra carrieira”).

Em seguida, o cavaleiro reconhece a amabilidade da pastora que, mesmo tendo-o visto ao

longe, não fugiu, permitindo assim esse encontro; após afirmar que dela não deseja nada mais,

promete tratá-la de modo franco e cortês (“Per so qar gen m’aculitz, / Vos serai francs e

chauzitz; / Quar coven que·us en refieira / Merces quar no·us en fugitz: / De lonh m’avisetz

primieira”). Confiando no que lhe diz o cavaleiro, confessa a pastora que é ainda jovem e de

espírito casto, e que espera por um bom marido, conforme sua pobreza, que lhe sirva (“Senher, be

m’agra ops drutz que·m s’ost / Del fag, qu’enqueras loc no·n tast, / Que’l cors ai pauc e de sen

cast, / (Si be·us mi fas prezentieira) / Pueis cug segon ma paubrieira / Que’m sia datz bos

maritz”). Todavia, visto que o cavaleiro exige dela tão pouco – e parece, portanto, desprovido de

más intenções – , afirma a pastora que consentiria em entregar-se a ele, ainda que isso signifique

comportar-se como leviana: desde que o cavaleiro faça-lhe promessas sinceras, terá sua amizade

por inteiro (“Mas, quar tan pauc m’enqueritz, / Qu’ab fis sagramens plevitz / Auretz m’amistat

entieira”). A respeito disso, pode-se observar que, no período pré-tridentino, disseminara-se pela

Europa o matrimônio por “palavras de presente”, bastando que os noivos de idade adequada

trocassem entre si promessas; tendo-o feito, caso posteriormente mantivessem cópula carnal,

seriam reconhecidos de fato como casados57 . É também importante notar que não há um explícito

interesse erótico por parte da jovem; na verdade, ela sabe que esse comportamento não é correto,

mas o vê – sem dúvida, ingenuamente – como um caminho para a concretização de uma

57
O tema é estudado por Alexandre Herculano (1866, p. 45-46).
63

experiência amorosa desprovida de segundas intenções.

O fim do diálogo não é muito claro. O cavaleiro recusa a proposta da pastora, alegando

ser tão forte a raiz do amor que o prende à região da Lobeira58 – certamente, onde se encontra sua

amada – que, caso cedesse, seu mal se tornaria ainda maior (“Mas tant es ferma· l razitz / Que

mou de lai, part Lobieira, / Que· l mals, pus s’es endurmitz, / Ai paor que pieitz mi fieira”).

Diante da insistência da jovem, o cavaleiro reitera os protestos de fidelidade à sua nobre amada:

“Donzela, dama Escaruenha é guia / de valor, que me deu companheira / cortês, e gentil amante, /

graças a que o mal me foge inteiramente” (“Toza, N’Escaruenh’es guitz / De pretz, que·m det

companhieira / Cortez’, e fin’amairitz, / Per que·l mals me fug a tieira.”); em réplica, a pastora

encerra o diálogo com aguda ironia, observando que o cavaleiro aparentemente cometera um

equívoco: pelo que havia dito, pertencia a outra dama; essa de quem fala agora parece ainda mais

presunçosa (“Senher, un pauc es fallitz, / Qu’eras d’autra companhieira / Parletz que fossetz

aizitz, / Sitot s’es pus ufanieira”).

Nessa pastorela, em que encontramos todos os cinco elementos característicos do modelo

estabelecido por Marcabru, Giraut de Bornelh estabelece uma oposição entre a atitude do

cavaleiro – que, embora sabendo-se ludibriado, insiste em permanecer fiel à sua dama – e a

pastora, que representa a possibilidade de um amor sincero e desinteressado; possibilidade que,

ao fim, é recusada pelo narrador. Vale notar que a tentativa de sedução que encontramos aqui é,

em certa medida, diversa daquela constante do texto de Marcabru: em L’autrier le primier jorn

d’aost é a pastora quem oferece seu corpo ao cavaleiro, cedendo às insinuações daquele – ato em

que visa não uma satisfação erótica, mas a possibilidade de concretização de uma relação

58
Lovière, na Valônia.
64

amorosa consoante os princípios defendidos pela pastora.

Perceba-se também que a condenação que a jovem faz do amor das damas nobres, pleno

de vaidade e interesse, pode ser lido de duas formas: ou como uma valorização da pobreza,

associada a qualidades como franqueza e honestidade, em oposição à corrupção e ao luxo dos

estamentos privilegiados; ou como uma manifestação do que anseia o “espírito casto” da pastora,

ainda não maculado por experiências amorosas concretas. Em ambos os casos, estamos diante de

uma moral de fundo cristão; em sua pobreza e castidade, a jovem age motivada por uma pureza

que o cavaleiro não só não mais possui, como não deseja mais possuir, visto que permanece leal

àquela que o manipula. Fiel à amada infiel, dama volúvel e movida apenas por interesses

materiais, representa o cavaleiro uma entrega ao vício, em oposição à ingenuidade representada

pela pastora.

2.2.2. O ciclo de pastorelas de Guiraut Riquier

Guiraut Riquier, trovador cuja produção data da segunda metade do século XIII, foi quem

realizou a mais ambiciosa empreitada relacionada às pastorelas no âmbito occitânico: é ele o

autor de uma impressionante série de seis composições, escritas ao longo de mais de vinte anos,

que descrevem sucessivos reencontros entre um cavaleiro e uma pastora.

Na primeira pastorela, L’autre jorn m’anava (Audiau, IX; De Riquer, CXIV, 347), lemos

como o cavaleiro, seguindo junto de um rio, vê uma “alegre pastora, / bela e agradável” (“... gaya

bergeira, / Bell’e plazenteira”), que apascenta seus cordeiros. Aproximando-se dela, o narrador

não tarda a iniciar um diálogo; a jovem, por seu lado, mostra-se desde logo resistente às suas
65

investidas: “– Donzela, sois amada / ou sabeis amar? – / Respondeu-me sem delongas: / –

Senhor, comprometida / eu sou, sem qualquer dúvida” (“–‘Toza, fos amada, / Ni sabetz amar?’ /

Respos mi ses guanda: / ‘Senher, autreyada / Mi sui ses duptar’”).

Ao longo das estrofes, a pastora resiste a cada uma das investidas do narrador, mostrando-

se cada vez mais inflexível; sua atitude, no entanto, muda na quinta estrofe da composição,

notavelmente quanto a jovem ouve-o mencionar o nome Belh Deport, que era o senhal 59 utilizado

por Guiraut Riquier em suas poesias para se referir à sua amada (“Toza, quan falhensa / Cug far,

per sufrensa / Belh Deport m’albir!”). Ao ouvir aquele nome, a pastora imediatamente muda seu

comportamento, revelando-se uma admiradora da obra de Riquier, cujas “alegres canções”,

segundo ela, podem ser reconhecidas por toda a parte (“Senher, on que·m vaya, / Gays chans se

perpara / D’en Guiraut Riquier”). Todavia, mesmo tendo confessado desejar o trovador (“–

Senher, que·us dezir”), revela-se a pastora ao fim dividida, já que não sabe se o trovador é

seriamente comprometido com Belh Deport; assim, a pastorela encerra-se sem um desenlace

amoroso, embora a pastora lamente a partida do cavaleiro. Encerra-se a composição com o

narrador anunciando seu retorno: “Donzela, freqüentemente/ tomarei este caminho” (“– Toza,

sovendier / Aurai est semdier”).

A segunda pastorela, L’autrier, trobey la bergeira d’antan (Audiau, X; De Riquer, CXIV,

348), composta dois anos depois da primeira, narra um episódio que também ocorre dois anos

depois do narrado naquela, em que os fatos essencialmente se repetem. Já no verso inicial, a

pastora é identificada como a mesma; também ela reconhece o narrador, e indaga o porquê de ter

demorado tanto a retornar – se seu amor é de fato tão intenso, como suportou ficar distante por

59
Na poética trovadoresca, “senhal” designava o nome sob o qual os trovadores ocultavam o verdadeiro nome
de sua amada em suas composições. Belh Deport pode ser traduzido como ‘belo prazer’, ‘belo regozijo’.
66

tanto tempo? Ela mesma acaba por confessar que já se preparava para ir à sua procura

(“L’autrier, trobey la bergeira d’antan; / Saludei la, e respos mi la bella, / Pueys dis: ‘Senher,

cum avetz estat tan / Qu’ieu no·us ai vist? Ges m’amors no·us gragella?’ / – ‘Toza, si fa, mai que

no fas semblan.’ / – ‘Senher, l’afan per que podetz sufrir?’ / – ‘Toza, tals es qu’aissi m’a fag

venir.’ / – ‘Senher, et yeu anava vos sercan.’ / – ‘Toz’, aissi etz vostres anhels gardan.’ / –

‘Senher, e vos en passans, so m’albir.’”).

A partir do quinto verso, a composição é escrita apenas em diálogos. O trovador volta a

afirmar seu amor pela pastora que, embora reitere sua lealdade a ele, ainda recusa entregar-se: “–

Donzela, quero gozar de vosso amor./ – Senhor, que o façais onde eu não esteja.” (“– ‘Toza, que

vuelh de vostr’ amor jauzir’./ –‘Senher, faitz o lai on no seray.’”). Quando a jovem indaga pelo

amor que o trovador nutre por Belh Deport, esse confessa que se trata de uma relação impossível,

já que a amada não o socorre em seu sofrimento; a recusa da dama ao amor, não obstante, é vista

pela pastora como uma prova de valor moral (“–‘Toza, no·m vol mos Belhs-Deportz valer, / Ni re

no vey el mon que tant me playa.’/ –‘ Senher, ben cre que·n sap far so dever / Si a valor, tant quo

dizetz, veraya.”) Ao fim da composição, é desta vez a inflexível pastora quem anuncia o

reencontro: “– Senhor, conheço por mim todo o vosso desejo. / – Donzela, bem vos amo, mas

caçoais de mim. / – Senhor, uma outra amastes do mesmo modo ontem. / – Donzela, me vou, que

não necessitais de mim. / – Senhor, ide e nos veremos em outro ano.” (“–‘Senher, per mim sai tot

vostre talan.’ / – ‘Toza, be·us am, mas vos m’anetz trufan.’ / –‘Senher, autra n’ametz atertant

yer.’ / – ‘Toza, vau m’en que no m’ avetz mestier.’ / – ‘Senher, anatz et vejam nos autr’nan!’.”).

A terceira pastorela, Gaya pastorelha (Audiau, XI; De Riquer, CXIV, 349), escrita dois

anos após a segunda, do mesmo modo descreve acontecimentos que decorrem dois anos após
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aquela. O que há de notável nesta composição é que o trovador não reconhece, a princípio, a

jovem: descreve-a, na primeira estrofe, como uma “alegre pastorinha” que, enquanto apascentava

seus cordeiros em uma ribeira, trançava uma coroa de flores – descrição, portanto, que se

assemelha bastante à da primeira composição. A beleza da jovem não tarda a despertar seus

desejos: confessa o trovador ter desmontado porque “desejava seu amor / de qualquer maneira”

(“Gaya pastorelha / Trobey l’autre dia / En uma ribeira, / Que per caut la belha / Sos anhels

tenia / Desotz un’ ombreira: / Un capelh fazia / De flors e sezia / Sus en la fresquiera. /

Dissendey en via, / Que s’amor volia / En calque maneira”).

Embora a jovem afirme que passa dia e noite, melancólica, à procura de “um amigo de

boa linhagem” (“– Ylh dis que queria / Amic de bom aire, / Nueg e dia pessiva”), o narrador não

percebe que é a ele que ela se refere, e novamente insiste em tentar convencê-la a entregar-lhe

seu corpo, em vão; até que, na terceira estrofe, ela finalmente revela que já o conhece: “– Senhor,

aparentemente / vós nunca me vistes: um erro / vil assim se comete” (“– Senher, en parvensa /

mai no·m vis: falhensa / faria savaya”) . Pouco depois, o assunto volta à tona: “– Donzela, não

creio / que vos tenha jamais visto; que não vos desagrade / se fordes, agora, minha amante. / –

Senhor, bem vos posso dizer / que muito vos farei rir: / sou desconhecida? / - Donzela, sois

desvairada? / – Senhor, não, nem muda” (“–‘Toza, no m’albire / Qu’ie·us vis mai; no·us tire / Si

ar etz ma druda!’ / – ‘Senher, be·us puesc dire / Que·n faretz mans rire: / Suy desconoguda?’ / –

‘Toz’, etz esperduda?’ / – ‘Senher, non, ni muda!’).

Apenas na penúltima estrofe o trovador consente que a pastora seja aquela que foi, por

ele, cantada outras vezes – aquela com quem mantém discussões a cada vez que se encontram. A

jovem, com certo cinismo, sugere que isso se deva à sua nescidade, o que é imediatamente
68

refutado por Riquier: se discutem, é precisamente por sua sensatez – e o reconhecimento disso,

por parte do trovador, lisonjeia a pastora (“–‘Na toza, contenda / Ai ab vos d’emenda / Totas vetz

trobada.’ / – ‘Senh· N Guiraut, renda, / Riquier, tanh que·us renda / Aital, quar suy fada.’ / –

‘Toz’, ans etz membrada.’ / – ‘Senher, so m’ agrada.’”). Quando, ao fim, o cavaleiro anuncia sua

partida, faz questão de confirmar que isso desagrada à jovem: “– Donzela, estais contrariada? / –

Sim, por vossa partida” (“–‘Toza, etz irada? / – Oc, per vostr’anada.’”).

Na quarta pastorela, L’autrier, trobei la bergeira (Audiau, XII; De Riquer, CXIV, 350),

encontramos uma significativa mudança: logo ao vê-la, o narrador reconhece ser a jovem com

quem se encontrou em outras três ocasiões; todavia, ela agora tem uma criança adormecida em

sua saia. Aqui, a situação da terceira pastorela se inverte: é agora a pastora quem não reconhece o

trovador. Lemos, na segunda estrofe: “Donzela”, eu disse, tanto me agrada / vossa prazenteira

companhia, / que preiso agora de vossa ajuda.” / Ela me disse: “Senhor, tão tola / não sou quanto

pensais que seja, / pois em outra coisa está meu juízo.” / “Donzela, cometeis assim um grande

erro: / há tanto vos amo sem falsidade.” / “Senhor, até este dia / nunca vos vi, segundo me

parece”. / “Donzela, falha vosso conhecimento?” / “Senhor, não, para o que me entende.” (“–

‘Toza, fi·m yeu, tant m’agrada / La vostra plazen paria, / Qu’er m’es ops vostra valensa.’ /

Elha·m dis: ‘Senher, ta fada / No suy quo·us pessatz que sia, / Quar en als ai m’entendensa.’ / –

‘Toza, faitz hi gran falhensa, / Tant a que·us am ses falcia.’ / – ‘Senher, tro en aquest dia / No·us

vi, segon ma parvensa.’ / – ‘Toza, falh vos conoyssensa?’ / – ‘Senher, non, qui m’entendia’”).

Vale notar que essa última fala da pastora sugere que seu “esquecimento” seja proposital, algo

que será confirmado nas estrofes seguintes.

Após afirmar nunca ter sido enganada sequer por Guiraut Riquier – embora ainda não
69

reconheça que é esse seu atual interlocutor –, que tão insistentemente dizia amá-la, a pastora

admite que esse poderá vencê-la algum dia, se porventura reaparecer (“– Senher, si ven, be cre·m

vensa”); em seguida, reconhece que se recorda levemente daquele com quem conversa agora (“–

‘Toz’, avetz de mi membransa?’ / ‘– Senher, oc, mais non complida’”), para finalmente admitir

que o “esquecimento” fora uma vingança, visto que o trovador não a reconhecera no encontro

anterior (“– ‘Senher, be·m tenc per fromida / Qu’eras ai preza venjansa / De l’autra vista

derreira’”).

No prosseguimento do diálogo, afirma a jovem que a criança que tem no colo é filha

daquele que a desposou na Igreja, o que enseja uma nova investida de Guiraut Riquier: poderiam,

talvez, tornar-se amantes, desde que ele mantivesse o segredo? A pastora outra vez o rechaça:

podem, sim, ser amigos, mas apenas se a amizade for do mesmo tipo que mantiveram na primeira

vez, visto que ela pretende continuar a reguardar-se (“– Poiriam far acordansa / Amdos, toza

plazenteira, / Si n’eratz per mi celada?’ / – ‘Senher, non d’autr’amistansa / Que·ns fem a la vetz

primeira, / Pus tro aissi·m suy gardada.’”) No fim da composição, ao certificar-se de que a

jovem novamente não cederá às suas investidas, afirma o trovador que outra vez a pôs à prova, e

outra vez encontrou-a em pleno juízo; replica, então, a pastora: “Senhor, se eu fosse leviana, / não

me teríeis por sensata.” (“– ‘Senher, s’ieu ne fos leugeira, / Mal m’agratz vos assenada’”). E,

novamente, Guiraut Riquier parte.

Na quinta pastorela, D’Astarac venia (Audiau, XIII; De Riquer, CXIV, 351), o trovador

volta a encontrar sua pastora, desta vez no caminho de peregrinação entre Astarac e Ylla 60 , na

Gasconha (“D’Astarac venia, / L’autrier, vas la Ylla / Pel camin romieu”). Acompanhada de sua

60
Não se sabe atualmente a localização de Astarac, castelo que era a residência dos condes de Astarac. La
Ylla é a região atualmente conhecida como L’Isle-Jourdain.
70

filha, a pastora, que já fora tão bela, estava muito mudada; retornava de uma peregrinação a

Compostela, onde havia alcançado a absolvição de seus pecados (“Vi la fort camjada / Vas que ja

fon bella; / Dissi: ‘Don vinetz?’ / – ‘Senher, tan senhada / Suy, de Compostella”). A partir dessa

pastorela, Guiraut Riquier não trata mais a pastora por toza, ‘donzela’, optando por dona ou

profemna, ‘mulher virtuosa’.

Embora sua interlocutora já não se julgue uma pastora merecedora de canções (“... no·m

bergeira / Suy d’aquest chantar”), o trobadour volta a insinuar-se, sendo novamente recusado;

dessa vez, no entanto, a mulher é mais explícita no tocante às razões de sua recusa: após acusar,

mais uma vez, Riquier de tratá-la como se fosse leviana (“m’avetz per leugeira”), afirma que

mais justo seria que seus cantares fossem dedicados a Deus (“– ‘Senher, per drechura, / De Dieu,

si·us membrava, / Fosson vostre chan!’”).

Quando, na última estrofe, o trovador indaga por que ela o trata tão mal, a mulher replica:

“Senhor, tenho o desejo / de que tenhais por amarga / a vida temporal” (“– ‘Senher, ai dezire /

Tencssetz per amara / Via temporal’”); já quando Riquier afirma que de nada lhe serve tal

sermão, a pastora pede-lhe que a deixe: “Senhor, meu martírio / duplicais falando agora, / e para

vós isso de nada vale” (“– ‘Senher, mo martire / Doblatz parlan ara, / Et a vos no val.’”). Ao

fim, novamente o trovador segue seu caminho.

A sexta e última composição, A Sant Pos de Tomeiras (Audiau, XIV; De Riquer, CXIV,

352), é a única obra desse ciclo que não pode ser qualificada estritamente como pastorela de

acordo com o modelo criado por Marcabru, já que o cenário que aqui encontramos não é pastoral;

contudo, embora não possamos qualificá-la como pastorela no sentido estrito, cabe analisá-la

enquanto desfecho do ciclo poético elaborado por Riquier.


71

Escrita vinte e dois anos depois da primeira, essa obra tem um tom predominantemente

melancólico. Certo dia, fugindo da chuva que o molha por inteiro, Guiraut Riquier chega a uma

hospedaria em Sant Pos de Tomeiras, no Languedócio, onde é recebido por uma velha e uma

jovem que, ao vê-lo, conversam entre si – a velha sorri, a jovem diz algo divertido; então, Riquier

reconhece a velha – é a pastora que tantas vezes havia encontrado (“A Sant Pos de Tomeiras /

Vengui l’autre dia, / De plueja totz mullatz, / En poder d’ostaleyras / Q’uieu no conoyssia; / Ans

fuy meravelhatz / Per que·l viella rizia, / Qu’a la jove dizia / Suau calque solatz; / Mas

quasquna·m fazia / Los plazers que sabia / Tro fuy gen albergatz; / Que agui sovinensa / Del

temps que n’es passatz, / E cobrey conoyssensa / Del vielha, de que·m platz”).

“Vós sois aquela / que já fostes pastora / e tanto me haveis burlado” (“‘Vos etz selha / Que

ja fos bergeira / E m’avetz tant trufat’”), diz à dama o trovador, ao que aquela replica: “Senhor,

não mais belicosa / serei para vós, pois assim me apraz” (“–‘Senher, mais guerreira / No·us serai

per mon grat’”). Na única ocasião em que volta a tratá-la como toza, Riquier novamente faz-lhe a

corte: “Digna mulher, de uma tal donzela / como vós, deve um apaixonado / ser muito desejoso”

(“Pros femna, d’aital toza / Cum vos deu amaire / For esser dezirans”); no entanto é, como em

todas as outras vezes, rejeitado: “Senhor Deus! Por esposa / me quer; mas fazê-lo / não é algo que

eu tenha decidido” (“–‘Senher Dieus! Per espoza / Mi vol; mas del faire / No suy ges

acordans’”). Riquier tenta, então, convencer a mulher a deixar a acomodada vida que leva com

seu marido (“Pros femna, de maltraire / Vos es ben temps d’estraire / Si es hom benanans”) e,

chamando-a de insensata, recebe imediatamente uma réplica: “Senhor, pelo contrário, sou sensata

/ que meu coração não me induz / a procurar minha danação” (“Senher, ans suy membrada, /

Que·l cor no m’i porta / Si que·n fassa mon dan”). A seguir, descobre o narrador que a filha da
72

pastora – que lhe serve de consolo, “que de sua alegria é a fonte” – é exatamente aquela que

outrora vira, ainda criança, acompanhando a pastora, perto de Ylla (“– ‘Senher, ve·us qui·m

coforta, / Quar de mon gaug es porta, / Selha que·ns es denan.’ / – ‘Pros femna, vostra filha / Es,

segon mon semblan.’ / – ‘Senher, pres de la Ilha, / Nos trobes vos antan.’”); roga, então, que ela

compense todos os pesares que lhe foram causados pela mãe, pedido também feito em vão, visto

que a jovem já é casada (“–‘Pros femna, doncx emenda / Convenra que·m fassa / Per vos de

motz pezars.’ / – ‘Senher, tant o atenda / Qu’a sso marit plassa, / Pueys faitz vostres afars.’”) Na

última estrofe, uma dedicatória ao conde de Astarac, cujo castelo fora citado na quinta pastorela,

encerra essa série de composições.

As cinco pastorelas constantes do ciclo de Guiraut de Riquier seguem o modelo de

Marcabru, desenvolvendo o seu motivo fundamental: o encontro entre a virtuosa pastora,

inflexível em defesa de sua virtude, e o narrador que tenta seduzi-la, em vão. Ao optar pela

construção de uma série de obras encadeadas, Riquier não insere nenhuma alteração fundamental

no modelo; tratam-se, na verdade, de variações em torno daquele motivo – e mesmo a presença

da filha da pastora, nas duas últimas composições, não representa uma inovação, visto que ela

não desempenha um papel atuante nas canções em que aparece. Mais notável é o fato de as

pastorelas terem sido compostas ao longo de vinte e dois anos, demonstração de que o modelo

desenvolvido por Marcabru era capaz de motivar um trovador a retomá-lo várias vezes ao longo

de muitos anos.

2.2.3. Gavaudan e a inversão da alegoria


73

Gavaudan, trovador que esteve ativo entre o fim do século XII e o início do XIII, compôs

duas pastorelas que só podem ser devidamente compreendidas em conjunto, das quais apenas

uma, Dezamparatz, ses companho (Audiau, III), segue estritamente o modelo de Marcabru.

Como veremos mais à frente, a outra pastorela – L’autre dia, per un mati (Audiau, IV; De

Riquer, LII, 209) – trata de um provável reencontro entre a mesma pastora que aparecera na

primeira composição e seu amante. Gavaudan utiliza o modelo estabelecido por Marcabru para

compor uma obra que, embora conserve o uso alegórico da pastora, o faz com um sentido

inteiramente diverso daquele que encontramos em L’autrier jost’una sebissa.

A obra começa com o narrador cavalgando através de um prado, triste e pensativo por se

ver privado do amor, até que se depara com uma pastora cuja singular beleza renova sua alegria

(“Dezamparatz, ses companho, / E d’amor luenh del tot e blos, / Cavalgava per un cambo,/

Marritz e tristz e cossiros, / Lonc un bruelh, tro joys mi retenc / D’una pastoressa que vi, / Per

qu’ es mos joys renovellatz / Quam mi remembre sas beutatz / Qu’anc pueyssas d’autra no·m

sovenc”). A pastora consente que o cavaleiro dela se aproxime e, com “um doce riso

intensamente amoroso” (“Ab un dos ris ferm amoros”), indaga sobre sua origem – “Por que vos

comprazeis tanto de mim? / Pois eu não sei o que é a amizade, / e por isso eu parto e me afasto de

vós” (“Quo·us etz tan de mi adautatz? / Qu’ieu no say que s’es amistatz, / per que·m luenh de vos

e m’estrenc”).

Respondendo à pastora, afirma o cavaleiro que, ao vê-la, maior foi seu regozijo do que o

de todos os homens (“Sobre totz jauzens fuy joyos”), e suplica que a dama o aceite como

companheiro. Ela, todavia, recusa-o, alegando que não deseja ficar malfalada, e que espera por

aquele que se tornará seu marido; ele que siga seu caminho, junto de outros que se dedicam a
74

corromper o nobre amor (“Senher, si m’amistat vos do, / Yeu aurey nom na Malafos, / Qu’ieu

n’esper melhor guizardo / D’autre, que cug qu’en breu m’espos. / ... / E tornatz en vostre cami, /

Qu’ab autras vos etz ensajatz, / Per semblan, don etz galiatz, / Falsas, que fan ric joy sebenc”).

O diálogo se estende por mais um par de estrofes, nas quais o sedutor insiste que servirá à

pastora em tudo o que ela desejar, permitindo que ela faça dele o que quiser – inclusive que, caso

queira, arranque-lhe fora o coração (“En qual que·us vulhatz vos, o prenc, / Que ieu vos plevisc

e·us afi / Que vostres suy endomenjatz; / E faitz de mi so que·us vulhatz, / Neys lo cor traire ab un

brenc”). Quando o narrador, em uma tentativa derradeira, afirma que virará ermitão se for

recusado (“O·m metrey, si m’o alongatz, / Hermitas el Pueg de Messenc”), a pastora enfim cede:

se ele for seu amigo, será sua amiga, banindo de seu coração o orgulho (“Si m’etz amicx,

amiga·us so; / Quar tan n’etz lecx et enveyos, / Yeu gieti foras et espenc / E de mon cor erguelh

comgi”) – “Senhor, e não o digais, / um duro coração domesticastes” (Senher, e vos non o digatz,

/ Si tot dur cor adomesjatz”).

A segunda pastorela 61 de Gavaudan não segue propriamente o modelo de Marcabru, visto

que nela não há propriamente uma tentativa de sedução ou negociação amorosa, mas apenas o

reencontro dos amantes. Encontramos nela um narrador que, seguindo por um outeiro, vê uma

menina parecida com aquela que costumava ver, sob um espinheiro 62 , a face contra os primeiros

raios do sol; ela efetivamente o reconhece, pois saúda-o quando o vê desviar-se do caminho em

sua direção (“L’autre dia, per un mati, / Trespassava per un simelh, / E vi, dejos un albespi, /

61
No tocante a essa composição, utilizamos o termo ‘pastorela’ em uma acepção genérica, utilizando como
critério para tal apenas a presença da pastora em seu texto – que, como ressaltamos, não segue o modelo de pastorela
criado por Marcabru.
62
Em occitânico, albespi, que corresponde ao francês ‘aubépine’, de nome científico Crataegus monogyna.
Espinheiro que produz flores brancas, desde a Antiguidade é associado às idéias de pureza e inocência; no folclore
europeu, há a crença de que foi utilizado na coroa de espinhos de Jesus, o que o inscreve no imaginário cristão.
75

Encontra·l prim ray del solelh, / Una toza que·m ressemblet / Sylh cuy ieu vezer solia; / E

destolgui·m de la via / Vas lieys; rizen me saludet”). Tomando-lhe as mãos, a pastora faz o

cavaleiro sentar-se ao seu lado e, novamente demonstrando reconhecê-lo, beija-lhe os olhos e a

face (“Que·ls huelhs e la cara·m baizet”).

No diálogo que mantêm em seguida, o narrador acaba por reconhecer a jovem, e dirige-

lhe palavras que manifestam o quanto sente sua falta: “Amor tolheu-me o que me havia dado, /

aquela que muito me aprazia; / agora não sei onde está, / e depois [dela], nada pôde consolar-me”

(“Amors m’a tout so que·m donet, / Selha que mout m’abellia; / Ar no sey vas on se sia, / Per

qu’anc res pueys no·m conortet”); o mesmo sentimento trazem as palavras da pastora – “Desde

que me separei de vós / Meus olhos não provaram do sono” (“Anc pueys, pus de vos me parti, / Li

mey huelh no preyron sonelh”). A composição se encerra com instigantes palavras da jovem:

“Senhor, dona Eva transgrediu / os mandamentos que tinha [de obedecer], / e os que me

repreendem por causa de vós / perdem seu tempo com tagarelices” (“Senher, Na Eva traspasset /

Los mandamens que tenia, / Et qui de vos me castia / Aitan se muza en bavet”). Nessas palavras,

como veremos, está a chave para uma leitura alegórica dessas duas canções.

Tomadas em conjunto, essas composições parecem compor uma única história: após o

encontro inicial entre o cavaleiro e a pastora, na primeira composição, os dois amantes não

voltaram a encontrar-se, provavelmente por iniciativa do cavaleiro, algo que podemos inferir por

dois motivos: primeiro por ser ele quem, em ambos os casos, “descobre” a pastora durante sua

jornada, talvez pela mesma região; segundo, e principalmente, porque as palavras finais da jovem

na segunda pastorela sugerem que ela efetivamente ficou “malfalada” após entregar-se ao

cavaleiro.
76

A inserção da pastorela no imaginário cristão dá-se precisamente quando a pastora

compara-se a Eva, ato em que se reconhece como pecadora; suas palavras, no entanto, deixam

subentendido que isso está intrinsecamente relacionado à sua condição feminina: assim como Eva

teve que transgredir os mandamentos, a pastora teve que se entregar ao cavaleiro, não por

escolha, mas porque assim ordenava sua natureza – e quem tentava repreendê-la perdia “seu

tempo com tagarelices”. Se essa leitura está correta, as pastorelas de Gavaudan devem ser

compreendidas de uma forma particular: não se trata aqui de representar a pastora como símbolo

de virtude, à maneira de Marcabru e outros, mas de resgatá-la enquanto uma alegoria para a

condição feminina como tal. É preciso levar em consideração que em Dezamparatz, ses

companho, a menina claramente se insinua para o cavaleiro, que apenas dá prosseguimento ao

jogo de sedução em que se vê imerso; desse modo, em nenhuma das pastorelas a pastora pode ser

considerada como um exemplo de virtude – trata-se mais propriamente de uma mulher que segue

o que lhe ordena sua natureza, consoante o imaginário medieval, particularmente propensa aos

pecados da carne 63 .

Assim, no caso particular de Gavaudan, embora seja nítido o aproveitamento do modelo

de pastorela de Marcabru, inclusive no tocante ao uso alegórico da figura da pastora, não há o

embate entre essa, como representação da virtude, e o vício. Trata-se, por conseguinte, do que

poderíamos qualificar como utilização idiossincrática daquele modelo, algo aliás compatível com

a inventividade característica de um trovador que não hesitava em considerar-se singular entre

seus pares; como escreveu no início de outra de suas composições: “Eu não sou igual aos outros

trovadores / sou, de fato, muito difícil para aquele que me tem por irmão” (“Ieu no suy pars als

63
Sobre a representação da mulher no imaginário medievo, cf. o primeiro capítulo de MALEVAL, 1995.
77

autres trobadors, / ans suy trop durs a selh que·m ten per fraire”) (Guida, VIII).

2.2.4. A clivagem radicalizada: Ogan, ab freg que fazia, de Joan Esteve

Trovador do fim do século XIII, Joan Esteve compôs três pastorelas, duas das quais

seguem, no que diz respeito ao tema e à estrutura narrativa, o modelo de Marcabru; a outra

pastorela, El dous temps, quan la flor s’espan (Audiau, XVI) descreve o encontro, testemunhado

pelo narrador, entre uma pastora e seu amado, fugindo àquele modelo não apenas pela presença

de um outro personagem, além da pastora, na composição, mas também pela ausência de uma

tentativa de sedução 64 . Das duas pastorelas que seguem o modelo de Marcabru, aqui só uma nos

interessa, visto que a outra, L’autrier, el gay temps de pascor (Audiau, XV 65 ), faz parte do

pequeno grupo de pastorelas occitânicas que utilizam aquele modelo em composições amorosas

de sentido não-alegórico, tema que abordaremos mais adiante. Analisemos, por conseguinte, a

pastorela Ogan, ab freg que fazia (Audiau, XVII; De Riquer, CXIV, 342).

Encontramos ali um narrador que está retornando de Olargue, no Languedócio 66 ,

cavalgando através de um bosque, quando vê uma pastora que, enquanto guarda uma pequena

vaca, reza “muito devotamente”, abaixando-se e levantando-se como uma penitente (“Ogan, ab

freg que fazia, / En la chalenda d’ Abril, / D’Olargue pel boy venia / Sols cavalgan, tost e vil; / E

vi de pres d’un cortil / Vaquieyra, / Ab una vaca sotil / Et ab so vedelh / Que gardava; / Et

horava / Mout devotamens, / E bayssava, / E levava, / Co fay contenens.”). O trovador se

64
Há semelhanças entre essa obra e certas pastorais francesas que mencionaremos mais adiante neste
trabalho; cf. 3. Pastorelas e pastorais.
65
Em Audiau (1973), essa composição é atribuída a Joyos de Tholoza; sigo a atribuição de Paden (1987).
66
Atualmente, em Hérault, na região de Languedoc-Roussillon.
78

aproxima da jovem; ao vê-lo, ela interrompe sua oração, abençoa-o e benze-o – nas palavras do

narrador, “como se me visse morto” (“cossi mort me vis”). Essa impressão, na verdade, não é

ilusória, como percebemos pelo diálogo que se segue: “Querida donzela, / que fazeis agora /

assim, ao me benzer?”, indaga o narrador, ao que replica a pastora: “Senhor, a / vossa face /

parece a de quem morre” (“–‘Toza cara, / Que·us fai ara / Si me benezir?’ / – ‘Senher, car a /

Vostra cara / Semblan de murir.’”).

Quando o trovador pede à pastora que não fale sobre assuntos desagradáveis, ensaiando

um galanteio – “Donzela, vós que sois agradável / não digais o que me desagrada, / que eu por

vós tenho amor verdadeiro: / participai de meu desejo” (“–‘Toza, vos qu’etz plazenteira / no·m

digatz mon desplazer, / qu’ie·us port amor vertadeira. / Siatz ab me d’un voler.”), a jovem, sem

dar-lhe ouvidos, prossegue seu discurso: “Em Deus depositai vossa esperança, / que vida, /

senhor, que em verdade, em vós não percebo vida/ Lembrai da morte!” (“–‘En Dieu ajatz vostr’

esper, / que vida, / senher, no·us conosc per ver / Membre·us de la mort!’”. ). Apesar da

resistência da pastora, o trovador arrisca uma nova investida: se ela deseja de fato curá-lo, que o

faça oferecendo-lhe o seu amor; replica, todavia, a jovem: “Senhor, de Deus sou esposa/ e não

desejo outro senhor” (“–‘Senher, de Dieu suy espoza, / Q’ieu no vuelh autre senhor.’”). Indaga o

sedutor se ela porventura tornou-se beguina, por obra dos frades menores, ao que ela responde:

“Senhor, pelo Rei que eu adoro, / não, mas através de meu coração / quero servir / até morrer /

Aquele que por nós / quis sofrer / pelo martírio / uma morte cruel na cruz” (“–“Senher, pel Rey

qu’ieu azor, / Non, mais per mon cor / Vuelh servire, / Tro·l fenire, / Aquelh que per nos / Volc

sufrire / Ab martire / Greu mort en la cros.”).

Por fim, dando-se por vencido, o trovador reconhece o valor da obra da pastora: “Porque
79

servir a Deus vos agrada, / donzela, tenho grande alegria”; “Senhor, a morte me amedronta”,

responde a pastora, e prossegue: “Pois hoje não está vivo quem ontem estava; / pois ninguém

conhece seu dia, em verdade, / nem sua hora; / e perde a doce alegria por inteiro / aquele que

morre em pecado” (“–‘Quar servir Dieu vos agensa, / Toza, n’ai gran alegrier.’ / –‘Senher,

mortz me fai temensa /Q’uet non es vius qui·u fo yer; / Q’us no sap jorn vertadier / Ni hora; / E

pert lo dous gaug entier, / Qui mor en peccat.’”). À guisa de despedida, dirige-lhe o narrador

estas últimas palavras: “Formosa donzela, / apraza a Deus, / que o mundo sustenta, / que morte

terrível / não nos carregue” (“–‘Toza gaya, / A Dieu playa, / Si quo·l mon soste, / Que savaya /

Mortz no·ns traya!”). As duas últimas estrofes da composição encerram dedicatórias a Guillem de

Lodev, nobre a quem são dedicadas outras obras de Joan Esteve, inclusive um pranto; e a Belh

Rai (‘belo raio de sol’), senhal para uma dama, constante de várias de suas poesias amorosas.

Há, nessa última estrofe, um sutil jogo de palavras que reflete, em certa medida, o teor de

toda a composição: gaug/gaya, termos utilizados respectivamente pela pastora e pelo trovador – o

adjetivo gaya sendo uma derivação do substantivo gaug 67 – em contextos efetivamente opostos.

Ao falar em “dous gaug”, ‘doce alegria’, a jovem refere-se à glória de uma morte cristã, esperado

fim da vida de penitência e oração a que se dedica; o trovador, por seu lado, refere-se à própria

pastora como “toza gaya”, ‘alegre donzela’, expressão que, no léxico trovadoresco, está

relacionada à beleza física feminina. Essa oposição perpassa Ogan, ab freg que fazia por inteiro,

e representa, na verdade, uma radicalização da clivagem que encontráramos já em Marcabru.

Aqui, essa separação é levada ao extremo, porquanto a pastora, ao invés de ser a arguta e esquiva

jovem constante de outras pastorelas, dedica-se por inteiro à vida religiosa, a tal ponto que cada

67
Cf. Raynouard (1844, t. 3), p. 441ss (v. Gauch, gaug, gaut, guaug).
80

uma de suas falas encerra um nítido tom de prédica.

Apenas em suas últimas falas o narrador consente em abandonar suas sensuais intenções e

acolher as palavras da jovem, sempre matizadas pelo topos cristão do memento mori, embora

ainda assim dirija-lhe um tratamento que conserva o tom de um galanteio. Convence-o, enfim, a

pastora de que não poderá oferecer-lhe a cura por ele esperada, por meio do amor, mas tão-

somente a certeza de que a verdadeira alegria pertence apenas ao que não morre em pecado.

2.2.5. L’autrier, a l’intrada d’Abril, de Guilhem d’Autpol: a seguidora de frei Johan

Autor de uma pequena obra – chegaram até nós apenas quatro composições suas –

marcada por inflexões religiosas, Guilhem d’Autpol tem uma produção datada do terceiro quatro

do século XIII. A única pastorela que conhecemos a ele atribuída é L’autrier, a l’intrada d’Abril

(Audiau, XXII). Nela, descreve o narrador como, no princípio de abril, cavalgava solitário

através de um prado, quando se deparou com uma pastora de aparência “bela e gentil” (“Bell’es e

genta”), vestida com sarja negra 68 e uma capa cinzenta sem forro (“Vestida fon d’un nier sardil /

Ab capa grizeta ses pelh”); é tão formosa que logo o narrador sente-se tomado pelo amor

(“S’amors m’atalenta / Tant es covinenta”). Enquanto trançava uma coroa de flores e menta, a

jovem fala para si mesma: “Ai! / Estou sozinha e o tempo passa! / Ai de mim! Muito lamento por

minha juventude / pois não tenho amigo verdadeiro” (“Sola suy e·l temps s’en vay! / Lassa! be

planc ma joventa / Quar non ay amic veray.”)

O trovador decide saudar a pastora que tanto o apraz, que no entanto responde “como se
68
Note-se que o uso desse tecido pode estar relacionado ao pio comportamento da pastora, visto que o uso da
sarja preta ou de cor escura é documentado em trajes de membros de diversas ordens religiosas, dentre elas
carmelitas, brigidinas, maronitas, basilianos e hospitalárias de Orleans: cf. Silva e Sousa; Motta e Silva (1843).
81

fosse castelã” (“Co ssi fos dona de castelh”). Se o amor se desvia de seu caminho, afirma a

jovem, perde seu mérito, sua direção e seu governo (“Anc pueys qu’Amors perdet son fil / Pretz

non ac valor ni capdelh”); ela, no entanto, jamais deixará de bem amar, nem jamais negligenciará

tudo o que aprouver ao seu amigo, quando enfim o tiver ao seu lado (“De bem amar no·m

partray, / Ni per tan no·m layssarai / Qu’en totz plazers non cossenta / A mon amic, quan

l’auray”). Aproveitando o ensejo, o narrador tenta convencê-la de que é ele o companheiro que

ela tanto espera: sendo uma jovem formosa e nobre, pode muito bem ser sua amante. Tendo-a

consigo, afirma o sedutor, ele portar-se-á como um servo leal: dar-lhe-á roupas novas, a tal ponto

que sequer seus pais serão capazes de reconhecê-la (“Na toza, pros et avinens / Etz, e faitz de mi

vostre drut! / Qu’ie·us seray leyals e temens, / E já per mim no·n er sauput; / E far vos ay nous

vestimens / Quant aja mon rossi vendut: / E ja negus vostre parens / No sabra don vos er

vengut.”). Além disso – com a ajuda de Deus! – ele jamais terá outras jovens, e assim ela poderá

estar sempre segura de sua fidelidade (“Mais, si Dieus m’ajut, / Autras joventas no·n port; / Mas

ieu d’aisso vos conort / Que d’amic seretz segura.”).

Decerto que, se tivesse um amigo, também a pastora ser-lhe-ia fiel – é o que afirma a

jovem no prosseguimento do diálogo, deixando claro que não cometeria uma traição pelo

trovador. De resto, a pastora evoca uma citação, de um certo frei Johan, em nada conforme com

os interesses do sedutor: “Pois frei Johan bem diz / que o prazer engendra a morte; / eu me sinto

casta e pura; / porque faria mal a Deus?” (“Que fraire Johans ditz fort / Que deliegz engenra

mort; / Yeu sent mi casta e pura; / Per que·n faria a Dieu tort?”). O trovador ainda investe uma

última vez: diz à pastora que ela, cuja sabedoria supera a do próprio Catão, deveria saber que não

há ocupação mais penosa do que servir sem recompensa – como, insinua, é o caso do serviço por
82

ela prestado a Deus (“–‘Toza, si Dieus mi perdo, / Trop sabetz mais de Cato, / Qu’ieu no say plus

greu fazenda / Que servir ses gazardo’”). Irredutível, a pastora encerra a discussão replicando

que conhece muito bem essas promessas falsas e mesquinhas: não é sua vontade dar lucro algum

ao trovador, e ele que vá procurar em outro lugar o seu ganho (“–‘Senher, be sabem quals so /

Falsas promessas ses do, / Qu’ieu non ai cor que·us don renda; / E faitz alhor vostre pro!’”).

A pastorela de Guilhem d’Autpol segue de perto o modelo de Marcabru: novamente, o

que temos é uma pastora cuja religiosidade se contrapõe à lascívia do narrador. A diferença

perceptível é que a jovem, nessa composição, deixa claro que pretende casar-se algum dia,

assunto sequer mencionado na pastorela de Marcabru, o que representa uma diferença em relação

à beata pastora que encontramos na obra de Joan Esteve; caso similar, não obstante, é o da jovem

constante do ciclo de Guiraut Riquier.

Na última estrofe, é particularmente interessante o argumento utilizado pelo narrador

quando a pastora deixa claro que não deseja entregar-se a ele por razões religiosas: aos olhos do

trovador, não há nisso mais do que aborrecimento e perda de tempo – sendo visível, portanto, a

contraposição entre a atitude da pastora, cujo comportamento é regido pelos princípios morais

próprios do pensamento metafísico cristão, e a sensualidade do narrador, cujos interesses ignoram

por completo o sentido dessa moralidade.

2.2.6. Em defesa da virtude: Quant escavalcai l’autrer

Única das pastorelas occitânicas que analisamos neste capítulo não presente na

compilação de Audiau (1973), Quant escavalcai l’autrer (Paden, 29) é uma composição anônima
83

que pode, não obstante, ser datada de modo aproximado, já que há nela uma referência ao nobre

italiano Guglielmo Malaspina, falecido em 1220 69 .

A obra já se inicia com uma referência religiosa: afirma o narrador que cavalgava, certo

dia, perto do castelo de Montegiano 70 – o que nos permite perceber que essa obra não descreve

um episódio que tem lugar na Occitânica, mas no território italiano – “como um jacobino”

(“Quant eu escavalcai l’autrer, / per lo chastel de Montejan, / escavalcai per Jacobin”), citação

que sem dúvida refere-se à errância característica dos dominicanos. Quando dirige o seu olhar

para um vale, o trovador depara-se com uma jovem descrita como uma pequena rosa, cuja

esplendente beleza ilumina tudo que a envolve; como se pode esperar, ele não resiste à tentação

de aproximar-se dela.

Trêmula, a jovem pede ao cavaleiro que não a machuque; seus receios transparecem na

queixa que faz contra aqueles que a deixaram ali, sozinha: “Deus puna Robezon e Audeta! /

Jamais minha amizade terão, / pois todo o dia hoje me deixaram sozinha” (“Deu confonda

Robezon et Audeta! / Ja mais m’amistat non auran, / qu’encoi tot jor m’an lassata soleta”). O

lamento dá ao trovador uma oportunidade para cortejar a menina: ele será para ela uma

companhia melhor que Robezon, caso a jovem o aceite – o que, insinua, ela deve imediatamente

fazer, já que nunca encontrará quem possa oferecer-lhe tanto quanto ele. No entanto, a pastora

recusa peremptoriamente a aproximação; fazê-lo, alega, significaria desobedecer que Deus dela

espera – e, na verdade, apenas as intenções do sedutor foram suficientes para ofendê-la, pelo que

roga que Deus venha socorrê-la: “Tão maldosamente me haveis hoje assaltado / que [espero que]

Deus acorra para esta sofredora.” (“tant malament m’avez oi assallida / a coitada Deus

69
Paden (1987, v.1, p. 96) estima que a obra foi composta entre 1218 e 1220.
70
Região atualmente localizada na municipalidade italiana de Mombaroccio.
84

esperon”).

Finalmente convencido de que não terá a jovem, o cavaleiro decide partir para junto dos

seus, sendo esse o momento em que o anônimo trovador insere a já referida saudação a Gugliemo

(Guillem) Malaspina, “mestre na cavalaria, / e nobre e valente nas armas” (“e signor de la

cavalaria, / e de les armas pro e valent”). Encerra-se a composição com esse reconhecimento,

pelo trovador, da castidade da pastora, que permanece assim intocada e fiel aos seus princípios

religiosos.

2.3. A variante: as pastorelas pseudo-alegóricas

Além das dez composições que, consoante nossa análise, seguem o modelo alegórico

estabelecido por Marcabru, há mais quatro pastorelas no corpus occitânico em que se pode

observar algo curioso: embora sigam o referido modelo no tocante à sua estrutura narrativa, nelas

é perceptível um desvio – seja porque não apresentam um referencial religioso claro, seja porque

seu desfecho é amoroso.

Em L’autrier, al quint jorn d’Abril (Audiau, XXIII; Paden, 165), de autor desconhecido,

encontramos uma pastora que rechaça as investidas do sedutor, mas que não o faz em nome de

quaisquer motivos religiosos claros; por outro lado, o que a preocupa são as expectativas de seus

pais. O mais notável é perceber que esse tipo pseudo-alegórico de pastorela, embora incomum no

âmbito occitânico, será predominante na lírica galego-portuguesa, como veremos mais à frente 71 .

Nas outra obras desviantes, a pastora acaba por ceder às investidas do sedutor, ainda que nem

71
Cf. 8. As pastorelas (pseudo-)alegóricas galego-portuguesas.
85

sempre fique claro se há ou não uma relação sexual entre ambos; desse modo, são pastorelas que

poderíamos qualificar como amorosas – e que, precisamente pela supressão do conflito entre o

narrador e a pastora, prescindem da dimensão alegórica estabelecida por aquele modelo, o que as

aproxima de certos exemplares franceses 72 . Pertencem a esse conjunto três composições 73 :

L’autrier, cavalcava, de Gui d’Ussel (Audiau, VII); L’autrier, el gay temps de pascor, de Joan

Esteve (Audiau, XV); e Per amor soi gai, de Guiraut d’Espanha (Audiau, XVIII; De Riquer,

XCV, 283).

2.3.1. L’autrier, al quint jorn d’Abril: em defesa da honra

A anônima L’autrier, al quint jorn d’Abril (Audiau, XXIII; Paden, 165) começa com o

encontro, no quinto dia de abril, entre o narrador e uma pastora que repousa à sombra de um

espinheiro 74 . Formosa e bela, a jovem, que veste sarja negra 75 , saia e mantinha, entoa uma

canção de Castela (“L’autrier, al quint jorn d’Abril / Trobiei pastorela / A l’onbreta d’un espi, /

Avinent e bella. / Que chant e favella / .I. sonet de Castella; / Que plus humieu / Non n’a en mieu

/ Vestida d’un negre sarzieu, / Mantellet e gonella.”).

Tendo-a encontrado assim, solitária em um lugar tão propício aos encontros amorosos,

julga o trovador que poderá, sobre a relva nova, saber se a jovem é ou não virgem; ela, todavia,

72
Para uma análise mais detalhada dessa aproximação, cf., no capítulo 3 deste trabalho, o item 3.1.4. O
embate da carne contra o embate do espírito.
73
Tomada isoladamente, a composição de Gavaudan Dezamparatz, ses companho (Audiau, III) também
pertenceria a esse grupo; todavia, a leitura que propusemos permite uma interpretação alegórica da referida pastorela,
embora a alegoria em questão não seja propriamente aquela cultivada por Marcabru.
74
Sobre o simbolismo do espinheiro, cf. nota 62.
75
Note-se a similaridade com a roupa usada pela pastora em L’autrier, a l’intrada d’Abril, de Guilhem
d’Autpol; cf. nota 68.
86

trata de arruinar suas expectativas: enquanto tiver pais vivos, não se portará como lasciva (“–

‘Toza, dia ieu, bella, / S’ie·us atruop en luoc aizieu, / Sola, ses parella, / Sabrai s’est piusella /

En l’erbeta novela.’/ – ‘Ai, Senher Dieu! / En vos mi plieu / C’aitant cant aurai parent vieu / Non

serai ribaudella.’”). Ainda assim, o narrador insiste: se forem para o jardim, ele ali fará para ela a

cortezia; logo, começarão o jogo de amor que tanto riso lhes trará. Se ela aceitar ser sua amante,

todas as manhãs, com o nascer do sol, viverão uma alegria que por todo o dia os acompanhará (“–

‘Toza, intrem el gardi, / Fares cortezia, / E farem .I. juoc d’amor / que cascuns s’en ria. / Si a

vos plazia / Que vos fosses m’amia, / Serem aisi, / Cada mati, / Enans soleil levat, aissi, / E

tenrem goi tot dia.’”).

A donzela, todavia, mantém sua resistência: “Bem entendo vosso latim 76 , / senhor,

qualquer que seja; / perdestes vossa direção; / segui vosso caminho! / A minha companhia / vos

será inútil...”, e alerta-o: “Por são Martinho, / se vierdes para cima de mim, / tudo ouvirão os

meus vizinhos, / e perceberão a vilania!” (“–‘Bem entent vostre lati, / Seinher, cal que sia; /

Perdut aves lo cami; / Tenes vostra via! / Que·l mia paria / Vos torn’ar’a folia... / Per Sant

Marti, / Si fas vas mi, / Auziran o tut mieu vezi, / E sara vilania!’”). Insiste, no entanto, o

trovador: no tempo da Páscoa, quando os jubilantes passarinhos se reúnem no bosque, também

ele poderá, sobre a fresca relva, à sombra, fazer um “jogo de amor” com a virgindade da donzela

– imagem não muito clara, mas certamente insinuante (“–‘Toza, el temps de Pascor, / Per fin

alegratge / Can s’alegran entre lor / L’auzellet salvaje / Dins per lo boscage, / E vos per est

ombraje / Per la frescor / De la verdor / Farai .I. juoc novel d’amor / Del vostre piusellage.’”).

A pastora, todavia, trata de pôr fim ao diálogo: não será convencida a perder sua honra

76
‘Latim’, aqui, utilizado como sinônimo de ‘falatório’.
87

por tolices; além disso, seu pai deseja casá-la com alguém de alta linhagem, de acordo com sua

nobreza – o que sugere que aqui não estamos diante de uma pastora de baixa origem social, mas

de uma nobre; Léglu (1998, p. 137-138) tratou desse problema ao observar que há aí uma

disjunção entre a premissa básica das pastorelas, de que qualquer jovem camponesa solitária

descoberta por um homem é sua presa legítima, e a percepção de que ela possui uma outra

dimensão que supera esse cenário: um lugar em uma rede invisível de relações sociais e

familiares 77 . Por fim, na estrofe final da pastorela, diz a jovem as palavras com as quais encerra o

encontro: apenas uma coisa os muito faladores conseguem, ao fim de tudo – perder o seu tempo

(“Senher, vos autre janglador / Aures en lo badaje”).

L’autrier, al quint jorn d’Abril não é, por conseguinte, uma pastorela tão matizada pela

religiosidade quanto outras já analisadas; contudo, também nela encontramos uma pastora

disposta a defender sua honra, mormente em respeito a seus pais e aos seus planos de casamento,

pelo que não deixa de se fazer presente o contraste com os interesses meramente hedonistas do

narrador. Não obstante, como aqui a referências religiosas ocorrem apenas de modo muito tácito

– a roupa da pastora não tem um simbolismo definido, e mesmo a referência à Páscoa é erotizada

pelo narrador –, julgamos possível entrever aqui uma pastorela em que a estrutura narrativa de

Marcabru é utilizada sem fins alegóricos claros, o que faz dessa composição um possível

antecedente das pastorelas pseudo-alegóricas que surgirão na lírica galego-portuguesa 78 .

2.3.2. O amor como consolo: L’autrier, cavalcava, de Gui d’Ussel

77
Para essa teórica, observa-se o mesmo na pastorela de Guilhem d’Autpol, L’autrier, a l’intrada d’Abril,
aqui já analisada; entretanto, Léglu conclui que a pastora na referida canção seria uma nobre apenas pelo verso em
que, segundo o trovador, ela responde “como se fosse castelã” (“Co ssi fos dona de castelh”), o que não nos parece
razão suficiente para tal conclusão.
78
Cf. 8. As pastorelas (pseudo-)alegóricas galego-portuguesas.
88

Nesta composição, deparamo-nos com um narrador que se encontra com uma pastora de

tez fresca e jovem, que cantarolava, suspirosa: “Ai! Mal vive aquele que perde sua alegria!”

(“L’autrier cavalcava / ... / E vi denan me / Una pastorella / Ab color fresqu’e novella, / Que

chantet mout gen, / E disia en plaingnen: / ‘Lassa! mal viu qui pert son jauzimen!’”). O narrador

segue em direção à pastora; como a “nobre e bela criatura” consente encontrá-lo, o cavaleiro

apea-se do cavalo a fim de retribuir o gentil acolhimento (“Lai on il chantava / Virei tost mon fre,

/ Et il levet se, / La soa merce, / Vas mi mout isnela, / La franca res bon’ e bella, / Et eu

mantenen / Desmontei per onramen / De leis que·m fetz tan bel acuillimen.”).

No diálogo que se segue, o cavaleiro indaga à jovem sobre a canção que ela entoava,

assegurando-a de que jamais ouviu uma pastora cantar tão bem (“– ‘Tosa de bon aire, / Dis eu ses

temer, / Prec que·m digas ver, / Si·us ven a plazer, / Quegna chansos era, / Cella que disïatz era,

/ Quant eu vinc aissi; / Quar anc mais, so vos afi, / Tan ben chantar pastora non auzi.’”). Diz-lhe

a pastora que assim canta porque foi traída: aquele a quem ela se havia entregue abandonou-a por

outra; dessa maneira, cantar é uma forma de olvidar a dor que a consome (“– ‘Seingner, non a

gaire / Qu’eu soli’ aver / A tot mon voler / Tal que·m fai doler, / Car non l’ai enquera, / Mas il

m’oblid’e s’esfera, / Per autra, de mi; / Per qu’eu planc, et atressi / Chan c’oblides la dolor que

m’aussi.’”).

É esse o ensejo para a tentativa de sedução: afirma o narrador que passa por idêntico

sofrimento, pois foi também abandonado por sua amada, que o trocou por outro (“–‘Tosa, ses

faillensa, / Vos dic atrasag / Que atretal plag, / Com a vos a fag / Aquel que·us oblida, / M’a fag

una deschausida / Qu’eu amava fort. / Ara m’oblid’al sieu tort / Per un autre, qu’eu volri’ aver
89

mort.’”). A pastora imediatamente cede à investida, reconhecendo no cavaleiro alguém que lhe

pode oferecer um consolo pela traição; dessa forma, jura-lhe amor e assegura-lhe que, juntos,

poderão transformar o desgosto que os consome em júbilo e alegria (“–‘Seingner, mantenensa /

Trobas del forfag / Que·us a fag tan lag / La fals’ab cor frag; / E ve·us m’en aizida, / Que·us am

a tota ma vida, / Si·m n’es en acort; / E tornem lo desconort / C’avem avut en joi et en deport.’”).

Nas duas estrofes finais, o diálogo resume-se a uma carinhosa troca de palavras entre os

novos amantes, em que um assegura haver encontrado no outro alguém capaz de oferecer uma

libertação para todo o desgosto e ressentimento (“–‘Franca res grazida, / Ma voluntait n’ai

complida, / Si·m n’es en acort / De vos, que·m faitz a bon port / Venir joios de tot perilh estort.’ //

– ‘Seigner, ses faillida, / Estorta m’a e guerida / Vostr’ amors, tan fort / Que de nuill mal no·m

recort, / Tan gen m’aves tot mon mal talan mort.’”).

O que há de peculiar nessa pastorela de Gui d’Ussel é a ausência de qualquer resistência

efetiva por parte da pastora, que sequer rejeita a aproximação do cavaleiro – algo que, como

veremos, ocorre nas duas outras pastorelas amorosas que serão objeto de nossa análise. Ainda

assim, é o cavaleiro quem seduz a pastora, aproveitando o ensejo que ela lhe propicia quando

confessa a razão de sua tristeza; a forma alegre com que a jovem reage à proposta que lhe é feita

deixa claro, afinal, que suas intenções não diferiam das do cavaleiro: assim como ele, o que ela

desejava era a oportunidade de viver um novo amor que lhe ajudasse a esquecer o desgosto

causado pela traição sofrida.

2.3.3. A falsa resistência em L’autrier, el gay temps de pascor, de Joan Esteve


90

Esta composição de Joan Esteve começa com a descrição de um narrador que cavalga,

durante a Páscoa, disposto a deleitar-se, em meio ao canto dos pássaros e pleno da alegria a que

induz o verdor (“L’autrier, el gay temps de Pascor, / Quant auzi·ls auzelhetz chantar, / Per gaug

que·m venc de la verdor / M’en yssi totz sols delechar”). É no meio dessa jornada que o pastor

encontra, em um prado, uma “pastora sem par” que colhe uma flor, seguindo alguns carneiros; e

que, apesar de sua graciosa aparência, não deseja jamais fazer-se amiga de homem algum, uma

vez que é assim que tem nascimento toda a maldade (“Et en un pradet, culhen flor, / Encontrey

pastora ses par, / Cuend’e plazen, / Mot covinen. / Anhels seguen, / La flor culhen. / Dizia /

Qu’anc dia / De far amic non ac talen, / Quar via / S’en cria / Don malvestatz pren

nayssemen.”).

Certo de que jamais alguém viu tão bela jovem guardando carneiros, o cavaleiro a saúda;

ela, no entanto, reage de maneira hostil, deixando claro que sua presença não é bem-vinda e

acusando-o de ser desprovido de senso; um intrometido espião semelhante aos tolos que, guiados

pelo prazer, denigrem o amor (“Saludiey la, quar a gensor / No cre qu’om vis anhels gardar, / Et

elha mi, don ac paor, / Quar no·m vi, tro m’auzi parlar; / E dis: – ‘Senher, no m’a sabor / Quar

etz aissi faitz vostr’ anar. / Pecx etz de sen, / Non per joven / A Dieu mi ren! / Qu’anatz queren?/

Parria / Qu’espia / Fossetz de qualque folha gen, / O·us guia / Falsia / Del fals plazer qu’Amors

desmen.”). O cavaleiro trata de rechaçar essas acusações: depois de censurá-la por julgar com

base nas aparências (“–‘Greu pot hom jutjar per semblan’”), afirma que não serve a qualquer

pretexto, e que está disposto a entregar-lhe o seu amor (“Que ieu non so / Sers d’ochaizo; / Mas,

si·us sap bo, / M’amor vos do.”). A pastora, contudo, persiste em sua resistência: rejeitando a

proposta, manda que o cavaleiro siga seu caminho e procure favores noutro lugar (“... No /
91

M’agrada. / L’estrada / Seguetz, anatz, faitz vostre pro!”).

O embate persiste por mais duas estrofes, nas quais o narrador insiste em suas investidas,

sendo invariavelmente rechaçado pela pastora. Na quarta estrofe, diz o cavaleiro à jovem que não

pretende desonrá-la, mas apenas fazê-la provar do doce jogo entre amiga e amante (“Vos faray lo

dous joc sentir / Qu’entre amigua et aman / Se fai; mar ges no·us vuelh aunir”); na quinta

estrofe, assegura-lhe de que é rico, algo de que também ela poderá se aproveitar (“Que d’aver suy

rics e bastatz, / E far vos n’ai part, cors yrnelh!”). Todavia, apenas na penúltima estrofe seus

esforços são recompensados: é quando o cavaleiro, após afirmar ser tão virtuoso perante o amor

que mereceria ser coroado pelas flores que ela carrega, convida-a para que se abriguem sob uma

árvore. Finalmente a jovem cede aos galanteios, reconhecendo-se dominada pelo amor ofertado e

aceitando o convite (“–‘Na Toza, si vos sabiatz / Can gent vas Amor mi capdelh, / Cre que de las

flors que portatz / M’en fessetz leumen un capelh. / Mantenen, menan gran solatz, / Intrem no·n

sotz un arborelh.’ / Don s’esjauzi, / Quar son pretz fi / Non l’esvazi, / E dis aissi: / ‘M’agensa /

Que·m vensa, / Senher, vostr’amor ses tot si. / Plazens’, a / Parvensa, / M’avetz. Ab aitam fezem

fi!”). A última estrofe traz uma dedicatória a Guillem de Lodev e uma declaração de amor a Belh-

Rai, algo que encontramos na pastorela alegórica de Joan Esteve que analisamos neste mesmo

capítulo 79 .

O interessante jogo de sedução que encontramos nessa pastorela revela-nos uma pastora

que parece menos interessada em defender sua condição casta do que em cumprir o papel que lhe

cabe na disputa amorosa e, eventualmente, saber o que de fato pode oferecer-lhe o cavaleiro caso

ela venha a aceitá-lo como amante. A resistência oferecida pela pastora assemelha-se, afinal, à de

79
Cf. o item 2.2.4. A clivagem radicalizada: Ogan, ab freg que fazia, de Joan Esteve.
92

uma garota que deseja “fazer-se de difícil”, embora esteja na verdade interessada em entregar-se

ao seu galanteador.

2.3.4. Per Amor soi gai, de Guiraut d’Espanha

A última pastorela amorosa que analisaremos é Per Amor soi gai, de Guiraut d’Espanha

(Audiau, XVIII; De Riquer, XCV, 283), celebrada por De Riquer (1980, p. 1390) como “uma das

pastorelas mais belas e mais conhecidas da literatura provençal” 80 . Trata-se de uma composição

curta, de apenas cinco estrofes, que se seguem a um respós no qual o trovador jura fidelidade à

sua dama, nomeada pelo senhal Cors Covinen (“Corpo prazenteiro”).

A composição começa descrevendo como o narrador desperta, certa manhã, e vai para um

vergel colher violetas. Neste lugar, ouve à distância um belo canto; olhando na direção desse,

encontra uma alegre pastorinha que guarda carneiros (“Eu·m levei un bon mati, / Enans de

l’albeta; / Anei m’en en un vergier / Per cuillir violeta, / Et auzi un chan / Bel, de luenh; gardan,

/ Trobei gaia pastorela / Sos anhels guaran.”). O cavaleiro saúda a “pastorinha de rósea tez”, e

declara-se espantado por encontrá-la sozinha; oferece-se para fazer-lhe, caso ela aceite, um

delicado brial cosido com fios de prata (“–‘Dieu vos sal, Na pastorela, / Color de rozeta. / Fort

me meravill de vos / Com estaitz soleta. / Bliaut vos farai, / Si penre·l vos plai, / Menudet cordat /

Ab filetz d’argen.’”).

Adivinhando as reais intenções do cavaleiro, a pastora reage de imediato: “Por tolo vos

tenho, cavaleiro, / e cheio de vaidade, / pois de mim demandas o que não me interessa. / Pai e

80
“Una de las pastorelas más bellas y más conocidas de la literatura provenzal.”
93

mãe tenho, / e marido terei, / e, se a Deus aprouver, / eles haverão de honrar-me” (“–‘Per fol vos

ai, cavalier, / E plen d’auradura, / Quar vos mi demandas / So don non ai cura. / Pair’ e maire

ai, / E marit aurai, / E, si a Dieu plai, / Far m’aun onramen.’”); em seguida, a pastora despede-

se do cavaleiro, alegando ser chamada por seu pai, que se ocupa de arar o campo com bois (“–‘A

Dieu, a Dieu, cavalier, / Que mon paire·m crida, / Qu’ieu lo vei la jus arar / Ab bueus

sel’artigua’”).

A terceira estrofe apresenta a particularidade de ser narrada em terceira pessoa, o que foge

ao modelo padrão de pastorelas que estamos analisando; é precisamente nela que se descreve,

finalmente, o encontro entre o cavaleiro e a pastora. Após a despedida, vendo que a jovem se

afasta, o cavaleiro a persegue, toma-a pela “branca mão” e a deita sobre a relva: “três vezes a

beija / embora palavra não diga”; enfim, na quarta vez, a pastora aquiesce: “Senhor, a vós me

entrego” (“‘E quant el l’en vit anar, / Met se apres ela, / Pres la per la blanqua man, / Gieta l’en

l’erbeta; / Tres vetz la baizet, / Anc mot no·n sonet; / Quan venc al quartet: / ‘Senher, vos mi

ren’”).

Essa pastorela se assemelha bastante à anteriormente analisada L’autrier, el gay temps de

pascor, de Joan Esteve, no tocante à “falsa resistência” da pastora, razão pela qual não

necessitamos empreender aqui uma nova análise: como naquela, encontramos aqui uma jovem

cuja relutância mostra-se frágil, motivo pelo qual acaba por consentir às investidas do

galanteador.

2. 4. O modelo e as exceções
94

Há no corpus occitânico algumas outras pastorelas que, por diversas razões, não podem

ser aproximadas do modelo criado por Marcabru. É esse o caso, por exemplo, de composições em

que surge um terceiro elemento atuante, além do narrador e da pastora – como a canção de Gui

d’Ussel L’autre jorn, per aventura (Audiau, VIII; De Riquer, L, 202), em que o narrador

testemunha a discussão e a reconciliação entre uma pastora e seu noivo.

Um caso particularmente curioso são as pastorelas de Cerverí de Girona, Entre Lerid’e

Belvis (Audiau, XIX; De Riquer, CXI, 332) e Entre Caldes e Penedes 81 (Audiau, XX), que na

verdade descrevem uma mesma história: na primeira delas, o narrador – que tem, na composição,

o nome do trovador – encontra-se com uma pastora tão entretida nos divertimentos amorosos

com seu namorado que acaba por permitir que seus animais sejam roubados por um soldado. Ela

suplica ao trovador que lhe ajude, prometendo entregar-se a ele caso o faça; todavia, embora o

narrador traga de volta o animal roubado, a pastora recusa-se a cumprir sua parte do trato. A

segunda composição narra o reencontro entre o narrador e a pastora; essa diz que esteve

procurando por ele, e agora se dispõe a dar-lhe o que havia prometido. Contudo, desta feita, a

recusa parte do trovador, que se recusa a deitar-se com uma mulher tão aleivosa.

Dentre as pastorelas que não podem ser inscritas nas derivadas do modelo de Marcabru

por razões temáticas, como as já mencionadas pastorelas amorosas, há o curioso caso da

composição anônima Mentre per una ribiera (Audiau, XXIV): nela, o narrador encontra uma

porqueira que, embora descreva como gorda, repulsiva e com seios tão grandes como os de uma

inglesa, resolve seduzir. A mulher finge reagir, para depois levantar a saia e oferecer-se ao

narrador; ele, no entanto, recua diante da oferta, e sugere que gostaria de sodomizá-la. A

81
Paden (1987) atribui essa pastorela a Paulet de Marseille.
95

porqueira, contudo, nega-se a cometer esse ato que qualifica como pecaminoso, e se afasta;

todavia, após um supostamente acidental escorregão, cai com as nádegas voltadas para cima – e o

narrador, vendo com que habilidade ela foi capaz de colocar-se na posição apropriada para o ato,

decide desistir da empreitada. Trata-se, enfim, de uma pastorela cuja comicidade é evidente, e

que é interessante por dois motivos: primeiro, por representar provavelmente uma paródia do

modelo de Marcabru, já que a pastora aqui é a própria antítese da virtude; segundo, por

apresentar elementos que poderíamos qualificar como “fetichistas” – não apenas o convite ao

coito anal, mas também a relutância do narrador em obter da pastora qualquer coisa que possa ser

obtida sem resistência. Não cabe, todavia, incorporá-la ao corpus de pastorelas alegóricas

derivadas de L’autrier, jost’ una sebissa.

A despeito dessas exceções, consideramos que as muitas composições que seguem de

perto o modelo de Marcabru são uma demonstração da influência exercida também sobre esse

gênero pelo referido trovador 82 . Enquanto invenção literária, L’autrier, jost’ una sebissa

representou uma nova etapa na história das pastorelas – uma história que se prolongaria também

para outros âmbitos poéticos, como veremos nos capítulos finais deste trabalho. Todavia, antes

disso, e antes de analisar a pastorela como fenômeno cultural na Idade Média, procuremos

compreender melhor a especificidade dessas composições occitânicas em um cotejo com as

pastorelas francesas e a antiga tradição da poesia pastoral.

82
Quantificada, essa análise revela que 44% de todas as pastorelas compostas no âmbito occitânico seguem o
modelo perceptível na obra de Marcabru. Se, por outro lado, relaxarmos nossos critérios para incluir todas as
pastorelas que demonstram afinidades estruturais com o texto de Marcabru, inclusive as pastorelas pseudo-alegóricas
e a composição paródica mencionadas, temos uma influência que chega a 64%. Acreditamos que qualquer um desses
índices representa um forte argumento em favor da hipótese de uma predominância do modelo de Marcabru.
96

3 PASTORELAS E PASTORAIS

Nos capítulos anteriores, mencionamos inúmeras vezes que há profundas diferenças entre

as pastorelas occitânicas e as francesas, bem como entre aquelas e a tradição pastoral proveniente

da Antigüidade. Nosso objetivo neste capítulo é apresentar de maneira mais detalhada essas

diferenças, de forma a fundamentar melhor as distinções que podem ser constatadas entre esses

diversos modelos.

Começaremos tratando do modelo francês de pastorela, que apresentaremos sempre

visando ressaltar em que difere do modelo occitânico criado por Marcabru 83 ; em um segundo

momento, e adotando a mesma perspectiva, trataremos da antiga tradição pastoral. Observemos,

já de início, que adotaremos aqui os cinco elementos anteriormente mencionados como

característicos das pastorelas stricto sensu 84 , excluindo por conseguinte certas variantes francesas

que, embora muito comuns, são melhor qualificadas como composições pastorais; é o caso, por

exemplo, das obras nas quais encontramos um cavaleiro que, enquanto atravessa um cenário

pastoril, depara-se com um grupo de pastoras, que atentamente contempla 85 . Em geral, essas

composições encerram uma descrição dos costumes, dos jogos e da música das camponesas

(Bartsch, II, 30; II, 36; II, 41; II, 44; II, 73; II, 77; III, 15; III, 21; III, 22; III, 27), embora

83
O que não quer dizer que alguns trovadores franceses não tenham elaborado pastorelas em que o modelo de
Marcabru é aproveitado: é o caso, por exemplo, de Perrin d’ Angicourt, trovador de meados do século XIII que
compôs Au tens nouvel (TMP, 66), obra que pode ser qualificada como pastorela alegórica, ou da composição
anônima do século XIII Quant pré reverdoient, que chantent oisel (TMP, 118). A escassez de exemplares desse tipo,
no entanto, apenas reforça a inferência de que são textos desviantes com relação ao padrão de pastorelas francesas.
De resto, os critérios empregados para a seleção do corpus aqui estudado – ou seja, a justificativa para o fato de
enfocarmos apenas pastorelas occitânicas, médio-latinas e galego-portuguesas – foram expostos na Introdução deste
trabalho.
84
Cf. o capítulo 2. A invenção literária.
85
Encontratemos modelos bastante similares na lírica médio-latina (cf. 7.2. Pastorelas e pastorais na lírica
latina medieval) e galego-portuguesa (cf. 8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas).
97

ocasionalmente o cavaleiro possa participar das danças (Bartsch, II, 22; II, 58) – o que em uma

das pastorelas enseja a hostilidade dos camponeses, que se apressam a expulsar o intruso com

cachorros e varas (Bartsch, II, 22). Similares a essas são algumas composições pastorais em que o

cavaleiro ocupa o mero lugar de testemunha de um encontro ou embate amoroso entre pastores

(Bartsch, II, 27, II, 47; II, 53; II, 70; III, 16; III. 37; III, 38; III, 44).

3.1. As pastorelas francesas

Já tivemos a oportunidade de mencionar que, embora a mais antiga pastorela

documentada seja occitânica – precisamente a composição de Marcabru L’autrier jost’una

sebissa, composta pelo menos cinqüenta anos antes da primeira pastorela documentada em

francês antigo (ZINK, 1972, p. 42-43) –, há uma espantosa diferença entre o número de pastorelas

compostas pelos trovadores occitânicos e pelos trovadores franceses. A coletânea de pastorelas

occitânicas organizada por Jean Audiau (1973), reúne pouco mais de duas dezenas de

composições; de outro lado, a compilação de exemplares franceses realizada por Karl Bartsch

(1967) reúne mais de uma centena e meia de pastorelas.

A vasta quantidade de pastorelas francesas compreende uma variedade de modelos

bastante superior aos presentes no corpus occitânico. Como demonstramos no capítulo anterior,

mais da metade das pastorelas compostas em langue d’oc segue um mesmo modelo – aquele

criado por Marcabru – ou pode ser qualificado como uma variação desse; quanto às obras

restantes, não nos parece que haja entre elas uma regularidade que nos permita falar em outros

modelos, de modo que julgamos mais adequado considerá-las iniciativas isoladas de trovadores,
98

possivelmente influenciados por outros modelos de pastorelas. É provavelmente esse o caso da

pastorela de Gui d’Ussel L’autre jorn, per aventura (Audiau, VIII; De Riquer, L, 202), em que se

faz presente Robin, o namorado da pastora que costuma freqüentar os exemplares franceses.

No caso do corpus em langue d’oïl, a grande quantidade de exemplares comporta um

número mais amplo de modelos que admite, inclusive, uma variação de comportamentos da

pastora que não encontramos nas pastorelas occitânicas. Embora não pretendamos fazer um

estudo exaustivo das composições francesas, analisaremos alguns desses modelos 86 , visando

demonstrar suas diferenças em relação ao modelo alegórico de pastorelas presente no âmbito

occitânico.

3.1.1. A vitória da pastora

Também nas composições francesas há pastoras que se recusam a entregar-se para o

cavaleiro em nome de sua honra; não obstante, no corpus francês a alegação da pastora é,

invariavelmente, a fidelidade ao seu namorado, sem que sejam evocados motivos religiosos ou

associados à castidade como ocorre nos exemplares occitânicos 87 . É esse o caso de composições

como De Saint Quatin a Cambrai (Bartsch, II, 5) ou L’autrier mi chivachoie (Bartsch, II, 33), em

que o cavaleiro encontra-se com uma pastora e suplica por seu amor, mas é rechaçado em nome

da fidelidade que a jovem nutre por seu namorado, Robin. O que fortalece a afirmação de que o

86
Utilizarei como base para minha análise as classificações elaboradas por Piguet (1927) e Jones (1930).
Como a pastorela francesa não será objeto de uma investigação mais profunda neste trabalho, serão citados apenas
alguns exemplos para cada modelo analisado; uma listagem extensiva de exemplares pode ser encontrada nas obras
desses autores.
87
À exceção, é claro, das raras pastorelas francesas que denotam uma influência de Marcabru, anteriormente
mencionadas; cf. a nota 83.
99

que está na raiz dessa recusa não são motivos associados ao sentimento de religiosidade, mas sim

aos costumes sociais, é que esse modelo opõe-se àquele em que a pastora, embora a princípio

proteste sua fidelidade ao seu noivo, acaba cedendo às investidas do cavaleiro quando ele lhe

oferece um presente, o que analisaremos mais adiante 88 .

Há também composições em que a pastora acaba vencendo através da força ou de

ameaças. É esse o caso de Hui main par un ajornant (Bartsch, II, 61), composição em que a

jovem trata de afirmar que não muito longe estão seus amigos Guerinet e Robeçon, que poderão

protegê-la se necessário; similar é L’autrier chevauchoie (Bartsch, II, 79), obra em que a pastora

ameaça o cavaleiro afirmando que poderá ser defendida por seus amigos ou seu cachorro. Um

caso peculiar é o de Chevachai mon chief enclin (Bartsch, II, 4), pastorela em que a jovem,

quando se vê enlaçada pelo cavaleiro contra a sua vontade, debate-se, arranha-o e morde-o, o que

o afasta num primeiro momento; depois, quando o narrador insiste, ela grita com tal força que,

embora estejam no meio da floresta, os outros pastores acabam por escutá-la. Assim, ao fim o

cavaleiro vê-se cercado por um bando hostil liderado por Robin, que, ameaçando-o com uma

vara, expulsa-o daquele lugar. Cabe ressaltar que em nenhuma das pastorelas occitânicas que

analisamos no capítulo anterior havia esses elementos de resistência física, importante diferença

de que trataremos mais adiante89 .

Outra estratégia de defesa empregada pelas pastoras nas composições francesas,

geralmente utilizada para a obtenção de um efeito cômico, é uma espécie de emulação dos

subterfúgios utilizados pelos cavaleiros: em diversos exemplares, as jovens fingem aceitar as

propostas dos cavaleiros – o que, no entanto, é apenas uma forma de ganhar tempo até que surja

88
Cf. 3.1.2. A vitória do cavaleiro.
89
Cf. 3.1.4. O embate da carne contra o embate do espírito.
100

uma oportunidade para escapar. Em Or voi yver defenir (Bartsch, II, 15), a pastora finge aceitar a

proposta do cavaleiro, mas obsta que o lugar em que se encontram é demasiado exposto; exige

que sigam para a floresta, e solicita ao narrador que aguarde para que possam ter certeza de que

ninguém a segue – no entanto, assim que entra na floresta, a pastora foge, abandonando o ávido

cavaleiro. Em outro curioso exemplar, L’autrier tout seus chevauchoie (Bartsch, II, 4), a pastora

alega que precisa reunir seu rebanho, devendo o narrador aguardar enquanto ela o faz; contudo, a

jovem aproveita para procurar refúgio junto de seu pai, frustrando as expectativas do cavaleiro.

3.1.2. A derrota da pastora

Diversas são as formas através das quais pode o cavaleiro triunfar nos exemplares

franceses. Nessas pastorelas, é bastante comum que as jovens acabem cedendo diante das

propostas dos cavaleiros – em alguns casos, sem maiores exigências. No caso de L’autrier estoie

montez (Bartsch, III, 14), por exemplo, a única exigência da jovem é que o presente prometido

lhe seja entregue antes de ela entregar-se àquele que a corteja; em outros exemplares, como em

L’autrier chivachoie / leis un boix... (Bartsch, II, 46), a pastora a princípio protesta fidelidade ao

seu noivo Robin, mas acaba seduzida pelo cinturão de prata que lhe é oferecido pelo cavaleiro.

Há, finalmente, pastorelas nas quais apenas as belas palavras proferidas pelo narrador são

suficientes para assegurar-lhe a vitória, como em L’autre jour par un matin / m’aloie desdure

(Bartsch, II, 31); em L’autrier me chevalchoie / toute ma senturelle (Bartsch, II, 9), o cavaleiro

argutamente insere em seu discurso promessas de uma vida confortável e luxuosa. A jovem que

encontramos em L’autrier levai ains jor (Bartsch, II, 12), diante do que lhe promete o cavaleiro,
101

não hesita em abandonar Robin sem qualquer pudor, acreditando inclusive nas promessas de

fidelidade que lhe faz o cavaleiro. Esse último caso em particular pode ser aproximado das

pastorelas occitânicas que denominamos “amorosas” na análise realizada no capítulo anterior 90 ;

trataremos dessa relação mais adiante.

Sem dúvida, o tipo mais notório de pastorela em langue d'oïl no qual ocorre a derrota da

pastora é aquele em que o cavaleiro obtém o que deseja da pastora por meio da violência sexual.

Recentemente, esse modelo de pastorela francesa recebeu particular atenção devido a uma

polêmica que dois estudiosos sustentaram acerca de sua natureza e interpretação no âmbito

acadêmico estadunidense; nas próximas páginas, buscaremos realizar uma síntese dessa

discussão. Como se trata de um assunto particularmente extenso, conquanto indiscutivelmente

relevante – sobretudo por constituir a última grande polêmica que conhecemos em torno das

pastorelas –, apresentaremos detalhadamente as argumentações de cada uma das partes

envolvidas na discussão, o que decerto será uma boa forma de abordar a questão da violência

sexual nas pastorelas.

3.1.2.1. A argumentação de Kahtryn Gravdal: camuflagem e celebração do estupro

O ponto de partida do embate foi a publicação, em 1985, de um artigo de Kathryn Gravdal

(1985) que explicitava, já em seu polêmico título – “Camouflaging rape” –, sua visão acerca das

pastorelas. Estudiosa de forte orientação feminista, Gravdal concentraria suas análises em um

exame da violência sexual presente nas composições medievais.

90
Cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas. Faremos a referida aproximação em 3.1.4. O embate da carne
contra o embate do espírito.
102

Já no início do artigo (1985, p. 361), afirma Gravdal que, dentre as diferenças perceptíveis

entre os poemas pastorais da tradição vergiliana e as pastorelas medievais, há uma que se destaca

enquanto uma “inovação... radicalmente descontínua com a tradição pastoral” 91 : nestas

composições, “o modo bucólico é ... interrompido por um ato de violência que irrompe no

contexto da tradição pastoral: o estupro” 92 . Consoante Gravdal (1985, p. 362), em um quinto das

pastorelas francesas a violência sexual faz-se presente, o que leva a estudiosa a afirmar que “os

antigos textos franceses não são canções sobre disputas poéticas ou a vida bucólica, mas

celebrações do estupro. Mesmo quando elas não representam de fato o estupro, consistentemente

celebram sua ameaça” 93 .

De acordo com Gravdal, a mais notável característica do estupro como é representado nas

pastorelas francesas é sua invisibilidade: se no âmbito medieval sua presença não afetou em nada

a popularidade do gênero, na contemporaneidade ela é quase completamente ignorada pelos

críticos literários que, a seu ver, rejeitam o que a estudiosa caracteriza como uma “trivialização

do estupro em uma era supostamente imbuída da doutrina do amor cortês” 94 . Na verdade,

Gravdal observa que o estupro era efetivamente aceitável para a audiência medieval e permanece

invisível para os modernos graças, em grande parte, às estratégias retóricas deliberadamente

utilizadas em sua representação.

As pastorelas medievais, afirma a estudiosa, primeiramente solicitam uma cumplicidade

do receptor, o que faz com que as composições atuem sobre nossos pontos cegos e preconceitos

91
“One medieval innovation, however, is radically discontinuous with the pastoral tradition.”
92
“But the bucolic mode is then interrupted by an act of violence that is startling in the context of the pastoral
tradition: rape.”
93
“The Old French texts are not songs about poetry-contests or bucolic life, but celebrations of rape. Even
when they do not actually depict rape, they consistently celebrate its threat.”
94
“... this trivialization of rape in an era supposedly imbued with the doctrine of courtly love.”
103

acerca da violência sexual; em segundo lugar, as pastorelas encerram uma mensagem de

intimidação e repressão; finalmente, uma análise textual mais cuidadosa revela que o gênero

acaba por trair a si mesmo, na medida em que suas estratégias retóricas denunciam sua

mensagem ideológica (1985, p. 362-363).

Visto que a teologia medieval representava as mulheres como lascivas e movidas pelo

instinto, a audiência das pastorelas estava preparada para acreditar que elas, de fato, desejavam

ser estupradas, dado que desejavam o sexo de qualquer maneira. “A pastorela muitas vezes

mostra o estupro não como uma forma de violência, mas como uma forma de sexo e, por

conseguinte, de prazer feminino” 95 , afirma a estudiosa (1985, p. 364), que cita como exemplos

aquelas composições em que as pastoras, embora a princípio resistam às investidas masculinas,

acabam por agradecer ao homem depois que esse a violenta, solicitando que ele retorne

posteriormente; mencionemos apenas um dos exemplares mais representativos desse modelo,

também referido por Gravdal: a pastorela de Jehans de Nuevile L'autrier par un matinet (Bartsch,

III, 35) em que a pastora, embora grite e chore enquanto é violentada, acaba por entregar-se ao

prazer, confessando que toda a alegria que possui foi-lhe proporcionada por ele. Consoante

Gravdal, a tolerância ao estupro nas pastorelas francesas também estava relacionada à legislação

então vigente na França, que não previa julgamento imediato para esse tipo de violência: somente

era passível de punição o estupro de virgens cujo casamento já havia sido acertado, incluindo o

pagamento do respectivo dote. Por outro lado, Gravdal argumenta que as pastorelas também estão

associadas à visão medieval acerca das camponesas; é conhecida a recomendação de Andreas

Capellanus (2000, p. 206-208) segundo a qual é perda de tempo procurar instruí-las na arte de

95
“The pastourelle often shows rape not as a form of violence but as a form of sex, and therefore of female
pleasure.”
104

amar: melhor age o cavaleiro que, uma vez por elas atraído, toma-as pela força, sem mais

delongas.

Dentre as estratégicas retóricas empregadas pelas pastorelas para “camuflar” o estupro,

considera Gravdal (1985, p. 367) que uma das mais relevantes é o humor, que opera de modo a

inscrever o estupro como algo que não precisa ser estudado: trata-se de “apenas uma parte da

piada” 96 . Algumas das técnicas utilizadas para explorar essa comicidade são os nomes burlescos

conferidos aos personagens – um cavaleiro chamado Putepoinne, uma pastora chamada Englebert

de Haickecort – e as canções lúbricas entoadas pelas pastoras enquanto guardam suas ovelhas;

mais do que isso, ocorrem por vezes inversões estruturais que visam elaborar pastorelas que

parodiam o próprio gênero; o fato de também essas envolverem cenas de estupro leva Gravdal a

concluir que são “a melhor prova do verdadeiro assunto do gênero” 97 . Enquanto performance

musical, as pastorelas também possibilitam o emprego de estratégias relacionadas à

“camuflagem” do estupro advogada pela estudiosa. Aparentemente, as pastorelas eram

representadas sob a forma de apresentações que incluíam música e dança; não obstante, as

composições em que há cenas de estrupro freqüentemente atribuem o refrão à pastora, “portanto

forçando-a a ser tão alegre depois do estupro quanto ela era antes da aparição do cavaleiro” 98 ,

argumenta Gravdal.

A teórica procura justificar o fato de caracterizar todo o gênero como uma “celebração do

estupro”, embora tome como objeto de análise apenas um quinto das composições do gênero,

argumentando que todos os outros quatro quintos de pastorelas “preparam e justificam a violência

96
“No need, therefore, to study rape: it is only a part of the joke.”
97
“... better proof of the genre's true subject.”
98
“the texts in which a rape is depicted frequently attribute the stanzaic to the shepherdess, thereby forcing
her to be as cheerful after the rape as she was before the knight appeared.”
105

sexual nos outros” 99 . Argumenta Gravdal (1985, p. 369) que, nessas outras composições, as

pastoras são representadas de uma forma que enfatiza todos os estereótipos relacionados à mulher

na mentalidade medieval: “a maioria das pastorelas consolidam nossa má-fé para com a pastora,

que é representada como gananciosa, ambiciosa, ardilosa ou traiçoeira, e que está – acima de tudo

– interessada em sexo” 100 , afirma a teórica, que prossegue em sua análise: “Assim, quando

Marion é estuprada (uma em cada cinco vezes), nós estamos totalmente preparados para aceitar

isso. Nós fomos levados a suspeitar que Marion é ‘aquele tipo de garota’” 101 . Por fim, conclui

Gravdal que “o corpus funciona intertextualmente, então, como uma estratégia retórica,

argutamente dizendo-nos que a pastora quer, aguarda, goza ou merece o estupro.” 102

Finalmente, Gravdal coloca uma questão final: se é possível admitir a popularidade das

pastorelas no âmbito medievo, uma vez que não havia qualquer motivo para haver uma

resistência do leitor perante a descrição das cenas de estupro – “o estupro já estava posto, já era

aceitável, já era legitimado, já era divertido” 103 – , porque os leitores modernos não souberam

resistir e denunciar essa “celebração do estupro”?

Para a teórica, isso ocorre porque a vítima de violência nas pastorelas é uma camponesa, o

que acabou por constituir um embate de classes sociais que resultou numa percepção equivocada

acerca do gênero: os críticos modernos foram convencidos de que “o verdadeiro assunto da

99
“The songs in which rape does not occur prepare and justify the sexual violence in the others.”
100
“the majority of the pastourelles establish our bad faith in the shepherdess, who comes to be represented as
greedy, ambitious, deceitful, or unfaithful, and who is – above all – quite interested in sex.”
101
“Thus, when Marion is raped (one in five times), we are fully prepared to accept it. We have been led to
suspect that Marion is ‘that kind of girl’”.
102
“The corpus functions intertextually, then, as a rhetorical strategy, slyly telling us that the shepherdess
wants, precipitates, enjoys, or deserves rape.”
103
“Rape was already in place, already acceptable, already legitimized, already funny.”
106

pastorela é a classe social, e que o gênero é uma forma de sátira social ou alegoria política”104 .

Consoante Gravdal (1985, p. 370), essa leitura levou os estudiosos a não perceber a literalidade

dos trechos relacionados ao estupro, que passou a ser compreendido como algo simbólico ou

alegórico; mais correto seria, afirma a teórica, enxergar além desse debate entre a camponesa

“vilaine” e o cavaleiro “courtois” e perceber que o que está em questão é um conflito entre

gêneros: “a retórica da classe social camufla a questão do gênero e o tema da violência

sexual” 105 , afirma a estudiosa, o que pode ser percebido quando se nota que, em diversos casos, a

pastora não é efetivamente uma camponesa – seja porque se trata efetivamente de uma mulher

oriunda de um estrato social mais elevado que apenas se veste como camponesa, seja porque seu

discurso apresenta uma elaboração que não pode ser associada de maneira verossímil com uma

camponesa.

Desse modo, conclui Gravdal (1985, p. 372-373) que as pastorelas representam

efetivamente um embate entre dois elementos do mesmo nível social: o poeta e a dama da corte.

Se ela fala em nome de sua dignidade, sua voz e sua autonomia, ele fala em nome de seu direito

de controlá-la, dominá-la e estuprá-la; contudo, por mais que argumente, vê-se incapaz de

manter-se a salvo da violência masculina no âmbito do amor cortês. Afirma a estudiosa que,

afinal, sua análise da pastorela acaba por confirmar as recentes teorias revisionistas acerca do

amor cortês enquanto mera ficção literária que não possibilitou qualquer mudança real no status

das mulheres, e que acabou por proporcionar novas formas de degradação: “Se o poeta cortês não

pode humilhar uma mulher em sua lírica cortês, ele pode vesti-la como camponesa e colocá-la na

104
“the true subject of the pastourelle is social class, and that the genre is a form of social satire or political
allegory.”
105
“The rhetoric of social class camouflages the question of gender and the issue of sexual violence.”
107

pastorela, onde ela não tem como defender a si mesma” 106 ; trata-se, portanto, de colocar as

mulheres em seu lugar – o “lugar das mulheres” que, não obstante, é construído pelos homens.

3.1.2.2. A réplica de William Paden: o lugar da ficção

Quatro anos depois da publicação do artigo de Gravdal, a mesma Romanic Review

publicou uma réplica de William Paden intitulada “Rape in the pastourelle” (1989). Nesse artigo,

Paden, que dois anos antes publicara uma vasta compilação de pastorelas medievais (1987),

refuta a argumentação de Gravdal, objetando principalmente que se trata de uma visão

reducionista e tendenciosa que acaba por distorcer e mascarar a diversidade própria de um

fecundo gênero poético. Nas próximas páginas, buscaremos sintetizar a argumentação do teórico

estadunidense.

Já no segundo parágrafo de seu artigo, Paden apresenta os três pontos principais sobre os

quais incidirá sua contra-argumentação; a seu ver, Gravdal “(1) deixa de considerar poemas em

que a união sexual ocorre de outras formas, que não através do estupro; (2) ela distorce os

poemas em que não ocorre nenhuma união sexual; e (3) o modelo explanatório que ela propõe

deixa muitas questões sem resposta” 107 (1989, p. 331). Uma questão adicional, conquanto não

menos relevante, é que Gravdal analisa somente as pastorelas francesas, procedimento em que

arbitrariamente isola essas composições de suas congêneres contemporâneas em outras línguas;

106
“If the court poet cannot humiliate a woman in his courtly lyric, he can dress her as a peasant and place
her in the pastourelle, where she is helpless to defend herself.”
107
“(1) she fails to consider poems in which sexual union occurs otherwise than through rape; (2) she distorts
the poems in which no seuxla union occurs at all; and (3) the explanatory model which she proposes leaves too many
questions unanswered.”
108

Paden, por sua vez, pretende levar em consideação também esses outros exemplares, a fim de

propor um modelo para análise mais adequado (1989, p. 332).

Um problema preliminar detectado por Paden está relacionado à própria definição do

gênero. Objeta o teórico que Gravdal não define explicitamente que tipos de poemas qualifica

como pastorelas; ao invés disso, limita-se a realizar sua análise a partir de uma seleção de poemas

extraídos das antologias de Bartsch (1967) e Rivière (1974-1976); não obstante, a partir de suas

conclusões o leitor do artigo pode ser levado a concluir que a “celebração do estupro” não é

propriamente uma interpretação, mas sim uma definição do gênero – definição que, observa

Paden, acaba por excluir uma parte considerável dos poemas usualmente qualificados como

pastorelas. Paden propõe-se a adotar basicamente os critérios que já adotara em sua antologia

para definir as pastorelas – uma composição pastoral em que se fazem presentes um homem e

uma jovem mulher, um enredo que envolve uma descoberta e uma tentativa de sedução, uma

retórica que envolve narrativa e diálogo e o ponto de vista masculino; não obstante, consente em

modificar essa definição em um ponto: não levará em conta apenas tentativas de sedução, mas

apenas atos concretos de violência sexual (1989, p. 332).

Os resultados a que Paden chega vão claramente de encontro às conclusões de Gravdal;

para explicitar melhor a argumentação, reproduzimos abaixo a tabela constante do artigo (1989,

p. 332):
109

1 2 3 4 5
Língua Estupro Outra união Nenhuma união Impossível Total
sexual sexual afirmar se a
cópula ocorre
Francês 20 (18%) 36 (33%) 45 (41%) 8 (7%) 109
108
Não-Francês 6 (6%) 28 (30%) 55 (59%) 5 (5%) 94
Totais 26 (13%) 64 (32%) 100 (49%) 13 (6%) 203

Nas pastorelas francesas, o estupro ocorre em apenas 18% das composições; a união

sexual não violenta – ou seja, que não envolve o estupro – ocorre em 33% das obras; em 41%,

não há qualquer união sexual, e em 7% das pastorelas francesas não é possível afirmar se há ou

não a relação sexual. Nas outras línguas, o estupro é ainda menos freqüente: ocorre apenas em

6% dos textos, enquanto a incidência de composições em que não há união sexual aumenta para

59%. Constam do corpus 23 pastorelas occitânicas e 22 serranillas hispânicas em que não há

nenhuma ocorrência de estupro. Observe-se por fim que, analisando-se em conjunto todas as

línguas, o estupro aparece em apenas 13% das pastorelas, o que permite a Paden concluir que a

afirmação de Gravdal de que “o estupro é o assunto do gênero deve ser justificada contra

evidência prima facie em favor do contrário” 109 (1989, p. 333).

Como observa Paden, há pastorelas em que os personagens falam explicitamente sobre o

estupro. Em uma composição francesa de Raoul de Beauvais (Bartsch, III, 25), o narrador, ao

deparar-se com a raiva da pastora diante de suas investidas, garante-lhe que não usará de coerção,

referindo-se ao estupro como “tel vilanie”(‘tal vilania’); o mesmo tipo de atitude pode ser

108
As outras línguas analisadas por Paden são: occitânico (23 pastorelas), espanhol (22), latim (16), alemão
(14), italiano (5), inglês (3), galego-português (3), franco-provençal (2), romance em kharjas (2), galês (2), gascão
(1) e chinês (1).
109
“... her claim that rape is the point of the genre must be justified against prima facie evidence to the
contrary.”
110

percebido em algumas pastorelas occitânicas 110 (1989, p. 334) – dentre elas, a pastorela de Joan

Esteve L’autrier, el gay temps de pascor, em que essa atitude do narrador acaba por granjear a

afeição da pastora 111 . Paden também observa que, quando o homem ou a mulher mencionam

explicitamente o estupro nas composições, ele praticamente nunca se concretiza 112 ; assim,

conclui o teórico que “se a narrativa contém o estupro em cerca de um quinto das composições, e

se o diálogo se refere a ele quase sempre a fim de suprimir essa possibilidade, o gênero

dificilmente poderia parecer dedicado a uma celebração do estupro” 113 (1989, p. 334).

Por outro lado, argumenta Paden que há pastorelas nas quais o que ocorre é de fato uma

negociação por favores sexuais, o que pode ser interpretado como prostituição, mas não como

estupro; é esse o caso das pastoras que cedem diante das ofertas de presentes feitas pelos

cavaleiros, algo que analisamos anteriormente 114 . Analisando-se o contexto histórico em que

essas pastorelas foram compostas, é possível concluir que esse tipo de situação nada tinha de

extraordinária; de fato, durante o século XIII – período de que datam as pastorelas em que a

prostituição ocorre de maneira mais nítida – a legislação era tolerante para com a prostituição,

desde que ela ocorresse fora dos muros da cidade: “há razões para suspeitar, portanto, que um

encontro de um homem com uma pastora nos campos fora da cidade poderia imediatamente

110
Paden lista as duas primeiras pastorelas do ciclo de Guiraut Riquier e Entre Lerid’e Belvis, de Cerverí de
Girona.
111
O que ficou demonstrado em nossa análise da composição, no capítulo anterior; cf. 2.3.3. A falsa
resistência em L’autrier, el gay temps de pascor, de Joan Esteve.
112
De fato, em todo o corpus há apenas duas composições em que a pastora menciona o estupro e o narrador
apela para a violência sexual: cf. Paden, 1989, p. 334, n. 10.
113
“If the narrative contains rape in about one-fifth of the poems, and if the dialogue refers to it almost in
order to suppress the possibility, the genre hardly seems dedicated to celebration of rape.”
114
Cf. 3.1.2. A derrota da pastora.
111

ensejar a possilidade de prostituição”, observa o teórico, que conclui: “uma possibidade que

apenas seria realizada se o homem o propusesse e a mulher o aceitasse” 115 (1989, p. 336).

Com efeito, há diversas pastorelas em que a mulher recusa a oferta do cavaleiro e a cópula

não ocorre; ora, “se o gênero fosse uma celebração do estupro, ele ocorreria preferivelmente sob

essas circunstâncias” 116 . É esse, na verdade, o caso da pastorela arquetípica de Marcabru, onde a

pastora trata de explicitamente afastar a possibilidade de entregar-se em troca de presentes, ao

afirmar: “não quero minha virgindade / trocar, pelo nome de prostituta!”117 . A essas pastorelas,

devemos acrescentar aquelas em que a pastora consente em entregar-se ao cavaleiro porque

realmente o deseja – e tem prazer durante o ato sexual 118 . Assim, o que fica claro é que,

conquanto um número significativo de pastorelas envolvam o estupro, há um número superior de

composições que descrevem uma união sexual mutuamente consentida – seja por simples

sedução, por uma sedução que tangencia a prostituição ou pela prostitução propriamente dita

(PADEN, 1989, p. 341).

Finalmente, Paden observa que a argumentação de Gravdal deixa de levar em conta uma

questão fundamental quando negligencia a ficcionalidade da pastora: de fato, a mulher presente

na composição não é uma pastora real e jamais o foi; ela é um personagem que existe apenas

enquanto criação literária. O problema com o modelo de Gravdal, argumenta o teórico, é que nós

não podemos considerar legitimamente que a pastorela é uma celebração do estupro histórico real

justamente porque, se o fazemos, ignoramos os limites intrínsecos ao gênero literário: “nós

115
“There are grounds to suspect, then, that an encounter of a man with a shepherdess in the fields outside a
city could immediately raise the possibility of prostitution, a possibility which would be realized only if the man
proposed it and the woman accepted.”
116
“if the genre were a celebration of rape, it would seem likely to occur under these circumstances.”
117
Cf. nossa tradução da obra de Marcabru no início do capítulo 2. A invenção literária (vv. 69-70).
118
Note-se que é esse o caso, não exclusivamente, das pastorelas amorosas que analisamos no capítulo anterior
(cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas).
112

sabemos pouco sobre o real estupro medieval e, mesmo se soubéssemos mais, consideraríamos a

pastorela uma fonte não-confiável sobre o comportamento sexual histórico” 119 . Se formos

considerar a pastorela uma celebração do estupro, observa Paden, devemos considerá-la uma

celebração na forma de uma fantasia erótica; contudo, ainda assim a qualificação seria injusta,

uma vez que só poderia ser aplicada à minoria de composições que encerram o estupro (PADEN,

1989, p. 344).

Gravdal chegou a publicar, dois anos após a publicação do artigo de Paden (1991), uma

versão revista de seu artigo que encerra, em certa medida, uma tréplica; não obstante, não nos

parece efetivamente possível considerar que haja qualquer alteração representativa em seus

pontos de vista. Dessa maneira, assumimos que, nos dois artigos aqui apresentados de forma

sintética, são aventados os principais pontos acerca das pastorelas em que ocorre a violência

sexual, ou seja, as composições em que a pastora é derrotada através do estupro; um modelo que,

como referido por Paden, não se faz presente nas composições occitânicas.

3.1.3. A pastora e o lobo

Um último tipo de pastorela que analisaremos caracteriza-se por envolver um enredo em

particular: o encontro da pastora com um lobo – enredo que, no âmbito medieval que nos

interessa, ocorre em duas pastorelas francesas (Bartsch, II, 12; II, 14) e em uma composição

médio-latina que será nosso objeto de análise no momento propício 120 ; e que, não obstante,

119
“We know little about real medieval rape, and even if we knew more, we would find the pastourelle an
unreliable source of information about historical sexual behavior.”
120
Cf. 7.3.2. Lucis orto sidere: a dupla alegoria.
113

influenciaria profundamente a tradição poética pós-medieval das pastorelas, estando na origem de

mais de cinqüenta exemplares pós-trecentistas121 .

A estrutura narrativa fundamental desse modelo de composições, tomado lato sensu,

apresenta-nos uma pastora que está vigiando seu rebanho quando surge um lobo, subitamente, e

rouba uma de suas ovelhas. A jovem chora e, às vezes, faz promessas amorosas para qualquer um

que se dispuser a ajudá-la e resgatar a ovelha. Um cavaleiro, que por acaso está passando pelas

proximidades, apressa-se a socorrer a pastora, e logra resgatar a ovelha; isso feito, demanda a

recompensa que a pastora prometera. A jovem, contudo, esquiva-se apresentando diversas

desculpas, e termina oferecendo-lhe a lã da ovelha quando essa for tosquiada; o cavaleiro retruca,

afirmando que não é mercador nem comerciante de lã, e que deseja ter alguma recompensa

amorosa, como um beijo. Ao fim, a pastora usualmente o recusa, conquanto muitas vezes a

pastorela se encerre de forma indefinida 122 .

As duas pastorelas francesas, compostas certamente num momento de emergência ou

elaboração inicial do próprio modelo, apresentam desfechos diversos. Em L’autrier levai ains jor

(Bartsch, II, 12), o lobo carrega uma das ovelhas mais belas do rebanho; o cavaleiro a resgata e

demanda o amor da pastora, sendo atendido em seu desejo, a despeito da resistência representada

por Robin, o noivo da jovem. Por outro lado, em L’autrier me chevalchoie / les un sapinoie

(Bartsch, II, 14), conquanto a pastora prometa entregar-se ao cavaleiro se ele trouxer de volta o

animal roubado, ela recusa-se a fazê-lo quando lhe é devolvida a ovelha, e grita para que Robin

venha socorrê-la.

121
Para um catálogo, cf. Jones, 1931, p. 62-63. Em nossa análise sobre esse modelo de pastorelas, seguiremos
de perto o acurado estudo realizado por esse teórico.
122
Baseio essa síntese na sinopse elaborada por Jones (1931, p. 48-49).
114

Esse último exemplar é particularmente interessante porque, como observou Piguet (1927,

p. 108), é possível entrever semelhanças entre ele e a pastorela de Cerverí de Girona, Entre

Lerid’e Belvis (Audiau, XIX; De Riquer, CXI, 332), que analisamos no capítulo anterior 123 – o

que é sugestivo de alguma relação concreta entre as referidas composições, muito embora não

tenhamos meios de constatar sua existência a partir dos dados por ora disponíveis. Não obstante,

é essa a única aproximação possível entre esse modelo de pastorelas francesas e as obras

occitânicas, visto que nenhuma outra composição em langue d’oc apresenta características que

nos permitam aproximá-la desse modelo.

123
Cf. Cap. 2, 2. 4. As exceções.
115

3.1.4. O embate da carne contra o embate do espírito

Tendo apresentado os principais modelos de pastorelas francesas, podemos enfim cotejá-

las com o modelo occitânico elaborado a partir da composição de Marcabru, a fim de

compreender devidamente a clivagem perceptível entre um e outro.

Já no título deste item procuramos sugerir o que, a nosso ver, estabelece de maneira mais

nítida a referida clivagem entre as composições em langue d’oc e langue d’oïl, a saber: o

elemento de resistência física das pastoras. De fato, nos exemplares occitânicos que seguem o

modelo de Marcabru jamais encontramos o embate físico entre o cavaleiro e a jovem: as

tentativas de sedução ocorrem, invariavelmente, em um âmbito dialógico, razão pela qual

falamos em um “embate do espírito” – em nítida oposição ao “embate da carne”, físico, que

ocorre em diversas composições francesas. De resto, como anteriormente afirmamos, não há

qualquer pastorela occitânica em que seja constatável a violência sexual presente em vários dos

exemplares compostos em langue d’oïl.

Para diversos teóricos, essa clivagem entre as composições francesas e occitânicas é

representativa de seus diferentes níveis de evolução. De acordo com Jackson (1985, p. 68), a

brutalidade presente nos exemplares em langue d’oïl seria característica de uma etapa anterior no

desenvolvimento do gênero poético; as composições occitânicas, por ele consideradas mais

refinadas, constituiriam uma evolução das pastorelas. Advoga o referido teórico que as pastorelas

eram, em sua origem, composições satíricas que tinham como alvo tanto o cavaleiro – sensual,

brutal, materialista – quando a pastora – satirizada por ingenuidade; essa dimensão satírica,

presente nas pastorelas francesas, haveria no entanto se perdido nas composições occitânicas, em
116

que o elemento pastoral viria a tornar-se dominante, o que estaria relacionado a uma influência da

poesia latina clássica (JACKSON, 1985, p. 78-79). Conquanto não descartemos a possibilidade de

um investimento maior no campo satírico nas pastorelas francesas, parece-nos que, em primeiro

lugar, dificilmente é possível considerar que haja propriamente um retorno a modelos clássicos

nas pastorelas occitânicas, por razões que explicitaremos mais à frente124 ; por outro lado, não

caberia julgar que há nas referidas composições um esvaziamento do conteúdo satírico, mas antes

sua utilização para outros fins – alegóricos –, algo que julgamos haver demonstrado no capítulo

anterior 125 . De resto, como igualmente julgamos haver explicitado anteriormente, recusamos a

perspectiva teleológica de que haja uma evolução do modelo francês em direção ao modelo

occitânico, como defendido por teóricos como Jackson e Jones 126 ; conquanto consideremos que a

pastorela alegórica surge no âmbito occitânico, mais propriamente a partir da composição de

Marcabru, consideramos que isso denota o surgimento de um novo modelo que, portador de

características particulares, não deve ser considerado necessariamente “mais evoluído” do que o

francês.

O modelo alegórico occitânico de pastorelas também desconhece a presença, no enredo,

de outros personagens – que não o cavaleiro-narrador e a própria pastora – que possam

influenciar o desenvolvimento da narrativa. Se as jovens presentes nos textos franceses podem

eventualmente recorrer a seu namorado ou a seus amigos, e se esses podem ameaçar fisicamente

o cavaleiro e demovê-lo de seus propósitos, às pastoras constantes das pastorelas que seguem o

modelo occitânico cabe lutar apenas com as armas de que elas mesmas dispõem – a saber: sua

própria capacidade argumentativa. É por meio das palavras – do discurso – que as pastoras
124
Cf. 3. 2. A pastorela e o antibucólico.
125
Cf. 2. A invenção literária.
126
Já tratamos disso no primeiro capítulo deste trabalho: cf. 1.3. Origens vernáculas?
117

occitânicas logram resistir às investidas masculinas; e é precisamente isso o que leva diversos

teóricos a perceber, nessas composições, um afastamento de possíveis influências de cunho

popular. Ademais, as obras em langue d’oïl desconhecem outros elementos que desempenhem

um papel importante no enredo, como o lobo; trata-se sempre de um embate entre um homem e

uma mulher – o cavaleiro e a pastora. É isso o que nos permite deduzir que, nessas obras, o que

está em jogo é um embate entre duas instâncias subjetivas que diz respeito, essencialmente, às

intenções dos pelejantes, algo que aprofundaremos mais adiante nesta tese 127 .

Por fim, cabe observar que o tipo de composição em que há uma maior aproximação entre

as pastorelas francesas e as occitânicas é precisamente aquele em que não há um investimento

alegórico: trata-se das pastorelas amorosas 128 , composições occitânicas em que o cavaleiro acaba

por conquistar a pastora através de seus galanteios. É possível que haja alguma influência de um

modelo sobre outro, embora não nos aventuremos a afirmá-lo de maneira categórica; não

obstante, parece claro que as similaridades presentes entre essas obras estão relacionadas à

ausência dos elementos alegóricos nas referidas composições occitânicas – elementos que, de

resto, inexistem nas pastorelas francesas.

3. 2. As pastorelas e o antibucólico

O presente item não visa propriamente descartar a possibilidade de que as pastorelas

tenham sua origem na poesia latina clássica, questão que já foi abordada anteriormente nesta

127
A essa questão dedicaremos o quarto capítulo deste trabalho: 4. A pastora e a alegoria.
128
Cf. capítulo 2, 2.3. A variante: as pastorelas amorosas. Piguet (1927, p. 36) chega a conclusão similar, mas
restringe sua análise à composição de Joan Esteve L’autrier, el gay temps de pascor.
118

tese 129 . Nosso objetivo aqui será caracterizar em que medida as pastorelas afastam-se da poesia

clássica; já de início assumimos, por outro lado, que há uma diferença fundamental entre a

pastorela, enquanto gênero poético, e a antiga poesia pastoral latina. Mais do que isso, assumimos

que as composições occitânicas – mais especificamente as pastorelas alegóricas que seguem o

modelo de Marcabru – inscrevem-se num âmbito de todo diverso daquele em que foram

elaboradas as obras clássicas: sua temática e o tipo de questionamentos que podem ser feitos

sobre elas são totalmente diversos daqueles associados à poesia latina. É precisamente por isso

que utilizamos o termo ‘antibucólico’, cujo sentido passaremos a explicitar.

Conforme será utilizado em nossa pesquisa, o conceito de antibucólico tem sua inspiração

naquele cunhado por Raymond Williams acerca das representações do campo e da cidade na

literatura (1989). Williams utiliza o termo para se referir a uma rejeição do bucolismo clássico e

neoclássico pela poesia inglesa a partir do fim do século XVII, que se pretende mais “realista” no

tocante à representação do campo: para poetas como Crabbe, se alguma vez existiu uma realidade

em que se fundamentou o que podia ser entendido como bucolismo, isso teria sido na

Antigüidade clássica (WILLIAMS, 1989, p. 27); fazia-se então necessário representar o campo

como um “refúgio metafórico, mas também real” (WILLIAMS, 1989, p. 40). Não obstante, essa

poesia portava em si uma questão política: acabava por mascarar a exploração do trabalho dos

camponeses em nome da celebração da abundância natural (WILLIAMS, 1989, p. 52). As questões

que nos interessam, contudo, são bem outras, e o conceito de Williams nos interessa em um ponto

específico: na medida em que incorpora (i) uma mudança fundamental no sentido da

representação do campo no âmbito literário e (ii) no reconhecimento de que essa mudança está

129
Cf. capítulo 1, 1. 2. Origens latinas?
119

relacionada a elementos extra-literários; o antibucólico opõe-se, portanto, ao bucólico porque

estabelece um contraste em relação a esse, por razões que não se limitam ao contexto literário.

Nossa análise será desenvolvida em duas etapas. Primeiro, faremos uma breve apresentação da

poesia bucólica, abordando em particular as obras de seus principais fundadores, Teócrito e

Vergílio; depois, procuraremos explicitar em que medida as pastorelas alegóricas são

antibucólicas, ou seja, de que forma se opõem ao bucolismo no tocante ao uso das representações

do campo e de seus elementos.

3.2.1. A poesia bucólica na tradição clássica

É possível afirmar, sem maiores polêmicas, que a poesia bucólica 130 tem seus princípios

nos Idílios de Teócrito 131 , compostos no século III AEC, que influenciaram profundamente a

poesia de Vergílio 132 , responsável por inaugurar a tradição bucólica latina com suas Éclogas. Por

ocuparem essas obras o lugar de fundadoras, concentraremos nelas nossa exposição 133 , posto não

ser nosso objetivo analisar profundamente a tradição poética bucólica, o que foge ao escopo de

nossa tese.

Os Idílios de Teócrito consistem em composições pastorais nas quais o poeta figura,

através de desafios ou diálogos entre camponeses, a antiga vida campestre da Sicília. Paul Harvey

(1987, p. 481) qualifica-os como obras de uma “naturalidade perfeita”, na esteira dos teóricos e

130
Para uma discussão em torno da própria terminologia ‘bucólica’, cf. a introdução de Hunter, 1999
(especialmente p. 5-12); e Gutzwiller, 1991 (p. 6 ss).
131
Θεόκριτος, poeta helenístico, provavelmente nascido na Sicília, no séc. III AEC.
132
Publius Vergilius Maro, poeta latino do séc. I AEC.
133
O que justifica que não mencionemos outros poetas bucólicos antigos como Filetas de Cos, Bión de
Esmirna ou Mosco de Siracusa. Para uma discussão aprofundada em torno das origens da poesia bucólica, cf.
Gutzwiller, 1991, cap. 1.
120

historiadores que, por longo tempo, associaram às composições teocritianas qualidades como

simplicidade e realismo; à guisa de ilustração, evoque-se a defesa de Andrew Lang da

“confiabilidade” dos Idílios a partir da veracidade das canções dos pastores neles presentes, o que

constituiria uma resposta definitiva àqueles que veem, na poesia teocritiana, indícios de

amaneiramento (LANG, 1896, p. xx). Essa tradição interpretativa vem há muito sendo contestada

por teóricos que, no caminho oposto, qualificam a obra de Teócrito como sofisticada, complexa e

arficialista 134 . Por outra via, parece-nos mais produtivo evitar discussões de tal modo

particularizantes e considerar a articulação entre os Idílios e as Éclogas de Vergílio – os dez

poemas em hexâmeros compostos entre 42 e 37 AEC que efetivamente fundaram a tradição

pastoral latina.

Ainda que seja necessário evitar perspectivas demasiado simplistas, há algumas

peculiaridades nas obras dos dois poetas há pouco referidos que invariavelmente assomam aos

olhos de quem sobre elas se debruça. Teócrito versa sobre camponeses que ora conversam

enquanto se dedicam ao trabalho 135 , ora se envolvem em disputas de canto 136 , ora entoam

canções sobre temas mitológicos 137 . Suas composições são obras que os estudiosos reputam de

sofisticada alusividade e capacidade inovação lingüística, que chegam a conceder um novo status

a formas literárias inferiores (HUNTER, 1999, p. 2) e que, por se situarem nos princípios da

constituição desse gênero poético, devem ser concebidas menos como um empreendimento

completo, finalizado e estabelecido do que como composições no processo de se tornar algo

diverso do anteriormente existente. Discutindo o processo de constituição genérica das pastorais,

134
Cf. a discussão sobre o assunto em Van Sickle (1969).
135
Idílio IV.
136
Idílio V.
137
Idílio I.
121

Kathryn Gutzwiller observa que os Idílios teocritianos podem ser considerados, a partir de uma

perspectiva teórica formalista, uma transformação da poesia épica: a deformação dessa haveria

ocorrido a partir da absorção de formas extraliterárias (canções pastorais, de culto e de trabalho) e

menores (espístolas e encômios), conquanto isso não represente uma conceitualização definitiva

(GUTZWILLER, 1991, p. 8-13).

Por outro lado, é preciso estender a Vergílio esse pendor para a elaboração do novo: sua

relação para com a poesia teocritiana, longe de se reduzir à imitação servil, representa um esforço

na direção de um empreendimento igualmente renovador. Como observa Mendes (1985, p. 125-

126), quatro fatores contribuem para a originalidade da obra vergiliana: (i) se seus motivos

poéticos são extraídos de Teócrito, Vergílio é quem os funde e os integra por seu estilo pessoal;

(ii) se na poesia teocritiana era perceptível um substrato filosófico análogo às concepções dos

jônios, na obra de Vergílio o que se percebe são influências de origens platônicas, epicuristas e

sobretudo pitagóricas, que favorecem maior elaboração temática; (iii) o contexto histórico em

que surgiu Vergílio era naturalmente diverso daquele em que viveu Teócrito, inclusive no tocante

a ideais estéticos e concepções artísticas; e (iv) há um pendor imaginativo em Vergílio que

favorece a vagueza em certas descrições de personagens e paisagens fora de sua região natal, o

que o estudioso atribui à sua imaturidade no momento de elaboração das Éclogas.

As composições de Vergílio apresentam, de fato, características notavelmente diversas

das obras teocritianas; a fim de ilustrar essas diferenças, Arthur Guy Lee (1984, p. 17-18) realiza

um interessante cotejo entre a Écloga II e o Idílio XI. Na composição teocritiana, o gigante

Polifemo canta sua paixão pela ninfa Galatéia; como nota Lee, “a idéia de o canibalístico monstro

estar apaixonado é risível”, “mas a espirituosidade e o humor de Teócrito tornam o paradoxo


122

divertidamente crível e mesmo um pouco patético” 138 . O que o poeta faz, observa o estudioso, é

extrair do acervo mítico um assunto paradoxal e abordá-lo de forma naturalista. Vergílio, por seu

lado, aborda em sua Écloga um motivo mundano, abandonando o humor e acentuando o pathos e

o lirismo: Coridon, pastor da Sicília, é um homem comum como o poeta, a tal ponto que a

Antigüidade leu a composição como autobiográfica.

Para Mendes (1985, p. 124-125), as principais características da obras de Vergílio, em

contraste com as de Teócrito, dizem respeito à idealização. O último colhera seus pastores do

“mundo humano, real e concreto à sua volta”; “sua linguagem é nua e crua”, ao passo que os

pastores de Vergílio “passam pela metamorfose operada pela fantasia e convenção”. A poesia de

Teócrito “mergulha diretamente na realidade objetiva da natureza ... sem dar asas ao devaneio”;

já Vergílio “busca a harmonia e a temperança da matéria, para alçar-se ao mundo da

espiritualidade depurada pelo freio sub-reptício da sensibilidade e delicadeza”.

A despeito dessas diferenças, podemos considerar que perpassa a poesia bucólica uma

multiplicidade de formas de relação com o campo que condicionam suas formas de

representação, e que se constituem no decorrer de um processo histórico. Como observa

Raymond Williams (1989, p. 29-34), na poesia teocritiana 139 encontramos a representação de

uma comunidade camponesa simples, que convive com “as delícias do verão e da fertilidade com

um prazer acentuado pela consciência do que ocasionam o inverno, a esterilidade e os

imprevistos”; quando passamos a Vergílio, já nos deparamos com uma representação literária que

não perde o contato com os trabalhos das diversas estações do ano e com “as verdadeiras

138
“the idea of that cannibalistic monster being in love is ludicrous ... but Theocritusś wit and humour make
the paradox amusingly credible and even a touch pathetic.”
139
Na verdade, Williams remonta suas considerações sobre o bucolismo a Hesíodo, em cuja poesia
encontramos “a prática da agricultura e do comércio no contexto de uma forma de vida em que a prudência e o
esforço são considerados as virtudes fundamentais” (WILLIAMS, 1989, p. 28).
123

condições sociais da vida rural” – que, não obstante, contrasta com a ameaça da perda e da

evicção, reflexo dos temores do pequeno agricultor romano que temia ter suas terras confiscadas.

É com relação a isso que deve ser pensada a condição antibucólica das pastorelas, no sentido em

que aqui utilizamos o termo; analisemos, por conseguinte, em que consiste essa particularidade

das composições medievais.

3.2.2. O antibucólico nas pastorelas alegóricas

Como mencionamos anteriormente, em nosso trabalho o conceito de antibucólico está

relacionado, em um primeiro momento, a uma mudança fundamental no sentido da representação

do campo no contexto literário. Nas composições clássicas de Hesíodo, Teócrito e Vergílio,

conquanto as referidas representações sofressem inevitavelmente transformações a partir de

contingências sócio-históricas, essa relação fundamental com o campo jamais era perdida;

sempre se preservava, afinal, uma “atenção intensa e renovada voltada para a beleza natural”

(WILLIAMS, 1989, p. 36) – que, podemos nos arriscar a dizer, tinha sua raiz na própria

experiência dos poetas que as compunham: Hesíodo foi camponês, Vergílio foi filho de um

camponês; sabemos pouco sobre a vida de Teócrito, mas a maneira como suas poesias

representam fielmente a fala e as características dos camponeses (Romilly, 1985, p. 181) sugere

que tenha convivido com esses, ainda que tenha tido a vida de um “poeta profissional” grego

(Hunter, 2003, p. viii).

Nas pastorelas alegóricas occitânicas, essa relação é esvaziada: nelas o campo já deixou,

há muito, de ser um espaço de experiência real para tornar-se uma convenção; trata-se,
124

efetivamente, de um topos literário – o locus amoenus, constituído ao longo de uma tradição

literária que já tinha mais de mil anos. Isso quer dizer que, se os camponeses de Teócrito eram

representados de uma forma mais “fiel” – no dizer de Romilly (1985, p. 181) – e se os pastores de

Vergílio são representados através de “um véu diáfano que atenua sua rudeza de traços e

comportamentos”, consoante Mendes (1985, p. 124), as pastoras presentes nas pastorelas

alegóricas occitânicas já perderam qualquer vestígio de “realismo”; são, de fato, figuras

essencialmente literárias – como afirmara William Paden no artigo que sintetizamos

anteriormente neste capítulo 140 , “a mulher não é uma pastora real, e nunca o foi” 141 (Paden, 1989,

p. 344). Pode-se compreender que isso ocorra justamente porque o sentido da representação,

nesse caso, é outro: segundo cremos, o que está em questão não é efetivamente a elaboração

artística da vida campestre, mas apenas sua utilização em uma obra que tem finalidades outras –

alegóricas 142 .

É importante ressaltar ainda que o antibucolismo das pastorelas medievais não deve

constituir motivo para qualquer tipo de censura. De fato, a perda de quaisquer indícios das

condições da vida rural concreta nas pastorelas deve ser compreendida como algo constitutivo do

processo de elaboração da alegoria, cabendo entendê-la como condição necessária para que as

pastoras desempenhem o que delas é exigido nas obras em questão. O mesmo deve ser pensado

acerca dos artificiosos cenários presentes nas pastorelas, que cumprem uma função literária

determinante precisamente enquanto elementos convencionais.

140
Cf. 3.1.2.2. A réplica de William Paden: o lugar da ficção.
141
“The woman is not a real shepherdess, and never has been.”
142
Aqui, na verdade, não estamos muito distantes de Williams (1989, p. 37), que observa que “o hábito
medieval e pós-medieval da alegoria” veio historicamente a “manifestar-se através do bucólico”.
125

Por outro lado, a condição antibucólica dessas pastorelas medievais não prescinde de

significado histórico: de fato, se essas composições apresentam um esforço alegorizante que

acaba por elaborar uma forma particular e característica de um gênero poético – a saber, a

pastorela alegórica occitânica, que, como julgamos haver demonstrado, não se confunde com

outros modelos poéticos similares, mesmo contemporâneos e geograficamente próximos –, isso

sem dúvida está relacionado a um conjunto de fatores determinantes que precisam ser

explicitados. Trata-se, em outras palavras, de indagar pelo que condiciona e particulariza esse

procedimento alegorizante sobre a pastora; e sobre o porquê de as pastorelas alegóricas, à

diferença dos inúmeros exemplares franceses, jamais apresentarem um embate físico ou sensual,

limitando-se a um enfrentamento dialógico de fundo, por assim dizer, espiritual – já que se trata

de um conflito entre intenções divergentes ou, mais ainda, opostas: de um lado, a sensualidade e a

malícia do cavaleiro; de outro, a virtuosa castidade da pastora.

A nosso ver, há efetivamente um conjunto de elementos presentes no imaginário medieval

que se refletem nesse processo de elaboração poética, e que decerto guardam relação – embora

não necessariamente de maneira imediata – com as pastorelas: de um lado, o conceito medieval

de alegoria; de outro lado, o surgimento de uma nova perspectiva ética que estabelece uma

clivagem entre a intenção e o ato. São esses elementos, sem dúvida determinantes da dimensão

antibucólica das mencionadas composições, que analisaremos na segunda parte desta tese,

dedicada aos elementos extra-literários que se relacionam com a emergência das pastorelas

alegóricas.
126

PARTE II:

AS MARCAS DO TEMPO
127

4 A PASTORA E A ALEGORIA

Há um conjunto de questões que, havendo emergido nos capítulos anteriores, não foram

neles suficientemente respondidas ou desenvolvidas; questões essas que estão relacionadas às

pastorelas menos enquanto obras literárias do que enquanto produtos de um contexto histórico,

social e cultural específico, na medida em que refletem valores, conceitos e elementos presentes

em (ou característicos de) seu imaginário – ou seja, que representam as marcas do tempo na

invenção literária. Essas questões estão relacionadas, sobretudo, a dois aspectos das pastorelas:

primeiro, o próprio processo de alegorização da pastora; segundo, a dimensão alegórica das

composições poéticas.

Na segunda parte de nosso trabalho, pretendemos enfocar cada um desses aspectos. Neste

quarto capítulo, trataremos da figura da pastora, a fim de compreender sua dimensão simbólica na

tradição cristã. Precisamente esse simbolismo operou como condição de possibilidade para que

fossem elas o alvo do referido processo de alegorização; por conseguinte, procuraremos rastrear

as origens da pastora enquanto elemento simbólico, de maneira a especular o sentido de seu

aproveitamento nas composições medievais. Num segundo momento, representado pelo quinto

capítulo deste estudo, enfocaremos o conceito mesmo de alegoria no pensamento medieval, bem

como sua relação com a literatura no referido período. Por fim, no sexto capítulo, que encerra a

segunda parte deste estudo, nosso objeto de análise será a dimensão propriamente moralizante

das pastorelas.
128

4.1. A figura da pastora: o percurso histórico

A fim de estabelecer uma formulação simples que nos sirva como ponto de partida,

podemos colocar a questão da seguinte maneira: qual é, efetivamente a origem desta pastora

presente nas pastorelas medievais? Essa indagação, a despeito de sua aparente simplicidade,

encerra indubitavelmente questionamentos complexos: já de início, cabe observar que não

podemos pretender alcançar qualquer resposta definitiva para ela, uma vez que sequer temos

respostas precisas com relação ao surgimento das próprias pastorelas 143 ; dessa maneira, será

inicialmente necessário viabilizar nosso esforço investigativo.

No capítulo anterior, de certo modo tangenciamos essa questão quando tratamos da

polêmica em torno do gênero sustentada por dois especialistas estadunidenses 144 . Um dos

argumentos apresentados por Paden contra Gravdal estava profundamente relacionado à própria

natureza ficcional das pastorelas: consoante aquele, havia um erro no ato de se considerar as

pastorelas como fontes confiáveis a partir de parâmetros históricos, precisamente porque os

elementos nela presentes eram criações ficcionais – inclusive a pastora. Temos, aqui, a

oportunidade de levar esse questionamento mais adiante, reformulando-o da seguinte forma: em

que medida é possível crer que as pastoras presentes nas pastorelas medievais tenham se

originado na realidade histórica?

Um primeiro ponto deve ser observado: os dados históricos disponíveis levam-nos a crer

que a atividade pastoral, na Idade Média, era predominantemente realizada por homens. Ainda

que crianças pudessem ocupar-se dessa tarefa, no tocante a homens e mulheres havia uma nítida

143
Cf. o primeiro capítulo desta tese.
144
Cf. Cap. 3, 3.1.2. A derrota da pastora.
129

divisão de tarefas: se em certos lugares (na Inglaterra, por exemplo) poderia caber às mulheres o

trabalho de lavar e tosquiar as ovelhas, “o mundo dos pastores que percorriam longas distâncias

com seus rebanhos, como nos Pirineus, era exclusivamente masculino” 145 (BEHR, 1991, p. 241).

Encontramos uma situação similar no estudo de Emmanuel Le Roy Ladurie sobre a aldeia

occitânica de Montaillou no século XIV: também nessa região, a atividade pastoral era

essencialmente ocupada por homens – ali “não havia nenhuma Joana d’Arc ou ‘pequena

pastora’”, observa o historiador, acrescentando que apenas ocasionalmente poderia acontecer de

“uma mulher, especialmente uma viúva, conduzir suas ovelhas às pastagens” 146 (LADURIE, 1979,

p. 110); consoante Ladurie (1979, p. 216), meninas com mais de doze anos não podiam se tornar

pastoras, visto que na Occitânia todos os pastores eram homens. Conquanto o texto de Giovanni

Cherubini sobre o camponeses e o trabalho no campo durante a Idade Média não seja tão

explícito acerca desse ponto, pode-se deduzir que também ele descreve um mundo pastoril

essencialmente masculino: tratando dos pastores transumantes, afirma que “desciam no Outono,

antes dos primeiros frios, até às planícies mais tépidas” “ajudado, por vezes, por pastores mais

jovens, eventualmente ainda rapazes” (CHERUBINI, p. 86), o que nos permite deduzir que não

havia moças ou mulheres envolvidas nessa atividade; tratanto dos trabalhadores das florestas que,

muitas vezes, eram também criadores de gado, afirma o historiador que “todos os membros da

família, e mesmo em idade muito precoce, contribuíam para o orçamento familiar”: “os rapazes

tinham, freqüentemente, a tarefa de levarem o gado ao pasto”, trabalho que aparentemente jamais

145
“The world of the shepherds who wandered long distances with their flocks, as in the Pyrenees, was
exclusively male”.
146
“There was no Joan of Arc or ‘little shepherdess’ in upper Ariège. However , it did sometimes happen that
a women, especially a widow, took her sheep to the pasture”.
130

era entregue às meninas, uma vez que essas, quando necessário, eram enviadas para “servir como

criadas em casas de famílias da cidade” (CHERUBINI, p. 87).

Estudos que não tratam especificamente do mundo medieval, mas que focalizam

sociedades tradicionalmente pastorais também nos podem fornecer dados interessantes sobre a

composição essencialmente masculina do pastoreio. Vislumbramos essa situação no ambiente

pastoral centro-europeu estudado por Wolfgang Jacobeit (1961), cujo texto permite entrever que

todos os pastores estudados pertencem ao sexo masculino 147 . O estudo de Sandra Ott sobre a

comunidade pastoral basca de Sainte-Engrace (OTT, 1993) apresenta-nos um mundo vedado às

mulheres: apenas homens têm acesso à atividade pastoral na referida comunidade, iniciando seu

aprendizado entre os dez e os doze anos; às mulheres estão reservados os afazeres domésticos. Na

Grécia, Michael Herzfeld descreve um acontecimento curioso relacionado ao ato de roubar

animais, tradicionalmente realizado pelos pastores mais fortes (e desaprovada pelas mulheres, o

que, de acordo com Herzfeld, implica o reconhecimento de “um domínio definitivamente

masculino” 148 ): narrativas orais descreviam o excepcional caso de uma certa pastora cretense

que, ao tornar-se órfã muito jovem, passou a vestir-se como homem e a roubar animais

(HERZFELD, 1991).

O que esses dados nos permitem inferir é que, se seria um exagero afirmar que mulheres

jamais se ocupavam do pastoreio, sem dúvida elas raramente se ocupavam dessa atividade; dessa

maneira, a facilidade com que os cavaleiros deparam-se com pastoras, durante suas travessias,

147
Cf., por exemplo, o seguinte trecho (grifos nossos): “To supplement and complete this picture of the
shepherd, it is necessary to look at him in his everyday life, as he pursues the duties of his profession in the village
community” (JACOBEIT, 1961, p. 270). De fato, embora a síntese apresentada no artigo tenha pretensões
generalizantes, dado que se trata de realizar um amplo levantamento histórico, nele não encontramos quaisquer
referências a mulheres.
148
“Women’s categorical denial of involvement recognizes a definitively masculine domain”. (HERZFELD,
1991, p. 87)
131

nas pastorelas medievais é, quando menos, suspeitosa. Um segundo elemento contra a

possibilidade de que as pastoras presentes nas referidas composições tenham origem histórica é o

fato de que nem a língua latina, nem nenhuma língua vernácula da Europa Ocidental possuíam

palavras para designar o que nomeamos ‘pastoras’ até o advento das pastorelas. Esse argumento é

defendido por Paden (1998), que apresenta como evidências o fato de, nas pastorais latinas,

existirem apenas pastores, não havendo ademais na língua latina uma palavra utilizada

especificamente para designar mulheres que se dedicassem ao pastoreio; à guisa de um exemplo

no vernáculo, a língua inglesa, por exemplo, conhecia a palavra ‘shepherd’ desde os tempos

anglo-saxônicos, mas a forma feminina ‘shepherdess’ só se desenvolve a partir do século XIV.

Como é implausível que houvesse pastoras, mas que essas não fossem nomeadas em quaisquer

documentos, a hipótese aventada pelo teórico é que o termo tenha surgido na literatura, passando

num segundo momento a designar, eventualmente, mulheres que por qualquer razão guardassem

semelhanças com as figuras literárias (PADEN, 1998, p. 2).

4. 2. A pastora na tradição religiosa judaico-cristã

Não obstante, se as pastoras efetivamente emergiram no contexto literário, ainda assim se

faz necessário rastrear suas origens. Como já sugerimos neste trabalho, se as pastorelas surgiram

a partir de uma “tradição obscura”, na medida em que é de fato impossível determinar de maneira

inequívoca as circunstâncias em que ocorreu seu aparecimento, é possível ao menos especular

sobre o porquê de esse tipo específico de poesia ser o escolhido por Marcabru; indagação que

pode ser reformulada a fim de focalizar especificamente a figura da pastora: seria possível
132

questionar, afinal, se não haveria algum tipo de significado associado especificamente a essa

figura, num âmbito tradicional, que favoreceria o tratamento a ela aplicado por Marcabru, que

culminaria no processo de alegorização que analisaremos mais à frente 149 .

É nesse momento que nossa argumentação passa a encaminhar-se num outro sentido, que

pode representar uma alternativa interessante para nossa investigação. O que se há de observar é

que a figura da mulher que apascenta ovelhas, mesmo que não designada por um nome

específico, já se fazia presente num âmbito específico: o religioso – mais particularmente, na

tradição judaico-cristã. Tratemos, portanto, de investigar seu desenvolvimento histórico no seio

dessa tradição.

4. 2. 1. O contexto pré-medieval: Raquel e o bom Pastor

Na Bíblia há não apenas pastores, mas também mulheres que se ocupam do pastoreio; em

todo esse universo religioso, aos pastores e às pastoras associar-se-ia um conjunto particular de

significados – e talvez possamos encontrar aí as raízes da pastora que comparece nas

composições medievais. A fim de obter maior clareza, a exposição que se segue será constituída

por dois momentos: trataremos, inicialmente, do sentido do pastor na tradição judaico-cristã,

buscando investigá-lo desde as suas origens, a fim de compreender o seu sentido simbólico no

âmbito da mencionada tradição. Num segundo momento, faremos uma análise da primeira

pastora de que temos notícia nesse contexto: a personagem bíblica Raquel.

149
Cf. 4.2. A pastora e a alegoria.
133

A figura do pastor não é estranha à ambiência bíblica: na paisagem palestina, bem como

na de outras regiões do Oriente Médio, é bastante comum a presença de rebanhos de diversos

tipos de animais de menor e de maior porte – de cabras a cavalos, de vacas a camelos; no entanto,

devido ao seu tamanho, à sua abundância e à sua utilidade, o principal desses animais sempre foi

a ovelha (VANCIL, 1992, p. 1187). A posse de animais, no contexto bíblico, é um indicativo de

poder e de riqueza: Jó teve catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil

jumentas (Jó 42, 12); diante do templo, Salomão fez sacrificar ovelhas e vacas “que não se

podiam contar nem numerar pela sua quantidade” (1 Rs 8, 5). Certamente por conta desse

simbolismo, Deus é algumas vezes concebido como um pastor: “Como o pastor busca o seu

rebanho, no dia em que está no meio das suas ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas

ovelhas; e livrá-las-ei de todos os lugares por onde andam espalhadas, no dia nublado e de

escuridão” (Ez 34, 12). O pastor era responsável por guiar as ovelhas a bons prados, conduzi-las a

águas tranqüilas, mantê-las a salvo de animais perigosos, ladrões e salteadores (Sl 23, 2-3; 1 Sm

17, 34-35; Jo 10, 1); quando necessário, carregava em seu colo as ovelhas mais frágeis (Is 40,

11).

A atitude protetora do pastor relativamente às suas ovelhas não tardou a adquirir um forte

sentido simbólico para os povos do Oriente Médio. Na Mesopotâmia, a imagem do pastor era

utilizada com freqüência como título para os reis: enquanto pastor, o soberano deveria governar

com justiça, protegendo e guiando seu povo através das dificuldades. Diversos deuses foram

representados como pastores: o rei sol, Utu, era comparado a um compassivo pastor; no épico da
134

criação babilônico, Marduk é celebrado de forma semelhante (VANCIL, 1992, p. 1188) 150 . No

Egito, o conceito também é aplicado a deuses e soberanos: pode-se encontrar o cajado dos

pastores nas mãos dos faraós, operando como um símbolo de autoridade e sabedoria (NEWBERRY,

1929, p. 84-85). Na Grécia, a imagem é associada a Hermes enquanto deus pastoril; Platão

utiliza-a quando faz referência à arte de governar na “República” (345b-345e).

No contexto propriamente bíblico, a figura do pastor é freqüente nos contextos vetero e

neotestamentário. No Antigo Testamento, durante a experiência nômade do povo israelita, Deus

surge como o guia que leva o povo até lugares mais aprazíveis (Ex 15, 13): o povo sai “como

ovelhas” e é guiado “pelo deserto como um rebanho” (Sl 78, 52-55). No Novo Testamento,

observamos o surgimento de uma figura de importância singular para a tradição cristã: a figura do

bom pastor. É assim que o próprio Jesus Cristo refere-se a si mesmo, redefinindo o sentido da

imagem – “o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10, 11) – e apresentando os traços

dessa figura: ao contrário do ladrão e do salteador, que entra no curral, o pastor entra no curral

pela porta (Jo 10, 1-2); para ele o porteiro permite passagem: ele chama pelo nome as ovelhas, e

elas o seguem, porque conhecem a sua voz (Jo 10, 3-4).

Embora a imagem do bom pastor fosse a mais popular representação de Cristo nos quatro

primeiros séculos, na primeira metade do século V ela subitamente começa a desaparecer da arte

cristã tanto no Ocidente quanto no Oriente, dando lugar à imagem de Cristo como rei e como

professor. As razões dessa perda de popularidade foram estudadas por Ramsey (1983), que a

atribui a quatro possíveis motivos: em primeiro lugar, no começo do quinto século a imagem do

bom pastor não mais correspondia à imagem de Cristo que prevalecia na Igreja, uma vez que as

150
Para evidências arqueológicas de representações sírias e mesopotâmicas, cf. Wright (1939). Sobre a
evolução dos símbolos até o contexto cristão, cf. Muller (1944).
135

vestimentas típicas dos pastores pareciam pouco apropriadas para cristãos que, desde a metade do

século IV, cada vez mais representava-no vestido e trajes reais – o que constituía uma resposta da

Igreja Católica ao Arianismo. Em segundo lugar, a representação de Cristo como pastor perdera

seu conteúdo dogmático: conquanto o bom pastor fosse uma figura de grande significado ético

enquanto símbolo do amor e da salvação, essas questões já haviam deixado de ser discutidas no

século V, uma vez que não mais havia controvérsias acerca do poder salvífico de Cristo; por

outro lado, as images do rei e do professor coadunavam-se melhor com os questionamentos então

vigentes acerca de sua divindade. O terceiro motivo aventado pelo teólogo é que o bom pastor era

uma representação defensiva, enquanto o responsável por proteger seu rebanho e impedir que ele

caísse nas mãos do inimigo. No período pré-Constantiniano, essa questão era importante, já que

se tratava de manter os cristãos a salvo do “mundo” profano; no quinto século, todavia, a Igreja e

o “mundo” já se haviam tornado idênticos em diversos sentidos, de modo que já não havia tanta

necessidade de enfatizar a necessidade de se proteger os cristãos de seus inimigos. Por fim, o

quarto motivo aventado por Ramsey diz respeito à própria posição política da Igreja: no período

pós-Constantiniano, ela se tornava cada vez “mais ciente de sua autoridade e poder, e as imagens

de Cristo como professor e rei testemunham essa realidade” 151 (1983, p. 377).

Isso não quer dizer, por outro lado, que a figura do pastor tenha simplesmente

desaparecido da tradição cristã. Na verdade, a figura permanece viva no imaginário cristão como

um símbolo de simplicidade e pureza, o que explica sua presença em diversas hagiografias –

notavelmente nas narrativas acercas das vidas de santas, que nos interessam de forma particular.

Mais à frente, trataremos dessas mulheres – especialmente de uma, santa Margarida, que viria a

151
“... the Church of the post-Constantinian era was becoming ever more aware of its authority and power,
and the images of Christ as teacher and king bear witness to this reality.”
136

se tornar uma das mais populares no período medieval; agora, no entanto, cabe voltar os olhos

para uma antecessora bíblica dessas pastoras.

No texto bíblico, as mulheres sobre as quais se afirma que guardavam ovelhas são as sete

filhas do sacerdote de Midiã – entre as quais encontramos Zipora, que se torna posteriormente

esposa de Moisés (Ex 2, 16-22) –, que davam de beber ao rebanho de seu pai, mas que não são

explicitamente mencionadas como pastoras; e Raquel, que é efetivamente adjetivada como

pastora 152 . Afirma a narrativa bíblica que Jacó, ao encontrar Raquel, reconhece-a como sendo

“filha de Labão, irmão de sua mãe” (portanto, sua prima); depois de dar de beber às ovelhas que

ela trazia, Jacó beija-a e é levado à casa de Labão, a quem serve por catorze anos até que a

pastora seja-lhe entregue como esposa (Gen 29, 9-28).

Pode-se observar que a história de Jacó e Raquel guarda, conquanto remotamente, alguma

semelhança com aquela descrita nas pastorelas medievais, no sentido elementar de que em todos

os casos deparamo-nos com narrativas que descrevem a acidental “descoberta” de uma mulher,

identificada como pastora, por um homem, que a deseja – e que, no caso da narrativa bíblica

mencionada, acaba por desposá-la. Faz-se necessário observar, no entanto, que a história de Jacó

e Raquel tem particularidades que podem passar despercebidas sem um exame mais aprofundado.

O amor aí descrito, na verdade, não tem paralelo no âmbito bíblico. Mesmo burlado por Labão –

que, após sete anos de trabalho, entrega-lhe Lia, sua filha mais velha, ao invés de Raquel, como

prometera – , Jacó consente em servi-lo por mais sete anos para poder desposar a filha mais nova.

Cabe observar também que o beijo de Jacó em Raquel é a única cena explícita de um homem

152
De acordo com o léxico bíblico de Gesenius (1857), o verbo hebraico ‫( רעה‬ra’ah) pode significar
literalmente ‘alimentar um rebanho’, ‘pastorear’ ou ‘apascentar’; substantivado, pode significar ‘pastor’ ou,
precisamente no caso que nos interessa, ‘pastora’. É precisamente essa a tradução utilizada na tradução para o
português (Almeida corrigida e revisada fiel, 1994): “Estando ele ainda falando com eles, veio Raquel com as
ovelhas de seu pai; porque ela era pastora.” (Gen 29, 9)
137

beijando uma mulher na Bíblia; ademais, o amor que Jacó sente por sua esposa é tão intenso que

perdura após a morte dessa, sendo transferido para seus filhos, José e Benjamin (Beck, 1992, p.

606).

A beleza de Raquel, motivo predominante na narrativa, é descrita de uma forma

particularmente instigante. Diz o texto bíblico, comparando as irmãs, que “Lia tinha olhos tenros,

mas Raquel era de formoso semblante e formosa à vista” (Gen 29, 17) 153 . Se o adjetivo utilizado

para descrever os olhos de Lia é ‫רך‬ (rak), termo que efetivamente pode ser traduzido

simplesmente como ‘tenro’ 154 , para Raquel são utilizados os adjetivos ‫מראה‬ (mar’eh) e ‫יפה‬

(yapheh): se o primeiro se refere à sua bela aparência, o segundo possui um campo semântico

mais amplo, podendo significar também ‘bom’, ‘excelente’, ‘bem-ordenado’ 155 . O ponto central

da questão é justamente que, se Lia é descrita de maneira puramente física, Raquel possui

atributos que superam essa dimensão, e que visam ressaltar tanto a sua aparência quanto a sua

personalidade (Beck, 1992, p. 606). Desse modo, se a “pastora” encontrada por Jacó é capaz de

nele despertar tamanha afeição, isso deve-se não apenas às suas qualidades físicas, mas também

ao seu caráter. Walton e Matthews (2000, p. 60) apresentam uma leitura semelhante ao observar

que, na descrição comparativa entre Lia e Raquel, o único comentário relativo à primeira diz

respeito aos olhos; contudo, ainda que esses fossem considerados um componente principal da

beleza no mundo antigo, a afabilidade de Raquel acabou sendo o fator determinante para

despertar o amor de Jacó.

153
Para todas as citações bíblicas utilizaremos a versão Almeida corrigida e revisada fiel, 1994.
154
Fohrer e Hoffman (1973, p. 260) registram ‘tenro’, ‘sensível’, ‘delicado’, entre outros (tender, sensitive,
delicate).
155
Acepções registradas por Fohrer e Hoffman (1973, p. 111); consoante o léxico de Gesenius (1857):
‘agradável’, ‘bonito’, ‘bom’, ‘excelente’ (fair, beautiful, good, excellent).
138

4. 2. 2. A tradição medieval: a vida de santa Margarida

Há outras narrativas na tradição cristã que retomam o “enredo” – para utilizar um termo

mais comumente utilizado para obras de ficção – presente na história de Raquel e Jacó, que não é

de todo estranho àquele tipicamente presente nas pastorelas: Raquel é uma jovem pastora que é

acidentalmente “descoberta” por um homem que a deseja – e que, nesse caso especificamente,

torna-se posteriormente seu esposo. Conquanto esse desfecho não seja aquele que encontramos

nas pastorelas alegóricas, há outras narrativas que se aproximarão mais do modelo encontrado

nas composições medievais: dentre essas, interessa-nos em particular a narrativa hagiográfica de

santa Margarida de Antioquia, por razões que se tornarão claras mais adiante. Cuidemos antes de

apresentar, embora de forma sintética, a história da referida santa 156 .

Diz-nos a lenda que Margarida era filha de um sacerdote pagão de Antioquia chamado

Teodósio; no entanto, como tinha saúde frágil, foi entregue a uma enfermeira que poderia

dispensar-lhe os cuidados necessários. Essa mulher era secretamente uma cristã e, por sua

influência, Margarida também acabou por devotar-se ao cristianismo; dessa forma, sempre que

estava no campo, apascentando o pequeno rebanho de ovelhas de sua enfermeira, dedicava-se a

meditar sobre o evangelho.

Margarida tinha quinze anos quando o governador romano da Antioquia, de nome

Olybrius, ficou cativado por sua beleza ao passar por aquela região. Olybrius imediatamente

ordenou que seus escravos levassem Margarida para o seu palácio: se ela fosse uma mulher livre,

haveria de tornar-se sua esposa; se fosse uma escrava, tornar-se-ia sua concubina. Todavia, uma
156
A síntese apresentada a seguir é baseada em Douhet (1855, p. 833-836) e Jameson (1857, p. 516-518). Essa
versão, derivada de textos latinos, é a mais conhecida no período medieval; conquanto as versões gregas da narrativa
apresentem diferenças significativas, não julgamos relevante comentá-las aqui.
139

vez aprisionada, a jovem rejeitou-o, protestando-se serva de Cristo. Chocados com a revelação,

seu pai e todos os seus parentes fugiram de imediato, deixando-a aprisionada no palácio do

governador.

Para pôr fim à resistência de Margarida, Olybrius submeteu-a aos piores tormentos; as

torturas eram tão atrozes que o próprio governador, incapaz de contemplá-las, cobriu seu rosto.

Como ainda assim a jovem não cedeu, foi levada para uma masmorra, onde o próprio Satã,

assumindo a forma de um dragão, irrompeu: soprando pela enorme boca labaredas de fogo,

tentou amedrontá-la – em vão. De acordo com algumas versões, Margarida ergueu um crucifixo e

fez com que ele se afastasse; outras versões da narrativa, mais populares, afirmam que ela foi

engolida viva, mas logo depois emergiu de dentro do dragão, sem qualquer ferimento. Depois

Satã retornou, dessa vez na forma de um homem, e tentou seduzi-la; contudo, foi novamente

subjugado por ela, esmagou sua cabeça com seus pés.

Margarida foi novamente levada para Olybrius; como ainda se recusasse a entregar-se a

ele, foi outra vez torturada – todavia, a visão de tamanha resistência em uma mulher tão jovem e

bela inspirou mais conversões ao cristianismo, de tal modo que em apenas um dia, cinco mil

pessoas foram batizadas e mostraram-se dispostas a morrer com a santa. Para detê-la e evitar

mais conversões, Olybrius resolveu decapitá-la. A caminho da morte, Margarida fez uma prece,

rogando que aqueles que a invocassem durante as dores do parto encontrassem alívio – o que,

consoante as crenças populares, está relacionado ao seu “renascimento” após ter sido devorada

pelo dragão; a santa ouviu uma voz que, vindo dos céus, assegurou-a de que sua prece seria

atendida – e desse modo morreu, aceitando plena de alegria a coroa do martírio.


140

Uma das demonstrações mais claras da popularidade de santa Margarida é o fato de sua

história haver sido inúmeras vezes recontada no período medieval, o que certamente contribuiu

para a disseminação de uma figura que muito nos interessa: a jovem e virgem pastora que

defende fervorosamente sua castidade e sua fé perante seus adversários. Decerto que realizar um

estudo aprofundado das versões medievais para a vida de santa Margarida foge ao escopo desta

tese; assim, comentaremos apenas três versões da lenda, cuja importância no medievo é inegável:

a versão assinada por Wace – a poeta normando contemporâneo de Marcabru, autor de obras de

cunho histórico e hagiográfico –, a versão presente na Legenda áurea e a versão médio-inglesa

constante das Gilte Legende.

À guisa de alguma contextualização histórica, vale observar que, consoante Anna

Jameson (1857, p. 516), a lenda de santa Margarida, de origem grega, já era conhecida na Europa

no século V, estando entre as que foram repudiadas pelo papa Gelásio I como apócrifas em 494; a

narrativa gozou de uma popularidade crescente a partir do século XI e, no século XIV, ela já se

havia tornado uma das santas mais cultuadas na Europa. Afirma Mary Clayton e Hugh Magennis

(1994, p. 3) que, embora a origem da lenda não seja conhecida, nos primeiros documentos em

latim consta o nome grego Marina; do século IX em diante, esse nome dá lugar aos nomes

Margarita ou Margareta. De acordo com esses mesmos estudiosos, a documentação mais antiga

relacionada à santa data do século VIII, quando ela começa a aparecer freqüentemente em

martirológios; no século XII, santa Margarida torna-se especialmente popular no Ocidente, o que

perdurará até o fim do período medieval: ela é, por exemplo, uma das santas cujas vozes são

ouvidas por Joana d’Arc (Clayton; Magennis, 1994, p. 3).


141

Considerada a obra mais antiga de Wace, a Vie de sainte Marguerite alcançou em sua

época um surpreendente sucesso, havendo cópias suas datadas ainda do século XIV; essa

popularidade pode talvez ser relacionada a uma campanha pela disseminação da lenda de

Margarida fora da Inglaterra e da Normandia, onde era mais conhecida, por ocasião da

transferência de suas relíquias para a catedral de Montefalcone, na Itália, em 1145. A relação

entre esse fato e o poema, contudo, é meramente hipotética, sobretudo porque nem a catedral,

nem as relíquias sejam mencionadas na obra do poeta normando. Uma outra possibilidade é que o

poema tenha sido comissionado por um nobre normando, uma vez que a própria família real

anglo-normanda havia produzido uma Margarida santificada na pessoa da homônima irmã de

Edgar Atheling, avó da imperatriz Matilda; como parte da propaganda contra a referida

imperatriz, a composição de Wace serviria para ofuscar a popularidade da Margarida anglo-

normanda 157 . Embora essas hipóteses, em si, não sejam relevantes para nossa pesquisa, elas

trazem hipóteses instigantes relacionadas à disseminação da figura de uma pastora associada aos

valores cristãos na Europa medieval.

A versão de Wace para a lenda de santa Margarida apresenta notáveis variações

relativamente à narrativa hagiográfica mais comum, que transcrevemos anteriormente 158 . Wace

apresenta Margarida como rejeitada desde logo por seu pai devido à sua religiosidade; a jovem,

não obstante, toma para si como exemplos os mártires, decidindo devotar sua virgindade a Cristo.

As torturas sofridas por Margarida também recebem um tratamento particupar por parte do poeta

normando, que procura estabelecer uma espécie de gradação: as torturas sofridas pela santa vão

157
Essas duas hipóteses, aventadas respectivamente por Elizabeth Francis e Hans-Erich Keller, são
comentadas em Le Saux, 2005, p. 14.
158
Para uma análise detalhada das adaptações inseridas por Wace, que tomamos como base para esta síntese,
cf. Le Saux, 2005, p. 18-29.
142

se tornando cada vez mais severas, até que o sofrimento culmina em sua morte triunfal. Wace

explora elementos de nítido valor simbólico – torturas relacionadas à água e ao fogo, por

exemplo – e faz com que ocorram milagres que confirmam a santidade da jovem; é aliás a tortura

pela água, associada por Margarida ao batismo, que enseja a aparição da pomba divina e da voz

celestial. Ao fim, é a própria santa quem ordena que o relutante carrasco a decapite, o que

desencadeia diversas manifestações de sentido nitidamente divino, como terremotos e a aparição

de anjos.

Compilada em meados do século XIII por Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova, a

Legenda áurea foi uma das mais populares obras religiosas da Idade Média. A versão da vida de

santa Margarida nela presente é atribuída a um “sábio” de nome Teótimo; já na epígrafe do texto,

a santa é comparada a uma pequena gema branca, pequena e virtuosa que leva o seu nome:

“assim como a bem-aventurada Margarida foi branca por sua virgindade, pequena por sua

humildade, poderosa na realização de milagres” (VARAZZE, 2003, p. 535). 159 .

Também nesta versão, já no princípio do texto é mencionada a oposição entre santa

Margarida e seu pai: diz-nos a narrativa que, quando se tornou adulta, a santa resolveu ser

batizada, o que logo despertou o ódio paterno. Aos quinze anos, quando apascentava ovelhas

junto com outras virgens, Margarida foi vista por Olybrius (na tradução brasileira, Olíbrio), que

imediatamente se apaixonou por ela e enviou seus criados para capturá-la.

Interrogada por seu raptor, Margarida apresenta-se como uma nobre seguidora da religião

cristã, o que enseja uma observação de Olybrius: se a origem nobre e o nome parecem-lhe

adequados à jovem, não lhe parece conveniente que uma pessoa tão bela e de alta origem tenha

159
A síntese a seguir apresentada é baseada na tradução brasileira, de Hilário Franco Jr. (2003, p. 535-538).
143

como deus um crucificado. Após uma breve discussão, durante a qual Margarida defende a

crucificação como um gesto a favor da redenção da humanidade, Margarida é levada para a

prisão, onde têm lugar as torturas. Depois de ser chicoteada, a jovem é arranhada com pentes de

ferro que fazem jorrar de seu corpo o sangue como se de uma límpida fonte. Conquanto aqueles

que assistem à tortura chorem perante a dor da jovem, rogando que ela aceite os deuses pagãos,

Margarida resiste bravamente: embora seu corpo possa ser sujeitado, sua alma pertence a Cristo.

Também neste relato o próprio Olybrius, incapaz de suportar a visão do sangue que jorra, cobre

seu rosto com o manto.

Devolvida à prisão, Margarida é visitada pelo demônio sob a forma de um dragão, que se

lança sobre ela para devorá-la; mas a jovem, fazendo o sinal-da-cruz, provoca o desaparecimento

do monstro – Jacopo menciona que há versões em que Margarida é engolida logo depois de fazer

o sinal-da-cruz, pelo que o monstro explode; não obstante, rejeita-as como apócrifas e de pouco

valor. Na segunda visita, o demônio aparece sob a forma humana, sendo no entanto revelado após

uma prece de Margarida: a santa subjuga o demônio, segurando-o pela cabeça e lançando-o ao

chão; depois o subjuga, pisando com o pé direito sobre a sua cabeça. Reconhecendo-se derrotado,

o demônio lamenta que o tenha sido por uma jovem virgem, sobretudo por Margarida – visto que

seu pai e sua mãe, enquanto pagãos, haviam sido seus bons amigos. Depois, interrogado pela

jovem, o demônio revela sua identidade: ele é um dos demônios que Salomão encerrou em um

vaso de bronze, e que mais tarde foram libertados acidentalmente por homens que julgaram que o

vaso continha um grande tesouro.

O sentido simbólico das outras torturas também aqui faz-se presente: novamente, ao ser

lançada na água que deveria aumentar sua dor, Margarida emerge ilesa, o que indica uma relação
144

com a água batismal; esse milagre provoca a conversão à fé cristã de milhares de homens,

imediatamente sentenciados à morte. Quando Olybrius manda decapitar a jovem, é Margarida

quem incita o verdugo a executá-la, após o que recebe a coroa do martírio. Assim se encerra a

narração da Legenda áurea.

Datando de meados do século XV, a versão médio-inglesa é parte das Gilte Legende, que

são essencialmente traduções das Legende Doree de Jean de Vignay, de meados do século XIV;

essas, por sua vez, são em larga medida traduções da Legenda áurea de Jacopo de Varazze.

Embora date, por conseguinte, de um período bastante posterior à composição das pastorelas,

conhecê-la pode representar uma oportunidade para conhecermos elementos da hagiografia de

santa Margarida que se sedimentaram durante o período medieval.

A versão constante das Gilte Legende segue de perto a da Legenda áurea, mas há nela

uma variação que nos parece bastante significativa, relativa ao seu confronto com o demônio 160 .

Na versão das Gilte Legende, Margarida segura o diabo pelos cabelos, atira-o no chão e pisoteia

seu pescoço até que ele se confesse um perseguidor das almas cristãs; o demônio, ao responder,

afirma invejar os homens cristãos devido à benção que ele mesmo um dia teve, mas perdera e

jamais poderia recuperar – uma referência à passagem veterotestamentária do Livro de Isaías que

trata da queda de Lúcifer (Is 14, 5-18).

Essa referência não consta do texto da Legenda áurea, devendo portanto ser interpretada

como um acréscimo do escriba das Gilte Legende; não obstante, parece haver aí uma intenção

subjacente de enfatizar a permanente batalha entre Deus e Satã – entre o bem e o mal – , na qual

Margarida se insere como uma defensora de Cristo; ademais, o fator determinante para a vitória

160
A síntese a seguir é baseada em Tracy (2003, p. 40-44).
145

de Margarida é sua força de vontade: é precisamente isso o que lhe permite superar a fragilidade

intrínseca à sua condição feminina e derrotar seu poderoso adversário (TRACY, 2003, p. 40).

Como veremos a seguir, essa força espiritual é um dos elementos mais relevantes para o nosso

estudo.
146

4. 3. A defesa da virtude

De fato, algo que pode ser considerado característico de todas as versões da história de

santa Margarida é sua inabalável determinação: embora seja uma mulher jovem e frágil – uma

fragilidade que lhe é intrínseca, uma vez que em todas as narrativas biográficas ela é entregue,

ainda criança, a uma enfermeira que será responsável por sua saúde – , Margarida retira de sua fé

a força espiritual que a faz enfrentar, com sucesso, todos os tipos de provações, desde as mais

severas torturas físicas (tanto os castigos impingidos por Olybrius quanto os – literalmente –

inconcebíveis sofrimentos decorrentes de ser devorada vida por um dragão) até as tentações que

colocam à prova seu caráter: a possibilidade de tornar-se esposa de um prefeito romano, desde

que se disponha a renegar sua fé; a visita do próprio Satã, que ela é capaz de reconhecer, ainda

que tenha assumido uma forma humana.

Não deixa de ser instigante o fato de que a enfermeira de Margarida – portanto,

responsável por conservar sua saúde física – é também quem faz com que a jovem se torne uma

cristã: é possível entrever já nesse trecho inicial da lenda a convergência entre duas dimensões, a

física e a espiritual, entre as quais clivagem alguma se impõe durante toda a narrativa. A ingente

resistência física de Margarida é, afinal, um reflexo de sua fé inabalável, o que se concretiza

sobretudo em sua condição casta. Margarida entregou-se a Cristo: sua virgindade é o símbolo

dessa entrega, e por isso a santa está determinada a preservá-la, ainda que por isso tenha que

enfrentar as mais árduas provações. Na versão de Wace, há um dístico constante da prece de

Margarida, derivado de versões latinas anteriores, que sintetiza essa singular disposição: “que
147

virgene sui et monde et pure / Molt sui nete do tote ordure” 161 (“que virgem sou, e limpa e pura /

e sou totalmente livre de toda a sujeira”).

É possível estabelecer uma articulação entre a história de santa Margarida e uma narrativa

cristã mais antiga: a narrativa hagiográfica de santa Inês de Roma 162 . Santa Inês não era uma

pastora, mas seu nome original permite que se estabeleça uma relação entre ela e o já mencionado

imaginário relacionado às pastoras: era chamada Agnes – cabendo observar que o abjetivo grego

αγνή pode ser traduzido como ‘casta’ ‘pura’ ou ‘sagrada’ 163 e que, em latim, agnus significa

‘cordeiro’. De acordo com a lenda, santa Inês era uma virgem que, aos doze anos 164 , consagrou-

se a Cristo. Levada para um bordel, a jovem permaneceu imaculada porque todos aqueles que a

desejavam eram cegados pela ação divina; ou, segundo certas versões, seus cabelos tornaram-se

de tal modo espessos que cobriram seu corpo e a protegeram.

Como ninguém jamais lograsse tocar o seu corpo – de fato, conta-se que os homens que a

encontravam no bordel saíam de lá mais puros do que quando entravam, graças à ação divina –,

Inês foi finalmente decapitada, tornando-se uma das mártires mais populares no cristianismo. A

santa é sempre representada ao lado de um cordeiro – símbolo que, se por um lado está associado

a ela já por conta de seu nome, é simultaneamente um símbolo crístico: trata-se por conseguinte

de um símbolo bipartido, ao mesmo tempo significando a castidade e o sacrifício (BAERT, 2005,

163). Assim como no caso de santa Margarida, santa Inês preferiu o sacrifício a perder sua

condição virginal, logrando assim conservar sua pureza.

161
Citado por Le Saux (2000, p. 24).
162
Essa relação foi percebida por Paden (1998b, p. 5).
163
Cf. o dicionário de Bailly, αγνός, ή, όν (1901, p. 6).
164
Algumas versões, como a da Legenda áurea, elevam a idade para treze anos (cf. VAREZZE, 2003, p. 183).
148

O que perpassa todas essas histórias – de Raquel, santa Inês e santa Margarida – é um

conjunto de símbolos e de valores constantes: elementos pastorais (ovelhas e cordeiros) e

narrativas que enfatizam o que poderíamos qualificar como “qualidades espirituais” (a bondade

de Raquel; a castidade e a determinação de santa Inês e santa Margarida). Certamente a

popularidade das referidas santas católicas – Inês, sobretudo no contexto romano, e Margarida no

âmbito medieval – contribuiu para o fortalecimento da associação da simbologia pastoral à defesa

da pureza e da castidade; se seria temerário afirmar que isso influenciou de maneira imediata a

emergência das pastorelas, quando menos forneceu elementos que foram desenvolvidos nas

composições medievais.

Conquanto haja quem chegue a ponto de efetivamente classificar a história de santa

Margarida como uma pastorela – é o que faz Michel Zink (1972, p. 9); após citar um trecho da

versão poética de Wace para a narrativa hagiográfica, afirma: “E é assim que se encontra,

inserido em um texto narrativo e edificante, a mais antiga pastorela em langue d’oïl e talvez a

mais antiga pastorela” 165 –, julgamos mais prudente considerar que esse tenha sido mais um

fator, sem dúvida fundamental, que contribuiu para que houvesse as condições adequadas para o

surgimento daquele gênero poético.

Não se trata, portanto, de afirmar que Marcabru tenha retirado de Wace, ou de quaisquer

das narrativas aqui mencionadas, inspiração para compor L’autrier jost’una sebissa; não

afastamos, em momento algum, a possibilidade de que ele tenha simplesmente se apropriado de

um gênero poético popular e o tenha recriado a partir de seu estro – de fato, com alguma

prudência, jamais seremos capazes de deixar esse âmbito especulativo. Não obstante, se o

165
“Et c’est ainsi qu’on trouve, insérée dans un text narratif et édifiant, la plus ancienne pastourelle de langue
d’oïl et peut-être la plus ancienne pastourelle tout court.”
149

trovador occitânico elegeu precisamente esse gênero poético, e se optou por fazer

especificamente da pastora uma defensora da virtude, influenciando de maneira determinante a

lírica medieval em langue d’oïl, parece-nos provável que o fizesse de forma consciente – se não

por conhecer as narrativas hagiográficas aqui mencionadas, o que não é de modo algum

improvável, ao menos por lidar conscientemente com elementos do imaginário medievo-cristão

que se mostravam úteis para seu empreendimento. Não se trata, portanto, de afirmar

peremptoriamente que a pastora de Marcabru seja uma nova encarnação de Raquel, santa Inês ou

santa Margarida; mas de sugerir, com mais cautela, que as semelhanças constatáveis entre elas

dificilmente poderiam ser creditadas a um mero acidente.


150

5 A CONSTRUÇÃO DA ALEGORIA

Embora há muito venhamos adjetivando como “alegórico” o modelo de pastorelas

cunhado por Marcabru, até o momento essa adjetivação em si não foi objeto de qualquer análise

mais aprofundada. O presente capítulo visa abordar essa questão, com a finalidade de fornecer

subsídios para uma melhor compreensão do processo de alegorização das pastorelas que

percebemos no âmbito da poesia occitânica medieval. Trata-se de compreender, em primeiro

lugar, o que se entende por alegoria no pensamento medieval; e, num segundo momento, de

compreender como as pastorelas podem ser inseridas no âmbito da literatura alegórica produzida

na Idade Média.

Através dessas questões, será possível alcançar o sentido da alegorização da figura da

pastora no seio da lírica medieval; o que, por outro lado, nos fornecerá mais elementos para

avaliar devidamente o lugar da invenção de Marcabru, bem como as condições que tornaram

possível a sua emergência naquele momento histórico em particular.

5. 1. As origens da alegoria medieval: dos antigos a Eriúgena

Duas coisas, que talvez não estejam suficientemente claras, devem ser já enfatizadas: a

alegoria não foi, evidentemente, uma invenção medieval; tampouco se trata de algo restrito ao

campo da literatura. A fim de melhor esclarecer esses pontos, cabe retroceder até as origens desse

conceito, o que nos encaminhará para uma breve digressão em torno do antigo pensamento grego.

Poderemos, então, acompanhar – de maneira necessariamente sucinta, uma vez que o assunto é
151

demasiado extenso – algumas etapas do desenvolvimento do pensamento alegórico até a Idade

Média.

Observa Jean Pépin que, conquanto recente na língua grega, a palavra λληγορία

(‘alegoria’) está relacionada à antiga ideia expressa através de outra palavra: πόνοια 166 –

vocábulo que, em seu sentido primário, supõe uma relação entre dois conteúdos mentais de

natureza diversa: está relacionado, de um lado, a um dado concreto e apresentado à percepção; de

outro lado, sugere uma ideia que supera o mundo sensível – de modo que πόνοια designa a

operação por meio da qual se passa do dado à conjectura. Numa acepção particular, a πόνοια

está relacionada à intepretação alegórica dos textos poéticos, das representações plásticas e dos

mitos filosóficos ou religiosos, de modo que aponta para o seu significado oculto: o sentido

inteligível que está velado por sob o dado sensível, narrativo, descritivo ou plástico (PÉPIN, 1958,

p. 85).

O pensamento grego conceituou a diferença entre o conhecimento imediato e aquele

derivado da exegese alegórica. Filôstratos 167 fez menção, no âmbito teológico, à dualidade do

conhecimento que se dá ora de forma mediata, através da liturgia ou da alegoria, ora de forma

imediata e transparente – sendo essa última própria daqueles que, por sua perfeição, vivem em

contato com a divindade; Menandro 168 observou a oposição existente entre a expressão alegórica,

na qual o conhecimento encontra-se velado, e aquela que o manifesta de forma clara; para

166
De acordo com o dicionário de Anatole Bailly (1901, p. 912): suposição, conjectura, ficção, suspeita,
pensamento, sentido, significação – ou ainda: significação simbólica ou alegórica. ( πόνοια, ας ( ) 1 supposition,
conjecture; particul. fiction ... 2 penséé, sens, signification; particul. signification symbolique ou allégorique)
167
Filôstratos, nome de quatro membros de uma família de Lemnos que viveu entre os séculos II e III.
168
Menandro (c. 342-292 AEC), poeta ático, mais conhecido autor da Comédia Nova.
152

Aristóteles 169 , isso implicaria uma percepção dualista que colocaria, de um lado, os antigos

autores cômicos, cujas obras tomariam como base o sentido óbvio, e os modernos, que recorriam

ao sentido alegórico. É em Plutarco 170 que se registra a transição vocabular de πόνοια para

λληγορία, no mesmo período em que emerge o verbo λληγορε ν com o sentido de

“interpretar alegoricamente” (PÉPIN, 1958, p. 87-88).

Cabe observar, contudo, que o pensamento antigo nem sempre concebia a alegoria como

algo propriamente relacionado à literatura. Para os estóicos, por exemplo, a exegese alegórica era

concebida como um método a ser utilizado para a interpretação dos mitos da religião popular;

eles a utilizaram de tal modo que, consoante alguns teóricos, não chegaram a estabelecer uma

distinção entre o procedimento alegórico e a etimologia (GOURINAT, 2006, p. 11-12). Quintiliano,

por outro lado, concebia a alegoria como pertencente ao campo da retórica: ele a concebia como

derivada de um uso continuado da metáfora, pelo que acabou por defini-la como o recurso que

apresenta uma coisa em palavras e outra em significado; de modo que, para certa tradição retórica

– que remonta sobretudo a Aristóteles, sistematizador de concepções herdadas dos sofistas e de

Platão 171 , e no seio da qual se insere Quintiliano – , a alegoria em si não está relacionada a um

sentido espiritual de cunho metafísico ou teológico (LONGXI, 2005, pp. 99-100). Vejamos

brevemente algumas dessas concepções.

A Poética de Aristóteles concebe a alegoria como uma espécie de metáfora, definida

como “transportar para uma coisa o nome de outra, ou do género para a espécie, ou da espécie

para o género, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES,

169
Aristóteles (c. 384-322 AEC), um dos mais importante filósofos gregos, fundador da chamada Escola
Peripatética.
170
Plutarco (c. 46 AEC-120 EC), biógrafo e filósofo grego.
171
Para uma visão contextualizada da retórica medieval, cf. Mongelli (1999).
153

2003, p. 134: XXI, 1457b6-8); também na Retórica trata o filósofo dos símiles que se expressam

“sempre partindo de dois termos, tal como a metáfora por analogia” (ARISTÓTELES, 2005, p. 273:

III.11, 1412b-1413a). Na pseudo-ciceriana Retórica a Herênio, encontramos a definição de

permutatio 172 como a oração que manifesta uma coisa por palavras e outra em sentido173

(CÍCERO, 1954, p. 346: IV, 34. 46). Já em uma de suas cartas a Ático, Cícero utiliza o termo em

um contexto específico: diante da possibilidade de não encontrar um mensageiro confiável,

sobretudo num ambiente de instabilidade política que o afetava diretamente – o ano era 59 AEC;

César, Pompeu e Crasso haviam formado o Primeiro Triunvirato, aliança política da qual Cícero

recusara-se a participar, o que posteriormente ensejaria seu exílio na Macedônia – , avisa a Ático

que, caso fosse necessário escrever-lhe novamente, velaria o texto por intermédio de

alegorias 174 (CÍCERO, 2004, p. 252: 40 (II. 20), 3, 2-3); vale notar que Cícero grafa o termo em

caracteres gregos, possível indício de que o termo latino ainda não era utilizado de forma

corrente.

Antes de nos afastarmos da Antiguidade, pode ser esclarecedor tratar, sucintamente, das

controvérsias em torno da interpretação alegórica de Homero. Porfírio 175 nos permite saber que

os primeiros esforços nessa direção, que interpretavam os deuses homéricos como elementos

físicos ou abstratos do universo, datam já do século VI: contra as críticas que consideravam que o

substrato mitológico da literatura homérica era inadequado, houve quem substituísse a ênfase

sobre o que era dito para a maneira de se dizer, o que possibilitou a inferência de que Homero

escrevera, na verdade, de forma alegórica – de modo que haveria conferido, por exemplo, ao fogo

172
Na edição que utilizamos, o editor e tradutor Harry Caplan cuida de explicitar em nota a relação entre a
permutatio e a alegoria ( λληγορία); cf. CÍCERO, 1954, p. 345, n. 164.
173
“Permutatio est oratio aliud verbis aliud sententia demonstrans.”
174
“... itaque posthac, si erunt mihi plura ad te scribenda, λληγορίαις obscurabo.”
175
Porfírio, filósofo neoplatônico (c. 233-301).
154

os nomes de Apolo, Hélio e Hefesto, à lua o nome de Ártemis, ao desejo o nome de Afrodite e

assim por diante; essa via interpretativa, de acordo com Porfírio, começou com Teógenes de

Regium 176 – o primeiro, por conseguinte, a oferecer a possibilidade de leitura alegórica de um

texto narrativo. Nos séculos seguintes, esse tipo de interpretação seria levado adiante por outros

pensadores gregos: para Anaxágoras 177 , a literatura homérica estaria relacionada às idéias de

justiça e virtude; seus discípulos cuidariam de interpretar alegoricamente os deuses nela presentes

– inferindo, por exemplo, que Zeus representaria a razão e Atena, a arte. Alguns dos sofistas,

como Pródico de Ceos 178 , chegariam a ver nos deuses homéricos a representação de elementos da

vida cotidiana dos homens: Deméter representaria o pão e Dioniso representaria o vinho, por

exemplo (BRISSON, 2004, p. 35-37). Essas possibilidades de leitura alegórica representariam,

consoante Curtius (1957, p. 211), uma salvação para os gregos que “não queriam renunciar nem a

Homero, nem à ciência”, sobretudo após os fortes ataques de pensadores como Xenófanes 179 ,

Heráclito 180 e, principalmente, Platão 181 : uma tradição crítica perante a qual os atos dos deuses

homéricos pareciam indignos do que se exige do divino e, por conseguinte, impróprios (JAEGER,

2001, p. 770-771).

A interpretação alegórica logo alcançaria a tradição judaica: data de entre os séculos III e I

AEC a carta de Aristéias a seu irmão Filócrates 182 em que é possível encontrar as primeiras

176
Teógenes de Regium, filósofo grego do século VI.
177
Anaxágoras de Clazômenas (c. 500-428 AEC), filósofo grego.
178
Pródico de Ceos, sofista grego do séc. V AEC.
179
Xenófanes de Cólofon (c. 570-460 AEC), filósofo grego.
180
Heráclito de Éfeso (c. 540-470 AEC), filósofo grego.
181
Platão de Atenas (c. 427-347 AEC), um dos mais importantes filósofos gregos.
182
Não há certeza de que qualquer dos nomes seja real; é provável que o nome Aristéias tenha sido
emprestado do homônimo historiador judeu. Para uma discussão mais aprofundada em torno da carta de Aristéias, cf.
Wendland, 1901-1906, p. 92-94.
155

tentativas nesse sentido. Consoante Filo de Alexandria 183 , Moisés teria se comunicado de forma

deliberadamente alegórica, a tal ponto que esse é por aquele denominado hierofante

( εροφάντης), visto que teria comunicado mistérios secretos para um grupo de discípulos – o

que implica a ideia de que, para Filo, o sentido alegórico era mais importante do que o literal

(ANDERSON, 1999, p. 175-176). Essa tradição influenciaria os procedimentos exegéticos cristãos,

alcançando o discurso interpretativo paulino 184 .

Na passagem da Antiguidade para a Idade Média, é necessário fazer alguma referência à

reconceituação da alegoria empreendida por Agostinho. O problema em questão pode ser

sintetizado da seguinte forma: no âmbito da tradição alegórica bíblica, acabaria por emergir uma

clivagem entre aquilo que é figurado pela linguagem e o processo de figuração em si mesmo –

clivagem essa que Agostinho redefiniria através de uma conceituação que distinguia a allegoria

in verbis e a allegoria in factis; devido a essa solução, Agostinho seria considerado o primeiro

fundador de uma “teoria do signo”, precisamente porque seu pensamento estabelecerá uma

diferença entre “signos que são palavras e coisas que podem agir como signos” (ECO, 1989, p.

83). O que nos interessa em particular, não obstante, são as alegorias textuais; assim, procuremos

acompanhar mais detidamente o pensamento agostiniano acerca desse assunto, tomando como

ponto de partida a teoria dos signos constante de seu tratado De Doctrina Christiana 185 .

Segundo Agostinho, o efetivamente importante não é o que a coisa (res) é em si mesma,

mas o que ela significa; dessa forma, o signo (signum) é aquilo que, para além da impressão

sensível, traz uma outra coisa à cogitação: quando vemos fumaça, intuímos que sob ela deve

183
Filo de Alexandria (25 AEC-50), filósofo judeu-helenístico.
184
Cf. Anderson, 1999, cap. 4.
185
Na edição de Migne, Patrologia Latina v. 34 (Agostinho, 1981); para uma tradução brasileira, cf.
Agostinho, 2002.
156

haver fogo; se ouvimos a voz de alguma criatura, procuramos perceber seu estado anímico e

assim por diante (De Doctrina Christiana, II, 1, 1). Há, no entanto, uma diferença entre os signos

naturais (signa naturalia) – que manifestam ao entendimento algo além de si mesmos sem que

nisso haja qualquer vontade ou intenção, como a fumaça manifesta o fogo, por exemplo (De

Doctrina Christiana, II, I, 2) – e os signos dados (signa data), que são utilizados pelos viventes

para manifestar estados anímicos como sensações ou pensamentos. Esse tipo de signo é utilizado

não apenas pelos animais – por exemplo, pelo pombo que, através de seu arrulho, chama a pomba

ou é chamado por ela – , mas também pelos homens – que o utilizaram no texto bíblico para

comunicar os signos divinos (De Doctrina Christiana, II, 2, 3). Para que as palavras perdurassem

além do efêmero tempo de sua enunciação, os homens inventaram a escrita; todavia, nem as

palavras, nem a escrita são comuns a toda a humanidade, em razão da arrogância humana –

“arrogância cujo signo é aquela torre erguida para o céu” 186 . Por isso, embora a Bíblia tenha

surgido de uma única língua, teve que ser divulgada pelo mundo em línguas diversas (De

Doctrina Christiana, II, 4, 5-5,6).

Conquanto o texto bíblico seja obscuro em diversos momentos, isso não se deve ao acaso:

com efeito, Agostinho supõe que haja para isso uma razão divina – a obscuridade visa aplacar o

orgulho humano, através do trabalho, e evitar que o intelecto seja tomado pelo fastio (De

Doctrina Christiana, II, 6, 7). Por outro lado, é mais prazerosa a descoberta quando ela se dá

após a dificuldade: sente fome aquele que não encontra logo o que procura, enquanto o que de

pronto tem aquilo que deseja sente fastio; assim, o Espírito Santo ordenou o texto bíblico de

forma que sacie a fome nos trechos mais obscuros (De Doctrina Christiana, II, 6, 8). Agostinho

186
“Cuius superbiae signum est erecta illa turris in caelum” – alusão, é claro, à torre de Babel (Gn 11, 1-9).
157

adotaria a mesma postura em diversos outros momentos, observando que a obscuridade textual

opera como uma espécie de véu que preserva o mistério quando isso se faz necessário: o fim da

obscuridade é precisamente excitar a curiosidade e inflamar o ardor – como os véus que, sempre

sedutores, incitam-nos a levantá-los (POLAND, 1988, p. 39).

É no âmbito dessa teoria dos signos que devemos compreender o pensamento de

Agostinho sobre a alegoria. A significação, no contexto bíblico, não consiste num vínculo

imediato entre palavra e significado, mas num movimento indireto que vai dos signos às coisas

significadas mediado por coisas intermediárias: dessa forma, na leitura agostiniana, a vara que

Moisés lançou às águas para torná-las potáveis (Ex 15, 22-25) é um signo (enquanto palavra) que

remete a uma coisa (a vara realmente utilizada por Moisés) que, no entanto, é em si mesma um

outro signo, dado que significa a cruz de Cristo; por conseguinte, as palavras e as frases presentes

na Bíblia, operando consoante a tríplice estrutura do signo bíblico, apontam para uma pessoa

física ou histórica, ou um objeto, ou lugar, ou evento entre o signo e a coisa significada – o que,

na terminologia agostiniana, qualifica-as como figuras (figurae) ou alegorias (allegoriae) 187

(DAWSON, 1999, p. 366). Como observa Poland (1988, p. 46-47), o processo de desvelamento das

relações que constituem a alegoria encerra, para Agostinho, uma espécie de provação: se as

dificuldades decorrentes da obscuridade do texto provocam uma crise na fé, por outro lado elas

proveem a ocasião para que a fé seja reconfirmada através do próprio desvelamento – de onde o

“prazer da descoberta” há pouco referido. Assim, o conceito agostiniano de alegoria não é

propriamente uma descrição do texto bíblico, mas uma descrição da própria transformação do

187
Consoante Dawson (1999, p. 366), Agostinho usa os termos como sinônimo até a época em que escreve o
seu comentário ao Gênesis, quando passa a reservar o termo allegoria como referência para as relações entre
palavras bíblicas e seus referentes espirituais, omitindo a categoria intermediária de realidades físicas ou históricas.
158

leitor decorrente de sua relação interativa com a Bíblia ao longo do processo de leitura exegética

(DAWSON, 1999, p. 367).

Cabe observar, por outro lado, que o processo interpretativo estabelecido por Agostinho

não implica uma desvalorização da superfície textual: se essa opera como um véu que oculta a

verdade, nesse sentido não se assemelha às imagens da arte, à escultura e à poesia, que são

essencialmente ilusórias; no caso particular das narrativas bíblicas, a esse velamento é conferido

um valor positivo, na medida em que encaminha o homem para a verdade – de onde a metáfora

elaborada pelo eminente teólogo: o véu que a alegoria lança sobre a verdade assemelha-se à

cortina que vela e honra um imperador, protegendo-o contra qualquer tipo de familiaridade e

impedindo que a coisa velada se desvalorize. Isso quer dizer que o véu afasta a alegoria dos que

não são seus merecedores, cegando-os como uma forma de punição; por outro lado, o sentido

alegórico encaminha-se para os homens de fé e os exegetas que podem alcançá-la em toda a sua

profundidade, que se sentem atraídos em sua direção justamente devido à sua qualidade literária e

artística. Estamos, portanto, diante de uma “teologia estética”, uma vez que se trata da revelação

divina no reino temporal através de símbolos e imagens que, por sua beleza, inspiram o homem

obscurecido pela Queda a procurar a verdade velada pelas alegorias através da fé, da esperança e

do amor (HARRISON, 1992, p. 90-96) 188 .

Se Agostinho estabeleceu as bases para a distinção entre a alegoria enquanto recurso

textual e seu conteúdo factual, essa questão seria desenvolvida de uma forma particular por Beda,

segundo quem a alegoria estaria relacionada ora a palavras (verba), ora a eventos (facta). Isso

quer dizer que há, de um lado, palavras que são, em si mesmas, alegóricas no âmbito do texto

188
Mais à frente nesta seção, reencontraremos essa percepção no pensamento de João Escoto Eriúgena.
159

bíblico; e outras que não são alegóricas em si mesmas, mas que se referem a eventos que

encerram, eles mesmos, um sentido alegórico. Se a alegoria verbal é um tropo, consistindo no uso

da linguagem figurativa para a expressão de conteúdos proféticos no Velho Testamento, a

alegoria factual é a própria tipologia neotestamentária – porquanto Deus, autor do universo,

ordenou a criação de tal forma que ela opera em dois níveis, o imediato e o profético: se Isaac é

factualmente Isaac, é também uma profecia de Cristo (MACQUEEN, 1970, p. 52-53).

Consoante Beda, quando a Bíblia afirma: “Porque brotará um rebento do tronco de Jessé,

e das suas raízes um renovo frutificará” (Is 11, 1), é possível entrever um jogo verbal com

implicações alegóricas: se o renovo simboliza Cristo e as raízes do tronco de Jessé representam

Davi e sua descendência, o tronco – no texto latino, virga – está relacionado à virgo (Maria), de

modo que o referido versículo deve ser assim interpretado: Jesus Cristo nasceu da árvore de Davi

através da Virgem Maria. Por outro lado, se afirma a Bíblia que “que Abraão teve dois filhos, um

da escrava, e outro da livre” (Gl 4, 22), o conteúdo alegórico não está nas palavras em si mesmas,

mas no acontecimento descrito: os dois filhos nascidos de Abraão representam os dois

testamentos (HUPPÉ, 1959, p. 43-44).

Para determinar as possíveis formas de leitura e limitar as possibilidades da interpretação

individual, Beda terá a preocupação de caracterizar os diversos níveis de sentido: o histórico, o

alegórico, o tropológico e o moral. Desse modo, quando o salmista escreve: “Louva, ó Jerusalém,

ao Senhor; louva, ó Sião, ao teu Deus” (Sl 147, 12), Jerusalém pode ser compreendida nos quatro

níveis: significa, “no nível histórico, as cidades da terra; no nível alegórico, a Igreja de Cristo; no

nível tropológico, a alma abençoada, onde quer que esteja; no nível anagógico, a terra nativa do
160

paraíso” 189 . Esse método exegético remonta, na verdade, a João Cassiano, teólogo cristão do

quinto século; o que cabe observar a partir desse procedimento é que, interpretada

alegoricamente, a Bíblia constitui efetivamente um sumário enciclopédico não apenas da mais

alta sabedoria, mas de toda a sabedoria: todas as palavras e todos os eventos constantes do texto

bíblico podem ser alegoricamente interpretados, bem como toda a criação e toda a história

(HUPPÉ, 1959, p. 45).

Para compreender devidamente a dimensão teológica do pensamento alegórico medieval,

julgamos conveniente tratar ainda do pensamento de João Escoto Eriúgena, teólogo do século IX

que ocupa um lugar fundamental no contexto medievo, na medida em que simultaneamente

sintetiza tendências filosóficas e teológicas anteriores e abre caminho para uma renovação no

pensamento da Idade Média. Não obstante, devido à complexidade do pensamento de Eriúgena,

será necessário proceder a uma breve apresentação de sua filosofia antes que possamos nos

concentrar na questão da alegoria.

Podemos tomar como ponto de partida a concepção de natureza (natura) no pensamento

de Escoto Eriúgena. Essa natureza não guarda nenhuma relação com o sentido mais comum

contemporaneamente, ou seja, o mundo material mais alheio à intervenção humana (entendendo-

se, por conseguinte, o mundo natural como oposto ao mundo artificial): para Eriúgena, a natureza

engloba tudo o que é e tudo o que não é – constituindo, perante a razão humana, um genus que se

divide em quatro species: a primeira é o que cria e não é criado, a segunda o que é criado e cria, a

terceira o que é criado e não cria, a quarta o que nem cria nem é criado (De divisione naturae, I,

189
“Jerusalem may be interpreted as any of the four levels: ‘Jerusalem may rightly be understood to concern
on the historical level, the cities of the earth; on the allegorical level, the Church of Christ; on the tropological level,
the blessed soul wheresoever it is’on the anagogical level, the native land of heaven.” (HUPPÉ, 1959, p. 45)
161

441b 190 ). A primeira espécie de natureza, que cria e não é criada, é Deus; a segunda, que é

criada e cria, é o mundo das Causas Primordiais, cuja relação com o pensamento platônico é

explícita; a terceira é o mundo fenomênico, criado pelas Causas; a quarta espécie de natureza, por

fim, é novamente Deus, concebido como fim de todas as coisas.

Já por esse esquema percebe-se que, na verdade, todas as coisas estão situadas, ao mesmo

tempo, em Deus e entre Deus como princípio e Deus como fim. De fato, as quatro espécies de

natureza descritas por Eriúgena podem ser reduzidas a duas, uma vez que, de um lado, a primeira

e a quarta espécies referem-se a Deus como princípio e como fim de tudo; e, de outro lado, a

segunda e a terceira espécies estão relacionadas às criaturas enquanto Causas e seus efeitos.

Todavia, como observa John O’Meara (1988, p. 93-94), se unimos “a criatura ao Criador de

modo a entender que não há nada na primeira exceto Aquele que verdadeiramente é, já que nada

além Dele é verdadeiramente considerado essencial, uma vez que todas as coisas que são não são

nada mais, enquanto são, do que a participação nEle que sozinho substiste a partir e através de Si

mesmo” 191 , percebemos que efetivamente as quatro espécies de natureza são reduzidas à

unidade indivisível de Deus enquanto Princípio, Causa e Fim. Em Deus não há, de fato, divisão

alguma: toda divisão é constituída pelas limitações inerentes à razão humana, em sua tentativa de

compreensão da divindade. Deste modo, Deus está para além da própria natureza que pode ser

compreendida pela mente humana.

190
Ed. Floß (1852).
191
“But if one joins the creature to the Creator so as to understand that there is nothing in the former except
him who alone truly is – for nothing apart from him is truly called essential, since all things that are are nothing
else, in so far as they are, but the participation in him who alone subsists from and through himself – then, as the
Creator and creature are one, the four divisions are reduced to an indivisible One, being Principle, Cause, and
End.”
162

A razão humana compreende o processo de desenvolvimento da natureza em termos de

divisoria e resolutiva, divisão e resolução (ou análise): pelo primeiro processo, os gêneros

superiores dão origem a gêneros progressivamente inferiores, até chegar aos indivíduos; através

do segundo processo, a razão vai dos indivíduos para os gêneros superiores. Esse processo, não

obstante, é único e intrínseco à própria estrutura da natureza em suas espécies intermediárias

(segunda e terceira, ou seja, as espécies que não dizem respeito à divindade enquanto tal).

Compreendamos melhor essas duas afirmações. Em primeiro lugar, é preciso observar que esses

dois movimentos se determinam mutuamente, e de tal modo permanecem associados na razão

que os considera que parecem, de fato, inseparáveis um do outro; é possível, por conseguinte,

considerá-los como constituindo dois aspectos diversos (perante a razão) de um movimento único

que vai do universal para o particular e do particular para o universal. Em segundo lugar, trata-se

de um processo dialético que é simultaneamente epistemológico e ontológico: a estrutura que a

razão encontra na natureza é, na verdade, intrínseca à própria natureza enquanto realidade. Em

síntese: embora a razão humana compreenda tudo o que existe em termos de divisoria e

resolutiva, esse modo de compreensão é efetivo apenas no tocante à realidade criada por Deus, ou

seja, a segunda e a terceira espécies de natureza; em relação a Deus enquanto tal, trata-se

meramente de uma estrutura que a mente humana projeta na divindade, cuja unicidade é evidente.

É por meio das Causas Primordiais – causae primordiales –, criadas e criadoras, que a

realidade é gerada, através do Verbo; Deus cria tudo ex nihilo na medida em que cria tudo a partir

de si mesmo – e compreendê-lo como Nada implica afirmar sua supra-essencialidade. Em

verdade, a terceira espécie de natureza é constituída precisamente pelos efeitos das Causas – que,

enquanto tais, constituem a segunda espécie de natureza, e que devem ser compreendidas
163

enquanto criadas e criadoras. O processo por meio do qual Deus cria as Causas é uma questão

particularmente complexa no pensamento de Eriúgena, e pode ser posta da seguinte maneira:

enquanto fundamento de tudo, ou seja, enquanto natureza que cria e não é criada, Deus

permanece para além de qualquer possibilidade de conhecimento – inclusive para si mesmo. Por

conseguinte, para conhecer sua própria essência, Deus precisa tomar a si mesmo como objeto, e é

nesse processo de contemplação divina que nascem as Causas Primordiais: “o contemplar-se

Deus a si mesmo gera, desde toda eternidade e em pura atemporalidade, as idéias”

(HIRSCHBERGER, 1966, p. 85). Em outras palavras: para Deus, conhecer e fazer são o mesmo. Por

outro lado, se não há propriamente uma clivagem entre Deus e as Causas – o que implicaria

estabelecer uma cisão em Deus mesmo –, por outro lado também não se pode considerar que

sejam o mesmo, já que as Causas são múltiplas, enquanto Deus é uno. É possível compreender

melhor essa questão evocando a imagem de um círculo, idéia aliás que Eriúgena herda de

Dionísio Areopagita 192 : se traçarmos diversos raios a partir de seu centro, poderemos perceber

as Causas como múltiplas a partir de seus efeitos (cada um dos raios), mas ao mesmo tempo

constituindo uma unidade no Verbo (o centro para onde todos os raios convergem) (CARABINE,

2000, p. 54). Outra questão complexa diz respeito à anterioridade de Deus relativamente às

Causas. Ocorre que, embora as Causas estejam em Deus e sejam coeternas a Ele, não é possível

conceber que essa coeternidade seja absoluta, já que as Causas foram criadas por Deus. Por

conseguinte, Eriúgena estabelece que essa coeternidade deve ser compreendida em um sentido

relativo: as Causas são coeternas a Deus na medida em que sempre estiveram nele, mas não são

192
Cf. De divinis nominibus, V.
164

coeternas no sentido em que apenas partir dele elas são geradas 193 (De divisione naturae, II,

21).

Todavia, não basta compreender o modo como se dá a criação das Causas por Deus; mais

do que isso, faz-se necessário compreender seu sentido. Percebemos, então, que Deus cria tudo ex

nihilo – a partir do Nada que Ele mesmo é, enquanto permanecendo para além de tudo o que é e

de tudo o que não é – em um processo em que cria a si mesmo, e como uma forma de dar-se a

conhecer a si mesmo; e é por esse “movimento” que surgem as teofanias, manifestações divinas

apreensíveis visível e intelectivamente – que constituem a condição de possibilidade para todo o

conhecimento relacionado a Deus. Como observa Carabine, o pensamento de Eriúgena não nos

permite compreender o Deus manifesto à parte do Deus oculto: “a idéia de que Deus está

manifestado na criação é verdadeira, e o fato de que Deus permanece transcendentalmente não-

manifestado também é verdadeira” 194 (2000, p. 49-50). Por outro lado, isso significa que Deus

está simultaneamente oculto e aparente em tudo o que existe: o “caminho” que leva para Deus

através da teofania é, por conseguinte, um caminho pleno de sinais e de símbolos que manifestam

a presença de manifestações do Deus não-manifestado que, por intermédio delas, manifesta-se.

Desse modo, se Deus está em todas as coisas, elas ao mesmo tempo ocultam-no; conhecê-lo

através delas é impossível, embora Ele esteja sempre necessariamente nelas.

193
Etienne Gilson demonstra que, no tocante a essa questão, o pensamento de Eriúgena desenvolve-se de uma
forma profundamente original: “para nós, o criador é causa do ser da criatura, e o que define uma criatura como tal é
o fato de que ela recebe seu ser do criador. Onde reduzimos tudo a relações de causa a efeito na ordem do ser,
Erígena pensa, antes, no que são as relações entre signo e coisa significada na ordem do conhecimento” (1995, p.
254; grifos nossos). Trata-se, em outras palavras, de uma ordenação relacionada menos à ordem metafísica do que à
cognitiva.
194
“The idea that God is manifest in creation is true, and the fact that God remains transcendently unmanifest
is also true.”
165

Quando estabelece que tudo o que é visível e corpóreo significa algo incorpóreo e

inteligível, Eriúgena escreve “a carta do simbolismo medieval, em teologia, em filosofia e até na

arte decorativa das catedrais”, no dizer de Etienne Gilson (1995, p. 256). De fato, podemos

vislumbrar aí o vértice do pensamento simbólico medieval, ao menos se considerarmos que, com

essa sentença, Eriúgena espraia as alegorias divinas por toda a realidade sensível – incluindo aí

todas as produções humanas, nas quais de fato a representação divina constituía uma questão

cardinal.

O fundamento dessa querela são as limitações do conhecimento humano; para tratar disso

precisaremos, no entanto, tratar brevemente da hierarquia do ser no pensamento de Eriúgena. No

tocante a essa questão, o pensador é herdeiro da tradição filosófica e teológica que associa a Deus

a imagem da luz – elemento que aparece, na tradição veterotestamentária, com sentido ético

(enquanto símbolo do bem e da verdade) e epistemológico (relacionada às noções de revelação e

conhecimento de Deus); e, na tradição neotestamentária, como expressão de evento divino (Lc 2,

9) e adesão a Deus ou ao Cristo (SFAMENI GASPARRO, 2002, p. 864). Se Deus é luz, todos os

seres criados, enquanto teofanias, são manifestações da luz divina; todo o universo é, por

conseguinte, iluminação. Mas, se Deus é luz e fundamento de tudo, isso implica a associação da

luz ao ser, e o consequente estabelecimento de uma hierarquia ontológica que tem, em seu

extremo superior, Deus – luz e fonte de todo o ser – e, nos níveis inferiores, as criaturas –

portadoras de menos luz e menos ser.

O fiat lux do Gênesis deve ser compreendido nesse sentido: é o movimento no qual o

próprio Deus, ao tornar-se luz, faz todas as coisas visíveis e cognoscíveis (De divisione naturae

III, 692a-693c). Esse processo através do qual Deus se torna luz deve ser entendido, por
166

conseguinte, em um sentido concomitantemente ontológico e cognitivo: como mencionamos

anteriormente, Deus cria tudo ex nihilo para dar-se a conhecer a si mesmo; do mesmo modo,

separando a luz e as trevas, separa o conhecimento dos efeitos da obscuridade das causas, que

permanecem ocultas e unidas no Verbo (CARABINE, 2000, p. 55). Toda a criação não passa,

efetivamente, de uma infinidade de símbolos gerados a partir da luz divina e permanentemente

iluminados por ela: é o resplendor de Deus que sustenta tudo. Mas como pode o homem chegar a

um conhecimento de Deus nesse mundo que é tão-somente uma miríade de alegorias?

O que de fato impôs limites ao conhecimento humano foi a Queda. Consoante Eriúgena,

na hierarquia do ser, o pensamento que apreende o objeto ocupa uma posição necessariamente

superior ao próprio objeto; por conseguinte, o conhecimento divino do universo de todas as

coisas é infinitamente superior às coisas em si, em termos ontológicos. Dessa forma, o nível

fundamental da realidade está no pensamento divino, já que é nele que todas as coisas

verdadeiramente existem; sua existência no espaço e no tempo é tão-somente uma manifestação,

mais fraca ontologicamente, daquela essência eterna (KIJEWSKA, 2000, p. 512). Acontece que

essa relação entre o pensamento (criador) e as coisas (criadas) repete-se no tocante ao ser

humano: o universo sensível existe, em primeiro lugar, na mente humana. O homem é, deste

modo, imago Dei também por ser, enquanto racional, criador: nele se faz presente todo o

universo criado, de tal modo que o homem é “a fábrica de todas as criaturas”. O que modificou

essa situação foi a Queda: com ela, o homem arrastou consigo todas as coisas presentes em sua

mente, em um processo por meio do qual os inteligíveis, coagulados, deram origem ao universo

material (ARIAS MUÑOZ, 1985, p. 168-169). O pecado original consistiu precisamente em uma

inversão, ao cabo da qual o irracional tomou o lugar do racional: no texto bíblico, a sedução da
167

mulher representa, na verdade, a sedução da parte feminina e sensual da alma, que acaba por

sobrepujar a outra parte, racional, representada pelo homem. Além de engendrar a efetiva divisão

dos sexos, a Queda lançou o homem em um estado de ignorância: apartado de Deus e preso ao

mundo sensível, o homem precisa reconstituir seu caminho para a realidade divina em meio ao

universo alegórico que o cerca.

No pensamento de Eriúgena, portanto, o que encontramos é algo similar ao que antes

encontráramos em Beda e Agostinho: a percepção de que há por toda a parte – pelo mundo, pelos

textos bíblicos, pela própria história – uma infinidade de signos; entregue ao homem está a tarefa

de decifrá-los para, por meio desse processo, atingir verdades subjacentes. Essa exegese, no

entanto, constitiu menos uma opção do que um dever: diz respeito, afinal, à compreensão do

próprio sentido do existente a partir dos desígnios divinos. É por isso que o símbolo, como logo

veremos, constitui um elemento fundamental da realidade como percebida pelos homens

medievais.

5. 2. Da percepção alegórica à literatura

De acordo com a visão de mundo que expusemos, nada há no universo medieval que não

opere alegoricamente – inclusive aquilo que é criado pelas mãos humanas. A luz divina está

presente em tudo; cabe ao homem desvelar o sentido alegórico de todas as coisas, de modo a

poder restaurar o vínculo com a divindade. Cabe, a esta altura, indagar: quais seriam as

consequências dessa percepção para a psicologia do homem medieval e para sua relação com o

mundo?
168

Se o homem medieval, principalmente aquele do século XII, pensará e interpretará o

mundo através de alegorias – algo que evidentemente refletir-se-á em suas produções artísticas – ,

há que se compreender que isso não ocorre de uma hora para a outra; de fato, o pensamento

alegórico desenvolve-se progressivamente no âmbito medieval, alcançando neste processo

maiores extensão e elaboração. O momento inicial desse processo remonta à Antiguidade pagã, e

se revelará na cristandade medieval por intermédio dos lapidários e bestiários, onde os elementos

aos quais se atribuía valores simbólicos proporcionavam ao homem formas de se compreender as

leis da natureza animada e inanimada; dessa forma, as propriedades das coisas não eram objeto

de um estudo que pudesse ser qualificado como científico, mas eram interpretados como imagens

das virtudes e das capacidades do próprio homem. Em seu ponto mais extremo, observa Marie-

Dominique Chenu, “o simbolismo foi levado por esse jogo e resultou na alegoria. Para seu

próprio prazer, ele criou seres míticos – o grifo, a fênix, o unicórnio – e, nesses animais

artificiais, a natureza com seus significados imediatos não estava mais presente” 195 (1997, p.

104).

Uma das fontes desse processo pode ser encontrada no Physiologus, “núcleo original ao

redor do qual foram formados os bestiários medievais” 196 , derivado de um um texto grego,

provavelmente composto em Alexandria no segundo século; a finalidade original desse tratado –

que seria retomado ao longo de toda a Idade Média, em particular pelas Etymologiae de Isidoro

de Sevilha – era conferir significado alegórico aos animais mencionados na Bíblia (JACQUART,

2000, p. 1134). Assim, por exemplo, o leão é concebido como imagem de Deus, de acordo com

195
“At its farthest reach, symbolism was carried away by its game and indulged in allegory. For its own
pleasure it created mythic beings – the griffin, the phoenix, the unicorn – and, in these contrived beasts, nature with
its attendant meanings was no longer present.”
196
“The work known under the name of Physiologus constituted the original kernel around which were formed
the medieval Bestiaries (...)”.
169

as palavras de Jacó: “Judá é um leãozinho, da presa subiste, filho meu” (Gn 49, 9); o que,

consoante o tratado, deve ser compreendido a partir de três qualidades do referido animal. A

primeira qualidade está relacionada ao vagar do leão pelas montanhas: farejando os caçadores, o

leão cobre suas pegadas com sua cauda, de maneira que os perseguidores não podem segui-lo;

Jesus Cristo, similarmente, foi enviado por Deus em forma corpórea, ocultando sua natureza

divina sob esse corpo humano. A segunda qualidade diz respeito ao hábito de o leão, quando

dorme, conservar – de acordo com o Physiologus – olhos abertos e vigilantes, assim como o

corpo de Cristo, mortalmente adormecido após a crucificação, permanecia vivo numa dimensão

divina e, enquanto tal, continuava a guiar a Igreja. Por fim, a terceira qualidade está relacionada

ao processo de nascimento dos leões: afirma o tratado que os filhotes nascem mortos,

conservando-se assim durante três dias, período durante o qual são protegidos pela mãe, até que o

macho sopre entre seus olhos e os faça levantarem-se – assim como Deus levantou Jesus Cristo

no terceiro dia após a crucificação (DAMPIER; DAMPIER, 2003, p. 179-180).

Evidentemente, a busca pelo significado alegórico da natureza não deixaria de abarcar

noções mais elementares que já recebiam esse tipo de interpretação desde a Antiguidade – por

exemplo, os números; não obstante, os significados eram comumente estabelecidos a partir de

uma pletora de valores que, conjugados, convergiam para um sentido plurivalente. Alberto

Magno 197 , por exemplo, após mesclar os três métodos e tempos de adoração a Deus, os três

atributos de Deus, as três dimensões do espaço e as três dimensões do tempo, chegaria à

conclusão de que o número 3 está em todas as coisas, significando a trindade dos fenômenos

naturais. O mesmo teólogo perceberá uma relação entre os sete dons espirituais, as sete palavras

197
Alberto Magno, (1193 ou 1206 – 1280), importante teólogo católico, Bispo de Regensburg e Doutor da
Igreja.
170

de Jesus Cristo crucificado, os sete pecados e as sete virtudes teológicas e cardeais – intuição que

ecoaria em outros pensadores na Idade Média e conduziria à ideia de que o 7 é o número da

universalidade; em decorrência desse raciocínio, os filósofos da Idade Média concluem que

devem existir sete igrejas, uma vez que a Igreja de Cristo é universal (Hopper, 2000, p. 94-96).

Levando além esses esforços, Hugo de são Vítor 198 desenvolverá um método para

analisar as nove diferentes maneiras pelas quais os números pode ser dotados de significado 199 .

Cabe observar, primeiro, sua posição: assim a unidade, sendo o primeiro número, é o princípio de

todas as coisas; e o segundo número, o primeiro que se afasta da unidade, significa o pecado que

desvia do primeiro Bem. Isso quer dizer que, conforme os números se afastam da unidade,

tornam-se mais imperfeitos, de modo que os números mais elevados são mais aplicáveis às

criaturas do que criador, ou seja, Deus; 12 é um número sagrado, porque é o primeiro formado

pela junção de um e dois; dez, cem e mil significam o retorno à unidade. Mas é preciso observar

ainda sua divisibilidade: os números pares, sendo perfeitamente divisíveis, significam o que é

corruptível e transitório, enquanto os números ímpares são considerados, por oposição,

indissolúveis e incorruptíveis.

A relação entre os números é um fator relevante: o 7, após o 6, simboliza o descanso após

o trabalho; o 8 após o 7, a eternidade depois da mutabilidade, e assim por diante. Igualmente

importante é a forma geométrica 200 de disposição dos números: como possui apenas uma

dimensão, o 10 simboliza a retidão na fé; o 100 expande-se na largura, o que significa a

amplitude da caridade; já o 1000 amplia-se verticalmente, de modo que simboliza a esperança.

198
Hugo de são Vítor (1096–1141), teólogo medieval, cônego regular na Abadia de são Vítor em Paris.
199
A síntese do método de são Vítor aqui exposta baseia-se em Hopper, 2000 (p. 100-103).
200
A idéia é que o 1 representa um ponto, o 10 uma linha, o 100 uma figura bidimensional e o 1000, um sólido
tridimensional.
171

Cabe considerar também a relação dos números com o sistema decimal – o que significa que o 10

é a perfeição, justamente porque significa o fim da computação em decimais – e sua composição

enquanto múltiplos: o 12 (4 x 3) simboliza fé na Trindade presente nas quatro partes do mundo;

7000 simboliza a perfeição universal, sendo o 7 a universalidade e o 1000 a perfeição. Os três

fatores finais referem-se aos números de acordo com as partes agregadas e o número de unidades

que os compõem – o que inclui todos os significados numéricos derivados de autoridades (12

apóstolos, 4 humores, etc.) e representações concretas (9 aberturas do corpo humano); e,

finalmente, consoante a exageração: se a Bíblia fala (Lv 26, 28) em castigar “sete vezes mais” por

causa dos pecados, o que isso significa é a multiplicação dos castigos.

Evidentemente, todos esses significados simbólicos, ainda que a princípio pudessem

parecer abstratos ou efetivamente se originassem de um esforço especulativo, resultavam em

práticas concretas: apenas para citar alguns exemplos relacionados ao simbolismo associado às

cores, mencione-se que, em certos bestiários da Idade Média, os elefantes e crocodilos apareciam

pintados de vermelho, algo possivelmente associado à sua ferocidade, que não visava obedecer a

critérios de verossimilhança 201 ; similarmente, era comum que a margarida fosse utilizada em

vestimentas devido à associação da cor branca com a juventude (SEATON, 1995, p. 44).

Essa percepção simbólica da realidade, naturalmente, se refletiria na criação literária. Não

há sentido, portanto, em considerar que a literatura siga princípios outros que não esses que

determinam toda a percepção da realidade; de fato, como concebeu Alain de Lille, sob a

superfície do texto literário oculta-se um sentido velado e profundo – de modo que, como

201
Esse complexo e controverso simbolismo é discutido por Clark (2006, p. 69-70).
172

observou Chenu (1997, p. 99-100), a arte (literária) constitui um desdobramento da busca da

verdade pelo homem.

As origens da literatura alegórica medieval devem ser buscadas em Prudêncio 202 , mais

precisamente em sua Psychomachia, obra que descreve o combate da fé e das virtudes cardeais

contra a idolatria e os vícios, cuja inovação em “poder e sentimento” deriva da “iluminação do

pensamento e da emoção cristãs” 203 (RABY, 1934, v. 1, p. 51). James Paxson (1994, p. 64)

destaca a metódica estrutura da obra: “seis Virtudes combatem, em sequência coreográfica, seis

Vícios respectivamente opostos” 204 , e observa que o que há de mais memorável no discurso

descritivo da Psychomachia são os momentos de “demolição gráfica” 205 que aniquilam os Vícios

nas mãos de seus dominadores – descrições de decapitações sangrentas, desmebramentos e

mutilações de faces que estão relacionados à tradição épica vergiliana (PAXSON, 1994, p. 66).

De acordo com Marc Mastrangelo (2007, p. 82-83), a Psychomachia trata da questão de

como descrever em palavras Deus e a alma, questão a que responde com uma série de tipologias

que encerram interpretações de textos bíblicos e dogmáticos cristãos; essas exegeses tipológicas

descrevem as qualidades da alma e seu combate interior. A vida e os atos de Abraão estabelecem

alegoricamente a fé como uma qualidade da alma; a esperança (Spes) é tipologicamente

relacionada a Davi, cuja esperança superou Golias, o que implica uma relação também com o

leitor, cuja esperança em Cristo é associada a recompensas futuras. Desse modo, como observa

Mastrangelo (2007, p. 83), “as virtudes e os vícios tornam-se personificações alegóricas, mas

cada uma de suas identidades literárias começa como uma interpretação tipológica de histórias e

202
Prudêncio (Aurelius Prudentius Clemens), poeta romano cristão do séc. IV.
203
“... new in power and feeling, derived from the illumination of Christian thought and emotion.”
204
“... six Virtues slay, in choreographic sequence, six respectively oppositional Vices.”
205
“graphic demolition”
173

personagens bíblicos” 206 ; não obstante, a alegoria constituída a partir da interpretação tipológica

da Bíblia é o que torna possível para o poeta comunicar idéias que são incomunicáveis através da

linguagem normal ou referente, o que enseja a construção de um universo alegórico constituído

por aquelas tipologias poéticas (MASTRANGELO, 2007, p. 83-84). Essa obra, que influenciaria

profundamente a literatura medieval, coaduna-se perfeitamente com o caráter geral da poesia de

Prudêncio enquanto produto de “uma visão tipológica do mundo onde a realidade e a história

tornam-se iluminadas através de uma série de prefigurações e correspondências” 207

(MASTRANGELO, 2007, p. 12).

Outra obra produzida na Alta Idade Média cuja importância não pode ser menosprezada é

o tratado de Boécio 208 De Consolatione Philosophiae – obra que, embora produzida por um

filósofo, destaca-se por sua elaborada forma literária, pelo que suscita dificudades de

interpretação (MARENBON, 2005). A obra é composta por cinco livros que descrevem o diálogo

entre o próprio Boécio, sentado em sua cela à espera da execução – fora aprisionado em Pávia

após cair em desgraça junto ao rei Teodorico, a quem antes servira, e que agora se havia tornado

seu inimigo político – e uma dama que personifica a Filosofia; procedamos a uma breve síntese

de seu conteúdo.

De Consolatione Philosophiae abre-se com um confronto entre as musas, que consolam

um prisioneiro, e a alegórica figura da Filosofia, que as afugenta; há nessa condenação da poesia

provavelmente influências de Platão e de Cícero (WALSH, 2000, p. xxxii), cabendo observar que

uma parte considerável da própria obra de Boécio é composta em versos. O prisioneiro encontra-

206
“Virtues and vices become allegorical personifications, but each of their literary identities begins as a
typological interpretation of biblical stories and characters.”
207
“... typological view of the world where reality and history become illuminated through a series of
prefigurings and correspondences”.
208
Boécio (Anicius Manlius Severinus Boëthius) (c. 480–524 ou 525), filósofo e teólogo cristão.
174

se confuso pela súbita mudança de sua sorte; a Filosofia, contudo, tratará de consolá-lo,

mostrando que não há de fato motivos para lamentação, uma vez que a verdadeira felicidade

permanece além desse tipo de contingências. Há uma diferença entre os bens da Fortuna,

meramente ornamentais, e os verdadeiros bens – as virtudes e a suficiência; ora, Boécio

conservou até mesmo os bens da Fortuna que não são meramente ornamentais: a sua família. Sua

condição de prisioneiro não o afastou da verdadeira felicidade, obtida através de uma vida austera

baseada na sabedoria, na virtude e na suficiência.

De acordo com a filosofia, Deus governa o universo atuando como sua causa final:

enquanto bem desejado por todas as coisas, é o que sustenta o mundo. O que todos os seres

desejam é a felicidade, que é idêntica ao bem; desse modo, os bons são capazes de obter

automaticamente a felicidade, ao passo que os maus punem a si mesmos ao privarem-se do bem.

Essa percepção de Deus como uma providência cuja vontade é necessário acatar responde, de

acordo com Gilson (1995, p. 169), à própria condição de Boécio: preso, ameaçado de morte,

restava-lhe o consolo da concepção de um Deus cuja vontade benevolente supera todas as

adversidades da fortuna. É preciso querer o que Deus quer e amar o que Deus ama: é essa a mais

elevada liberdade; é essa, portanto, a felicidade.

Mais próximas historicamente da época de produção das pastorelas occitânicas 209 – e, por

esse motivo, mais interessantes para o presente trabalho – são duas outras obras alegóricas

medievais: o Anticlaudianus, de Alain de Lille, e o Roman de la Rose, de Guillaume de Lorris e

Jean de Meun.

209
Embora a geralmente referida como mais importante dentre as composições alegóricas medievais seja a
Divina Comédia de Dante Alighieri, essa obra data de período posterior às pastorelas occitânicas, tendo sido
composta no século XIV, motivo pelo qual não trataremos dela aqui.
175

Parte considerável das obras de Alain de Lille estão relacionadas às alegorias: a ele são

atribuídos, entre outros, um comentário alegórico sobre o Cântico dos Cânticos e um dicionário

de interpretações alegóricas da Bíblia (Liber in distinctionibus dictionum theologicalium); aqui

trataremos, contudo, de seu poema alegórico Anticlaudianus 210 . O título da obra refere-se ao

poeta romano Cláudio Claudiano, que escrevera, no fim do século IV, o poema In Rufinum – obra

que encerrava um violento ataque contra Rufino, oficial bizantino que manipulava, segundo seus

interesses, Arcádio, filho do imperador Teodósio e herdeiro do Império Romano do Oriente. Se

no In Rufinum Claudiano desejava a destruição de Rufino através dos vícios, Alain de Lille, em

seu Anticlaudianus, convoca todas as ciências e todas as virtudes para formarem o homem

perfeito (GILSON, 1995, p. 385).

A obra 211 descreve como a Natureza, contemplando seus feitos, percebe em que se

transformou o homem, o que lhe causa uma profunda decepção. Ela convoca, portanto, um

conselho de Virtudes para ajudá-la a formar um novo homem. A Prudência relembra à Natureza e

às suas irmãs que seus poderes são limitados: podem fazer um corpo perfeito, mas não uma alma.

A Razão sugere que a Prudência viaje até o céu e peça a Deus para criar uma alma perfeita para o

Novo Homem que será criado; o veículo que a levará será construído pelas sete Artes Liberais,

filhas da Prudência. A Concórdia reúne todas as partes e o carro, levando a Razão e a Prudência,

ascende até o céu, puxado por cinco cavalos – os cinco sentidos 212 .

A Razão não pode ir além das estrelas, mas a Teologia surge para levar adiante a

Prudência, que monta o cavalo da audição; ela, contudo, desfalece quando vê os anjos, os santos,

210
Mencionamos brevemente esse texto no primeiro capítulo desta tese: 1. O nascimento da pastorela.
211
Baseamos a síntese a seguir em Evans (1983, p. 135).
212
É possível contrastar essa passagem com aquela constante do Fedro, de Platão, em que a alma humana é
comparada a uma força, constituída por um carro puxado por dois cavalos e conduzido por um auriga (cf. PLATÃO,
1972, p. 69-70: 246a-c).
176

a Virgem e Cristo, uma vez que não possui a capacidade necessária para ver além dos limites da

razão humana. A Fé, irmã da Teologia, é quem surge para reanimá-la, entregando-lhe em seguida

um espelho para que não precise olhar diretamente para o paraíso; a Prudência pode então subir

até a presença de Deus, guiada pela Fé. Para atender ao pedido da Prudência por uma alma, Deus

solicita a Nous, a divina providência, que construa um arquétipo, a partir do qual a alma é criada.

Finalmente, a Prudência desce do paraíso levando a alma; a Natureza constrói um corpo

utilizando os quatro elementos, e a Concórdia cuida de uni-lo à alma. As Virtudes concedem seus

dons ao novo homem, que é então submetido a uma provação nos moldes da Psychomachia de

Prudêncio; não obstante, ajudado pela Natureza e pelas Virtudes, o novo homem supera os

Vícios, revelando-se apto a governar sobre o mundo restaurado.

Segundo Gillian Evans (1983, p. 134-135), a obra de Alain de Lille é tributária de um

outro importante texto, a saber: a Cosmographia de Bernardus Silvestris 213 . Editada em meados

do século XII, a obra de Bernardus descreve a criação primeira daquele homem que será recriado

pela Natureza no Anticlaudianus. Antes do início dos tempos, a Natureza aproxima-se de Nous

para solicitar-lhe Silva, a matéria da vida; desse modo, Nous cria o universo e cobre o mundo

com a fauna e a flora. Então, Nous ordena que a Natureza convoque Urania, a razão celeste, e

Physis para que gerem o homem: Urania é responsável por sua alma, e Physis por seu corpo.

Cabe à Natureza unir o corpo e a alma para gerar, finalmente, o homem.

Bernardus Silvestris e Prudêncio não são, contudo, os únicos autores de algum modo

presentes no Anticlaudianus; como observa Henry Taylor (2007, v. 2, p. 128), há de fato na obra

inúmeros empréstimos, que incluem ainda o Pseudo-Dionísio Areopagita e Martianus Capella;

213
Bernardus Silvestris, filósofo e poeta do séc. XII.
177

isso, todavia, não chega a prejudicar a unidade da obra de Alain de Lille, que foi capaz de

construir com esse material um poema autônomo, um “outro grande exemplo do simbolismo

medieval” 214 . Conquanto a mente medieval jamais se afastasse por inteiro das alegorias,

considera Taylor que “estava reservado para um poeta supremo criar, a partir dessa atmosfera,

um poema supremo que é uma tão completa alegoria quanto o Anticlaudianus” 215 .

Antes de tratarmos um pouco mais da literatura alegórica medieval como um todo, cabe

ainda referir a última obra que nos interessa: o Roman de la Rose, composto ao longo do século

XIII por Guillaume de Lorris e Jean de Meun. É essa uma obra formada por duas partes de

tamanho desigual, compostas pelos dois mencionados autores num intervalo de mais de quarenta

anos: a parte inicial, constituída por 4.058 linhas, foi escrita por Guillaume de Lorris; já a

segunda parte, que vai da linha 4.059 à linha 21.780, é atribuída a Jean de Meun. Em certo trecho

do poema (linhas 10.495-678), Jean de Meun incluiu um longo discurso do Deus do Amor que

afirma explicitamente que Guillaume começou a escrever a obra, mas morreu antes que pudesse

concluí-la; assim, quarenta anos depois, cabe a Jean Chopinel, nascido em Meung sur-Loire,

finalizar o Roman (DAHLBERG, 1995, p. 1).

A obra, apresentada como um sonho, descreve sucintamente a conquista pelo narrador da

rosa que representa a mulher por ele amada. Guillaume de Lorris traçou os estágios da evolução

do amor no que deveria constituir uma espécie de ars amandi; a continuação da obra,

desenvolvida por Jean de Meun, é um digressivo compêndio enciclopédico composto por

diversos pontos de vista que, na verdade, utiliza o símbolo da rosa não para simbolizar a mulher

idealizada, mas o desejo sexual (COWARD, 2003, p. 16).


214
“... another grand example of mediaeval symbolism”.
215
“It was reserved for one supreme poet to create, out of this atmosphere, a supreme poem which is as
complete an allegory as the Anticlaudianus.”
178

O Roman de la Rose começa com um prólogo de vinte linhas onde o autor discute a

importância dos sonhos 216 , fazendo uma referência a Macróbio 217 , e apresenta o próprio texto

como uma narrativa onírica. Durante a primavera, o sonhador descobre um jardim fechado em

cujas paredes estão representados diversos personagens expulsos do jardim, dentre os quais o

Ódio, a Felonia, a Inveja, a Avareza, a Velhice e a Pobreza. Atravessando o único portão que leva

para o jardim, vigiado por uma bela dama que passa os dias cuidando de seu cabelo e seu rosto –

representação da Ociosidade –, o sonhador encontra, no interior do jardim, outras personificações

– a Beleza, a Generosidade, a Cortesia e a Juventude, entre outras. Enquanto caminha pelo

jardim, o sonhador encontra-se com o Deus do Amor e com a Fonte de Narciso, em cujo centro

há dois brilhantes cristais que permitem que se veja tudo o que há no jardim.

Observando através dos cristais, o sonhador vê uma rosa, pela qual se apaixona;

transforma-se, então, no Amante, tornando-se vassalo do Deus do Amor, que o instrui na arte

amorosa. O Amante tenta apoximar-se da Rosa, mas é repelido pela Resistência; rejeitado, o

Amante é admoestado pela Razão, que reprova a tolice que o levou a aproximar-se da Ociosidade

e explica que o mal que ele denomina amor é, na verdade, uma loucura. O Amante, no entanto,

reage com raiva à censura da Razão, afirmando que não seria correto para ele trair o seu senhor.

Quem consola o Amante é o Amigo, que lhe ensina a maneira de superar a Resistência,

cuja fraqueza é a vaidade. Com a ajuda de outras figuras, finalmente o Amante chega até a Rosa,

de quem granjeia um beijo; Resistência, contudo, volta-se contra o Amante e novamente o afasta

de sua amada Rosa. Ao fim, o solitário Amante lamenta sua condição e confessa-se ainda mais

216
A síntese a seguir foi baseada em Mickel (2006, p. 281-282).
217
De que trataremos mais adiante, quando cuidarmos das interpretações alegóricas do Roman.
179

infeliz do que antes, o que enseja uma reflexão derradeira sobre a brevidade dos prazeres

amorosos e a eternidade da culpa deles resultante.

Partindo da última obra analisada, vejamos agora, brevemente, as leituras possíveis para

esses textos. Se há consenso quanto à importância do Roman de la Rose enquanto obra alegórica,

são por outro lado amplamente aceitas as dificuldades de leitura por ele suscitadas. Como observa

Noah Guynn (2008, p. 48), alguns especialistas contemporâneos defendem que o poema visa

instruir sobre a ética cristã de maneira irônica; outros, que a obra recai na indeterminação moral e

na liberação sexual – de modo que muitos leitores haveriam de concordar com o humanista Jen

Gerson, para quem o Roman, que contém um vasto espectro de temas e estilos, poderia ser

devidamente considerado um caos disforme ou uma confusão babilônica. Vejamos brevemente

algumas das possibilidades de leitura alegórica desse texto.

Certa linha interpretativa acerca do Roman de la Rose enfatiza que, conquanto a obra

tenha sido composta por dois diferentes autores, o que evidentemente suscita diferenças

estilísticas, tanto Guillaume de Lorris quanto Jean de Meun tinham consciência de que

trabalhavam sobre um fundo alegórico que, de acordo com Dahlberg (1995, p. 4), estava

associado à análise tradicional da Queda: a insinuação para os sentidos, o deleite para o coração e

o consentimento da razão. Evidências dessa inteção alegorizante, segundo o mesmo teórico,

podem ser encontrados já na abertura do poema, onde Guillaume cita Macróbio como alguém que

soube enxergar os sonhos como alegorias; desse modo, o próprio Guillaume estaria utilizando a

narratio fabulosa a fim de revelar uma doutrina ou arte amorosa em que o próprio simbolismo da

rosa representa um dos tipos de amor. Esse simbolismo deve, não obstante, ser compreendido em

relação com os outros tipos de amor, uma vez que compreender o poema unicamente como um
180

sonho erótico violaria a própria concepção de Macróbio do sonho como alegoria: para esse autor,

os sonhos puramente eróticos enquadram-se na mesma categoria dos pesadelos, não merecendo

um esforço interpretativo (Dahlberg, 1995, p. 4).

A leitura alegórica do Roman de la Rose como um poema associado à Queda fundamenta-

se na visão medieval da última como sendo composta por três etapas, correspondentes aos três

protagonistas: a insinuação para os sentidos (Satã), o deleite do coração (Eva) e o consentimento

racional (Adão). No caso do Roman, o que encontramos é uma inversão da correta ordem das

faculdades: a Razão, imagem de Deus, é governada pelo corpo e pelos sentidos, ao invés de

ocupar uma posição soberana. Assim é que, no primeiro capítulo do Roman, há uma ênfase no

papel das impressões sensíveis: as imagens visuais predominam, sublinhando a idéia de que o

amor começa com a visão 218 ; há a fonte de Narciso duas pedras de cristal que sugerem a idéia de

dois olhos, e assim por diante. Similarmente, de acordo com essa leitura, a parte do poema

composta por Jean de Meun teria se ocupado de desenvolver o terceiro estágio – o consentimento

da razão – , algo presente no texto sobretudo pela introdução de personificações que explicitam o

processo de derrota da razão a partir de diversos pontos de vista e que refletem o estado íntimo do

Amante, conforme ele avança em sua rejeição da Razão (Dahlberg, 1995, p. 15-16). É preciso

observar, no entanto, que essa não é a única linha interpretativa possível. Outros teóricos

postularam que o desenrolar do Roman representa simbolicamente os cinco passos do amor – a

visão, a conversação, o toque, o beijo e o coitus – , etapas que também podem ser encontradas no

medievo Tratado do amor cortês de Capellanus (2000); além disso, há especulações acerca do

218
A percepção da visão como um caminho para Eros já se fazia presente na concepção amorosa platônica (cf.
WILI, 1979, p. 90), fazendo-se presente também no código amoroso cortês: consoante André Capelão, a cegueira é
um obstáculo para o amor, já que aquele que não pode enxergar não pode ter seu espírito provocado por visões
obsedantes (Cf. CAPELLANUS, 2000, p. 15).
181

simbolismo presente nas ilustrações da obra, sobretudo as que representam a rosa, ora percebida

como associada à carnalidade, ora associada a símbolos religiosos (Dahlberg, 1995, p. 16-25).

Também a obra que anteriormente referimos, o Anticlaudianus, apresenta certas

dificuldades de leitura. De acordo com James Simpson (1995, p. 59), a composição apresenta

inconsistências internas que podem ser melhor compreendidas por meio da análise isolada de três

problemas. Há, em primeiro lugar, a questão da ordem das ciências: o Novo Homem de Alain de

Lille não é um filósofo à parte do mundo, mas um governante que se situa no interior de uma

sociedade, de modo que “sua educação prática segue a representação da perfeição nas ciências

teóricas” 219 , o que se opõe à hierarquização aristotélica das ciências. Em segundo lugar, o

Anticlaudianus suscita problemas no tocante à ordem da virtude – contradição que, na verdade,

Simpson observa apenas através do cotejo com outros escritos de Alain de Lille: se o Novo

Homem do Anticlaudianus traz em si as “virtudes naturais” – por exemplo, políticas – que

contribuem para sua perfeição, há nisso certa inconsistência, uma vez que em escritos teológicos

(De virtutibus e Regulae) Alain de Lille argumenta que as virtudes “naturais” só alcançam a

perfeição com a concorrência da caridade, de modo que em si mesmas não podem contribuir para

qualquer tipo de aperfeiçoamento (SIMPSON, 1995, p. 64). O terceiro problema é a passagem do

poema que trata da viagem noética da Prudência, que Simpson vê como desprovida de função –

e, portanto, gratuita – no âmbito da composição, algo que tangencia outro questionamento crítico

em torno do herói do poema: seria ele o Novo Homem ou a Prudência? O que efetivamente opera

como centro unificador do poema? Estaria Jung certo ao afirmar que o problema do

Anticlaudianus é precisamente a inexistência de um herói? (SIMPSON, 1995, p. 65)

219
“... his practical education follows the representation of perfection in the theoretical sciences.”
182

O que Simpson propõe é uma solução prepóstera: haveria, desse modo, uma ordem real

do poema que se revela quando ele é lido de tal maneira que algumas de suas partes são

invertidas. Desse modo, o Anticlaudianus começaria com o nascimento da alma (livro IV),

prosseguiria com a educação moral da alma (livros VII-IX) e se encerraria com sua educação

teorética (livros I-VI). Isso resolveria os três problemas anteriormente expostos, visto que, de

acordo com essa nova ordem de leitura, as ciências teóricas seriam as responsáveis por levar ao

ápice moral nos limites da moralidade natural; as virtudes naturais seriam informadas através da

graça; e a viagem teorética da Prudência seria uma representação da própria viagem do Novo

Homem, na carruagem de sua alma. Assim se elucidaria, por outro lado, a dimensão alegórica do

Anticlaudianus como uma narrativa simultaneamente pedagógica e teológica, uma “visão

extremamente positiva da natureza” que “registra as limitações da natureza e abre caminho para

um movimento que supera as capacidades naturais, e culmina em uma essencialmente religiosas,

embora intensamente intelectual versão da perfeição humana” 220 (SIMPSON, 1995, p. 66-67). Essa

leitura, por outro lado, exporia a estrutura do poema em si mesma como alegórica; no dizer de

Simpson, “uma leitura prepóstera descobre a alegoria de Alain – através da forma como ele

ordena seu material, ele ‘diz uma coisa e significa outra’” 221 .

5.3. Da pastorela enquanto alegoria

220
“An extremely positive view of nature nevertheless registers nature’s limitations and gives way to a
movement beyond natural capacities, and culminates in an essentially religious, if intensely intellectual version of
human perfection.”
221
¨A preposterous reading discovers Alan’s allegory – through the way he orders his material, he does ‘say
one thing and mean another’”.
183

A partir das leituras que apresentamos do Anticlaudianus e do Roman de la Rose 222 , em

adição ao que anteriormente expusemos neste capítulo, pode-se perceber que a produção literária

medieval é perfeitamente compatível com aquela percepção do mundo que trabalha com dois

níveis de significação – e que está, portanto, sempre disposta a entrever um sentido oculto sob a

superfície textual. Já mencionamos anteriormente a formulação de Marie-Dominique Chenu, para

quem o que está em questão é uma concepção de arte que utiliza a ficção poética para expressar

uma verdade intelectual; segundo esse mesmo teórico, essa concepção de arte deve ser

compreendida como o resultado de uma visão de mundo que funciona em dois níveis, estando o

segundo abaixo da superfície: sua acessibilidade depende de uma transposição, por via imagética,

para o primeiro. Por outro lado, essa transposição simbólica é o modo pelo qual se torna possível

penetrar a misteriosa densidade material das coisas – objetos naturais ou personagens históricos,

bíblicos ou profanos – e assim chegar, através da casca, à semente da verdade. A poesia estava,

portanto, a serviço da sabedoria teológica ou filosófica (CHENU, 1997, p. 99-100).

Nos capítulos anteriores, demonstramos que, nas pastorelas occitânicas que seguem o

modelo inaugurado por Marcabru, há sempre uma estrutura narrativa fundamental que se repete e

que estabelece uma nítida oposição entre a pastora e o cavaleiro-narrador: enquanto ela é a

seduzida, ele é o sedutor; enquanto ela é casta, sempre preparada a defender sua virtude, ele é o

sensual instigador da luxúria. Encontramos esse embate já na pastorela de Marcabru: recordemos

que, em L’autrier jost’una sebissa, a pastora defende sua própria castidade de forma tenaz e

obstinada, sem que no entanto seu discurso jamais deixe de soar ponderado e racional; por outro

222
Que, evidentemente, não são de modo algum exaustivas: há uma ampla bibliografia sobre as duas obras,
bem como sobre os outros poemas analisados nesse capítulo. As leituras alegóricas aqui apresentadas têm um fim
meramente ilustrativo; discussões teóricas mais aprofundadas sobre o sentido alegórico do Anticlaudianus e do
Roman de la Rose fugiriam ao escopo deste trabalho.
184

lado, dificilmente seria possível dizer o mesmo acerca do afoito cavaleiro que, impelido por seus

impulsos sexuais, não hesita em apelar para todos os tipos de argumentos numa vã tentativa de

alcançar seu objetivo. Na estrofe final da obra, ao frustrado cavaleiro só resta maldizer a

“pérfida” pastora; ela, contudo, despede-se do malogrado sedutor com uma fala em que utiliza

um símbolo bíblico para enfatizar a dimensão espiritual dos seus próprios interesses, que se

opõem nessa medida aos carnais desejos do cavaleiro. Assim, se para aquele o que interessa é a

“pintura”, ou seja, a beleza das aparências, o que a pastora de fato almeja é o “maná” – menção

que faz referência àquele alimento que Deus miraculosamente teria concedido aos israelitas todos

os dias, durante os quarenta anos que durou sua errância pelo deserto. Cabe ainda observar que

esse símbolo ganha muito em significado quando pensado a partir de referências

neotestamentárias (SLAYTON, 1992, p. 511): Paulo refere-se ao maná como um “alimento

espiritual” (1Co 10, 3), e o próprio Cristo compara-se com aquele pão que caiu do céu (Jo 6, 31-

65).

As pastorelas alegóricas occitânicas constituem variações desse modelo que trata,

essencialmente, de uma questão fundamental no pensamento cristão: o domínio da carne pelo

espírito; o triunfo da virtude sobre o vício – tema que, como vimos anteriormente, faz-se presente

em diversas obras alegóricas medievais, inclusive nas que analisamos brevemente neste capítulo.

Isso quer dizer que, enquanto representações de diferentes aspectos da natureza ou do espírito

humano, a pastora e o cavaleiro podem ser concebidas até mesmo como personificações de

tendências contrárias intrínsecas a um mesmo indivíduo. Dessa forma, é possível que os

trovadores que se dedicaram a esse modelo poético tenham assumido essa tarefa considerando as

potencialidades alegóricas intrínsecas ao modelo, o que lhes permitiria, lançando mão da


185

alegoria, problematizar efetivamente a moralidade humana – conquanto isso não excluísse, como

já vimos anteriormente, a possibilidade de elaboração de um modelo paralelo, desprovido de

sentido alegórico, em que a dimensão narrativa da pastorela é suficiente 223 . Isso não significa, é

claro, que os trovadores tenham sido pioneiros no tratamento dessa temática moral; o que eles

fizeram, na verdade, foi atualizar uma concepção antropológica que os precedia.

As raízes dessa percepção da moralidade humana podem ser rastreadas até a Antiguidade,

como observa Thomas Špídlik: se a aretologia estóica propunha que a virtude é o único bem e o

vício é o único mal e se Aristóteles concebia a virtude como o caminho do meio entre dois

extremos, Fílon Judeu será responsável por conciliar essas fórmulas com a Bíblia, afirmando que

as virtudes são plantadas na alma e nela aperfeiçoadas pelo poder de Deus; Orígenes identificaria

as virtudes com Cristo, identificado com a Justiça, a Sabedoria e a Verdade – se o mesmo não

pode ser afirmado acerca dos homens, cabe perceber que ainda assim eles possuem essas mesmas

virtudes, motivo pelo qual participam da vida de Cristo, que nos homens aperfeiçoa a sua imagem

(ŠPÍDLIK, 2002, p. 1.421).

A Patrística trataria de retomar e explicar a divisão platônica das quatro virtudes cardeais,

a saber: a prudência, que aperfeiçoa o λογιστικόν – ou seja, a mente; a coragem, que é a força do

θυμοειδές, irascível apetite contra o mal; a temperança que oferece resistência ao επιθυμητικόν,

ou seja, a concupiscência; e a justiça, que na proporção correta harmoniza as virtudes

precedentes. A Patrística grega e a bizantina descreveriam o nascimento das paixões, a partir da

premissa de que o vício não pertence à verdadeira natureza do homem; conceberiam, desse modo,

que o princípio de todo o pecado está no λογισμός, no pensamento mau. Desse modo, todo o

223
Cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas pseudo-alegóricas.
186

pecado nasceria segundo as seguintes etapas: primeiro há a προσβολή, a sugestão ou imagem

pecaminosa, seguida pelo συνδιασμός, uma “conversação” com aquilo que foi sugerido sem que

haja qualquer decisão favorável ou desfavorável. O consentimento é denominado συνκατάθεσις;

segue-se a παλε, a luta íntima para que a alma possa libertar-se da malícia. Aquele que não

consegue resistir recai, ao fim, na αιχμαλωσία, a escravidão do πάθος (ŠPÍDLIK, 2002, p. 1.421).

Na tradição ocidental, Agostinho conceberia que o pecado é o produto de três processos

que têm lugar na alma: a sugestão, o prazer (ou deleite) e o consentimento (MANN, 1998a, p.

150); essa tricotomia está, não obstante, relacionada a outra que diz respeito ao próprio modo

como se efetiva o pecado: no coração, no ato ou no hábito, sendo precisamente a noção de pecado

habitual a que mais nos interessa. O pecado habitual nasce da repetição de atos ilícitos, de modo

que as sugestões subsequentes que levam a cometer o mesmo tipo de pecado são acompanhadas

por um nível de prazer cada vez mais intenso; assim, o pecador habital obtém maior prazer na

realização do ato pecaminoso do que obtém o pecador casual, o que explica porque os maus

hábitos são mais difíceis de serem combatidos. O pecador habitual acaba, portanto, por adquirir

um vício. Desse modo, o que ao fim está em questão é um exercício de aprimoramento moral que

envolve uma série de tarefas: primeiro, obter o controle sobre o comportamento exterior;

segundo, permitir apenas a existência dos motivos e das intenções corretas; terceiro – de acordo

com o Sermão da Montanha (Mt 5-7) –, é preciso buscar a perfeição, ou seja, é preciso que haja

um esforço para que a alma seja expurgada dos motivos e das intenções erradas. Como sintetiza

William Mann (1998a, p. 162): conquanto não haja nada de errado em superar a tentação, há algo

de errado no ato mesmo de sentir-se tentado.


187

Encontramos reflexos desse questionamento ético na literatura alegórica produzida na

Idade Média, desde a Psychomachia de Prudêncio até as pastorelas occitânicas. São textos sob os

quais subjaz uma concepção antropológica particular que concebe a alma humana como o espaço

em que se dá o embate entre duas ferozes e opostas forças: a virtude, que conduz ao

aperfeiçoamento do homem consoante os preceitos cristãos; e o vício que o afasta de Cristo,

encaminhando-o para a perdição.

No capítulo anterior, fizemos uma longa menção à vida de santa Margarida, personagem

da tradição cristã fortemente associada às pastorelas medievais; há uma interpretação para a

referida narrativa que pode acrescentar interessantes elementos à nossa discussão atual, sobretudo

por sua ênfase nos aspectos sexuais daquela narrativa. Recordemos, antes de mais nada, que santa

Margarida era uma jovem virgem mártir que encontrou e superou o demônio sob a forma de um

dragão. Devido à sua recusa a entregar-se a Olybrius, Margarida foi aprisionada e torturada,

sendo espancada com varas e ancinhos de ferro, o que fez com que o sangue brotasse de seu

corpo como de uma fonte pura (Douhet, 1855, p. 834), imagem que evidencia o uso de práticas

de tortura que empregam a penetração, bem como o estado virginal da mártir. Essa observação

pertence a Samantha Riches (2008, p. 73), que também ressalta que a iconografia da santa

incorporou posteriormente elementos não claramente relacionados à sua hagiografia.

Ocorre que, de acordo com as narrativas originais, santa Margarida libertou-se do dragão

fazendo o sinal-da-cruz; não obstante, há algumas representações da santa que a figuram

portando uma longa alabarda, ou até mesmo utilizando a haste de uma longa cruz processional à

maneira de uma lança para ferir o dragão demoníaco, o que evoca as representações de são Jorge

ou de são Miguel Arcanjo, frequentemente apresentados golpeando dragões com lanças. Como
188

observa a teórica, há algo de paradoxal no ato de uma jovem virgem penetrar com uma arma o

dragão, replicando assim o ato de tortura que ela mesma sofreu nas mãos de Olybrius. Isso

implicaria, de acordo com Riches, uma alusão à “sua própria alma impenetrável e transcendente,

e também ao seu poder de sobrepujar seu opressor (masculino), e portanto a uma posição de

gênero que está acima e além da dicotomia masculino/feminino” 224 ; trata-se, em última instância,

de uma construção da figura do santo como alguém que está apto a transcender os limites de seu

corpo humanizado, inclusive os sexuais (RICHES, 2008, p. 73-75). Desse modo, a relação entre a

figura tradicional da pastora, aqui representada por santa Margarida, e a pastora presente nas

pastorelas occitânicas converge para um mesmo ponto: a construção de uma figura que representa

a perfeição efetivada através da virtude que resiste a todos os vícios e tentações.

Não é preciso repetir aqui que as pastoras das obras medievais não são figuras reais;

agora, contudo, torna-se mais claro seu status enquanto representações. A pastora e o cavaleiro

fazem parte do universo medieval das alegorias, inscrevendo-se num jogo de significações que

diz respeito a nós mesmos; nós que, enquanto homens, somos o espaço em que se digladiam a

virtude – representada pela pastora – e o vício – representado pelo cavaleiro. Apenas a nós,

portanto, cabe escolher entre nos comportarmos como aqueles que se embevecem com a pintura –

o deleite que leva ao pecado – ou como os que buscam o maná – o alimento espiritual que conduz

para a perfeição divina.

224
“The allusion may be to her own impenetrable and transcendent soul and also to her power in overcoming
her (male) opressor, and hence to a gender position that is above and beyond the standart male/female dichotomy.”
189

6 O LUGAR DAS INTENÇÕES

Já tivemos a oportunidade de observar 225 que uma das críticas equivocadas

ocasionalmente dirigidas às pastorelas occitânicas diz respeito a uma questão específica: a

violência sexual. Embora a caracterização das pastorelas como uma “celebração do estupro”

possa ser – ainda que de forma controversa – aplicada a alguns exemplares de pastorelas

francesas, e embora encontremos descrições de cenas que envolvem a violação em alguns

exemplares de pastorelas em outras línguas 226 , é notável o fato de que, entre os exemplares

occitânicos, não existe nenhuma descrição de violência sexual ou sequer de coerção física: o que

encontramos de fato é um embate verbal entre a pastora e seu sedutor – um jogo de

convencimento em que o narrador tenta persuadir a pastora a submeter-se à sua vontade, ao passo

que ela busca convencê-lo de que não está disposta a abandonar sua virtude.

Por trás do argumento há a intenção, ou seja: o que subjaz a esse conflito dialógico são as

intenções opostas do narrador-cavaleiro e da pastora, intenções essas que efetivamente

determinam seus distintos comportamentos no âmbito do discurso poético. Isso implica

considerar que aqui não cabe discutir os atos em si mesmos, mas que o que está em questão é

compreender, mais fundamentalmente, o lugar das intenções; portanto, de indagar pelo sentido de

essas ocuparem um lugar central nessa discussão. Sendo a proposta principal deste trabalho

compreender as condições de produção das pastorelas alegóricas, o problema imediatamente

avulta: cabe considerar que o relevo conferido à intenção é, nesse caso, algo contingente?

225
Cf. o capítulo 3. Pastorelas e pastorais.
226
No capítulo 7. As pastorelas alegóricas nos Carmina Burana, trataremos da violência sexual em algumas
pastorelas medievais compostas na língua latina.
190

É no mínimo instigante o fato de o momento histórico em que surgem as pastorelas

coincidir com a chamada “descoberta do sujeito” 227 por Abelardo – descoberta que levou à

percepção de que as ações humanas devem ser julgadas não em si mesmas, mas pelo

consentimento interior – ou seja, pela intenção – do sujeito que as pratica. Embora não se trate,

evidentemente, de afirmar que as pastorelas sejam obras imediatamente influenciadas pelo

pensamento de Abelardo, consideramos relevante o fato de ser verificável um deslocamento (ao

ato para a intenção) similar no âmbito poético e no âmbito filosófico-teológico; desse modo,

compreender melhor a questão da intentio no pensamento ético abelardiano pode suscitar

questionamentos interessantes a respeito do lugar das intenções nas pastorelas alegóricas

occitânicas.

6.1. O ato e a intenção

Em sua obra sobre “o despertar da consciência na civilização medieval” (2006), o teólogo

francês Marie-Dominique Chenu trata, entre outras questões, do conceito de interioridade

enquanto uma característica fundamental das operações humanas, algo que está intrinsecamente

relacionado com a idéia mesma de sujeito: a descoberta do homem como portador não só de uma

sensibilidade psicológica e moral, mas sobretudo como portador de uma subjetividade irredutível

– descoberta que, por outro lado, ocupa a base da própria concepção antropológica moderna de

homem. É a partir dessa percepção que Chenu caracteriza Abelardo como “o primeiro homem

moderno”, enquanto pensador responsável pela “descoberta do sujeito”, “um dos epicentros da

227
A expressão é de Chenu (2006, p. 19).
191

gestação de um homem novo” – um “choque subversivo” cuja origem deve ser procurada na

revolucionária idéia de uma “moral da intenção” (CHENU, 2006, p. 19). É justamente o sentido

dessa “moral da intenção” abelardiana o que procuraremos entender neste momento – sem,

evidentemente, pretendermos esgotar o assunto: trata-se meramente de procurar elementos que

sirvam para o nosso exame das pastorelas medievais.

Consoante Chenu, o que caracteriza a moral da intenção é a idéia de que “o valor de

nossas intenções e o julgamento que elas evocam, diante de Deus e diante dos homens, se

determinam não radicalmente pelos objetos em si, bons ou maus em si, envolvidos por essas

ações”, e sim “pelo consentimento interior (consensus/intentio) que damos a eles” (CHENU, 2006,

p. 20); em outras palavras: o pecado não consiste no ato em si, mas no consentimento interior que

opera como condição de possibilidade para que ele seja praticado. O mal está, por conseguinte,

na vontade mesma de cumprir o ato interdito, ainda que essa seja por qualquer razão impedida de

efetivar-se numa ação concreta; as próprias ações devem ser, por outro lado, compreendidas a

partir de sua consistência, tomando-se como referência a vontade subjacente a elas. Chenu

formula essa percepção da seguinte forma: “tanto no ato dito bom quanto no ato dito mau, o

assentimento é o critério da moralidade, e de forma alguma a obra mesma (opus), o conteúdo

objetivo, nem o resultado em sua materialidade” (CHENU, 2006, p. 20). Isso significa dizer que o

ato, se cometido, não representa um acréscimo à culpabilidade do pecador, uma vez que não

funciona como critério determinante para o juízo moral.

Evidentemente, a questão é bastante mais complexa do que pode parecer à primeira vista.

Peter King demonstra-o quando apresenta uma formulação precisa do imperativo ético
192

abelardiano 228 : não se trata de compreendê-lo sob a forma “Um agente deveria intentar fazer φ

apenas se produzir φ for bom” 229 , mas sob uma forma que se aproxima muito mais dos

ensinamentos morais da tradição cristã: “Um agente deveria produzir φ somente se intentar fazer

φ for bom” 230 (KING, 1995, p. 213). Não obstante, a reformulação proposta por Abelardo deve ser

considerada a partir do seu entendimento acerca dos quatro elementos que envolvem a realização

de um ato passíveis de serem analisados a partir de seu sentido moral, três dos quais serão por ele

rejeitados. Vejamos como isso acontece.

Não se pode, em primeiro lugar, considerar que a moralidade de uma ação esteja

relacionada ao desejo; de fato, certos atos que podem ser considerados pré-teoricamente maus

podem ser realizados sem que nenhum mau desejo esteja relacionado a eles. Como exemplo para

isso, Abelardo menciona, em sua Ética 231 (1995, p. 3: I, 11-12), o caso da auto-defesa: se

consideramos a situação de um homem inocente acossado por seu senhor que, furioso, persegue-o

a fim de matá-lo com uma espada, e se essa situação chega a tal ponto que não resta ao

perseguido outra opção que não seja matar – embora involuntariamente – o seu senhor com a

finalidade única de preservar sua própria vida, como seria possível considerar que haja um mau

desejo envolvido nesse acontecimento?

Conquanto matar seja indiscutivelmente um ato mau, no caso exemplificado por Abelardo

temos a situação particular de um homem cujo desejo não era propriamente matar outro homem,

mas meramente preservar sua própria vida; desse modo, não é possível falar em termos de um

228
Ao longo deste capítulo, preservamos a formalização dos argumentos qual apresentada por Peter King.
229
“An agent should intent to do φ only if bringing about φ would be good.”
230
“An agent should bring about φ only if intending to do φ would be good.”
231
Conquanto o nome original do texto abelardiano seja Scito te Ipsum, esse não é praticamente utilizado,
razão pela qual aqui nos referimos a ele apenas como Ética, de acordo com a tendência geral. Utilizamos como base
a edição de Spade (1995); desse modo,
193

mal derivado do desejo. Consoante a formulação de King (1995, p. 215), o que Abelardo

estabelece é uma distinção entre dois tipos de desejos: (i) O desejo de φ visando ψ e (ii) o desejo

de φ (simpliciter). Cabe explicitar que (ii) não deriva de (i); mais que isso, a única inferência

possível a partir de (i) é que o agente deseja ψ, o que é compatível com o fato de ele não desejar

efetivamente φ ou até mesmo desejar o oposto de φ 232 . É esse o caso em que o agente suporta o

que não deseja em prol daquilo que ele realmente deseja.

Num segundo momento, a argumentação de Abelardo avança para uma reconsideração

em torno do valor de (ii), pelo que é levado a concluir que não há um sentido moral em qualquer

ato que se restrinja à consumação de um desejo. É o caso, exemplificado por King (1995, p. 216),

de um homem que doa dinheiro aos pobres não porque acredita que assim faz o bem, mas

simplesmente porque gosta de agir dessa maneira. O que confere valor ao ato, observa Abelardo,

é o objetivo visado através do desejo; mais ainda: uma ação boa terá maior valor moral se for

realizada sem que haja implicado um desejo, ou se for realizada contra o desejo daquele que a

efetiva.

Se a moralidade não está relacionada ao desejo, também não é possível considerar que

esteja intrinsecamente relacionada ao ato enquanto tal, e isso por uma razão simples: um mesmo

ato, visando um objetivo determinado, pode ser realizado por diferentes pessoas com intenções

opostas. É o caso, por exemplo (ABELARDO, 1995, p. 12-13: I, 58), de dois homens que enforcam

um condenado à morte, sendo que o primeiro o faz pelo desejo de cumprir a justiça e o segundo o

faz motivado pelo ódio que sentia pelo acusado. Conquanto o ato (enforcamento) seja o mesmo e

232
Embora a análise abelardiana, como o observa King (1995, p. 215), esteja sujeita a uma refutação: na
medida em que o agente deseja ψ e crê que fazer φ poderá ajudá-lo a alcançar ψ, é possível inferir que, em algum
sentido, o agente deseje φ; essa lacuna estaria relacionada a uma distinção insatisfatória, da parte de Abelardo, entre
processos e resultados como objetos do desejo e da intenção.
194

o objetivo (cumprir a justiça) seja moralmente bom, as intenções subjacentes determinam o valor

moral do ato como bom, no primeiro caso, e mau, no segundo caso. De fato, consoante Abelardo,

o ato em si é absolutamente irrelevante para a valoração moral – o que coaduna com o postulado

de que nenhum elemento exterior ou físico pode contaminar a alma, inclusive os prazeres

corporais: como seria possível considerar que haja pecado no ato sexual cometido dentro do

casamento, ou no ato de sentir prazer ao comer uma boa comida, se é impossível realizar tais atos

sem que o prazer se faça presente? Numa situação hipotética, se um homem pertencente a uma

ordem religiosa é forçado a permanecer deitado entre várias mulheres, preso por correntes, e é

levado a sentir prazer pelos toques em seu corpo sem que haja algum consentimento interior, não

cabe considerar que haja nisso um pecado (ABELARDO, 1995, p. 9: I, 40-42).

O caso do ato sexual entre casados é similar. Assim sintetiza King (1995, p. 222): se o ato

sexual no interior do casamento não é pecaminoso, então o prazer em si mesmo, dentro ou fora

do casamento, não é pecaminoso; pois, se assim fosse, o casamento não seria capaz de santificá-

lo. Por outro lado, como já mencionamos, esse ato não pode ser realizado de uma forma

inteiramente desprovida de prazer; por conseguinte, não faz sentido crer que Deus os permitiria

apenas se fossem realizados de um modo tal que sua consecução é impossível. Mann (2004, p.

281) resume as reflexões de Abelardo acerca da irrelevância moral dos atos e dos prazeres

corporais afirmando que nenhum feito externo é bom ou mau em si mesmo: todos os movimentos

corporais são moralmente neutros.

Entre quatro elementos passíveis de ocuparem o lugar de determinantes do valor moral de

um ato – o ato em si, o desejo do agente, o caráter do agente e a intenção do agente – , Abelardo

elimina os três primeiros (já sintetizamos brevemente as análises de Abelardo em torno dos dois
195

primeiros elementos; quanto ao caráter, a argumentação é mais simples: as mesmas qualidades

presentes nos bons homens – a coragem ou a moderação, por exemplo – podem fazer-se

presentes nos homens maus (ABELARDO, 1995, p. 1: I, 3)). Desse modo, o que resta considerar é

a intenção do agente.

Ao conferir um lugar central à intenção na valoração moral dos atos, Abelardo torna

moralmente relevantes elementos como coerção e ignorância; e será precisamente isso o que

servirá como fundamento para a sua argumentação mais polêmica, a saber: aqueles que

crucificaram Jesus Cristo não cometeram um pecado ao fazê-lo (ABELARDO, 1995, p. 24: I, 110);

mais que isso, eles teriam agido de forma pecaminosa se soubessem que tinham o dever moral de

crucificar Jesus Cristo e não o tivessem feito (ABELARDO, 1995, p. 29; I, 131). De fato, a

descrença motivada pela ignorância daqueles que efetivaram a crucificação não é razão bastante

para que eles possam ser considerados pecadores, uma vez que não decorre daí que tenham tido

intenção de fazer o mal; na verdade, o que se verifica é o contrário: eles acreditavam estar

servindo a Deus através desse ato.

Duas são as consequências dessa reflexão moral abelardiana: primeiro, constata-se que o

único mal está no ato que vai de encontro à consciência, essa última concebida como a faculdade

através da qual o ato realizado é percebido como algo que agrada ou desagrada a Deus; segundo,

percebe-se que o critério para a bondade das intenções é precisamente a adequação às

determinações divinas. Peter King (1995, p. 223) formula assim o critério estabelecido por

Abelardo: uma intenção é boa somente se ela é concebida como algo que se conforma, e se ela de

fato se conforma, aos desígnios divinos. Em decorrência disso, se X tem uma intenção φ que

concebe como não conforme à vontade divina, φ será necessariamente maligna, mesmo que de
196

fato se conforme aos desígnios divinos; se X intenta φ acreditando que Deus não aprovaria φ,

comete pecado, ainda que Deus efetivamente aprove φ; se X intenta φ acreditando que Deus

aprova φ e isso de fato ocorre, então φ é indiscutivelmente boa; já se X tem a intenção φ que

julga conforme a vontade divina, mas isso de fato não acontece, φ pode ser boa ou má,

dependendo de haver ou não negligência por parte de X (King, 1995, p. 223-224).

Não nos prolongaremos aqui na análise do pensamento abelardiano, que evidentemente

suscita questionamentos muito mais profundos. Mann (2004, p. 302), por exemplo, apresenta o

seguinte problema: se o critério para a moralidade é o amor a Deus que se efetiva através da

realização de atos que, de acordo com as crenças de determinado indivíduo, se adequam aos

intentos divinos, então isso significa que um indivíduo que tenha genuíno amor a Deus pode

cometer as piores atrocidades, baseado em falsas crenças, em nome de Deus. Esse não é, contudo,

o nosso problema; o que nos interessa nas reflexões de Abelardo em torno da idéia de pecado é o

lugar central por ele conferido à interioridade do agente. Manifestação de uma tendência

contemporânea mais geral, esse pensamento abelardiano representaria um momento de ruptura na

concepção histórica do sujeito.

6.2. O primado da consciência

Pode-se depreender da síntese que apresentamos sobre o pensamento ético de Abelardo

que o único critério possível para o estabelecimento da moralidade reside no sujeito. Não

obstante, cabe observar mais amplamente o sentido dessa ruptura – que Marie-Dominique Chenu

não hesita em qualificar como um “choque subversivo”, na medida em que implicava arruinar
197

“pela base a disciplina moral e penitencial em curso, estabelecida que estava essa disciplina sobre

a lei objetiva e as pressões do costume” (CHENU, 2006, p. 22). A mudança que doravante se

observará pode ser percebida, consoante o teólogo, a partir de uma trasformação essencial na

prática da penitência, sobretudo no tocante à articulação entre a satisfactio enquanto fator

objetivo e eclesiástico e a contritio enquanto fator subjetivo; nos parágrafos seguintes, trataremos

brevemente dessa questão – não, é claro, com a pretensão de realizar uma densa análise teológica,

mas porque ela constitui uma manifestação imediata do lugar central conferido ao sujeito a partir

desse momento de ruptura. Antes disso, no entanto, cabe destacar que, no tocante ao contexto

sócio-histórico em que emerge, a perspectiva abelardiana representa uma radical mudança

relativamente à prática penitencial então cultivada por outras tendências religiosas, que se

preocupavam sobretudo com a procura de uma solução prática para os problemas gerados pela

violência; por outro lado, os franciscanos e dominicanos estavam voltados principalmente para os

problemas criados pelas novas formas de comércio presentes no ambiente urbano das sociedades

européias. Observam Hepworth e Turner (1982, p. 55) que, se anteriormente a legitimação da

violência dos cavaleiros ocorrera em termos de uma conformidade do comportamento a leis

objetivas, a moralidade do mercado urbano estava, por sua vez, intrinsecamente relacionada às

intenções interiores; à moralidade cristã, por conseguinte, cabia abandonar o espaço aberto das

ações e das respostas penitenciais e penetrar o espaço interior das intenções. Uma outra

implicação disso estava relacionada à legitimação do comportamento econômico: se um

comerciante tinha boas intenções e cumpria os necessários serviços à sociedade, seu

comportamento se tornava aceitável de um ponto de vista religioso.


198

Como pondera McGrath (2005, p. 122), as discussões em torno da penitência anteriores

ao momento de que aqui tratamos envolviam a distinção de três elementos específicos: a contritio

cordis, a confessio oris e a satisfactio operis. No início da Idade Média, os teólogos conferiam

uma ênfase maior ao terceiro desses elementos, a satisfactio, o que deve ser compreendido em

relação com o entendimento de Anselmo acerca da encarnação. Para o referido teólogo, o modelo

satisfação-mérito proporcionado pelo sistema penitencial da Igreja fornecia um paradigma

adequado à remissão divina do pecado através da morte de Jesus Cristo. Quinn (2006, p. 236) nos

dá elementos para compreender a objetividade subjacente ao pensamento anselmiano quando

observa que, de acordo com Anselmo, a punição do pecador é necessária por uma questão de

equilíbrio, a fim de não permitir que os que pecam e os que não pecam fiquem na mesma posição

ante Deus; uma situação similar seria a de um homem que deve muito dinheiro a um homem e

que quita o seu débito, e que se sente injustiçado ao perceber que um outro homem deve tanto

quanto ele ao mesmo credor e tem a dívida perdoada.

É no início do século XII, consoante McGrath (2005, p. 122), que ocorre a mudança de

foco da satisfactio para a contritio, o que implica um deslocamento da ênfase em direção à

motivação interior do penitente e uma relativa desvalorização das obras enquanto reparadoras do

pecado. Quando define a penitência em termos psicológicos, Abelardo ainda preserva a

satisfactio e a confessio como elementos necessários; contudo, ele cumpre um papel fundamental

num processo que culminará com o pensamento teológico de Pedro Lombardo, para quem a

contritio é a única precondição para o perdão. Redimensionada, a função do sacerdote passa a ser

puramente declarativa: trata-se meramente de certificar que o penitente está reconciliado com a

Igreja.
199

O que se observa, portanto, é uma convergência de fatores que enseja a reorientação das

práticas penitenciais em direção à interioridade do sujeito; em decorrência disso, passam a ocupar

uma posição central elementos como as intenções, a consciência e até mesmo a personalidade

daquele que participa do referido processo. No dizer de Chenu (2006, p. 24), trata-se de “uma

eliminação decisiva, porque doutrinalmente motivada, da prática da chamada paenitentia

solemnis, isto é, da imposição pública de sanções exteriores, em benefício da penitência privada”,

para o que é inestimável a contribuição de Abelardo; verifica-se, por conseguinte, uma

penetração contínua do “‘subjetivismo’ na literatura penitencial, que registra e elabora, a partir de

então, o cuidado de uma adaptação psicológica à personalidade do penitente”.

Verifica-se aí, portanto, a presença de elementos que estabelecem uma clivagem entre a

penitência “exterior” e a penitência “interior”. Observa Mary Mansfield (2005, p. 34) que,

embora os autores dos primeiros penitenciais tenham considerado a legítima contrição como um

fator essencial para o verdadeiro perdão, apenas os teólogos do século XII desenvolveram um

pensamento que visava identificar separadamente os efeitos da contritio, da confessio e da

satisfactio. Essa distinção, aliás derivada da identificação abelardiana do pecado com a intenção

do sujeito, finalmente tornou possível a distinção entre a culpa e a poena; desse modo, sendo a

culpa – não a penitência temporal – percebida doravante como o verdadeiro impedimento para a

salvação eterna, cabia aos manuais de confissão apresentar técnicas apropriadas para que a

confissão pudesse ser adequadamente obtida e para que a penitência pudesse ser adaptada às

condições em que o pecado se realizou. São esses, portanto, os fatores determinantes para que a

confissão privada passe a ocupar um lugar central.


200

Entre as consequências diretas dessas transformações no pensamento teológico

(MANSFIELD, 2005, p. 34-35), percebe-se o crescimento da literatura devocional dirigida aos

leigos: tanto os exempla quanto os romances vernáculos procuravam enfatizar a importância da

confissão para a salvação do pecador. A figura do confessor, por outro lado, também passou por

profundas mudanças: com a garantia do segredo, tornou-se possível para o pecador confessar

absolutamente tudo, com a segurança de que mais ninguém teria conhecimento daquilo que foi

revelado no âmbito privado – o confessor tornou-se um amigo, um consolador, um medicus. Em

meados do século XIII, será comum que os confessores sejam monges mendicantes não

pertencentes às paróquias; na literatura vernácula, há confessores que são verdadeiramente

ermitões, por conseguinte inteiramente apartados do ambiente em que reside o pecador, sempre

sujeito à circulação de boatos e às conversas indiscretas entre os vizinhos.

É representativo o episódio narrado por Etienne de Bourbon e mencionado por Mansfield

(2005, p. 36): um homem vivia atormentado pelo pecado que cometera, mas se sentia incapaz de

confessar seu erro; certo dia, escreveu o pecado num pedaço de papel e, chorando, colocou-o nas

mãos da estátua de um santo. Depois de algum tempo alguém chegou e, encontrando o papel,

tentou ler o que estava escrito – em vão: o santo havia apagado a mensagem, após perdoar o

pecador. Essa história aparece outras vezes nos textos medievais; pode-se mencionar, por

exemplo, o episódio descrito no Codex Calixtinus (MALEVAL, 2005, p. 102-105), consoante o

qual certo italiano, atormentado pela culpa, confessou a seu sacerdote e pároco um grande pecado

que havia cometido. Aterrado diante de culpa tão grave, o pároco não lhe impôs penitência; em

vez disso, encaminhou-o ao sepulcro de são Tiago com uma carta em que estava escrito o seu

pecado, a fim de que o italiano pudesse implorar os auxílios do santo Apóstolo e submeter-se ao
201

julgamento da basílica apostólica. Quando chegou a Santiago, tomado pelo arrependimento, o

pecador deixou no antealtar o manuscrito com a acusação; enquanto isso, rogava pelo perdão

divino, em meio a soluços e lágrimas. No dia seguinte, quando o bispo da sede compostelana

achegou-se ao altar, encontrou o bilhete e perguntou por quem ali o deixara; o italiano foi-lhe

apresentado e, ajoelhado diante dele, relatou seu pecado. Todavia, quando o bispo abriu a carta,

nada ali havia escrito: por disposição divina, a anotação fora anotada, indício de que o pecado

fora perdoado. Ao fim da narrativa, o papel do segredo é ressaltado: a todo aquele que, tomado

por verdadeiro arrependimento, dirigir-se à Galiza para buscar o perdão divino e os auxílios de

são Tiago, “a marca de suas culpas será apagada para sempre” 233 (MALEVAL, 2005, p. 105).

Outra narrativa, referida por Mary Mansfield, descreve um navio que, em pleno mar,

enfrentava uma tempestade; um dos passageiros, certo de estar encarnando naquela situação a

figura bíblica de Jonas e de assim colocar em perigo todos os outros passageiros, confessa em voz

alta o seu pecado: imediatamente o mar se acalma e, por um milagre, todos a bordo esquecem

aquilo que o homem havia confessado. Desse modo, através dos milagres ou da amicitia

intrínseca à relação entre quem confessa e quem ouve a confissão, observa-se a preservação desse

elemento fundamental – o segredo –, cuja emergência deve necessariamente ser vinculada a uma

nova percepção da subjetividade; para além da privacidade doméstica, vislumbra-se o surgimento

daquilo que Mansfield conceitua como uma “privacidade da alma” 234 (2005, p. 36). Por outro

lado, com tal força se reconheceria a condição imperscrutável da interioridade humana que não

tardariam a surgir tendências no âmbito teológico cuja prioridade era atenuar a ênfase na

contrição subjetiva, concebendo-a como uma espécie de estágio preliminar, justamente por conta
233
“... quia quisquis vere penitens fuerit et de longinquis horis veniam a Domino et auxilia beati Iacobi
postulanda in Gallecia todo corde pecierit, procul dubio delictorum eius cyrographum deletum in evum erit.”
234
“(...) the privacy of the soul.”
202

das dificuldades com o trato das pressões psicológicas – uma vez que a responsabilidade de

calcular a contrição fora transferida para os leigos, o que se tornava um assunto delicado quando

o assunto em questão era, por exemplo, a usura (MANSFIELD, 2005, p. 40). Não obstante, querelas

desse tipo surgiam precisamente como uma consequência do reconhecimento da subjetividade 235 .

Observa Chenu que o “subjetivismo” na literatura penitencial – que deriva de Abelardo,

desenvolve-se com obras como o Liber de paenitentia de Alanus e ganha força sobretudo a partir

da legislação do Concílio de Latrão (1215) – acabará por desenvolver-se em duas direções, assim

distinguidas por Michaud-Quantin: de um lado, há os “manuais de confissão”, “elaborados em

vista do exercício do exame de consciência”; de outro, há as “sumas de caso de consciência”,

tratados “cuja casuística introduz, na prática formalista da penitência, os elementos de intenção,

circunstância, responsabilidade, ‘personalização e fineza psicológica, que dão um novo tom’”

(CHENU, 2006, p. 24-25). A evolução dos procedimentos jurídicos no século XII também

converge para essa atenção ao sujeito e aos seus direitos, o que enseja uma proliferação de

“críticas cada vez mais categóricas contra os ordálios, os duelos judiciários, as provas do fogo ou

da água, as promessas e as maldições, tudo concebido como ‘julgamento de Deus’ num

sobrenaturalismo sumário” que, no entender do referido teólogo, “operava uma alienação das

consciências, transferindo para a divindade aquilo que se referia, na verdade, a discernimentos e

provas de inocência ou culpabilidade” (CHENU, 2006, p. 25).

Nesse novo contexto, passam a vigorar dois axiomas cujo uso não se restringe apenas ao

âmbito literário, mas que influencia também as estruturas morais, e que podemos explorar a fim

de resumir o que foi exposto nas páginas anteriores. Eis a primeira fórmula, de acordo com

235
Essa questão é amplamente discutida por Mary Mansfield em “The failure of a theology of private
penance” (2005, cap. 2.
203

Chenu (2006, p. 27): “É o teu amor que qualifica as tuas obras – Affectus tuus operi nomen

imponit”. Isso quer dizer que todo ato é determinado e definido a partir da vontade, realizada

através da intenção, o que deve ser compreendido em relação com as fórmulas de Hugo de São

Vítor: Quantum vis tantum mereris – “merecerás tanto quanto desejares” – , ou ainda: Quantum

intendis tantum facis – “Faças tanto quanto intentas”. Mudança, portanto, da rigidez própria dos

critérios objetivos para o âmbito do sentimental e do emocional – que, no entender de Alain de

Lille, representará uma mudança de um sistema de penalidades para uma medicina espiritual e

uma análise ética; mudança que, por outro lado, assinala a ascensão de uma cristandade

evangélica, com o desenvolvimento de uma literatura cujo intento é estender a participação de

Cristo na humanidade: a partir de então, o tema do amor pela carnalidade de Cristo (carnalis

amor Christi) se tornará central na mentalidade medieval, como resultado da experiência

subjetiva do indivíduo que se identifica com o sofrimento do crucificado (STUGRIN, 1986, p.

147).

O segundo princípio é uma fórmula emprestada literalmente ao texto bíblico : Omne quod

non est ex fide peccatum est: “Tudo o que não vem da fé é pecado” (Rm 14, 23). Será esse, de

acordo com Chenu (2006, p. 27-28), “o axioma oficial para sustentar moral e juridicamente os

direitos da consciência”: a fé exige que se siga a consciência, mesmo que isso signifique sofrer

uma excomunhão ou que, como ensina Tomás de Aquino, seja necessário afastar-se da comunhão

cristã quando não se crê mais na divindade de Cristo; é a defesa dos direitos da consciência que,

ainda que cometa um erro, está isenta da culpabilidade por fazê-lo de modo evidentemente

involuntário. E também nesse ponto cabe reiterar o sentido inovador do pensamento de Abelardo.

Anders Schinkel (2007, 418-419) vê aí o ponto de partida de toda a caminhada em direção à


204

liberdade de consciência. Dizer que tudo o que não está de acordo com a consciência constitui um

pecado – e que, portanto, qualquer ação contra aquilo que se acredita ser a vontade divina deve

ser condenada – implica estabelecer na subjetividade o critério de toda a moralidade e conceder, à

consciência, uma autoridade num sentido negativo: se há sempre um erro em qualquer ato contra

a consciência, isso não significa que todo ato que esteja de acordo com ela seja correto; não

obstante, alguém que cometesse um erro por agir de acordo com aquilo que acredita ser a vontade

divina não poderia ser considerado propriamente um pecador, dado que – e este é um dos pontos

fundamentais do pensamento abelardiano – o pecado reside essencialmente no ato cometido

contra a consciência.

O que devemos reter do que aqui foi exposto é sobretudo a condição axiológica da

intenção moral humana. Qualquer ato humano é, em si mesmo, desprovido de valor moral; não

obstante, subjaz a todo ato uma vontade que é o único critério verdadeiramente válido para a

determinação do seu sentido ético. Se Abelardo foi quem primeiro formulou de maneira exemplar

essa nova visão sobre a moralidade humana, cabe entrever aí uma perspectiva que seria de muitas

formas problematizada e desenvolvida no pensamento medieval e que deixaria uma herança

determinante para a modernidade. E é instigante perceber que Abelardo possivelmente ainda

estava vivo quando um trovador occitânico compôs a obra que daria início a uma tradição poética

que tematizaria exatamente o embate entre intenções humanas 236 .

236
Abelardo faleceu em 1142; Marcabru desapareceu aproximadamente em 1150.
205

6.3. A pastorela como instância de embate moral

Antes de mais nada, reiteremos: não se trata de sugerir que Marcabru tenha sido

diretamente influenciado pelo pensamento abelardiano; o que nos parece instigante é o fato de ser

perceptível, no âmbito poético, uma ênfase na consciência e nas intenções que sugere um

movimento similar àquele percebido no âmbito filosófico-teológico, onde há um deslocamento

do ato para a intenção como critério moral. Esquivando-se completamente à (estereotipada)

qualificação do gênero como “celebração do estupro”, as pastorelas occitânicas desconhecem

qualquer forma de violência sexual: o que nelas encontramos é tão somente um duelo verbal

entre um narrador e uma pastora – um que tenta seduzir e uma que tenta resistir à sedução – que

vela, por conseguinte, um embate entre dois sujeitos com intenções opostas.

Encontrávamos essa situação já na obra fundadora de Marcabru, L’autrier jost’una

sebissa. Ao longo das treze estrofes que constituem essa composição, deparamo-nos com

seguidas investidas do cavaleiro-sedutor que são, uma após a outra, rechaçadas pela pastora; e é

relevante observar que as poucas descrições de estados físicos que nela se encontram, conquanto

remetam a qualidades ou condições corporais, em momento algum sugerem tentativas concretas

de avanço físico. Quando o sedutor se declara preocupado com o frio vento que fere a pastora,

oferece-se para protegê-la, mas à palavra não se segue um gesto: o fato de a jovem não autorizar

um aproximação do sedutor é suficiente para que esse reconheça o fracasso de seu intento e

recorra a outro artifício.

É especialmente interessante a disputa que ocorre na décima primeira e na décima

segunda estrofes da obra de Marcabru. É esse trecho da composição em que o cavaleiro-sedutor


206

apela a um argumento supostamente ontológico, alegando que todas as criaturas devem obedecer

ao que determina sua natureza, e que por isso cabe a ela entregar-se a ele para que possam fazer

“a coisa doce”; a pastora, contudo, refuta-o, dando a entender que de fato é o homem quem

escolhe o seu destino, conforme sua condição ou seu caráter. Para concluir seu argumento, a

pastora recorre à necessidade de moderação: deve o homem guardar a medida para agir de acordo

com o que determina o bom senso.

Podemos fazer um esforço para aproximar esse diálogo do que antes expusemos sobre o

conflito de intenções. Não é possível, afinal, censurar o narrador por qualquer ato, a não ser pela

verbalização de suas intenções; para dizer de outro modo: seu erro não está propriamente naquilo

que ele diz, mas nas intenções que se tornam perceptíveis a partir de suas palavras, ainda que ele

se esforce para ocultar o que supomos ser seu real desejo; é isso o que ocorre, por exemplo,

quando o sedutor protesta sinceridade e franqueza – afirmando, na nona estrofe, que deseja uma

“amizade de coração”, sem que haja lugar na relação para quaisquer enganos – , cometendo ele

mesmo uma fraude ao fazê-lo – já que, como deduz a pastora, essas promessas são um produto da

intemperança. É por entrever aquilo que as palavras do sedutor simultaneamente velam e

insinuam que a pastora contesta e replica seus avanços, denunciando e condenando as intenções

daquele.

O foco de todo o embate dialógico, portanto, está nos desejos que subjazem às palavras.

Enquanto o sedutor é movido pelo apetite carnal, a pastora está determinada a preservar seu

comportamento virtuoso; o comportamento da jovem, portanto, conforma-se com referenciais

religiosos. Numa tentativa de formular esses diferentes propósitos de uma maneira próxima ao

pensamento abelardiano, podemos argumentar que a pastora age da forma como acredita que
207

Deus gostaria que ela agisse, sendo portanto fiel àquilo que determina a sua consciência; como a

conservação da castidade de fato se adequa aos princípios cristãos, é possível concluir que sua

ação é indiscutivelmente boa.

O caso do sedutor é diferente: embora não possamos afirmar que ele aja deliberadamente

de forma a ofender Deus, ou que esse seja seu propósito central, apenas o fato de ele não levar em

consideração quaisquer princípios religiosos já o torna passível de ser acusado de negligência,

sobretudo perante as exortações da pastora. A atitude do sedutor, portanto, resvala em pecado

pelo fato de ele não levar em consideração as possibilidades de Deus aprovar ou não o seu desejo,

o que caracteriza um desprezo; para sofisticar um pouco mais nossa argumentação, podemos

inclusive observar que a postura do narrador seria menos condenável se ele julgasse, de forma

sincera (embora absurda), que sua tentativa de seduzir a pastora é algo que se adequa às

determinações divinas: nesse caso, o fato de ele acreditar (mesmo equivocadamente) que seu

gesto obedece aos propósitos divinos funcionaria como um atenuante 237 .

Podemos aplicar o mesmo raciocínio às outras pastorelas alegóricas. Um caso interessante

é a pastorela de Giraut de Bornelh, L’autrier, lo primier jorn d’aost 238 . Nessa obra encontramos

um cavaleiro que, magoado pelo frívolo comportamento de sua nobre amada, afirma estar à

procura de uma amiga gentil e sincera. A pastora condena o comportamento volúvel das damas

nobres e revela-se disposta a entregar-se ao cavaleiro, embora ainda seja jovem e casta, desde que

esse lhe faça sinceras promessas de casamento; contudo, o cavaleiro recua, protestando-se fiel à

sua nobre amante.

237
Referimo-nos a esse paradoxo em 6.1. O ato e a intenção.
238
Que já analisamos em 2.2.1. A fidelidade à infiel: L’autrier, lo primier jorn d’aost, de Giraut de Bornelh.
208

Aqui estamos, mais uma vez, diante de intenções muito diversas: de um lado, temos uma

pastora que, ao consentir em entregar-se ao cavaleiro, num comportamento que reconhece ser

leviano, assim age apenas por acreditar que é essa uma forma de vivenciar um amor sincero – ao

menos, é o que podemos deduzir a partir da condenação que ela dirige ao amor das mulheres

nobres, que considera “pleno de vaidade e interesse”; ou seja: temos uma pastora que age de

acordo com o que determina sua consciência, e que parece levar em consideração os propósitos

divinos quando ressalta sua condição casta e virtuosa – de modo que, consoante a reflexão de

Abelardo, mesmo que a pastora se equivoque em seu julgamento dos desígnios divinos, ainda não

caberia julgar pecaminosa a sua intenção. No caso do sedutor, o que o torna passível de

condenação é a falsidade que pode ser entrevista em seu discurso, já que ele a princípio se

declarava disposto a abandonar sua volúvel amada e, posteriormente, recua nessa decisão e

mantém-se fiel àquela em que reconhece a infidelidade – o que, mais uma vez, manifesta um

desprezo pelos propósitos divinos.

Situações como essas se repetem em todos os outros exemplares de pastorelas alegóricas,

o que nos permite concluir que o eixo moralizante dessas obras é sempre um embate de intenções

– ao menos no caso das pastorelas occitânicas, onde nunca há uma dominação física da pastora

por seu sedutor. Esse conflito de intenções, desejos e vontades é o que caracteriza o lugar central

ocupado pela consciência nas pastorelas alegóricas, o que se coaduna com o que anteriormente

expusemos acerca da emergência da subjetividade no século XII. Isso não deve ser causa de

surpresa, se levamos em consideração que não há produção humana que permaneça imune às

condições históricas que a rodeiam; não obstante, trata-se de um aspecto ainda não explorado das
209

pastorelas que, como esperamos haver comprovado, pode ensejar relevantes investigações para

uma melhor compreensão desse fenômeno literário.


210

PARTE III:

DESDOBRAMENTOS E HIBRIDIZAÇÕES
211

7. A PASTORA E A PUELLA: AS PASTORELAS ALEGÓRICAS MÉDIO-LATINAS

Se pretendemos rastrear algumas das sendas percorridas pelas pastorelas alegóricas no

âmbito medieval para além da literatura occitânica, é necessário que, em primeiro lugar, levemos

em consideração certas limitações já abordadas anteriormente em diversos momentos desta

pesquisa. É importante, sobretudo, observar que pretensões de determinar processos específicos

de desenvolvimento histórico esbarram na impossibilidade de acesso a registros e documentos, o

que acaba por constituir uma tarefa tão difícil – senão impossível – quanto precisar o contexto de

emergência das pastorelas occitânicas; trata-se, em outras palavras, de optar entre a especulação

ou a simples renúncia a dar conta de uma tarefa praticamente insolúvel.

Isso é particularmente relevante no caso das pastorelas médio-latinas, a primeira variação

das pastorelas alegóricas no âmbito de uma tradição literária não-occitânica que estudaremos

neste trabalho. O caso dos Carmina Burana, corpus poético em que se localizam quase todas as

pastorelas que nos interessam – a exceção é Sole regente lora, pastorela de Gualterus de

Castellione que não faz parte do códice burano – , oferece problemas históricos peculiares que

impõem limites a quaisquer pesquisas que os tenham como objeto; o que não significa, por outro

lado, que o corpus que analisaremos no próximo capítulo – as pastorelas alegóricas galego-

portuguesas – não suscitem dificuldades específicas. Sendo assim, tanto neste capítulo quanto no

próximo dedicaremos inicialmente algum espaço para considerações de cunho introdutório, em

que apresentaremos as peculiaridades e dificuldades em torno do estudo das pastorelas no

contexto literário em questão, antes de empreendermos o estudo do corpus que nos diz respeito.

No caso deste capítulo, cabe começar com uma breve revisão bibliográfica acerca dos

Carmina Burana, fonte da maior parte das pastorelas alegóricas que nos interessam.
212

7.1. Os Carmina Burana: notas introdutórias

Ainda hoje, passados mais de dois séculos desde a descoberta do códice burano no

monastério bávaro de Benediktbeuern pelo historiador, bibliotecário e jurista alemão Johann

Christoph Freiherr von Aretin, há uma pletora de questões sobre esse corpus poético que ainda

não foram respondidas.

Nas cento e doze folhas que constituem os Carmina Burana, publicadas pela primeira vez

em 1847 por Johann August Schmeller – responsável, aliás, pela atribuição do nome pelo qual o

códice é hoje conhecido – havia duzentas e vinte e oito composições; estudos recentes

identificaram nos manuscritos as marcas de três diferentes escribas, que devem ter terminado o

seu trabalho por volta de 1230 (WALSH, 1993, p. xiii). A divisão dos textos estabelecida a partir

da publicação do primeiro volume da edição crítica de Hilka e Schumann (1930) compreende três

seções: a primeira (1-55) consiste em peças moralizantes e satíricas (Carmina moralia et

satirica); a terceira (187-228) traz as obras tabernárias (Carmina potatoria) e outras

composições, além de um material suplementar; entre essas duas seções (56-186), encontramos a

coleção convencionalmente destinada às peças amorosas (Carmina amatoria), embora isso não

corresponda à verdade: há um conjunto de treze obras (122-134) que não tratam dessa temática, e

que foram inseridas nesse lugar do códice provavelmente por pressa dos escribas. O conjunto

restante de quase 120 textos, no qual se incluem as pastorelas que posteriormente estudaremos,

constitui a maior antologia de poesia amorosa médio-latina conhecida (WALSH, 1993, p. xiii).
213

Julgou-se a princípio que os Carmina Burana proviessem da região de Moselle; contudo,

uma análise do dialeto germânico constante do códice favoreceu a hipótese de uma origem

bávara, pelo que se aventou num segundo momento a hipótese de uma proveniência germânica,

talvez no próprio mosteiro de Benediktbeuern. Os tempos mais recentes fizeram reviver a

hipótese de uma origem francesa para a maior parte das composições, seja pelo conhecimento

disponível acerca de autores individuais cujas obras fazem-se presentes no códice, seja por uma

análise dos motivos literários dos textos e dos cenários neles descritos – embora, como há muito

já alertava Philip Allen (1931, p. 264), uma investigação desse tipo siga uma orientação mais

filosófica do que filológica, não totalmente isenta de influências subjetivas. De resto, cabe

observar que a heterogeneidade da coletânea não diz respeito apenas à metrificação quantintativa

ou acentual das composições coligidas, mas também à sua qualidade: muitos dos textos

apresentam problemas no tocante ao uso da rima e dos hiatos (RABY, 1934, v. 2, p. 257-258); de

resto, houve alguma controvérsia envolvendo as estruturas rítmicas de algumas composições 239 .

É também importante discutir brevemente o problema da autoria dos poemas e canções 240

que constituem o referido códice. Durante longo tempo, pairou sobre o códice burano a difusa

sombra dos “goliardos”, termo tão vago quanto polêmico que foi controversamente aplicado a um

sem-número de composições profanas desde os tempos medievais – e que, indiscutivelmente,

obscureceu por um vasto período quaisquer discussões mais aprofundadas em torno da autoria

dos Carmina Burana.

239
Referimo-nos à refutação que Dag Norberg dirigiu a Wilhelm Meyer e Otto Schumann em torno da
regularidade das estruturas acentuais de diversos dos Carmina Burana; cf. NORBERG, 2004, p. 20-21.
240
Há nos Carmina Burana tanto poemas compostos segundo a métrica clássica quanto letras de canções cuja
melodia foi encontrada em outros códices, motivo pelo qual toda generalização sobre o seu conteúdo deve ser
evitada.
214

O goliardismo foi um fenômeno medieval que estendeu seus braços até as primeiras

décadas do século XX. Durante a Idade Média, a expressão familia Goliae era comumente

utilizada para descrever os grupos desviantes de clérigos, sendo mais ou menos equivalente a

clerici vagantes, os errantes clérigos que constituíram um elemento perene da vida medieval,

cujas irregulares atividades as autoridades eclesiásticas sempre buscaram controlar ou coibir; a

Igreja só se livrou do problema no início do século XIII, quando logrou adotar medidas que

fizeram desaparecer os vagantes tanto num âmbito eclesiástico – revela-o a norma estabelecida

nos Concílios de Rouen e de Tours, em 1231, que retira a tonsura de todos aqueles reconhecidos

como membros da familia Goliae 241 – quanto num âmbito cultural, quando as universidades

erigiram mecanismos de controle que impediam a matrícula de estudantes desvinculados a um

mestre específico (COBBAN, 1992, p. 229-230). Eram esses clérigos de comportamento

notoriamente desviante que, na Idade Média, recebiam também o nome de “goliardos” (goliardi;

às vezes, goliardenses), termos que aliás ocorriam de forma bastante vaga nos documentos

eclesiásticos; como atesta o Glossarium ad scriptores mediae et infimae Latinitatis de Du Cange

(1710, p. 717), os goliardi eram postos ao lado dos bufões (bufones) e jograis (joculatores),

sendo às vezes definidos como aqueles que “compunham versos ridículos” (“versus ridiculos

componebant”). Uma questão, portanto, avulta: como compreender o lugar dos goliardi no

241
Statuimus quod clerici ribaldi, maxime qui vulgo dicuntur de familia Goliae per episcopos, archdiaconos,
officiales et decanos Christianitatis tonderi praecipiantur vel etiam radi, ita quod eis non remaneat tonsura
clericalis, ita tamen quod sine periculo et scandalo ita fiant. (xiii. Estabelecemos que os clérigos indecentes,
especialmente os que são pelo povo denominados como familia Goliae, pelos bispos, arcediagos, oficiais e decanos
da cristandade sejam prescritos a ter a cabeça raspada em vez de serem tonsurados, de modo que neles não
permaneça a tonsura clerical, e ainda que sem riscos ou escândalos eles o façam.) É interessante notar que essa
declaração, que aparece registrada de forma idêntica nos referidos concílios, já se fazia presente nas Constitutiones
de Gautier de Sens, falecido três séculos antes (c. 913) (Chambers, 1996, p. 61).
215

âmbito da cultura medieval? O que implica indagar, mais precisamente: a partir de que momento

a familia Goliae aproxima-se da literatura?

Desde a patrística, a figura bíblica de Golias tornou-se progressivamente mais abstrata,

cada vez mais genericamente concebida como símbolo de uma força anticristã. Hipólito escreveu

um tratado, De David et Goliath, em que “a vitória sobre o gigante, alegorizada em cada minúcia,

é sinal da vitória de Cristo contra o mal, na qual tomam parte todos os homens que se revestem

das armas de Deus” (Meloni, 2002, p. 380). Assim como David foi considerado uma

representação de Cristo, Golias tornou-se um ícone do adversário da fé, não raro identificado ao

diabo – algo endossado inclusive por Agostinho: em seu sermão sobre Davi, Jessé e Golias

(1863), afirma que Cristo Davi carregou sua cruz contra o espírito de Golias, ou seja, “contra o

diabo que deve ser combatido” 242 .

É no século XII que a figura de Golias penetra o âmbito literário, tendo emergido

possivelmente da polêmica travada entre Bernardo de Claraval e Abelardo. “Guardião vigilante e

influente da doutrina tradicional contra o erro e contra a novidade, que para ele são uma só

coisa”, se Bernardo providencia em Sens a condenação de Abelardo – “em quem não vê senão

um monge fugitivo e um dialético pernicioso ‘que quer compreender pela razão humana tudo o

que é de Deus’” (VERGER, 1996, p. 69-70) – não o faz pelo suposto “anti-intelectualismo” lato

sensu que a ele se associou como um estereótipo, mas por uma questão subjacente à própria

concepção de conhecimento: para Bernardo, o conhecimento identifica-se com a experiência

espiritual, sendo essa a base do seu estranhamento perante os diferentes aspectos da renovação

intelectual característica do século XII (BREDERO, 2004, p. 15).

242
Venit enim verus David Christus, qui contra spiritalem Goliath, id est, contra diabolum pugnaturus,
crucem suam ipse portavit. (AGOSTINHO, 1863, col. 1820)
216

Quando Bernardo ataca Abelardo, não deixa de lançar mão do símile bíblico de que há

pouco tratamos: escrevendo para o papa Inocêncio II, compara aquele que vê como um inimigo

do cristianismo e seu discípulo Arnaldo de Brescia a um Golias que avança com seu cavaleiro

insultando as falanges de Israel, ultrajando os batalhões de santos com a insolência de quem não

teme que um Davi venha a combatê-lo (CLAIRVAUX, 1866, carta CLXXXIX). A vitória sobre

Abelardo do incansável Bernardo de Claraval colaborou de forma possivelmente decisiva para o

fortalecimento do goliardismo, algo sugerido por algumas das mais significativas obras do

“corpus goliárdico” que encerram alusões ao enfrentamento; é o caso, por exemplo, da

Metamorphosis Goliae Episcopi (Wright, 2). Esse longo poema, de mais de duas centenas de

versos, menciona uma noiva que foi apresentada aos grandes autores da Roma antiga por um

“paladino” que, contudo, não pode mais encontrar, já que ele foi silenciado pelo “Primaz

encapuzado do bando de encapuzados” (“Cucullatus populi primas cucullati”); vale notar,

inclusive, que isso implica uma leitura do conflito entre Abelardo e Bernardo como um embate

que opunha aqueles que acolhiam o conhecimento dos antigos aos seus inimigos, encapuzados

obscurantistas (CLANCHY, 1999, p. 153). Essa representação do conflito é ressaltada na última

estrofe, onde pede o autor que “seja desprezado o bando encapuzado / e seja banido pela escola

filosófica. – Amém.” (“cucullatus igitur grex vilipendatur, / et a philosophicis scolis expellatur. -

Amen.”).

Se nos referimos entre aspas ao “corpus goliárdico”, assim fizemos em respeito aos

questionamentos que vêm sendo aventados em torno desse conceito. Do fato de um conjunto de

composições médio-latinas que apresentam semelhanças formais e temáticas serem atribuídas a

um enigmático Golias surgiram duas abordagens diversas em torno do goliardismo, delineadas


217

por Rigg (1977). Por um lado, a abordagem biográfica postulava a existência de uma pessoa real

por trás do bíblico sobrenome – para o que, aliás, muito contribuiu certa declaração de Giraldus

Cambrensis, eclesiástico e cronista galês que escreveu sobre um “parasita” de nome Golias, seu

contemporâneo, “famosíssimo igualmente por sua glutonia e sua luxúria, que melhor seria

chamado Gulias, pois é devotado à gula e à embriaguez”; embora letrado, desprovido de qualquer

disciplina, “vomitou muitas vezes muitos populares poemas contra o papa e a cúria romana, tanto

em forma métrica [clássica] quanto rítmica, de modo não menos impudente quanto

imprudente” 243 (RIGG, 1992, p. 146-147). A adesão a essa orientação biográfica levou Thomas

Wright (1968) a deduzir que o autor oculto pelo bíblico pseudônimo seria o clérigo galês Walter

Map 244 , constituindo assim um corpus que incluía composições que os manuscritos ou

antiquários atribuíam a Golias, poemas atribuídos a Mapes e obras que apresentavam alguma

similaridade com as outras coligidas. Essa orientação biográfica foi adotada para a constituição

do corpus poético de autores como Hugo Primas 245 e Gualterus de Castellione, igualmente

associados ao goliardismo.

A outra abordagem, comumente adotada pelos antologistas, é denominada por Rigg

“sócio-literária”: tomando como ponto de partida uma vaga idéia de como devem ter sido os

goliardi e a suposta ordo vagorum – intelectuais contestadores, vagabundos, astutos e lascivos; o

que, podemos acrescentar, logo deu origem a uma visão estereotipada que cedia aos goliardi

243
“Item parasitus quidam Golias nomine nostris diebus gulositate pariter et lecacitate famosissimus, qui
Gulias (MS Golias) melius quia gule et crapule per omnia deditus dici poterit. Litteratus tamen affatim set nec bene
morigeratus nec bonis disciplinis informatus in papam et curiam Romanam carmina famosa pluries et plurima tam
metrica quam ridmica non minus impudenter quam imprudenter euomit.”
244
Walter Map (1140 – c. 1208–1210), autor e eclesiástico médio-latino, arcediago em Oxford (1196).
Provável autor do poema satírico De nugis curialium.
245
Hugh Primas Aurelianensis (c. 1090 – c. 1160), poeta médio-latino que participou ativamente da vida
cultural parisiense.
218

traços associados à boemia romântica. No prefácio da primeira coletânea que trazia poemas

goliárdicos vertidos para a língua inglesa – não à toa intitulado “Vinho, mulheres e música”

(“Wine, Women, and Song”), John Addington Symonds (1884) apresentava os autores dos

poemas como “homens, em sua maior parte homens jovens”, que viajavam de uma universidade

para a outra em busca de conhecimento; “longe de suas casas, sem responsabilidades, com a

bolsa leve o e o coração leve, descuidados e em busca do prazer”, esses “estudantes vagabundos”

frequentavam as tavernas ao menos tanto quanto as salas de leitura, sendo assim “mais capazes

de pronunciar juízos sobre vinho ou mulheres do que sobre um problema relacionado à lógica ou

à divindade” 246 . Essa abordagem “sócio-literária” acabou transformando o adjetivo “goliárdico”

numa espécie de rótulo aplicável a qualquer coleção de poemas médio-latinos que apresentasse

temas profanos, e nos quais formalmente o ritmo predominasse sobre a quantidade; desse modo,

foram qualificados como “goliárdicos” códices poéticos como os Carmina Cantabrigiensia, uma

antologia médio-latina do século XI 247 , e mesmo os Carmina Burana, em cujo manuscrito não há

qualquer ocorrência dos termos “golias” ou “goliardus” (RIGG, 1977, p. 68).

O corpus goliárdico foi, assim, constituído a partir de um duplo processo: de um lado, por

meio de atribuições autorais a partir de uma frágil base biográfica que foram, aos poucos,

constituindo os corpora literários de autores médio-latinos que eventualmente teriam vestido a

246
“(...) they were men, and for the most part young men, travelling from university to university in search of
knowledge. Far from their homes, without responsabilities, light of purse and light of heart, careless and pleasure-
seeking, they ran a free, disreputable course, frequenting taverns at least as much as lecture-rooms, more capable of
pronouncing judgment upon wine or women than upon a problem of divinity or logic.”
247
Cf. o subtítulo da edição de Karl Breul: “a Goliard’s Song Book of the XIth Century”. É interessante notar
que Breul postula inclusive a forma como teria procedido o “clericus vagabundus” na compilação do códice,
afirmando: “Que riqueza de temas e que variedade de fomas métricas e musicais estão contidas neste singular livro
de canções de um pioneiro goliardo que se situa tão cheio de promessas no princípio da poesia lírica medieval
germânica!” (“What a wealth of themes and what a variety of metrical and musical forms are contained in this
unique Song book of an early goliard which stands so full of promise at the threshold of Medieval German lyric
poetry!”) (BREUL, 1915, p. 41).
219

máscara de Golias; de outro lado, através da composição de códices que reuniam textos que

tinham entre si vagas semelhanças formais ou temáticas. Em busca de um critério mais sólido,

Rigg dedicou-se a estabelecer uma seleção restrita, baseando-se para isso apenas em textos que

acompanhavam as antologias medievais que constituíam o corpus atribuído a Golias; esse estudo

levou-o a aventar um conjunto de observações (1977, p. 109): nenhum dos poemas foi composto

antes do fim do século XII, o que exclui definitivamente os Carmina Cantabrigiensia; constituem

o corpus não só textos satíricos, mas também amorosos; conquanto o vinho seja um tema comum

nas obras, nenhuma delas pode ser qualificada como uma canção tabernária; nem o conteúdo,

nem a forma sugerem qualquer possibilidade de relação com menestréis; e alguns poemas

apresentam temática religiosa – podendo-se assim concluir que “não há um denominador comum

para todos os poemas, exceto argúcia, destreza linguística e fluência em rima e ritmo (nenhum

dos quais é uma característica circunscrita à poesia goliárdica)” 248 .

Pelo que foi exposto, é possível vislumbrar o quanto a indefinição de nomes e expressões

como “familia Goliae” e “goliardi” prejudicaram uma compreensão mais acurada acerca dos

autores de diversos códices médio-latinos, entre os quais se incluem os Carmina Burana. Uma

dificuldade adicional deriva-se da incerta fronteira existente entre esses diversos nomes: se

Golias é um nome próprio que a tradição manuscrita comumente faz alternar com (Hugo) Primas,

ocorrendo muitas vezes junto de títulos como “episcopus” ou “pontifex”, o mais genérico nome

“goliardus” ocorre comumente adjetivado (“Anglus goliardus”, “goliardus optimus”), além de

suportar diversas variações – “golart”, “goulart” – não raro relacionadas a trocadilhos: certa

248
“There is no common denominator for all the poems, except for wit, linguistic dextery, and a fluency in
rhyme and rythm (none of which are features confined to Goliardic poetry).”
220

paródia, de título Missa Gulonis, alude simultaneamente a “gula” e a um poeta de nome Gualo

(RIGG, 1977, p. 82).

Não obstante, tendo sido identificados diversos autores de obras constantes do códice

burano, pode-se constatar a inadequação da estereotipada ideia de que houvesse ali apenas

composições de irresponsáveis e boêmios estudantes. De fato, entre os autores aos quais são

atribuídas obras constantes dos Carmina Burana estão figuras como Felipe, o Chanceler (1170-

1236), que em 1217 tornou-se Chanceler de Notredame, posto que ocupou até a sua morte, autor

também de diversos hinos religiosos, sermões, escritos teológicos e hagiográficos (GARCIA-

VILLOSLADA, 1975, pp. 168ss); e Petrus Blesensis 249 , provável autor de não menos que sete dos

carmina amatoria buranos (WALSH, 1993, p. xvii-xviii).

7.2. Pastorelas e pastorais na lírica latina medieval

Já apresentamos anteriormente as evidências contrárias à hipótese de que as pastorelas

médio-latinas sejam anteriores às vernaculares 250 ; não nos aventuraremos aqui a postular novas

hipóteses acerca da precedência de umas sobre as outras, uma vez que a carência de

documentação necessariamente mantém todas as conclusões acerca desse assunto num campo

especulativo. Assim sendo, dedicaremos este item a apresentar um quadro geral das composições

médio-latinas qualificadas pela literatura específica como pastorelas, comentando brevemente

suas peculiaridades; fora de nossa análise permanecerão apenas as quatro obras desse conjunto

que correspondem ao modelo occitânico criado por Marcabru, objeto da terceira parte deste
249
Petrus Blesensis (c. 1135 – c. 1203): escolástico francês, teólogo e compositor de diversos poemas na
língua latina.
250
Cf. 1. 2. Origens latinas?
221

capítulo – que, justamente por conta de sua similaridade, merecerão uma tentativa de

contextualização histórica mais extensa, sem que no entanto pretendamos apresentar respostas

definitivas sobre a maneira como o modelo occitânico alcançou a lírica latina.

Na ampla antologia de pastorelas medievais coligida por Paden (1987, 2v.), encontramos

dezesseis composições que podem ser qualificadas como pastorelas ou similares 251 ; o corpus

assim selecionado não inclui apenas obras na língua latina, mas também textos em que o latim

mescla-se com línguas vernaculares (nomeadamente, o francês e o alemão). Todos esses textos

devem ter sido compostos entre o século X e o início do século XIII, e pouco menos da metade

deles pertence a autores conhecidos 252 . Nos próximos parágrafos, comentaremos os textos

constantes desse corpus que não correspondem ao modelo alegórico de origem occitânica, tendo

em mente eventuais pontos de aproximação com o referido modelo 253 .

A composição mais antiga do corpus é Iam, dulcis amica, venito (Paden, 2) possivelmente

datada do século X. Embora compareça nos Carmina Cantabrigiensia, a versão ali presente é em

sua maior parte ininteligível, uma vez que o censor tentou apagá-la do manuscrito (DRONKE,

1984, p. 218); não obstante, a obra sobreviveu em duas versões que apresentam interessantes

variações. O texto suporta duas leituras, uma sacra e uma profana, e é provável que, na mesma

época em que era entoada com finalidades religiosas, fizesse também parte do repertório amoroso

das cortes eclesiásticas e das escolas das catedrais (DRONKE, 1968, v.1, p. 271); essa ambiguidade

251
A referida antologia não elenca apenas obras que seguem estritamente o modelo estabelecido por Marcabru,
que Paden denomina “clássico”, mas também textos correlatos e sub-gêneros; cf. a introdução da seleta em PADEN,
1987, v. 1, p. ix.
252
Atribuídas a autores específicos são: Paden 3, 4, 12, 13, 15, 39, 50, 51; Paden 2, 14, 22, 45, 46, 47, 48, 49 e
68 foram, portanto, compostas por poetas anônimos.
253
Excluídas dessa análise serão, além das pastorelas que respeitam o modelo alegórico (Paden 46, 50 e 51,
que serão o objeto de um item específico neste capítulo), apenas Paden, 14 – que é a composição De somnio, texto já
comentado anteriormente nesta tese (Cf. 1. 2. Origens latinas?) – e Paden, 15 – que é o trecho do Tratado do amor
cortês de Andreas Capellanus que se refere à sedução das camponesas (2000, p. 206-208).
222

está certamente relacionada aos motivos bíblicos que subjazem à canção, claramente inspirada no

Cântico dos Cânticos salomônico. A obra é, efetivamente, um convite amoroso que contrapõe os

discursos amorosos de uma jovem e de seu amado. Na versão sacra, a parisiense, encerra-se a

canção com uma estrofe que, consoante Dronke (1984, p. 220), é a mais próxima do texto bíblico

em termos de linguagem: “Já derretem o gelo e a neve; / enverdecem a folha e a grama; / já canta

no alto o rouxinol; / o amor arde na caverna do coração” (“Iam nix glaciesque liquescit; / folium

et herba virescit; / philomena iam cantat in alto; / ardet amor cordis in antro”); essa estrofe não

consta da versão profana, que se encerra com um ávido convite do sedutor para que a jovem a ele

se entregue. Semelhanças com as pastorelas do modelo occitânico há apenas em dois pontos,

ainda assim de forma muito pálida: primeiro, na tentativa de sedução ensejada pelo homem – que

não oferece à jovem nenhum tipo de promessa ou presente; segundo, por uma breve referência

que a jovem faz a um ambiente silvestre (não campestre), o que no entanto possui claramente um

sentido metafórico: “Eu estava sozinha na floresta, / e eu amava lugares secretos” (“Ego fui sola

in silva / et dilexi loca secreta”).

A segunda obra, Rithmus jocularis (Paden 3), do poeta médio-latino Gautier – que

produziu entre os anos de 1080 e 1090 – não deve ocupar muito nossa atenção: trata-se apenas da

descrição poética de uma cena contemplada por um narrador que, enquanto cruza o Danúbio, vê

um grupo de garotas brincando, lideradas por uma bela mulher; a graça com que ela entoa as

canções é tamanha que o narrador sente-se consumido por seu próprio enlevo. A estrutura da obra

assemelha-se à de certas pastorais francesas254 , não havendo características que possibilitem uma

aproximação com o modelo poético que nos interessa.

254
Tratamos dessas obras em 3. Pastorelas e pastorais.
223

Composta por Wido de Ivrea 255 , Cum secus ora vadi (Paden, 4) é um longo poema que,

em trezentos versos, descreve o encontro de um narrador com uma ninfa no rio Pó, no norte da

Itália. Encantado com os graciosos movimentos da jovem, o narrador procura seduzi-la; para

isso, coloca à sua disposição um gargantuesco catálogo de presentes, como adequadamente

qualifica William Paden (1973, p. 471), que inclui todas as formas de comida, artes e ciências,

fazendas e castelos, joias e raros artefatos de origem mitológica – como as vestimentas com que

Páris presenteou Helena. Toda a composição se resume à brevíssima descrição do encontro e às

centenas de versos em que o narrador lista seu inacreditável catálogo, que incluem diversas

citações a autores clássicos como Horácio e Ovídio; desse modo, as semelhanças com a pastorela

occitânica limitam-se ao ponto de vista narrativo e à tentativa de sedução, sendo mais adequado

qualificar o poema como uma composição amorosa.

Já do século XII são as próximas obras que analisaremos. Começamos com uma obra

atribuída ao já referido Gualterus de Castellione, Declinante frigore (Paden, 12); é esse, vale

notar, o autor de uma pastorela alegórica, Sole regente lora (Paden, 13). Declinante frigore tem

como cenário um ambiente primaveril; ali o narrador encontra uma bela jovem chamada

Glycerium – nome extraído da obra do comediógrafo latino Terêncio 256 –, luxuosamente vestida.

O narrador declara à jovem o seu desejo, convidando-a ao ato amoroso: “Venha – disse – de

todas as mulheres / para mim a diletíssima, / meu coração e alma, / lírio cuja beleza / nutre o meu

íntimo” (“Ades – inquam – omnium / michi dilectissima, / cor meum et anima, / cuius forme

lilium / mea pascit intima”). A jovem acolhe o convite do narrador, revelando-se dominada por

255
Wido de Ivrea, autor médio-latino do século XI, autor de diversos hinos, muitos dos quais acerca de santos
irlandeses.
256
Glycerium é uma personagem de Andria, peça de Terêncio que, não obstante, foi baseada em obras de
Menandro (Terêncio, 2006, p. 5-6).
224

igual desejo: “Sempre desabrocho em ti, / penosamente domino [o meu] ardor” (“In te semper

oscito / vix ardorem domito”) ; assim, entre as folhas macias, os dois consumam o seu amor.

As outras obras que analisaremos datam todas do início do século XIII. Composta em

francês e latim, En may, quant dait e foil e fruit (Paden, 22) é uma canção macarrônica que

sobreviveu em duas versões que narram histórias com desfechos diferentes. Em ambos os casos,

inicia-se a composição com a descrição de um locus amoenus onde o narrador encontra uma

jovem, que logo corteja; a garota resiste, disposta a defender sua virgindade, sendo esse o ponto

em que as versões divergem. Uma delas encerra-se com um discurso da jovem, no qual ela

celebra sua própria pureza; na outra versão, o narrador afirma ter enganado a garota com falsas

promessas e acaba por possuí-la sobre a relva. É interessante notar que cada estrofe dessa

composição encerra-se com o verso que abre um hino latino (HUOT, 1997, p. 108), o que resulta

em soluções bastante curiosas; na versão mais conhecida, por exemplo, a jovem defende sua

virgindade citando o verso de um hino de Rabanus Maurus: “Guarda-me a virgindade, / vem,

espírito criador!” (“Mun pucelage me gardez, / veni, creator spiritus!”).

Consta da Parisiana poetria de Johannes de Garlandia a próxima composição que

analisaremos 257 (Paden, 39): trata-se, na verdade, de um poema bucólico da tradição vergiliana,

que o poeta médio-latino transcreve e analisa a partir de uma perspectiva alegórica. O poema é

uma imitação das éclogas vergilianas que nenhuma relação guarda com o modelo de pastorelas

que nos interessa; não deixa de ser interessante, contudo, mencionar de passagem a interpretação

que Johannes de Garlandia faz da obra, representante do exegético olhar que os medievos

lançavam sobre os textos literários. Consoante a explicação de Johannes, a bucólica encerra um

257
Já mencionamos brevemente esse texto no primeiro capítulo, em 1.2. Origens latinas?
225

conjunto de personagens com funções alegóricas: uma ninfa, que significa a carne; um jovem

sedutor, que representa o mundo ou o diabo; e um amado, que simboliza a razão. Essa leitura é

favorecida pelo dístico que encerra a composição, em que se lê: “Assim a Carne comete

adultério, enquanto a Razão é embaraçada; / é o Mundo adúltero, a beleza da Carne vã” (“Sic

Caro mechatur, Ratio dum subpeditatur; / est Mundus mechus, Carnis inane decus”).

Fazem parte dos Carmina Burana quatro obras que de algum modo tangenciam a temática

pastoral, embora por diversos motivos não correspondam ao modelo occitânico que nos interessa.

Essas obras, que a seguir comentaremos, são: Si linguis angelicis (Hilka-Schumann, 77; Paden,

45; Walsh, 17); Exiit diluculo (Hilka-Schumann, 90; Paden, 47; Walsh, 28); Florent omnes

arbores (Hilka-Schumann, 141 Paden, 48); e Tempus adest floridum, surgunt namque flores

(Hilka-Schumann, 142; Paden 49).

Si linguis angelicis (Hilka-Schumann, 77; Paden, 45; Walsh, 17) é uma longa composição

que descreve um encontro, num lugar descrito à maneira de um locus amoenus, entre um homem

e uma bela jovem. O discurso poético é bastante elaborado e apresenta diversas peculiaridades.

Há referências à ética do amor cortês, já que o narrador afirma que manterá em segredo o nome

daquela a quem é dedicada a obra: “Diga, língua, então as causas e o efeito! / Mas guarda oculto

o nome da dama, / para que ele não seja divulgado entre o povo” (“Pange, lingua, igitur causas et

causatum! / nomen tamen domine serva palliatum, / ut non sit in populo illud divulgatum”). O

narrador encontra a seguir uma flor que, no entanto, é impedida de amar por uma velha; não

obstante, quando se prepara para deixar aquele local, ele encontra a sua amada, descrita à maneira

daquela flor. Segue-se um longo diálogo em que se mesclam referências clássicas e imagens

bíblicas, durante o qual o narrador logra convencer a garota a aliviar os seus sofrimentos; a obra
226

se encerra com o enlace amoroso do narrador e da jovem, e a última estrofe apresenta uma

espécie de consideração moral sobre todo o episódio: “Em verdade, da amargura os deleites são

gerados; / não sem esforços os maiores ganhos são alcançados. / Os que procuram o doce mel

muitas vezes recebem picadas; / logo, esperem pelo melhor os que mais sofrem!” (“Ex amaris

equidem grata generantur; / non sine laboribus maxima parantur. / Dulce mel qui appetunt sepe

stimulantur; / sperent ergo melius qui plus amarantur!”).

Como se poderia esperar, Si linguis angelicis vem suscitando uma pluralidade de

interpretações. Ao passo que alguns estudiosos consideram-no uma obra séria, outros o vêem

como um texto irônico; Patrick Walsh (1992, p. 68-69) alinha-se aos que o lêem como um texto

intermediário entre esses dois tons – se a entusiástica associação do narrador com a experiência

cortês sugere seriedade, esse tema é abordado de forma espirituosa, sem indiciar qualquer

envolvimento amoroso profundo. No que tange mais especificamente aos nossos interesses, vale

observar que, se a composição transcorre num ambiente pastoral e se há um diálogo entre um

narrador e uma solitária jovem, o modo como essa é cortejada não envolve uma tentativa de

sedução semelhante à que encontramos nas pastorelas alegóricas, com referências a promessas ou

presentes; de fato, aqui é a garota quem oferece amparo ao narrador.

Exiit diluculo (Hilka-Schumann, 90; Paden, 47; Walsh, 28) é uma curta e graciosa

pastorela que, embora não corresponda ao modelo alegórico, merece nossa atenção por ser uma

das obras mais comentadas do códice burano pelos estudiosos da poesia pastoral. A questão mais

polêmica acerca dessa composição diz respeito à sua própria estrutura. No códice burano, o texto

aparece escrito em prosa, como todos os outros: possui doze versos, divididos em três quartetos –

divisão que pode ser percebida pelo fato de o quinto e o nono versos começarem com letras em
227

vermelho. Entretanto, apenas as duas estrofes iniciais sobreviveram também num manuscrito do

século XIV, que contém inclusive notação musical; por isso, a versão editada por Schumann

excluiu os quatro últimos versos, por ele considerados espúrios – sua alegação é que as duas

estrofes iniciais formavam o princípio de uma pastorela mais longa, e que a estrofe suplementar

no códice burano foi uma adição do escriba, que desejava conferir alguma espécie de desfecho ao

texto 258 . Opondo-se a essa argumentação, alega Peter Dronke que o texto, com as três estrofes,

constitui uma obra acabada.

De acordo com Dronke (1984, p. 253), a canção é uma espécie de fantasia idílica que se

desenvolve sem rupturas ao longo das três estrofes. Na primeira e na segunda estrofes,

encontramos uma jovem garota que, na aurora, sai para o campo com seus apetrechos e seu

minúsculo rebanho, descrito de uma forma quase cômica: “Na aurora, foi saindo / uma rústica

garota / com o rebanho, com o cajado / [e] com lã nova. // Estão no minúsculo rebanho / o

carneiro e a burrinha, / o bezerro com a bezerra, / o bode e a cabrinha.” (“Exiit diluculo / rustica

puella / cum grege, cum baculo / cum lana novella. // Sunt in grege parvulo / ovis et asella, /

vitula cum vitulo, / caper et capella”). O contraste estabelecido é, portanto, entre a solidão da

jovem e os casais que constituem o seu rebanho: o bezerro tem sua bezerra, o bode tem sua

cabrinha; até mesmo o carneiro conseguiu uma companhia, embora um tanto quanto inusitada: a

burrinha.

Assim é que, na terceira estrofe, a jovem encontra sua companhia: “Viu, na grama, /

sentar-se um escolástico: / “Que fazes, senhor? / Vem brincar comigo” (“Conspexit in cespite /

scolarem sedere: / “quid tu facis, domine? / veni mecum ludere”). Como nota Dronke, esse

258
A argumentação de Schumann, que relega os quatro últimos versos da pastorela às notas ao texto, está em
Hilka; Schumman, 1941, p. 86.
228

convite amoroso é um desfecho perfeito para a composição, flagrando o momento exato em que a

jovem sentiu e demonstrou sua necessidade de uma companhia; de resto, as reservas apresentadas

por Schumann no tocante às inadequações rímicas (cespite/domine; sedēre/ludĕre) são

excessivamente rigorosas: além de possíveis intenções artísticas do autor poderem explicar essa

opção, é essa a letra de uma canção – e, como observa Dronke (1984, p. 253-254), desde o início

da lírica médio-latina até o fim do século XIII são muitas as violações de acentuação e

quantidade, se tomados como padrão os parâmetros clássicos.

Como talvez já tenha ficado claro, são vários os motivos que nos impedem de qualificar

essa canção como uma pastorela alegórica. O texto é meramente descritivo, não havendo

propriamente um diálogo – apenas o convite da pastora, na terceira estrofe; não encontramos um

ponto de vista masculino, nem há qualquer tentativa de sedução por parte da jovem. Finalmente,

ainda que deixássemos de lado esses critérios, não há na composição nada que sugira uma

dimensão alegórica: trata-se apenas da graciosa descrição de uma cena pastoral.

As duas últimas composições constantes dos Carmina Burana são bastante similares no

que tange ao tema. Tanto Florent omnes arbores (Hilka-Schumann, 141; Paden, 48) quanto

Tempus adest floridum, surgunt namque flores (Hilka-Schumann, 142; Paden, 49), compostas

numa mescla de latim e alemão, iniciam-se com descrições de cenas primaveris que ocupam as

duas primeiras estrofes de cada uma das obras: a chegada das flores e da feliz estação, após o fim

do inverno, são algumas das imagens que nelas encontramos. A partir da terceira estrofe, ambas

as composições descrevem diálogos amorosos entre o narrador e uma jovem; nenhuma tentativa

de sedução é necessária: tomados pela excitação primaveril, eles limitam-se a celebrar a


229

primavera e a manifestar suas intenções amorosas. Não há, portanto, motivos para que nos

detenhamos na análise dessas composições.

Resta tratar de um último texto: a anônima L’ autrier matin el moys de may (Paden, 68),

composta em francês e latim por volta de 1250. Essa longa composição – cento e cinquenta

versos – principia-se com um intróito em que lemos referências a são Luís, descrito como alguém

em quem não havia qualquer arrogância ou orgulho (“De saint Loÿs dire vous vueil, / duquel

n’eut boben ne orgueil”); e que, quando desejava cantar, em vez de entoar cançonetas e bobagens

como os contemporâneos, cantava apenas sobre Deus ou sua mãe (“Quant saint Loïs chanter

vouloit, / de Dieu ou de sa mere chantoit”). Certa vez, o santo encontrou um homem que cantava

muito bem sobre as coisas do mundo, e ordenou-lhe que cantasse sobre Maria. O restante da

composição relata precisamente essa canção, assemelhando-se a uma estranha mescla de um

texto religioso com a descrição de um encontro amoroso em um cenário campestre.

Em certa manhã de maio, o narrador vai para um cenário campestre, e lá se encontra com

a Virgem; ela, no entanto, é descrita com uma mescla de sentenças que enaltecem sua beleza e

trechos de textos religiosos. O narrador aproxima-se dela; todavia, a esperada tentativa de

sedução é substituída por súplicas em que ele roga por sua salvação, e toda a imagética

comumente associada aos textos eróticos – o perfume das flores, por exemplo – converte-se aqui

em elementos que ajudam a celebrar a santa. Finalmente, encerra-se a obra com a ascensão da

Virgem – desfecho para uma composição que pouco se assemelha às pastorelas alegóricas, sendo

mais propriamente qualificável como uma composição religiosa.

7.3. A pastorela alegórica em Gualterus de Castellione e nos Carmina Burana


230

Tendo analisado as composições médio-latinas que, embora qualificadas pela literatura

específica como pastorelas, não correspondem ao modelo criado por Marcabru, é chegado

finalmente o momento de analisarmos as quatro obras em que encontramos todo o conjunto de

características que demarcam essa filiação – ou seja: a ambiência pastoral; a presença de um

homem e uma mulher; o contexto de encontro acidental e tentativa subseqüente de sedução; a

mescla de narrativa e diálogo; e o ponto de vista masculino 259 . O questionamento que

inevitavelmente assoma – e do qual, apesar de todas as dificuldades, não nos podemos esquivar

neste trabalho – é o seguinte: como esse modelo de pastorela chegou até a lírica médio-latina?

Conquanto apresentar uma resposta definitiva para essa indagação esteja além das nossas

possibilidades, não podemos nos furtar a tecer algumas considerações acerca dessa questão.

Na Europa medieval, diversos eram os espaços que possibilitavam uma convivência entre

os autores de textos na língua latina e aqueles que compunham obras vernáculas – observação

que se refere essencialmente ao que poderíamos qualificar como cultura erudita; é fácil atestar

essa convivência na cultura popular por meio de canções bilíngües similares às que há pouco

analisamos: comumente, canções populares eram mescladas com trechos de hinos religiosos em

latim e canções na língua latina recebiam refrões em vernáculo, certamente para possibilitar a

participação de uma audiência popular – nos Carmina Burana, encontramos diversas canções

dessa espécie, como as mencionadas Florent omnes arbores (Hilka-Schumann, 141; Paden, 48) e

Tempus adest floridum, surgunt namque flores (Hilka-Schumann, 142; Paden, 48), compostas

numa mescla de latim e alemão.

259
Aqui, limitamo-nos a resgatar as características já apresentadas no segundo capítulo deste trabalho (cf. 2.1.
Acerca da alegoria).
231

No caso dos autores eruditos, mais freqüente é a influência de temas e motivos que

ensejam a criação de obras literárias cujas características contrastam com os modelos

tradicionais. Exemplos de obras em que verificamos processos desse tipo são as composições do

já mencionado Petrus Blesensis. Como alega Winthrop Wetherbee (2000, p. 103), o lugar central

ocupado por Blesensis na corte de Henrique II, rei da Inglaterra, provavelmente forneceu-lhe a

oportunidade de estabelecer contato com autores de obras vernaculares; a presença de traços da

lírica vernácula do século XII em suas composições deve ter sido suscitada por essa convivência.

Consoante Wetherbee, conquanto não seja possível estabelecer conexões precisas entre a

produção de Petrus Blesensis e modelos vernaculares específicos, há naquela aspectos líricos e

efeitos eróticos que, ainda que influenciados pelos experimentos ovidianos de poetas como

Baudri de Bourgueil, não têm precedente na tradição médio-latina; mais plausível é concebê-los

como uma resposta à chanson vernacular – uma apropriação de recursos da tradição latina para a

criação de um novo tipo de poesia, emulando desdobramentos da literatura vernácula.

Esse processo histórico por meio do qual a poesia médio-latina influenciou a literatura

vernácula e, simultaneamente, recebeu dela influências foi sintetizado por Peter Dronke (1968, p.

141), para quem as notáveis produções da lírica amorosa médio-latina do século XII inscrevem-

se numa tradição que pode ser rastreada até o princípio do século X. Como observa o teórico, o

desenvolvimento musical da lírica secular médio-latina estava relacionado com a música que

nasceu em torno da liturgia; a partir do século XI, essa tradição paralitúrgica adaptou-se

progressivamente às canções amorosas e a outros tipos de canções seculares – e, assim como teve

uma profunda influência sobre a música daquelas, foi por elas enriquecida.
232

Devemos, portanto, considerar esse processo dialético de desenvolvimento para que

possamos compreender devidamente as composições que analisaremos: se encontramos nestas

quatro obras traços suficientes para que uma filiação com o modelo poético elaborado por

Marcabru possa ser postulada, cabe ver nisso apenas uma instância particular de um processo que

ocorreu de forma muito mais ampla no âmbito literário medieval. Isso posto, passemos à leitura

do corpus que nos interessa: as pastorelas alegóricas médio-latinas.


233

7.3.1. Sole regente lora, de Gualterus de Castellione: uma obra pioneira?

A única pastorela do nosso corpus em língua latina cujo autor é conhecido, Sole regente

lora, é atribuída a Gualterus de Castellione; sendo esse um dos mais importantes nomes da

literatura médio-latina, é conveniente que, antes de iniciarmos o estudo de sua obra,

apresentaremos aqui algumas anotações de cunho biográfico 260 .

Gualterus nasceu em Lille, provavelmente em 1135, e faleceu em 1201, em Amiens; sua

produção datada de entre 1166 e 1184. Dotado de uma formação humanística, conhecedor dos

autores clássicos, não se furtou a absorver em sua obra as novas tendências poéticas; desse modo,

se compôs um poema como Alexandreis, sive Gesta Alexandri Magni – um enorme épico sobre

Alexandre Magno, no estilo da Eneida, composto por mais de cinco mil hexâmetros divididos em

dez cantos, que sobreviveu em mais de duzentos manuscritos datados até do século XV – , de sua

obra constam também poemas que desenvolvem temas primaveris e outros motivos

característicos da literatura vernacular.

Gualterus de Castellione não se dedicou apenas à criação literária. Quando jovem, estudou

em Paris e Reims; dirigiu a escola de Laon, posteriormente tornando-se cônego, outra vez em

Reims. Na Normandia, pode ter atuado como chanceler na corte de Henrique II 261 – corte que,

como anteriormente mencionamos, ofereceu a poetas como Petrus Blesensis (e, naturalmente,

também Gualterus) a oportunidade de estabelecer contato com autores de obras vernáculas. Após

uma passagem pela Inglaterra – onde tornou-se amigo de João de Salisbury, e de onde partiu

260
Os dados a seguir apresentados têm como base os textos de García-Villoslada (1975, p. 89-107) e
Townsend (2006).
261
Essa possibilidade baseia-se na associação de Gualterus com um certo Walter de Lille que aparece, nas
cartas de João de Salisbury, como enviado de Henrique II. Cf. Townsend, p. 14-15.
234

depois do assassinato de Thomas Becket 262 –, retornou para a França, estabelecendo-se como

docente em Châtillon 263 . Viajaria ainda para a Itália, experiência que possivelmente ensejou seus

diversos poemas contra os vícios da cúria. Gualterus pode ter morrido enfermo de hanseníase,

possivelmente contraída de uma prostituta, ou em decorrência de uma auto-flagelação.

Tendo apresentado essa síntese biográfica, passemos à leitura e à análise da pastorela de

Gualterus de Castellione, Sole regente lora (Paden, 13). Num cenário descrito de uma forma que

evoca um locus amoenus, o cavaleiro-narrador depara-se com uma jovem e graciosa garota que

busca proteger-se do ardente sol sob a copa de uma grande árvore. Tendo-a percebido e

contemplado minuciosamente cada um dos detalhes de sua aparência – o cabelo, a face, o colo, os

lábios –, o narrador não tarda a sentir-se atraído pela formosa jovem; assim, dela se aproxima,

tomando a iniciativa de encetar um diálogo.

Os desejos do cavaleiro manifestam-se explicitamente em suas palavras: o que ele deseja

é servir como companheiro para a jovem, acolhendo-a no “enlace de Vênus” (“Veneris...

copula”). A menina, entretanto, reage prontamente à investida do cavaleiro: é ainda muito jovem,

não alcançou a idade núbil e, sendo assim, não tem interesse nenhum na proposta que lhe faz o

sedutor. Além disso, já é muito tarde: cabe-lhe recolher sua ovelhinha – momento em que, diga-

se de passagem, a jovem é explicitamente identificada com a figura da pastora – e voltar para

casa, onde a espera uma cruel mãe que, ademais, não hesitaria em castigar-lhe com golpes de

bastão, caso a flagrasse fazendo algo errado. Voltaremos a encontrar esse motivo – o medo de um

262
Thomas Becket (c.1118 – 29 de dezembro de 1170) foi arcebispo de Canterbury desde 1162 até a sua
violenta morte, assassinado por asseclas do monarca inglês Henrique II, com quem entrara em conflito por questões
políticas em torno dos direitos da Igreja. É venerado como santo e mártir pelas Igrejas católica e anglicana.
263
De onde a alcunha Walter de Châtillon, pela qual é também conhecido.
235

castigo dos pais – no corpus médio-latino; no momento adequado, comentaremos mais

extensamente esse tópico 264 .

Recusando-se a permitir que a pastora escape, o cavaleiro insiste em sua argumentação: se

o sol indica que já é tarde, ela que o ignore; não é isso motivo para que a pastora despreze a

oportunidade que ele lhe oferece – a breve demora será para ela, afinal, causa de grande prazer. A

jovem mantém a recusa, deprezando os presentes que lhe oferece o cavaleiro e revelando ainda

um outro motivo: é ainda virgem, e não está disposta a romper as “barreiras da castidade”

(“castitatis repagula”).

O desfecho da pastorela, na última estrofe, encerra uma provocativa ambigüidade: o

cavaleiro sugere que a jovem, enquanto reunia as ovelhas – preparando-se, portanto, para partir –,

agia de forma dissimulada; isso evidentemente pode não representar a verdade, mas sim a

tendenciosa percepção daquele que assim desejava que a jovem se portasse. Aproveitando-se

daquele momento, o cavaleiro empurra a jovem e, sob um pequeno ramo, finalmente a possui.

Como já uma primeira leitura permite perceber, a pastorela aproxima-se bastante dos

modelos em langue d’oc; a única diferença perceptível – além, é claro, do uso da língua latina,

em vez do occitânico – são algumas referências que apontam para a tradição clássica. Na segunda

estrofe, além da referência a Vênus, é possível perceber ressonâncias ovidianas no tocante à

maneira como o narrador descreve o corpo de sua amada; retornaremos a essa questão mais à

frente. A quarta estrofe menciona Diana, além de referir-se novamente a Vênus. Na quinta

estrofe, o poeta cita Titã, ou seja, o sol no léxico vergiliano (cf. SARAIVA, 2006, p. 1206).

Finalmente, o uso do verbo ‘pressi’ na última estrofe coincide com o uso ovidiano desse mesmo

264
Cf. 7. 4. As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido.
236

verbo, numa mesma situação de clímax sexual, nos Amores (I, 5) – havendo, nesse mesmo

momento, uma outra inovação em relação às pastorelas occitânicas: a cena da violação, aqui

fortemente sugerida, embora não tão explícita quanto em outra obra médio-latina que logo

analisaremos 265 . É provável que maiores detalhes sobre essa cena estivessem no antepenúltimo e

no penúltimo versos da composição, que não constam do manuscrito, certamente por conta de

uma censura do copista.

Notemos também que essa é uma das pastorelas constantes do corpus médio-latino em

que estão ausentes as referências religiosas 266 . Aqui não encontramos passagens ou termos

característicos do léxico bíblico, ao contrário do que ocorre em outras composições; a mensagem

moralizante encontra-se mais na oposição perceptível entre a pastora e o narrador, que repete o

embate entre a virtude e o vício característica do modelo alegórico. Perante os presentes

oferecidos pelo sedutor, a garota revela a determinação de manter-se fiel à sua castidade; é

vencida somente quando, na última estrofe, domina-a o narrador – e a breve referência a um

suposto fingimento da pastora, que estaria supostamente disposta ao encontro amoroso, permite a

leitura de que o que ocorre é, de fato, uma violação.

Essa pastorela é possivelmente anterior às outras que analisaremos – deve ter sido

produzida entre 1166 e 1184, se utilizarmos como parâmetro a época de que data a maior parte

das obras de Gualterus de Castellione; como as outras que constam dos Carmina Burana,

compilado em 1230, há a possibilidade de que elas tenham sido produzidas num período um

pouco posterior –, e talvez seja possível encontrar aí a razão da diferença lexical anteriormente

mencionada. Por outro lado, cabe observar que a própria formação de Castellione, tão imbuída da

265
Cf. 7.3.4. Vere dulci mediante: o elogio da caritas.
266
A outra é analisada no item seguinte: 7.3.2. Estivali sub fervore: o desejo e a renúncia.
237

tradição clássica, já fornece razão suficiente para que as referências que na obra encontramos

tenham nela sua origem, em vez de na tradição bíblica.

De todo modo, Sole regente lora é um notável exemplar da renovação literária no âmbito

médio-latino a partir da influência de temas vernaculares. A pioneira pastorela de Marcabru deve

ser datada entre 1130 e 1149; se Gualterus, que nasce em 1135, de fato esteve na Inglaterra, essa

permanência só é atestada em meados da década de 1160 267 , o que possibilita que tenha tido

contatos com as produções occitânicas ainda no período em que vivia na França; e não cabe

descatar totalmente a hipótese de que Sole regente lora seja efetivamente a pioneira pastorela

alegórica médio-latina.

7.3.2. Estivali sub fervore: o desejo e a renúncia

Há notáveis semelhanças – que já podemos antecipar – entre Estivali sub fervore (Hilka-

Schumann, 79; Paden, 46; Walsh, 19) e a última das pastorelas que analisaremos neste capítulo,

Vere dulci mediante (Hilka-Schumann, 158; Paden, 51; Walsh, 51): ambas possuem seis estrofes,

cada qual possuindo seis versos; em cada estrofe, os cinco primeiros versos possuem a mesma

rima, e o verso final rima com os versos finais de todas as outras cinco estrofes (ou seja, ambos

os carmina seguem o mesmo esquema: AAAAAB / CCCCCB / DDDDDB / EEEEEB / FFFFFB

/ GGGGGB). Primando pelo virtuosismo, esse esquema permite que se postule alguma relação

entre as duas obras; de resto, além dessa notável similaridade, a especificidade temática e a

267
Cf. García-Villoslada, 1975, p. 91.
238

sensível consistência no desenvolvimento das estórias nelas narradas permite-nos inferir que

tenham sido compostas por um mesmo – anônimo – autor.

Comecemos por uma leitura de Estivali sub fervore. Num ensolarado cenário que remete

indistintamente ao verão e à primavera, o narrador tenta proteger-se do calor abrasante sob uma

árvore; assim, encontra um lugar que lhe serve como abrigo, em meio a um prado descrito como

um locus amoenus – não por acaso o poeta menciona a relva, a fonte, a sombra e a brisa que

constituem um agradável cenário, em contraposição ao tórrido calor mencionado na estrofe

inicial; o aspecto paradisíaco daquele ambiente é ainda enfatizado pelos elementos mencionados

na terceira estrofe – os cantos do rouxinol e das náiades, que comentaremos mais adiante. Não

bastasse ter-se instalado em um cenário tão agradável, o narrador ainda divisa uma “forma

singular” : é uma “pastorinha sem igual” (“forma singulari... pastorellam sine pari”) que, não

longe dali, colhe amoras.

Imediatamente dominado pelo desejo, o narrador aproxima-se da pastora, com um

denunciador discurso que mais à frente comentaremos – não é decerto por acaso que tenta (em

vão) mostrar-se inofensivo para a jovem; ela, contudo, rejeita-o com as palavras que encerram a

pastorela: mencionando a crueldade paterna e declarando sua condição casta, roga a pastora que

seja poupada pelo sedutor. O desfecho da obra permanece, portanto, em aberto.

Notemos 268 que metade da obra – as três estrofes iniciais – é dedicada à descrição de um

aprazível cenário em que uma árvore, ao lado de um regato, oferece sua acolhedora sombra a um

narrador castigado pelo calor do verão. Nesta pastorela, assim como na anterior, deparamo-nos

com diversas referências à tradição clássica: tão acolhedor é o locus amoenus que nem mesmo

268
Na análise que a seguir apresentamos, resgatamos algumas observações de Samyn, 2009.
239

Platão teria sido capaz de descrever um lugar mais agradável; na terceira estrofe, o poema

menciona o canto das náiades – ninfas que, consoante a mitologia grega, habitavam nas fontes,

lagos, riachos e nascentes; e, na quinta estrofe, encontramos referências às deusas Vênus e Flora.

Todo o enredo da pastorela é desenvolvido nas três estrofes finais. É naquele aprazível

ambiente que o narrador depara-se com a a jovem que de imediato encanta seu olhar. A tensão

intrínseca ao encontro é indiciada pela atitude do narrador, que se apressa em acalmar a garota,

antecipando uma reação negativa; contudo, é nessa mesma oportunidade que ele manifesta para

ela o seu desejo, prometendo entregar-se, bem como todas as suas posses, à jovem.

Encerra-se a obra com a rejeição amorosa. A garota apresenta as razões de sua resistência:

além de sugerir que é virgem – “Não cresci habituada às brincadeiras masculinas” – , teme as

punições paternas, especialmente a de sua velha e irascível mãe 269 ; assim, suplica que o narrador

não lhe faça mal. Embora Schumann (cf. HILKA; SCHUMMAN, 1941, p. 61) questione se a

composição de fato se encerra assim, sugerindo que estrofes podem haver sido perdidas, são

diversos os contra-argumentos que podemos apresentar: o desfecho em aberto não é algo

infreqüente nas pastorelas; e, nesse caso em particular, trata-se de um recurso com notável valor

estético, sobretudo se consideramos a intenção moralizante do poema.

De fato, a cena descrita na estrofe final instala uma forte contraposição com o restante do

texto: o que nela encontramos é o discurso da pastora, construído sobre a defesa da virtude, em

contraste com o discurso do narrador, que dominara toda a composição – e que consistira,

essencialmente, em uma afirmação do desejo. A pastora, nesses versos finais, aparece como uma

figura frágil, quase infantil, contraposta à malícia masculina – o que fica explícito, no nível

269
Novamente encontramos o motivo do medo de um castigo dos pais; cf. 7. 4. As pastorelas médio-latinas
como um gênero híbrido.
240

textual, pela expressão utilizada pela garota: ao falar em brincadeiras ou jogos masculinos – ludos

viri – ela deixa claro que, caso se entregasse, seria não mais que um joguete nas mãos do

narrador. O poeta logra, assim, obter a compaixão do leitor-ouvinte relativamente à condição da

garota. Peter Dronke (1984, p. 265) observa agudamente que, se o poema recebesse mais estrofes,

consoante a expectativa de Schumann, esse clímax, em que há uma focalização nas emoções da

pastora, poderia ser comprometido – o que, de resto, também malograria a oposição que nos

permite qualificar essa obra como uma pastorela alegórica: o embate entre a sensual malícia do

narrador e a casta inocência da jovem pastora.

7.3.3. Lucis orto sidere: a dupla alegoria

A terceira pastorela médio-latina que analisaremos, Lucis orto sidere (Hilka-Schumann,

157; Paden, 50; Walsh, 51), é certamente a mais intrigante de todo o corpus médio-latino,

sobretudo pela riqueza de referências simbólicas que aproveita da tradição bíblica – embora na

última pastorela desse conjunto, Vere dulci mediante (Hilka-Schumann 158; Paden, 51; Walsh,

51), também encontremos essa sorte de referenciais, ainda que de forma menos críptica.

Vejamos, então, o que faz dessa pastorela uma obra singular.

O início da composição é inteiramente descritivo: certa manhã, sai para o campo uma bela

virgem, de beleza primaveral (“facie vernali”), portando seu cajado e tangendo um rebanho de

ovelhas. Como nas outras pastorelas que comentamos, o tórrido calor do sol leva a pastora a

procurar um refúgio; assim, ela se abriga sob uma frondosa árvore – sendo esse o momento em

que é abordada pelo narrador.


241

Segue-se um diálogo entre a pastora e o narrador. Esse tenta seduzir a jovem; ela, todavia,

rechaça-o, afirmando ser virgem e jamais ter estado com homem algum. É quando surge um

elemento estranho na composição, que mais à frente analisaremos: um lobo, que irrompe na cena

e rapta uma das ovelhas. Surpreendida pelo inusitado acontecimento, a pastora grita, prometendo

entregar-se como esposa àquele que resgatar o animal perdido; o narrador parte em busca da

ovelha, imolando o lobo e devolvendo a ovelha à pastora.

A obra já começa com uma forte referência à tradição cristã: o verso inicial, “Lucis orto

sidere”, remete a exórdios de mais de duas dezenas de hinos religiosos 270 ; se consta também de

paródias tabernárias – “Já nascida a estrela da manhã / convém, de uma vez, beber! / Bebamos

agora, admiravelmente, / e hoje, bebamos outra vez!” (“Iam lucis orto sidere / statim oportet

bibere. / Bibamus nunc egregie / et rebibamus hodie.”) 271 –, parece evidente que, na pastorela, a

apropriação do verso não possui qualquer sentido paródico. As referências religiosas, afinal,

ressurgem ao longo de toda a composição (WALSH, 1993, p. 176): na segunda estrofe, a

expressão ‘virgo speciosa’ remete ao cântico salomônico – lemos na Vulgata (Ct 2:13): “surge

amica mea, speciosa mea” –, e sua perenidade pode ser constatada pelo fato de fazer-se presente,

ainda no século XIV, no Canticum Amoris de Richard Rolle, justamente num contexto em que a

beleza física da santa é celebrada 272 . Na terceira estrofe, a expressão ‘lingue solvo vinculum’

remete ao texto bíblico 273 ; além disso, o verso ‘salve, rege digna’ remete à expressão ‘Salve

Regina’, a mais famosa antífona nos monastérios europeus durante os séculos XII e XIII (BECK,

270
Cf. a nota de Dronke a partir do Repertorium Hymnologicum de Chevalier – em Dronke, 1984, p. 261, n.
27.
271
Paul Lehmann anota três paródias que principiam com esse verso; transcrevemos os quatro primeiros
versos de uma delas. Cf. Lehmann, 2009, p. 178-179.
272
“Zelo tibi langueo, virgo speciosa!”; é o primeiro verso da composição, em que doze versos são dedicados
a enaltecer os encantos físicos de Maria. Cf. Astell, 1995, p. 114.
273
Mc 7: 35: “et solutum est vinculum linguae eius”.
242

2006, p. 73). Na quarta estrofe, a passagem ‘virginem, que non novit hominem’, que a pastora

utiliza para referir-se a si mesma, ressoa o trecho neotestamentário em que Maria replica a

Gabriel, quando esse lhe comunica a gravidez 274 . Mais instigantes que essas referências textuais,

contudo, são os elementos simbólicos que logo analisaremos.

Em Lucis orto sidere, encontramos uma figura com a qual não nos deparamos em

nenhuma pastorela médio-latina ou occitânica, e que aparece em alguns exemplares franceses: o

lobo. Como analisamos anteriormente neste trabalho 275 , o lobo aparece em algumas pastorelas

francesas, atuando de forma similar àquela que encontramos em Lucis orto sidere: raptando uma

das ovelhas, enseja a súplica da pastora pelo seu resgate. Nas duas pastorelas francesas

documentadas no período temporal que nos interessa 276 , contudo, surge um outro elemento

estranho ao modelo alegórico, que não surge na pastorela que aqui analisamos: Robin, o noivo da

pastora – que, numa das pastorelas, faz-se presente na composição, embora não logre impedir que

a pastora entregue-se ao narrador; na outra pastorela, ele é apenas mencionado – tendo-se

recusado a entregar-se ao cavaleiro, a pastora grita pelo noivo.

O que é relevante observarmos é que há uma diferença fundamental entre o lobo que

aparece nas pastorelas francesas e o que aparece na pastorela médio-latina: se nas primeiras ele

constituía essencialmente um elemento da dinâmica narrativa, o lobo que encontramos em Lucis

orto sidere parece investido do sentido simbólico que atravessa toda a obra. Apresentamos

anteriormente uma série de referências que estabelecem uma associação entre a pastora e a

Virgem; não obstante, a partir de interpretações alegóricas da Bíblia é possível ler teologicamente

a figura de Maria como representação da Igreja (MARINONE, 2002, p. 887), o que se fortalece
274
Lc 1: 34: “dixit autem Maria ad angelum: quomodo fiet istud, quoniam virum non cognosco?”.
275
Cf., o cap. 3, item 3.1.3. A pastora e o lobo.
276
ReP, II, 12 e ReP II, 14. Tratamos de ambas no terceiro capítulo, no item mencionado na nota anterior.
243

principalmente com certas leituras medievais do Cântico dos Cânticos. Bernardo está entre os que

identificam Maria com a Igreja, e essa com a esposa do texto salomônico; essa identificação

ensejará, por outro lado, uma série de representações em torno do casamento místico de Maria

com Jesus Cristo. Podemos citar, como exemplo, um dos sermões de Guerricus Igniacensis,

discípulo de Bernardo, que transfere diversas falas da esposa do cântico para a boca de Maria,

fazendo-a declarar-se doente de amor e afirmar que não poderia ser consolada, senão com beijos

na boca de Jesus; ao fim, a cena do beijo de Maria em Jesus Cristo seria reproduzida em diversas

iluminuras do século XII (CAVALCANTI, 2005, p. 183-184).

Considerando essa possibilidade interpretativa, podemos encontrar em Lucis orto sidere

um jogo de identificações: se a pastora – identificada com Maria – representaria a Igreja, o

narrador seria uma representação alegórica de Jesus Cristo; e se levarmos em conta que a figura o

lobo aparece associada ao mal no contexto neotestamentário, assim como a ovelha simboliza os

servidores da fé cristã 277 , completamos assim o repertório simbólico da pastorela 278 .

Aceitar essa interpretação não implica qualquer conflito em relação à leitura alegórica

que vimos propondo; trata-se, efetivamente, de um outro nível exegético que pode ser aplicado à

composição. Conquanto a obra possa ser aproximada do modelo das pastorelas alegóricas, é

inegável que estamos diante de uma composição singular, que mescla as características dos textos

occitânicos com elementos das pastorelas francesas e da tradição bíblica. De um lado, é um texto

que descreve o encontro entre um narrador e uma pastora, a quem tenta seduzir, num cenário

campestre – e, nessa leitura, o que temos é uma pastorela alegórica com um desfecho em aberto:

a pastora rejeita o avanço do sedutor, proclamando-se virgem; não sabemos se, ao fim, ela

277
Cf. Mt 10:16; Lc 10:3; At 20:28-29.
278
Essa interpretação foi proposta por Patrick Walsh (1977).
244

cumpriu ou não a promessa de entregar-se àquele que resgatou a ovelha raptada. De outro lado, a

composição é uma obra duplamente alegórica: ao mesmo tempo em que versa sobre a oposição

entre a virtude e o vício – a intenção lasciva do narrador, se restam dúvidas, pode ser inferida a

partir da reação da pastora –, remete a um questionamento teológico em torno da redenção da

alma humana por meio da união da Igreja com Cristo.

7.3.4. Vere dulci mediante: violência e caritas

A última pastorela que analisaremos aqui é Vere dulci mediante (Hilka-Schumann 158;

Paden, 51; Walsh, 51) – que, como já mencionamos, segue o mesmo esquema de Estivali sub

fervore (Hilka-Schumann, 79; Paden, 46; Walsh, 19), apresentando também um desenvolvimento

bastante similar. Apesar disso, uma leitura da obra revela que o seu desfecho é bastante diferente.

Num ensolarado ambiente primaveril, uma jovem de belo rosto abriga-se do calor sob as

folhas, cantando e tocando sua flauta. Assim que a vê, o narrador imediatamente fica embevecido

com sua beleza, superior à de todas as ninfas; incapaz de conter-se, corre em direção à pastora –

que, ao percebê-lo, foge com seu rebanho, temerosa, procurando refúgio no ovil.

São baldados os esforços do narrador para aplacar a jovem; nem mesmo a oferta de um

presente – um colar – demove-a de sua rechaçadora atitude. O narrador investe; a jovem tenta

defender-se com seu pequeno báculo, mas não consegue afastá-lo, sendo logo violada. Ao fim da

composição, a pastora roga ao narrador que mantenha em segredo o que aconteceu, já que teme a

reação dos seus pais.


245

Resgatemos o momento em que se encontram o narrador e a pastora, tipicamente eivado

de tensão; de fato, a pastora imediatamente se apavora e corre para o ovil. O narrador, contudo,

segue-a; procurando granjear sua simpatia, declara-se inofensivo e oferece-lhe um presente, que é

pela jovem prontamente recusado – desde o primeiro momento, ela já percebeu as reais intenções

do sedutor, que não se furta a denunciar. O narrador, não obstante, está disposto a utilizar a

violência para obter aquilo que deseja; assim, lança-se sobre a jovem. Embora tente afastá-lo com

seu pequeno bastão de fiar, a jovem luta em vão: o homem consegue vencê-la sem dificuldades e,

finalmente, a possui à força. Ressalta, nesse momento, o contraste explicitado pelo autor da

pastorela: o que para a jovem é dor, para o narrador é fonte de prazer – sendo esse o trecho em

que a oposição moral entre os personagens é levada ao extremo. As palavras da pastora, que

ocupam os últimos dez versos, constituem uma das passagens de conteúdo mais fortemente

moralizante nas pastorelas alegóricas.

Note-se que, em primeiro lugar, a jovem lamenta não por si, mas por seu violador: “‘O

que fizeste’, disse, ‘perverso! / Ai, ai de ti! Mesmo assim, fique em paz!’” (“quid fecisti”, inquit,

“prave! ve ve <tibi>! tamen ave!”); por fim, pede ao narrador que a ninguém revele o que

aconteceu, para que ela não sofra em casa: se seu pai ou seu irmão souberem o que se passou,

certamente a punirão; sua terrível mãe certamente a surrará, com uma vara – sendo aqui

perceptível o motivo do castigo dos pais, já percebido na pastorela de Gualterus; comentaremos

esse assunto mais à frente 279 . De resto, o fulcro moralizante da pastorela é evidenciado pela

postura da garota diante de seu violador, após a violência ter sido cometida: ao invés de condená-

lo, ela lamenta sua atitude e deseja-lhe bem; age, enfim, conforme a caritas cristã, revelando-se

279
Cf. 7. 4. As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido.
246

capaz de amar aquele que a ofendeu 280 . Temos aqui, portanto, a derradeira vitória da virtude

sobre o vício.

7. 4. As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido

As quatro pastorelas médio-latinas que analisamos apresentam um conjunto de marcantes

características, se comparadas com o corpus occitânico, que se tornam evidentes já na superfície

textual: as explícitas citações, ora ao texto bíblico, ora à tradição clássica, não encontram paralelo

nos textos em langue d’oc. Isso pode ser lido como uma evidência de que são essas obras

híbridas, nascidas da absorção de temas da lírica vernácula num âmbito literário já bastante

desenvolvido; por outro lado, esse processo de assimilação contribuiu para a singularidade desse

corpus, na medida em que fatores endógenos e exógenos mesclaram-se para originar novos

tratamentos para determinados motivos.

Tomando-se como exemplo o tema da violação da pastora, pode-se questionar: caberia

aqui indagar sobre influências das pastorelas francesas, que se haveriam mesclado ao temário

occitânico? Embora não seja essa uma hipótese de todo implausível, cabe considerar que esses

temas podem ter-se originado no próprio âmbito médio-latino, havendo apenas uma absorção de

novos elementos derivados das produções vernaculares; o tema da violação, afinal, já se fazia

presente – e de diversas formas – na tradição clássica. À guisa de ilustração, citemos apenas o

caso particular de Ovídio, autor de determinante influência na literatura medieval – uma

influência que ressoaria também em algumas das pastorelas aqui analisadas, como mais à frente
280
Sentido que será enfatizado por Tomás de Aquino: a caritas, que tem como pressuposto a idéia de que o
amor a Deus é um amor que se dirige à fonte de todo o bem, deve estender-se também aos inimigos, já que todas as
pessoas são criadas com uma natureza boa. Cf. Mann, 1998b, p. 330.
247

demonstraremos. Em sua Ars Amatoria (I, 663-680), Ovídio já defendia a idéia de que o “não”

feminino devia, na verdade, ser compreendido como um “sim”: ao negar-se à cópula, o que a

mulher de fato esperava era ser tomada à força; a mulher violada fica intimamente grata ao seu

estuprador, ao passo que aquela que não é coagida cala sua tristeza. Nas Metamorfoses (VI, 455-

562), o episódio de Tereu e Filomela representa potencialmente a mais cruenta descrição de

violência sexual da literatura mítica produzida na tradição clássica, apresentando pormenorizados

relatos do ímpeto de Tereu, do terror de Filomela, das cenas de mutilação e violação.

O caso de Gualterus de Castellione é especialmente instigante pelo fato de, tanto em sua

pastorela alegórica – Sole regente lora – quanto em sua outra obra que não segue esse modelo –

Declinante frigore –, é possível supor influências ovidianas; e, em ambos os casos, essa

influência diz respeito precisamente a passagens de conteúdo sexual (PADEN, 1996, p. 311). Em

Declinante frigore, Gualterus utiliza uma imagem indubitavelmente extraída das Metamorfoses

para expressar a urgência do desejo feminino: a fórmula “vix moram patitur”, “Arduamente

suporta a demora”, é quase idêntica à descrição ovidiana do estado extático que toma Salmácis

perante a nudez de Hermafrodito (“vixque moram patitur”; Met. IV, 351); na mesma obra, o

clímax sexual é descrito com o verso: “Sed quis nescit cetera?”, “Mas quem não conhece o

resto?”, que ecoa os Amores do poeta latino (I, 5, 25). Em Sole regente lora, a referência a Ovídio

– aliás, ao mesmo poema – pode ser vislumbrada em dois momentos: primeiro, na forma como o

olhar masculino percebe o corpo feminino, descrito detalhe por detalhe: “pois já me havia

familiarizado com cada detalhe: / o cabelo / e a face, / o colo e os lábios” (“dum noto singula, /

cesariem / et faciem, / pectus et oscula”), semelhante ao olhar que, na obra ovidiana, percorre

parte por parte o corpo de Corinna (Am. I, 5, 19-23); por outro lado, podemos também entrever
248

alguma influência no uso do verbo “pressi”, que comparece tanto na pastorela quanto no poema

de Ovídio (Am. I, 5, 24) com o fim de sugerir o momento em que o corpo masculino enlaça o

feminino. Por outro lado, também no caso de Vere dulci mediante encontramos algumas

referências clássicas, inclusive ovidianas (WALSH, 1993, p. 179): no tocante ao léxico, a

secundária acepção de ‘cicuta’, significando ‘flauta’, ocorre na poesia pastoral vergiliana; e a

associação da figura da serpente com a fúria – no caso da pastorela, a fúria materna – remonta a

Ovídio, sendo uma figura constante das Metamorfoses (III, 31ss; IV, 481-485).

Desse modo, se as pastorelas já são um produto do influxo da lírica vernácula sobre

poetas inscritos na tradição poética (médio-)latina, é por outro lado possível que o tema da

violação sexual nas pastorelas médio-latinas tenha-se desenvolvido a partir da própria tradição

poética clássica, não sendo propriamente determinado por outras influências vernaculares. Não

obstante, o sentido moralizante conferido ao tema da violação nessas obras medievais

indubitavelmente deriva do momento histórico em que são produzidas, o que confere a essas

representações de violência sexual um sentido inteiramente diverso daquelas presentes na lírica

clássica – estando justamente aí a originalidade das produções medievas.

Um outro motivo que suscita o mesmo tipo de problematização é o medo de um castigo

dos pais, perceptível nas pastorelas de Gualterus de Castellione e nas anônimas Estivali sub

fervore e Vere dulci mediante. Embora seja esse um motivo comum nas pastorelas francesas –

seja o medo da da mãe (ReP, II, 3; II, 76), seja o medo do pai (ReP, II, 68) – , cabe observar que

disso não se deve inferir uma necessária influência de modelos vernaculares; o medo de uma

punição também ocorre na poesia clássica: na terceira écloga de Vergílio (2006, p. 60-61), por

exemplo, Menalcas não apenas foge após ter roubado um bode de Dâmon, como também se
249

recusa a apostar uma novilha com Damoetas porque tem em casa um pai e uma injusta madrasta

(“De grege non ausim quicquam deponere tecum: / est mihi namque domi pater, est iniusta

nouerca”: vv. 32-33).

Finalmente, a percepção que ora defendemos – de que a pastorela médio-latina é um

gênero híbrido, mesclando influências vernaculares e cristãs – propõe algumas modificações na

bibliografia produzida em torno das pastorelas médio-latinas. A hipótese defendida por William

Jones (1931, cap. 5), segundo a qual elas se haveriam desenvolvido paralelamente às obras

vernaculares, sendo portanto inteiramente independente dessas, deve ser revista, levando-se em

conta a noção que propomos de um modelo alegórico occitânico; ademais, certamente imbuído

daquela estereotipada concepção dos goliardos como “boêmios” voltados para o vinho, o amor e

o jogo, Jones não enxerga quaisquer referências religiosas nas pastorelas médio-latinas; ao

analisar uma obra como Vere dulci mediante, por exemplo, destaca o “brutal tratamento do tema

amoroso”, que lê como um “elemento goliárdico” 281 (JONES, 1931, p. 162).

Por outro lado, também cabe relativizar a observação de Patrick Walsh (1993, p. 176)

acerca de Lucis orto sidere, que o teórico considera uma tentativa de cristianização do gênero –

observação que, ressalte-se, não estende a nenhuma das outras pastorelas constantes do códice

burano. O que esperamos haver demonstrado é que essa tentativa de cristianização não só

antecede a produção dessa pastorela, como também é característica de um modelo poético

específico que remonta ao âmbito occitânico – mais especificamente, à invenção de Marcabru.

O conceito de pastorela alegórica é o que nos permite, afinal, compreender a similaridade

que há entre o corpus que encontramos na lírica occitânica e as quatro obras que analisamos no

281
“Here the goliardic element is recognizable in the brutal treatment of the love theme [...].”
250

âmbito médio-latino, textos que compartilham um conjunto de características que dificilmente

poderíamos considerar acidental. Conquanto não tenhamos aqui a pretensão de apresentar

respostas definitivas para essas querelas, esperamos ter levantado elementos que nos permitem

vislumbrar a possibilidade de que essas similaridades constituam, de fato, desdobramentos de um

processo mais amplo, o que permite que vejamos consistência onde antes só se percebiam

coincidências.
251

8. A PASTORA E A AMIGA: AS PASTORELAS PSEUDO-ALEGÓRICAS GALEGO-


PORTUGUESAS

Enfim chegamos ao momento derradeiro de nosso trabalho, em que nos debruçaremos

sobre um segundo desdobramento da pastorela alegórica occitânica; desta vez, contudo, nosso

objeto de análise serão obras compostas no âmbito do trovadorismo galego-português. Como

veremos ao longo das próximas páginas, essas composições ibéricas possuem um instigante

conjunto de especificidades, derivadas em larga medida do próprio processo de constituição da

lírica trovadoresca galego-portuguesa; não obstante, a mais significativa peculiaridade do corpus

em questão é aquela já anunciada no título deste capítulo: o fato de que as três obras que o

constituem que podem ser estritamente qualificadas como pastorelas, a partir do modelo

occitânico – Vi oj’ eu cantar d’ amor, de D. Dinis (B 547, V 150: Brea 25, 135); Pelo souto de

Crecente (B 967, V 554: Brea 63, 58), de João Airas de Santiago; e Quand’ eu hun dia fuy en

Compostela (B 1098, V 689: Brea 116, 29), de Pedro Amigo de Sevilha – serem melhor

qualificadas como pastorelas pseudo-alegóricas.

Como vimos durante a análise das pastorelas occitânicas 282 , há composições que,

conquanto sigam o modelo elaborado por Marcabru, não resgatam o sentido alegórico perceptível

na referida obra, podendo tanto apresentar uma situação em que a recusa da pastora não demanda

uma justificativa explicitamente religiosa quanto desfechos nos quais a jovem acaba por entregar-

se amorosamente àquele que a seduz. Na produção ibérica que nos interessa, encontramos esse

último caso apenas no tocante à pastorela de Pedro Amigo de Sevilha; nas outras duas pastorelas

peninsulares – ou seja, nas de D. Dinis e de João Airas de Santiago –, o que vemos é uma recusa

282
Cf. cap. 2, 2.3. A variante: as pastorelas pseudo-alegóricas.
252

do sedutor não alicerçada num discurso moralizante de tons religiosos, mas meramente numa

moral que poderíamos qualificar como secularizada: a fidelidade ao amigo; o medo de que

circulem boatos sobre o encontro. Embora isso não queira dizer que, em última instância, na base

desses valores estejam questões religiosas, a ênfase aqui é inteiramente diversa: a pastora não

evoca Deus, não proclama sua virgindade, não se afirma como casta. Seria o caso, afinal, de

pensarmos num definitivo esvaziamento alegórico daquele modelo occitânico283 – já que, apesar

dessas mudanças, a estrutura narrativa elaborada por Marcabru faz-se presente nesses

exemplares? É essa a questão fulcral que pretendemos abordar neste capítulo.

Todavia, antes de nos debruçarmos sobre esse tema, devemos responder a uma série de

questões que o antecedem: é preciso, em primeiro lugar, compreender as relações entre o

trovadorismo occitânico e o galego-português, para que se possa entrever como esse foi por

aquele influenciado; em segundo lugar, devemos situar o lugar específico das pastorelas no

âmbito trovadoresco peninsular, onde as referidas composições são tradicionalmente situadas

entre as cantigas de amigo; e, numa terceira etapa, cabe localizar as pastorelas pseudo-alegóricas

que nos interessam em meio às outras constantes dessa produção lírica, o que implica considerar

o que diferencia umas das outras.

Comecemos, então, a percorrer esse esboçado percurso.

8. 1. Trovadorismo occitânico, trovadorismo ibérico

283
Algo talvez antecipado na pastorela occitânica L’autrier, al quint jorn d’Abril, como já observamos; cf.
2.3.1. L’autrier, al quint jorn d’Abril: em defesa da honra.
253

Podemos começar a investigar as relações entre as duas tradições líricas que nos

interessam a partir de uma figura central em nosso estudo. Os mais antigos registros que

documentam as relações de um trovador occitânico com as cortes peninsulares dizem respeito

justamente a Marcabru – que, atraído pelo esplendor do séquito de Afonso VII, visitou quase

todas as cortes espanholas em 1133 ou 1134 (ALVAR, 1977, p. 28). Na composição em que

lamenta a decadência da moral e das virtudes cavaleirescas (De Riquer, IV, 18), o trovador

occitânico menciona aquele monarca como um dos poucos capazes de restaurá-las.

Isso não quer dizer, é claro, que não houvesse qualquer tipo de arte trovadoresca na

península ibérica anterior ao contato com os occitânicos: é também na corte de Afonso VII que se

registra a presença de Palla, figura de origem compostelana partícipe do séquito imperial que

possivelmente compunha algum tipo de poesia mais primitiva; além disso, crônicas da época

relatam a presença de grandes grupos de jograis de menor destaque nas festas da corte

(MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 81-82). Atestam os registros que esses jograis conviviam ao lado de

trovadores occitânicos, sendo possível supor que a lírica em langue d’oc, já bastante madura,

servia como iniciadora e guia para a então nascente poesia ibérica, como observa Menéndez Pidal

(1962, p. 83).

Já no início da década de 1140, contudo, Marcabru revela um crescente descontentamento

com a corte leonesa, onde não recebeu o tratamento que esperava. Data desse período a

composição de outro trovador occitânico, Alegret, que se dirige encomiasticamente a Afonso VII

(De Riquer, VI, 28), que ensejou uma amarga reprimenda de Marcabru, em que esse indagava

como Alegret podia saudar como valente alguém que, de fato, não passava de um malvado

(Marcabru, XI).
254

Após a morte de Afonso VII, em 1157, apenas a ascensão ao trono de Afonso II e a

chegada dos condes catalães ao reino de Aragão, no início da década de 1160, construiria um

ambiente propício ao retorno de trovadores occitânicos de destaque à Península Ibérica: a

reputação de Afonso, ele mesmo trovador, atrairia nomes como Peire Raimon, Hugo Brunenc e

Raimbaut de Vaqueiras. Não obstante, o influxo também ocorreria no sentido inverso, com a

presença de jograis ibéricos nas cortes occitânicas: Guillem, visconde de Bergadán, tinha a seu

serviço diversos jograis de origem peninsular, dos quais se serviu para resolver desentendimentos

com o rei (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 84-86). De resto, a intensa convivência entre o

trovadorismo occitânico e as cortes ibéricas no final do século XII pode ser atestada por meio da

obra de Peire Vidal, que alude em suas composições a todos os reis de Espanha, várias vezes,

conquanto sem especificar seus nomes ou domínios; essas referências podem ser rastreadas em

obras anteriores a 1186, estendendo-se até meados da década de 1190 (ALVAR, 1977, p. 60).

Em que medida a convivência com o trovadorismo occitânico determina a evolução da

lírica galego-portuguesa? Trata-se de uma questão complexa, que não pretendemos aqui esgotar,

e a que responderemos em duas etapas: a resposta que aqui esboçaremos inevitavelmente se

estenderá até o início do próximo item, no qual discutiremos o gênero lírico particular – as

cantigas de amigo – em que tradicionalmente se inscrevem as pastorelas ibéricas.

Analisando os primeiros sirventeses compostos no âmbito galego-português – Ora faz ost’

o senhor de Navarra, de Johan Soarez de Paiva (Brea 80, 1); A la u vaz que la Torona, de Garcia

Mendiz d’Eixo (Brea 53, 1); e Tu que ora vẽes de Montemayor, de Gil Sanchez (Brea 57, 1) – ,

observa António Resende de Oliveira (1995, p. 64-68) que os referidos textos delimitam o

período, que tem seus termos no quarto final do século XII e no primeiro do século XIII, durante
255

o qual se delinearam os projetos pioneiros de adaptação do legado cultural occitânico à matriz

lingüística galego-portuguesa; processo, contudo, incipiente, como denunciam diversas

características formais dos referidos textos: a narratividade, ainda próxima da linguagem da

canção de gesta, o que ademais denuncia uma imitação desse gênero poético que também

florescia entre os occitânicos; o mimetismo lingüístico, perceptível sobretudo na obra de Garcia

Mendiz d’Eixo, composta em langue d’oc – que, de resto, não corresponde a qualquer dos

gêneros poéticos característicos do trovadorismo peninsular.

Em termos geográficos, a região galego-portuguesa receberá primeiro o influxo através de

Barcelona, e depois principalmente através de Toledo, que durante todo o século XIII constituirá

o mais ativo centro de recolha, adaptação e difusão peninsular dos elementos ideológicos e

formais da poesia cortês; Toledo oferece o suporte econômico e representa o principal ponto de

encontro com a cultura produzida em langue d’oc, recebendo constantamente destacados

trovadores occitânicos – entre eles Arnaut Catalan e Guiraut Riquier – e reunindo o mais

importante grupo de trovadores galego-portugueses (TAVANI, 2002, p. 32).

Se, num primeiro momento, o processo de aclimatação da produção literária occitânica

nos reinos peninsulares deu-se por ação da alta nobreza, numa segunda etapa – mais

precisamente, no segundo quarto do século XIII – a pequena nobreza adquire maior importância.

Essa segunda geração de trovadores, situada em regiões que se mantiveram mais à margem do

contato com os occitânicos – sobretudo a Galiza e o norte de Portugal – é a responsável por

reelaborar a matéria lírica proveniente da produção em langue d’oc, injetando-lhe finalmente o

conjunto de características pelas quais se tornaria conhecido o trovadorismo peninsular; são

esses, por exemplo, os responsáveis por elaborar a cantiga de amor nos moldes em que persistiria
256

até o século XIV, além de já estar a eles associada a cantiga de amigo e a transformação do

sirventês occitânico numa espécie de sátira pessoal (OLIVEIRA, 1995, p. 68-69). Todos os

trovadores galego-portugueses que compuseram pastorelas – alegóricas ou não – têm sua

produção datada a partir de meados do século XIII, inscrevendo-se portanto neste momento de

consolidação da lírica peninsular.

A corte de Afonso X (1254-1284) representará uma derradeira reação peninsular em favor

do trovadorismo occitânico. Notório por seus pendores artísticos, Afonso X recebeu e fomentou a

produção dos últimos trovadores em langue d’oc, que encontraram em Castela um ambiente

muito mais favorável do que na corte aragonesa; não obstante, por essa época monarcas como

Jaime I de Aragão e Fernando III de Leão e Castela já não demonstravam receptividade à cultura

occitânica, sendo possível situar na década de 1280 o fim do trovadorismo em langue d’oc na

Península Ibérica (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 102-104). É esse o momento em que se opera uma

clivagem entre a produção lírica nascida em Portugal, em torno de Afonso III e de seu filho D.

Dinis, que segue uma vertente aristocrática e tradicionalista, favorecendo especialmente a

produção de cantigas de amigo; e as composições nas cortes de Afonso X e Sancho IV, em

Castela, que demonstrarão mudanças mais profundas na abordagem dos diversos gêneros

poético-musicais, tematizando o cotidiano do próprio meio trovadoresco e privilegiando uma

abordagem mais crítica sobre o mundo exterior (OLIVEIRA, 1995, p. 77-78) – clivagem de

importância pelo fato de todos os trovadores que compuseram pastorelas alegóricas estarem de

algum modo relacionados à corte portuguesa, como veremos no item seguinte.

8. 2. Cantigas de amigo e pastorelas peninsulares


257

O processo de consolidação da lírica galego-portuguesa passa necessariamente por um

comentário em torno das cantigas de amigo, gênero poético que se tornaria um dos mais

importantes no âmbito ibérico e que se diferencia dos outros gêneros líricos médio-latinos e

vernaculares – a despeito de eventuais similaridades rítmicas e temáticas com seqüências,

cânticos, hinos e prantos – , mais fortemente evocando as kharağhat moçárabes (TAVANI, 2002,

p. 36). Embora não caiba realizar aqui um estudo aprofundado acerca do processo de emergência

desse gênero, assunto aliás sobre o qual há uma vasta bibliografia, não podemos nos esquivar a

abordar esse tema – sobretudo porque as pastorelas inscrevem-se historicamente entre as cantigas

de amigo, a despeito de suas diversas singularidades. Desse modo, é este o momento não apenas

de abordarmos o contexto de surgimento e a caracterização das cantigas de amigo, mas também

os problemas derivados da inscrição das pastorelas nesse gênero lírico particular.

Como observam Mercedes Brea e Pilar Lorenzo Gradín (1998, p. 9-10), embora a

presença de formas estróficas características, arcaísmos léxicos e de um simbolismo relacionado

à natureza possa indiciar um caráter popular ou autóctone desse tipo de composições, cabe

observar que se enquadram perfeitamente na lírica culta, enquanto produto de uma elaboração

(ou reelaboração) artística consciente, mesmo de uma moda então vigente em determinados

círculos corteses. A epígrafe das cantigas de amigo acolhe sob si textos tão variados e complexos

que só uma parte deles apresentam explicitamente traços que podem ser considerados próprios do

tipo tradicional, como a presença do refrão, o uso do paralelismo, a presença de estrofes

compostas por versos longos seguidos de um refrão em versos curtos , exórdios narrativos e

elementos simbólicos; além disso, consta dessa espécie de cantigas a representação de uma jovem
258

ingênua, enamorada, alegre ou triste em função do comportamento de seu amigo, por vezes em

diálogo com outras mulheres: a mãe ou suas confidentes. As restantes composições

compreendem obras que constituem uma transferência de conceitos e expressões típicos das

cantigas de amor, que remetem às cansós em langue d’oc compostas pelas trobairitz; nessas

obras, a mulher que fala não é uma jovem doce e singela, mas a domna gen e ensenhada que

representa o destinatário do poeta nas cantigas de amor (BREA; GRADÍN, 1998, p. 10).

No tocante às origens autóctones e populares das cantigas de amigo, observemos, em

primeiro lugar, que a relação entre as cantigas de amigo e as kharağhat tem merecido

reavaliações; cabe tomar em conta as observações de Eugenio Asensio, que evidencia a

heterogeneidade perceptível nas composições moçárabes: se as obras de origem judaica revelam

uma atitude mais recatada no que tange ao amor, as muçulmanas mesclam com maior freqüência

o amor e a sensualidade; por outro lado, a presença nessas composições de motivos totalmente

ausentes das cantigas de amigo é uma comprovação de que a lírica galega explorou um domínio

deliberadamente limitado, com fronteiras de sentimentos e limitações intencionadas (ASENSIO,

1970, 23-24). Ademais, o aprofundado estudo de Margit Alatorre sobre as kharağhat e os

primórdios da lírica românica chega à conclusão de que, embora a descoberta das composições

moçárabes tenha levado a uma reelaboração do problema das origens, não conduziu a uma visão

inteiramente nova, como previa um teórico como Dámaso Alonso: se, de um lado, a descoberta

das kharağhat permitiu a confirmação de que havia uma lírica feminina anterior, composta por

obras que podiam ser monólogos de donzelas enamoradas referindo-se à ausência de seus

amigos, por exemplo, por outro lado é ainda pouco o que se sabe sobre a sua função e o seu

conteúdo, cabendo ainda observar que são elas apenas uma pequena parte do cancioneiro pré-
259

literário românico; de resto, não se sabe ainda ao certo que tipo de contato pode ter ocorrido entre

esse lirismo moçárabe e o trovadoresco (ALATORRE, 1975, p. 155-168).

De resto, a tese da origem autóctone das cantigas de amigo foi alimentada sobretudo por

estudiosos como Teófilo Braga e Ramón Menéndez Pidal, “empenhados nacionalisticamente em

formular e defender a tese da origem autóctone”, como observa Giuseppe Tavani (2002, p. 193);

todavia, visto que os textos que possuímos são, como anteriormente mencionamos, produtos de

uma elaboração artística consciente, cabe recolocar a questão, o que não impede a suposição de

que esse material “semielaborado” apropriado pelos trovadores tenha sido “popular”, em alguma

medida – ou seja, que em algum momento histórico tenha passado a fazer parte da experiência

coletiva de um grupo social determinado –, bem como “ibérico” – porque resultante das

especificidades do fato literário em razão de contingências histórico-culturais específicas

(TAVANI, 2002, p. 193-194).

A marca característica das cantigas de amigo é a presença de uma voz feminina, sempre

fingida – uma vez que a lírica galego-portuguesa foi produzida exclusivamente por homens –,

que fala de si mesma, dos seus sentimentos e dos do seu amigo, de sua situação pessoal; em geral,

refere-se a si mesma por meio do termo ‘amiga’, que por vezes cede lugar a ‘filha’, ‘fremosa’ ou

‘fremosinha’, e mais ocasionalmente ‘donzela’, ‘meninha’, ‘moça’, ‘pastor’ ou sintagmas como

‘dona virgo’ ou ‘dona d’algo’. Posto que os trovadores occitânicos tenham oferecido categoria

artística à voz feminina, é na lírica galego-portuguesa que o discurso direto da mulher é

introduzido, o que abre caminho para o resgate de anteriores tradições nas quais o sujeito lírico

do enunciado era a mulher (BREA; GRADÍN, 1998, p. 11). A oposição perceptível entre a cantiga

de amor e a cantiga de amigo diz respeito não apenas à fundamental diferença entre os falantes –
260

já que, como indica a Arte de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (TAVANI,

1999, p. 41), a cantiga é de amor quando o poeta fala na primeira pessoa e de amigo quando ele

finge ser a mulher, cabendo observar quem é o primeiro interlocutor no caso das cantigas

dialogadas – , mas também pelo fato de que, se na cantiga de amor o trovador instaura um

confronto verbal quase exclusivo com sua senhor, no caso das cantigas de amigo a voz feminina

freqüentemente entra em contato também com outros personagens, que podem ser tanto seres

humanos quando elementos da natureza: as árvores, o mar, o rio, a fonte e as ermidas, entre

outros (TAVANI, 2002, p. 190-191).

Passemos agora a avaliar o lugar das pastorelas na tradição lírica galego-portuguesa. A

condição sui generis desse conjunto de composições no âmbito trovadoresco peninsular ensejou

diversos esforços em busca de uma tipologia das pastorelas ibéricas, bem como tentativas de

compreensão da presença de elementos occitânicos e franceses naquelas composições 284 .

Importante entre as primeiras tentativas modernas de analisar e classificar as pastorelas galego-

portuguesas é o estudo de Arlene Lesser sobre a pastorela medieval peninsular (1970). Ainda

influenciada pelas teorias que valorizavam os elementos autóctones e indígenas das cantigas de

amigo, Lesser aproxima essa valorização do relevo conferido por William Jones à tradição

popular no processo de emergência das pastorelas européias, o que a leva a filiar-se à tese de

Teófilo Braga – que defendia a romântica idéia de que as pastorelas galego-portuguesas possuem

uma dupla origem, nascendo da convergência de fontes cultas aristocráticas e de influências

284
Discutiremos a seguir as reflexões em torno das pastorelas peninsulares realizadas por Lesser (1970),
D’Heur (1974), Lorenzo Gradín (1991) e Picchio (1992), que são as mais relevantes para essa etapa de nosso
trabalho; outros itens da bibliografia específica serão discutidos ao longo deste capítulo, quando enfocarmos assuntos
particulares em torno das pastorelas galego-portuguesas.
261

indígenas, galego-portuguesas procedentes de supostas tradições célticas, sendo essas últimas

evidentemente percebidas como mais importantes (LESSER, 1970, 16-20).

Argumenta a pesquisadora que um dos elementos centrais da lírica galego-portuguesa era

o o ambiente bucólico pastoral encontrado na Galiza e no norte de Portugal, o que propiciou a

recepção de influências poéticas pastorais latinas e vernaculares; com isso, as pastorelas

ultrapirenaicas vieram somar-se à vertente indígena já existente no país (LESSER, 1970, p. 38).

Após criticar as tendências à percepção das pastorelas galego-portuguesas como uma imitação

das francesas ou occitânicas e à inclusão do gênero nos conjuntos das cantigas de amigo ou de

amor sem a valorização de suas peculiaridades (LESSER, 1970, p. 43), argumenta a teórica que,

devido à mescla de elementos occitânicos, franceses e autóctones que a constituem, a pastorela

galego-portuguesa não pode ser reduzida a apenas um modelo, havendo inclusive obras que

escapam totalmente às outras definições européias do gênero (LESSER, 1970, p. 58).

A partir desses pressupostos, Lesser distingue cinco modelos de pastorelas peninsulares;

não nos ocuparemos aqui de listar esses modelos, uma vez que será mais proveitoso utilizar os

comentários de Lesser quando analisarmos mais detidamente o corpus, mais à frente 285 .

Destaquemos apenas que o recenseamento feito por Lesser elenca dez pastorelas, incluindo textos

alheios à tradição galego-portuguesa – como a composição de Álvaro Afonso constante do

Cancioneiro da Vaticana (Brea 20,1) – e que, por efeito da tentativa de isolamento de elementos

autóctones, cunha o curioso conceito de “pastorela compostelana”, modelo qualificado como o

mais original e primitivo, produto de tradições poéticas do noroeste da Espanha. De resto, toda a

tipologia elaborada pela teórica toma como referência parâmetros regionalistas: interessa-lhe,

285
Cf. 8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas e 8.4. As pastorelas pseudo-alegóricas galego-
portuguesas.
262

sobretudo, defender o lugar central e a profunda influência exercida pela “pastorela

compostelana”, modelo por ela percebido como mais autenticamente galego e mais alheio às

influências ultrapirenaicas. Apenas a fim de nos posicionarmos perante essa tese, adiantemos a

observação de que, ao contrário do que afirma Lesser, as situações descritas nas “pastorelas

compostelanas” não ocorrem exclusivamente no âmbito peninsular, o que de imediato afasta a

possibilidade de que seja essa uma expressão singular da “alma e do caráter da Galiza” 286 , como

afirma a teórica (LESSER, 1970, p. 68).

Jean Marie d’Heur apresentou, em 1974, um artigo em que buscou fornecer subsídios para

o estudo sistemático da pastorela galego-portuguesa em contraste com as pastorelas românicas.

Sua proposta de análise tipológica parte de treze elementos (D’HEUR, 1974, p. 587-588): as

fórmulas iniciais dos textos; a ação do poeta; a descoberta; a designação da pastora; a atividade

da pastora; a descrição da pastora; a abordagem; os nomes da pastora, do pastor e do cavaleiro-

poeta; a origem do diálogo, seu desenvolvimento e sua conclusão. Empregando esses critérios

para análise das pastorelas galego-portuguesas, D’Heur anota doze apontamentos, que não

descreveremos exaustivamente; em vez disso, listaremos apenas aqueles relevantes para o nosso

estudo.

Observa o teórico que nos exemplares galego-portugueses não há uma atividade pastoral

realística por parte da pastora, o que sugere uma maior aproximação dos textos com as pastorelas

occitânicas, já que é essa uma das diferenças perceptíveis entre os exemplares compostos em

langue d’oc e aqueles compostos em langue d’oïl (D’HEUR, 1974, p. 589). De fato, é notável a

ausência, nos textos peninsulares, de referências a animais: as pastoras ibéricas, embora sejam

286
“... el género poético más expresivo del alma y del caráter de Galicia.”
263

identificadas como tais, não conduzem ovelhas, porcos ou quaisquer rebanhos – o que denota seu

caráter idealizado.

Como Arlene Lesser, D’Heur também sugere que há modelos de pastorelas exclusivos do

âmbito peninsular, situando em Santiago de Compostela as origens da pastorela narrativa e

apontando as pastorelas descritivas como produto específico da corte portuguesa, especificamente

de D. Dinis (D’HEUR, 1974, p. 589). Aqui percebemos, entretanto, o mesmo equívoco que

percebemos na argumentação de Lesser, e que desenvolveremos mais à frente 287 : os exemplares

por ele destacados não diferem inteiramente de obras constantes de outras tradições líricas; desse

modo, não é prudente afastar algum tipo de influência, e é sem dúvida um erro considerar que

sejam esses modelos presentes exclusivamente na tradição ibérica.

Por fim, ressalta o teórico a proximidade perceptível entre as pastorelas e as cantigas de

amigo, sugestiva de uma influência das últimas sobre as primeiras (D’HEUR, 1974, p. 589). É

esse efetivamente um elemento relevante; não obstante, a mera constatação da similaridade –

facultada sobretudo pelo aproveitamento de trechos de cantigas de amigo numa composição de

Airas Nunes Oí og’ eu ũa pastor cantar (B 868-869-870, V 454: Brea 14, 9) – não nos oferece

maiores elementos para análise, apenas favorecendo a conclusão de que se trata de um gênero

híbrido. Essa relação, como veremos, será aprofundada por outros teóricos.

Pilar Lorenzo Gradín é a autora de um fundamental estudo acerca da cronologia e da

tradição manuscrita relacionadas à pastorela peninsular, tendo alcançado um conjunto de

instigantes conclusões. Observa a teórica que, das pastorelas compostas no contexto galego-

português, há apenas três que podem ser classificadas como “clássicas” - precisamente as três que

287
Cf. 8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas.
264

aqui qualificamos como pastorelas clássicas pseudo-alegóricas, embora utilizemos critérios

diferentes daqueles adotados por Lorenzo Gradín: baseando-se em autores como Jeanroy (1965) e

Zink (1972), ela estabelece como elementos fundamentais desse modelo o motivo do encontro, a

localização topográfica concreta, a breve descrição da pastora e o diálogo entre as partes, com a

proposta amorosa do cavaleiro e a resposta da jovem (LORENZO GRADÍN, 1991, p. 352); a esses

adicionamos o ponto de vista masculino, além de considerarmos o sentido moralizante da obra

para sua eventual qualificação como alegórica. As outras pastorelas constantes do repertório

galego-português constituem um gênero híbrido, ressalta a teórica, sendo constantes as

interferências com a tradição das cantigas de amigo e, em menor medida, com as cantigas de

amor.

São valiosas as conclusões de Lorenzo Gradín no tocante à cronologia de produção das

pastorelas ibéricas. Como já observamos, as referidas obras foram compostas a partir de meados

do século XIII; nesse momento, o gênero já se havia consolidado no meio literário ultrapirenaico.

Como ressalta Lorenzo Gradín, uma leitura das pastorelas peninsulares revela a presença de uma

série de elementos estranhos ao resto do cancioneiro de amigo e de amor, mas comuns nas

pastorelas dos trovadores occitânicos e franceses; por outro lado, a absorção dos modelos implica

a emergência de marcas da tradição na qual se efetiva esse processo, podendo-se compreender

assim a presença de marcas topográficas locais, a introdução de um vocabulário próprio da

cantiga peninsular, a introdução de esquemas paralelísticos, a alusão à atividade poética do amigo

e a adaptação de textos de outros poetas galego portugueses, entre outros elementos (LORENZO

GRADÍN, 1991, p. 352-353).


265

Considerando a tradição manuscrita, observa a teórica que o posicionamento de Airas

Nunes no hipotético cancioneiro de clérigos-trovadores e o fato de sua pastorela – cantiga, aliás,

que inaugura sua produção – não estar situada junto das cantigas de amigo e de amor, sendo em

vez disso seguida por um sirventês, parece indicar a natureza especial da cantiga; talvez por esse

motivo ela tenha sido separada, pelo compilador, dos outros textos amorosos (LORENZO GRADÍN,

1991, p. 357). O estudo do lugar ocupado pelas obras de outros autores aponta para conclusões

similares: as pastorelas “ocupam sempre um posto ‘funcional’ no interior das seções de cada

autor, já que são o primeiro texto ou o último da série de cantigas de cada trovador”; assim, “esta

distribuição parece confirmar que os textos estudados eram considerados como uma variedade

expressiva no rígido sistema poético da tradição galego-portuguesa” 288 (LORENZO GRADÍN, 1991,

p. 358).

As conclusões de Lorenzo Gradín possibilitam algumas reflexões instigantes. A

associação das pastorelas com as cantigas de amigo é um processo complexo, que diz respeito a

um hibridismo que, não obstante, não implica uma inteira anulação do gênero ultrapirenaico no

sistema literário galego-português; o que podemos supor, por outro lado, é que os próprios

compiladores estavam cientes de que as pastorelas constituíam uma espécie singular de

composições, conquanto nelas seja perceptível a presença de elementos característicos da poética

peninsular. O modelo parece ter sido introduzido na tradição galego-portuguesa por João Peres de

Aboim – homem forte na corte de Afonso III que esteve com ele na França –, tendo sido

posteriormente cultivado por outros trovadores peninsulares.

288
“... constátase que as pastorelas [...] ocupan sempre un posto ‘funcional’ no interior das seccións de cada
autor, xa que son o primeiro texto ou o último da série de cantigas de cada trobador. Esta distribución parece
confirmar que os textos estudiados eran considerados como unha variedade expresiva no ríxido sistema poético da
tradición galego-portuguesa.”
266

A condição particular da pastorela galego-portuguesa é enriquecida pela “nova

interpretação” do gênero proposta por Luciana Stegagno Picchio (1992). Almejando definir a

pastorela “tal como figura, com suas poucas e tardias aparições, no conjunto da lírica galego-

portuguesa” 289 (PICCHIO, 1992, p. 91), argumenta a pesquisadora que, quando a pastorela chega

ao contexto literário ibérico, a paisagem galega já se havia consolidado como o locus amoenus

por excelência, o que possibilitou a utilização desse cenário num gênero lírico em que a

ambiência pastoril ocupa um lugar fundamental; por outro lado, conectada com essa região havia

também a tradição das cantigas de amigo, uma poesia que “encenava ao ar livre as dores e as

alegrias de garotas do campo em flor”, que “postas na boca dessas garotas, sem embargo haviam

sido compostas pelos mesmos poetas corteses e cultos que, com outro registro, compunham

cantigas de amor para damas da corte portuguesa ou castelhana disfarçadas como damas

provençais ou francesas” 290 .

Nos textos peninsulares, observa Picchio, não há pastoras velhas, nem pastores homens;

na língua dos cancioneiros, o termo ‘pastor/pastora’ equivale a jovem, moço, garoto ou garota. É

essa a razão de todas as hesitações com que se almeja classificar como pastorelas aquelas

cantigas nas quais não figura nenhuma conotação de pastora, mas em que o decoro é o mesmo e a

atitude é idêntica àquela da protagonista das “verdadeiras” pastorelas. Por outro lado, argumenta

a teórica que, nessa nova tradição, pode o trovador, dentro de um molde pastoral derivado dos

modelos occitânicos e franceses, encenar e revelar como verdadeiramente se articula a cantiga de

289
“... intento definir, aunque no explicar, el género pastorela tal como figura, con sus pocas y tardías
apariciones, en el conjunto de la lírica gallego-portuguesa”.
290
“Por outro lado, conectada com esta región, también existía una tradición de poesía femenina que
escenificaba al aire libre ls cuitas y las alegrías de muchachas del campo en flor: las llamadas cantigas de amigo.
Poesías que puestas en boca de esas muchachas sin embargo habían sido compuestas por os mismos poetas
cortesanos y cultos que, con otro registro, componían cantigas de amor para damas de la corte portuguesa o
castellana disfrazadas de damas provenzales o francesas.”
267

amigo: “uma mulher jovem, pastora e, portanto, de classe social e sexo inferiores ao poeta,

incapaz por si mesma de criar os textos dos poemas que a convenção lhe atribui e que, então,

limita-se apenas a cantar os versos de seu amigo” 291 . Por conseguinte, para os trovadores galego-

portugueses, a composição das pastorelas funciona como uma espécie de “mise em abîme”: é a

reprodução do objeto no objeto, do espetáculo dentro do espetáculo, do quadro dentro do quadro

(PICCHIO, 1992, p. 97).

Essa nova interpretação proposta por Picchio tem, como ela mesma assinala, o valor de

eliminar um suposto antecedente rústico local, confirmando a aclimatação dentro da tradição

peninsular das pastorelas occitânicas e francesas 292 ; ademais, acuradamente observa a

pesquisadora que, nesse novo contexto, a pastorela perde seu componente moralista,

característico da obra de Marcabru nos princípios da poesia occitânica 293 . Segundo Luciana

Stegnano Picchio, a oposição entre a pastora e o cavaleiro-trovador apenas indica, com alguma

ironia, um desejo de regeneração por meio da figura livre da pastora, desejo esse próprio do

cavaleiro encerrado nas cortes (PICCHIO, 1992, p. 98-99).

A partir dos estudos mencionados, chegamos enfim a um conjunto de conclusões que

apontam caminhos para a investigação da especificidade das pastorelas peninsulares. É evidente

que a inserção dessas composições no gênero das cantigas de amigo não obscurece a sua

condição de textos híbridos, que nascem a partir de uma série de experiências poéticas

291
“Cantiga, la cual, dentro de un molde pastoral derivado de los modelos occitanos y franceses, permite al
trovador local escenificar y revelar como se articula verdaderamente la cantiga de amigo: una mujer joven, pastora
y, por lo tanto, de classe social y sexo inferiores al poeta, incapaz por sí misma de crear los textos de los poemas
que la convención le atribuye y que, entonces, se limita sólo a cantar los versos de su amigo.”
292
Embora, nesse ponto do texto original, a autora cometa o deslize de mencionar as pastorelas médio-latinas
como ascendentes das vernaculares: cf. Picchio, 1992, p. 98.
293
Conquanto, ao referi-lo, Picchio defina esse moralismo especificamente nos termos da oposição de uma
moral natural à imoralidade cortesã, essa nos parece apenas uma figuração do questionamento de fundo cristão ao
qual vimos nos referindo ao longo deste trabalho.
268

empreendidas por trovadores galego-portugueses desde meados do século XIII. Pode ser

interessante estabelecer uma cronologia comparativa dos períodos de produção dos autores das

pastorelas occitânicas e galego-portuguesas, a fim de melhor os visualizarmos a partir de uma

perspectiva temporal 294 :

Trovadores occitânicos 295 Trovadores galego-portugueses


Marcabru (1130-1149)
Giraut de Bornelh (1162-1199)
Gui d’Ussel (1195-1196)
Gavaudan (1195-1211)
Guiraut d’Espanha (1240-1270)
[João de Aboim (1249-1284/7)]
[Lourenço (meados do séc. XIII)]
Guiraut Riquier (1254-1292)
Pedro Amigo de Sevilha (1257-1275)
Guilhem d’Autpol (1269-1270)
Joan Esteve (1270-1288) João Airas de Santiago (1270+)
D. Dinis (1279-1325)
[Airas Nunes (1284-1289)]

Percebe-se, por meio do quadro, que a pastorela alegórica já era praticada há mais de um

século na lírica em langue d’oc quando João de Aboim compôs a primeira pastorela no âmbito

galego-português 296 - obra que, não obstante, não corresponde ao modelo alegórico de Marcabru,

294
Como nosso objeto de estudo específico são as pastorelas alegóricas, o quadro apresenta apenas os autores
occitânicos que compuseram pastorelas alegóricas ou pseudo-alegóricas, segundo o modelo de Marcabru; já a coluna
dedicada aos trovadores galego-portugueses apresenta, entre colchetes, os autores cujas pastorelas não se enquadram
no modelo de Marcabru, aqui listados a fim de que possamos visualizar sua produção em comparação com aqueles
que compuseram pastorelas consoante o referido modelo.
295
Por dificuldades de datação, não incluímos no quadro a pastorela anônima L’autrier, al quint jorn d’Abril.
296
Embora caiba considerar a possibilidade, aventada por Meneghetti (1993), de que a pastorela de Marcabru
L’autrier jost’ una sebissa tenha sido composta a partir de influências ibéricas: argumenta a autora que certos
elementos léxicos e o tema do augurium ornitológico seriam elementos de origem popular ibérica constantes no texto
do trovador occitânico, que os teria absorvido quando de sua estadia na corte de Afonso VII, entre 1134 e 1143
aproximadamente. Não nos parece, contudo, ser possível traçar uma linha de influência direta entre o texto de
Marcabru e o de João de Aboim, composto mais de um século mais tarde.
269

como perceberemos mais à frente 297 ; ademais, mesmo o uso da estrutura narrativa elaborada por

Marcabru com fins não-alegóricos já podia ser constatado no meio occitânico há pelo menos

meio século, sendo esse o caso da pastorela composta por Gui d’Ussel.

A primeira pastorela em que percebemos uma influência do modelo de Marcabru foi a

composta por Pedro Amigo de Sevilha, autor cuja produção data do terceiro quarto do século

XIII; talvez não seja acidental o fato de essa ser a única pastorela pseudo-alegórica composta na

esfera peninsular que apresenta uma clara interferência de elementos característicos da cantiga de

amor, o que nos permitirá qualificá-la como uma pastorela pseudo-alegórica amorosa nos moldes

occitânicos 298 . Depois dessa primeira experiência, o modelo será aproveitado já perto do último

quarto do século XIII, por João Airas de Santiago e D. Dinis, o que pode à primeira vista sugerir

uma tentativa de resgatar um modelo lírico occitânico de forma mais “autêntica” 299 , num

momento em que – coincidentemente? – esse modelo experimentava uma espécie de revival na

literatura em langue d’oc, nas mãos de trovadores como Guilhem d’Autpol e Joan Esteve.

Todavia, a essa altura o gênero já havia consolidado sua condição híbrida no âmbito peninsular,

sendo necessário levar em consideração o processo de mesclagem com elementos característicos

das cantigas de amigo ressaltado especialmente por Lorenzo Gradín (1991) e Picchio (1992).

Cabe observar, ademais, que todos os trovadores galego-portugueses que compuseram pastorelas

tinham invariavelmente origem galega ou portuguesa e, em sua maioria, freqüentaram ambientes

culturais próximos 300 : João de Aboim, importante figura da corte de Afonso III – pai de D. Dinis

– , manteve relações literárias com Lourenço, que freqüentou também a corte de Afonso X; nessa

297
Cf. 8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas.
298
Cf. 8.4.1. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela, de Pedro Amigo de Sevilha: a pastorela e o código
amoroso cortês.
299
Problematizaremos essa suposição em 8.5. Entre a pastora e a amiga.
300
Cf. o Apêndice II de Oliveira (1994).
270

estiveram Pedro Amigo de Sevilha e João Airas de Santiago, ambos compositores de pastorelas

alegóricas.

Retornaremos a essas reflexões mais à frente, quando analisarmos o corpus de pastorelas

pseudo-alegóricas peninsulares. Antes disso, todavia, é necessário estabelecer esse recorte,

justificando a exclusão daquelas pastorelas que não correspondem ao modelo que nos interessa.

8.3. As pastorelas peninsulares não-alegóricas

A lírica trovadoresca galego-portuguesa produziu oito composições que são usualmente

qualificadas como pastorelas 301 ; três dessas cantigas seguem o modelo cunhado por Marcabru, e

delas nos ocuparemos no momento adequado 302 . Nosso assunto nos parágrafos seguintes serão as

cinco pastorelas galego-portuguesas que não apresentam a estrutura narrativa que constitui o

objeto de análise deste trabalho, a saber: Cavalgava noutro dia (Brea 75,3; B 676, V 278), de

João Peres de Aboim; Tres moças cantavan d’amor (Brea 88, 16; B 1262, V 867), de Lourenço;

Unha pastor bem talhada (B 534, V 137: Brea 25, 128) e Unha pastor se queixava (B 519, V

102: Brea 25, 129), de D. Dinis; e Oí og’ eu ũa pastor cantar (B 868-869-870, V 454: Brea 14,

9).

Seguindo a ordem cronológica de autores constante do quadro anteriormente apresentado,

devemos em primeiro lugar ocupar-nos da pastorela de João de Aboim, Cavalgava noutro dia

301
São os textos assim classificados por autores como D’Heur (1974, p. 588) e Lorenzo Gradín (1991, p. 351);
a última autora lista também uma cantiga de João Zorro (Quen viss’ andar fremosĩa: B 1148a, V 751: Brea 83, 11),
que contudo optamos por excluir de nossa análise, uma vez que a única semelhança que guarda com as outras
composições é o fato de o narrador descrever uma jovem que canta uma cantiga de amigo – sem que descreva
qualquer cenário que nos permita qualificá-la como obra pastoril. Observe-se que também em LGPG a cantiga de
João Zorro não é associada às pastorelas, ao contrário das outras listadas.
302
Cf. 8.4. As pastorelas pseudo-alegóricas galego-portuguesas.
271

(Brea 75,3; B 676, V 278). Obra curta, composta apenas de duas estrofes, descreve um episódio

simples: enquanto cavalgava pelo caminho francês, o trovador depara-se com uma pastora que

por ali seguia, acompanhada de outras três, cantando uma dolorosa melodia em que lamenta ter

sido abandonada por seu amigo (“Cavalgava noutro dia / per o caminho francês / e ũa pastor siia

/ cantando con outras tres / pastores e non vos pês, / e direi-vos toda via / o que a pastor dizia /

aas outras en castigo: /‘Nunca molher crêa per amigo, / pois s’o meu foi e non falou migo’”).

Em réplica ao triste canto, afirma uma das pastoras que a companheira não tem motivos para

sentir-se mal: embora o amigo esteja distante, logo retornará, tendo seus motivos para não ter dito

à amada as razões de sua partida (“Pastor, non dizedes nada, / diz ũa d’ elas enton; / se se foi esta

vegada, / ar verrá-s’ outra sazon / e dirá-vos por que non / falou vosc’, ai ben talhada”).

Mercedes Brea e Pilar Lorenzo (1998, p. 220) observam que, embora essa cantiga

apresente “motivos relacionados” com as pastorelas, esses não bastam para que ela seja

qualificada como tal: “falta o encontro efetivo entre o cavaleiro e a pastora e, portanto, não existe

diálogo entre eles”, observam as teóricas, acrescentando que “o trovador limita-se a contemplar

como, neste caso, essa mocinha cantava com outras três e queixava-se da partida do amigo

perante elas, recebendo o consolo de uma das amigas que lhe recomenda ter esperança no retorno

do ausente” 303 . De fato: como mencionamos anteriormente, são cinco os elementos que

constituem pastorelas stricto sensu 304 , sendo um deles o diálogo entre a pastora e o cavaleiro-

trovador; melhor procedemos, portanto, qualificando essa obra como uma composição de

temática pastoral. Não obstante, há um ponto que deve ser observado: há uma grande semelhança

303
“... falta o encontro efectivo entre o cabaleiro e a pastor e, polo tanto, non existe diálogo entre eles. O
trobador limítase a contemplar como, neste caso, esa mociña cantaba com outras tres e queixábase ante elas da
partida do amigo, recibindo o conforto dunha das amigas que lle recomenda ter esperanza no retorno do ausente.”
304
Cf. o capítulo 2. A invenção literária.
272

entre essa obra de João de Aboim e certos textos pastorais franceses dos quais tratamos em

momento anterior 305 – obras nas quais nos deparamos com um cavaleiro que, em um ambiente

pastoril, encontra-se com um grupo de pastoras, cujos hábitos observa e descreve.

Essa semelhança, como já sugerimos neste capítulo, pode não ser inteiramente acidental:

João de Aboim acompanhou Afonso III em viagens à França, antes que esse retornasse a Portugal

para ocupar o trono depois da destituição de Sancho II; permaneceu ao lado da coroa durante a

regência de D. Beatriz, e sua presença é ainda constatada durante os primeiros anos de D. Dinis –

observe-se, aliás, que esse governou a partir de 1279, e a morte de João de Aboim data de junho

de 1287 (LORENZO GRADÍN, 1991, p. 354). Dado que Cavalgava noutro dia é a primeira pastoral

registrada no âmbito galego-português, não parece de todo improvável que o trovador tenha

entrado em contato, durante sua passagem pela França, com aquelas composições pastorais,

tendo-as então introduzido na lírica peninsular. Cabe observar também que a próxima pastoral

que comentaremos, composta por Lourenço, é bastante similar à elaborada por João de Aboim, e

que esses dois trovadores mantiveram intenso contato: o cartulário de João de Aboim registra,

entre as testemunhas de uma compra efetuada por ele em 1259, Lourenço “bofom” (OLIVEIRA,

1994, p. 380); de resto, os dois sustentaram uma tensó (Lourenço, soías tu guarecer: Brea, 75,

10). Cabe não descartar, portanto, que o gênero tenha sido levado para o âmbito peninsular por

João Peres de Aboim, adotado por Lourenço e, em momentos posteriores – que mais à frente

procuraremos detalhar – , disseminando-se no meio trovadoresco da Galiza e do norte de

Portugal. Evidentemente, esses comentários vão de encontro à tese de Arlene Lesser, segundo a

qual a composição de João de Aboim representaria um deslocamento da “pastorela

305
Cf. 3. Pastorelas e pastorais.
273

compostelana” para Portugal; não obstante, como a teórica situa no mesmo caso a obra de

Lourenço (LESSER, 1970, cap. XI), é mais adequado comentar a obra desse último antes de expor

com mais detalhes essa refutação.

Também melhor qualificável como uma composição pastoral, a cantiga de Lourenço Tres

moças cantavan d’amor (LPGP 88, 16; B 1262, V 867) não se inicia, como em geral as obras

aqui abordadas, com uma descrição do locus amoenus percorrido pelo narrador. Em vez disso, já

se inicia o texto com uma descrição de três jovens, pastoras “muito formosinhas” que cantam,

sofrendo por amor (“Tres moças cantavan d'amor, / mui fremosinhas pastores, / mui coytadas dos

amores”); entre elas está a senhor do jogral, que entoa um dístico que faz claramente referência a

uma cantiga de amor composta por seu amigo (“E diss’ end’ unha, mha senhor: / – ‘Dized’

amigas comigo / o cantar do meu amigo’.”). Ao longo de toda a cantiga, composta por mais três

estrofes, a cena é reiteradamente descrita; com “gran sabor” o narrador as contempla e ouve,

sempre citando o dístico que encerra cada uma das cobras.

A despeito da semelhança com a cantiga de João de Aboim, no tocante ao caráter

descritivo da obra e à ausência de um diálogo, cabe levar em consideração a aguda observação de

Brea e Lorenzo: as autoras destacam o fato de, já na primeira estrofe da obra, o narrador referir-se

à jovem descrita na cantiga como sua senhor – de modo que “o trovador é neste caso o amigo que

vai ao encontro da sua namorada e que se sente pleno de alegria ao escutar como esta convida as

suas amigas: ‘‘Dized' amigas comigo / o cantar do meu amigo’.” 306 (Brea; Lorenzo Gradín, 1998,

p. 221).

306
“... o trobador é neste caso o amigo que vai ó encontro da súa namorada e que se sente cheo de ledicia ó
escoitar cómo esta convida ás súas amigas: ‘‘Dized’ amigas comigo / o cantar do meu amigo’.”
274

Há aí, de fato, um indício da condição híbrida da pastorela galego-portuguesa: como nas

cantigas de amor, a voz que primeiro fala é a do trovador – mas não é esse o trovador-namorado

característico daquele gênero, e sim um trovador que atua como testemunha de uma cena na qual

pode também intervir (BREA; LORENZO GRADÍN, 1998, p. 221); desse modo, a partir do que já

comentamos em torno da presença nesse texto de elementos constantes de certas pastorais

francesas, é possível considerar que Lourenço e João de Aboim atuaram como pioneiros na

transferência do gênero ultrapirenaico ao meio trovadoresco galego-português, assim compondo

as primeiras cantigas em que eram perceptíveis os reflexos das pastorais – posto que ainda não as

pastorelas – francesas. É especialmente interessante observar que, nas duas obras, há uma

deliberada demonstração da presença da lírica peninsular, uma vez que em ambas o momento em

que a voz é concedida às pastoras é utilizado para a inserção de fragmentos que trazem marcas

das cantigas de amigo: nos versos finais da composição de João Peres de Aboim, recomenda a

pastora que a sofredora amiga adote o seu discurso – “Deus, ora veess’ o meu amigo / e averia

gram prazer migo”; no texto de Lourenço, a pastora convida as outras: “Dized’ amigas comigo / o

cantar do meu amigo”. Em ambos os dísticos, o que procuram as pastoras são formas de tornar

presente o amigo distante, motivo fundamental das cantigas de amigo: na cantiga de João de

Aboim, a referência ao prazer que a jovem sentiria com o namorado presente ao seu lado opera

como um consolo para a companheira que, solitária, sofre; no texto de Lourenço, o convite feito

pela jovem às suas amigas, para cantar de seu amigo, sugere igualmente uma tentativa de superar

a solidão; e a posição do namorado-narrador – que contempla as jovens à maneira de um voyeur,

deliciando-se com a cena – acentua essa situação.


275

Retornemos, finalmente, à argumentação de Arlene Lesser acerca dessas composições.

Partindo do pressuposto – que mais à frente discutiremos – de que há um modelo de pastorela

primitivo ibérico, argumenta a teórica que as obras de que tratamos constituem um

“aportuguesamento” desse suposto modelo, processo em que a pastora ganha companheiras e um

tom mais queixoso do que melancólico; de acordo com Lesser, no caso particular da cantiga de

Lourenço essa transferência implica uma estilização, devido à qual se preocupa o poeta mais com

“a beleza das pastoras e do seu canto do que com a dor que se expressa nele” 307 (LESSER, 1970, p.

91). Subjaz, portanto, à argumentação de Lesser a percepção de que o deslocamento do suposto

modelo original de pastorelas ibéricas para o território português implica uma espécie de

falseamento; não obstante, como já mencionamos, falha a argumentação já desde a premissa de

que aquele “modelo primitivo” fosse inteiramente distinto dos modelos ultrapirenaicos, sendo

mais provável que João de Aboim tenha criado sua pioneira pastoral após ter entrado em contato

com a lírica praticada na França.

As próximas obras que nos interessam foram compostas por D. Dinis: Unha pastor bem

talhada (B 534, V 137: Brea 25, 128) e Unha pastor se queixava (B 519, V 102: Brea 25, 129).

Como veremos, são essas duas obras muito diferentes entre si; se adicionarmos a isso o fato de

que D. Dinis compôs também uma pastorela pseudo-alegórica conforme o modelo de Marcabru,

podemos especular se o trovador, um dos mais prolíficos do trovadorismo galego-português, não

compôs essas diferentes pastorelas e pastorais como experimentações poéticas.

Unha pastor bem talhada (B 534, V 137: Brea 25, 128) está entre as mais curiosas

composições do corpus peninsular. A cantiga de D. Dinis começa descrevendo uma bela pastora

307
“... preocupado más el poeta por la belleza de las pastoras y de su canto que por el dolor que se expresa en
él.”
276

que, desiludida, sofre por ter tido a confiança traída por seu namorado (“Unha pastor ben talhada

/ cuidava em seu amigo / [e] estava, bem vos digo, / per quant’ eu vi, mui coitada; / e diss’: ‘oi

mais nom é nada / de fiar per namorado / nunca molher namorada, / pois que mh o meu ha

errado”). Mas a pastora não está inteiramente só: tem na mão um formoso papagaio que canta,

porquanto chega o verão; é ao pássaro que a jovem pede um conselho, tombando a seguir entre as

flores (“Ela tragia na mão / um papagai mui fremoso, / cantando mui saboroso, / ca entrava o

verão: / e diss’: ‘Amigo loução, / que faria per amores, / pois m’errastes tam en vão?’/ E caeu

antr’ unhas flores.”). Perante o desespero da pastora, o papagaio responde com palavras que, à

primeira vista, parecem enigmáticas: a jovem não tem do que se queixar; se quer ver aquele que

procura, basta-lhe erguer os olhos (“‘Se me queres dar guarida’, / diss’ a pastor, ‘di verdade, /

papagai, por caridade, / ca morte m’ é esta vida’. / Diss’ el: ‘Senhora comprida / de bem, e non

vos queixedes, / ca o que vos a servida / erged’ olho e vee-lo-edes’.”).

Como se pode esperar, esse curioso texto tem suscitado diversas interpretações. A

primeira – inevitável – questão diz respeito ao (naturalmente exótico, para o âmbito galego-

potuguês) animal: está o trovador referindo-se a um papagaio real? Em que medida sua presença

indicia algo de simbólico? Luciana Stegnano Picchio propôs que a cantiga pode ter sido um guião

para uma representação na corte: “Na primeira cena temos a senhora só, disfarçada de pastora,

que entrelaça grinaldas e suspira no seu ‘fremoso virgeu’. Na segunda cena, aparece o cavaleiro

escondido dentro da máscara de papagaio”, sugere a teórica, e prossegue: “Na terceira, o

cavaleiro comporta-se como uma máquina falante, daquelas que tanto impressionavam a fantasia

dos homens medievais. Na quarta cena, por fim, o cavaleiro abandona o invólucro de papagaio e

volta a ser o servidor da dama, que é por natureza”; finalmente, encerra-se a encenação: “No
277

momento em que [o cavaleiro] se aproxima dela e lhe estende a mão, álibi e ambientação pastoris

são abandonados. Há um regresso da dama ao lugar fechado, à sala, onde é do ritual a fórmula

cortesã, o vós, e igualmente a relação de vassalagem dama-cavaleiro” (PICCHIO, 1979 p. 51-52).

Essa leitura torna-se ainda mais instigante se levarmos em conta que, como sugere a autora, aqui

o tradicional rouxinol dá lugar ao “exótico e erótico papagaio”, que ocupa o lugar de confidente

numa “pastorela-cantiga de amigo” – confidente que, “por antonomásia, é a mãe, que pode ser

substituída pela irmã ou pela amiga. São personagens sempre femininas [...] e essas amigas e

personagens femininas têm que ser assimiladas às ondas do mar ou às flores do verde pinho”

(PICCHIO, 1979 p. 57).

Mas o papagaio pode também ser “real”, conquanto necessariamente fabuloso: um

personagem “quase mágico a quem se confiava a missão de dar respostas com conotações

irônicas”, como observam Brea, Díaz de Bustamante e González Fernández (1984, p. 88) ; ou,

como interpreta Lesser (1970 p. 107), “como um mago visionário que anuncia [à pastora] não

mais a chegada, mas a presença do pranteado ausente” 308 . Julga Xosé Luís Couceiro que é

possível considerar que D. Dinis tenha aqui deliberadamente se desviado de um modelo

“naturalista”: assim como, em outra de suas cantigas, interpela as “flores do verde pino” – que

serão sempre belas, contrariando assim a realidade botânica –, aqui o cantar do papagaio é

saboroso, “ainda que ninguém que conheça o canto do papagaio possa-lhe atribuir harmonias

capazes de afagar o ouvido, por muita que possa ser a força da primavera” 309 (COUCEIRO, 1991,

p. 288). Também José António Souto Cabo (1986, p. 398-399) defende uma interpretação

naturalista para o texto, inscrevendo-o entre aqueles que, na lírica galego-portuguesa como na
308
“...como un mago visionario que le anuncia no ya la llegada sino la presencia del llorado ausente.”
309
“...aínda que ninguén que coñeza o ¿canto? do papagaio lle poida atribuír harmonías capaces de afalaga-
lo oído por moita que poida se-la forza da primavera.”
278

occitânica, estabelecem contraste entre uma interioridade negativa (no caso, a da pastora) a uma

natureza de signo positivo (o papagaio). Mais prudente, Stephen Reckert opta por supor as duas

possibilidades, deliberadamente preservando a dúvida; indaga, de um lado: “A ternura do

pássaro, é ela um simples reflexo da que sente o narrador (como o falar dos papagaios em geral o

é do falar humano)?”; e de outro: “Ou será genuína: um resultado do mesmo milagre de Amor

que tornou o papagaio capaz não só de falar mas até – o que já era mais difícil – de cantar, e ‘mui

saboroso’, como qualquer rouxinol a isso obrigado pelas mais rígidas convenções trovadorescas

cada vez que entrava o verão?” (RECKERT; MACEDO, 1996, p. 218-219). Nessa linha, julgamos

mais adequado respeitar a singularidade da cantiga de D. Dinis, motivo pelo qual não nos

arriscaremos aqui a propor para ela mais uma leitura; consideramos, por outro lado, mais

instigante reconhecer nela (mais) uma experiência poética do prolífico rei-trovador – cujas três

composições pastorais, tão diferentes entre si, constituem uma demonstração de versatilidade.

A outra cantiga de D. Dinis que nos cabe analisar neste momento é Unha pastor se

queixava (B 519, V 102: Brea 25, 129), bastante mais convencional do que a anteriormente

comentada, uma vez que apresenta um conjunto de elementos característicos das cantigas de

amigo. No texto, apresenta o trovador uma triste pastora que chora e fala consigo mesma,

lamentando pelo dia em que conheceu aquele que tanto a decepcionou (“Unha pastor se queixava

/ muit’ estando noutro dia, / e sigo medes falava, / e chorava e dizia, / com amor que a forçava: /

par Deus, vi-t’em grave dia, / ai amor!”). As queixas da jovem, ressalta o trovador, semelham as

das mulheres que sofrem com grande dor – como se jamais tivesse conhecido tal sofrimento

desde que nascera (“Ela s’ estava queixando / come molher com gram coita, / e que a pesar des

quando / nacera nom fôra doita”); ao fim, consumida por essas dores que para ela não
279

representam senão a morte, deita-se a jovem entre algumas flores e amaldiçoa o causador de seu

sofrimento: “Mal te venha por onde fores, / pois não és senão a minha morte” (“Coitas lhe davam

amores / que nom lh’ eram se nom morte; / e deitou-s’ antr’ ũas flores / e disse com coita forte: /

“mal ti venha per u fôres, / ca nom es se nom mha morte, / ai amor!”).

Couceiro inscreve essa cantiga, que qualifica como “pastorela ‘estilizada;’”, entre as

cantigas de amigo – “pese o desajeitado do espaço narrativo, impróprio do gênero

maior” 310 (COUCEIRO, 1991, p. 287) – , visto apresentar os tristes sentimentos da jovem de tal

forma que se parecem com outras expressões semelhantes de dor feminina pelo amigo ausente,

infiel ou traidor – percepção que, consoante o pesquisador, pode justificar-se também pelo

paralelismo semântico constante do texto (COUCEIRO, 1991, p. 287). Aventa Luciana Stegnano

Picchio (1979, p. 52-53), ancorando-se nas fórmulas de tratamento presentes nessa cantiga e em

Unha pastor bem talhada – dado que em ambas encontramos o uso do tu intimista, contraposto

ao cortês vós, algo que na lírica peninsular medieva ocorre apenas atribuído a abstrações como o

Amor personificado –, que aquele texto teria em Unha pastor se queixava sua primeira parte,

sendo essa última cantiga uma espécie de happy end após o melancólico princípio – possibilidade

que soa efetivamente plausível (PICCHIO, 1979, p. 53); contudo, parece temerário estendê-la

também à terceira pastoral dionisina, que mais à frente analisaremos: embora observe a teórica

certa semelhança formal 311 , a terceira pastorela é uma obra que não apenas apresenta início, meio

e fim, como também se desenvolve de maneira bastante diferente das duas que ora analisamos 312 .

310
“... pese ó desaxeitado do espacio narrativo, impropio do xénero maior...”
311
Picchio, na verdade, limita-se apenas a sugerir de passagem que “os segmentos que constituem os dois
textos (e, de certa forma, também a terceira pastorela do rei) são os mesmos” (1979, p. 53); depois disso, volta a
cotejar apenas Unha pastor bem talhada e Unha pastor se queixava, argumentando em função de sua unidade por
conta do já comentado uso de uma mesma forma de tratamento.
312
Cf. 8..4.3. Vi oj’ eu cantar d’ amor, de D. Dinis: o resgate do modelo de Marcabru.
280

Finalmente, tratemos da última cantiga que nos interessa: a obra de Airas Nunes Oí og’ eu

ũa pastor cantar (B 868-869-870, V 454: Brea 14, 9). Neste texto, o trovador descreve como

ouviu uma pastora cantar, enquanto cavalgava por uma ribeira: vendo-a aproximar-se, solitária,

ele escondeu-se e percebeu que a jovem entoava uma cantiga de amigo (“Oí og’ eu ũa pastor

cantar / du cavalgaba per ũa ribeira, / e a pastor estava senlleira; / e ascondi-me pola escuitar, /

e dizia mui ben este cantar: / ‘Solo verd’ e ramo frolido / vodas fazen a meu amigo; / ¡choran

ollos d’ amor!’.”). Em cada uma das seguintes estrofes da cantiga, o trovador insere uma

introdução em que descreve os movimentos da pastora, encerrando-as sempre com trechos das

cantigas por ela entoadas. Na segunda estrofe, o trovador aproxima-se cuidadosamente para ouvir

o cantar da bela jovem (“E a pastor parecia mui ben, / e chorava e estava cantando; / e eu mui

passo fui-mi achegando / pola oír, e sol non falei ren; / e dizia este cantar mui ben: / ‘¡Ai

estoniño do avelanedo, / cantades vós, e moir’ eu e pen’ / e d’ amores ei mal!’”); na terceira

estrofe a pastora, ainda a chorar e a cantar, começa a tecer uma guirlanda de flores (“e fazia

guirlanda de flores; / e des i chorava mui de coraçon / e dizia este cantar enton: / ‘¡Que coita ei

tan grande de sofrer, / amar amigu’ e non ousar veer! / E pousarei solo avelanal!’”); finalmente,

na última estrofe, após ter feito a guirlanda, a pastora afasta-se e o trovador retorna ao seu

caminho, ouvindo ainda os cantos da jovem (“Pois que a guirlanda fez a pastor / foi-se cantando,

indo-ss’ én manseliño; / e tornei-m’ eu logo a meu camĩo, / ca de a nojar non ouve sabor; / ‘Pela

ribeira do río / cantando ía la virgo / d’ amor; / ¿quen amores á / como dormirá, / [a]i, bela

frol?’”).

Essa é a cantiga em que Arlene Lesser enxerga a – já diversas vezes aqui mencionada –

“pastorela compostelana” (1970, cap. 10). Amparada em uma datação incorreta – insere-o na
281

escola compostelana contemporânea do reinado de Afonso IX (1188-1230), ao passo que

datações mais recentes situam-no a serviço de Sancho IV no fim do século XIII (1284-1289)

(OLIVEIRA, 1994, p. 318) – , considera Lesser que Nunes é o mais antigo autor de “pastorelas” do

meio trovadoresco peninsular; essa percepção, contudo, inverte-se por inteiro de acordo com a

datação mais recente, com o que Airas Nunes torna-se um dos últimos – possivelmente, o último

– trovador peninsular a dedicar-se ao gênero.

A elaborada cantiga de Airas Nunes já suscitou diversos comentários. Trovador

notoriamente culto, com uma particular inclinação a “imitar e a renovar sabiamente temas e

motivos de poemas anteriores”, Airas Nunes exibe aqui seu vasto conhecimento da tradição

poética e do costume literário peninsular e extrapeninsular: é essa a obra que, segundo Giuseppe

Tavani (1992, p. 51), dá a mais correta interpretação de “mesura” de todos os textos galego-

portugueses, constituindo ademais o mais conspícuo exemplo da canção de citações produzido no

meio trovadoresco ibérico; cabe notar, não obstante, que Airas Nunes não se limita a insertar no

texto os fragmentos de outras cantigas de amigo, à maneira de refrões, mas também modifica e

adapta os textos de Nuno Fernandes Torneol e de João Zorro às suas próprias exigências poéticas,

suprimindo hiatos e alterando ritmicamente os versos – o que rende, ao fim, um resultado de

melhor valor estético (TAVANI, 1992, p. 51).

Observe-se ainda que teóricos como Silvio Pellegrini (1959) e, posteriormente, o já

mencionado Giuseppe Tavani especularam sobre específicas influências occitânicas nessa

cantiga: tanto no texto de Airas Nunes quanto em L’autrier, cavalcava, pastorela de Gui d’Ussel

que analisamos em momento anterior 313 , encontramos uma pastora que canta enquanto chora.

313
Cf. 2.3.1. O amor como consolo: L’autrier, cavalcava, de Gui d’Ussel.
282

Tavani leva adiante a hipótese de Pellegrini, argumentando que a atitude da pastora é similar nas

duas obras; não obstante, mais à frente observa que essa atitude faz-se presente também em

outros textos peninsulares, inclusive em João Zorro, um dos autores da predileção de Airas Nunes

– o que leva o próprio teórico a concluir que, ainda que conhecesse a pastorela de Gui d’Ussel, é

mais provável supor que Airas Nunes tenha se inspirado mais diretamente na cantiga de amigo de

João Zorro Quen viss’ andar fremosĩa (B 1148a, V 751: Brea 83, 11) (TAVANI, 1992, p. 52-54).

8.4. As pastorelas pseudo-alegóricas galego-portuguesas

Embora a tradição tenha qualificado todas as obras que analisamos com o título de

pastorelas, isso ocorreu sobretudo devido à adoção da premissa de que todos os poemas em que

ocorria o vocábulo pastor (ou similares) indiciava um pertencimento ao referido gênero, a

despeito da já referida ambigüidade semântica do termo. Apesar disso, houve quem se dedicasse

à elaboração de uma tipologia mais rígida, o que levou ao reconhecimento de que apenas três

entre as composições peninsulares em geral qualificadas como pastorelas contêm os elementos

constantes das pastorelas occitânicas (RAMÓN PENA, 2002, p. 189) – precisamente aquelas que

aqui analisaremos. Nossa proposta, contudo, tem como base não apenas a reflexão tipológica,

mas mais especificamente a hipótese central desse trabalho – ou seja: a conjectura de que o

modelo poético elaborado por Marcabru encerra um sentido alegórico fundamental. Essa hipótese

levou-nos a qualificar as pastorelas compostas no âmbito occitânico como alegóricas ou pseudo-

alegóricas – categoria que abrigava as obras que, conquanto correspondessem estritamente ao

modelo elaborado por Marcabru, não encerravam um sentido alegórico, podendo inclusive
283

apresentar-se como composições amorosas que nenhuma relação guardavam com a moralizante

proposta do texto prototípico; serão essas as categorias que evocaremos para a análise das três

pastorelas peninsulares que apresentaremos a seguir.

8.4.1. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela, de Pedro Amigo de Sevilha: a pastorela e o
código amoroso cortês

Quand’ eu hun dia fuy en Compostela (B 1098, V 689: Brea 116, 29), de Pedro Amigo de

Sevilha, é o primeiro dos textos compostos no âmbito trovadoresco galego-português que pode

ser qualificado como pastorela stricto sensu.

O episódio descrito na cantiga é bastante similar aos que encontramos nas pastorelas

occitânicas. Estando numa romaria em Compostela – elemento importante, que mais à frente

analisaremos detidamente –, o trovador encontra-se com uma encantadora jovem, identificada

como pastora já no segundo verso; é para ela que compõe essa cantiga, obra sui generis no corpus

trovadoresco peninsular.

O trovador logo corteja a pastora, o que enseja um longo diálogo entre os dois. Caso a

jovem aceite-o por entendedor – elemento característico do código cortês, que será objeto de

nossa atenção – , promete o trovador oferecer-lhe diversos presentes: boas toucas de Estela, fitas

de Rocamador, um formoso pano para a saia. A jovem, a princípio, recusa-o: como poderia

aceitar por entendedor alguém que nunca viu? Ademais, tem a certeza de que os presentes não se

destinam a ela; assim, se os aceitasse, causaria pesar em outra pessoa. Finalmente, tem a pastora

um terceiro motivo para rejeitar o trovador: também ela tem um namorado que, embora ausente,

decerto lhe traz presentes; caso se entregasse a outro, sem dúvida perderia o seu amigo. Não
284

obstante, a jovem não frustra inteiramente as esperanças do trovador, deixando claro que, não

fosse comprometida, talvez o aceitasse.

O sedutor, contudo, não desiste. Afirma à jovem que não há outra a quem se destinam os

presentes que a ela oferece: ela é a única que ele ama; assim, cabe-lhe aceitá-lo como seu

entendedor. Algo surpreendemente, isso basta para que todo o discurso da jovem seja

abandonado: ela imediatamente o aceita como entendedor, propondo-se a encontrá-lo assim que

terminar a romaria.

Todas as cinco características do modelo de pastorela occitânica fazem-se presentes na

cantiga de Pedro Amigo de Sevilha: o encontro entre um homem – o trovador – e uma mulher – a

pastora – dá-se num ambiente pastoral, de forma contingente; encantado por sua beleza, ele a

corteja, o que enseja um diálogo; finalmente, perpassa toda a obra o ponto de vista masculino.

Há, todavia, uma série de particularidades que nos cabe destacar.

Já nos primeiros versos, percebemos não apenas que o episódio transcorre num ambiente

marcadamente peninsular – explicita-o a referência a Compostela –, mas também que ocorre

durante uma romaria, o que remete ao topos galego-português que faz das romarias o motivo para

o encontro amoroso, elemento constitutivo de uma das modalidades da canção de mulher

específicas da lírica galego-portuguesa (BREA; LORENZO GRADÍN, 1998, p. 256-257; MALEVAL,

1999, p. 37); como argutamente observou Carolina Michaëlis de Vasconcellos, embora seja essa

uma pastorela, e não uma cantiga de romaria, “a distância de uma a outra não é, todavia muito

grande” (1990, v. 2, p. 885).

Mas a primeira estrofe traz ainda outros elementos relevantes. Observe-se que, no último

verso, Pedro Amigo explicita seu objetivo: fazer uma pastorela. Essa singular ocorrência,
285

precisamente na primeira obra composta no âmbito trovadoresco galego-português que segue

estritamente o modelo de Marcabru, pode indiciar uma intenção particular do trovador: não lhe

interessava fazer pastorais como as que os outros trovadores compuseram, mas uma pastorela –

sendo essa a razão pela qual optou por uma obra que, no que tange à estrutura narrativa, segue tão

rigidamente o modelo occitânico? De resto, não deixa de ser instigante o que o trovador afirma

no quarto verso da obra: além de ressaltar a beleza da jovem, o que é um lugar-comum nas

pastorelas, ele enfatiza sua capacidade discursiva: jamais encontrou outra pastora que falasse tão

bem (“nen vi outra que falasse milhor”). Se levarmos em conta que uma das características das

pastorelas occitânicas, nítida no texto de Marcabru, diz respeito precisamente à capacidade da

pastora de construir uma argumentação elaborada – indício de sua falta de preocupação com a

verossimilhança, como anteriormente enfatizamos 314 – , podemos entrever aí mais uma tentativa

de ressaltar a importância do modelo de Marcabru para Pedro Amigo de Sevilha.

Na segunda estrofe, observe-se que a ocorrência do termo entendedor denuncia a presença

do código de amor cortês. O vocábulo, característico do léxico das cantigas de amor galego-

portuguesas, deriva da terminologia occitânica, designando a segunda etapa do processo de

avanço do amante em direção à intimidade da mulher: enquanto ainda não expressava o seu

desejo, o trovador desempenhava o papel de fenhedor; tendo-o confessado, avançava para a etapa

de pregador; aceito pela dama, tornava-se entendedor – estágio reclamado pelo narrador da

cantiga de Pedro Amigo de Sevilha; finalmente, tendo logrado os favores da amada, convertia-se

em drutz (BELTRAN, 1995, p. 19). Percebe-se, portanto, o explícito (entre)lugar ocupado pela

314
Cf. 2.1. Acerca da alegoria.
286

pastorela de Pedro Amigo de Sevilha, enquanto reprodução do modelo occitânico no âmbito

lírico peninsular.

Note-se, por outro lado, que a pastorela de Pedro Amigo de Sevilha já se mostra

inteiramente isenta do investimento alegórico característico das pastorelas occitânicas. A

argumentação da pastora não lança mão de quaisquer referenciais religiosos: o que motiva sua

recusa é apenas a desconfiança de que não seja ela a única desejada pelo narrador; o que aqui

encontramos é, portanto, apenas o motivo da exigência de fidelidade – demonstra-o o fato de que

a pastora cede à investida amorosa tão logo lhe assegura o trovador que não há outra que com ela

duele por sua atenção.

A esse respeito, pode-se observar um detalhe fundamental, que igualmente denuncia a

influência dos elementos típicos das cantigas de amigo: embora a atitude positiva da jovem com

relação ao trovador só seja explicitada nesse último verso, ela já podia ser inferida a partir dos

dois primeiros versos do texto, nos quais o trovador inscreve tacitamente a composição no sub-

gênero peninsular das cantigas de romaria. Ocorre que, como já mencionamos, é característico

dessa modalidade o uso da romaria como um pretexto para o encontro amoroso; e, conquanto na

cantiga de Pedro Amigo de Sevilha não encontremos os elementos que explicitam esse subjacente

desejo – como o mandado enviado pelo amigo, presente em outras cantigas desse tipo – , é certo

que o motivo constante do início da cantiga já era suficiente para inscrever a obra na mencionada

modalidade e gerar, assim, uma expectativa na audiência à qual era destinada a pastorela de

Pedro Amigo de Sevilha. O trovador constrói, desse modo, uma cantiga que não só reproduz o
287

modelo occitânico das pastorelas amorosas, de que já nos ocupamos neste trabalho 315 , mas que

também se inscreve entre as cantigas de romaria tipicamente peninsulares.

Quand’ eu hun dia fuy en Compostela é portanto uma composição que, construída

conforme a estrutura narrativa elaborada por Marcabru e apresentando um conjunto de elementos

a partir dos quais é possível deduzir que seu autor tinha efetivamente o modelo occitânico em

mente durante sua elaboração, apresenta-se não obstante como um texto em que são nítidas as

marcas dos gêneros líricos peninsulares – denúncia, talvez, da intentio de Pedro Amigo de

Sevilha de transferir para a lírica peninsular o modelo narrativo de uma pastorela “autêntica”,

sem no entanto deixar de nela imprimir as marcas características da lírica galego-portuguesa.

8.4.2. Pelo souto de Crecente, de João Airas de Santiago: o motivo da rejeição na


pastorela ____peninsular

Passemos à leitura da segunda pastorela composta no âmbito peninsular em que é

perceptível o aproveitamento do modelo narrativo occitânico que nos interessa. Mais breve que a

pastorela de Pedro Amigo de Sevilha, Pelo souto de Crecente (B 967, V 554: Brea 63, 58) inicia-

se, assim como aquela, com uma referência topográfica: dessa vez, o episódio tem lugar no souto

de Crecente; é enquanto passa por aquele lugar que o narrador observa uma bela pastora que

canta, “apertando-se na saia”. Toda a segunda estrofe é dedicada à descrição daquele locus

amoenus: os pássaros que revoam na alvorada, “cantando d’amores” pelos ramos, compõem uma

singular ambiência em que tudo faz pensar no amor.

315
Cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas pseudo-alegóricas.
288

Como se pode esperar, o trovador não resiste ao desejo – ao deparar-se com a pastora,

aproxima-se dela e, a despeito de uma (suposta) hesitação, afirma: falará com a jovem apenas se

ela dispuser-se a ouvi-lo; partirá se assim lhe for exigido. A pastora, provavelmente surpreendida,

imediatamente o rechaça: que se afaste, que tome o seu caminho; aqueles que ali chegarem, caso

os encontrem juntos, decerto dirão que aconteceu algo além de um mero encontro.

O desfecho da pastorela pode parecer súbito à primeira vista, mas temos na cantiga o

relato de um episódio completo, que pode ser aproximado do modelo occitânico que aqui

investigamos. Embora o narrador não ofereça presentes nem faça propostas ou promessas à

pastora, sua postura perante ela e o que lemos nas entrelinhas de sua fala bastam para que

compreendamos sua atitude: a oferta, nesse caso, está implícita no próprio gesto de aproximação

do trovador – e é claramente percebida pela pastora, que decerto por isso apressa-se a enjeitá-lo,

rogando que se afaste. Embora o desfecho da obra permaneça algo aberto, podemos inscrever a

obra entre as pastorelas cujo motivo é a rejeição do sedutor pela pastora, o que mais a aproxima

do modelo occitânico original.

Cabe observar ainda uma série de detalhes importantes na pastorela. Perceba-se, em

primeiro lugar, que o aproveitamento aqui, no âmbito peninsular, do modelo já utilizado por

Pedro Amigo de Sevilha não é o único ponto de aproximação possível entre esses dois textos:

mais notável é a referência, no fim da estrofe inicial, à região do Sar – exatamente o mesmo lugar

onde a pastora de Quand’ eu hun dia fuy en Compostela propõe ao narrador que se encontrem.

Mais notavelmente, aqui, como na outra pastorela mencionada, encontramos uma mescla do

modelo occitânico com elementos característicos das cantigas de amigo e de amor. O exórdio,

que ocupa toda a segunda estrofe, parece evocar mais as cansós ultrapirenaicas do que as
289

convenções peninsulares – já que não se reduz “a uma ou mais referências alusivas à estação das

flores ou da caça” que, em vez de se concentrarem nos versos iniciais, distribuem-se em

cadências regulares ao longo do texto, como ocorre tipicamente nas cantigas de amigo

peninsulares (TAVANI, 2002, p. 200). Por outro lado, ressalta a mesura demandada pela pastora,

termo constante do léxico das cantigas de amor por meio do qual roga a jovem que o trovador aja

com prudência: cabe-lhe ser discreto, evitando que circulem boatos acerca do encontro.

João Airas de Santiago foi um trovador que, ao que tudo indica, circulou pelas cortes de

Galiza, de Portugal e de Castela: sendo um burguês de Santiago, como indiciam as rubricas nos

cancioneiros, frequentou também as cortes de Sancho IV e Afonso X; não obstante, há registros

no corpus lírico que o apresentam como regressado de Portugal (OLIVEIRA, 1994, p. 356-357).

Com isso, é possível – embora não se possa afirmá-lo peremptoriamente – que João Airas de

Santiago tenha tido contato com a obra de Pedro Amigo de Sevilha, derivando desse contato as

aproximações possíveis entre suas cantigas. A pergunta que se pode aqui fazer, à guisa de

desfecho e provocação, é a seguinte: pode-se conceber Pelo souto de Crecente como uma cantiga

que, levando adiante as experiências poéticas de adaptação do modelo estrangeiro inauguradas

por Pedro Amigo de Sevilha, almeja não obstante uma aproximação maior do modelo original de

Marcabru, justificando-se por isso o motivo da rejeição nela perceptível?

8.4.3. Vi oj’ eu cantar d’ amor, de D. Dinis: o resgate do modelo de Marcabru

Finalmente, a última pastorela galego-portuguesa que analisaremos é Vi oj’ eu cantar d’

amor, de D. Dinis (B 547, V 150: Brea 25, 135).


290

A descrição do cenário que encontramos no início dessa pastorela sugere uma indefinição

significativamente maior do que o constante dos textos anteriormente analisados: se Pedro Amigo

mencionara Compostela e João Airas fizera uma explícita referência ao souto de Crecente, D.

Dinis limita-se a uma evocação indiscutivelmente mais vaga (“fremoso virgeu”). É nesse lugar

que o trovador encontra uma pastora de beleza sem par, que de pronto o encanta e enseja sua

aproximação; contudo, a jovem reage de forma hostil: manda que o trovador parta,

imediatamente – sua presença não faz mais do que perturbá-la, tendo sido especialmente

incômoda naquele momento em que ela entoava uma cantiga composta por seu namorado.

O trovador finge acatar o pedido da pastora quando, de fato, insiste em cortejá-la:

conquanto consinta em partir, continuará sempre a servi-la, por onde andar; está, afinal, tomado

pelo amor que ela nele suscitou, do qual não vê meios de livrar-se. A insistência, todavia, não é

bem recebida pela jovem: o que ele diz não é legítimo, e tampouco à jovem apraz ouvir essas

palavras; seu coração pertence somente àquele que ela ama, e nunca outro poderá tomá-lo. O

desfecho da cantiga consiste em duas fiindas, cada qual expressando a voz de um dos

protagonistas: na primeira, afirma o narrador que, assim como o coração da pastora jamais partirá

para longe daquele que ela ama, também o seu coração pertence à jovem e desse lugar nunca

partirá; na segunda, a pastora encerra o diálogo com palavras definitivas: seu coração jamais se

moverá do lugar que ora ocupa, e pouco lhe interessa o (inconveniente) trovador.

Aqui encontramos, como em Pelo souto de Crecente – e em oposição a Quand’ eu hun

dia fuy en Compostela – o motivo da rejeição da pastora; não obstante, há algo que distingue o

texto de D. Dinis da cantiga de João Airas: a reação da pastora aqui não se reduz à mera surpresa,

envolvendo uma complexidade psicológica maior – enraivecida com a insistência do trovador, a


291

pastora argumenta longamente com ele, reiterando a cada momento sua fidelidade e o seu desejo

de que o intruso abandone os seus maliciosos intentos. Observe-se, por outro lado, que a estrutura

argumentativa mais desenvolvida, cujo ápice é a resposta negativa da jovem, permite que se

postule uma aproximação maior da obra de D. Dinis com relação ao modelo de Marcabru;

embora aqui, como nas outras pastorelas peninsulares, não haja o elemento religioso constitutivo

do modelo alegórico occitânico: mais uma vez, a argumentação da pastora evoca a fidelidade ao

amigo, o único dono do seu coração, como justificativa para rejeitar os avanços do sedutor –

motivo que será um dos temas que analisaremos a seguir.

8.5. Da pastora enquanto amiga

Seria decerto tentador avaliar as três pastorelas galego-portuguesas em que encontramos

uma utilização do modelo occitânico elaborado por Marcabru como momentos ou etapas de um

processo evolutivo que, progressivamente, retorna em direção a uma estrutura narrativa original

da pastorela. Uma leitura desse tipo poderia ser ancorada nas seguintes suposições: Pedro Amigo

de Sevilha, num primeiro momento, teria sido o responsável por introduzir o modelo occitânico

na lírica peninsular, mas ainda de forma incipiente e inautêntica – sendo o indício maior da

insuficiência de seu esforço o desfecho de Quand’ eu hun dia fuy en Compostela, que se afasta

inteiramente da estrutura alegórica que supõe uma oposição entre a pastora e o trovador; num

segundo momento, João Airas de Santiago teria logrado aproximar-se um pouco mais de uma

“verdadeira pastorela”, já que sua obra encerra-se de forma mais condizente com o modelo

occitânico, embora tenha a “deficiência” de revelar-se ainda muito impregnada de elementos


292

peninsulares e seu desenvolvimento, por sua brevidade, seja insatisfatório; finalmente, o retorno

ao modelo de Marcabru teria sido realizado de forma definitiva por D. Dinis, em cuja obra

encontrarmos uma argumentação mais elaborada e uma decisiva oposição entre o narrador-

sedutor e a pastora. De resto, o fato de a pastorela de D. Dinis ser possivelmente a última

composta no âmbito galego-português – a datação sugere uma disputa com a de Airas Nunes –

forneceria um desfecho de efeito para essa hipótese: já quase no apagar das luzes da era

trovadoresca, D. Dinis lograria resgatar uma das primeiras estruturas poéticas reconhecíveis na

lírica occitânica, promovendo assim um retorno à postulada matriz do trovadorismo medieval.

Não desejamos, contudo, defender aqui uma argumentação desse tipo: não há dados

suficientes para sustentá-la, e a afirmação peremptória das suposições acima elencadas envolveria

um alto grau de arbitrariedade. Por outro lado, as inferências que apresentamos sobre as

pastorelas peninsulares são, em boa parte, hipotéticas. O fato de Pedro Amigo de Sevilha

mencionar expressamente em seu texto que comporá uma pastorela é sem dúvida um elemento

diferenciador de sua composição, mas será legítimo deduzir que traduza efetivamente uma

intenção poética? O conjunto de similaridades perceptível entre a pastorela de D. Dinis e

L’autrier jost’una sebissa, de Marcabru, é suficiente para que se afirme que o rei-trovador

tencionava resgatar em sua cantiga a estrutura narrativa constante do texto occitânico?

Conclusões como essas devem ser afastadas por uma razão principal: para sustentá-las, seria

necessário argumentar em função de uma intentio poética cuja aferição escapa a todas as nossas

possibilidades investigativas.

Agimos de forma mais prudente, portanto, se nos limitamos a considerar os elementos que

parecem menos passíveis de contestação. Sabemos que todas as pastorelas peninsulares em que
293

percebemos a estrutura narrativa occitânica foram compostas a partir de meados do século XIII. É

provável que a primeira delas tenha sido composta por Pedro Amigo de Sevilha – e o fato de ele

ter circulado em um ambiente cultural freqüentado também pelos outros autores, João Airas de

Santiago e D. Dinis, decerto sugere que suas produção tenha exercido algum tipo de influência

sobre a obra desses dois trovadores. Uma leitura das três cantigas que constituem o corpus em

questão demonstra que são textos híbridos, nos quais é nítida a mescla de elementos occitânicos e

galego-portugueses. Finalmente – como já mencionamos anteriormente 316 –, é instigante perceber

que, na mesma época em que o trovadorismo galego-português produzia as pastorelas que nos

interessam, no meio trovadoresco ultrapirenaico autores como Guilhem d’Autpol e Joan Esteve

compunham pastorelas que resgatavam fortemente a estrutura narrativa e os motivos alegóricos

característicos de L’autrier jost’una sebissa, em oposição a certas tendências mais experimentais

constatáveis na obra de um autor como Cerverí de Girona; esse paralelo pode sugerir uma

valorização do modelo naquele momento histórico particular, sobretudo se levamos em conta a

familiaridade que tinham esses compositores com a lírica em langue d’oc: Pedro Amigo de

Sevilha e João Airas certamente tiveram oportunidade de conviver com os occitânicos na corte de

Afonso X, por eles freqüentada; por outro lado, D. Dinis – que lia diretamente a lírica em langue

d’oc – era neto de Afonso X, e ademais a presença de João Airas é constatada na corte que

manteve, ainda enquanto infante 317 .

Já no tocante aos elementos peninsulares cuja presença pode ser percebida nos textos

galego-portugueses, há um que merece especial atenção: o lugar que a fidelidade ao amigo e que

a preocupação com o que dirão as “más línguas” ocupa nessas composições. Embora a fidelidade

316
Cf. 8. 2. Cantigas de amigo e pastorelas peninsulares.
317
Cf. as fichas bibliográficas de Tavani, 2002.
294

amorosa seja um motivo presente também nas pastorelas occitânicas318 , nas cantigas peninsulares

ele ocupa uma posição fulcral – de certo modo substituindo o referencial de virtude que, na lírica

em langue d’oc, era representado fundamentalmente pelos deveres religiosos. De fato, pode-se

perceber nos textos galego-portugueses que a rejeição da pastora, mesmo quando tênue (como é o

caso da que encontramos em Quand’ eu hun dia fuy en Compostela), comumente tem como base

a fidelidade amorosa – algo que é inclusive previsto pelo sedutor, como ocorre na pastorela de

Pedro Amigo de Sevilha: ali, o astuto sedutor concentra-se principalmente em refutar esse

elemento do discurso negativo da pastora, sendo isso o que lhe rende, ao fim, a vitória. Por outro

lado, na única pastorela peninsular em que a fidelidade não ocorre como tema central – Pelo

souto de Crecente, de João Airas de Santiago – , a rejeição da pastora também não se fundamenta

em motivos explicitamente religiosos: seu temor é o que dirão aqueles que souberem que ela

esteve com um desconhecido – maliciosos comentários que decerto tratarão de sugerir que houve

“algo mais” entre eles.

Assim como o motivo da fidelidade, que tangencia o tema da concórdia amorosa comum

nas cantigas de amigo, também o medo de comentários maliciosos pode ser lido como um

elemento característico de uma poética herdeira de um lirismo feminino apartado dos referenciais

cristãos; essa “moral profana”, ancorada nos costumes populares, substituiria aqui aquele

conjunto de valores que, nas pastorelas em langue d’oc, inscreve os referidos textos num campo

alegórico claramente matizado por uma axiologia já cristianizada. Dessa forma, a personagem

que encontramos nas obras de Pedro Amigo, João Airas e D. Dinis não pode ser identificada de

todo à pastora delineada pelos occitânicos, cujo lugar como representação alegórica é sempre

318
Cf. sobretudo 2.2.1. A fidelidade à infiel: L’autrier, lo primier jorn d’aost, de Giraut de Bornelh.
295

bem definido; cabe, por outro lado, aproximá-la das figuras femininas tipicamente presentes nas

cantigas de amigo galego-portuguesas, obras que constituem “um canto de resistência das

origens, desconhecedoras das noções de pecado ou culpa, relacionadas à sexualidade, ensinadas

pela Igreja” (MALEVAL, 1999, p. 61).

Figuras híbridas num gênero poético igualmente marcado pelo hibridismo, as pastoras-

amigas da lírica peninsular habitam um entrelugar: se lhes cabe desempenhar uma função

determinada numa estrutura alegórica definida, por outro lado não dispõem dos instrumentos

necessários para que exerçam uma resistência revestida de um sentido nitidamente religioso. Em

oposição à maior parte das pastoras occitânicas, não há no âmbito galego-português jovens

devotadas a Deus, dispostas a defender sua virgindade – tema que sequer é sugerido na lírica

peninsular – ou a reafirmar seus compromissos religiosos; inversamente, seu sentido de dever

está relacionado simplesmente ao amigo que ocupa o seu coração – e em cujo coração, por outro

lado, sabem ocupar um lugar – , ao medo de que boatos sugiram encontros amorosos com

desconhecido. A pastora-amiga que encontramos na obra de Pedro Amigo de Sevilha só se

entrega ao trovador quando esse lhe assegura que será seu amigo, e que ela poderá contar com

sua fidelidade: se é esse o pacto que será entre eles firmado, pode ela aceitá-lo como entendedor.

Menos do que em termos de um aproveitamento, talvez seja mais apropriado falar de uma

reinvenção do modelo occitânico de pastorelas no âmbito galego-português – obras em que o

abismo entre a pastora e a alegoria já parece, finalmente, insuperável.


296

9. À GUISA DE CONCLUSÃO

O corpus de pastorelas alegóricas que examinamos nesta pesquisa estende-se por cerca de

dois séculos: a obra inaugural de Marcabru, L’autrier jost’ una sebissa, foi composta entre 1130 e

1149; D. Dinis, autor da pastorela mais tardia que analisamos – Vi oj’ eu cantar d’ amor –,

governou entre 1279 e 1325, sendo possível datar aproximadamente desse período sua produção

poética.

Durante esse dilatado período de tempo, o modelo poético criado por Marcabru foi de

múltiplas formas apropriado e desenvolvido por inúmeros trovadores, apartados geográfica e

lingüisticamente do meio literário em que produziu Marcabru. Caso proceda a hipótese que

aventamos no início deste trabalho 319 – qual seja, a de que o autor da Vida de Cercamon, ao

mencionar no referido texto as “pastorelas à moda antiga” compostas pelo trovador em questão,

tinha em mente a inovação no gênero levada a cabo por Marcabru – , o que aqui procuramos

fazer foi acompanhar certos desdobramentos desse modelo, tanto no contexto da produção

literária em langue d’oc quanto nos corpora de pastorelas médio-latinas e galego-portuguesas.

Pode ser útil resgatar, a esta altura, as etapas de nossas pesquisa. Procuramos

compreender, num primeiro momento, alguns aspectos do seu contexto de emergência, a partir de

um ponto de vista literário; resgatamos então algumas das hipóteses em torno da origem das

pastorelas medievais, tendo também a preocupação de diferenciar as pastorelas alegóricas das

obras semelhantes compostas no âmbito literário medievo e das composições pastorais

contemporâneas. Num segundo momento, consideramos os fatores que podem ter colaborado

319
Cf. 1. 1. O lugar da tradição.
297

para que a figura da pastora recebesse, num momento histórico preciso, um investimento

alegórico cultivado por tantos trovadores, e para que a problematização moral relativa às

intenções dos agentes no texto poético tenha sido tão valorizada; finalmente, debruçamo-nos num

terceiro momento sobre a absorção do modelo occitânico em tradições poéticas geográfica e

lingüisticamente diversas, da maneira como a percebemos. Se essa nossa hipótese merece ser

acreditada, isso significa que Marcabru interviu conscientemente sobre um gênero poético que o

precedia; e que essa renovação, parte da grande influência exercida por esse trovador no ambiente

cultural occitânico, estendeu-se para além dessas fronteiras lingüísticas e literárias, constituindo

uma parte significativa do vasto influxo que a poesia em langue d’oc exerceu sobre a literatura

medieval européia.

Evidentemente, essa influência não ocorreria de maneira uniforme e homogênea. Se já os

trovadores occitânicos apropriaram-se da estrutura narrativa elaborada por Marcabru e

desenvolveram-na de múltiplas formas – no âmbito occitânico mesmo, afinal, detectamos todas

as variações de pastorelas que mais tarde encontraríamos também nas produções poéticas médio-

latinas e peninsulares – , uma vez deslocada para outros espaços de criação literária (portanto,

sujeita a outras espécies de influências), a pastorela assumiria novas configurações. Um sintoma

disso é a homogeneidade que se pode rastrear nessas outras tradições lingüísticas, se analisadas

isoladamente. Ao passo que, no âmbito occitânico, todas as variações da estrutura narrativa

cunhada por Marcabru podem ser encontradas – a despeito da natural predominância do modelo

alegórico, sendo esse o originalmente criado pelo eminente trovador, perceptível em mais de 70%

dos exemplares 320 – , essa heterogeneidade não se repete nos outros meios literários.

320
Cf. a tabela 2 da segunda parte do Apêndice (tabelas).
298

Nascidas no seio de uma tradição literária que, embora não estranha aos autores clássicos,

estava profundamente marcada por valores cristãos, as pastorelas médio-latinas apresentam

invariavelmente um sentido alegórico – que convive, não obstante, com elementos de nítida

derivação clássica; entre esses, possivelmente se inclui a violência sexual, inteiramente

desconhecida nos exemplares occitânicos. As pastorelas peninsulares, por sua vez, não

apresentam qualquer indício de significação alegórica, inscrevendo-se entre as pastorelas pseudo-

alegóricas em que surge ou não a temática amorosa – o que nos permite qualificá-las como

produto de uma lírica essencialmente profana, impregnada pelas características particularidades

das cantigas de amigo galego-portuguesas. A toza das pastorelas occitânicas é, portanto,

essencialmente diversa da puella das pastorelas médio-latinas – que, por seu lado, difere

profundamente da “amiga” das pastorelas peninsulares; cabe, portanto, compreender cada uma

dessas figuras literárias como uma distinta representação do feminino, concebida em uma

produção poética portadora de características particulares.

Embora, como procuramos demonstrar de forma clara na Introdução deste trabalho,

tenhamos nos preocupado em delimitar ao máximo o corpus aqui estudado – tendo em vista o fim

precípuo de analisar, da forma mais aprofundada possível, alguns aspectos do desenvolvimento

da pastorela alegórica – , não temos a pretensão de que nossa pesquisa tenha constituído mais do

que um esforço inicial em busca de subsídios que viabilizem novas investigações. Conquanto

tenhamos buscado explorar de forma detalhada todos os elementos que, num âmbito literário e

extraliterário, desempenharam a nosso ver um papel importante para a criação e para o

desenvolvimento das pastorelas, decerto a complexa natureza do assunto levou-nos a deixar


299

lacunas que apenas em um segundo momento poderão ser identificadas e preenchidas com novas

pesquisas.

Esperamos, entretanto, ter demonstrado a importância de um modelo poético – definido,

como deve ter ficado claro ao longo da pesquisa, a partir de sua temática e de sua estrutura

narrativa – que, salvo engano, passou ao largo das observações e dos estudos realizados até hoje

acerca das pastorelas medievais. A relevância das pastorelas alegóricas está, sobretudo, em sua

especificidade, sendo essas obras concebidas como produto de um momento histórico que reúne

as particulares condições de possibilidade para o seu surgimento; dessa forma, é preciso conceber

como importantes fenômenos tanto a sua incorporação no repertório poético de trovadores cuja

produção inscreve-se em diferentes domínios lingüísticos quanto a relativa recusa sugerida pela

composição de variantes (caso das pastorelas pseudo-alegóricas, amorosas ou não). Em nossa

pesquisa, procuramos investigar e dimensionar toda essa pluralidade de fenômenos, de modo a

delinear suas especificidades e seu valor para o desenvolvimento das pastorelas alegóricas; desse

modo, esperamos ter fornecido alguma colaboração para a abertura de um novo caminho de

pesquisas.

Cabe observar, finalmente, que há ainda muito a ser investigado no que tange às

pastorelas medievais. As obras que aqui analisamos constituem, afinal, apenas uma pequena parte

de um conjunto de textos muito maior, em que se podem perceber outros modelos e variantes; a

propósito, observe-se que mesmo os modelos de pastorelas de origem francesa, que têm sido

mais privilegiados pela tradição acadêmica, demandam pesquisas mais exaustivas – é preciso

compreender melhor seu processo de emergência e consolidação, as transformações que sofreram

historicamente, os modos como foram absorvidos por outras tradições poéticas. Sendo assim, este
300

trabalho não pode pretender ser mais do que um tímido passo ao encontro de um vastíssimo

terreno que, em sua maior parte, permanece inexplorado.

Enfim, caso nossa pesquisa enseje novas indagações e questionamentos acerca das

pastorelas alegóricas e de suas variantes – partindo dos pressupostos aqui aventados ou

questionando-os; confirmando ou refutando as hipóteses aqui apresentadas – , consideramos que

nosso objetivo terá sido de algum modo alcançado. O que almejamos, afinal, é o reconhecimento

de que é esse um importante capítulo da história da literatura medieval, do qual muitas páginas

ainda estão para ser escritas – tarefa para a qual não pretendemos ter colaborado com mais do que

um primeiro esboço.
301

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VANCIL, Jack W. Sheep, shepherd. In: FREEDMAN, David Noel (org.). Anchor Bible
Dictionary. Londres: Yale University Press, 1992. v. 5, p. 1187-1190.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Trad. Hilário. Franco Jr. São Paulo: Cia
das. Letras, 2003.
318

VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional:


Casa da Moeda, 1990. Edição fac-similar.

VERGER, Jacques. Abelardo. Escolas no claustro. In: VAUCHEZ, André et al. Monges e
religiosos na Idade Média. Trad. Teresa Pérez. Lisboa: Terramar, 1996.

VERGÍLIO. Bucoliques. Trad. Eugène de Saint-Denis. Paris: Société d’édition Les Belles
Lettres, 2006.

ZINK, Michel. La Pastourelle: poésie et folklore au Moyen Age. Paris: Bordas, 1972.
319

APÊNDICE A - ANTOLOGIA DE PASTORELAS MEDIEVAIS ALEGÓRICAS


(OCCITÂNICAS, MÉDIO-LATINAS E GALEGO-PORTUGUESAS)

Notas prévias

1. Abaixo do nome da pastorela, segue o nome do trovador ao qual é atribuída; em

seguida, apresentamos as edições consultadas, observando os seguintes parâmetros: a

edição que utilizamos para a transcrição ocorre em itálico (demos preferência a edições

críticas geralmente reconhecidas como obras de referência); as outras foram utilizadas

principalmente para cotejo durante a tradução.

2. A classificação dos textos como pastorela alegórica, pseudo-alegórica, etc. segue os

critérios apresentados neste trabalho.

3. Nos casos das pastorelas em occitânico antigo nas quais se observa uma alternância

entre a segunda pessoa do singular e a segunda pessoa do plural, uniformizamos de

acordo com o tratamento predominante em cada caso.


320

ÍNDICE DE PASTORELAS ANTOLOGIADAS

1. L’autrier jost’ una sebissa


Marcabru
(Audiau, I; Paden, 8; De Riquer, IV, 14)
Pastorela alegórica

2. L’autrier, lo primier jorn d’aost


Giraut de Bornelh
(Audiau, II; Paden, 11; De Riquer, XIX, 87)
Pastorela alegórica

3. L’autrier, cavalcava
Gui d’Ussel
(Audiau, VII; Paden, 18)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

4. Dezamparatz, ses companho


Gavaudan
(Audiau, III; Paden, 26)
Pastorela alegórica

5. Per amor soi gai


Guiraut d’Espanha
(Audiau, XVIII; De Riquer, XCV, 283)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

6. L’autre jorn m’anava


Guiraut Riquier
(Audiau, IX; Paden, 134; De Riquer, CXIV, 347)
Pastorela alegórica

7. L’autrier, trobey la bergeira d’antan


Guiraut Riquier
(Audiau, X; Paden, 135; De Riquer, CXIV, 348)
Pastorela alegórica

8. Gaya pastorelha
Guiraut Riquier
(Audiau, XI; Paden, 136; De Riquer, CXIV, 349)
Pastorela alegórica

9. L’autrier, trobei la bergeira


Guiraut Riquier
(Audiau, XII; Paden, 137; De Riquer, CXIV, 350)
Pastorela alegórica

10. D’Astarac venia


Guiraut Riquier
(Audiau, XIII; Paden, 138; De Riquer, CXIV, 351)
321

Pastorela alegórica

11. L’autrier, a l’intrada d’Abril


Guilhem d’Autpol
(Audiau, XXII; Paden, 144)
Pastorela alegórica

12. Ogan, ab freg que fazia


Joan Esteve
(Audiau, XVII; Paden, 163; De Riquer, CXIV, 342)
Pastorela alegórica

13. L’autrier, el gay temps de pascor


Joan Esteve
(Audiau, XV; Paden, 162)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

14. L’autrier, al quint jorn d’Abril


Anônima
(Audiau, XXIII; Paden, 165)
Pastorela pseudo-alegórica

15. Quant escavalcai l’autrer


Anônima
(Paden, 29)
Pastorela alegórica

16. Sole regente lora


Gualterus de Castellione
(Paden, 13)
Pastorela alegórica

17. Estivali sub fervore


Anônima
(Walsh, 19; Hilka-Schumann, 79; Paden, 46)
Pastorela alegórica

18. Lucis orto sidere


Anônima
(Walsh, 51; Hilka-Schumann, 157; Paden, 50)
Pastorela alegórica

19. Vere dulci mediante


Anônima
(Walsh, 51; Hilka-Schumann, 158; Paden, 51)
Pastorela alegórica

20. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela


Pedro Amigo de Sevilha
(Brea 116, 29; B 1098, V 689)
322

Pastorela pseudo-alegórica amorosa

21. Pelo souto de Crecente


João Airas de Santiago
(Brea 63, 58; B 967, V 554)
Pastorela pseudo-alegórica

22. Vi oj’ eu cantar d’ amor


D. Dinis
(Brea 25, 135; B 547, V 150)
Pastorela pseudo-alegórica
323

1. L’autrier jost’ una sebissa


Marcabru
(Audiau, I; Paden, 8; De Riquer, IV, 14)
Pastorela alegórica

1. 1.
L’autrier, jost’ una sebissa, Outro dia, perto de uma sebe,
Trobei pastora mestissa, encontrei uma pastora mestiça
De joy e de sen massissa; repleta de alegria e sensatez;
E fon filha de vilana: era uma filha de camponesa:
Cap’e gonel’e pelissa capa, saia e peliça
Vest e camiza treslissa, vestia, e camisa de tela rude,
Sotlars e caussas de lana. [e] sapatos e meias de lã.

2. 2.
Ves leis vinc per la planissa; Rumo a ela eu fui pelo campo;
“Toza,” fi m’eu, “res faitissa, “Donzela,” disse-lhe eu, “coisa encantadora,
Dol ai gran del ven que·us fissa”. tenho muita aflição pelo vento que vos fere.”
– “Senher, so dis la vilana, “Senhor”, responde a camponesa,
Merce Deu e ma noyrissa, “graças a Deus e à minha ama,
Pauc m’o pretz si·l vens m’erissa, pouco me importa se o vento me eriça,
Qu’alegreta sui e sana.” que estou alegrinha e sadia.”

3. 3.
– “Toza”, fi m·eu, “causa pia, “Donzela”, disse-lhe eu, “criatura piedosa,
Destoutz me suy de la via eis-me desviado do caminho
Per far a vos companhia, para vos fazer companhia,
Quar aitals toza vilana pois uma donzela camponesa como vós
No pot ses plazen paria não pode, sem aprazível companhia,
Pastorgar tanta bestia apascentar tamanho rebanho
En aital luec, tan soldana!” em um lugar como este, tão solitária!”

4. 4.
– “Dons”, dis ela, “qui que·m sia, “Senhor”, disse ela, “quem quer que sejas,
Ben conosc sen o folia; bem conheço o que é senso ou tolice;
La vostra parelharia, “A vossa companhia,
Senher, so dis la vilana, senhor”, assim diz a camponesa,
Lai on se tanh si s’estia, “fique no lugar que lhe cabe,
Que tals la cuj’en bailia pois um tal que quer o poder
Tener, no n’a mas l’ufana!” possuir, não tem mais que fanfarrice.”

5. 5.
– “Toza de gentil afaire, “Donzela de nobre porte,
Cavaliers fon vostre paire cavaleiro foi vosso pai,
Que·us engenret en la maire, que vos engendrou em [vossa] mãe,
Tan fo·n corteza vilana, foi uma tão nobre camponesa
C’on plus vos gart m’etz belaire, que quanto mais vos vejo, mais bem nascida [me pareces],
E per vostre joy m’esclaire – e por vosso amor me regozijo –
Si fossetz un pauc humana!” se fosses um pouco humana!”
324

6. 6.
– “Senher, mon linh e mon aire “Senhor, minha linhagem e minha família
Vey revertir e retraire vejo voltar e retornar
Al vezoig e a l’araire. à foice e ao arado.
Senher, so dis la vilana, Senhor”, assim diz a camponesa,
Mas tals se fai cavalgaire “mas há um tal que se faz cavaleiro,
C’atrestal deuria faire que o mesmo deveria fazer
Los seis jorns de la sematna”. [durante] os seis dias da semana!”

7. 7.
– “Toza, fi m·eu, gentils fada “Donzela”, disse-lhe eu, “uma gentil fada,
Vos adastret, quan fos nada, vos dotou, quando nascestes,
D’una beutat esmerada de uma beleza esmerada
Sobre tot’ autra vilana. sobre a de todas as outras camponesas.
E seria·us ben doblada E [essa beleza] vos seria bem dobrada
Si·m vezi’ una vegada se me visse, alguma vez,
Sobiran e vos sotrana”. por cima, e vós por baixo [de mim].”

8. 8.
– “Senher, tan m’avetz lauzada “Senhor, tanto me haveis louvado
Pois en pretz m’avetz levada, depois que em méritos me haveis exaltado,
Qu’ar vostr’ amor tan m’agrada, que agora vosso amor tanto me agrada,
Senher, so dis la vilana, senhor”, assim diz a camponesa,
Per so n’auretz per soudada “que por isso tereis, como pagamento,
Al partir “bada, fol, bada!”, ao partir: ‘Espera em vão, tolo, espera em vão!’,
E la muz’a meliana!” e a pasmaceira ao meio-dia.”

9. 9.
– “Toza, felh cor e salvatge “Donzela, o cruel coração, e selvagem,
Adomesg’ om per usatje. o homem domestica pelo uso.
Ben conosc, al trespassatge, Bem percebo, neste breve encontro,
Qu’ab aital toza vilana que com uma donzela camponesa como vós
Pot hom far ric companhatge pode o homem fazer uma valiosa parceria
Ab amistat de coragte, com amizade de coração –
Quan l’us l’autre non engana”. quando um ao outro não engana.”

10. 10.
– “Don, hom cochatz de folatge “Senhor, o homem acossado pela intemperança
Jur’ e pliu e promet gatge. Jura e faz promessas e reclama pagamento;
Si·m fariatz homenatge; assim me farias homenagem;
Senher, so dis la vilana, senhor”, diz a camponesa,
Mas ges, per un pauc d’intratge “mas não: por pedágio tão parco
No vuelh mon despiuzelhatge não quero minha virgindade
Camjar per nom de putana!” trocar, pelo nome de prostituta!”

11. 11.
– “Toza, tota creatura “Donzela, toda criatura
Revertis a sa natura: retorna à sua natureza;
Parelhar parelhadura” arranjar uma parelha
Devem eu e vos, vilana, devemos, eu e vós, camponesa,
325

A l’abric lonc la pastura, num abrigo, longe do pasto,


Que mielhs n’estaretz segura que [lá] estareis mais segura
Per far la causa doussana”. para fazer a coisa doce.”

12. 12.
– “Don, oc; mas segon dreitura “Senhor, sim; mas, como é direito,
Cerca fols sa folatura, o tolo procura a tolice,
Cortes cortez’aventura, o cortês, a cortês aventura,
E·l vilas ab la vilana; e o camponês, a camponesa.
En tal loc fai sen fraitura Em tal lugar falha o senso,
On hom non garda mezura, onde o homem não guarda a medida,
So ditz la gens anciana.” assim dizem os mais velhos.”

13. 13.
– “Belha, de vostra figura “Bela, de vossa figura
No·n vi autra plus tafura jamais vi outra mais atrevida,
Ni de son cor plus trefana”. nem de coração mais pérfido [do que o seu]”.

14. 14.
– “Don, lo cavecs vos ahura, “Senhor, a coruja vos augura
Que tals bad’en la peintura que um tal se embevece com a pintura –
Qu’autre n’espera la mana!” enquanto o outro espera pelo maná!”
326

2. L’autrier, lo primier jorn d’aost


Giraut de Bornelh
(Audiau, II; Paden, 11; De Riquer, XIX, 87)
Pastorela alegórica

1. 1.
L’autrier, lo primier jorn d’Aost, No outro dia, o primeiro de Agosto,
Vinc en Proensa part Alest, vim à Provença, além de Alès,
E chivauchava·m, semblan mest, e eu cavalgava com um semblante triste,
Qu’ira·m tenia sobrieira, pois a raiva me havia vencido,
Quan auzi d’una bergieira quando ouvi de uma pastora
Lo chan, just’ un plaissaditz. o canto, perto de alguns arbustos.
E, quar fon suaus le critz E, como fosse suave a voz
Don retendi la ribieira, que ecoava na ribeira,
Vau m’en lai totz esbaytz, eu fui, bastante surpreendido,
On amassava faujeira. até onde ela recolhia samambaias.

2. 2.
E, sitot s’avia pel brost E, embora ela tivesse, por causa do arbusto,
Estrecha·l gonelha que vest, estreitado a saia que vestia,
Ans que li demandes “d’on est?”, Antes que lhe perguntasse: “De onde és?”,
Ela·m tenc a l’estrubieira; ela segurou minha estribeira
Pueis dis me: “per cal dressieira e então me disse: “Por que direção
Vengues ni don es issitz? vieste, e de onde saíste?
Ja·m sembla siatz marritz; Parece-me que estás aflito;
No m’ajatz per trop parlieira, não me tomes por muito faladora,
Que, quar es sols, escharitz, mas, como estás só, desacompanhado,
Ai ben drech que vos enqieira.” tenho decerto o direito de perguntar.”

3. 3.
– “Toza, be·us dirai can que cost, “Donzela, direi, custe o que custar,
Pus tan gen m’en avez enquist, pois tão gentilmente me perguntaste,
Quals aventura·m mena trist: que aventura me entristece:
De bon’ ami’ ay netsieira Necessito de uma boa amiga
Que fos fin’ e vertadieira, que seja leal e verdadeira,
Qu’ eras me sui departitz pois acabo de me separar
D’una fals’ abetairitz de uma falsa enganadora
Que·m fa camjar ma carrieira, que me fez mudar meu caminho,
E fora·m capdels e guitz a que poderia ter sido meu líder e guia
Si no fos tan volatieira”. se não fosse tão volúvel.”

4. 4.
– “Senher francs, ja qui que s’ajost “Nobre senhor, o que se une
Ab ric’ amor non er, per Crist, ao rico amor não ficará, por Cristo,
Sitôt s’a pro auzit e vist, embora muito tenha visto e ouvido,
Ses clam; qu’una cavalieira sem queixar-se; pois uma dama nobre
Vol ben qu’om en fag li mieira decerto quer que se recompensem
Sos bes e·l mais si’ oblitz; suas boas ações, e que as más sejam esquecidas.
Qu’ades no·n siatz garnitz Se não estiveres sempre disposto a atendê-la,
Tornara·us d’autra manieira! ela retornará de outro modo!
327

Qu’estas autras camjairitz Pois estas outras [mulheres] volúveis


Segon tost autra carrieira”. rapidamente [seguem] um outro caminho.”

5. 5.
– “Toza, Dieus vuelha qu’elha m’ost “Donzela, Deus queira que ela me livre
Del mal que tanta pena·m bast do mal que tanta dor me causa
E·n perda·1 dormir e·l depast! e me tira o sono e o apetite!
Mas vos, ab la senha nieira, Mas tu, que tens o negro sinal,
Non crezatz que pus vos qieira. não pense que eu de ti mais exija.
Per so qar gen m’aculitz, Porque tão gentilmente me acolheste,
Vos serai francs e chauzitz; serei para ti nobre e sincero,
Quar coven que·us en refieira pois convém que eu te dê graças
Merces quar no·us en fugitz: porque de mim não fugiste:
De lonh m’avisetz primieira”. à distância, me viste primeiro.”

6. 6.
– “Senher, be m’agra ops drutz que·m sost “Senhor, bem me convém um amante que se abstenha
Del fag, qu’enqueras loc non tast, do ato [sexual], que ainda em lugar nenhum me toque,
Que’l cors ai pauc e de sen cast, que de corpo sou pequena e casta de juízo,
(Si be·us mi fas prezentieira) (ainda que a ti eu possa parecer precoce),
Pueis cug segon ma paubrieira pois cuido que, de acordo com a minha pobreza,
Que’m sia datz bos maritz. me será dado um bom marido.
Mas, quar tan pauc m’enqueritz, Mas, porque tão pouco me pedis,
Farai d’aitan que leugieira, farei como as frívolas,
Qu’ab fis sagramens plevitz pois, como fizeste juramentos sinceros,
Auretz m’amistat entieira”. tereis minha inteira amizade.”

7. 7.
– “Toza, be·n fora gauzitz, “Donzela, isso muito me alegraria,
Mas tant es ferma·1 razitz mas tão firme é a raiz
Que mou de lai, part Lobieira, que de lá brota, além de Louvière,
Que·1 mals, pus s’es endurmitz, que o mal, que está adormecido,
Ai paor que pieitz mi fieira”. de modo ainda pior me fira.”

8. 8.
– “Senher, ges non es arditz, “Senhor, não és bastante bravo,
Quar del mal que·us es fugitz pois o mal que de fugis
Temetz que pueis vos enqieira. temes que novamente te procure.
Mas, pus tan m’es abelhitz, mas, porque és tão agradável para mim,
Sojornem en est’ ombrieira”. repousemos à sombra.”

9. 9.
– “Toza, N’Escaruenh’ es guitz “Donzela, dama Escaruenha é guia
De pretz, que·m det companhieira de valor, que me deu companheira
Cortez’, e fin’ amairitz, cortês, e gentil amante,
Per que·l mals me fug a tieira”. graças a que o mal me foge inteiramente.”

10. 10.
– “Senher, un pauc es fallitz, “Senhor, estás um pouco enganado,
Qu’eras d’autra companhieira pois que pertencias a outra companheira
328

Parletz que fossetz aizitz, há pouco me disseste,


Sitot s’es pus ufanieira”. embora esta seja mais orgulhosa.”
329

3. L’autrier, cavalcava
Gui d’Ussel
(Audiau, VII; Paden, 18)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

1. 1.
L’autrier cavalcava No outro dia, cavalgava
Sus mon palafre, e meu palafrém,
Ab clar temps sere, em tempo claro e sereno,
E vi denan me e vi diante de mim
Una pastorella, uma pastorinha
Ab color fresqu’e novella, de tez fresca e jovem,
Que chantet mout gen, que muito gentilmente cantava
E disia en plaingnen: e dizia, enquanto chorava:
“Lassa! mal viu qui pert son jauzimen!” “Ai! Mal vive o que perde a sua alegria!”

2. 2.
Lai on il chantava Para onde ela cantava
Virei tost mon fre, rapidamente voltei meu freio,
Et il levet se, e ela se levantou,
La soa merce, cortesmente,
Vas mi mout isnela, prontamente em minha direção,
La franca res bon’ e bella, a nobre criatura, boa e bela,
Et eu mantenen e eu de uma vez
Desmontei per onramen desmontei, por cordialidade,
De leis que·m fetz tan bel acuillimen. para aquela que tão belamente me acolheu.

3. 3.

– “Tosa de bon aire, “Donzela de ar gentil”,


Dis eu, ses temer disse eu, sem hesitar,
Prec que·m digas ver, “peço que me digas, em verdade,
Si·us ven a plazer, se te apraz,
Quegna chansos era que canção era
Cella que disïatz era, aquela que entoavas, há pouco,
Quant eu vinc aissi; quando eu cheguei aqui;
Quar anc mais, so vos afi, pois jamais, isso eu asseguro,
Tan ben chantar pastora non auzi”. ouvi uma pastora cantar tão bem.”

4. 4.
– “Seigner, non a gaire “Senhor, não há muito
Qu’eu soli’ aver eu costumava ter
A tot mon voler a todo o meu querer
Tal que·m fai doler, um tal que me faz sofrer
Car non l’ai enquera, porque não mais o tenho,
Mas il m’oblid’ e s’esfera, já que ele me esquece e se excita
Per autra, de mi; por uma outra;
Per qu’eu planc, et atressi e por isso que eu choro, e também
Chan c’oblides la dolor que m’aussi”. canto, para esquecer a dor que me mata.”
330

5. 5.
– “Tosa, ses faillensa, “Donzela, sem falsidade,
Vos dic atrasag eu logo afirmo
Que atretal plag que um conflito igual
Com a vos a fag ao que contra vós fez
Aquel que·us oblida, aquele que vos esquece,
M’a fag una deschausida me fez uma infiel
Qu’eu amava fort. que eu amava intensamente.
Ara m’oblid’al sieu tort Agora ela me esquece, por sua injustiça,
Per un autre, qu’eu volri’ aver mort”. por um outro, que eu gostaria de ter matado.”

6. 6.

– “Seingner, mantenensa “Senhor, encontraste


Trobas del forfag uma compensação pelo malefício
Que·us a fag tan lag que te fez, tão perfidamente,
La fals’ ab cor frag; a falsa de coração dissoluto,
E ve·us m’en aizida, e eis-me pronta
Que·us am a tota ma vida, a amar-te por toda a minha vida,
Si·m n’es en acort; se estás de acordo comigo;
E tornem lo desconort e transformemos o desconforto
C’avem avut en joi et en deport”. que temos em alegria e em prazer.”

7. 7.
– “Franca res grazida, “Nobre e querida criatura,
Ma voluntat n’ai complida, minha vontade está cumprida,
Si·m n’es en acort, se estás de acordo comigo,
De vos que·m faitz a bon port e digo que me fizeste a um bom porto
Venir joios de tot perilh estort”. chegar, feliz e a salvo de todo o perigo.”

8. 8.
– “Seingner, ses faillida, “Senhor, sem mentira,
Estorta m’a e guerida tem-me resgatado e protegido
Vostr’ amors, tan fort seu amor, tão fortemente
Que de nuill mal no·m recort, de que nenhum mal me recordo,
Tan gen m’aves tôt mon mal talan tão gentilmente aniquilaste todo o meu
mort”. ressentimento.”
331

4. Dezamparatz, ses companho


Gavaudan
(Audiau, III; Paden, 26)
Pastorela alegórica

1. 1.
Dezamparatz, ses companho, Desamparado, sem companhia,
E d’amor luenh del tot e blos, inteiramente longe e privado do amor,
Cavalgava per un cambo, cavalgava por um campo,
Marritz e tristz e cossiros, aflito, triste e pensativo,
Lonc un bruelh, tro joys mi retenc ao longo de um bosque, onde me reteve a alegria
D’una pastoressa que vi, por causa de uma pastorinha que vi;
Per qu’ es mos joys renovellatz pelo que, em verdade, renova-se a minha alegria
Quam mi remembre sas beutatz quando relembro sua beleza;
Qu’anc pueyssas d’autra no·m sovenc. depois [de tê-la visto,] de outra não me lembro.

2. 2.
Tost dissendei sobre·1 sablo, Logo desmontei sobre o saibro,
E vinc vas lieys de sautz coytos. e fui em direção a ela, com passos apressados.
Elha·m ders un pauc lo mento Ela eleva um pouco o queixo em direção a mim
Ab un dos ris ferm amoros, com um doce riso, muito amoroso,
E·m dis: “Senher, cossi·us avenc e me diz: “Senhor, o que faz com que
Que·us trastornassetz sai vas mi? vos tenhais desviado em direção a mim?
Quo·us etz tan de mi adautatz? Por que vos comprazeis tanto de mim?
Qu’ieu no say que s’es amistatz, Pois eu não sei o que é a amizade,
Per que·m luenh de vos e m’estrenc”. e por isso eu parto e me afasto de vós.”

3. 3.
– “Toza, joys mi dona razo “Donzela, a alegria me dá o motivo
Per qu’ieu suy sa vengutz a vos: pelo qual eu vim até aqui, para vós:
Quan me mostretz vostro faisso quando me mostrastes vossa face,
Sobre totz jauzens fuy joyos; fui mais feliz que todos os que se regozijam;
Per que mon cor fortz e destrenc é por isso que eu forço e contraio meu coração
Al vostr’ amor, vas cuy m’acli; ao vosso amor, a quem me inclino;
E sia volgutz et amatz e sejam queridas e amadas
Lo mieus joys e·l vostre, si·us platz, a minha alegria e a vossa, se vos apraz,
Que ja mais no rompa ni trenc”. que jamais se rompa ou termine.”

4. 4.
– “Senher, si m’amistat vos do, “Senhor, se vos dou minha amizade,
Yeu aurey nom Na Malafos, terei por nome dama Malévola,
Qu’ieu n’esper melhor guizardo pois eu espero uma melhor recompensa
D’autre, que cug qu’en breu m’espos. de um outro que, penso, será em breve meu esposo.
Dar vos ai d’est cairelh que tenc; Eu vos darei este cajado que tenho;
E tornatz en vostre cami, retornais ao vosso caminho,
Qu’ab autras vos etz ensajatz, que com outras já haveis tentado,
Per semblan, don etz galiatz, mostra-o vosso semblante, que vos enganaram,
Falsas, que fan ric joy sebenc”. pérfidas, que fazem bastarda a rica alegria.”

5. 5.
332

– “Amiga, no·us dic oc ni no “Amiga, não vos digo sim ou não


De las falsas ab cor ginhos, sobre aquelas pérfidas de coração traiçoeiro,
Tan me platz de vos e·m sap bo tanto me aprazeis e me agradais
Que totz mals, da ver, m’en es pros; que todo o mal, na verdade, virá ao meu favor;
En quai que·us vulhatz vos, o prenc, o que quer que desejeis, aceitarei,
Que ieu vos plevisc e·us afi e eu vos prometo e vos garanto
Que vostres suy endomenjatz; que sou vosso servidor;
E faitz de mi so que·us vulhatz, fazei de mim o que quiserdes,
Neys lo cor traire ab un brenc”. mesmo arranqueis meu coração com um espeto.”

6. 6.
– “Senher, qui messonjas a pro “Senhor, aquele que diz mensagens
A ssemblan de ver non es tos; que parecem verdadeiras não é um tolo;
La saviez’ a Salamo a sabedoria para Salomão
Aondera, s’Amors no fos, teria bastado, não fosse o amor,
Que mur e forsa e palenc pois muro, fortaleza e paliçada
Fe de sen, et un franh bassi ele fez de sua sabedoria, mas um vaso partido
No·l valc, quan fo apoderatz; nada disso lhe valeu, quando foi apoderado [pelo amor],
E pus elh ne fo enganatz, e então ele foi enganado;
Guardatz en vos so qu’ieu no prenc”. guardeis, portanto, para vós isso que eu recuso.”

7. 7.
– “Amiga, ab autr’ ochaizo “Amiga, com outro pretexto
Mi tornatz mon joy sus dejos, tornais inversa minha alegria,
Que ja non er ni anc no fo pois nunca acontecerá nem nunca aconteceu
Qu’Amors no sia bon’ als bos: de o amor não ser bom para os bons;
Per qu’ieu de ben amar no·m fenc É por isso que eu não deixo de bem amar,
Que·m don al cor joy clar e fi o que me dá ao coração alegria clara e nobre
De vos, e prec merce m’ajatz, [que vem] de vós; e peço que tenhais mercê,
O’m metrey, si m’o alongatz, se não, se me afastais,
Hermitas el Pueg de Messenc”. serei ermitão no monte Mézenc.”

8. 8.
– “Senher, ja prezic ni sermo “Senhor, conversas nem sermões
Non aya mai entre nos dos: mais haja entre nós dois:
Si m’es amicx, amiga·us so; se sois meu amigo, vossa amiga sou;
Quar tan n’etz lecx et enveyos, como estais tão ávido e ansioso,
Yeu gieti foras et espenc eu expulso e afasto
E de mon cor erguelh comgi. do meu coração o rude orgulho.
Tot aissi cum vos desiratz Assim como desejais,
Er mos joys al vostre privatz, minha alegria pertencerá somente à vossa,
Que ses joy no valh un arenc”. pois sem alegria eu não valho um arenque.”

9. 9.
– “Amiga, ab tant ey assatz: “Amiga, já tenho o bastante:
Per mil vetz s’es mos joys doblatz por mil vezes é dobrada a minha alegria,
Quar en la vostr’ amor atenc”. pois tenho obtido o vosso amor.”

10. 10.
– “Senher, e vos non o digatz, “Senhor, não o digais,
333

Sitot dur cor adomesjatz, embora um duro coração tenhais domesticado,


Als parliers, gola de “las tenc!” aos faladores, gulosos de “As tenho!”
334

5. Per amor soi gai


Guiraut d’Espanha
(Audiau, XVIII; De Riquer, XCV, 283)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

1. 1.
Per Amor soi gai, Pelo Amor sou feliz,
E no·m n’estrairai e não renunciarei
Aitan quan viurai, a ele enquanto viva,
Na Cors Covinen. dama Cors Covinen.

2. 2.
Eu·m levei un bon mati Levantei-me, numa boa manhã,
Enans de l’albeta; antes da alva;
Anei m’en en un vergier fui a um vergel
Per cuillir violeta, para colher violetas,
Et auzi un chan e ouvi um canto
Bel, de luenh; gardan, belo, à distância; olhando [em sua direção],
Trobei pastorela encontrei uma pastorinha
Sos anhels guaran. guardando seus cordeiros.

3. 3.
– “Dieu vos sal, Na pastorela, “Deus vos salve, pastorinha
Color de rozeta. de rósea tez.
Fort me meravill de vos Muito me surpreende
Com estaitz soleta. ver que estais sozinha.
Bliaut vos farai, Vos farei um brial,
Si penre·1vos plai, se vos apraz aceitar,
Menudet cordat delicadamente tecido
Ab filetz d’argen”. com fios de prata.”

4. 4.
– “Per fol vos ai, cavalier, “Por tolo vos tomo, cavaleiro,
E plen d’auradura, e cheio de vaidade,
Quar vos de mi demandas pois de mim demandas
So don non ai cura. o que não me interessa.
Pair’ e maire ai, Pai e mãe tenho,
Et marit aurai, e marido terei,
E, si a Dieu plai, e, se a Deus aprouver,
Far m’aun onramen”. eles haverão de honrar-me.”

5. 5.
– “A Dieu, a Dieu, cavalier, “Adeus, adeus, cavaleiro,
Que mon paire·m crida, que meu pai me chama,
Qu’ieu lo vei la jus arar que eu o vejo abaixo, a arar
Ab bueus sel’ artigua, com bois a terra,
Que semenam blatz; pois nós semeamos trigo;
Cuillirem n’asatz, e colhemos muito,
E, si acaptatz, E, se aceitardes,
Dar vos em fromen”. Nós vos daremos do melhor1.”
335

6. 6.
E quant el l’en vit anar, E, quando ele a viu partir,
Met se apres ela, correu atrás dela,
Pres la per la blanqua man, tomou-a pela branca mão,
Gieta l’en l’erbeta; e deita-a sobre a relva;
Tres vetz la baizet; três vezes a beija;
Anc mot non sonet; não diz nenhuma palavra;
Quan venc al quartet: quando chega à quarta vezinha:
“Senher, vos mi ren”. “Senhor, a vós me rendo.”

1
Os termos que ocorrem no original são blat, termo mais genérico para trigo, e fromen, que se refere à
melhor espécie do cereal.
336

6. L’autre jorn m’anava


Guiraut Riquier
(Audiau, IX; Paden, 134; De Riquer, CXIV, 347)
Pastorela alegórica2

1. 1.
L’autre jorn, m’anava No outro dia, seguia
Per una ribeira, por uma ribeira,
Soletz delichan, solitário, deleitando-me,
Qu’Amors me menava pois Amor me movia
Per aital maneira de tal maneira
Que pesses de chan; que pensava no canto;
Vi gaya bergeira, vi uma alegre pastora
Bell'e plazenteira, bela e agradável
Sos anhels gardan; guardando seus cordeiros;
La tengui carreira, dirigi-me para ela,
Trobei la fronteira encontrei-a frente-a-frente
A for benestan, de um jeito agradável,
E fe·m belh semblan fez para mim uma bela expressão
Al primier deman. quando fiz a primeira pergunta.

2. 2.
Qu’ieu li fi demanda: Pois assim lhe perguntei:
– “Toza, fos amada “Donzela, sois amada
Ni sabetz amar?” ou sabeis amar?” –
Respos mi ses guanda: Respondeu-me sem delongas:
“Senher, autreyada “Senhor, comprometida
Mi suy ses duptar.” eu sou, sem qualquer dúvida”
– “Toza, mot m’agrada “Donzela, muito me agradaria
Quar vos ai trobada, já que vos encontrei,
Si’us puesc azautar.” se pudesse agradar-vos.”
– “Trop m’avetz sercada, “Muito me haveis buscado,
Senher? Si fos fada, senhor? Se tola fosse,
Pogra m·o pessar.” poderia nisso acreditar.”
– “Toza, ges no·us par?” “Donzela, não vos parece bem?”
– “Senher, ni deu far.” “Não, senhor, nem devo fazê-lo.”

3. 3.
– “Toza de bon aire, “Donzela de bom aspecto,
Si voletz la mia se quereis o meu,
Yeu vuelh vostr’amor.” eu quero o vosso amor.”
– “Senher, no·s pot faire: “Senhor, isso não pode ser feito:
Vos avetz amia vós tendes amiga
Et ieu amador.” e eu tenho quem me ame.”
– “Toza, quon que sia “Donzela, seja como for,
Ye·us am, don parria eu vos amo, e por isso pareceria
Que·us fos fazedor.” que eu deveria fazê-lo.”

2
As pastorelas 6, 7, 8, 9 e 10 participam do ciclo de pastorelas de Guiraut Riquier. Encerra o ciclo A Sant
Pos de Tomeiras, obra que não corresponde aos critérios estritos das pastorelas alegóricas, o que justifica
a sua não inclusão nesta antologia; cf. 2.2.2. O ciclo de pastorelas de Guiraut Riquier.
337

– “Senher, autra via “Senhor, outro caminho


Prenetz, tal que·us sia tomai, algum que vos seja
De profieg major.” de melhor proveito.”
– “Non la vuelh melhor.” “Não o quero melhor.”
– “Senher, faitz folhor.” “Senhor, fazeis loucuras.”

4. 4.
– “No folley, Na Toza; “Não faço loucuras, donzela;
Tan m’es abellida tão agradável me sois
Qu’Amors m’o cossen.” que o Amor mo consente.”
– “Senher, fort cochoza “Senhor, estou muito constrangida
Son que fos partida para abandonar
D’aquest parlamen!” esta conversa!”
– “Toza, per ma vida, “Donzela, por minha vida,
Trop es afortida, sois muito teimosa,
Qu’ie·us prec humilmen.” pois eu vos peço humildemente.”
– “Senher, no m’oblida “Senhor, não me esqueço
Tropa for’aunida, de que seria muito humilhada,
Si crezes leumen.” se acreditasse um pouco em vós.”
– “Toza, forsa·m sen.” “Donzela, sinto a força em mim.”
– “Senher, no·us er gen.” “Senhor, não vos será digno.”

5. 5.
– “Toza, que que·m diga, “Donzela, o que quer que me digais,
Non ajatz temensa, não tenhais medo,
Que no·us vuelh aunir.” que não vos quero desonrar.”
– “Senher, vostr’amiga “Senhor, vossa amiga
Suy quar conoyssensa sou, pois o juízo
Vo·n fai abstenir.” vos fez abster-se daquilo.”
– “Toza, quan falhensa “Donzela, quando um erro
Cug far, per sufrensa penso cometer, para que renuncie,
Belh Deport m’albir!” em Belh Deport eu penso!”
– “Senher, mot m’agensa “Senhor, muito me agrada
Vostra benvolensa, vossa benevolência,
Qu’ar vos faitz grazir.” pois vos fazeis agradável.”
– “Toza, que·us aug dir?” “Donzela, que vos ouço dizer?”
– “Senher, que·us dezir.” “Senher, que vos desejo.”

6. 6.
– “Digatz, toza gaya, “Dizei, alegre donzela,
Que·us a fag dir ara Que vos fez dizer agora
Dig tan plazentier?” [algo] tão prazeiteiro?”
– “Senher, on que·m vaya, “Senhor, onde quer que eu vá,
Gays chans se perpara alegres cantos são ouvidos
D’En Guiraut Riquier.” de Guiraut Riquier.”
– “Toza, ges encara “Donzela, ainda não
Lo ditz no·s despara deixou [sua boca] o dito
De qu’ieu vos enquier.” que eu espero de vós.”
– “Senher, no·us ampara “Senhor, não vos protege
Belhs Deportz que·us gara Belh Deport, que vos guarda,
338

De laus esquerrier?” da fama contrária?”


– “Toza, no·m profier.” “Donzela, ela nada me oferece.”
– “Senher, a·us entier.” “Senhor, vos tem por inteiro?”

7. 7.
– “Toza , tot m’afara , “Donzela, tudo me angustia,
May ·N Bertrans m’ampara mas me ampara Bertran
D’Opian l’entier.” D’Opian, o íntegro.”
– “Senher, mal si gara; “Senhor, mal se cuida;
Et iretz vo·n ara, e agora vos ireis,
Don ai cossirier.” pelo que eu sofro.”
– “Toza, sovendier “Donzela, freqüentemente
Aurai est semdier.” tomarei este caminho.”
339

7. L’autrier, trobey la bergeira d’antan


Guiraut Riquier
(Audiau, X; Paden, 135; De Riquer, CXIV, 348)
Pastorela alegórica

1. 1.
L’autrier, trobey la bergeira d’antan; No outro dia, encontrei a pastora de outrora;
Saludei la, e respos mi la bella, Saudei-a, e respondeu-me a bela,
Pueys dis: “Senher, cum avetz estat tan dizendo: “Senhor, como haveis estado,
Qu’ieu no·us ai vist? Ges m’amors no·us gragella? que eu não vos tenho visto? Meu amor não vos comove?
– “Toza, si fa, mai que no fas semblan.” “Sim, donzela, mais do que faço parecer.”
– “Senher, l’afan per que podetz sufrir?” “Senhor, como podeis suportar o afã [da separação]?
– “Toza, tals es qu’aissi m’a fag venir.” “Donzela, tal é que me fez vir aqui.”
– “Senher, et yeu anava vos sercan.” “Senhor, eu vos andava procurando.”
– “Toz’, aissi etz vostres anhels gardan.” “Donzela, aqui estais, guardando vossos cordeiros.”
– “Senher, e vos en passans, so m’albir.” “Senhor, e vós de passagem, assim me parece.”

2. 2.
– “Toz’, al prim jorn fuy vostres, ses mentir, “Donzela, desde o primeiro dia fui vosso, sem mentir;
Pueys del vezer m’an tout afar aizina.” depois, os afazeres me tiraram a oportunidade de vê-la”.
– “Senher, aital vos puesc ieu de mi dir, “Senhor, o mesmo vos posso dizer acerca de mim,
Qu’aissi quo vos m’es fis, vos suy ieu fina.” pois assim como sois leal a mim, sou leal a vós.”
– “Toza, be·m plai quar o sabetz grazir.” “Donzela, muito me agrada que o saibais recompensar.”
– “Senher, si fas tot aissi com s’eschai.” “Senhor, assim faço como é conveniente.”
– “Toza, vulhatz donc tot so qu’ieu volrai.” “Donzela, queirais então tudo aquilo que eu quero.”
– “Senhe·l voler vostre vuelh ben auzir.” “Senhor, quero bem ouvir vosso desejo.”
– “Toza, que vuelh de vostr’amor jauzir.” “Donzela, o que desejo é gozar de vosso amor.”
– “Senher, faitz o lai on no seray.” “Senhor, fazei-o lá onde eu não estiver.”

3. 3.
– “Toza, nulhs joys ses lo vostre no·m plai “Donzela, nenhuma alegria de [qualquer]outra no mundo
D’autra del mon, ni dar no li poiria.” me apraz, se não a vossa, e nem poderia aprazer-me.”
– “Senher, aquo es aissi quon ieu sai; “Senhor, assim é tal qual eu penso;
Mas cavalgatz e tenetz vostra via!” mas cavalgai, segui vosso caminho!”
– “Toza, no vuelh anar; ans dissendrai.” “Donzela, não quero seguir; desmontarei.”
– “Senher, que·us val er quan etz dissendutz?” “Senhor, de que vos valerá que tenhais desmontado?”
– “Toza, sapchatz que serai vostres drutz!” “Donzela, sabei que serei vosso amante!”
– “Senher, si·us plai, entendetz que·us dirai.” “Senhor, se vos apraz, escutai o que vos direi.”
– “Toza, digatz tost, que be·us entenrai.” “Donzela, dizei-me logo, que bem vos entendei.”
– “Senher, sejam que ben siatz vengutz.” “Senhor, sentemos; que sejas bem vindo.”

4. 4.
– “Toza, tan m’es le deziriers cregutz “Donzela, tanto em mim cresceu o desejo
De vos jauzir, qu’ades coven a faire.” e vos gozar, que convém fazê-lo de uma vez.”
– “Senher, quo·us es tan tost dessovengutz “Senhor, como tão rapidamente haveis esquecido
Le vostre Belhs-Deportz? No l’amatz gaire!” de vossa Belh-Deport? Não a amais muito!”
– “Toza, si fas, tant que ja so vencutz.” “Donzela, sim o faço, tanto que me declaro vencido.”
– “Senher, s’o sap, grat vo·n deura saber.” “Senhor, se o sabe, deverá a vós ser grata.”
– “Toza, de trops vils faitz me fa tener.” “Donzela, faz-me de muitos males abster-me.”
– “Senher, per so n’es lauzan mentaugutz.” “Senhor, por isso é que vosso nome recebe elogios.”
340

– “Toza, s’amors autre joy no m’adutz.” “Donzela, vosso amor outra alegria não me concede.”
– “Senher, no·us par que vivatz ses plazer.” “Senhor, não vos parece [bem] que vivais sem prazer.”

5. 5.
– “Toza, no·m vol mos Belhs-Deportz valer, “Donzela, minha Belh-Deport não mais me quer valer,
Ni re no vey el mon que tant me playa.” e coisa nenhuma vejo no mundo que tanto me apraza.”
– “Senher, ben cre que·n sap far son dever “Senhor, bem creio que ela sabe fazer o que lhe cabe,
Si a valor, tant quo dizetz, veraya.” se tem valor, tanto quanto dizeis, verdadeiro.”
– “Toza, tan val que totz m’en desesper.” “Donzela, tanto vale que todo me desespero.”
– “Senher, avetz per lieys nul melluyrier?” “Senhor, por ela não conseguis vantagem nenhuma?”
– “Toza, oc, tal que n muer de dezirier.” “Donzela, sim, e tal morro de desejo.”
– “Senher, ans n’es mentaugutz de saber.” “Senhor, mas sois famoso por vosso entendimento.”
– “Toza, que·m val, pus joy no·n puesc aver?” “Donzela, de que me vale, se não posso ter seu gozo?”
– “Senher, loy jo perdetz per cor leugier.” “Senhor, o gozo perdestes por vosso coração leviano.”

6. 6.
– “Toza, ·1 cor ai leyal e vertadier “Donzela, tenho o coração leal e verdadeiro
Vas lieys, don mortz deziran me guerreya.” para ela, e por isso me ataca a morte, [a mim] desejante.”
– “Senher, tant aug dir d’En Guiraut Riquier, “Senhor, tanto ouço falar sobre Guiraut Riquier,
Que, si no·us val, no fa ren que no deya.” que, se não vos vale, não age como deveria.”
– “Toza, no fan a creire lauzengier.” “Donzela, os faladores não devem ser levados em conta.”
– “Senher, per mi sai tot vostre talan.” “Senhor, sei por mim toda a vossa vontade .”
– “Toza, be·us am, mas vos m’anetz trufan.” “Donzela, bem vos amo, mas vós me haveis burlado.”
– “Senher, autra n’ametz atertant yer.” “Senhor, outra do mesmo modo amastes ontem.”
– “Toza, vau m’en que no m’avetz mestier.” “Donzela, vou-me, já que não necessitais de mim.”
– “Senher, anatz et veja·m vos autr’an!” “Senhor, ide; vejamo-nos em outro ano!”
341

8. Gaya pastorelha
Guiraut Riquier
(Audiau, XI; Paden, 136; De Riquer, CXIV, 349)
Pastorela alegórica

1. 1.
Gaya pastorelha Alegre pastorinha
Trobey l’autre dia, encontrei no outro dia,
En una ribeira, em uma ribeira:
Que per caut la belha devido ao calor, a bela
Sos anhels tenia seus cordeiros guardava
Desotz un’ombreira: sob a sombra;
Un capelh fazia um coroa fazia
De flors e sezia de flores, e estava sentada
Sus en la fresquiera. mais acima, num lugar mais fresco.
Dissendey en via, Desmontei no caminho,
Que s’amor volia pois desejava seu amor
En calque rnaneira. de qualquer maneira.
Ylh fon prezenteira, Ela foi agradável,
Sonet me primeira. e me falou primeiro.

2. 2.
Dissi li: “Poiria Disse-lhe: “Poderia
De vos solatz traire gozar de vosso prazer,
Pus m’es agradiva?” já que me sois agradável?”
– Ylh dis que queria – Ela disse queria
Amie de bon aire, um amigo de boa linhagem,
Nueg e jorn pessiva e nisso pensava noite e dia.
– “Toza, ses cor vaire, “Donzela, sem coração volúvel,
E senes estraire, e sem infidelidade
M’auretz tant quan viva.” me tereis, enquanto viverdes.”
– “Senher, be·s pot faire, “Senhor, isso bem pode ocorrer,
Quar, a mon vejaire, pois, a meu ver,
Amors vos abriva.” o Amor vos constrange.”
– “Toza, oc, esquiva.” “Donzela, sim, [o amor] esquivo.”
– “Senher, be ys sobtiva.” “Senher, [o amor] que é súbito.”

3. 3.
– “Toza, s’ans de gaire “Donzea, se sem demora
No m’en faitz valensa, não me socorrerdes,
Vostr’amors m’esglaya.” seu amor me fará sofrer.”
– “Senher, ab maltraire “Senhor, com o sofrimento
Conquer hom guirensa, conquista o homem a segurança,
Donc espers vos playa.” por isso deveis esperar.”
– “Toza, tant m’agensa “Donzela, tanto me praz
Vostr’amors e·m tensa, vosso amor, e me aflige,
Qu’ops m’es qu’ades l’aya.” que preciso obtê-lo de uma vez.”
– “Senher, en parvensa “Senhor, aparentemente
Mai no m vis; falhensa vós nunca me vistes: um erro
Faria savaya.” vil assim se comete.”
342

– “Toza, ·1 vista·m playa.” “Donzela, vossa visão me agrada.”


– “Senher, donc no ys gaya?” “Senhor, não vos alegra?”

4. 4.
– “Toza, tant comensa “Donzela, tanto começa
L’Amors ab martire, o Amor com martírio,
Qu’ops m’es vostr’ajuda.” que preciso de vossa ajuda.”
– “Senher, ab temensa, “Senhor, com temor
M’avetz en dezire me haveis desejado
Bien quatr’ans tenguda.” já bem por quatro anos.”
– “Toza, no m’albire “Donzela, não creio
Qu’ie’us vis mai; no·us tire que vos tenha jamais visto; que não vos desagrade
Si ar etz ma druda!” se fordes, agora, minha amante.”
– “Senher, be·us puesc dire “Senhor, bem vos posso dizer
Que·n faretz mans rire: que muito vos farei rir:
Suy desconoguda?” sou desconhecida?”
– “Toz’, etz esperduda?” “Donzela, sois desvairada?”
– “Senher, non, ni muda!” “Senhor, não, nem muda!”

5. 5.
– “Toza, no·m cossire “Donzela, por mais que pense,
Tant qu’aisso entenda: não consigo entender isso:
Etz ges la chantada?” sois acaso a cantada [por mim]?”
– “Senher, quan que·us tire, “Senher, ainda que vos desagrade,
Pro er qu’ie·us car venda melhor será que vos faça pagar caro
Vostr’ amor malvada.” vosso malvado amor.”
– “Na toza, contenda “Donzela, contendas
Ai ab vos d’emenda tenho convosco sobre esse assunto
Totaz vetz trobada.” todas as vezes em que vos tenho encontrado.”
– “Senhe· N Guiraut, renda, “Senhor Guiraut Riquier, convém
Riquier, tanh que·us renda que vos pague isto que lhe devo,
Aital, quar suy fada. já que sou néscia.”
– “Toz’, ans etz membrada.” “Não, donzela, sois sensata.”
– “Senher, s’o m’agrada!” “Senhor, isso me agrada!”

6. 6.
– “Toza, tal fazenda “Donzela, tenho um afazer
Ai qu’ops m’es que·y tenda; que me obriga a partir;
A Dieu siatz dada!” ficai com Deus!”
– “Senher, aissi·us prenda “Senhor, que igualmente vos mantenha
Per tot ses emenda; por todos os lugares, sem danos;
E ve·us vostr’ estrada.” eis aqui o vosso caminho.”
– “Toza, etz irada.” “Donzela, estais contrariada?”
– “Oc, per vostr’anada.” “Sim, por vossa partida.”
343

9. L’autrier, trobei la bergeira


Guiraut Riquier
(Audiau, XII; Paden, 137; De Riquer, CXIV, 350)
Pastorela alegórica

1. 1.
L’autrier, trobei la bergeira No outro dia, encontrei a pastora
Que d’autra vez ai trobada, que havia encontrado outra vez
Gardan anhels, e sezia, guardando cordeiros, e estava sentada,
E fon de plazen maneira; e agia de maneira agradável;
Pero mont fon cambiada, mas estava muito mudada,
Quar un effant pauc tenia, pois tinha uma pequena criança
En sa fauda, que durmia, em sua saia, que dormia,
E filava cum membrada. e fiava como uma pessoa sensata.
E cugey que·m fos privada E cuidei que me fosse íntima
Per tres vetz que vist m’avia, pelas três vezes que me havia visto,
Tro vi que no·m conoyssia, mas vi que não me reconhecia,
Que·m dis: “Lai laissatz l’estrada?” pois me disse: “Deixastes lá a estrada?”

2. 2.
– “Toza, fi·m yeu, tant m’agrada “Donzela”, eu disse, tanto me agrada
La vostra plazen paria, vossa prazenteira companhia,
Qu’er m’es ops vostra valensa.” que preiso agora de vossa ajuda.”
Elha·m dis: “Senher, ta fada Ela me disse: “Senhor, tão tola
No suy quo·us pessatz que sia, não sou quanto pensais que seja,
Quar en als ai m’entendensa”. pois em outra coisa está meu juízo.”
– “Toza, faitz hi gran falhensa, “Donzela, cometeis assim um grande erro:
Tant a que·us am ses falcia”. há tanto vos amo sem falsidade.”
– “Senher, tro en aquest dia “Senhor, até este dia
No·us vi, segon ma parvensa”. nunca vos vi, segundo me parece”.
– “Toza, falh vos conoyssensa?” “Donzela, falha vosso conhecimento?”
– “Senher, non, qui m’entendia” “Senhor, não, para o que me entende.”

3. 3.
– “Toza, ses vos no·m poiria “Donzela, sem vós não poderia
Res dar d’aquest mal guirensa; coisa nenhuma dar-me refúgio deste mal;
Tant a que m’etz abellida”, há tanto tempo me agradais”,
– “Senher, aital me dizia “Senhor, assim me dizia
En Guirauts Riquiers ab tensa, Guiraut Riquier, com insistência,
Mas anc no·n fuy escarnida”. mas nunca fui enganada por ele”.
– “Toza, ·N Guirauts no·us oblida, “Donzela, Guiraut não vos esquece,
Ni·us pren de mi sovinensa?” não vos recordais de mim?”
– “Senher, mai que vos m’agensa “Senhor, mais que vós me agradam
Elh e sa vista grazida”. ele e sua agradável visão”.
– “Toza, ben trop l’es gandida”. “Donzela, muito vos haveis esquivado dele”.
– “Senher, si ven, be cre·m vensa”. “Senhor, se ele vier, creio que me vencerá”.

4. 4.
– “Toza, mos gaugz se comensa “Donzela, inicia-se o meu gozo,
Quar selh per qui etz auzida pois aquele pelo qual sois ouvida
344

Chantan suy hieu, ses duptansa”. cantando sou eu, sem dúvida.”
– “Senher, non etz, ni crezensa “Senhor, não sois, nem acreditaria
No n’auria e ma vida nisso em minha vida,
Ni neys no n’avetz semblansa”. pois não tendes nenhuma semelhança com ele.”
– “Toza, Belhs Deportz m’enansa “Donzela, Belh Deport me exalta,
Que·us es tres vetz aütz guida”. a que vos tem sido guia, por três vezes.”
– “Senher, res non es la crida, “Senhor, coisa nenhuma é a fama,
Trop vos cujatz dar d’onransa”. muito vos preocupais com honrarias.”
– “Toz’, avetz de mi membransa?” “Donzela, tendes lembranças de mim?”
– “Senher, oc, mais non complida”. “Senhor, sim, mas não muitas.”

5. 5.
– “Toza, ye·us ai embrugida “Donzela, eu vos fiz conhecida
E tenc m’o a gran pezanza; e tenho grande pesar;
No·us pessetz pus vos enqueira”. não penseis que mais vos demande.”
– “Senher, be·m tenc per fromida “Senhor, tenho-me por satosfeita,
Qu’eras ai preza venjansa porque agora já me vinguei
De l’autra vista derreira”. de nosso último encontro.”
– “Toz’, ab qui etz parieira “Donzela, com quem tivestes
En l’efant? Es d’alegransa?” esta criança? É uma alegria?”
— “Senher ab selh, qu’esperansa “ Senhor, com aquele que, espero,
N’ai de mais, que·m pres en gleira”. me dará mais, que me tomou na igreja.”
– “Toza, quo·us giec en ribeira?” “Donzela, como o deixais na ribeira?”
– “Senher, quar es ma uzansa”. “Senhor, esse é meu costume.”

6. 6.
– “Poiriam far acordansa “Poderíamos fazer um acordo,
Amdos, toza plazenteira, nós dois, agradável donzela,
Si n’eratz per mi celada?” se eu o guardasse em segredo?”
– “Senher, non d’autr’ amistansa “Senhor, não com outra amizade
Que·ns fem a la vetz primeira, que não aquela que tivemos na primeira vez,
Pus tro aissi·m suy gardada”. pois até agora me tenho guardado.”
– “Toza, be·us ai assajada, “Donzela, vos tenho testado,
E truep vos de sen entieira”. e vos encontro com o juízo íntegro.”
– “Senher, s’ieu ne fos leugeira, “Senhor, se eu fosse leviana,
Mal m’agratz vos assenada”. não me teríeis por sensata.”
– “Toza, vau far ma jornada”. “Donzela, seguirei minha jornada.”
– “Senher, mete·us en carreira!” “Senhor, segui o [vosso] caminho!”
345

10. D’Astarac venia


Guiraut Riquier
(Audiau, XIII; Paden, 138; De Riquer, CXIV, 351)
Pastorela alegórica

1. 1.
D’Astarac venia, De Astarac eu vinha
L’autrier, vas la Ylla no outro dia, até a Ilha
Pel camin romieu, pelo caminho dos romeiros,
E pres de la via, e perto do caminho,
Desotz una trilla, sob uma parreira,
Vi, e no·m fon grieu, e, e não me foi desagradável,
La bergeira mia a minha pastora
Que sec ab sa filha. que estava sentada com a sua filha.
Conoc me tan lieu, Logo me reconheceu,
Ris, si be·s planhia, e sorriu, embora se lamentasse,
E·s det meravilha, e admirou-se,
Comandet s’a Dieu. e encomendou-se a Deus.
Tost dissendi yeu; Rapidamente, desmontei;
Ylh fon se levada, ela levantou-se
Tornet el loc sieu, e retornou ao seu lugar,
Quan l’aie saludada. quando eu já a tinha saudado.

2. 2.
Vi la fort camjada Vi-a muito mudada
Vas que ja fon bella; em comparação à bela que foi;
Dissi: “Don vinetz?” Disse: “De onde vindes?”
– “Senher, tan senhada “Senhor, tal sinal
Suy, de Compostella trago que podeis ver
Que·us o conoyssetz”. que venho de Compostela.”
– “Pus vos ai trobada, “Pois vos tenho encontrado,
Gomtatz me novella contai-me as novidades
De lai, si sabetz”. de lá, se sabeis [alguma].”
– “Senher, vas Granada “Senhor, vai para Granada
Val Reys de Castella; o rei de Castela;
Doncx tost lai tenetz!” ide logo para lá!”
– “Dona, que dizetz? “Senhora, que dizeis?
Qu’ieu no crey que fassa”. Eu não creio que o faça.”
– “Senher, mout falhetz “Senhor, muito errastes
Non seguen sa trassa”. não seguindo essa trilha.”

3. 3.
– “Enquer no·us espassa, “Não vos haveis ainda livrado”,
Fi·m yeu, la maneira eu disse, “desse costume
De mi a chuflar?” de burlar de mim?”
– “Senhe· N Guiraut, lassa, “Ai, senhor Guiraut Riquier,
Riquier, no·m bergeira já não sou pastora
Suy d’aquest chantar”. para este cantar.”
– “De mi penre·us plassa “Que vos agrade receber
L’alberga enteira de mim toda a hospitalidade
346

Anueg, e·l jogar”. e o jogo [amoroso], nesta noite.”


– “Senher, per Dieu, massa “Senhor, por Deus,
M’avetz per leugeira: me tendes por ligeira:
No·us cal covidar!” não vos convém convidar-me!”
– “Dona, ges no·m par “Senhora, me parece
Ajatz de mi cura”. que não vos preocupais comigo.”
– “Senher, non d’amar, “Senhor, não em quanto a amar,
Ni no·m fa frachura”. [isso] não me faz falta.”

4. 4.
– “Tot farai rancura “Farei muita queixa
De vos, quar m’es brava, de vós, porque és rude comigo,
Hueymais, en chantan”. de hoje em diante, em meu cantar.”
– “Senher, per drechura, “Senhor, por justiça,
De Dieu, si·us membrava, sobre Deus, se vos lembrasses,
Fosson vostre chan!” seria o vosso canto!”
– “Dona, ges vilhura “Senhora, tal vilania
Non ai, qui·m jutjava não cometi, se corretamente
Dreg, que·m des soan”. me julgas, que a isso me inspire.”
– “Senher, ab mezura “Senhor, a moderação
Ges bos sens no·us trava, não vos impõe a sensatez ,
Ni canas, ni an”. nem as cãs, nem os anos.”
– “Dona, per semblan, “Senhora, pelo que parece,
Mal me cujatz dire”. pensais em falar mal de mim.”
– “Senher, no·us ten dan: “Senhor, não vos causará dano:
Tant es bos sufrire!” bem sabeis sofrer!”

5. 5.
– “Pro femma, que·us tire “Gentil mulher, que vos importune
Non ai dig encara; nada hei dito;
Per que·m dizetz mal?” por que dizeis mal de mim?”
– “Senher, ai dezire “Senhor, tenho o desejo
Tencssetz per amara de que tenhais por amarga
Via temporal”. a vida temporal.”
– “Per ren no m’albire “Não me parece, de modo algum,
Qu’om veya la clara, que alguém possa ver [a vida] clara
Per sermon aital”. por tal sermão.”
— “Senher, mo martire “Senhor, meu martírio
Doblatz parlan ara, duplicais falando agora,
Et a vos no val”. e para vós isso de nada vale”
– “Per totz temps vos sal “Por todo o tempo vos salve
Dieus ! Pus no·us diria”. Deus! Mais não vos direi.”
– “Senher, no m’en cal. – “Senhor, não me importa.
E nom de Dieu, via!” Ide, em nome de Deus!”
347

11. L’autrier, a l’intrada d’Abril


Guilhem d’Autpol
(Audiau, XXII; Paden, 144)
Pastorela alegórica

1. 1.
L’autrier, a l’intrada d’Abril, No outro dia, no começo de abril,
Per la doussor del temps novelh, pela doçura da nova estação,
Per gauch del termeni gentil, e da alegria dessa gentil época,
M’anava sols per un pradelh; eu caminhava sozinho por um prado;
En un deves, prop d’un cortil, num espaço cercado, perto de um pasto,
Trobey pastor’ab cors yrnel; encontrei uma pastora de coração desembaraçado;
Vestida fon d’un nier sardil estava vestida com sarja negra
Ab capa grizeta ses pelh; e com uma capa cinzenta sem forro;
Bell’es e genta; era bela e gentil;
S’amors m’atalenta, seu amor me apraz,
Tant es covinenta; sendo ela tão graciosa;
E fes un capelh e fez uma coroa
De flor ab menta; de flores e menta;
Sola si contenta sozinha, entretém-se
Jost’un arborelh; perto de uma pequena árvore;
Ab si meteyssa dish: “Ay! consigo mesma, diz: “Ai!
Sola suy e·l temps s’en vay! Estou sozinha e o tempo passa!
Lassa! be planc ma joventa Ai de mim! Muito lamento por minha juventude,
Quar non ay amic veray.” pois não tenho amigo verdadeiro.”

2. 2.
Yeu que vi son gay cors barnil, Quando percebi seu coração nobre e alegre,
Saludiey la, quar mi fon belh, saudei-a, pois me pareceu bela,
Et elha·m respos tost e vil, e ela me respondeu, de modo rápido e apressado,
Co ssi fos dona de castelh: como se fosse castelã:
“Joglar, vos qu’avetz sen sotil, “Jogral, vós que tendes sensível o juízo,
Trobatz qui’us onre ni’us apelh? encontrastes quem vos honre ou vous chame?
Anc pueys qu’Amors perdet son fil, Depois que o Amor perde o seu caminho,
Pretz non ac valor ni capdelh; não tem mais mérito, valor ou guia;
Ans s’espaventa em vez disso, se aflige
Falsa gens manenta, a falsa gente rica,
S’om gays lor prezenta se alguém lhes oferece alegria,
Solatz ni sembelh. diversão e jogos.
Be·n suy dolenta, Muito sofro,
S’anc n’estiey jauzenta, embora outrora tenha sido feliz,
D’amor que·m turmenta pelo amor que me atormenta
De jos mo sagelh. sob o meu segredo.
De ben amar no·m partray, De bem amar não cessarei,
Ni per tan no·m layssarai bem por tanto deixarei
Qu’en totz plazers non cossenta que todo o prazer não consinta
A mon amic, quan l'auray.” ao meu amigo, quanto o tiver.”

3. 3.
“Na toza, pros et avinens “Donzela, sois valorosa e graciosa,
348

Etz, e faitz de mi vostre drut! fazei de mim vosso amante!


Qu’ie·us seray leyals e temens, Que vos serei leal e obediente,
E ja per mi no·n er sauput; e por mim disso ninguém terá conhecimento;
E far vos ay nous vestimens vos farei [fazer] novas roupas,
Quant aja mon rossi vendut: depois de vender o meu cavalo:
E ja negus vostre parens e nenhum dos vossos pais
No sabra don vos er vengut. saberá de onde essas coisas vos chegaram.
Gans e sentura Luvas e um cinto
Per bon’aventura por um feliz acaso
Vos port de mezura vos trago, na certa medida,
Ab frontal crocut; e uma tiara curvada;
E si·l temps dura E, se prolongar-se o tempo [do nosso amor],
Auretz vestidura vos farei um vestido
De brunet’ escura ; de tecido marrom escuro;
Mais, si Dieus m’ajut, Ademais, se Deus me ajudar,
Autras joventas no·n port; outras jovens não terei;
Mas ieu d’aisso vos conort eu vos garanto
Que d’amic seretz segura.” que deste amigo podereis estar segura.”
– “Senher, et yeu o vuelh fort. “Senhor, eu o desejo fortemente.

4. 4.
Joglar, grans es l’esernimens “Jogral, grande é a distinção
Qu’ie·us vey, et ay ben conogut que em vós vejo, e tenho bem sabido
Que, s’ieu complis vostres talens, que, se eu cumprir vossos desejos,
Ja no·us agra de miey perdut; jamais vos perderei, nem em parte;
E, sitot s’es l’aculhimens E, se embora tenhais sido bem acolhido,
Belhs, nius ay gay solatz tengut, e eu tenha [convosco] alegre companhia,
S’ay marit, no m’autreya·l sens se eu tiver um marido, não me permita a sensatez
Qu’ieu ja·l fassa per vos cornut; que eu o faça cornudo, por vós;
Qu’ieu non ai cura eu não tenho necessidade
D’amic ses dreitura, de um amigo sem retidão,
On peccatz s’atura pois aquele que peca se alia
De mala vertut; ao vício;
Ans, se melhura pelo contrário, se melhor
Mos faitz, en dossura eu me faço, na [minha] doçura
No·m fara fraitura não haverá falha
·1 temps qu’ai despendut, conforme passar o tempo,
Que fraire Johans ditz fort pois frei Johan bem diz
Que deliegz engenra mort; que o prazer engendra a morte;
Yeu sent mi casta e pura; eu me sinto casta e pura;
Per que·n faria a Dieu tort?” porque faria mal a Deus?”

5. 5.
– “Toza, si Dieus mi perdo, – “Donzela, se Deus me perdoa,
Trop sabetz mais de Cato, mais sabeis que Catão,
Qu’ieu no say plus greu fazenda pois eu não conheço pior ocupação
Que servir ses gazardo.” que servir sem recompensa.”

6. 6.
– “Senher, be sabem quals so – “Senhor, bem sabemos o que são
349

Falsas promessas ses do, as falsas promessas, sem dons,


Qu’ieu non ai cor que·us don renda; assim, não tenho a intenção de vos pagar tributo;
E faitz alhor vostre pro!” procurai lucro em outro lugar!”
350

12. Ogan, ab freg que fazia


Joan Esteve
(Audiau, XVII; Paden, 163; De Riquer, CXIV, 342)
Pastorela alegórica

1. 1.
Ogan, ab freg que fazia, Este ano, pelo frio que fazia
En la chalenda d’Abril, nas calendas de Abril,
D’Olargue pel boy venia de Olargue pelo bosque vinha
Sols cavalgan, tost e vil; cavalgando, só, rápido e apressado;
E vi de pres d’un cortil e vi, perto de um pasto,
Vaquieyra, uma vaqueira,
Ab una vaca sotil que uma magra vaca
Et ab so vedelh com seu bezerro
Que gardava; guardava;
Et horava e orava
Mout devotamens, muito devotamente,
E bayssava, e se abaixava
E levava, e se levantava
Co fay contenens. como faz o que jejua.

2. 2.
Ves lieys tengui dreg, l’estrada Rumo a ela segui direto, a estrada
Laissiey e mon dreg cami. deixei e o meu reto caminho.
Quan me v·il gen faissonada Quando me viu vir, a formosa
Venir, s’orazo feni; terminou sua oração;
Saludiey·l ez elha mi, saudei-a, e ela a mim,
La genta, e a gentil
Em senhet e·m benezi, me abençoou e me bendisse,
Co ssi mort me vis. como se me visse morto.
– “Toza cara, “Querida donzela,
Que· us fai ara que fazeis agora
Si me benezir?” assim, ao me benzer?
– “Senher, car a “Senhor, a
Vostra cara vossa face
Semblan de murir.” parece a de quem morre”

3. 3.
– “Toza, vos qu’etz plazenteira “Donzela, vós que sois agradável
No·m digatz mon desplazer, não digais o que me desagrada,
Qu’ie·us port amor vertadiera; que eu por vós tenho amor verdadeiro:
Siatz ab me d’un voler.” participai de meu desejo.”
– “En Dieu ajatz vostr’esper, “Em Deus depositai vossa esperança,
Que vida, que vida,
Senher, no·us conosc per ver. senhor, que em verdade, em vós não percebo vida.
Membre·us de la mort!” Lembrai da morte!
– “Toza, gaire, “Donzela,
Per mon paire, por meu pai,
Vos no·m conortatz.” vós não me reconfortais bastante.”
– “Senher fraire, “Senhor, irmão,
351

A mal aire um mal aspecto


·Us vey, de que·m desplatz.” vejo em vós, que me desagrada.”

4. 4.
– “Vos m’en guerretz leu, Na Toza, “Logo serei por vós curado, senhora,
Si m’autreyatz vostr’amor.” se vosso amor me concederdes.”
– “Senher, de Dieu suy espoza, “Senhor, de Deus sou esposa
Q’ieu no vuelh autre senhor,” e não desejo outro senhor.”
– “Toz’, an vos facha Menor “Donzela, vos fizeram os [frades] menores
Bechina?” uma beguina?”
– “Senher, pel Rey qu’ieu azor, “Senhor, pelo Rei que eu adoro,
Non, mais per mon cor não, mas através de meu coração
Vuelh servire, quero servir
Tro·1 fenire, até morrer
Aquelh que per nos Aquele que por nós
Volc sufrire quis sofrer
Ab martire pelo martírio
Greu mort en la cros.” uma morte cruel na cruz.”

5. 5.
– “Quar servir Dieu vos agensa, “Porque servir a Deus vos agrada,
Toza, n’ai gran alegrier.” donzela, tenho grande alegria.”
– “Senher, mortz me fai temensa “Senhor, a morte me amedronta,
Q’uey non es vius qui·u fo yer; pois hoje não está vivo quem ontem estava;
Q’us no sap jorn vertadier pois ninguém conhece seu dia, em verdade,
Ni hora; nem sua hora;
E pert lo dous gaug entier, e perde a doce alegria por inteiro
Qui mor en peccat.” aquele que morre em pecado.”
– “Toza gaya, “Alegre donzela,
A Dieu playa, apraza a Deus,
Si quo·l mon soste, que o mundo sustenta,
Que savaya que morte terrível
Mortz no·ns traya!” não nos carregue!”
E viriey mon fre. E voltei meu freio.

6. 6.
Con que vaya Onde quer que vá
Guilem, gay a Guilem de Lodeva,
De Lodev’ ab se tem consigo o alegre
Pretz qu’esmaya valor que esmaece
Gen savaya a gente vil
E·ls valens mante. e socorre os valentes.

7. 7.
Mon Belh-Ray a Minha Belh-Ray tem
Ta veraya tão verdadeira
Beutat qu’om non cre, beleza que ninguém crê,
Sol que l’aya só quem a tenha
Vista, n’aya visto, que a tenha
Tan lunh’autra re. qualquer outra criatura.
352

13. L’autrier, el gay temps de pascor


Joan Esteve
(Audiau, XV; Paden, 162)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

1. 1.
L’autrier, el gay temps de Pascor, No outro dia, no feliz tempo da Páscoa,
Quant auzi·ls auzelhetz chantar, quando ouvi cantarem os passarinhos,
Per gaug que·m venc de la verdor pela alegria que me vem do verdor,
M’en yssi totz sols delechar; parti sozinho, a deleitar[-me];
Et en un pradet, culhen flor, e em um pequeno prado, colhendo flores,
Encontrey pastora ses par, encontrei uma pastora sem par,
Cuend’e plazen, graciosa e gentil,
Mot covinen, muito formosa,
Anhels seguen, serguindo os cordeiros,
La flor culhen. as flores colhendo.
Dizia Dizia
Qu’anc dia que até aquele dia
De far amic non ac talen, de fazer um amigo não tivera desejo,
Quar via pois acreditava
S’en cria ser esse o caminho
Don malvestatz pren nayssemen. onde nasce a maldade.

2. 2.
Saludiey la, quar a gensor Saudei-a, pois uma [jovem] graciosa
No cre qu’om vis anhels gardar, não creio que já se viu a guardar cordeiros,
Et elha mi, don ac paor, e ela a mim, mas temerosa,
Quar no·m vi, tro m’auzi parlar; pois não me viu antes de me ouvir falar;
E dis: – “Senher, no m’a sabor e disse: “Senhor, não me agrada
Quar etz aissi faitz vostr’ anar. que tenhais vindo aqui caminhar.
Pecx etz de sen, Tens falho o juízo;
Non per joven não pela juventude
A Dieu mi ren! guarde-me Deus!
Qu’anatz queren? Que procurais?
Parria Parece-me
Qu’espia que espião
Fossetz de qualque folha gen, sois de quaisquer tolas gentes,
O·us guia ou que vos guia
Falsia a falsidade
Del fals plazer qu’Amors desmen.” do falso prazer que o Amor desmente.”

3. 3.
– “Greu pot hom jutjar per semblan, “Dificilmente pode o homem julgar pela aparência,
Toza, fi·m yeu, senes falhir; Donzela”, eu disse, “sem falhar;
Quar mant bo ten hom per truan, pois muitos têm bons homens por traiçoeiros,
E mant malvat vey mout grazir, e muitos malvados vejo muito agradar,
Per que·us prec d’ayssi enan por isso, vos peço que desejeis,
Vulhatz, ans que parletz, auzir! antes de falar, ouvir-me!
Que ieu non so Pois eu não sou
Sers d’ochaizo; servo de pretextos;
353

Mas, si·us sap bo, mas, se vos parece bom,


M’amor vos do”. meu amor vos entrego”.
– “Trobada “Em encontrar
Pus fada [jovem] mais tola
Vos agr’ops, Senher, acsetz. No vós haveis falhado, Senhor. Não
M’agrada. me agrada.
L’estrada A estrada
Seguetz, anatz, faitz vostre pro!” segui, andai, buscai vosso favor!”

4. 4.
–“Toza, fi·m yeu, ans que m’en an, “Donzela”, eu disse, “antes que me vá,
Vos faray lo dous joc sentir vos farei sentir o doce jogo
Qu’entre amigua et aman que entre amiga e amante
Se fai; mar ges no·us vuelh aunir. se faz; mas não vos desejo ferir.
Tan mi platz vostra beutatz gran Tanto me apraz vossa grande beleza
Qu’estiers de vos no·m vuelh partir”. que sem vós não desejo partir.”
–“Qui·m mou tenso “O que me fala
D’aital razo de tal motivo
No sap qui·m so, não sabe quem eu sou,
Senher, ni co Senhor, nem como
Irada, irada,
Torbada, contrariada,
M’en fes l’autrier un folh cusso! outro dia eu tratei um tolo malicioso!
Mainada Com uma jovem
Blasmada desonrada
No vuelh e mi aja parsso”. não quero parecer.”

5. 5.
– “Toza cuenhta, tal que·m vejatz, “Graciosa donzela, tal como me vedes,
Be·us valrai y eu mais que pus belh, bem vos valeria mais que um mais belo do que eu,
Que d’aver suy rics e bastatz, pois sou rico e favorecido,
E far vos n’ai part, cors yrnelh! e vos farei partilhar disso, cativante jovem!
Perque·us prec que m’amor vulhatz Por isso, vos peço que queirais meu amor,
E fassam lo dous joc novelh, e façamos o doce e novo jogo
Ins el jardi, no jardim,
Lai sotz selh pi, lá sob o pinheiro,
Que mais ses fi pois assim mais
Valretz per mi”. valereis para mim”.
–“Ma pensa “Meu pensamento
No·s gensa, não consente,
Senher, al vostre pro; quar si senhor, às vossas vantagens;
Entensa se vossas intenções
Ses tensa fossem legítimas,
Acsetz, tengratz vostre cami”. tomaríeis um outro caminho.”

6. 6.
–“Na Toza, si vos sabiatz “Donzela, se soubésseis
Can gent vas Amor mi capdelh, quão bem me guio em direção ao Amor,
Cre que de las flors que portatz creio que as flores que portais
M’en fessetz leumen un capelh. me serviriam facilmente como coroa.
354

Mantenen, menan grau solatz, Agora, com grande alegria,


Intrem no·n sotz un arborelh”. vamos para baixo de alguma arvorezinha.”
Don s’esjauzi, Ela se alegrou,
Quar son pretz fi pois seu nobre mérito
Non l’esvazi, não ataquei,
E dis aissi: e disse assim:
“M’agensa “Me apraz
Que·m vensa, que me vença,
Senher, vostr’amor ses tot si. senhor, vosso amor por inteiro.
Plazens’, a Prazer,
Parvensa, assim parece,
M’avetz. Ab aitam fezem fi! tendes comigo. Cheguemos, então, ao final!

7. 7.
Suffrensa, Paciência
Valensa e valor
A·N Guillem de Lodev’ ab si; a Guillem de Lodeve;
Qu’ofensa que ofender
No·s pensa não se considere
Mar al Belh-Rai qu’am mais de mi. a Belh-Rai, que amo mais que a mim.
355

14. L’autrier, al quint jorn d’Abril


Anônima
(Audiau, XXIII; Paden, 165)
Pastorela pseudo-alegórica

1. 1.
L’autrier, al quint jorn d’Abril, No outro dia, no quinto dia de abril,
Trobiei pastorela encontrei uma pastorinha
A l’onbreta d’un espi, à sombra de um espinheiro,
Avinent e bella. amável e bela,
Que chant e favella que cantava e improvisava
.I. sonet de Castella; uma canção de Castela;
Que plus humieu mais do doce do que ela
Non n’a en mieu não há, em mil;
Vestida d’un negre sarzieu, [estava] vestida com sarja negra,
Mantellet e gonella. um pequeno manto e uma saia.

2. 2.
Passiei lo traves d’un rieu. Passei através de um riacho.
–“Toza, dis ieu, bella, “Donzela”, eu disse, “bela,
S’ie·us atruop en luoc aizieu, se eu vos encontro em lugar adequado,
Sola, ses parella, sozinha, sem companhia,
Sabrai s’est piusella saberei se sois virgem
En l’erbeta novela.” sobre a nova relva.”
–“Ai, Senher Dieu! “Ai, senhor Deus!
En vos mi plieu, Em vós eu confio,
C’aitant cant aurai parent vieu pois enquanto tiver pais vivos
Non serai ribaudella.” não serei uma devassa.”

3. 3.
–“Toza, intrem el gardi, “Donzela, entremos no jardim:
Fares cortezia, vos farei cortezia
E farem .I. juoc d’amor e faremos o jogo do amor
Que cascuns s’en ria. que nos fará rir, um e outro.
Si a vos plazia Se vos agradar
Que vos fosses m’amia, que sejais minha amiga,
Serem aisi, assim faremos,
Cada mati, a cada manhã,
Enans soleill levat, aissi, antes que se levante o sol,
E tenrem goi tot dia.” e teremos alegria por todo o dia.”

4. 4.
–“Ben entent vostre lati, “Bem entendo vosso latim,
Seinher, cal que sia; senhor, qualquer que seja;
Perdut aves lo cami ; perdestes vossa direção;
Tenes vostra via! segui vosso caminho!
Que·l mia paria A minha companhia
Vos torn’ar’a folia... vos será inútil...
Per Sant Marti, por são Martinho,
Si fas vas mi, se vierdes para cima de mim,
356

Auziran o tut mieu vezi, tudo ouvirão os meus vizinhos,


E sara vilania!” e perceberão a vilania!

5. 5.
–“Toza, el temps de Pascor, “Donzela, a época da Páscoa,
Per fin alegratge. pela nobre alegria,
Can s’alegran entre lor é quando se alegram entre si
L’auzellet salvaje os passarinhos silvestres
Dins per lo boscage, pelo bosque,
E vos per est ombraje e vos farei, nesta sombra,
Per la frescor pelo frescor
De la verdor do verdor,
Farai .I. juoc novel d’amor o novo jogo do amor
Del vostre piusellage.” de vossa virgindade.”

6. 6.
–“Seinher, no·m fassas honor “Senhor, não me façais a honra
Perdre per follage; perder, por uma tolice;
Mon paire·m vol maridar, meu pai me quer casar,
Al mieu agradaje, para o meu agrado,
Mot de gran linhaje com alguém de alta linhagem,
Segon lo mieu barnage; segundo a minha nobreza;
Anatz alhor buscai alhures
Querre secor, o que vos valha,
G’aisel en portera la flor pois granjeará a flor
Que n’aura’l maridage; o que obtiver o casamento;

7. 7.
Seinher, vos autre janglador Senhor, vós outros, faladores,
Aures en lo badaje.” conseguis nisso a frustração.”
357

15. Quant escavalcai l’autrer


Anônima
(Paden, 29)
Pastorela alegórica

1. 1.
Quant eu escavalcai l’autrer, Quando eu cavalgava, outro dia,
per lo chastel de Montejan, perto do castelo de Montegiano,
escavalcai per Jacobin, eu cavalgava como um jacobino,
qe mester en avia gran; pois tinha grande necessidade de fazê-lo;
e regardai jus en una valeta e eu olhei para um pequeno vale
u tuta ren luis e resplan onde todas as coisas luziam e resplendiam
per la clartat d’un’avinent roseta devido à claridade de uma adorável pequena rosa
qe s’en vai sola deportan. que se estava entretendo, sozinha.
Vau m’en a le, josta le a l’umbreta Fui até ela, perto dela na pequena sombra,
e sautai la enclinan. e a saudei, inclinando-me.

2. 2.
Mon salut me rent tremolant. Minha saudação ela respondeu, tremendo.
“Segner, Deu vos met’en bon an “Senhor, Deus vos conceda um bom ano
e vos don zo qu’anaz qirant, e vos dê o que desejais,
a ço qu’eu non i aia dan. desde que isso não me prejudique.
Deu confonda Robezon et Audeta! Deus puna Robezon e Audeta!
Ja mais m’amistat non auran, Jamais minha amizade terão,
qu’encoi tot jor m’an lassata soleta – pois todo o dia hoje me deixaram sozinha –
lo quals no m’aven mais oian! o que nunca antes me acontecera!
No·l faran mais. No·s vi tanta nessieta! Não mais o farão. Nunca vi tamanha tolice!
Ben sai qu’encoi lo conparan.” Bem sei que hoje pagarão por isso.”

3. 3.
“Tosetta de bella faizon, “Pastorinha de bela feição,
bem saveç dir vostra raison. bem sabeis dizer vossa razão.
Laissaz estar questo sermon Mas deixai este discurso,
qe trobat avez compaignon que haveis encontrado companhia
per cui serez aunorad’e servida pela qual sereis honrada e servida
mais de tant que de Robezon. mais que que por Robezon.
Ne trovareç aior de vostra vida Não encontrareis em lugar nenhum de vossa vida
si tost v’en renda gederdon quem rapidamente vos recompense
cum e’ffarai, se vos m’estat aisida como farei, se estais de acordo comigo,
de zo qu’en vos querrai pardon.” pois eu vos obterei perdão por isso.”

4. 4.
“Segner, no m’es bel ni m’es bon “Senhor, não me é agradável nem me é bom
que ja mon cors vos abandon. que meu coração vos entregue.
Ben me podez querir tal don, Podeis insistir, pedindo-me tal presente,
q’eu vos diria ben de non. que eu certamente vos diria: não.
Ja Deu non plassa qu’eu faz tal fallida, A Deus não apraza que eu tal erro cometa,
e s’eu la faz, no me·l pardon e caso eu o faça, não me perdoe,
qe voz digaz que m’aviaç chausida. pois diríeis haver-me escolhido.
En ver, s’eu forçada non son, Em verdade, se eu forçada não sou,
358

tant malament m’avez oi assallida tão maldosamente me haveis hoje assaltado


a coitada Deus esperon.” que [espero que] Deus acorra para esta sofredora.”

5. 5.
“O toseta, se ve plagues “Ó pastorinha, se escolheis
humilitat e chausiment, a humildade e o discernimento,
ancor n’ai mais de cinquecent não tenho mais de quinhentos
entre frer, cosin, e parent. entre irmãos, primos, e parentes.
Per tuttu zo remaner non poiria. Por todos, eu não poderia permanecer.
No sui tant coant ni tant lent Não sou tão discreto, nem tão lento
qe’l pro Guillem Malaspina diria que o nobre Guillem Malaspina diria
qu’eu fust coart e recredent, que eu fui covarde e negligente,
qel qu’e signor de la cavalaria, ele que é mestre na cavalaria,
e de les armas pro e valent”. e nobre e valente nas armas”.
359

16. Sole regente lora


Gualterus de Castellione
(Paden, 13)
Pastorela alegórica
1. 1.
Sole regente lora Quando o sol controla suas rédeas
poli per altiora, pelos mais altos céus,
quedam satis decora um certa, jovem virgem3
virguncula graciosa o bastante
sub ulmo patula sob um vasto olmo
consederat, estava sentada,
nam dederat pois a árvore
arbor umbracula. cedia-lhe a sombra.

2. 2.
Quam solam ut attendi Quando sozinha eu a percebi
sub arbore, descendi sob a árvore, desmontei
et Veneris ostendi e logo mostrei
mox iacula, os dardos de Vênus,
dum noto singula, pois já me havia familiarizado com cada detalhe:
cesariem o cabelo
et faciem, e a face,
pectus et oscula. o colo e os lábios.

3. 3.
“Quid,” inquam, “absque pari “Por que,” indaguei, “sem companhia
placet hic spaciari, aqui te apraz passear,
Dyones apta lari garotinha pronta para o lar
puellula? de Diana?
Nos nulla vincula, Nenhum grilhão,
si pateris, se concedes,
a Veneris nos apartará
disiungent copula.” do enlace de Vênus.”

4. 4.
Virgo decenter satis A virgem, de um modo bem recatado,
subintulit illatis: replicou com estas [palavras]:
“hec, precor, obmittatis “Imploro que deixes de lado
ridicula; estas coisas ridículas;
sum adhuc parvula, sou ainda muito jovem,
non nubilis não sou núbil
nec habilis nem estou pronta
ad hec opuscula. para estas bobagens.”

5. 5.
“Hora meridiana “Passa do meio dia,
transit, vide Tytana. olhe para Titã.
Mater est inhumana. [Minha] mãe é cruel.
3
Optamos por traduzir, nas pastorelas médio-latinas, sempre ‘virgo’ e derivados por ‘virgem’, já que
comumente a personagem feminina enfatiza sua virgindade nessas composições.
360

Iam pabula A ovelhinha


spernit ovicula. já recusa os pastos.
Regrediar, Devo retornar,
ne feriar para que não seja ferida
materna virgula.” pelo bastão da minha mãe.”

6. 6.
“Signa, puella, poli “Menina, os sinais do céu
considerare noli; não deves levar em conta;
restant immensa soli para o sol, restam imensos
curricula. caminhos [a percorrer].
Placebit morula, Uma breve demora te aprazerá,
ni temere a não ser que queiras
vis spernere desprezar sem motivo
mea munuscula.” meus pequenos presentes.”

7. 7.
“Muneribus oblatis “Pelos presentes que ofereces,
me flecti ne credatis, não creias que estou convencida;
non frangam castitatis não romperei as barreiras
repagula. da castidade.
Non hec me fistula Esta flauta não me
decipiet iludirá,
nec exiet nem nascerão
a nobis fabula.” estórias sobre nós.”

8. 8.
Quam mire simulantem Quando, fingindo maravilhosamente,
ovesque congregantem [ela] estava reunindo as ovelhas,
pressi nil reluctantem empurrei-a, não relutante,
sub pennula, sob um pequeno ramo,
flores et herbula as flores e o relvado
... ...
... ...
prebent cubicula.” forneceram-nos uma cama.”
361

17. Estivali sub fervore


Anônima
(Walsh, 19; Hilka-Schumann, 79; Paden, 46)
Pastorela alegórica

1. 1.
Estivali sub fervore Sob o calor do verão,
quando cuncta sunt in flore, quando todas as coisas estão em flor,
totus eram in ardore. eu estava todo em ardor.
sub olive me decore, Convenientemente, sob uma oliveira,
estu fessum et sudore, exausto pelo calor e coberto de suor,
detinebat mora. um descanso me deteve.

2. 2.
Erat arbor hec in prato Essa árvore estava num prado
quovis flore picturato, colorido por algum tipo de flor;
herba, fonte, situ grato, em agradável lugar, a relva, a fonte,
sed et umbra, flatu dato. e ainda a sombra, concedida pela brisa.
stilo non pinxisset Plato Platão não teria desenhado, com seu estilo4,
loca gratiora. um lugar mais agradável.

3. 3.
Subest fons vivacis vene Debaixo [da árvore] corre a água de uma vívida fonte,
adest cantus philomene faz-se presente o canto de um rouxinol
Naiadumque cantilene. e também os cantos das náiades.
paradisus hic est pene; Isso é quase o paraíso;
non sunt loca, scio plene, Não há lugares, sei plenamente,
his iocundiora. mais agradáveis que esse.

4. 4.
Hic dum placet delectari Enquanto aqui [me] apraz ser deleitado
delectatque iocundari e [me] deleita ser tranqüilizado
et ab estu relevari, e aliviado do calor,
cerno forma singulari vejo uma forma singular:
pastorellam sine pari uma pastorinha sem igual
colligentem mora. que colhe amoras.

5. 5.
In amorem vise cedo; Entrego-me em amor àquela que eu vi;
fecit Venus hoc, ut credo. creio que Vênus fez isso.
“ades!” inquam, “non sum predo, “Venhas!”, digo, “Não sou salteador,
nichil tollo, nichil ledo. nada roubo, ninguém firo.
me meaque tibi dedo, A ti me entrego, e tudo o que eu tenho,
pulchrior quam Flora!” mais bela que Flora!”

6. 6.
Que respondit verbo brevi: E ela respondeu, em poucas palavras:
“ludos viri non assuevi. “Não cresci habituada às brincadeiras masculinas.
sunt parentes michi sevi: [Meus] pais são cruéis para mim:
4
‘Estilo’ designa aqui o instrumento utilizado pelos antigos para escrever sobre tábuas cobertas por cera.
362

mater longioris evi [minha] mãe, de idade mais avançada,


irascetur pro re levi. se enraivecerá pelo motivo mais insignificante.
parce nunc in hora.” Não me faça mal agora.”
363

18. Lucis orto sidere


Anônima
(Walsh, 51; Hilka-Schumann, 157; Paden, 50)
Pastorela alegórica

1. 1.
Lucis orto sidere, Nascida a estrela da manhã,
exit virgo propere saiu rapidamente uma virgem
facie vernali, com beleza primaveral
oves iussa regere ordenada a tanger as ovelhas
baculo pastorali. com seu báculo pastoral.

2. 2.
Sol effundens radium O sol, espraiando o [seu] raio,
dat calorem nimium. produz excessivo calor.
virgo speciosa A bela virgem
solem vitat noxium evita o nocivo sol
sub arbore frondosa. sob uma árvore frondosa.

3. 3.
Dum procedo paululum, Enquanto avanço um pouco,
lingue solvo vinculum: liberto a correia da língua:
“salve, rege digna! “Salve, ó digna de um rei!
audi, queso, servulum, Ouve, rogo, este servo,
esto michi benigna!” sê benigna para comigo!”

4. 4.
“Cur salutas virginem, “Porque saúdas uma virgem
que non novit hominem que não conheceu [nenhum] homem
ex quo fuit nata? desde que nasceu?
sciat Deus: neminem Saiba Deus: ninguém
inveni per haec prata.” encontrei por estes prados!”

5. 5.
Forte lupus aderat, Por sorte um lobo estava por perto,
quem fames expulerat a quem a fome da avara garganta
gutturis avari. tinha feito sair.
ove rapta properat, Com uma ovelha raptada, apressa-se,
cupiens saturari. desejando ser saciado.

6. 6.
Dum puella cerneret, Quando a menina vê
quod sic ovem perderet, que assim perde a ovelha,
pleno clamat ore: grita a plena voz:
“si quis ovem redderet “O que trouxer de volta a ovelha,
me gaudeat uxore!” pode alegrar-se de ter-me por esposa!”

7. 7.
Mox ut vocem audio, Logo que ouço a voz,
denudato gladio em meu gládio desembainhado
364

lupus immolatur; o lobo é imolado;


ovis ab exitio a ovelha, da morte
redempta reportatur. é trazida de volta, redimida.
365

19. Vere dulci mediante


Anônima
(Walsh, 51; Hilka-Schumann, 158; Paden, 51)
Pastorela alegórica

1. 1.
Vere dulci mediante, Em meio à doce primavera,
non in Maio, paulo ante, não em Maio, um pouco antes,
luce solis radiante, na radiante luz do sol,
virgo vultu elegante uma virgem de elegante rosto
fronde stabat sub vernante estava sob a folhagem que anunciava a primavera,
canens cum cicuta. cantando com uma flauta.

2. 2.
Illuc veni fato dante. Cheguei àquele lugar guiado pelo destino.
nympha non est forme tante, Uma ninfa não possui tanta beleza
equipollens eius plante; que se compare à sola de seu pé;
que me viso festinante e tendo-me visto correndo,
grege fugit cum balante, fugiu com o balante rebanho,
metu dissoluta. enfraquecida pelo medo.

3. 3.
Clamans tendit ad ovile. Ela corre, gritando, para o ovil.
hanc sequendo precor: “sile! Seguindo-a, grito: “Fique quieta!
nichil timeas hostile!” Não tema nada hostil!”
preces spernit, et monile, Ela desdenha meus pedidos; e o colar
quod ostendi, tenet vile que lhe estendi, a virgem considera sem valor,
virgo, sic locuta: tendo falado assim:

4. 4.
“Munus vestrum”, inquit, “nolo, “Vosso presente”, disse, “não quero,
quia pleni estis dolo!” porque estás cheio de ardis!”,
et se sic defendit colo. e então se defendeu com um pequeno bastão de fiar.
comprehensam ieci solo; Tendo-a abraçado, atirei-a ao chão;
clarior non est sub polo Não há, sob os céus, [garota] mais distinta
vilibus induta! vestida com trapos!

5. 5.
Satis illi fuit grave, Foi para ela bastante grave;
michi gratum et suave. para mim, agradável e suave.
“quid fecisti”, inquit, “prave! “O que fizeste”, ela disse, “perverso!
ve ve <tibi>! tamen ave! Ai, ai de ti! Ainda assim, fique em paz!
ne reveles ulli cave, Tome cuidado: não revele a quaisquer [o que aconteceu],
ut sim domi tuta. para que eu esteja a salvo em casa.

6. 6.
Si senserit meus pater Se souber o meu pai,
vel Martinus, maior frater, ou Martinho, meu irmão mais velho,
erit michi dies acer! será para mim um dia amargo!
vel si sciret mea mater, Ou se souber a minha mãe,
366

cum sit angue peior quater, que é quatro vezes pior que uma serpente,
virgis sum tributa!” receberei como tributo as varas!
367

20. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela


Pedro Amigo de Sevilha
(Brea 116, 29; B 1098, V 689)
Pastorela pseudo-alegórica amorosa

Quand’ eu hun dia fuy en Compostela


en romaria, vi hunha pastor
que, poys fuy nado, nunca vi tan bela,
nen vi outra que falasse milhor,
e demandey-lhe logo seu amor
e fiz por ela esta pastorela.

Dix[i-lh]’ eu logo: “Fremosa poncela,


queredes vós min por entendedor,
que vos darey boas toucas d’ Estela,
e boas cintas de Rrocamador,
e d’ outras doas a vosso sabor,
e ffremoso pano pera gonela?”

E ela disse: “Eu non vos queria


por entendedor, ca nunca vos vi
se non agora, nen vus filharia
doas que sey que non som pera min,
pero cuyd’ eu, sse as filhass’ assy,
que tal á no mundo a que pesaria.

E, se vẽess’ outra, que lhi diria,


sse me dizesse ca per vós perdi
meu amigu’ e doas que me tragia?
Eu non sey rem que lhi dissess’ aly;
se non foss’ esto de que me tem’ i,
non vos dig’ ora que o non faria”.

Dix’ eu: “Pastor, ssodes ben rrazõada,


e pero creede, se vos non pesar,
que non est’ oj’ outra no mundo nada,
se vós non sodes, que eu sábia amar,
e por aquesto vos venho rrogar
que eu seja voss’ ome esta vegada”.

E diss’ ela, come bem ensinada:


“Por entendedor vos quero filhar,
e, poys for a rromaria acabada,
aqui, d’ u sõo natural, do Sar,
cuydo-[m’ eu], se me queredes levar,
ir-m’ ei vosqu’ e fico vossa pagada”.
368

21. Pelo souto de Crecente


João Airas de Santiago
(Brea 63, 58; B 967, V 554)
Pastorela pseudo-alegórica

Pelo souto de Crecente


ũa pastor vi andar
muit’ alongada de gente,
alçando voz a cantar,
apertando-se na saia,
quando saía la raia
do sol, nas ribas do Sar.

E as aves que voavan,


quando saía l’ alvor,
todas d’ amores cantavan
pelos ramos d’ arredor;
mais non sei tal qu’ i ‘stevesse,
que en al cuidar podesse
senón todo en amor.

Alí ‘stivi eu mui quedo,


quis falar e non ousei,
empero dix’ a gran medo:
– Mia senhor, falar-vos-ei
un pouco, se mi ascuitardes,
e ir-m’ ei, quando mandardes,
máis aqui non [e]starei.

– Senhor, por Santa María,


non estedes máis aqui,
mais ide-vos vossa via,
faredes mesura i;
ca os que aqui chegaren,
pois que vos aqui acharen,
ben diran que máis ouv’ i.
369

22. Vi oj’ eu cantar d’ amor


D. Dinis
(Brea 25, 135; B 547, V 150)
Pastorela pseudo-alegórica

Vi hoj’ eu cantar d’ amor


em um fremoso virgeu
unha fremosa pastor
que ao parecer seu
jamais nunca lhi par vi;
e por em dixi-lh’ assi:
“Senhor, por vosso vou eu.”

Tornou sanhuda entom,


quando m’ est’ oiu dizer,
e diss’: “Ide-vos, varom!
quem vos foi aqui trajer
pera m’ irdes destorvar
d’ u dig’ aqueste cantar
que fez quem sei bem querer?”

“Pois que me mandades ir”,


dixi-lh’ eu, “senhor, ir-m’ ei;
mais ja vos ei de servir
sempr’ e por voss’ andarei;
ca voss’ amor me forçou
assi que por vosso vou,
cujo sempr’ eu ja serei.”

Diz’ ela: “Nom vos tem prol


esso que dizedes, nem
mi praz de o oir sol,
ant’ ei noj’ e pesar em,
ca meu coraçom nom é
nem será, per bõa fe,
senom do que quero bem.”

“Nem o meu”, dixi-lh’ eu ja,


“senhor, nom se partirá
de vós, por cujo s’ el tem.”

“O meu”, diss’ ela, “será


u foi sempr’ e u está,
e de vós nom curo rem.”
370

APÊNDICE B – TABELAS

1. Cronologia de autores conhecidos de pastorelas medievais alegóricas occitânicas,


médio-latinas e galego-portuguesas, consoante o período de produção literária

Autores occitânicos Autores médio-latinos Autores galego-portugueses


Marcabru (1130-1149)
Giraut de Bornelh (1162-1199)
Gualterus de Castellione (1166-1184)
Gui d’Ussel (1195-1196)
Gavaudan (1195-1211)
Guiraut d’Espanha (1240-1270)
Guiraut Riquier (1254-1292)

Pedro Amigo de Sevilha (1257-1275)


Guilhem d’Autpol (1269-1270)
Joan Esteve (1270-1288) João Airas de Santiago (1270+)
D. Dinis (1279-1325)

2. Classificação das pastorelas, com relação ao seu nível alegórico5

Pastorelas occitânicas Pastorelas médio-latinas Pastorelas galego-


portuguesas
Pastorelas alegóricas 11 (73,3%) 4 (100%) 0 (0%)

Pastorelas pseudo- 3 (20%) 0 (0%) 1 (33,3%)


alegóricas amorosas
Pastorelas pseudo- 1 (6,7%) 0 (0%) 2 (66,7%)
alegórias (não-amorosas)
Total 15 4 3

5
As porcentagens indicadas referem-se à representatividade daquela categoria de pastorelas no âmbito
lingüístico a que pertencem; assim, as 11 pastorelas alegóricas occitânicas correspondem a 73,3% das
pastorelas alegórica compostas em langue d’oc; as 3 pastorelas pseudo-alegóricas amorosas
correspondem a 20% das compostas nessa língua, e assim por diante.

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