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Universidade Federal do Rio de Janeiro

IR AO QUE QUEIMA:
NO VERSO, O AMOR, NO VERSO, O HORROR –
Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea

Danielle Henrique Magalhães

2020
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE LETRAS E ARTES
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
(CIÊNCIA DA LITERATURA)
TEORIA LITERÁRIA

IR AO QUE QUEIMA:
NO VERSO, O AMOR, NO VERSO, O HORROR
Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea

Danielle Henrique Magalhães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria
Literária)

Orientadora: Prof.ª Doutora Flávia Trocoli Xavier da


Silva

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2020
3

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror –


Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea
Danielle Henrique Magalhães
Orientadora: Professora Flávia Trocoli Xavier da Silva

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da


Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutora em Teoria Literária.

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Marcelo Diniz Martins – PPGCL/UFRJ

_________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo dos Santos Coelho – PPGCL/UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Carla Rodrigues – PPGF-IFCS/UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Prisca Rita Agustoni de Almeida Pereira – PPGL/UFJF

_________________________________________________
Prof. Doutor Piero Luis Zanetti Eyben – TEL/UnB

_________________________________________________
Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna – suplente PPGCL/UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Ana Paula Veiga Kiffer – suplente PPGLCC/PUC-Rio

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2020
4

CIP - Catalogação na Publicação

Magalhães, Danielle
M111i Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o
horror - Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia
brasileira contemporânea / Danielle Magalhães. -- Rio de
Janeiro, 2020.
399 f.

Orientadora: Flávia Trocoli.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós
Graduação em Letras (Ciência da Literatura), 2020.

Elaborado pelo1. Teoriade


Sistema Literária.
Geração2.Automática
Poesia brasileira.
da UFRJ 3.
comAmor. 4. fornecidos pelo(a)
os dados
autor(a), sobPoesia e Filosofia. 5. Poesia e Política.
a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
I. Trocoli, Flávia, orient. II. Título.
5

Para Silvana,
Juçara
e Marli,
as mulheres que me criaram.

Para Diego Vieira Machado,


Matheusa Passareli,
Marielle Franco
e todos aqueles
e todas aquelas
que são matáveis –
apenas amáveis.
6

AGRADECIMENTOS

Flávia Trocoli.

Alberto Pucheu.

Carla Rodrigues, Prisca Agustoni, Piero Eyben, Eduardo Coelho, Marcelo Diniz,
João Camillo Penna, Gustavo Silveira Ribeiro,
Ana Kiffer, Martha Alkimin, Maurício Chamarelli,
Luiz Fernando Medeiros, Manoel Ricardo de Lima, Cláudio Oliveira.

Luciana K. P. Salum.

Ana Carolina Martins, Caio Paz, Camila Jourdan, Larissa Pinheiro, Mariana Morais.

Patrick Gert Bange, Simone Brantes, Renata Estrella, Marlon Augusto, Bruno Domingues
Machado, Leonardo Alves de Lima.

Silvana Henrique Magalhães e Francisco Claudio Ponsi de Souza.

Simone Azevedo, Leda Santos da Silva e Avany Miranda.

Familiares queridos que acompanharam a minha formação.

Amigos queridos e amigas queridas que acompanharam a minha formação.

Professoras e professores e alunas e alunos da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-


Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.

Faculdade de Letras da UFRJ e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.

CAPES.

Poesia brasileira contemporânea.

Poetas mulheres brasileiras contemporâneas.

Manifestantes pela universidade pública e pelo ensino público.

Manifestantes pelas vidas das mulheres.

Manifestantes pelas vidas oprimidas e excluídas.

Manifestantes contra o governo Bolsonaro.

Manifestantes pela liberdade de Lula.

Governos presidenciais do PT, apesar de tudo.


7

fazer amor y política nem


sempre é simples; há
quem diga que o
primeiro nunca
é mais que sexo, quem de
fenda nunca menos que uma

guerra, a segunda.
(Tatiana Nascimento, de(s)feituras)
8

Porém, a raça humana


Segue trágica, sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha.
(Caetano Veloso, Um comunista)

Porque és o avesso do avesso do


avesso do avesso
(Caetano Veloso, Sampa)
9

Imagem extraída da postagem do poeta Miguel Cardoso, publicada em seu facebook no dia 28 de maio de 2019.
O poeta adquiriu o postal na Feira da Ladra, em Lisboa, Portugal.
10

RESUMO

IR AO QUE QUEIMA: NO VERSO, O AMOR, NO VERSO, O HORROR –


Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea

Danielle Henrique Magalhães

Orientadora: Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência


da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Teoria Literária.

Esta tese discorre sobre poesia a partir de um pensamento do verso como um duplo gesto
que aponta para o amor e para o horror. Tecendo um caminho que vai da teoria do verso à
análise de poemas que compõem livros de poemas de três poetas brasileiras contemporâneas,
Bruna Mitrano, Tatiana Pequeno e Valeska Torres, busca-se ir ao verso e, ao mesmo tempo, ao
nosso tempo, em uma abordagem que se dá pelo desencaixe, pela disjunção, pela
desarticulação, princípios em comum que comparecem em teorias sobre o amor, sobre o tempo
e sobre o verso. Passando pela escrita de Jacques Derrida em diálogo com outros pensadores,
como Giorgio Agamben, Walter Benjamin, Jacques Lacan, Hannah Arendt e outros e outras,
vamos ao verso desde o mito homérico a Hermes, desde Mallarmé, desde as estruturas que
compõem o verso pelo corte, enjambement e cesura. Nessa abordagem entrelaçada,
pretendemos ir ao que queima na fratura desse tempo-limite caracterizado por tantos excessos
e tantas faltas. Assim, nos extremos, indo do gesto ao indigesto, vemos como alguma poesia
confere àqueles e àquelas que são matáveis o estatuto de serem tão somente amáveis.

Palavras-chave: Poesia; Verso; Política; Amor; Século XXI.

Rio de Janeiro
Fevereiro 2020
11

ABSTRACT

TO GO TO WHAT BURNS: ON THE VERSE, THE LOVE, ON THE VERSE, THE


HORROR – Essays about the verse and some contemporary Brazilian poetry

Danielle Henrique Magalhães

Orientadora: Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência


da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Teoria Literária.

This thesis discusses poetry by a thought of the verse as a double gesture that points to
love and horror. Taking a path that goes from verse theory to the analysis of poems of books of
three contemporary Brazilian poets, Bruna Mitrano, Tatiana Pequeno and Valeska Torres, it
seeks to go to verse and, simultaneously, to our time, in an approach that takes place by
disengagement, disjunction, disarticulation, common principles that appear in theories about
love, time and verse. Going through the writing of Jacques Derrida in dialogue with other
thinkers, such as Giorgio Agamben, Walter Benjamin, Jacques Lacan, Hannah Arendt and
others and others, we go to the verse from the Homeric myth to Hermes, from Mallarmé, from
the structures that compose the verse through cutting, enjambement and caesura. In this
intertwined approach, we intend to locate ourselves in the fracture of this timeout characterized
by so many excesses and so many faults. Thus, at the extremes, ranging from gesture to
indigestion, we see how some poetry confers on those who are killable [matável] the status of
being only lovable [amável].

Keywords: Poetry; Verse; Politics; Love; Twenty-first century.

Rio de Janeiro
Fevereiro 2020
12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

I. ENTRE UM PONTO A MAIS E UMA VÉRTEBRA A MENOS OU IR AO AMOR, IR


AO HORROR: O DUPLO GESTO DO VERSO
1.1. Estado de crise: gozo e jogo, ataque de nervos e mal-entendido 21
1.2. Jacques Derrida: “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo” 42
1.2.1. De cor: Che cos’è la poesia? 86
1.2.2. Eros, “demônio do coração” 105
1.3. Entre o cavalgamento e a catástrofe: o lance do amor, do verso, da história –
enjambement e cesura 128

II. MATÁVEIS: AMÁVEIS


2.1. Matável: Amável 169
2.2. Campo minado: entre tiros e acenos, legados e restos 215
2.3. Coices, cios, trotes e outros troços 281

CONCLUSÃO
Contra o tempo: palavras de 3 minutos a mais 347

PÓS-ESCRITO
Do segredo à fofoca: Mulheres que reescrevem a história 361

ANEXO 388

REFERÊNCIAS 389
13

INTRODUÇÃO

Esta tese pretende ir ao que queima, de amor e de horror. No verso de um, o outro. Esta
tese pretende, portanto, ir ao verso. Indo ao verso também como um modo de ir ao nosso tempo
em seu desencaixe, em seus desastres, em seus acidentes, em suas catástrofes. Nesse tempo em
que o horror nos atropela, escrever o que queima é ser atropelado pela cronologia dos incêndios.
A ênfase da reflexão recairá, de um lado, nos modos de desencaixe, disjunção,
suspensão, desarticulação, enfim, da inclinação do verso para o desastre. Por outro lado,
tentaremos ler, nesse movimento disjuntivo, também formas de escrita do amor e da história.
Meu objetivo não é tecer uma leitura do amor como Ágape, mas do amor como Eros. Não
pretendo, pois, ver os poemas que serão analisados como um gesto de compaixão, mas como o
amor erótico pode ser lido em um dos movimentos de escrita dos poemas.
Como associar a leitura do verso como um “lance”, desde Mallarmé, à leitura que Lacan
faz do amor também como um “lance”? Uma abordagem pelo desencaixe nos mostra que pode
haver algo em comum nesses movimentos. Assim como ir ao verso é ir à sua “crise”, tal como
a Crise de vers pensada por Mallarmé na modernidade, ir ao tempo atual em sua “crise” –
neoliberal, política, econômica – é também ir ao verso e vice-versa. Ainda nessa junção entre o
verso e o tempo, poderíamos ler o salto do verso como o anjo da história de Walter Benjamin,
que é impelido para frente, mas se volta para trás encarando fixamente a catástrofe? Além disso,
seria possível também ler o “espanto”, o princípio da filosofia e da poesia, no próprio
movimento do verso?
A questão que me moveu inicialmente era ver como uma certa poesia brasileira
contemporânea poderia ser lida como um gesto, nas várias configurações do conceito de gesto
da acepção agambeniana, algumas dessas configurações serão mencionadas ao longo da tese.
Ao longo do estudo, fui tomada por uma direção que não deixa de ser um desdobramento da
primeira: da poesia como um gesto, comecei então a pensar o gesto mesmo do verso. Conexões
de leituras me levaram a pensá-lo como isso que aponta para o amor e para o terror, em um só
gesto, a um só tempo. Assim, o gesto do verso, a partir de suas características estruturais como
enjambement e cesura, ocupou o lugar propulsor de reflexão.
Essa questão será tratada na primeira parte, que também tece uma leitura da escrita de
Jacques Derrida como verso, como poema, especialmente os “Envios” que compõem O Cartão-
postal e o ensaio Che cos’è la poesia?, já que a escrita de Derrida me fez pensá-la como um
duplo gesto que aponta para o amor e para o horror, para o amor e para a morte, para o amor e
para o luto, para a celebração e para o ritual fúnebre, ao mesmo tempo.
14

O caminho que encontrei para chegar ao que queima foi a partir de um entrelaçamento
entre poesia, filosofia e psicanálise, baseando-me, sobretudo, nos pensamentos de Jacques
Derrida, Giorgio Agamben e Jacques Lacan. Ao lado deles, encorpando a conversa, encontram-
se Hannah Arendt, Judith Butler, Jacques Rancière, Walter Benjamin e outras e outros. Com
Benjamin, por exemplo, associei o duplo gesto que havia pensado em Derrida com o gesto em
torsão do anjo da história como o movimento do verso também se voltando para a catástrofe.
Agamben, por sua vez, que, em Ideia da Prosa, pensa o verso como aquilo que, não saindo de
si, aponta para o seu outro, constitui um fundo de uma teoria do verso no que essa abordagem
se encontra com a abordagem de Lacan sobre o amor, pelo desencaixe, pela disjunção.
O princípio da disjunção norteia, portanto, uma reflexão que entrelaça um pensamento
sobre o nosso tempo (com base no contemporâneo de Agamben, no anjo da história de
Benjamin, no modo como Derrida vai ao que queima, dentre outros) com um pensamento sobre
o verso. Podendo ser considerado um estudo que se define pelo trinômio “poesia, amor e
política”, esta tese vai, sobretudo, à filosofia política de Hannah Arendt para compreender o
fundamento da política ocidental. Agamben, Butler e Achille Mbembe, por exemplo, são
interlocutores que irão com e contra Arendt, nos ajudando a pensar não só os pilares gregos
aristotélicos nos quais a nossa política ainda é fundamentada, mas proposições para uma política
outra.
Colocando à prova esse pensamento, na segunda parte, são analisados alguns livros da
poesia brasileira mais recente, por exemplo, o livro Não, de Bruna Mitrano, publicado em 2016
pela Editora Patuá, Onde estão as bombas, de Tatiana Pequeno, publicado em 2019 pela Editora
Macondo, e O coice da égua, de Valeska Torres, também publicado em 2019 pela Editora
7Letras. Nessas análises, pontos que foram abordados na primeira parte serão desdobrados,
outros serão aprofundados, outros serão reformulados, compondo uma outra constelação de
sentidos. Nessa segunda parte, vamos do gesto ao indigesto, ao que fica atravessado,
interrompido, na história, vamos ao que excede e ao que falta, ao que se ganha e ao que se
perde, ao que sobra e ao que resta, em uma equação muitas vezes irredutível que não se sintetiza
senão no dano. A essa abordagem, articulando privado e público, corpo e política, casa e rua,
fazendo da fratura, da quebra, do desencaixe, o ponto que ao mesmo desarticula e articula,
vemos como esses poemas inauguram uma política outra que confere aos corpos matáveis o
estatuto de serem tão somente amáveis. Com isso, a poesia instaura uma reescrita da história,
dando um novo começo a quem, historicamente, nunca pôde começar (ARENDT, 2002).
Nunca antes na história desse país houve uma produção tão grande de poesia escrita por
mulheres. No livro Explosão Feminista, Julia Klien e Heloísa Buarque de Hollanda atestam
15

esse fenômeno: “De 2010 para cá, intimamente ligada às recentes manifestações feministas,
uma nova poesia escrita por mulheres, lésbicas e trans ganha força inesperada e se amplifica
com rapidez” (HOLLANDA, 2018, s/p).1 Além disso, destaca-se a indissociabilidade do
político e do poético; como elas dizem, a “indissociabilidade dos seus posicionamentos
políticos e da sua linguagem poética é um caso emblemático na poesia brasileira recente”
(HOLLANDA, 2018, s/p). O que os poemas analisados nesta pesquisa irão mostrar é que, além
disso, o posicionamento político também diz completamente respeito ao modo como se ama, e
o modo como se ama passa necessariamente pelos limites do corpo e pelos limites da cidade,
pelas bordas do corpo e pelas bordas da cidade, pela precariedade do outro e pela travessia pela
periferia e pelo subúrbio.
De início, essa pesquisa não estava restrita a poetas mulheres, mas fui me dando conta
de que eu só estava escrevendo sobre livros de poetas mulheres. Tal como constatou Hollanda
(2018), acredito haver um grande incêndio na poesia brasileira contemporânea, sobretudo na
poesia mais recente, e, sobretudo, são as mulheres que estão queimando. No duplo sentido que
isso implica, é historicamente que as mulheres estão sendo queimadas, mas também é
historicamente que elas ateiam fogo. Como disse Audre Lorde, traduzida por Stephanie Borges,
em Irmã Outsider: “Mas as mulheres sobreviveram. Como poetas. E não existem novas dores.
Já as sentimos antes” (LORDE, 2019, s/p).2 Sabemos que essa sobrevivência não tem cessado
de não estar garantida e que o fogo não tem cessado, é por isso que esse estudo se configura
também como uma construção de laços, agenciando filiações que portam heranças de dores já
antigas, não, porém, para nos fixar no “paradigma da dor”, mas fazendo dessas heranças um
outro modo de amar, logo, de conviver, de sobreviver (NASCIMENTO, 2019, p.21).
Alguns dos desafios que se colocam em um estudo sobre poetas vivas que estão
escrevendo agora, no presente, sobre o presente, são: 1) a minha leitura crítica se inscreve nessa
provisoriedade do que ainda está sendo feito; em mais de um caso, no que está começando a
ser feito; 2) a produção dessas poetas nem sempre se restringe apenas ao livro, estendendo-se
aos meios eletrônicos e às redes sociais. Em algumas análises, considero essas publicações que
não se circunscrevem ao livro como suporte. Isso significa dizer que minha leitura também se
inscreve nesse lugar, além de provisoriedade, de impossível acabamento. Nesse sentido, não
penso a obra, portanto, como um produto acabado, mas sim como performance, sob um efeito
contínuo de deslocamento em que outros suportes vão conjuntamente recriando e recompondo
isso que se chama de obra, não se reduzindo aos limites do formato livro.

1
Edição em ebook.
2
Edição em ebook.
16

No ensaio “Do livro à tela. O antes e o depois do livro”, presente no livro O fogo e o
relato, Agamben fala do “processo criativo pontencialmente infinito, em relação ao qual a obra,
chamada de acabada, distingue-se da inacabada apenas acidentalmente” (AGAMBEN, 2018,
p.117). Nesse “processo criativo pontencialmente infinito” seria lícito “falar não só de um
‘antes’, mas também de um ‘depois’ do livro” (AGAMBEN, 2018, p.117), como ocorre na
leitura que faço especificamente do livro Onde estão as bombas, de Tatiana Pequeno, em que
leio esse livro irredutível a ele mesmo, apontando para o antes e para o depois dele. Isso não se
aplica apenas a esse caso específico, mas nos leva a pensar que todo livro “contém um resto de
potência”, ou seja, que o livro não se reduz a si mesmo, aponta sempre para fora de si
(AGAMBEN, 2018, p.122). Quanto à tela, Agamben lança a pergunta: “O que acontece hoje,
quando o livro e a página parecem ter cedido lugar aos instrumentos informáticos?”
(AGAMBEN, 2018, p.131). Em um momento da resposta, ele diz: “O pressuposto implícito é
que material e virtual designam duas dimensões opostas, e que virtual é sinônimo de imaterial.
Ambas as pressuposições, se não são completamente falsas, são pelo menos bastante
imprecisas” (AGAMBEN, 2018, p.132). Agamben pensa a tela assim como a página em branco,
como o lugar da matéria, aquilo que os gregos chamavam de hyle e os latinos de silva: materia
ou silva é o termo latino para madeira como material de construção, o que em grego significa
também “floresta” (AGAMBEN, 2018, p.132). Portanto, a palavra “livro” vem desse termo que
os gregos e latinos usavam para falar “madeira”, isto é, matéria. Nesse sentido, a matéria era “o
lugar da possibilidade e da virtualidade”, ela era “a possibilidade pura” que podia receber ou
conter todas as formas (AGAMBEN, 2018, p.132).
É assim que Agamben lerá a tela, como espectro da matéria, como “algo que perdeu o
corpo, mas, de algum modo, conservou a forma”, sendo, assim como a página em branco, o
lugar da “pura potência do pensamento” (AGAMBEN, 2018, p.135). Por outra abordagem, eu
poderia dizer que me interessa tudo aquilo que Josefina Ludmer chamou de “imaginação
pública” em Aqui América Latina: poemas, livros, conversas, relatos, entrevistas, falas públicas,
mensagens, postagens, e-mails, cartas, postais, desenhos, publicações de jornais, revistas,
televisão, músicas, performances, enfim, tudo o que faz parte da linguagem (LUDMER, 2010,
p.12). Por outra abordagem, ainda, poderia ser dito que a condição de existência desses livros
de poemas é a precariedade da obra em sentido transformador, porque eles estão sujeitos a
serem afetados, transformados, pelo que está aquém e além deles, como, por exemplo, as
publicações on-line, seja em revistas eletrônicas, seja em redes sociais, que muitas vezes
publicam outras versões de um poema antes de ele ser publicado em livro, o que torna o livro
passível de várias leituras, interferidas ou não pelas versões eletrônicas, mas sempre passíveis
17

de interferência. É nesse sentido que podemos ler esses livros como a frase de Flávia Trocoli a
respeito da obra de Hélène Cixous: “A obra se deixa colocar sob a ameaça da não-obra”
(TROCOLI, 2019, s/p). Essa obra sempre sob ameaça se define privilegiadamente como um
“objeto vivo” e traz implicações para a crítica. Ainda no texto Escurecer o que brilha e lançar
o sublime à poeira, apresentado oralmente na XIX Jornada Corpolinguagem/XI
Encontro Outrarte, Trocoli diz:

A apreensão da obra literária como objeto vivo, isto é, resistindo à seriação da


lógica mercadológica, em movimento incessante não somente contra o já dito,
como também contra a petrificação conceitual da própria teoria da literatura,
busca mostrar uma articulação nunca pronta entre estrutura e transformação,
entre destino e destinação (TROCOLI, 2019, inédito).

Em Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio, de tradução de Eliane Lisboa, também a


respeito da obra de Hélène Cixous, Derrida diz sobre a preocupação de biógrafos e
bibliotecários distinguirem “entre a obra, o antes da obra e o além da obra, o fora da lei da obra”
(DERRIDA, 2005, p.15). Assim, ele localiza a produção diversa de Cixous entre o já e o ainda
não:

Não será fácil para o arquivista bibliotecário decidir se o referente de tais


textos e documentos é real ou fictício, ou quem sabe, no caso de textos de
sonhos, ainda mais indefinido entre realidade e ficção, materiais sem uso, se
posso dizer, ou materiais ainda não-literários em vista da literatura,
disponíveis para a literatura, explícita ou implicitamente destinados à sua
construção literária, portanto já literários embora ainda não-literários
(DERRIDA, 2005, p.59)

Se formos pensar na publicação da poesia não restrita ao livro como ainda não obra,
talvez recaiamos na essencialização da obra, definindo a obra como o livro e o ainda não obra
como as publicações eletrônicas. Prefiro, todavia, pensar todo esse campo estendido de
divulgação, seja em meio impresso, seja em meio eletrônico, como obra, em todo seu conjunto
enquanto “objeto vivo”.
Outro aspecto ligado aos anteriores, que se liga também à compreensão dessas escritas,
acontecidas no presente, do presente, sobre o presente e até para o presente, como um “objeto
vivo”, seria o que Agamben fala como “fragmentos de uma obra em andamento tendem a se
confundir com a vida” (AGAMBEN, 2018, p.119). Poesia e vida serão vistas, aqui,
indissociavelmente, no sentido que Gloria Anzaldúa diz em Falando em línguas: uma carta
para as mulheres escritoras do terceiro mundo: “O perigo ao escrever é não fundir nossa
18

experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história,
nossa economia e nossa visão” (ANZALDÚA, 2000, p.233). Evocando as “realidades pessoais
e sociais” com as substâncias quentes do corpo, com “sangue, pus e suor” (ANZALDÚA, 2000,
p.235), o poema criado com as vísceras é aquele que diz algo diferente do que se queria dizer,
é aquele que se desdobra em outra coisa e expõe a nudez que não se imaginava chegar, como
Anzaldúa discorre na carta (ANZALDÚA, 2000, p.234). Nessa nudez a que se chega,
indissociar escrita e vida também significa dizer que o eu ficcional, ou o que chamo de eu do
poema, sujeito do poema, eu performativo, se confunde com o eu autobiográfico. Ou melhor,
há um eu autobiográfico que se abre na medida em que ele diz de si, sendo uma singularidade
que abrange uma pluralidade de outras singularidades.
Isso se justifica também pelo cenário atual em que a poesia tem sido produzida. Em um
passado recente, a poesia esteve muito atrelada a diplomatas, burocratas, embaixadores,
funcionários públicos. Hoje, o alcance da poesia faz com que seja possível haver poetas
professoras e faveladas poetas. Se há uma ampliação social na poesia, isso não deve ser
desvinculado de práticas políticas realizadas durante treze anos no Brasil. Transitar entre
periferia, subúrbio, academia e poesia nunca foi a regra neste país. A garantia do livre-trânsito
entre esses meios ainda é uma luta constante.
Tatiana Pequeno nasceu em 1979, Bruna Mitrano nasceu em 1985 e Valeska Torres
nasceu em 1996. Entre a primeira e a última são dezessete anos de diferença, o que praticamente
compreende uma geração. Além de poetas, Tatiana Pequeno é professora universitária, Bruna
Mitrano é professora aposentada da rede pública e mestra pela UERJ, e Valeska Torres é
universitária, estudante de graduação em Biblioteconomia na UNIRIO. As três, portanto,
possuem ou já possuíram um vínculo com a academia e as três vêm de zonas suburbanas ou
periféricas do Rio de Janeiro. Isso se torna central para mim porque cada uma, a seu modo, não
escreve sem colocar isso como questão. Direta ou indiretamente, os poemas tematizam o
subúrbio e a periferia. Nesses livros, todos os caminhos levam ao subúrbio e à periferia. Assim,
a pobreza, a “vida precária”, o “corpo exposto” (BUTLER, 2011, 2018, 2019) são linhas
centrais que vão perpassar todas as abordagens.
Em Os Pobres na Literatura Brasileira, livro organizado por Roberto Schwarz, os
ensaios situam a pobreza na literatura desde o século XVIII. Uma das figuras mais faladas nos
estudos sobre literatura colonial é o “vadio”: Laura de Mello e Souza fala que os vadios eram
“os homens livres expropriados”, eram “indivíduos não inseridos na estrutura da produção
colonial”, mas que podiam, “de um momento para outro”, ser aproveitados por ela (MELLO E
SOUZA in SCHWARZ, 1983, p.10). Era um contingente humano considerado “inútil”, como
19

“aqueles que não pesam nem influem de maneira alguma nas decisões últimas da administração
superior”, como diz Alexandre Eulalio (EULALIO in SCHWARZ, 1983, p.23). Localizada
“nos interstícios que a mão-de-obra escrava não ocupava” (MELLO E SOUZA in SCHWARZ,
1983, p.12), podemos dizer que essa categoria não se enquadra nem nos privilégios dos homens
livres nem na exclusão dos escravos: eram homens livres, mas não fruíam dos privilégios de
homens livres e não eram escravos, mas eram considerados “os verdadeiros desvalidos, ao lado
de quilombolas e escravos amontoados” (EULALIO in SCHWARZ, 1983, p.25). Nem
plenamente homens livres nem plenamente escravos, entre esses e aqueles, essa zona borrava
os contornos das outras categorias porque se relacionava com ambas (“o relacionamento deles
com os demais segmentos sociais permanece sempre problemático” (EULALIO in SCHWARZ,
1983, p.23)) sem pertencer, de fato, a nenhuma delas. No entanto, eram esses que eram “vistos
como ‘revoltosos’ em potencial”, “as vítimas preferenciais da opressão mineira durante o longo
ocaso do domínio metropolitano nas Minas Gerais”, diz Eulalio (EULALIO in SCHWARZ,
1983, p.25). Iremos ver que essa lógica “dentro-fora”, isto é, de inclusão em uma categoria que
não funciona senão por sua exclusão, atravessa os tempos, chegando até os trabalhadores de
hoje, chegando desde antes, desde os escravos gregos, desde, historicamente, as mulheres,
desde os bárbaros atualizados na figura dos imigrantes: todos esses e todas essas foram e são
parte constitutiva de um sistema que, porém, os excluía e os exclui. Ir ao que queima, no duplo
sentido que isso aqui implica, ir ao amor e ir ao horror, é ir ao Brasil atual, à tão fina matéria
vida, à silva, à floresta, ao que está “ao lado de quilombolas”, ao que supostamente é livre, mas,
de fato, não é nem nunca foi, enfim, é ir ao incontornável da pobreza e de um amor que não
existe apesar de, mas na e com a condição precária a que um corpo é exposto.
20

I. ENTRE UM PONTO A MAIS E UMA VÉRTEBRA A MENOS OU


IR AO AMOR, IR AO HORROR: O DUPLO GESTO DO VERSO
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1.1. Estado de crise: gozo e jogo, ataque de nervos e mal-entendido

toda literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror


(Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, defesa do atrito)

Em Encore,3 Lacan lança a pergunta: “Será que não é pelo defrontamento desse impasse,
dessa impossibilidade, definindo como tal um Real, que é posto à prova o amor [...]?” [Est-ce
que ce n’est pas de l’affrontement à cette impasse, à cette impossibilité définissant comme tel
un réel, qu’est mis à l’épreuve l’amour] (LACAN, 1972-1973/2010, p.274). Falando do amor
por meio dessa pergunta sobre o impasse da relação sexual, dessa impossibilidade de encaixe,
falando da “coragem” que resta ao amor diante desse impasse “em vista desse destino fatal” [le
courage au regard de ce destin fatal], falando dessa coragem como “uma espécie de poesia”,
[par une sorte de poésie pour me faire entendre], Lacan fala de um reconhecimento [Est-ce
bien de courage qu’il s’agit ou des chemins d’une reconnaissance] e não conhecimento, como
uma ilusão de instante: em um lance, algo começa a se escrever: por um instante, temos a ilusão
de que se escreve, de que cessa de não se escrever [pour un instant, peut donner l’illusion de
“cesser de ne pas s’écrire”], de que “não somente se articula mas se inscreve, se inscreve no
destino de cada um” [quelque chose non seulement s’articule mais s’inscrive, s’inscrive dans
la destinée de chacun] (LACAN, 1972-1973/2010, p.275). Nesse momento, “durante um
tempo, um tempo de suspensão [par quoi pendant un temps, un temps de suspension], o que
seria a relação sexual encontra, no ser que fala, seu rastro e sua via de miragem” [trouve sa
trace et sa voie de mirage] (LACAN, 1972-1973/2010, p.275). O amor se agarra nesse ponto
de suspensão – que é um deslocamento: o deslocamento do “não” [Le déplacement de cette
négation], o deslocamento da contingência – de quando algo que não estava escrito começa a
se escrever –, para a necessidade, para o “não para de se escrever [ce qui ne cesse pas de ne
pas s’écrire], não para, não parará” (LACAN, 1972-1973/1985, p.199). É esse deslocamento
“o ponto de suspensão a que se agarra o amor” [c’est bien là le point de suspension à quoi
s’attache tout amour] (LACAN, 1972-1973/1985, p.199). Para Lacan, esse ponto de suspensão
[point de suspension] “constitui o destino e também o drama do amor” [fait la destinée et aussi
le drame de l’amour] (LACAN, 1972-1973/2010, p.275). Isso não é harmonioso, porque uma

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Serão usadas as traduções da Escola Letra Freudiana (2010) e a de M. D. Magno (1985), conforme a citação
escolhida estiver se inserindo melhor no texto. A edição francesa será referida entre colchetes e está disponível em
https://seminariosdelacan.com.br/acervo-jacques-lacan/ Acesso em 20/04/2019.
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abordagem do ser pelo amor é uma abordagem da quebra, da fragmentação, da divisão, daquilo
que se sustenta como uma parte, um pedaço, um resto, uma falha [Quand il aborde, j’ai posé
expressément la question, est-ce que ce n’est pas là que surgit ce qui fait de l’être, précisément
quelque chose qui ne se soutient que de se rater] (LACAN, 1972-1973, p.111). Uma abordagem
do ser como aquele que ama não é uma abordagem do ser, mas uma abordagem do ser roubado
pelo amor: o ser que ama é um ser roubado. O ser como tal não é o ser: “O ser como tal é o
amor que chega a abordá-lo no encontro” [La rencontre de l’être comme tel, c’est bien là que
par la voie du sujet, l’amour vient à aborder] (LACAN, 1972-1973/1985, p.199). É um assalto.
O amor assalta o ser e aquele que ama se vê sobressaltado, na violência desse ponto de
suspensão [point de suspension], na violência desse imprevisto, desse acontecimento pelo qual
se é tomado. Acreditar no amor é crer nesse lance singular, nesse espanto, nesse arroubo.
Desde Mallarmé, vemos a poesia, privilegiadamente, como um lance de dados. Um
verso é um lance. Mesmo que visualmente em formas não radicais ou menos radicais, passamos
a tender a olhar o verso nessa infinita possibilidade de constelação, como um corpo em
suspensão nesse caminho traçado sobre o abismo, inclinado para o desastre. Não poderia
privilegiar a leitura do verso a partir da hesitação, do desencaixe, da discórdia, da disjunção,
como farei aqui, sem referenciar Mallarmé e suas importantes proposições tecidas em Crise de
Vers (1895) e Un coup de dés (1897).
Un coup de dés fala entre o naufrágio, aquilo que está mais embaixo, e o céu estrelado,
aquilo que está mais em cima. À primeira vista, o poema parece invocar uma pessoa a bordo de
uma embarcação à beira do naufrágio que hesita em lançar os seus dados sob um céu estrelado
cobrindo o mar revolto (MALLARMÉ, 1974, p.149-173). Mas, em se tratando de Mallarmé,
nada disso é apenas propriamente isso. Todos os versos são lances cujas constelações formadas
se abrem como um convite à interpretação. Um lance de dados mostra que o poema não é um
produto acabado, mas algo que está sempre em construção, que não se fecha nem na estrutura
como um somatório em uma estrutura fixa com tantas métricas e tantas rimas, nem no sentido.
A tradução brasileira do título Un coup de dés traduz coup como “lance”, em que
podemos também ler “jogo”. Apesar de “jogar” ser, em francês, jouer, retomamos aqui os dois
sentidos que o verbo spiel tem em alemão: jogar e encenar, assim como play tem em inglês,
brincar, tocar e encenar. Dessa forma, o poema passa a ser compreendido como um espaço de
jogo, de encenação, de improviso. O poema passa a ser aquilo que põe a vida, a língua, a forma,
o verso, a estrutura, em cena, em jogo, em questão. Vale lembrar que a poesia nasce do
improviso da lira e da performance dos rapsodos, isto é, do modo como eles encenavam. Poesia,
improviso e performance, portanto, sempre andaram juntos. É preciso dizer que a relação entre
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jogo, poesia e amor é íntima e antiga (o amor, aqui, é entendido a partir de Eros, portanto, não
dissociado do sentido erótico). Na criação da lira, o objeto que dará origem à lírica, à poesia, a
dimensão lúdica já está atrelada à dimensão erótica – e à dimensão animal. A lira nasce de uma
brincadeira, da brincadeira de Hermes, o trapaceiro, com um objeto, que é um animal, a
tartaruga. No Hino Homérico a Hermes podemos ler, em mais de um momento, que esse
brinquedo é dito como “amável” [ἐρατὴν] (primeira e segunda ocorrências, quando o animal
ainda não foi transformado em lira: “o amável brinquedo” [ἐρατεινὸν ἄθυρµα] (HOMERO,
2010, p.408) e “amável tartaruga” [χέλυν ἐρατὴν] (HOMERO, 2010, p.418); terceira
ocorrência, quando já há lira: “Amável [ἐρατὴ] em seu peito percorreu a vibração da divina
melodia [...]” (HOMERO, 2010, p.438) e também a voz que acompanha a lira é amável: “[...]
e logo, ao som arguto da lira,/ preludiou uma canção – e amável [ἐρατὴ] era a voz
acompanhante!” (HOMERO, 2010, p.440)). “Amável”, em grego, é “eros” (ἔρως), declinado.
A partir disso vemos que o vínculo entre o lúdico e o erótico desde os gregos constitui a poesia.
O jogo, o puro improviso – que transforma o silêncio em possibilidade de som, que transforma
o animal em poesia, que cria a poesia a partir da matéria e da afonia do animal – trazem a
trapaça como potência de linguagem. E mais: de endereçamento, de mediação, de
intermediação. Hermes, o trapaceiro, é também o mensageiro.
Apostar no lance como quem joga com a língua é, em Mallarmé, apostar também em
uma tentativa de mudar o mundo. O jogar com a língua, antes de ser uma apropriação do real,
é um modo de golpear o real, é um golpe no real, é um coup. A língua golpeia o real. Assim,
essa trapaça erótica se faz como uma trapaça ética. Finalmente, a relação das mais importantes
que enlaça a associação entre o jogo e o gozo possui eco em francês: jouer, jouir e joie. Jogar
e gozo (jouissance) estão, pois, em estreita afinidade. Há gozo nesse jogo, nesse lance, nessa
encenação. Há júbilo, há joie.
Em Estâncias, Giorgio Agamben diz que os poetas do século XIII chamavam “estância”
[stanza] o núcleo essencial da poesia trovadoresca, “porque ele conservava, junto a todos os
elementos formais da canção, aquela joi d’amour, em que eles confiavam como único objeto
da poesia” (AGAMBEN, 2007, p.11). Em nota de rodapé, lemos que “joi d’amor é a expressão
usada pelos trovadores para expressar a alegria da paixão amorosa, ‘a alegria do amor’, o ‘gozo
do amor’” (AGAMBEN, 2007, p.11). Em outro momento do livro, vemos que “o uso da palavra
‘stanza’ para indicar uma parte da canção deriva do termo árabe bayt, que significa ‘morada’,
‘tenda’ e, ao mesmo tempo, ‘verso’” ” (AGAMBEN, 2007, p.211), e que a palavra provençal
joi, “que resume em si a plenitude da experiência erótico-poética dos trovadores, está também
etimologicamente relacionada a uma prática linguística, enquanto deriva presumivelmente de
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“Jocus”, que pode ser traduzida como “jogo de palavras”, “brincadeira”, “gracejo”,
“divertimento” (AGAMBEN, 2007, p.211). Assim, o verso como estância da alegria ou do gozo
do amor é um jogo, um jogo de palavras. No sentido trovadoresco, é como um jogo/gozo, um
jogo jocoso, que o verso é necessariamente a estância onde se dirige um desejo, onde se
encontra expresso o objeto de desejo. Desde já vemos então o verso como o lugar, a estância
do amor, em que se goza.
Mas o gozo não está só no júbilo. Leyla Perrone-Moisés diz em apresentação de Aula
de Roland Barthes: “jouissance é a realização paradoxal do desejo em pura perda” (PERRONE-
MOISÉS, 1978, p.80). É porque está em uma relação de perda que o gozo se realiza. O gozo é
aquilo que não alcança o que busca, precisa de uma falha para continuar acontecendo. Como a
teórica também afirmou, a partir de Encore de Lacan, "o gozo é o que o sujeito alcança no
malogro da relação sexual" (PERRONE-MOISÉS, 1978, p.80). A condição de manutenção do
gozo é a brecha irrompida do fracasso. Só assim ele se realiza como o que continua acontecendo
e não como o que termina quando atinge o fim no ápice. Ele não visa atingir a um fim, ele não
visa a nada, e é assim que ele continua acontecendo. Já disse Lacan: "O gozo é o que não serve
para nada" (LACAN, 2010, p.14). Tirado da relação de meios e fins, podemos compreender o
poema tal como o gozo, como aquilo que escapa à lógica do consumo, que fura a máquina do
capitalismo. Fora da esfera da utilidade, o poema, como Barthes falou da literatura, “não
instrumentaliza a língua, mas opera com os seus estragos, faz uso deles” (BARTHES, 1978,
p.19). Nisso consiste o gozo. Operar com os estragos, fazer uso dos fracassos, das falhas, dos
desencaixes, eis o que permite fazer continuar acontecendo. Voltaremos a isso. Por ora,
aproximando-me de Mallarmé, é preciso dizer que o gozo não está só no júbilo, está na tensão
irresoluta que faz do verso um ataque de nervos. Novamente, esse ataque pode ter um sentido
de crise e de golpe (coup). O ataque de nervos é, ao mesmo tempo, uma crise de nervos e um
nervo que golpeia.
Mallarmé instaura um novo modo de olhar o verso e, sobre isso, convoco as palavras de
Marcos Siscar:

O novo verso é entendido não apenas como sequência de palavras que


compõem uma linha interrompida, mas como momento irritado em que se
acentua a dicção, momento em que o texto é capaz de dar conta dessa oscilação
ou dessa “hesitação” (retomando uma palavra de Valéry) que constituiria o
poético (SISCAR, 2008, p.214).

Enfatizo aqui o entendimento do verso como “momento irritado”. O verso passa a ser
entendido como um instante, um momento, que assume um estado (irritado). É isso que nos
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permite afirmar, com Siscar, que o verso é um estado de crise: “Uma crise de verso [...] é a
situação na qual o verso manifesta-se irritado, enervado, em estado crítico” (SISCAR, 2008,
p.212). Não existiria, em sua compreensão, uma crise do verso que se desse como se, a partir
de um momento, o verso, que não estava em crise, passasse a estar. Pelo contrário, o verso é,
em sua existência, crise. Nesse sentido, o teórico vai contra a tradução do ensaio de Mallarmé
como “Crise do Verso”, defendendo que o título seja traduzido como “Crise de Verso”, porque,
em sua interpretação, com a qual concordo, o verso é aquilo que está permanentemente em um
ataque de nervos (crise de nerfs):

A crise não designa um fato histórico que atinge a poesia, ou que teria
consequências sobre a poesia, como normalmente se pensa, mas é um modo
de nomear um estado de poesia, um determinado tratamento dispensado ao
poema que oscila entre o repouso da tradição e o interregno interessantíssimo
do “quase” (SISCAR, 2008, p.215).

A leitura do verso como um ataque de nervos, ou uma crise, ou um golpe, tem


ressonância com uma compreensão do verso como aquilo que se inclina para o acidente, e foi
Mallarmé quem falou da poesia como um testemunho de um acidente (FELMAN, 2000, p.30).
Para Shoshana Felman, essa abordagem do verso pelo acidente tem relação direta com a
introdução do verso livre na poesia francesa, como uma celebração pela violenta ruptura
linguística (FELMAN, 2000, p.31). O verso como uma escrita inclinada para o acidente seria,
antes de tudo, uma celebração da quebra como crise fundamental. Celebrar a violência, a quebra
ou a ruptura do verso significaria celebrar a explosão da tradição, o estilhaçamento dos dogmas,
os abalos das estruturas fundacionais, a queda do absolutismo. Ser testemunho de um acidente
significaria ser testemunho de uma acidentalização do poder. Quando Mallarmé diz “Fizeram
violência ao verso”, o que se lê nisso é uma indissociação entre poesia e política, são os “efeitos
da revolução poética indissociados dos abalos desencadeados pela Revolução Francesa”
(FELMAN, 2000, p.32). Como bem disse Felman, “o que o verso livre acidentalmente pontua
não é somente a poesia anterior, agora modificada por ele, mas a relação, anteriormente não
vista e mal-entendida, que o acidente revela entre cultura e linguagem, entre poesia e política”
(FELMAN, 2000, p.33).
É preciso escutar com calma a frase “o poema como testemunho de um acidente”. Ora,
o poema como testemunho de um acidente é aquele que esteve cara a cara com o acidente. Ser
testemunho de um acidente é mirar a catástrofe. E como todo testemunho que porta a marca do
acidente, não se consegue falar seguramente sobre essa experiência, sobre essa situação-limite,
se não se fala sem saber seguramente, hesitando, desviando, gaguejando, ofegando, entre
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murmúrios, soluços, silêncios, gemidos, grunhidos, gritos, choros, isso que escapa à articulação
lógica do discurso, ao conhecimento e à consciência. Conforme Shoshana Felman, Mallarmé
instaurou, a partir da ambiguidade sintática de sua poesia, uma relação entre acidente e
testemunho em que deixa em suspenso a questão se quem persegue o testemunho é o acidente
ou se é o testemunho que persegue o acidente (FELMAN, 2000, p.35). O que se abre disso é
uma dimensão ética e política do poema pela via do acidente e do testemunho. Compreender o
poema como aquilo que aponta para o desastre, como quem mira a catástrofe ou como
testemunho de um acidente, é ver o poema como uma ética e como uma política. Por ética
entendo como um caminho que leva ao outro, que tem o outro como limite; mais
especificamente, como uma abertura à alteridade cuja vida do outro é tratada, antes de tudo,
como uma dedicação, como um debruçar-se, um dobrar-se sobre, um voltar-se para. Por política
entendo como inclusão e acolhimento daquilo que a compreensão de política vigente desde,
pelo menos, os gregos, sempre excluiu. Nesse caso do testemunho, leia-se: o emudecimento, o
inarticulado, o desconexo, que sempre esteve mais próximo do animal do que do humano e, por
isso, excluído da política, desde os gregos, como veremos mais à frente.
Nesse sentido, me afino com a concepção de Judith Butler, discorrida no ensaio Vida
Precária, em que a ética atrelada à alteridade não existe a priori: a ética tem estreita relação
com a precariedade do outro. Sob o pensamento de Levinas, junto a Butler acredito que o
vínculo entre ética e alteridade se faz quando esse outro se encontra sob ameaça, quando esse
outro é necessariamente marcado por uma vida precária (BUTLER, 2011, p.13-33). Ver o
poema como testemunho de um acidente significa, portanto, vê-lo como um caminho ao outro
como quem cuida de suas feridas, e vê-lo como aquilo que acolhe e inclui o que a política
sempre excluiu: esses e essas que hesitam, desconexos, fragmentados, cheios de cortes e
buracos, que sempre estiveram mais perto de uma animalidade, têm uma relação íntima com a
precariedade da fala do testemunho.

Tanto no caso de Mallarmé, como no de Freud, o que constitui a


especificidade da figura inovadora da testemunha é, de fato, não apenas o
simples relatar, não o simples fato de reportar o acidente, mas a disposição da
testemunha para tornar-se, ela mesma, meio para o testemunho – e um meio
para o acidente (FELMAN, 2000, p.36, grifos da autora).

Shoshana Felman usa a palavra “reportar”, em itálico. Reportar o acidente, para ela,
não é relatar, é tornar a testemunha mesma um meio de acidente. Reportar não quer dizer aqui
transmitir, ser um mero suporte para a comunicação de uma informação, ser um meio para, mas
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apenas um meio que se mantém enquanto meio. Portando de novo o acidente, o que se reporta
não é uma mera informação, uma comunicação, mas a manutenção de uma comunicabilidade,
de um espaço que não cessa de se enviar como meio de testemunho e de acidente. Sem saber
quem persegue quem, quem chega primeiro, o poema como aquilo que porta o acidente, como
testemunho do acidente, não porta senão o acidente como meio, e não porta senão o testemunho
como meio. É como acidente e testemunho que o poema se reenvia, se reporta, incessantemente,
como lugar de testemunho e de acidente. Sendo, ao mesmo tempo, testemunho e acidente, o
que ele transporta é o testemunho e o acidente como meio que se reenvia, não se fechando a um
dito, a uma comunicação, mas se expondo como comunicabilidade e se abrindo como condição
de possibilidade a testemunhos e acidentes outros. Sendo, ao mesmo tempo, testemunho e
acidente, o que ele transporta é o testemunho e o acidente como um caminho que nunca chega,
que se mantém como caminho, trajetória, travessia, não se fechando em uma ferida, mas se
abrindo como acessos: “Enquanto um evento direcionado à criação de um ‘tu’, a poesia se torna,
precisamente, o evento da criação de um endereçamento para a especificidade de uma
experiência histórica que aniquilou qualquer possibilidade de endereçamento” (FELMAN,
2000, p.50, grifo da autora).
Não é à toa que Felman diz que os estudos de Freud sobre o sonho se dão no mesmo
período que a concepção de Mallarmé do poema como testemunho do acidente, assim como
não é à toa que a crítica se refere a Mallarmé como “a testemunha do acidente” e depois a Paul
Celan como “a testemunha da catástrofe”, porque, para ela, a devastação que a Segunda Guerra
Mundial instaurou foi mais que um acidente:

Como Mallarmé – a testemunha do acidente –, Celan – a testemunha da


catástrofe – é, por sua vez, um viajante, um viajante testemunha, cuja poesia,
precisamente, está pesquisando, por meio de seu testemunho, as direções
obscuras e os destinos desconhecidos de sua jornada (FELMAN, 2000, p.37).

Aliando as duas testemunhas, Mallarmé e Celan, acidente e catástrofe, o verso será visto
como um caminho acidentado que mira, ainda, a catástrofe. E, é preciso reafirmar, enquanto
uma escrita do desastre, da queda, os lances que se abrem nos abismos, por outro lado, também
podem ser golpes, como uma tradução possível de coup e como a tradução dos tempos que
temos vivido no Brasil desde antes de 2016, quando se deu o golpe definitivo à presidenta Dilma
Rousseff. Quando falarmos acidente, desastre, catástrofe, ferida, fratura, devemos escutar,
nessa palavra, também, “golpe”. O lance é, pois, um golpe. Há nele essa dimensão do horror.
Se vamos ver ao longo desse texto que o gesto do verso, como um lance, se abre para o amor,
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desde aqui, da tradução do lance, da tradução de coup, vemos que desde já ele aponta também
para o horror, apontando o golpe, mas, também, sendo um golpe, um contragolpe, golpeando.
Nessa dupla posição, como quem sofre e como quem executa, como objeto e como sujeito.
Ver o poeta como um viajante talvez implique ver o poema como uma viagem, uma
experiência, uma travessia, um caminho desconhecido que se atravessa. Como uma experiência,
aquilo que está fora dos limites, aquilo que se faz indo através dos limites, ir através desse
caminho é ir aos limites. Ser recebido como um viajante é estar lançado à sorte de ser recebido
com a hospitalidade de um convidado ou com a hostilidade de um exilado ou um deportado.
Shoshana Felman disse que Mallarmé foi recebido como convidado e Celan como deportado
(FELMAN, 2000, p.37-38). Eu diria que a política começa quando um poeta, enquanto viajante
testemunha, e quando um poema, enquanto testemunho do golpe, do acidente ou da catástrofe,
mesmo se convidado, faz de si um lugar de endereçamento e de escuta do deportado, ao expulso,
ao excluído, na impossibilidade de sê-lo.

Cris de vers defende a ampliação das possibilidades de versificar para além da poesia
elevada, de revelações sublimes tal como acontecia majoritariamente na tradição em que
prevalecia a visão declamatória da poesia. Com a morte Victor Hugo, morria a grande
autoridade do verso, morria o verso oficial francês, o alexandrino tornava-se um fantasma.
Criticando a predominância da versificação alexandrina de 12 sílabas, a inovação visual de Un
coup de dés abalava as ideias tradicionais de verso e ritmo, “plasmando o poema em uma
espécie de partitura de entonações elaborada segundo um expediente nitidamente
composicional” (FABIANO, 2013). Em “Crise de verso”, Mallarmé via na morte de Victor
Hugo a morte da autoridade, da poesia vinculada exclusivamente a um grande autor, e assim se
dava uma liberação do verso: nem propriedade de uma autoridade nem declamação elevada de
um encanto revelado, pode então haver uma poesia que não se eleva nem revela. Em
contraposição aos “orgíacos excessos” do “cânone hierático do verso” da “tradição solene”, o
tom baixo, rasteiro e errático se fez como meio de um gozo sem finalidade nos caminhos
esburacados do “quase” (MALLARMÉ, 1895, s/p)4. Ou, nas palavras de Siscar, “o fim dos
‘orgíacos excessos’ é também o início da multiplicação de “deliciosos quases” (SISCAR, 2008,

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Disponível em https://www.jeuverbal.fr. Acesso em 27/07/2019.
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p.212). Com o fim do orgasmo fálico que só se dá ao fim, como ápice, os orgasmos múltiplos
podem começar. Através dessa leitura, o espaço que surge como meio, sempre a meio caminho,
o interregno, a hesitação, o entredois, é a crise, a tensão, por onde, no entanto, é possível
começar, continuar e gozar.
Todavia, esse gozo do verso que se dá por uma crise de verso tem como condição o
corte que barra e produz diferença. Se pensarmos na crise como essa palavra que vem sendo
falada nos últimos anos, referindo-se à política (com o objetivo, sobretudo, de golpear a
presidenta Dilma e o governo PT), essa crise não tem como condição o corte, essa crise não é
barrada, porque a crise é o sustento do capitalismo, ou seja, não há capitalismo sem crise, a
crise é por onde o capitalismo goza. Como Vladimir Safatle diz em Quando as ruas queimam:
manifesto pela emergência, há uma “necessidade contínua de catástrofes e de circulação de
insegurança como prática de governo” (SAFATLE, 2016, p.9); “a crise, em todas as suas
formas, virou uma forma de governo. O ideal do neoliberalismo é transformar a prática de
governo na gestão de um gabinete de crise” (SAFATLE, 2016, p.10). Mas esse gozo, no qual
se sustenta um governo que não gesta nada senão crise, não é barrado, não há nada que o
interrompa e produza nele alguma diferença, ele é desenfreado, por isso, é o horror. O gozo da
crise de verso, ao contrário da crise política, é propulsor, a cada vez, de uma diferença, seja do
sentido, seja da forma, não produzindo uma aniquilação e uma autodestruição, mas um acesso
por onde se produz a diferença. Ao contrário do gozo atrelado ao horror, da crise que faz o
capitalismo, temos, do outro lado, a crise de verso em que o gozo se atrela ao júbilo, ao lance
como jogo, jogo erótico, abertura e possibilidade.
A poeta e teórica Annita Costa Malufe, lendo o percurso teórico e poético do poeta e
teórico Marcos Siscar, teceu uma leitura da crise definindo-a como “indecisão da forma”
(MALUFE, 2012, p.268). Ler a crise como um “efeito de hesitação”, como Siscar (2010), e
como uma “indecisão da forma”, como Malufe (2012), é ler a poesia como uma forma precária
e porosa, como um estado ininterrupto de mudança, e, também, é ler a crise não como fator que
impossibilita, mas como o que dá passagem. Ao contrário de impedir, essa tensão é o que
permite a transformação e a polimorfia, aquilo que, em “Ideia da Prosa”, Agamben chamou de
“essencial hibridismo de todo o discurso humano” (AGAMBEN, 1999, p.32). Siscar aponta que
a questão do verso “não é uma questão puramente formal (ou ‘formalista’), mas que diz respeito
a uma tensão histórica, passo importante na constituição da crise não apenas como contexto,
mas como discurso (como projeto e como retórica) da poesia moderna” (SISCAR, 2008, p.214).
Estendendo a leitura de Siscar, entrelaçando-a com a de Agambem, resta a nós vermos a crise
que sustenta o discurso humano e o verso. Isso significa já ver o discurso humano lá onde,
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stricto sensu, não haveria verso, como potencialidade de verso, como um encontro não
resolvido, um encontro que é, como Agamben disse da poesia, uma “íntima discórdia”
(AGAMBEN, 1999, p.32). Se Mallarmé também disse que “o verso está em toda parte da língua
onde há ritmo”, se ele disse que “existe verso onde se acentua a dicção”, pode haver verso até
mesmo na prosa (MALLARMÉ, 1895, s/p). Ou melhor, pode haver essa crise, um efeito de
hesitação, que aqui lemos privilegiadamente pelo verso. Todavia, não é à toa que privilegio a
leitura pelo verso, porque talvez ele exponha mais radicalmente essa relação não pacificada, e
também porque escuto uma relação entre crise, poesia e falta nas palavras de Siscar. Escutemos
como o texto do poeta e teórico termina: “[a poesia faz alguma diferença] não é por antever ou
por apontar aquilo que falta, mas por transformar-se no terreno ou no interregno dessa falta. A
poesia é aquilo que falta” (SISCAR, 2008, p.217). Sendo crise, também é falta.
Ora, alguns críticos têm diagnosticado uma crise da poesia contemporânea de forma
pessimista. De acordo com a visão de Siscar, a crise não é só positiva, é fundante de uma poesia
que se quer crítica. Em seu livro Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos
da modernidade (2010), um “sentimento de crise” é pensado de forma propositiva como uma
herança crítica da modernidade. A poesia se sustenta em um estado de crise. É o estado de crise
que permite que ela fale uma linguagem não pacificada, que permite que ela tenha um teor
crítico. O poeta crítico é aquele que não se livra dos paradoxos e das contradições da realidade
social, mas os expõe. “A crise é um modo de nomear um estado da poesia” (SISCAR, 2010,
p.113). Assim, recorrendo à etimologia da palavra “crítica”, que já traz, em si, a crise, Siscar
aponta de modo afirmativo a poesia como lugar privilegiado de crise, ou seja, de crítica, de
pensamento, de exposição do pensamento, torcendo as leituras de críticos que veem alguma
poesia contemporânea apartada de um sólido projeto estético e de um aparato político.
Desde o final dos anos 90, uma parcela de críticos não vem reconhecendo a importância
poesia brasileira contemporânea, baseando-se no argumento de que esta poesia se imbui de uma
pluralidade de dicções e estilos rasos, não se servindo criticamente tampouco das influências
da vanguarda, uma vez que não se utiliza destes elementos para apresentar um antagonismo de
forças ou conflitos de classes que são constitutivos do tempo histórico (SIMON, 2011; 1999).
Eles consideram que a poesia do presente, pós-vanguarda, pós-utópica, está em uma crise
constituída, na verdade, por uma “total falta de crise” (PÉCORA, 2005), e por isso fala “um
idioma que está hoje pacificado”, manipulando a pluralidade estética com legados da tradição
a fim de uma fácil e descompromissada entrada no mercado (SIMON, 1999; PÉCORA, 2005).
O que se percebe é que esta crítica reivindica um caráter estratégico à poesia que não seria mais
possível, já que o caráter utópico teria terminado com o fim da vanguarda (CAMPOS, 1997).
31

Assim, sem conseguir identificar um explícito e específico projeto estético e político a partir do
qual a poesia se defina, diagnosticam que essa perdeu sua força política.
Procurando refletir sobre esta crítica, Marcos Siscar – para quem um “sentimento de
crise” é pensado de forma propositiva como uma herança crítica da modernidade, apontando
um modo crítico de a literatura se relacionar com o presente e abraçar as contradições e
paradoxos da realidade social (SISCAR, 2010, p.17-22) –, considera que o desafio é ver a
pluralidade de uma maneira não apaziguada, ou seja, perceber a heterogeneidade e a
multiplicidade não “sem cisma, sem alteridade” (SISCAR, 2014, p.439-440). Este estudo vai
ao encontro desta outra parcela de críticos e teóricos que tem visto na poesia, especificamente
contemporânea, em sua diversidade desatrelada de um projeto estético e político, modos de uma
incisão política.
Gostaria ainda de ressaltar que a conexão entre poesia e pensamento, para Siscar, vem
pelo estado ou sentimento de crise, ou seja, vem pelo fato de a poesia, desde a modernidade,
ser vista como uma poesia crítica. Gostaria de propor que, talvez, o vínculo entre poesia e
pensamento não seja dado apenas pela herança crítica da modernidade, mas pelo verso e pelo
pensamento terem um princípio em comum: a suspensão, a pendência. O movimento comum
aos dois os aproxima, verso e pensamento, no ponto que sustenta a ambos pela suspensão.
Ambos pendem e a ambos pendem, por um momento, o sentido. Há uma falta do sentido a
ambos. Por um momento, há um atraso, um adiamento, uma pendência. Verso e pensamento se
aproximam também nessa falta. E é esse movimento e o que se abre nisso que podemos ver o
verso como o “emprego a nu do pensamento”, para usar as palavras que Mallarmé define Um
lance de dados – o pensamento em sua nudez, “com retrações, prolongamentos, fugas”
(MALLARMÉ, 1974, p.151). Talvez, esse movimento – pendido, de suspensão – que aproxima
pensamento e verso, seja o que Siscar chama de “estado de crise”, talvez seja o que nos permite
ler, no verso, amor e horror, essa “íntima discórdia”: o que desarticula e o que articula, o que
rompe e o que tenta costurar.

Se podemos ler, com Siscar e Mallarmé, a poesia como “estado de crise”, se podemos
ler, com Agamben, que a poesia é o lugar da “íntima discórdia”, é importante recuperar também
Baudelaire, que já compreendia a poesia como “mal-entendido”. No mesmo ano em que era
publicado Folhas de Relva (1855), de Walt Whitman, Baudelaire publicava seus Pequenos
poemas em prosa ou O Spleen de Paris (1855-1864). Antes de chegar a Baudelaire, não
32

podemos passar por uma nova concepção do verso sem mencionar o poeta que escreveu
“Resisto a tudo menos [à] minha própria diversidade” (WHITMAN, 2005, p.67). Whitman, o
poeta da Revolução Americana, da liberdade, da democracia, da multidão, dos escravos, dos
oprimidos, libertou o verso e fez com que nele coubesse uma multidão. É como se o verso
precisasse também ficar livre para acolher, irredutivelmente, o outro. É como se o verso
precisasse se estender e perder as correntes nos pés para caber todo mundo:

Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,


Vozes das intermináveis gerações de escravos,
Vozes das prostitutas e pessoas deformadas,
Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões,
Vozes dos ciclos de preparação e acreção,
E dos fios que conectam as estrelas – e do útero e do sêmen,
E dos direitos dos que são oprimidos pelos outros,
Dos deformados e insignificantes e tontos e imbecis e desprezados,
Do fogo no ar e besouros rolando bolas de bosta.

Por mim passam vozes proibidas,


Vozes dos sexos e luxúrias . . . . vozes veladas, e eu removo o véu,
Vozes indecentes esclarecidas e transformadas por mim.

Não cruzo o dedo sobre a boca,


Cuido bem dos meus intestinos tanto quanto a cabeça ou o coração,
A cópula não é mais indecente do que a morte.

Acredito na carne e nos apetites,


Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de
mim.

Sou divino por dentro e por fora, torno sagrado tudo que toco ou que me
toca;
O odor dessas axilas é um perfume mais caro que uma oração,
Essa cabeça mais cara que igrejas, bíblias, ou todas as crenças.
(WHITMAN, 2005, p.77) 5

Nos versos “.... Um grito no meio da multidão [...]/ Agora o intérprete solta sua
coragem... já ensaiou seu prelúdio nas palhetas dentro de si” (WHITMAN, 2005, p.111), o poeta

5
No original: “Through me many lon dumb voices,/ Voices of the interminable generations of slaves,/ Voices of
prostitutes and of deformed persons,/ Voices of the diseased and despairing, and of thieves and dwarfs,/ Voices of
cycles of preparation and accretion,/ And of the threads that connect the stars – and of wombs, and of the
fatherstuff,/ And of the rights of them the oders are down upon,/ Of the trivial and flat and foolish and despised,/
Of fog in the air and beetles rolling balls of dung.// Trough me forbidden voices,/ Voices of sexes and lusts . . . .
voices veiled, and I remove the veil,/ Voices indecente by me clarified and transfigured.// I do not press my finger
across my mouth,/ I keep as delicate around the bowels as around the head and heart,/ Copulation is no more rank
to me than death is.// I believe in the flesh and the appettites,/ Seeing hearing and feeling are miracles, and each
part and tag of me is a miracle.// Divine am I inside and out, and I make holy whatever I touch or am touched
from;/ The scent of these arm-pits is aroma finer than prayer,/ This head is more than churches or bibles or creeds”.
(WHITMAN, 2005, p.76).
33

das “vozes proibidas”, que justapôs o odor das axilas a uma oração, valorando mais a primeira
(e aproximar esses extremos já não seria uma heresia?), o poeta que não só libertou o verso dos
padrões de métricas e rimas como também aumentou um ponto a mais nas reticências, dando-
nos a chance de ler um ponto a mais naquilo que era apenas reticente, o poeta que acredita “na
carne e nos apetites” e no ponto a mais, não só afirma a posição do poeta como “intérprete”,
autodeclarando-se como tal, como aquele que empresta o corpo a um outro, que dá voz a uma
outra voz, sendo um meio, um medium, um intermediário, mas, em outro momento, é
reafirmada a percepção de que essa posição não ocupa um lugar de origem, de autoridade:
“Estes pensamentos são os dedos de todos os homens de todas as eras e terras, não se originaram
comigo” (WHITMAN, 2005, p.67).6 Não podemos esquecer que a percepção do poeta como
intérprete, intermédio, meio, medium, também não é originária da modernidade, mas remonta
a todo o tempo, à antiguidade, aos gregos, quando o poeta já emprestava sua voz à musa, a isso
que já vinha de fora, e o rapsodo, por sua vez, emprestava sua voz ao texto do poeta, sendo um
segundo intermediário. Ver o poeta como esse lugar que dá passagem, desde a antiguidade,
desde a modernidade, é ver o quanto a poesia é indissociável da alteridade.
Recordo-me aqui do curso de extensão universitária “A filosofia sob o risco da
literatura”, ministrado por Danielle Cohen-Levinas, na Faculdade de Letras da UFRJ no ano de
2013. A minha escuta a respeito da leitura da filósofa sobre Emmanuel Levinas, leitor de Kafka,
Proust e Celan, me fez constatar que a condição de possibilidade para a poesia existir é o seu
limite: ser refém do outro. A alteridade constitutiva do poeta que o remete o tempo todo para
fora de si deve ser resgatada então desde Platão, em Íon, uma poesia da extradição do poeta
(PLATÃO, 2011). Ou seja, a alteridade sempre foi questão da poesia, desde os gregos, e é como
questão da poesia que ela era questão da filosofia, uma vez que a poesia era a fonte principal
do pensamento grego. Portanto, o colocar-se em risco provém de uma postura ética, seja
filosófica seja literária, como apelo ao outro.
Enquanto Folhas de Relva chegava a um número de edições inimaginável para um livro
de poemas, Baudelaire começava a trazer, em Paris, não só a grande metrópole para o poema,
mas, sobretudo, o ritmo da grande metrópole para o poema. Tal como vimos em Whitman a
alteridade pela qual o poeta deve responder, lemos em “As Multidões”: “O poeta goza do
incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem. Como as almas errantes

6
Entendo “meio” como medium tal como Benjamin diferenciou mittel de medium, em que o primeiro pressupõe
uma finalidade, um meio para um fim, e, o segundo, uma imediatidade, cujo meio não está em função de um fim
exterior. A respeito dessa concepção, apoio-me, sobretudo, nos textos “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem” (BENJAMIN, 2011, p.49-73) e “Por uma crítica da violência” (BENJAMIN, 2011, p.121-
156), e no livro Meios sem fim (2015b) de Giorgio Agamben.
34

que procuram corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de cada um”
(BAUDELAIRE, 1995, p.289).7 Ser o mesmo e ser outro, ao mesmo tempo, acontece, pois,
como o poeta diz, como um gozo. Se, para Baudelaire, isso é uma regalia da qual os poetas
gozam, há que se lembrar do preço disso que é transitar “como as almas errantes”. Esse trânsito
não existe sem conflito, como será mostrado.
Nos poemas em verso, mesmo quando não abandonava o alexandrino, Baudelaire relia
a tradição, a transformava, tematizando e fazendo caber aquilo que até então não cabia no
alexandrino. Foi por querer trazer não só a multidão, mas o ritmo da multidão, que Baudelaire
viu no poema em prosa um maior acolhimento a esse ritmo. É em uma confissão (“Devo-lhe
fazer uma breve confissão” [“J’ai une petite confession à vous faire”] (BAUDELAIRE, 1995,
p.277)), no texto que é, ao mesmo tempo, uma apresentação a Pequenos poemas em prosa, uma
carta ao amigo Arsène Houssaye e uma carta a nós, leitores, que Baudelaire expõe seu desejo,
ao amigo e a nós, de tentar fazer, na poesia, o processo que Aloysius Bertrand “aplicara à pintura
da vida antiga, tão estranhamente pitoresco” (BAUDELAIRE, 1995, p.277):

Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma
prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica
de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações
do devaneio, aos sobressaltos da consciência? (BAUDELAIRE, 1995,
p.277).8

Baudelaire viu no poema em prosa um maior acolhimento ao ritmo citadino na medida


em que esse ritmo não é senão uma arritmia. A uma prosa poética que se quer maleável como
a exposição de “um pensamento a nu” (usando as palavras de Mallarmé), sem elevação nem
revelação, contrastante, que encene as “ondulações do devaneio e dos sobressaltos da
consciência”, só a fratura, só o choque, só uma vértebra a menos:

Podemos interromper onde quiser, eu o meu devaneio, você o manuscrito, o


leitor a sua leitura, pois a este não deixo a vontade teimosa pendente do fio
interminável de uma intriga supérflua. Tire uma vértebra, e os dois pedaços
desta fantasia tortuosa se tornarão a juntar sem esforço. Corte-a em numerosos

7
No original: “Le poète jouit de cet incomparable privilège, qu’il peut à sa guise être lui-même et autrui. Comme
ces âmes errantes qui cherchent un corps, il entre, quand il veut, dans le personnage de chacun”. Disponível em
http://www.bibebook.com/files/ebook/libre/V2/baudelaire_charles_-_le_spleen_de_paris.pdf
Acesso em 22/06/2019.
8
No original: “Quel est celui de nous qui n’a pas, dans ses jours d’ambition, rêvé le miracle d’une prose poétique,
musicale sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme,
aux ondulations de la rêverie, aux soubresauts de la conscience?”.
35

fragmentos, e verá que pode cada um deles existir à parte (BAUDELAIRE,


1995, p.277).9

Uma vértebra a menos e o poema réptil de Baudelaire continuará rastejando. De acordo


com a citação, poderíamos dizer que os poemas em prosa do poeta podem ser lidos como
aqueles animais cujos tecidos e órgãos se regeneram, como os lagartos e as lagartixas. A cada
corte cria-se um novo corpo, cada reestruturação é uma nova possibilidade ao pensamento.
Caminhando rastejante, ao rés do chão, o poeta francês mostrou, imbuído de muita ironia,
cruzamentos inesperados, situações não resolvidas ou mal resolvidas, explorando as intrigas,
os dilemas, os impasses. Em um dos fragmentos de seus Escritos íntimos, lemos o seguinte:
“No amor, como em quase todos os negócios humanos, o compromisso é sempre o resultado
de um mal-entendido. Mas todo o prazer reside nisso [...]. O abismo intransponível que gera a
incomunicabilidade continua sem ser transposto” (BAUDELAIRE, 1995, p.540). Logo depois,
lemos: “Só o mal-entendido é que faz andar o mundo” (BAUDELAIRE, 1995, p.547). Em “Os
olhos dos pobres”, reencontramos: “[...] tão incomunicável é o pensamento, mesmo entre
aqueles que se amam!” (BAUDELAIRE, 1995, p.309). O que conecta os três trechos citados é
o mal-entendido, a incomunicabilidade, o impasse por isso estar colocado “mesmo entre aqueles
que se amam” e o impasse por isso, o mal-entendido, ser exatamente onde reside o prazer, ser
o “que faz andar o mundo”. Como esse impasse faz mover? Como se mover nesse abismo?
Como o mal-entendido é o meio por onde anda o amor e faz andar o mundo?
Baudelaire caminha por esses impasses, pelo contraste, pela discórdia, e se dirige ao
leitor em seus sintomas, em sua má consciência. Ele dirige ao incômodo, perturbando o lugar
da arte, mostrando o quanto o lugar da arte é antiestético por excelência, como Duchamp e os
dadá, por exemplo. Como as figuras que as Flores do Mal trazem, o miserável, a prostituta, o
bêbado, o consumidor, o burguês, são situações de contraste que vão aparecer em seus poemas
como produção de duelos do homem moderno para além do princípio do prazer. Em Baudelaire,
o mal é o mal-estar, o mal-entendido, sempre mediado por uma violência. Se Benjamin leu
Baudelaire como a poética do choque, eu acrescentaria que, em sua poética, o que há é uma
ética do choque. Como lugar de crise, de íntima discórdia ou de mal-entedido, podemos ler,
pelo menos desde a modernidade, a poesia nessa chave de leitura, como um campo de batalha.

9
No original: “Nous pouvons couper où nous voulons, moi ma rêverie, vous le manuscrit, le lecteur sa lecture ;
car je ne suspends pas la volonté rétive de celui-ci au fil interminable d’une intrigue superflue. Enlevez une
vertèbre, et les deux morceaux de cette tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachezla en nombreux
fragments, et vous verrez que chacun peut exister à part”.
36

Coloquemo-nos aqui, entre o odor de uma axila e uma oração, entre um ponto a mais e uma
vértebra a menos.

Em português, verso é substantivo e verbo, como luto. Como substantivo, sabemos,


verso é o outro lado, o dorso, as costas, cada linha de um poema. Mas é pouco comum vir
“duelo” à nossa mente quando falamos “verso”. Usamos a palavra latina versus quando
queremos dizer oposição, mas não nos lembramos desse sentido quando falamos usualmente
“verso”. Tampouco fazemos uma aproximação entre “verso” e “vértebra”, ou entre “verso” e
“vertigem”, que, para o nosso espanto, varia do étimo de verso, vert. Entre o verso e o corpo e
entre o verso e o conflito há mais coisas em comum do que nossos imediatismos conseguem
supor. Do latim versus, verso é aquilo que traz, em si, o duelo, a discórdia, a oposição. Mas, no
latim, essa palavra assume múltipla funções, como advérbio, preposição, forma verbal, nome
(sulco, ranhura, linha, retorno, giro, volta). Verso é aquilo que, ao final de cada sulco, gira,
volta. Vemos então que as palavras verso e revolta são íntimas. Revolta, revolução e verso são
aquilo que volta de novo, que retorna. Um dos significados de revolução, talvez o mais literal,
é revolvere, isto é, “dar volta”, “girar”, “virar”, “de novo”.
Em A Revolta do Poema, Guilherme Gontijo Flores diz que o poema em si mesmo não
é uma revolta e que ele tampouco deve ser visto como uma finalidade para a revolta, ele procura
ver “a potência de revolta que está no gesto do poema” (GONTIJO FLORES, 2019, p.2). O
poema de que ele parte é “O golpe mais uma vez”, de Paulo Ferraz, em que ele lê uma revolta
no poema: “O nome do golpe é golpe/ O nome do golpista é golpista/ O nome do Estado é
democracia/ em nome do povo, não” (FERRAZ apud GONTIJO FLORES, 2019, p.3).
Composto de quatro versos concisos que se dobram e se desdobram a partir da estrutura fixa “o
nome”, Gontijo entende que há uma volta dos versos neles mesmos, modificando o sentido a
cada volta. Partindo desse poema que tem como tema um episódio político, Gontijo segue, no
entanto, para um poema de Alejandra Pizarnik, alegando que também há poemas com um
“potencial de extrapolar os gestos explicitamente ou especificamente políticos para abarcar uma
revolta em sentido mais amplo” (GONTIJO FLORES, 2019, p.3). Ou seja, Gontijo não atrela a
revolta apenas a poemas explicitamente políticos ou que tematizem a política: para ele, a revolta
está atrelada a uma precariedade que aprece no modus operandi do poema, precariedade essa a
partir da qual uma coletividade se reorganizada espacial e temporalmente: “A revolta do poema,
nos termos que tento propor, só pode se dar se houver nela a possibilidade de uma reorganização
37

espaço-temporal que parte da nossa precariedade constitutiva para aí estabelecer uma


coletividade” (GONTIJO FLORES, 2019, p.11-12). Essa ideia de Gontijo, cuja condição da
revolta é a precariedade, ressoa, a meu ver, com o pensamento de Judith Butler (2018), que será
abordado em outro momento desta tese, em que a precariedade é o comum em torno do qual e
partir do qual pessoas, que aparentemente não teriam nada em comum, fazem laço.
Além de a revolta, para Gontijo, vir necessariamente de uma precariedade, interessa-me
também o “germe de vida” que ele coloca como intrínseco ao “caráter destrutivo” da revolta.
Esse “germe de vida” é relacionado por ele com o caráter “jovial e alegre” do “caráter
destrutivo” de Benjamin (GONTIJO FLORES, 2019, p.5). Pensando o “modo destrutivo da
revolta” como uma destruição que porta em si uma criação, ele vê, no conceito de “caráter
destrutivo (der destruktive Charakter), apresentado por Walter Benjamin no ensaio homônimo
originalmente publicado em Berliner Zeitung de 31 de novembro de 1931”, o “germe de vida”
“‘jovial e alegre’” (jung und heiter) que partilha um espaço enquanto o cria” (GONTIJO
FLORES, 2019, p.5-6). Uma revolta em cuja destruição também é uma partilha de um espaço
enquanto o cria, “demanda a presença do outro não como objeto de destruição, nem como
observador amedrontado do horror necropolítico, e sim como testemunha”, diz Gontijo, como
“testemunha capaz de partilhar a criação de espaço típica do caráter destrutivo” (GONTIJO
FLORES, 2019, p.6). Além do “sim” presente neste “não”, além de a renúncia ter em si uma
afirmação, além da destruição portar uma invenção – como Gontijo recupera de O Homem
Revoltado de Camus (GONTIJO FLORES, 2019, p.6) –, além do gesto de criação ser parte do
mesmo gesto de recusa, de negação, destruição, vemos então que o outro que passa a fazer parte
da construção desse espaço que se cria nessa partilha é um outro enquanto testemunha.
Há mais um ponto que me interessa nesse pensamento de Gontijo que liga revolta e
precariedade com base em uma destruição e construção de um espaço em que o comum parta
da precariedade e que essa partilha se dê entre testemunhas, testemunhas de uma destruição,
certamente, mas, também, testemunhas de uma precariedade e de um espaço outro que se
constrói no laço estabelecido a partir dessa precariedade. O outro ponto que me é importante
nessa análise é o que Gontijo extrai do pensamento de Furio Jesi sobre a relação dos revoltosos
com a cidade. Em uma citação de Jesi, 10 é a suspensão do tempo histórico que está em jogo na
apropriação do espaço da cidade como “nosso” a partir desse espaço como um campo de

10
“‘apenas na hora da revolta a cidade é sentida verdadeiramente como a própria cidade: própria, pois, ao mesmo
tempo do eu e dos outros; própria, pois, campo de uma batalha escolhida e que a coletividade escolheu; própria,
pois, espaço circunscrito em que o tempo histórico é suspenso e em todo ato vale por si mesmo, sem suas
consequências absolutamente imediatas’” (JESI apud GONTIJO FLORES, 2019, p.7).
38

batalha, em que o “nós” se determina e se transforma pelo campo de luta, pelo espaço criado
pela revolta, e não previamente pelos limites espaciais geográficos da cidade (GONTIJO
FLORES, 2019, p.7). Com base em Jesi, Gontijo também entende que a criação de um novo
convívio, de um convívio em um novo espaço, se dá por uma suspensão do tempo. É nessa
suspensão do tempo, portanto, em que o passado se atualiza no presente, em que os tempos se
contraem em um átimo, tensionados ao extremo, que a ruptura e o laço acontecem, que a
destruição e a criação, a negação e a afirmação compõem o mesmo movimento, a revolta como
o estabelecimento de um novo vínculo entre testemunhas cujo comum entre elas é a
precariedade.
Ainda às voltas com o verso, é interessante lembrar que o nome que se dá ao movimento
do verso é versura. Em “Ideia da prosa”, Agamben diz em uma nota que versura é um “termo
latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo” (AGAMBEN, 1999,
p.31). A nomenclatura de verso, portanto, vem do trabalho humano, de um trabalho manual,
pesado e agrário. Se o movimento do giro que desemboca um verso no outro é a versura, as
palavras seriam, então, a terra revolvida a cada batida do arado, a cada sulco. Verso, revolta e
revolução: aquilo que revolve. Em Da Revolução, é curioso notar que “revolução”, como
Hannah Arendt nos diz, é um conceito que vem da astronomia e indicava o movimento repetido
pelos astros, um movimento que não depende dos homens e que, portanto, era irresistível
(ARENDT, 1988, p.34). Revolução, portanto, é aquilo ao qual não é possível resistir. No livro
De volta ao fim, Marcos Siscar fala da poesia como isso a que não é possível resistir, a poesia
como o “irresistível” (SISCAR, 2016, p.210), tal como Arendt fala da revolução. Desde o
étimo, verso e revolta, verso e revolução, poesia e política, estão entrelaçados.
No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan aponta que nos versos 48, 70 e 73 de
Antígona, “retumba” um “remate” com a palavra “meta” (LACAN, 1997, p.320). Não obstante
o jogo de Lacan com os significantes que duplicam a morte (re-tumba e re-mate), o jogo de
Antígona se dá no corte. Como Lacan diz, “meta é, propriamente falando, aquilo que visa ao
corte” (LACAN, 1997, p.320). Metá, em grego (µετά), significa “além”, “depois”, “atrás”, mas,
também, “meio”. É na esteira disso que o psicanalista francês afirma que “meta é com e também
após” (LACAN, 1997, p.320-321). Ele diz, ainda, que esse traço indica de maneira significativa
o modo de presença cortante de Antígona. As frases em que o jogo de palavras é empregado
são o que podemos chamar de cortes. O modo como Antígona usa as variações de meta são
encenações da estrutura de corte. Assim, entre com e após, as frases são verdadeiros meios
irruptores. Nos versos de Antígona, temos o método do corte, do “através do caminho”
(methodos, µέθοδος) do corte, como meio.
39

A respeito disso tudo, preciso fazer um breve relato: no dia primeiro de maio de dois mil
e dezenove, eu estava lendo o livro Etiópia de Francesca Angiollilo (2017). Em um momento
do livro, deparo-me com os seguintes versos do poema intitulado “No campo”: “O vermelho é
a cor das coisas feitas/ pelo homem:/ o caminhão/ o balde/ o carrinho/ de mão/ o vermelho é a
cor que cor/ ta/ o campo” (ANGIOLLILO, 2017, p.44). Em uma postagem do facebook, eu
disse que esses versos me fizeram escutar este eco: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. E de
repente vejo lado a lado poesia e o Manifesto Comunista. Fiz um comentário a essa postagem,
mencionando a Flavia Trocoli: “Flavia Trocoli, querida, o poema também me disse: a barra é
vermelha (e quem não escutou isso, não entende de sulcar a terra...). lembrei de você, que
também me dá essa cor ao corte”. Eis que Flavia me responde inbox: “Em uma tese que li nos
últimos dias, encontrei Genet dizendo que, como os nômades, negros e palestinos, a partir de
que terra, eles vão preparar a revolta? E justamente no seminário 7, Lacan diz que Antígona
encena a estrutura de corte na linguagem. Assim, o corte não teria uma relação inextricável com
a revolta?”. Então eu respondo: “Flavitcha, se tudo der certo, é por isso que, na tese, eu vou
tentar defender que o corte, movimento que estrutura o verso, existe como gesto de revolta. O
verso é aquilo que volta. A partir da disjunção, a escrita da revolta e do amor”.
O poema de Francesca trouxe o verso como um trabalho manual, como quem ara a terra,
como um trabalhador do campo, encenando, no verso, o movimento do corte em cuja palavra
ressoa, ao mesmo tempo, “cor”. Em se tratando da cor vermelha (“o vermelho é a cor das coisas
feitas/ pelo homem”), a cor do sangue, da luta, da revolução, o que escutei do poema foi que o
corte (“o vermelho é a cor que cor/ ta”), então, também seria vermelho. Nesse sentido, o gesto
de uma escuta deveria ser como um gesto de operário, como um gesto de lavrador, assim como
o gesto do verso é um movimento de quem sulca a terra, é o movimento da volta do arado.
Como um meio, ele é o que acontece no momento de suspensão do arado, enquanto esse está
fazendo a volta que se dá entre a batida de um sulco e outro. Sendo incessantemente isso que
volta e isso que só acontece na volta, o corte é, portanto, antes de tudo, um trabalho de quem
pega na enxada: revolta. Foi Antígona quem disse: “Fui feita para o amor” (SÓFOCLES, 2009,
p.53).
Se pensarmos na etimologia, o étimo de verso é vers e, sua variante, vert, de onde
depreendemos palavras como verter, vertical, vertigem, vértebra. Em francês, vers é tanto
preposição, “para”, “em direção a”, como substantivo, “verso”, e algumas homofonias são ver,
verme e vert, verde. Homofonias essas que foram versadas nos poemas do poeta-de-uma-
vértebra-a-menos, aquele que explorou o submundo da metrópole e a degradação da vida:
Charles Baudelaire. Homofonia que funciona, sobretudo, se ressaltarmos que ver pode ser
40

verme e pode ser larva, e que larva vem do latim e quer dizer máscara, espectro, fantasma,
assombração, demônio que se apodera das pessoas. Voltando ao versar, lembremos que
“versar” significa também passar de um lugar para outro. Derivando, podemos pensar, por
exemplo, em “verter”, derramar, transbordar, que apontam para o excesso, para o extremo, para
o limite. Mas “verso”, em sua origem do latim, versus, é oposição, discórdia, duelo. Então, no
sentido etimológico, verso é ir para e contra, ao mesmo tempo. Verso é isso que vai para (sai
de si) e, indo contra (si), volta para (o outro lado, o verso, o dorso). Nesse sentido, compreendo
verso como disse Rimbaud em Carta do Vidente: “eu é um outro” (RIMBAUD, 1993, p.15-
18). Leio o verso por este erro, por este erro a partir do qual Rimbaud talvez tenha propiciado
toda uma nova compreensão da literatura. Quando, nesta Carta, de 1871, ano da Comuna de
Paris, Rimbaud escreve Je est un autre ao invés de Je suis un autre, o erro de sintaxe instaura
não só uma nova escrita, mas um gesto de ler a literatura por essa carta, por essa frase, por esse
erro, subvertendo mais ainda a identidade e radicalizando a alteridade, uma vez que Rimbaud
usa o verbo na terceira pessoa do singular, o que seria equivalente aos pronomes il/ele, ele, ela.
Assim, o poeta produz esse estranho cruzamento entre a primeira e terceira pessoas: onde
leríamos a frase em primeira pessoa, ele fala usando o eu (je) em terceira pessoa. O eu, portanto,
é uma terceira pessoa, é um terceiro. Então, dizer que o verso pode ser lido como “eu é um
outro” é dizer que o verso sempre porta em si um terceiro, é dizer que o gesto do verso gesta o
verso de si mesmo, sendo aquilo que traz e reivindica, em si, sempre um outro. De um modo
não apaziguado, o verso é aquilo que vai para, segundo seu étimo, vers, mas também contra, se
não perdemos de vista, como já foi mencionado, o duelo que traz a palavra latina versus. O
verso é aquilo que vai para e contra, ao mesmo tempo. Indo para, sai de si, e, indo contra,
dobrando-se sobre si, volta para o outro lado, o dorso, trazendo ou gestando sempre um outro.
Por isso, o verso é sempre controverso, o verso é, ao mesmo tempo, o adverso.
Derrida, em O Cartão-Postal, diz: “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo” (DERRIDA, 2007,
p.221), “le ‘verso’ de tout ce que j'écris (mon désir, la parole, la présence, la proximité, la loi,
mon coeur et mon âme, tout ce que j'aime et que tu sais avant moi)” (DERRIDA, 1980, p.212).
Ele não diz vers, ele diz “verso”, entre aspas, usando a declinação do latim versus e os sentidos
em jogo no termo: “o lado oposto”, “as costas”, “para”. Leio essa frase, “le ‘verso’ de tout ce
que j'écris”, em sentido ambíguo. De um lado, é como se a filosofia de Derrida exigisse uma
leitura que reivindicasse, na prosa, a instância do verso, como se pudéssemos lê-la como
potência de verso. Também, como o que é possível guardar “de cor”, não como um saber – e
aqui eu recordo Che cos’è la poesia (DERRIDA, 2001, p.114-115) –, mas como uma
enunciação, em seu efeito poético, uma miragem como um cartão-postal, no sentido que se
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assemelha a um dos usos populares de “verso” que significa qualquer quadrinha que se recita
de cor em voz alta. De outro lado, isso me leva a pensar no modo como Derrida sempre vai ao
que queima: em um mesmo gesto, ao amor e ao horror, às chamas e ao chamado. Em
Monolinguismo do outro, ele diz: “Este gesto é plural em si, dividido e sobredeterminado. Pode
sempre deixar-se interpretar como um movimento de amor ou de agressão [...]” (DERRIDA,
2001, p.98). É nesse gesto do filósofo que leio “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo”.
Fico me perguntando o que une, ao mesmo tempo que separa, amor e horror. Penso que
em uma mesma lei se abre um duplo gesto. Talvez haja uma fronteira tênue – que é um abismo
– entre a lei que aponta para o amor e a lei que aponta para o horror. Penso nos gestos de
Derrida, mais no modo como ele vai e menos aonde ele chega, mais no modo como ele diz e
menos no dito, e me atenho à ambiguidade que ele nos dá – e que ele não resolve, residindo aí
a sua complexidade. Em Espectros de Marx, por exemplo, o fantasma é Marx e Hamlet, e o rei,
e o pai, e o poder, e a lei. O fantasma é o marxismo e o capitalismo, é a desconstrução e o
horror. Não é Marx, apenas, o fantasma. Não somos apenas nós, sobreviventes, os fantasmas.
Se no corpo deformado há chamado, se isso a que tentamos dar corpo também se chama amor,
se o poema pode ser visto como um corpo fraturado, se um verso pode ser visto como um corte,
se o poema pode ser visto como isso que não cessa de se inclinar para o desastre, Derrida nos
diz também, em Força de lei, que isso que é sem forma, sem rosto, fantasmagórico, também é
a polícia. Em Circonfissão, a ferida é tanto a lei inscrita no corpo e o corpo de uma escrita que
tenta dar contorno à lei inscrita no corpo, rasurando essa na medida em que inscreve outra sobre
ela. Em Feu la cendre, Derrida vai ao que queima em um duplo gesto no mesmo gesto: ele vai
aos mortos como quem vai ao amor. Ele vai à lei que fere e à ferida da lei. Derrida não se livra
das aporias. Ele caminha colado com o acidente, ao mostrar que caminhos se diferenciam em
uma fronteira que é muito tênue e, ao mesmo tempo, muito abismal. Há uma barra neste gesto
que faz com que ele possa ser dois ou mais no mesmo – como o tema de um colóquio organizado
por Piero Eyben, em 2017, em Brasília, na UnB, cujo título era “Poética/Política”, que eu
poderia ler como um poema de dois versos. Eu poderia ler a barra como indicação de que as
duas palavras fossem a mesma, mas eu também poderia ler que uma está para outra em uma
relação barrada, assim como o amor em relação ao horror – o amor só nasce do horror barrado;
a barra barra e permite o acesso. Nessa junção que aproxima ao mesmo tempo que separa, nessa
junção que é um abismo, nessa diferença. Na diferença do gesto desdobrado, nos dobramos.
Abordar no desdobramento como se aborda o que queima, como se aborda um fantasma, como
se aborda um sobrevivente, talvez seja ir ao amor como quem vai ao horror. Não quero dizer
que sejam o mesmo, mas que há um gesto que os aborda na fronteira que os faz diferentes e
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articuláveis. Como um movimento que se traz no corpo, neste gesto jaz de cor a cor verme, a
cor vermelha do que queima. Vida e morte, amor e horror, se entrelaçam no mesmo eixo que
os desarticula: amo(r)te.

1.2. Jacques Derrida: “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo”

Vamos com calma a cada um dos títulos acima mencionados de Derrida, sem, porém, a
pretensão de esgotá-los, atentando-nos apenas ao que possui relação com as reflexões desta
tese. Em O Cartão-Postal: De Sócrates a Freud e além, “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo”
pode ser lido de muitas maneiras (DERRIDA, 2007, p.221). Uma delas é que, pelo
procedimento de apagamento de parte da grafia do texto, a escrita do filósofo desafia os limites
da linha: muitas vezes as cartas terminam de maneira abrupta, antes do suposto término das
frases, interrompendo a linha e o sentido, como, por exemplo, em “Não sei quando volto,
segunda ou terça, telefonarei e se você não puder vir me esperar na estação, eu” (DERRIDA,
2007, p.31). A frase é interrompida, não é finalizada. Depois de “eu”, outra carta, de outra data,
se inicia. Ficamos suspensos no corte. O sentido fica pendente. Quando há grandes
espaçamentos em branco entre as frases, os buracos no texto causam um efeito de justaposição
de trechos deslocados, como se fossem estrofes, fazendo com que seja possível ler essas cartas
como um poema. Vejamos os exemplos:

Durante as viagens, estes momentos em que estou inacessível, entre dois


“endereços”, quando nenhum fio ou sem-fio me liga a nada, morro de angústia
e então, talvez, você me dê (e me perdoe também) o prazer que não está mais
longe de desfraldar, o mais próximo possível, enfim sem medida, além de
tudo, o que nós, segundo o dito êxtase

Tínhamos duas asas,


eis o que preciso

sem o que abater-se, cair do


ninho
como uma carta ruim, a carta que perde, da qual é preciso mostrar o outro
lado, não apenas ao outro mas a si (DERRIDA, 2007, p.36).

Nesse exemplo, o que seria o primeiro período se preserva interrompido, sem ponto final
e, o sentido da frase, incompleto. A palavra que vem a seguir começa com letra maiúscula
(“Tínhamos”), mas, ao mesmo tempo em que não se articula nem sintática nem semanticamente
com o texto anterior, tanto pela ausência de pontuação como pelo espaço em branco indicando
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um apagamento, articula-se com a parte anterior, uma vez que compõe o texto da mesma carta.
Podemos ler de modo parecido o que se segue: se há um apagamento depois de “duas asas, eis
o que preciso”, a articulação disso com “sem o que abater-se, cair”, não se dá só pela ordem em
que aparecem, mas também pelo sentido que articula “asas” com “ninho”. Logo, articulando-
se no ponto em que se desarticula, rompendo com a linha, rompendo a linearidade do sentido,
abrindo sulcos na prosa, tornando indecidível o limite entre prosa e poesia, trazendo na linha a
potência de verso, fazendo da linha um verso, fazendo do parágrafo uma estrofe, criando cortes,
versos e estrofes, encontramos “o ‘verso’ de tudo que eu escrevo” encenado no próprio ato da
escrita, em que esse “‘verso’” é, pois, já uma destinação, um endereçamento, uma dedicatória,
e um deslocamento, de modo que o “verso” já é incessantemente estar “em direção a”, sem
paragem, sem ancoragem, sem fixação, lembrando que a palavra em francês, vers, também é
homófona a “verme”, trazendo, na escuta, ao mesmo tempo, o outro lado, o lado oposto, o
dorso, as costas, a destinação & a disseminação, o contágio, um corpo parasitado, um intruso,
um corpo estranho em si, e, também, a putrefação, a decomposição.
Citar passagens desse texto apresenta-se como desafio para o leitor. Por exemplo, na
citação supracitada, eu poderia, em um momento do texto, colocar uma barra entre parênteses
(“é preciso mostrar o outro (/) lado, não apenas ao outro mas a si”), porque, se levarmos essa
indecisão da forma e do gênero ao limite, cada linha poderia ser citada como um verso, então,
mesmo nos momentos em que o fluxo do texto corre sem apagamentos explícitos, sem buracos,
poderíamos ler cada linha como um verso e, para isso, nas citações, seria preciso colocar uma
barra entre cada fim de linha e início da outra. A dificuldade para o leitor aparece não só na
decisão de expor ou não os buracos, e em como os expor, mas também na preservação ou não
da mancha na página determinada pela quebra. Por exemplo, no trecho a seguir, há, no mínimo,
duas possibilidades de formas como ele pode ser citado: se seguir à risca como aparece no livro,
cito-o assim:
“No começo, em princípio,
era o correio, e não me consolarei jamais com isso” (DERRIDA, 2007, p.37).

Mas, talvez, o mesmo trecho também possa ser citado assim: “No começo, em princípio, (/) era
o correio, e não me consolarei jamais com isso” (DERRIDA, 2007, p.37). De todo modo, creio
que levar em conta o recuo do apagamento é optar por mostrar o poema, é decidir expor que é
o apagamento que escreve, e que o apagamento dá aqui uma forma: a do verso, a da estrofe, a
do poema. Não é um apagamento total, de pura negação, é um apagamento que inscreve uma
forma.
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Ler o verso nessa escrita também é ler, no exemplo a seguir, um enjambement:


“um grande pensador é sempre um
pouco um grande correio, mas aqui é também o fim (historial, destinal) dos correios, fim do
trajeto e fim do correio [...]” (DERRIDA, 2007, p.40). Quando começamos a ler, um primeiro
sentido se faz quando chegamos ao fim da primeira frase: “um grande pensador é sempre um”
pode significar que um grande pensador é sempre único. Mas, quando damos a volta e
retornamos para o começo da linha seguinte, o sentido anterior é solapado e outro sentido se
faz: “um grande pensador é sempre um pouco um grande correio”. Embarcados na indecisão
quanto à forma e gênero, poderíamos citar esse exemplo como se cita um poema, com barras:
“um grande pensador é sempre um/ pouco um grande correio”. Desse jeito, teríamos bem
demarcado o enjambement. O que essa escrita nos dá é justamente a possibilidade do
enjambement onde ele não estaria, na prosa. Continuando a leitura do trecho citado, o sentido
é solapado mais uma vez: se o segundo sentido se deu comparando o grande pensador a um
grande correio, depois da vírgula e com a conjunção adversativa, dá-se um novo giro no sentido,
formando um terceiro: “mas aqui é também o fim (historial, destinal) dos correios, fim do trajeto
e fim do correio”. O trecho caminhou da construção de um grande e único pensador à
desconstrução de um grande e único pensador, caminhou da analogia do grande pensador como
um grande correio, ao fim do correio e, por conseguinte, ao fim do grande pensador. Sem
pontuação e com pontuação, ao menos três sentidos se fizeram nessa curta passagem, ao passo
que o seguinte foi desconstruindo o anterior. Em uma erosão gradativa, ou, para usarmos o
termo de Derrida, em um “incêndio” gradativo, como uma chama que vai se alastrando, Cartão-
Postal, um texto de um filósofo, desafia o pensamento em seu efeito poético e nisso reside sua
abertura ao pensamento.
É curioso notar que, ao falar do possível degringolamento do texto na especulação de
ele se tornar público, como se a abertura desse encontro a terceiros fosse necessariamente a sua
queda, a sua ruína, um modo como isso é falado é “tornar-se prosa do nosso romance socrático”
(DERRIDA, 2007, p.195). Ou seja, o que estamos lendo, nós, leitores, nesse texto público, já é
o que está desandado, tombado, declinado, tornado prosa. Dizer que algo se tornou prosa tem
também o sentido de dizer que virou conversa. A frase é interessante porque nela há dois
movimentos: o de sugerir que esses “Envios” sejam um romance e a possibilidade de esse
romance “tornar-se prosa”, isto é, em algum lugar, deixar de ser romance a dois e virar conversa
pública, bate papo. Todas essas possibilidades são viáveis. Ao especular, Derrida inscreve
definições possíveis aos “Envios” e coloca o gênero do próprio texto em jogo. Outro fator
interessante se soma a isso quando, ao tecer uma leitura pelo verso, o “tornar-se prosa do
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romance” faz mais sentido do que se fosse tecida uma leitura pela prosa, porque talvez seja a
abertura do verso que possibilite que ele se torne outra coisa, o outro do verso, o outro do
romance, o outro da prosa, sempre outra coisa, desafiando a definição.
Derrida encena no ato da escrita o caminho postal, feito de recuos, perdas, desvios. Nisso
reside o traço de diferença que faz da “necessidade fatal de desvio” uma condição de
possibilidade: “há diferença [...], e há agenciamento postal, etapas, atraso, antecipação,
destinação, dispositivo telecomunicante, possibilidade e, portanto, necessidade fatal de desvio
etc. Há estrofe em todos os sentidos, apóstrofe e catástrofe [...], e meu cartão-postal são
estrofes” (DERRIDA, 2007, p.78). Trazendo no corpo da escrita o que seria próprio ao caminho
postal, o filósofo desafia justamente o próprio do cartão-postal, pois o próprio do cartão-postal
não cessa de lançá-lo à sua impropriedade, isto é, ao poema, à prosa, ao ensaio, ao romance, a
uma conversa pública, a um prefácio, a textos que, a priori, não seriam cartão-postal, mas não
cansam de ser envios. O próprio desse texto é a incessante convocação do que lhe é impróprio.
A ideia de propriedade é explodida porque é a impropriedade que o faz. Não é à toa que esses
“Envios” são também um diálogo, não é à toa que poderíamos lê-lo como os diálogos de Platão,
porque, como bem nos lembra uma passagem, “‘o próprio do diálogo platônico é a ausência de
forma e de estilo engendrada pela mistura de todas as formas e de todos os estilos...’”
(DERRIDA, 2007, p.57).
No exemplo citado mais acima, em “é preciso mostrar o outro (/) lado, não apenas ao
outro mas a si”, a barra facultativa no lugar em que a linha quebra na margem do livro permite
com que leiamos outro enjambement e escutemos mais de um sentido a ser feito. Mostrando o
outro lado, ao outro e a si, mostra-se o outro. O Cartão-Postal mostra o outro, ele é
incessantemente um outro de si mesmo:

O que prefiro no cartão-postal é que não se sabe o que está na frente ou o que
está atrás, aqui ou lá, perto ou longe, o Platão ou o Sócrates, frente ou verso.
Nem o que mais importa, a imagem ou o texto, e no texto, a mensagem ou a
legenda, ou o endereço (DERRIDA, 2007, p.19).

Movido a partir do que sempre esteve atrás e agora aparece à frente, movido a partir do
que agora supostamente se encontra atrás (“as costas de Sócrates são as costas do cartão-postal”
(DERRIDA, 2007, p.257)), do outro lado, em relação ao que supostamente sempre esteve na
frente, movido a partir de um cartão-postal (ver anexo) que expõe Sócrates escrevendo de costas
para Platão, subvertendo a concepção usual de que Platão é quem sempre escreveu, inspirado
por Sócrates que, como um mentor, ou uma musa, ou um fantasma obsessor, portava-se atrás
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do filósofo, movido a partir de um deslocamento de posição, os sentidos eróticos e trágicos que


se tecem em torno desse encontro se multiplicam, e amor e horror se entrelaçam nesse texto
que aponta sempre para outra coisa: “carta a todos os destinatários do caminho do Ocidente, os
intermediários, os portadores, os leitores, os copistas, os guardas, os professores, os escritores,
os carteiros” (DERRIDA, 2007, p.35). Poderíamos falar ainda que ele aponta para romance,
poema, prefácio, especulações, confissões, notas sobre o prazer, notas para além do prazer,
escritos de amor e de morte, rascunhos sobre política, ensaio sobre os correios, telefone sem
fio, ruídos de uma escuta telefônica, ruínas, ensaio sobre o fort/da de Freud, carta de Socrátes
a Freud, relação homoafetiva entre Sócrates e Platão, carta de Derrida à relação erótica entre
Sócrates e Platão, ensaio sobre a distância, percurso de um encontro clandestino, cartas na mesa,
mapa de deslocamentos, manifesto à mídia, sentença de morte, informações sobre a polícia,
declaração de amor, cortejo, uma ordem, uma prece, uma obsessão, resistência à tortura,
velório, acerto de contas, dívidas, débitos, trocas, leis, economia doméstica, documentos de
alfândega, restos, interdições, diário, relato de viagens, lugares de passagem, trânsito, trabalho
teórico, poético, filosófico, psicanalítico, trabalho de luto. Poderíamos, por exemplo, definir os
“Envios” do Cartão-Postal como “Eros na idade da reprodutibilidade técnica” (DERRIDA,
2007, p.19), uma outra versão do texto de Benjamin; poderíamos dizer “Fort/da de S. e p., eis
o que é toda esta ontologia do cartão-postal” (DERRIDA, 2007, p.29); poderíamos começar a
defini-lo como “nós”, “Nós somos o próprio hermafrodito [...]. Hermes + Afrodite (o correio,
o número, o voo, a astúcia, a viagem e o envio, o comércio + o amor, todos os amores)”
(DERRIDA, 2007, p.164); poderíamos defini-lo como hermafrodita ou andrógino, uma vez que
a palavra poste é “hermafrodita ou andrógina” no francês: no feminino, quer dizer “correio’; no
masculino, quer dizer “posto” (DERRIDA, 2007, p.65); poderíamos defini-lo com muitos
nomes, mas poderíamos igualmente defini-lo por um símbolo: “O símbolo? Um grande
incêndio holocáustico, um queima-tudo” (DERRIDA, 2007, p.49).
Derrida nos convoca a ler as costas, ou melhor, a ambiguidade de quando a frente e o
verso trocam de lugar e se misturam em uma trapaça: o que são, agora, as costas? Quem está,
agora, nas costas? Frente e verso como um efeito de ilusão tornam tênue a fronteira entre um e
outro, levando a crer que o próprio da frente é sempre o seu impróprio, o verso, e vice-versa.
No fundo, só há verso. Se o verso é o que aponta para o outro de si, se a frente é aquilo que é
sempre o outro do verso, então a frente é também um verso do verso. É esse outro lado que se
apresenta como o verso de uma frente que, em relação ao outro lado, também um verso. No
fundo, só há o outro lado. O acesso de um só se dá ao outro na medida em que é resguardado
um ponto de inacessibilidade de ambos, um ponto de inapreensibilidade que permite com que
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o acesso não cesse de chegar, não se realize, não se esgote. Amor e horror são as duas faces da
mesma moeda: no mesmo movimento se abre um duplo gesto: “declaração de amor” e
“sentença de morte”:

No começo, em princípio, era o correio, e não me consolarei jamais com isso.


Mas, enfim, eu sei, tomei conhecimento disso como de minha sentença de
morte: estava redigido, segundo todos os códigos e todos os gêneros e todas
as línguas possíveis, como uma declaração de amor. No começo o correio,
dirá John, ou Shaun ou Tristan, e começa com uma destinação, sem endereço,
a direção não é situável, no final das contas. Não há destinação, minha doce
destinada

você compreende,
no interior já de cada sinal, de cada marca ou de cada traço, há distanciamento,
o correio, o que é necessário para que isso seja legível por um outro, um outro
que não você ou eu, e tudo está perdido de antemão, cartas na mesa
(DERRIDA, 2007, p.37).

Se Derrida escreve sobre a famosa frase de Sócrates (ou de Platão) no Banquete, “No
começo, era o amor”, ao escrever “No começo, em princípio, era o correio”, se ele toma
conhecimento disso como uma “sentença de morte”, como aquilo que está redigido em todas
as línguas possíveis como uma “declaração de amor”, o gesto de escrever sobre é um gesto de
inscrever por cima, por sobre, como um palimpsesto, e à medida que uma inscrição dá lugar à
outra, como a “sentença de morte” desliza para a “declaração de amor”, longe de indicar uma
anulação, o que esse deslizamento ou gesto de inscrição indica é uma justaposição, uma
coexistência de dois lados que não se excluem. Inclusive, se, no começo, era o amor, e se, no
começo, era o correio, no começo também era a ordem “queime tudo”: “minha primeira
‘verdadeira’ carta: ‘queime tudo’” (DERRIDA, 2007, p.30).
“Queime tudo” contém a ambiguidade e traz o sentido erótico quando ele menciona a
resposta da amante: “supremo gozo: desejo de ser por você rasgada” (DERRIDA, 2007, p.30).
Morte e pequena morte entrelaçadas, desde o começo. Como “a própria ideia de destinação
compreende analiticamente a ideia de morte” (DERRIDA, 2007, p.42), o gozo, ou melhor, o
orgasmo, também compreende a ideia de morte e de destinação. É também nesse sentido que
ordem e prece estão no mesmo páreo. Se, à primeira vista, nos é estranho ler uma prece como
uma ordem, Derrida as coloca lado a lado, confundindo-as, igualando-as: “minha ordem ou
minha prece, o pedido da primeira carta: ‘queime tudo’” (DERRIDA, 2007, p.71). O que o
filósofo complexifica ao justapor ordem e prece é a possibilidade de um caráter precário à
ordem e a possibilidade de um caráter de lei à prece, aquilo que, em sua etimologia, já seria
precário: em O fogo e o relato, Agamben nos diz: “‘Precário’” significa o que se obtém através
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de uma prece (AGAMBEN, 2018b, p.33). Aproximar prece e ordem é aproximar súplica e lei,
fragilidade e rigidez. É esse tal equívoco que permite duvidar, que permite, por assim dizer,
desconfiar, ficar em suspensão, dar mais um giro no sentido pré-estabelecido. Por exemplo,
atentemos a dois trechos: “Diga, por exemplo, para que eles não compreendam nada, como na
Resistência” (DERRIDA, 2007, p.51). Logo após isso, lemos: “me traio o tempo todo”
(DERRIDA, 2007, p.51). Ou seja, aquele que não pode trair e confessar os segredos, como um
resistente diante da tortura, se trai o tempo todo. Vejamos o segundo trecho: “‘Mas não devemos
nos deixar abusar por esta semelhança, e confundir os dois nomes, não mais ao menos do que
confundimos vert (verde) e verre (vidro)’. Diga-o, rediga-o. Ver (verme) é vers (verso)”
(DERRIDA, 2007, p.114). Ao dizer para não se deixar abusar pela semelhança e confundir os
nomes, como comumente se confunde a escuta das palavras homófonas vert e verre, o eu-
performativo se confunde, encena no ato da escrita a confusão ao dizer outras palavras
homófonas, ver e vers. Dizendo para não realizar a confusão de igualar, realiza a confusão –
que não à toa leva à palavra verso, que não à toa aproxima verme de verso, igualando o verso a
uma larva, detrito, demônio, fantasma, como vimos com a etimologia. Assim, essa escrita-
parasita vai se fazendo por acúmulo, em que uma frase alimenta a outra na medida em que a
rasura a erode. Quando o eu-perfomático escreve outra coisa do que disse, contradizendo o dito,
o que se faz não é a anulação de uma coisa em favor de outra, é a inscrição das duas no mesmo
gesto de contradizê-las. Nesse gesto, o verso e o controverso, o anverso e o reverso estão
igualmente inscritos.
Essa escrita está sempre lançada “nesta ‘contradição performativa’ da enunciação”
(DERRIDA, 2001, p.16). Derrida faz uso do simulacro como procedimento. É essa trapaça que
permite uma abertura à leitura. Seu modo de ir em duplo gesto reside nessa trapaça. Poderia
mesmo dizer que um dos modos de ética de sua filosofia se sustenta nesse duplo gesto, nessa
visibilidade furtiva e inapreensível como se dá em um “efeito de viseira” como encontramos
em Espectros de Marx (DERRIDA, 1994, p.22). Nos “Envios”, particularmente, é como se eles
se traçassem em um efeito de ilusão em que não importa tanto o que é realidade ou ficção,
mentira ou verdade, mas o efeito de verdade que essa zona de indefinição propicia. O gesto
performativo da enunciação, cujo perjúrio repousa dentro do enunciado, acontece como “o
duplo gume de uma lâmina afiada”: enquanto uma contradição lógica, “[é] como se mentisses
ao confessar” (DERRIDA, 2001, p.14-15).
Em A dignidade da política, no ensaio “Filosofia e Política”, Hannah Arendt diz que a
contradição é a lógica que faz possível com que seja dois em um, e que, ao contrário do axioma
da contradição com o qual Aristóteles fundou a lógica ocidental, a contradição é a condição de
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pluralidade que existe no pensamento, porque o pensamento já é o diálogo, mesmo que interior,
do eu “como se fosse dois”: “Porque já sou dois-em-um, ao menos quando tento pensar, posso
ter a experiência de um amigo, para usar a definição de Aristóteles, é como um ‘outro eu’”
(ARENDT, 2002b, p.101). Se o axioma de Aristóteles pressupõe o comum acordo do eu
consigo mesmo em prol do ser como uno, indivisível, a contradição é a quebra do um, é a
fragmentação do uno, é a possibilidade de ser “dois-em-um” (ARENDT, 2002b, p.101). Para
Arendt, Sócrates seria um sofista que não se contradiz,11 afirmação que, porém, eu leio como
contradição porque, longe de ser sistemático, Sócrates parte do princípio da não-contradição
em alguns momentos de alguns diálogos, mas, em outros momentos, não. Sendo ao mesmo
tempo filósofo, sofista, poeta, não é possível apreender Sócrates em uma categoria. Também
como um sofista, que não deixa de ser filósofo, que não deixa de ser poeta, Derrida “nunca está
longe da mentira, do perjúrio ou do falso testemunho”, como podemos ler em Monolinguismo
do outro (DERRIDA, 2001, p.17), e o que se abre nessa trapaça é justamente o gesto duplo, ou
múltiplo, que caracteriza o modo como ele vai às demandas: “Este gesto é plural em si, dividido
e sobredeterminado. Pode sempre deixar-se interpretar como um movimento de amor ou de
agressão[...]” (DERRIDA, 2001, p.98).
O equívoco como lei na escrita abre o texto ao leitor, de forma que o simulacro como
lei é a transformação incessante, fazendo da lei outra coisa como uma prece, fazendo da
precariedade um meio. Quando o eu-que-escreve, lírico porque performativo, diz “Minha
ordem era a prece mais abandonada e o simulacro mais inconcebível” (DERRIDA, 2007, p.70),
a lei dá lugar à prece, abandonada agora, e isso mesmo já é a encenação do simulacro. Ou seja,
o movimento dessa escrita é sempre “[s]e fazer passar por outra coisa”, eis outra forma de ler
“o ‘verso’ de tudo que escrevo”, que não cessa de interditar o dito, o estabelecido, o fixo,
interditando assim a própria literatura, isto é, ditando-a entre. Nos passos em falso, ela se mostra
como uma aberração, metamorfoseada, multiforme, e se sustenta exatamente nas heresias que
a deixam em falta: “a literatura pareceu-me sempre inaceitável, o escândalo, a falta moral por
excelência, e como um cartão-postal que gostaria de se fazer passar por outra coisa, uma
verdadeira carta a qual se submeteria à censura ou à alfândega” (DERRIDA, 2007, p.47).

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“Se a quintessência do ensinamento dos sofistas consistia no dyo logoi, na insistência em que se pode falar sobre
cada questão de duas maneiras diferentes, então Sócrates era o maior de todos os sofistas. Pois ele pensava que
havia, ou deveria haver, tantos logoi diferentes quantos homens existissem, e que todos esses logoi juntos formam
o mundo humano, já que os homens vivem juntos no modo de falar. Para Sócrates, o principal critério para o
homem que diz sua própria doxa com verdade é ‘que ele esteja de acordo consigo mesmo’ – que ele não se
contradiga e não diga coisas contraditórias, que é o que a maioria das pessoas faz e, no entanto, o que cada um de
nós de certa forma tem medo de fazer” (ARENDT, 2002b, p.100-101).
50

Sustentando-se enquanto verso que aponta sempre para outro lado, por exemplo, para o
amor e para o horror, essa escrita nos leva a crer que ela também é um trabalho de luto.
Caminhando como quem anda e pisa em falso, entre o andamento e a queda, entre o curativo e
a ferida, entre a elaboração e o ponto de inacessibilidade, entre a enunciação e a interdição,
poderíamos pensar os caminhos desses “Envios” como a exposição do que arde em chamas e,
ao mesmo tempo, como uma tentativa de cicatrização. Em um momento do texto em que
Derrida ou o eu performativo especula sobre os títulos do livro, lemos:

O livro se chamará provavelmente Legado de Freud: por causa da marcha e


das pernas, do passo de Freud que nunca avança em Além, e do qual sou todo
o andamento, a deambulação, a preambulação interminável, pernas que en-
caminham tanto quanto as pernas da letra ou da chaminé (jamb) em Poe
(DERRIDA, 2007, p.62, grifos do autor).

Nessa passagem, pode haver um jogo entre as palavras homófonas jambs e jambe,
“batente” (no caso, da chaminé) em inglês e “perna” em francês, respectivamente. Mas a
palavra jambages, que quer dizer a expressão “as pernas da letra”, é usada também para se
referir às “ombreiras da chaminé”,12 e encontramos esse jogo na leitura psicanalítica que Lacan
faz do conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, no “Seminário sobre ‘A carta roubada’”,
a partir da tradução de Baudelaire (LACAN, 1998, p.40). Não obstante a leitura desses “Envios”
a partir de “o verso de tudo que escrevo” seja ler quebras em seus passos, seja ler enjambements,
há, no Cartão-Postal, toda uma desconstrução que Derrida faz desse texto de Lacan. Se, em
seu seminário, Lacan mostra como os trapaceiros são ludibriados em suas próprias trapaças, no
texto de Derrida, Lacan vira o feiticeiro que provou do próprio feitiço. Certamente, os “Envios”
poderiam ser lidos plasmados nesse diálogo, ou nesse confronto, a que correríamos grande risco
de padecer do erro de Lacan, segundo Derrida, de decifrar a mensagem, retirando uma verdade
(DERRIDA, 2007, p.470-472). Poderiam ser lidos até mesmo em cruzamento com “A carta
roubada” de Poe, a que no mínimo confere aos dois trapaceiros uma coisa em comum, a letra
D, que aparece nos Envios e no conto de Poe pelo ministro D. Derrida seria o matemático e o
poeta, o monstrum horrendum (POE, 1981, p.11).

12
“consolo da lareira”, na tradução de Brenno Silveira para o português. Disponível em
https://edisciplinas.usp.br › pluginfile.php › mod_folder › content Acesso em 23/06/2019.
51

De todo modo, a carta roubada, no conto de Poe, não estava senão sobre “as pernas da
chaminé”, ou sobre o batente da lareira. Sobre o batente, esse contorno que emoldura, tal como
Derrida reivindica em seu texto a atenção que Lacan não deu à forma, ou à moldura, no conto
de Poe. O caminho da carta roubada era pelo batente. Foi o que Derrida fez em seu texto,
contrapondo-se a Lacan. Talvez isso indique o modo como devemos ler esses “Envios”, não
fazendo uma interpretação hermenêutica, não decifrando a mensagem, não deixando de fora o
autor, não diferenciando narrador de personagem, não excluindo a forma, não privilegiando o
conteúdo. Por isso, não seria excessivo ler enjambement nessa prosa. E creio que, se essa opção
não nos fizer pagar o preço que Lacan pagou, ou seja, se não padecermos como mais um da
própria armadilha, encaminhar-se pelas pernas desse texto como as pernas da letra ou da
chaminé em Poe seria também ser encaminhado ao batente da letra, isto é, ao pé da letra. E
então teríamos mais uma armadilha de Derrida. “Ali onde sobretudo digo a verdade eles não
compreenderão nada” (DERRIDA, 2007, p.281). Encaminhar para nenhuma saída. Sem saída
estaríamos na letra, aos seus pés. Nesses “Envios” encontraríamos não a carta, não a mensagem,
mas o irredutível da letra, que não dá passagem, não desliza, não encaminha: atinge o corpo.
Ademais, não seria nada mal ter um longo poema como legado de Freud, seguindo os
passos lentos, deambulando, não cessando de começar, de ser um preâmbulo cujas pernas,
atingidas, encaminham ao passo em que mancam, tal como a citação falou de Além, palavra que
indica o título Além do princípio de prazer e que também está contida no subtítulo de O Cartão-
Postal: De Sócrates a Freud e além. Inscrevendo um outro além a Além do princípio do prazer,
Derrida dá uma outra volta a esse último, indo a ele, mas se diferenciando dele, como se
transformasse a pulsão de morte de que Freud tematizou nesse Além. Um além ao Além de
Freud seria também assim uma outra volta na pulsão morte, herdando Freud, indo com ele e
além dele, dando um outro passo a partir de sua perambulação. Terminando Além do princípio
do prazer com versos, versos que dizem sobre chegar mancando, Freud talvez tenha deixado
mesmo como legado o passo do verso para fazer frente aos ditados da pulsão de morte. Talvez
Derrida tenha percebido isso como ninguém e, como poeta, fez do fim do texto de Freud o meio
para o seu, acabou por escrever um poema como um trabalho de luto, entre a elaboração e a
interdição, a comunicabilidade e o inacessível. No verso, a escrita do amor e o trabalho de luto,
o amor e a morte, o amor e a luta, o duelo (palavra que também quer dizer “luto” em espanhol).
Nesse vaivém, “Envios”. Na última carta, a que marca um fim e é paradoxalmente intitulada de
“O retorno”, lemos: “Eu me perguntarei o que significou, desde o meu nascimento ou
aproximadamente, girar em torno” (DERRIDA, 2007, p.282). Uma volta, um giro, um lance,
como todo trabalho de luto que é uma luta contra a perda e por isso gira em torno do que foi
52

perdido, dando contorno a ela, cauterizando a ferida, dando forma ao vazio, esses “Envios” são
um girar-em-torno, como a volta do verso é ao mesmo tempo o sulco na terra e a volta do arado,
o corte e a manutenção do cultivo. Esse texto, como o verso, é privilegiadamente a escrita do
amor e o trabalho de luto.
O texto todo se faz como especulações ao longo dessa economia de ganhos e perdas,
entre o prazer e o para além do prazer. Aliás, “especular”, do latim speculari, tem um sentido
ambivalente: é, ao mesmo tempo, calcular os ganhos e teorizar, pensar. Isso me faz lembrar que
o pensamento, como aquilo que está pendido, em suspenso, em suspensão, como uma balança,
é também uma forma de medida, é um modo de pesar. O pensamento é justamente aquilo que
pesa. Digo “justamente” porque a justiça é inerente a esse ato de pesar. Os “Envios”, como
especulações, como pensamento, também pesam como um exercício de justiça. Justiça que não
é aquela do direito, da lei, do dever, mas do justo como sendo o movimento do próprio envio,
isto é, do dom, disso que não para de se lançar, disso que não para de se reenviar, desse peso
que não para de se relançar. Relançar o peso ininterruptamente é o gesto de justiça do
pensamento desses “Envios”. Também porque o peso é insuportável, ele precisa ser relançado.
Em Espectros de Marx, Derrida se debruça sobre esta afirmação: “Marx diz: ‘lastet wie ein
Alp’, isto é, ‘pesa como um fantasma” (DERRIDA, 1994, p.147). Pesar como um fantasma
deve ser o ato do pensamento, na duplicidade de seu sentido, o pensamento como sujeito, aquele
que executa a ação de pesar, e como objeto, aquele é pesado, aquele que tem o peso de um
fantasma. Convoco aqui a longa passagem de Espectros de Marx, livro traduzido por Anamaria
Skinner:

Se a morte pesa sobre o cérebro vivo dos vivos, e mais ainda sobre os cérebros
dos revolucionários, ela deve, de fato, ter alguma densidade espectral. Pesar
(lasten) é também carregar, taxar, impor, endividar, acusar, designar, ordenar.
E quanto mais há vida mais cresce o espectro do outro; mais este torna pesada
a sua imposição. Mais o vivo deve responsabilizar-se por ele. Responder pelo
outro, corresponder ao morto. Corresponder e explicar-se, sem garantia nem
simetria, à obsessão. Nada mais sério e mais verdadeiro, nada mais justo do
que esta fantasmagoria. O espectro pesa, pensa, intensifica-se, condensa-se
dentro da vida mesma, dentro da mais viva vida, da vida singular (ou, se
preferem, individual). Esta, desde então, não tem mais, e não deverá mais ter
enquanto viver, uma pura identidade a si, nem um dentro assegurado, eis o
que todas as filosofias da vida, até mesmo do indivíduo vivo ou real, deveriam
na realidade pesar (DERRIDA, 1994, p.148, grifos do autor).

Ao mesmo tempo em que esses “Envios” se sustentam no peso da ordem ou da prece


“queime tudo”, em que isso se dá como peso à medida que se dá como pensamento, essa
enunciação (“queime tudo”) pendula também, por mais estranho que pareça, para um gesto de
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amor, ao que Derrida chama de guardar “de cor”: “A maior proteção será não escrever [lhe
repeti bastante isso!] mas sim saber de cor” (DERRIDA, 2007, p.69); “P. pede a D. para reler
antes de queimar, ou seja, para incorporar a carta (como um resistente diante da tortura) e passar
a tê-la em si de cor” (DERRIDA, 2007, p.71). Nesse “queime tudo” em que escutamos também
uma ordem para apagar, esquecer tudo, a incineração, o apagamento e o esquecimento
extrapolam o limite do suporte, incinerando-o, destruindo-o, levando ao que seria, literalmente,
o insuportável, sem qualquer suporte. Todavia, essa insuportabilidade seria a condição mesma
de se portar no corpo, de ser gravado no corpo como uma memória muscular, involuntária,
como um espasmo. Não é em outro texto senão em um texto sobre poesia, ou melhor, sobre
poema, ou melhor, sobre isso que não podemos falar sem que façamos uma experiência
singular, que encontramos melhores nuances disso que se passa a ter de cor. Em Che cos’è la
poesia?, Derrida diz: “uma história de ‘coração’, poeticamente envolta no idioma ‘aprender de
cor’, este da minha língua ou de uma outra, a inglesa (to learn by heart), ou ainda de uma outra,
a árabe (hafiza a'n zahrzkalb) – um único trajeto de múltiplas vias” (DERRIDA, 2001a, p.113).
Em outro momento, lemos: “O poético, diga-se, seria o que você deseja aprender, porém do
outro, graças ao outro e sob ditado, de cor: imparare a memoria” (DERRIDA, 2001a, p.113).
Antes de escutarmos outras passagens que versam sobre o “de cor”, podemos depreender
algumas considerações: “aprender de cor” passa necessariamente pelo outro e é, antes, o que se
recebe, como um dom, um envio, do outro. “Aprender de cor” é fazer a experiência de, em sua
língua, não falar a sua língua, mas uma língua outra, como se falar a sua língua fosse já fazer a
experiência de uma tradução, de modo que “de cor” é sempre uma outra língua que diz, é a
experimentação de uma língua outra ou de um ser outro em sua língua, é estar sempre se
reenviando na medida em que “de cor” é sempre aquilo que se reenvia. A tradução de “impare
a memoria”, em italiano, é apprendre par coeur em francês. Se fôssemos nos remeter a alguma
cena, eu diria que aprender de cor é a imagem de O Cartão-Postal, quando Platão dita a
Sócrates, aquele que sempre ditou a Platão. Esse ditado, essa história de coração, essa história
amorosa, essa poética: aprender de cor.

Em Estâncias, Agamben fala da poesia amorosa estilo-novista como “imagem no


coração”. “Segundo a fisiologia medieval, o domicílio da vida está no coração, e é a partir do
coração que a alma vivifica todo o animal” (AGAMBEN, 2007, p.153). Averróis diz: “Não
deve ser esquecido que, embora os recintos do cérebro sejam o lugar onde se efetuam as
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operações destas virtudes, as suas raízes se encontram no coração...” (AVERRÓIS apud


AGAMBEN, 2007, p.154). Se o ocaso da concepção grega e medieval nos deixou uma
perniciosa ênfase no cérebro como reduto do intelecto, a “história de coração” de Derrida é
antes de tudo uma sustentação do legado do processo amoroso concebido no imaginário da
cultura medieval. Em Che cos’è la poesia?, vemos a volta do pensamento ao coração, ou o
coração como motor do pensamento.
Imediatamente após “impare a memoria”, lemos:

Não é isso o poema, quando uma garantia é dada, a vinda de um


acontecimento, no momento em que a travessia da estrada chamada tradução
torna-se tão improvável quanto um acidente, contudo intensamente sonhada,
necessária na medida em que o que ela promete deixa sempre a desejar?
(DERRIDA, 2001a, p.113-114).

Derrida fala do poema tal como a leitura que tecemos de sua filosofia, como um lugar
de envio e, portanto, de desejo. Aquilo que se deseja aprender do outro (a poesia) é uma
travessia tão improvável quanto um acidente, contudo, por isso mesmo, a travessia é
intensamente sonhada, porque se mantém como uma promessa que deixa sempre a desejar. Ou
seja, na medida em que deixa sempre a desejar, inscreve o desejo. O desejo se faz nessa
promessa sempre adiada, nessa promessa sempre em falta, sempre em pendência. É nesse
espaço em que essa travessia se faz, não em uma chegada, mas na promessa que deixa sempre
(a) desejar, transformando a pendência em objeto-causa, transformando o “a” de “a desejar” em
objeto-a, objeto causa do desejo.
Demoremo-nos em uma passagem:

Assim surge em você o sonho de decorar. De deixar-se atravessar o coração


pelo ditado. De uma só vez e isso é o impossível, isso é a experiência
poemática. Você ainda não conhecia o coração e assim o aprende. Por essa
experiência e por essa expressão. Chamo poema aquilo que ensina o coração,
que inventa o coração, enfim aquilo que a palavra coração parece querer dizer
e que na minha língua me parece difícil distinguir da palavra coração.
Coração, no poema "aprender de cor" (a ser aprendido de cor), já não
denomina apenas a pura interioridade, a espontaneidade independente, a
liberdade de atingir-se ativamente reproduzindo o rastro amado. A memória
do "de cor" entrega-se como uma oração, é menos arriscado, a uma certa
exterioridade do autômato, às leis da mnemotécnica, a essa liturgia que imita
superficialmente a mecânica, ao automóvel que surpreende sua paixão e
avança sobre você como se viesse do exterior: auswendig,"de cor" em alemão
(DERRIDA, 2001a, p.114-115, grifos do autor).
55

Derrida nos diz que decorar é sofrer uma ação: “deixar-se atravessar o coração pelo
ditado”. Se eu decoro, eu me deixo atravessar pelo ditado, eu sofro o atravessamento do ditado
em mim. Em “Dois poemas de Friedrich Hölderlin (‘Coragem de poeta’ e ‘Timidez’)”, no livro
Escritos sobre mito e linguagem, de Benjamin, encontramos a poesia, o ditado e a coragem
entrelaçados. Em nota, a tradutora Susana Kampff Lages e o tradutor Ernani Chaves atentam
que Benjamin criou o termo das Gedichtete, que eles traduziram como “poetificado”, a partir
da “substantivação do particípio passado do verbo dichten (que deriva do latim dictare, ‘dizer
com intensidade’), ‘escrever’, ‘compor obra literária’” (KAMPFF LAGES; CHAVES in
BENJAMIN, 2011, p.14). Diferentemente de der Dichter, o poeta, de die Dichtung, a poesia
ou composição literária, e, ainda, de das Gedicht, o poema, o conceito de das Gedichtete,
segundo Kampff Lages e Chaves, designa “aquilo que está na origem do poema e, em certo
sentido, preexiste a ele e nele se realiza” (KAMPFF LAGES; CHAVES in BENJAMIN, 2011,
p.14). Ao contrário do que se possa imaginar, essa origem não se reduz à feitura da obra, não
assinala uma preconcepção da obra em um tempo anterior determinado. Como diz Benjamin,
“[n]ada do processo da criação lírica, nada da pessoa nem da visão de mundo do autor será aqui
investigado, mas sim a esfera particular e única na qual repousa a tarefa e a condição do poema”
(BENJAMIN, 2011, p.14). Essa esfera é chamada de das Gedichtete, “o poetificado”.
Mais para frente nesse ensaio, analisando o poema de Hölderlin, “Coragem de poeta”,
Benjamin diz que a tarefa e a condição desse poema, que o que nele foi poetificado, portanto,
“é a soberania exclusiva da relação que nesse poema em particular é figurada como coragem:
como mais íntima identidade do poeta com o mundo” (BENJAMIN, 2011, p.45). Na leitura de
Benjamin ao poema de Hölderlin, a coragem que é aquilo que faz laço, aquilo que liga o poeta
ao povo, o homem ao mundo, o individual ao coletivo. A coragem é, portanto, a condição de
possibilidade da comunidade:

Insolitamente, a coragem do poeta funda-se ainda sobre uma outra ordem, uma
ordem estranha. O parentesco entre os viventes. Por meio desse parentesco, o
poeta se liga a seu destino. O que significa para a coragem poética o parentesco
com o povo? Não há como sentir no poema o direito mais profundo a partir
do qual o poeta se apoia em seu povo, os viventes, e os sente como aparentados
(BENJAMIN, 2011, p.24)

A coragem como aquilo que faz vínculo, como aquilo que relaciona, não existe, porém,
fora de ameaça, pelo contrário, ela existe tão somente como uma “entrega ao perigo” e, por
isso, enquanto um paradoxo: “para a pessoa corajosa o perigo existe e, no entanto, ela não o
trata com consideração. Ela seria covarde se o tratasse com consideração; e se o perigo não
existisse para ela, ela não seria corajosa [...]. Coragem é o sentimento de vida do homem que
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se entrega ao perigo” (BENJAMIN, 2011, p.44). Entregar-se ao perigo, estar exposto à ameaça,
“deixar-se atravessar”, como disse Derrida, indica que o “de cor”, como um ato de decorar,
como um ato de coragem, é, pois, paradoxalmente, fazer a experiência de uma passividade:
decorar é ser atravessado, em que esse atravessamento, enlaçando o “poemático” de Derrida –
que será mencionado mais para frente – ao “poetificado” de Benjamin, enlaçando o ditado do
de cor de Derrida à coragem do das Gedichtete que Benjamin lê em Hölderlin, enlaçando o de
cor à coragem que é o que faz vínculo, laço, ponte, relação entre o individual e o coletivo, entre
o homem e mundo, decorar é ser atravessado, em que esse atravessamento é ser atravessado
pelo outro, pelo mundo, com todas as ameaças que isso implica.
Continuando na passagem supracitada de Derrida (“De deixar-se atravessar o coração
pelo ditado. De uma só vez e isso é o impossível, isso é a experiência poemática”), somos
alertados: o sonho de decorar de uma só vez é impossível. Deparamo-nos com um impasse.
Ora, se a experiência poemática é esse impossível, como Derrida diz, como toda experiência,
ela é exatamente isso que está fora do limite, para além dos limites. Fazer uma experiência é,
pois, um transbordamento. A experiência poemática já é aquilo que nos coloca fora dos limites.
Derrida não vai ao poema senão pelas bordas. Poema é “aquilo que a palavra coração parece
querer dizer”. Há uma especulação aí.
Se lemos a especulação como uma forma de medida, um modo de pesar, em Estâncias
vemos que, em Averróis, “todo o processo cognoscitivo aparece concebido como uma
especulação” (AGAMBEN, 2007, p.145). Agamben diz que essa especulação, em sentido
restrito, é “um refletir-se de fantasmas de espelho em espelho”: especulação também é a fantasia
“que ‘imagina’ os fantasmas na ausência do objeto”. Nesse sentido, “amar”, como aquilo que
necessariamente passa pela fantasia, isto é, pelos fantasmas, “é necessariamente uma
especulação” (AGAMBEN, 2007, p.145). Se Derrida faz da especulação um procedimento,
tanto em “Envios” como em Che cos’è la poesia, é certo que há algo em comum entre o
pensamento e o poema, entre um modo de pesar e um modo de ir ao poema, entre o pensamento
e o amor: não se vai ao pensamento, ao poema e ao amor se não for especulando.
Derrida vai ao poema pelo que outra palavra, que não poema, “parece querer dizer”. Há
uma dupla suposição aí: querer dizer já seria uma suposição, que é duplicada pelo acréscimo de
“parece”, intensificando a suposição, isto é, isso do que não se tem certeza. O filósofo não vai
ao poema de modo certeiro e assertivo, ele vai por um “talvez”, indicando que só podemos nos
aproximar do poema por esse e nesse ponto de incerteza. Ao invés de dizer “poema é aquilo
que a palavra coração diz”, ele sustenta a definição não em um dito, não em uma substância,
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não em uma essência, mas em um “querer”. Mais titubeante ainda, em um “parece querer”. É
assim, nessa hesitação, que nos aproximamos do poema.
O filósofo leva a crer que a relação com o coração não tem nada ver com um
sentimentalismo, com aquilo que é facilmente traduzido e decifrado, com a expressão de um
sentimento interior, com um sujeito ensimesmado. Pelo contrário, o “de cor” vem de fora, é um
fora e aponta para fora, dando-se em relação com a alteridade e com um outrar-se. Mais ainda,
não se trata de um conhecimento nem de um conhecimento do outro, se trata, antes, de um
reconhecimento, de reconhecer o outro ao receber o dom, a benção. Benção que aqui tem e não
tem a ver com religiosidade: tem a ver porque a própria palavra remete ao sentido religioso,
mas não tem a ver porque não se reduz ao sentido religioso, excede a ele, compreendendo um
envio que deve vir necessariamente do outro. Compreender o dom como benção é compreender
a benção também como profanação da benção. Quando Derrida diz “A memória do ‘de cor’
entrega-se como uma oração”, vemos que essa entrega já é uma queda: a memória do de cor,
isto é, a memória do coração, entrega-se como uma oração. Há uma letra que cai. De coração a
oração, o “c” cai, em uma elipse. Nessa passagem sacrificada do coração à oração, isso que se
entrega como uma oração já está em uma dimensão da precariedade, porque da prece. O poema
cai, precário como a prece, como o “c” que cai do coração e vira oração, e vira envio. “O poema
cai, benção, vinda do outro” (DERRIDA, 2001a, p.115). Como benção vinda do outro, o poema
é um dom do outro, o poema vem de fora, do outro, o poema é um outro, uns outros:

Nunca assino um poema. O outro assina. O eu apenas é em função da vinda


desse desejo: aprender de cor. Tenso para resumir-se a seu próprio suporte,
portanto sem suporte exterior, sem substância, sem sujeito absoluto da
escritura em si, o "de cor" deixa-se eleger além do corpo, do sexo, da boca e
dos olhos, ele apaga as bordas, escapa às mãos, você o ouve com dificuldade,
mas ele nos ensina o coração (DERRIDA, 2001a, p.116, grifo do autor).

Na citação anterior a essa última, a palavra auswendig, que Derrida traz em alemão, é
traduzida como “par coeur”, em francês. Mas, se atentarmos para a literalidade da palavra, aus
tem as funções de preposição e advérbio e significa “fora”, e o verbo wenden quer dizer “virar,
dar a volta, dobrar, girar, voltar”. Auswendig, par coeur, “de cor”, é aquilo que vira, dobra, gira,
volta para fora. “Você chamará poema um encantamento silencioso, a ferida áfona que de você
desejo aprender de cor” (DERRIDA, 2001a, p.115). Nesse “para fora” está implicada, portanto,
a ferida do outro. Mais que aprender o outro, o poema, como aprender de cor, é aprender a
ferida do outro. Mais ainda: a ferida áfona do outro. O poema é aprender o ponto de
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emudecimento do outro, aprender a ferida áfona da própria linguagem. Não preciso dizer que
se incide aí a catástrofe. O poema é aprender a catástrofe do outro.
Dito tudo isso, vemos que ditar de cor não tem nada a ver com um exercício cerebral de
memorização, mas, antes, pressupõe uma certa ignorância (o que Derrida chamou
divertidamente de “a burrice do ‘de cor’” (DERRIDA, 2001a, p.115)), um não-saber, um não
conhecimento prévio de um ritmo que se tem, porém, guardado no corpo, como o batimento do
coração. Escrever de cor como um ditado é, pois, como indica o latim dictare, “dizer com
intensidade” (KAMPFF LAGES; CHAVES in BENJAMIN, 2011, p.14). É nessa intensidade
que guardar de cor é guardar visceralmente, de corpo, de coração, quando o corpo mesmo se
torna correspondência, correio, quando o corpo mesmo porta, carrega, suporta. O sentido
amoroso que recai nisso que já é sem memória, mas de coração, é reforçado em “Te amo de
cor, é isso aí, entre parênteses ou entre aspas, a origem do cartão-postal” (DERRIDA, 2007,
p.71). Eis que o começo do cartão-postal, se poderia ser correio, se poderia ser amor, se poderia
ser uma prece, uma ordem, “queime tudo”, poderia ser também nada menos que um parênteses
ou uma aspas. Ao lado de “queime tudo” temos “Te amo de cor”, em que esse seria o mesmo
que aquele. Ler o primeiro é ler o segundo. Catástrofe e amor entrelaçados.

A incineração que esgarça o suporte faz com que esses “Envios” se tracem em uma zona
de indefinição que o sustenta enquanto insuportável. Poderíamos ler esse insuportável tanto na
forma, esburacada, cortada, aos pedaços, quanto no que o texto, ao mesmo tempo em que se
tece em uma “trapaça como um dispositivo erótico” (DERRIDA, 2007, p.49), traça-se também
em um insuportável da dor, da perda, da ausência, da distância, do trabalho de luto, do horror,
da tortura, da catástrofe, do holocausto. Aliás, é no mínimo incômodo, para mim, o uso do
termo “holocausto” ao longo dos “Envios” (“Sonho ainda com um segundo holocausto que não
viria tarde demais. Saiba que continuo pronto para isso, é a minha fidelidade. Sou um monstro
da fidelidade, o infiel mais perverso” (DERRIDA, 2007, p.31)). A violência descomunal a que
esse termo remete só me leva a crer que Derrida quis mesmo colocar em jogo toda a memória
que esse termo carrega, quis mesmo trazer esse peso, essa carga, em um texto de amor, causando
de fato um estranhamento sem tamanho, um choque. Na carta, uma larva. No verso (vers), o
verme (ver), a deterioração, o detrito, toda a sujeira da humanidade, os fantasmas não vingados.
No amor, o horror. Aproximar o que à primeira vista seria inaproximável, indicar o mais terrível
que reside junto ao mais amoroso, trazer, no verso do amor, a catástrofe irreparável, eis a
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radicalidade desses “Envios” como pontos de passagem e pontos de interrupção, ao mesmo


tempo. Por isso, “um cartão-postal não é nunca nada além de um pedaço de carta, uma carta
que se parte” (DERRIDA, 2007, p.78). O envio se faz enquanto partida, na duplicidade do
sentido. A precariedade é tanto o meio do envio como da interrupção. Derrida sustenta dois
extremos no ponto de partida da carta, no ponto em que a carta se parte, no ponto de
insuportabilidade que é o ponto de deslocamento e o ponto do que para no meio, o ponto do
transporte do insuportável que a literatura deve transportar e o ponto da suspensão do transporte,
o puncto. O envio é o corte – que faz fronteira entre o simbólico e o real.
Transportar o insuportável, um dos modos como leio os “Envios”. Aproximar o
holocausto de uma cena amorosa é insuportável. Trazer um trabalho de luto público e coletivo
da dimensão do holocausto junto a um trabalho de luto pessoal da dimensão de um fim de
relacionamento é insuportável. Seria isso uma perversão? Haveria aí um per-verso? Ser aquele
que é virado às avessas, aqui, se dá como uma ética, não como uma perversão, porque o que
encontramos nessas idas às avessas é sempre o outro como limite, e não a transgressão do outro.
Ao especular sobre o que se poderia ser encontrado nesse cartão-postal, emerge uma série de
possibilidades que passam a existir no cartão mesmo em sua potência. Enunciar como
possibilidade, dentro do campo do futuro do pretérito, do “poderia”, o que não cessa de ser
inscrito é essa possibilidade enquanto potência, ou seja, o “poderia” assume-se como o que
“pode” existir, como o que já existe no texto, pois, no gesto de escrever a potencialidade, o
texto inscreve a coisa, o agora mesmo da coisa, e aquilo que poderia existir existe no ato da
escrita como teor de verdade:

o cartão será pleno de murmúrios inaudíveis, de nomes deformados, de


acontecimentos deslocados, de catástrofes reais, com passeiros em todos os
sentidos, trocadores loucos, abortos em plenos confessionários, uma
informatização ofegante, sofrimentos absolutamente proibidos, e a virgem que
atravessa tudo com um canto de amor, nosso mais velho jogo (DERRIDA,
2007, p.254)

O holocausto como um “queime tudo” [holos (todo) kaustro (queimado)] aparece


também em outros livros, como em Carneiros, em que Derrida retoma a cena sacrificial do
Antigo Testamento, cujo sacrifício que seria de Isaac por seu pai, Abraão, foi substituído por
um carneiro: “Depois de ter dito uma segunda vez ‘Eis-me aqui’, quando o anjo enviado por
Deus suspende o cutelo erguido para degolar Isaac, Abraão volta-se e vê um carneiro preso
pelos cornos no silvado. E oferece-o em holocausto em vez do seu filho” (DERRIDA, 2008,
p.44-45). Do corpo desse animal, especificamente os cornos, Derrida ressalta suas voltas, suas
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“estranhas espirais”, suas “voltas e reviravoltas ou contorções do corpo do corno” (DERRIDA,


2008, p.45) [les étranges spires, tours et détours, torsions ou contorsions du corps de la corne]
(DERRIDA, 2003, p.63). Encenando as voltas e as reviravoltas na própria sintaxe dessa frase,
na aliteração em /t/ e na assonância em /o/ e nas sílabas /tour/, /tor/ e /cor/, a escrita de Derrida,
de modo geral quanto ao livros que estamos analisando aqui, se mostra também como essas
voltas e reviravoltas de que ele fala dos cornos do carneiro. Um corpo contorcido, um corpo
animal, veremos que, além do carneiro, haverá outro animal que possui essas características e
que também estará sempre na iminência de um desastre, como o sacrifício do carneiro, mas é o
carneiro que vem explicitamente relacionado ao holocausto. O carneiro torna-se a vida animal
mais diretamente ligada à morte ou ao luto pelo que representa para os judeus. Ao trazer o
carneiro, Derrida traz os “Judeus do mundo”. É nesse reenvio que o carneiro porta o holocausto:

Através de toda a cultura do Antigo Testamento, os cornos do carneiro


tornam-se o instrumento de que a música prolonga um sopro e porta a voz.
Naquilo que se parece com um canto pontuado como uma frase, o apelo do
shofar eleva-se para o céu, lembra os holocaustos e ressoa na memória de
todos os Judeus do mundo. Este canto de alegria dilacerante é inseparável da
forma visível que lhe assegura a passagem: as estranhas espirais, voltas e
reviravoltas, torções ou contorções do corpo do corno (DERRIDA, 2008,
p.45).

Os cornos do carneiro ressoam holocausto e “canto de alegria”. Como Derrida diz em


outro momento, o carneiro ressoa ainda todos os que são substituídos em sacrifícios, ressoa a
revolta: “Imagina-se a cólera do carneiro de Abraão e de Aarão, a revolta infinita do carneiro
de todos os holocaustos. Mas também, por figura, a rebelião violenta de todos os bodes
expiatórios, de todos os substitutos” (DERRIDA, 2008, p.47). Eu diria que a ida pelo “‘verso’
de tudo que escrevo” é essa ida radical à alteridade, a uma abertura que leva sempre ao outro
no ponto irredutível em que o outro queima. O que está em jogo nesse caminho pelo verso é
que não se pode falar do que queima sem falar da maior chama destrutiva do século XX, não
se pode falar de envios sem falar do maior apagamento de rastros.
Em O Cartão-Postal, esse cartão, carta, poema, ensaio, romance não se cansa de se
remeter ao fora, não se cansa de sugerir que falar do que é mais íntimo é falar do que é mais
público, extrapolando-se sempre a si mesmo, excedendo sempre a si mesmo. Transitando entre
o privado e o público (“você sabe que eu não acredito na propriedade, e, sobretudo, na forma
que ela toma segundo a oposição público/privado” (DERRIDA, 2007, p.208)), entre o pessoal
e o coletivo, o que o deslizamento de Derrida sugere é que falar de um é falar de outro. Um
porta o outro. Um se lança ao outro. A história supostamente pessoal de um romance se abre a
61

uma história coletiva e pública, as dores pessoais se ramificam em dores públicas. Em Espectros
de Marx, o filósofo diz: “pensar a justiça a partir do dom, isto é, para além do direito, do cálculo
e do comércio” (DERRIDA, 1994, p.46). Portanto, esse texto opera como um dom como algo
que se doa, que se sustenta em um permanente envio, que excede sempre a si em direção ao
outro. Por esses “Envios” serem um transporte incessante de reenvios, por eles fazerem dos
reenvios um meio, por eles não transportarem nada senão incessantemente os reenvios,
garantindo a manutenção de uma permanente abertura, por tudo isso poderíamos dizer que eles
são “o dom como um lance de dados” (DERRIDA, 2007, p.168). Gostaria de atentar
especialmente para essas palavras, para o gesto de trazer o “lance de dados” para esse texto,
para o gesto de trazer o nome de um dos mais importantes poemas em verso livre, para o gesto
de trazer o nome de um poema escrito por um dos poetas mais significativos para o verso,
ninguém mais ninguém menos do que Mallarmé. Leio esse gesto como uma indicação de que
podemos fazer uma leitura dessa escrita como “um lance de dados”, de que podemos fazer uma
leitura dessa escrita como versos. Ler “o dom como um lance de dados” é ler o dom como um
incessante envio, como o que não cessa de se lançar, como o que permite uma certa
possibilidade de constelações de enunciações, como aquilo que se mantém reenviando, que se
faz enquanto reenvio. É assim que esses “Envios”, como um dom, podem ser lidos tal como os
versos do poema de Mallarmé, e é assim que o verso, como um lance, é, desde já, um dom, um
reenvio.
Também em Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio, Derrida, ao falar sobre a obra de
Hélène Cixous, mostra como Um lance de dados é determinante para a sua leitura dessa obra.
O modo como ele lê o jet em Cixous e aproxima com o lance de dados tem tudo a ver com uma
leitura que é possível ser feita da escrita dele como verso. Em um momento desse livro, ele fala
assim: “Tudo parece sustentar-se na letra g (pronunciada ge, como em gênio, generosidade e
genealogia, talvez como no lançar que lança, como no lance do lance de dados, por exemplo)”
(DERRIDA, 2005, p.13). Em nota da tradutora, Eliane Lisboa, sobre essa passagem, lemos: “Le
jet qui jette... le jet du coup de dés. O autor abre aqui as observações sobre os cruzamentos em
jet (jato, lance, jorro), jeter (jorrar, lançar) e depois je (eu) que surgem ao longo da obra de
Cixous” (LISBOA in DERRIDA, 2005, p.13). Todos os lances provenientes da literalidade de
uma letra (g) remetem essa família lexical (gênese, gênero, genealogia, generosidade, gênio) a
uma ruptura com qualquer genealogia, uma vez que, assim como o eu (je) é dado como um
lance (jet), e por isso nunca coincide com ele mesmo, os lances que se abrem nesses
relançamentos de g, ge, je e jet interrompem a filiação de origem, dando lugar a novas
articulações e fazendo da obra uma incessante gestação de gêneros, não pertencente a nenhuma
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gênese fixa. Sobre isso, Derrida diz: “a genialidade consiste necessariamente em fazer chegar,
em dar lugar, em dar simplesmente, em dar nascimento à obra como acontecimento, rompendo
paradoxalmente com qualquer genealogia, qualquer gênese e qualquer gênero” (DERRIDA,
2005, p.47).
Os reenvios que se abrem nessa sílaba jet, além de apontarem para um sujeito, subjectus,
que se forma enquanto é lançado, que se forma enquanto um lance, e que, por isso, já é um
sujeito assujeitado, lançado, “situado abaixo”, é um sujeito porque o é enquanto objeto,
apontam também para uma história do pensamento que se configura pela imagem do jet: além
de haver algo em comum entre projétil e objeto, entre sujeito e dejeto, Derrida nos diz que essa
sílaba “abarca e mexe com toda a história do que, no pensamento [...], encontra-se antes de mais
nada configurado pela imagem do jet (objeto, sujeito, projeto, objeção, abjeção, Gegenwurf,
Entwurf, Geworfeinheit) e pela imagem do jorrar-lançar no lance, no aleatório do lance de
dados” (DERRIDA, 2005, p.53). Derrida chama esse pensamento de “o pensamento do
acontecimento, da chegança do que ou de quem chega, do outro como o que se passa,
pensamento que não se dissociará jamais da experiência ao longo da qual os dados são
lançados” (DERRIDA, 2005, p.53). Heidegger, Kant e Celan são as filiações das quais ele parte
e vai com e contra, indo diferentemente desses, expondo, assim, ao comunicar essa sílaba
“subterraneamente com o nome do pai em g, e com um idioma alemão tão presente na
genealogia de Cixous, por sua mãe germanófona” (DERRIDA, 2005, p.52), os nomes dos pais:

o pensamento heideggeriano do ser-lançado como Geworfenheit, mas também


a tradução do Gegengstand, desse objeto do qual se dizia também outrora,
antes de Kant, Gegenwurf (o que é lançado à frente, de encontro), e portanto
de tudo o que vem de encontro ou ao encontro na cadeia poético-semântica de
que Celan rejustifica e reconfigura o pensamento em Le Méridien (gegen,
contra, Gegend, a região, o Gegenwort, a contrafala da Lucila de Büchner, o
Gegenwart, o aqui-agora, e a Begegnung, o encontro) (DERRIDA, 2005, p.52-
53).

Ao dizer que esta sílaba tem dois destinos extraordinários, como filiação de um certo
pensamento ocidental e como elemento atômico na obra de Cixous, Derrida fala desses dois
alcances a partir de um sentido que a palavra porta [portée]: o de um período gestacional e de
procriação [in the sense of the musical stave, of period of gestation and of litter or brood]
(DERRIDA, 2006, p.50). Jet, portanto, é um lance como um nascimento, como o que faz nascer,
como o que gesta possibilidades de filiações, não se fixando a uma, nem a um gênero, nem a
uma gênese. Por isso, recupero a citação em que ele diz: “a genialidade consiste
necessariamente em fazer chegar, em dar lugar, em dar simplesmente, em dar nascimento à
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obra como acontecimento, rompendo paradoxalmente com qualquer genealogia, qualquer


gênese e qualquer gênero” (DERRIDA, 2005, p.47). Portanto, esta sílaba, jet, este jato, Derrida
diz, é o gênio da escrita, é o que a gera, o que a faz nascer (DERRIDA, 2005, p.55).

Dando um giro ou um novo lance, voltando aos “Envios”, encontramos outra incidência
do “lance” nesse texto. Mais uma vez, fazendo alusão a elementos que remetem ao verso: “É a
garupa provavelmente que induz a cena, a palavra garupa sobre a qual tudo está montado para
o lance” (DERRIDA, 2007, p.183). “Garupa”, eis outro nome que poderíamos dar a esses
“Envios”. Impossível não me remeter ao verso, porque a palavra garupa remete a cavalo e, em
português, traduzimos enjambement como “encavalgamento” ou “cavalgamento”, ao que
atribuo um caráter erótico ao verso. Além do “salto” contido na palavra em francês, remetendo
ao lance do verso, ao verso como aquilo que salta, como sendo um lance, a palavra “garupa”
remete, antes de tudo, às costas, às costas em que se monta, às costas de um animal, esse animal
sedutor como o cavalo em que se cavalga. Por tudo isso e todas as incidências do texto que me
remetem ao verso, digo que, nos “Envios”, a garupa induz a cena, e dizer que a garupa induz a
cena é dizer que uma dimensão erótica induz a cena, é dizer também que uma dimensão animal
induz a cena, é dizer que o que induz é o verso. Os “Envios” são a garupa, as costas do cavalo,
“sobre a qual tudo está montado para o lance”, sobre a qual montamos, sobre a qual a escrita
acontece como um cavalgamento, como um enjambement.

A di-reção, a diereção [diérection] desse casal, desses velhos loucos, desses


galopins a cavalo, somos nós, de qualquer modo, a priori (eles chegam a nós),
estamos deitados de barriga para cima na barriga do cavalo como em uma
enorme bicicleta, e cavalga-se, cavalga-se, de tempos em tempos me viro para
o seu lado, deito-me sobre você e, adivinhando, reconstituindo a partir de
todas as formas de cálculos e conjunturas aleatórias, elaboro em você o mapa
de seus deslocamentos, daqueles que eles induziram do mais leve movimento
de pluma, de uma ínfima puxada de freio. Depois, sem me retirar, levanto-me
novamente (DERRIDA, 2007, p.25).13

13
La di-rection, la diércction de ce couple, de ces vieux fous, de ces galopins à cheval, c'est nous, de toute façon,
a priori, (ils arrivent sur nous) nous sommes couchés sur le dos dans le ventre de la jument comme dans une énorme
bibliothèque, et ça cavale, ça cavale, de temps en temps je me tourne 1.k: ton côté, je me couche sur toi et en
devinant, en la reconstituant par toute sorte de calculs et de conjectures hasardeuses, je dresse en toi la carte de
leurs déplacements, de ceux qu'ils auront induit du plus léger mouvement de plume, en tirant à peine sur le mors.
Puis sans me dégager je me redresse encore (DERRIDA, 1980, p.23).
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Na citação acima é importante notar que Derrida não escreveu monter, em que “cavalga-
se” poderia ser traduzido também como “monta-se”, em referência à bicicleta. Ele escreveu,
literalmente, ça cavale, em referência ao cheval, ao cavalo. Haja vista que essa citação é do
início do livro e, a outra, da garupa, mais para o fim, e ainda a outra, do jogo entre jambs e
jambe, entre as duas anteriores, não há como passar batida por esses momentos que remetem
ao verso. Aparecendo em contextos de um jogo erótico, de meios de transporte e de heranças,
as relações entre “Envios” e o verso são, mais que íntimas, intrínsecas. Esses “Envios” se
transportam no verso, no lance, no cavalgamento e, ao mesmo tempo, é preciso dizer, nos passos
suspensos do fantasma, nos pés que faltam do que se porta às costas. Não há transmissão se não
há lance – esse lance que é sempre um lance duplo ou um lance que se abre em um duplo gesto.
Se há, no verso, o amor, no verso, o horror, façamos mais um giro ou, nesse
cavalgamento, saltemos, em mais um lance: fazendo-se em um caminho ora recuado, ora
atropelado, cheio de encarrilhamentos, encavalgamentos, cheio de buracos, não se sustentando
em si mesmo, é nesse eixo quebrado e disperso que esses lances que se relançam dão dignidade
ao insuportável. Em um momento do texto, lemos: “a literatura deve permanecer ‘insuportável’.
Compreendo também: sem o menor suporte” (DERRIDA, 2007, p.140). Em outro momento,
lemos: “Escrevo isso, isso mesmo que deve permanecer ilegível para nós. E antes de tudo
insuportável” (DERRIDA, 2007, p.262). Se a literatura fosse um suporte que transportasse o
insuportável, ela seria um meio para um fim, precisaria de uma identidade, de uma fixidez, de
certa rigidez para que o insuportável chegasse ao destino. Mas a literatura é o meio do
insuportável porque ela existe enquanto insuportável. Ela transporta o insuportável na falta de
suporte que ela mesma se constitui. Demorando-se na ambiguidade do termo “insuportável”,
entendemos que esses “Envios” são tão insuportáveis como o verso que traz o amor e o horror,
a paixão e o holocausto, tão insuportáveis como o longo poema com o qual ele pode ser
confundido, justamente por se fazer como versos que conectam, em suas quebras/articulações,
amor e horror. Sustentando o insuportável naquilo mesmo que não se sustenta nem se suporta,
esses pontos de passagem se abrem a um terceiro, a um terceiro lugar, a um terceiro olho, o
nosso, de leitor, que é convocado a ler o que queima – a ler o ilegível. É nessa ilegibilidade que
um terceiro lugar se produz. Em uma nota da tradutora, explica-se que a expressão “não
compreender nada”, em francês, ne voir que du feu, significa “ver apenas fogo” (DERRIDA,
2007, p.281). “Ali onde sobretudo digo a verdade eles não compreenderão nada” (DERRIDA,
2007, p.281). Escrevendo literalmente a frase, teríamos: “Ali onde sobretudo digo a verdade
eles verão apenas o fogo”. Derrida traz uma ética do fogo, uma ética das paixões, uma ética da
vulnerabilidade, uma ética da ilegibilidade, uma ética de quem vai à incompreensibilidade do
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que queima – de amor e de horror. Isso que é “feito para circular como uma carta aberta, mas
ilegível” (DERRIDA, 2007, p.18), convoca a ler justamente o incêndio, o apagamento dos
rastros:

apagando todos os traços, mesmo os mais inaparentes, os que marcam o tom,


ou a pertença a um gênero (a carta, por exemplo, ou o cartão-postal), para que
a língua sobretudo permaneça secreta à evidência, como se ela inventasse cada
passo, e como se pegasse fogo imediatamente, assim que um terceiro
colocasse os olhos nela (DERRIDA, 2007, p.17).

Nesses “Envios”, a escrita e o apagamento funcionam como remetimento ininterrupto a


uma forma outra, a um gênero outro, a uma indecisão, fazendo com que a leitura desafiada por
essa ilegibilidade não se fixe, não chegue, não se realize, sendo nesse ponto de incerteza e de
não-chegada que as múltiplas possibilidades se traçam: “quando inicialmente escrevi ‘queime
tudo’ não era nem prudência e gosto da clandestinidade, nem preocupação de preservação
interior, mas o que era preciso (a condição, o dado) para que a afirmação renasça a cada instante,
sem memória” (DERRIDA, 2007, p.31). Como um crítico da origem e da presença, incendiar
para que se irrompa algo sem precedentes é um dos legados de Derrida. Toda presença deve
exceder a si, como ele diz em Espectros de Marx, “só deve possibilitar essa presença a partir
do movimento de algum desajuntamento, disjunção ou desproporção: na inadequação a si”
(DERRIDA, 1994, p.12). É por isso que “não existe O envio, mas envios sem destinação”
(DERRIDA, 2007, p.77), para que não chegando a um destino ou a um alguém determinado,
esses muitos envios possam passar de mão em mão em seus impasses a muitos a que não foram
destinados, como uma carta roubada, já que “as ficções epistolares se multiplicam quando
acontece uma nova crise da destinação” (DERRIDA, 2007, p.257). Assim, essa escrita se
reenvia no ponto de sua crise, no ponto em que ela não se sustenta como um porto, uma
paragem, uma âncora: ela se reenvia no que se instaura como uma destinação insustentável,
sempre em crise.
Como “cartas abertas, mas como criptas” (DERRIDA, 2007, p.63), esses “Envios”
acontecem como reenvios porque eles se sustentam enquanto “tragédia da destinação”, não
como a informação que chega inteligível, mas como a cinza que se assenta no túmulo. Não
poderíamos então ter “destinatário algum como sujeito identificável e presente para si”
(DERRIDA, 2007, p.75). “Você sempre foi [...] o ‘verso’ de tudo que escrevo” (DERRIDA,
2007, p.221) significa que “você” é uma dispersão que, para ser encontrada, deve ser procurada
sempre do outro lado, no verso. Você é a dispersão que se encontra no verso: “você é um – e
portanto outro” (DERRIDA, 2007, p.161). Ou, ainda: “Nós somos uma multidão, você e eu, e
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é bom, uma imensa coleção dispersada” (DERRIDA, 2007, p.209). Não há destinatário como
sujeito identificável, não há o indivíduo como aquele que não se divide: a noção de sujeito já é
aquele que se divide, o sujeito já é uma divisão e uma partilha, não é sequer alguém, é alguém
e algo, ao mesmo tempo, é assujeitado. O exemplo a seguir atesta isso a partir das variações de
nomes que são dadas a Sócrates pelos diferentes idiomas: “quando Socratise, então, ou
Socratesse envia uma mensagem, ele não endereça algo a alguém, não unicamente, ele ‘se
envia’ algo ou antes alguém (sempre divisível, não)” (DERRIDA, 2007, p.168). Ou seja, o gesto
de enviar é já se enviar, o envio é antes de tudo um envio de si mesmo que, no envio, torna-se
outro, reparte-se, partilha-se. Enviar algo é se enviar e se enviar é enviar sujeito e objeto para
si mesmo: no envio ao outro, o que se envia é uma transformação de si. Não há, portanto,
destinatário como sujeito identificável, há destinatários como terceiros que portam outros em
suas costas, “[p]ois há terceiros, no lugar em que estamos” (DERRIDA, 2007, p.55): os
terceiros são em nós e nós somos terceiros, no duplo sentido de “não primeiros, não originários”
e de “terceiros que residem em nós”.
A produção desse terceiro se dá na alternância de duas posições, ou que Derrida chama
de double bind, ou que chamo de duplo gesto que vai a dois extremos ao mesmo tempo, não os
tornando indistintos totalmente, mas quase indiscerníveis, indo a um como se vai a outro,
tornando a fronteira tênue. Indo ao mesmo tempo ao amor e ao horror, ao público e ao privado,
à ordem e à prece, ao passivo e ao ativo, àquele que executa e aquele que sofre, aquele que
escreve e aquele que se vê escrevendo, aquele que dita e aquele que escreve pelo que é ditado
a si pelas costas, o ponto de insustentabilidade dessa escrita é o mesmo ponto que faz dela um
jogo assustador e erótico, porque esse ponto em que essa escrita se sustenta é sempre o verso,
o outro lado. Por isso, “sempre se relança, de hipótese em hipótese, de tese em contratese [...]
especula interminavelmente, isso especula em suas costas, isso o empurra” (DERRIDA, 2007,
p.65): ao mesmo tempo em que especula, sofre a ação do “isso” que especula em suas costas, é
tomado pelo arroubo do que não se tem controle, de algo que se impõe, sendo sujeito e objeto.
Isso, segundo Derrida, é o “verdadeiro” da filosofia: “S. não vê P. que vê S. (eis o
verdadeiro da filosofia) apenas as costas” (DERRIDA, 2007, p.58). Ora, só é “o verdadeiro da
filosofia” porque sabemos que nunca o foi, porque ainda hoje precisamos pleitear a hipótese de
que nem mesmo um texto filosófico é escrito por um sujeito onisciente e onipresente. Se Derrida
defende que há apenas as costas, o outro lado, em um princípio erótico e fantasmático, podemos
dizer que esse dorso é o verso. Mais que isso, o filósofo sugere que a filosofia já tem seu
fundamento no verso, uma vez que Sócrates e Platão são a dupla ou o casal fundamental da
filosofia. Como aquele que está de costas, aquele que está sendo visto, mas não vê quem o olha,
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aquele que está sob o olhar do outro, com o dorso para a frente do outro, com o dorso que deve
ser visto pelo outro, aquele que está como objeto – sempre inacessível – do outro, aquele cujo
verso está exposto ao outro, nesse, é o animal que escreve: “e eis que me encontro novamente
de pé lhe escrevendo, de pé em plena rua, tão frequentemente de pé, sem poder esperar – e faço
isso como um animal , e às vezes até mesmo sobre uma árvore” (DERRIDA, 2007, p.34).
Habitar o verso, as costas, o outro lado, é escrever como, no cartão-postal, Sócrates, aquele que
sempre esteve atrás, é quem agora escreve, mas também é jazer como animal, não havendo mais
um “eu”, mas um animal que escreve.

Gostaria de atentar para o que nesse animal se apresenta como desconhecido,


inarticulado, selvagem, incivilizado, fora do logos, estranho, estrangeiro, por assim dizer, outro.
Para isso temos um adjetivo, não um adjetivo como um atributo que garanta uma pertença, mas
um adjetivo que, pelo contrário, não garante senão o despertencimento, o desamparo, a
despossessão de si mesmo, a condição de estar sempre lançado. Como Derrida disse, “Ora,
todos os acidentes podem acontecer no intervalo que separa o sujeito (que diz eu) e seu atributo”
(DERRIDA, 2007, p.201), mas a diferença desse adjetivo é que ele caracteriza justamente
aquilo, aqueles e aquelas que são destituídos de atributos, cujos atributos não lhe garantem nada,
nenhum suplemento, porque esses só recebem esse adjetivo porque existem sempre em relação
com a perda – falaremos melhor disso. Mais que um adjetivo, considero-o um nome, uma forma
de nomear isso que transita entre alguém e algo, sujeito e objeto, gente e bicho. Vamos à
passagem: “O que não poderei nunca conhecer, o outro lado de mim, eternamente inacessível,
não impensável, de modo algum, mas que não pode ser conhecido, não sabido – e tão amável”
(DERRIDA, 2007, p.167) [Ce que je ne pourrai jamais connaître, l'autre côté de moi,
éternellement inaccessible, non pas impensable, du tout, mais inconnaissable, insu - et tant
aimable] (DERRIDA, 1980, p.160). Amável. Eis outro nome que Derrida dá ao outro. Eis outra
definição que poderíamos ter dos “Envios”. Esse adjetivo aparece também em outro lugar:
“Estou bem cansado, meu doce amor, vou acompanhar estes amáveis fantasmas ao carro deles
e volto para dormir contigo (pena que você não possa nunca me acompanhar aqui), vou sonhar”
(DERRIDA, 2007, p.172) [Je suis bien fatigué, mon doux amour, je vais raccompagner ces
aimables fantômes à leur voiture et je reviens dormir avec toi (dommage que tu ne puisses
jamais m'accompagner ici), je vais rever] (DERRIDA, 1980, p.165). Aqui temos uma forma de
nomear o desconhecido, os fantasmas, a dupla (relação amistosa) ou (/) o casal (relação
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amorosa), a filatelia (“Phila-telia é então o amor whithout com/sem casamento, e a coleção de


todos os selos, o amor do selo com ou sem o amor selado” (DERRIDA, 2007, p.67)), aquilo ou
aquele/aquela que se encontra no verso: amável.

Mas, em outro texto, encontramos o verso: o fantasma assume-se como terrível. Em


Força de lei, o fantasma é, também, o horror da polícia: “[...] essa figura inapreensível e sem
forma se espectraliza”; “[...] o mal da polícia é o de ser uma figura sem rosto, uma violência
sem forma. Ela não é apreensível, como tal, em nenhum lugar”; “a polícia se torna em toda
parte, na sociedade, o próprio elemento da assombração” (DERRIDA, 2010, p.103); “[a] polícia
torna-se alucinante e espectral porque ela assombra tudo. Ela está em toda parte, mesmo ali
onde não está” (DERRIDA, 2010, p.105). Se, no contexto de O Cartão-Postal, vimos que “no
começo, era o amor”, em Força de lei, Derrida diz: “No começo da justiça, terá havido o lógos,
a linguagem ou a língua, mas isso não é necessariamente contraditório com outro incipt que
dissesse: ‘No começo, terá havido a força’” (DERRIDA, 2010, p.17-18). Do outro lado de “no
começo, era o amor”, essas formulações indicam que a linguagem também é um exercício de
força. Em Força de lei, o fantasma é a polícia, mas também é Walter Benjamin. O fantasma é,
ainda, o texto. Isso se evidencia no caráter performativo da escrita de Derrida, isto é, se traçando
como aquilo que transforma isto mesmo que interpreta. Isso confere o caráter espectral ao texto
que, tornando-se legível no mesmo movimento que o faz ilegível e vice-versa, “não escapa à
lei que enuncia. Ele se arruína e se contamina, torna-se o espectro dele mesmo” (DERRIDA,
2010, p.100-101). Se já falamos que o equívoco é a lei, o destino do texto é se tornar sempre
outro de si mesmo. Derrida não vai aos fantasmas senão fazendo do ato da escrita um modo
também fantasmático, espectral.
Quanto a Benjamin, é ele com quem Derrida vai com e contra. O fantasma nesse livro
não pode ser compreendido sem se ter em mente que ele é, ao mesmo tempo, a polícia e
Benjamin, o horror e o amor. Uma das diferenças entre esses dois fantasmas é que o segundo
se transforma, pois porta em si uma abertura à alteridade, enquanto o primeiro “permanece
sempre igual a ele mesmo” (DERRIDA, 2010, p.104). Ou seja, o corpo fantasmal da polícia,
por mais invasor que seja, está sempre para a identidade, para o próprio, para o poder, e não
para a alteridade, para o impróprio, para o não-poder. A polícia nunca está para o outro, mas
sempre para si mesma. “Nunca se sabe com quem estamos tratando, e esta é a definição da
polícia [...], cujos limites são, no fundo, indetermináveis” (DERRIDA, 2010, p.99).
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Indetermináveis também porque a diferença entre polícia e Estado passa a ser anulada, eles
passam a ser o mesmo em uma identificação total, sem um traço que os desarticule e produza
uma diferença: “Sua ausência de limite não lhe vem apenas de uma tecnologia de vigilância e
de repressão, [...] [e]la provém igualmente do fato de que a polícia é o Estado, é o espectro do
Estado” (DERRIDA, 2010, p.99). Diferentemente do fantasma amável, a polícia é um corpo
fantasmático que produz matáveis e reduz os amáveis a matáveis. Indo aos dois, Derrida mostra
o limite que os separa: se ao corpo fantasmático da polícia os limites são indetermináveis, aos
fantasmas amáveis o limite é o outro.
“Como amar senão nessa finitude?”, pergunta Derrida (DERRIDA, 2010, p.102). É
exatamente essa pergunta que rege a ética que passa pelos fantasmas. Para ser amável, passa-
se necessariamente pela finitude, pelo fim, pela mortalidade, pelo limite. Ir aos fantasmas é um
gesto que vai, sobretudo, à finitude do outro, ao limite do outro. É nesse gesto que Derrida vai
aos mortos, como vai a Benjamin, como foi a Sócrates e Platão como dois amantes em O
Cartão-Postal, como vai ao que resta: na precariedade, nas ruínas, na finitude:

Poderíamos escrever, talvez com ou segundo Benjamin, talvez contra ele, um


curto tratado do amor pelas ruínas. Aliás, que outra coisa poderíamos amar?
Só se pode amar um monumento, uma arquitetura, uma instituição como tal
na experiência, ela mesma precária, de sua fragilidade: ela não esteve sempre
ali, não estará sempre ali, está acabada. E por isso mesmo a amamos, como
mortais, através de seu nascimento e sua morte, através do fantasma ou da
silhueta de sua ruína, da minha – que ela é, ou já prefigura. Como amar senão
nessa finitude? (DERRIDA, 2010, p.102)

Ao contrário do corpo fantasmático da polícia que atinge a finitude do outro, uma ética
que se quer amável é aquela que jamais perde de vista essa finitude. Mesmo indo contra
Benjamin, ao dizer que o nazismo “surfou” no ponto de vista de seu texto “Por uma crítica da
violência”, 14 Derrida realiza um duplo gesto, mais uma vez, quando vê o texto de Benjamin

14
O livro Força de lei, de Derrida, reúne duas conferências: “Do direito à justiça” e “Prenome de Benjamin”. Essa
última foi apresentada no colóquio “O nazismo e a solução final”. Nos prolegômenos à segunda conferência,
Derrida afirma que o texto revolucionário de Benjamin, “Por uma crítica da violência”, publicado em 1921, se
situa na onda antiparlamentarista e anti-iluminista da Europa entre guerras “sobre a qual o nazismo veio à
superfície e até mesmo ‘surfou’” (DERRIDA, 2010, p.63). Em Estado de Exceção, Giorgio Agamben situará a
“violência pura” de Benjamin em contraponto à violência exercida pelo direito, o que determinou a posição
contrária de Benjamin a Carl Schmitt no debate sobre estado de exceção que vincula violência e direito, enquanto
a violência revolucionária de Benjamin, como um meio sem fim, pretende ser uma manifestação que depõe o
direito: “Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever a violência no contexto jurídico, Benjamin responde
procurando, a cada vez, assegurar a ela – como violência pura – uma existência fora do direito” (AGAMBEN,
2004, p.92). Caio Paz, no texto “Notas sobre a violência”, publicado no livro Benjaminianas: outros ensaios sobre
arte, política, linguagem e história (CAMÊLO, Francisco; ALVES DE LIMA, Leonardo; BANGE, Patrick;
SOUSA, Ricardo et al. (orgs.), Rio de Janeiro: Desalinho, 2019, p.231-248), desenvolve uma crítica a esse ponto
70

como, por um lado, “uma terrível ambiguidade ético-política, a que reflete, no fundo, o horror”,
e, por outro lado, como “coração ou coragem de um pensamento que sabe não haver justeza e
justiça e responsabilidade senão expondo-se a todos os riscos, para além da certeza e da boa
consciência” (DERRIDA, 2010, p.120). Creio que no ato de rasurar Benjamin há um duplo
gesto, terrível e amável: terrível porque, ao ser contra a violência não mediada ou não
representada que Benjamin defende, ou seja, a violência como um meio sem fim (“O que lhe
importa [a Benjamin] é uma manifestação violenta da violência, que se mostra assim ela mesma,
e que não seja meio com vistas a um fim” (DERRIDA, 2010, p.120), Derrida se coloca um
passo atrás de Benjamin, indo contra um ataque à democracia em seu fundamento do estado de
direito e se colocando a favor da democracia, recuando de uma posição mais radical como a do
filósofo alemão. Por outro lado, Derrida hesita nessa posição ao dizer que só aí, “ao se expor a
todos os riscos para além da certeza e da boa consciência” é que em Benjamin “habita um gesto
de coragem” (DERRIDA, 2010, p.120). Ou seja, se a concepção de Benjamin para Derrida
parece terrível, ela é ao mesmo tempo um gesto de coragem, isto é, aquilo que vem do coração,
do corpo, de cor. Essa hesitação ou ambiguidade do gesto de Derrida me faz ler o texto como
uma carta ao pai que é, ao mesmo tempo, “sentença de morte” e “declaração de amor”. Nesse
gesto, Derrida mostra que a escrita é uma ausência de pai, ela traz sempre um pai morto. A
escrita é uma lei parricida e aceita a ausência da mãe ao jogar com a ausência, como no fort/da.
A escrita é condenada como um estrangeiro sem morada, como um imigrante, um deportado,
um exilado. No mais, leio essa Força de lei também como a inscrição da coragem (do outro, de
Benjamin) contra a força.
O duplo aparece outra vez na leitura que Derrida faz do nome ou da assinatura, no caso,
de Benjamin, ao mesmo tempo como o que porta o indecifrável da soberania e o que convoca
a decifração: ao fim da conferência “Prenome de Benjamin”, Derrida joga com o primeiro nome
do filósofo alemão, Walter, e a palavra em alemão walter que quer dizer “reinar”, “dominar”,
como Deus ou o soberano. Para Derrida, este jogo derivaria ainda uma aproximação do nome
com waltende, que quer dizer “decisão” (Die Waltende), assim, a assinatura seria isso que é de
mais sagrado, de mais secreto, que porta em si um segredo, e que por isso “chama, convida,
nomeia, endereça, endereça-se” (DERRIDA, 2010, p.134). Ou seja, o indecifrável é aquilo que
chama por ser decifrado. Mas, por muitas vezes, a filosofia de Derrida se mostra como uma
ética em que amor e horror estão indissociáveis no modo como se vai ao outro, ao desconhecido,

de vista de Derrida, vendo Benjamin como revolucionário e Derrida, ainda, como um democrata que defende o
Estado de Direito.
71

ao estranho, ao fantasma, ao nome, à assinatura, como aquilo que em sua ilegibilidade deve ser
lido, mas não decifrado. Como lemos em Monolinguismo do outro, “Phantasma é também o
fantasma, o duplo ou o espectro” (DERRIDA, 2001b, p.40). Se os fantasmas são amáveis, essa
filosofia da hospitalidade sempre traz em sua virada também a hostilidade:

A estrutura da “fantasmacidade espectral” aparece na “experiência da ferida,


da ofensa, da vingança, da lesão. Do horror. Acontecimento traumático porque
compreende golpes e feridas, cicatrizes, muitas vezes homicídios, algumas
vezes assassinatos coletivos. É a própria realidade, o alcance de toda a férance,
de toda a referência como différance” (DERRIDA, 2001b, p.40-41).

Como a diferença (différance), o fantasma ou o desconhecido é isso que não cessa de


vir, ele continua sempre vindo. Acolhê-lo é acolher o desarranjo, acolher o que perturba. A
hospitalidade é acolher a perturbação, o desarranjo, a desarticulação, e tem a ver com uma
catástrofe que não está prevista, porque, se tivesse, a hospitalidade deixaria de ser hospitalidade
e o desconhecido deixaria de ser desconhecido. O amor como hospitalidade é, portanto, um
desarranjo, ele perturba. Amar é abraçar uma catástrofe não anunciada.
Nesse livro que também pode ser lido como um diálogo, Derrida se coloca, ao mesmo
tempo, como um e outro: como magrebino e francês, “[a]o mesmo tempo um e outro”
(DERRIDA, 2001b, p.26). Sendo um e outro, o lugar dele é sempre no limite, ele está sempre
à beira, no limiar que os articula à medida que desarticula: “é à beira do francês, unicamente,
nem nele nem fora dele, na linha inencontrável da sua costa que, desde sempre, para sempre,
eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar, rebentar de dor [...]” (DERRIDA, 2001b, p.14).
Não é no centro de sua língua que se vai ao amor e à dor, mas no limite dela, na ponta da língua
quando ela se dobra. A disseminação acontece nessa dobra, nesse lugar em que ela se encontra
ameaçada: “A minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro”
(DERRIDA, 2001b, p.39).
Escutemos novamente a passagem que diz sobre o gesto que tenta afetar a monolíngua,
“aquela que temos sem ter”, aquela em que somos íntimos e estrangeiros: “Este gesto é plural
em si, dividido e sobredeterminado. Pode sempre deixar-se interpretar como um movimento de
amor ou de agressão[...]” (DERRIDA, 2001b, p.98). Afetar a monolíngua é, portanto, já se abrir
a um duplo gesto. Em um momento do Monolinguismo lemos: “([...] um horror nas línguas, é
o nosso tema)” (DERRIDA, 2001b, p.37). Entre parênteses, a indicação do tema do livro leva
a pensar na língua na ambivalência em que promessa e ameaça são os dois lados da mesma
moeda: “já estou nesta promessa ou nesta ameaça – que reúne desde então a língua, a língua
72

prometida ou ameaçada, prometedora até na ameaça e vice-versa, assim reunida na sua própria
disseminação” (DERRIDA, 2001b, p.36).
Encontramos outro duplo, outro entrelaçamento entre amor e morte em outra passagem,
na associação que o filósofo faz da palavra “cortejo”, remetendo-se tanto ao amor quanto ao
ritual fúnebre:

quando no fundo entravam em mim frases que era ao mesmo tempo preciso
apropriar, domesticar, cortejar, quer dizer, amar incendiando, queimar (o
cortejar nunca está longe), talvez mesmo destruir, em todo o caso marcar,
transformar, talhar, entalhar, forjar, enxertar ao lume, obrigar a vir
diferentemente, diferentemente dito (DERRIDA, 2001b, p.68-69).

A diferença acontece só na medida em que apropriação é também expropriação, na


medida em que tornar o mais intrínseco é tornar o mais outro. Talvez pudéssemos denominar
os “Envios” de “amar incendiando”, tomando emprestado do Monolinguismo. O vínculo entre
amor e morte, aproximação e separação, talha de maneira tão profunda a filosofia da diferença
que nos leva a ver que a sua abertura à alteridade passa necessariamente pela ambiguidade do
gesto de “amar incendiando”.

Em Espectros de Marx lemos que “aprender a viver só pode acontecer entre vida e
morte” e isso pressupõe a coexistência com os fantasmas: “O que se passa entre dois, e entre
todos os ‘dois’ que se queiram, como entre vida e morte, só se há de valer de algum fantasma”
(DERRIDA, 1994, p.10-11). Nesse livro, encontramos o fantasma como conceito, ética e,
segundo Derrida, até mesmo como política, porque, o filósofo diz, “o chamado é a injunção
política” (DERRIDA, 1994, p.50), e o fantasma é ele mesmo um chamado, é aquilo que chama.
Responder a esse chamado, indo ao que queima, ao que chama, é mais do que ir ao encontro de
um chamado, é ir ao encontro de uma ordem como uma prece, de uma lei como uma súplica,
de uma voz que difere de si mesma e traz em si muitas vozes: “A injunção não pode ser una a
não ser dividindo-se, rasgando-se, diferindo de si mesma, falando a cada vez diversas vezes –
e com diversas vozes” (DERRIDA, 1994, p.33). Aqui, ler as implicações da noção de fantasma
é ler “problemáticas do trabalho de luto, do simulacro, da dupla injunção, do double bind e da
indecidibilidade como condição de decisão responsável” (DERRIDA, 1994, p.126). Não
saímos, portanto, da concepção que vimos até agora da filosofia de Derrida como uma filosofia
que se faz em uma escrita em si mesma espectral. O fantasma não é só tema, é dispositivo, é
73

procedimento, é performance no ato da escrita. A lógica do fantasma “acena para um


pensamento do acontecimento que excede, necessariamente, uma lógica binária ou dialética, a
que distingue e opõe efetividade (presença) e idealidade (não-presença)” (DERRIDA, 1994,
p.90). Ler o fantasma é ler o gesto múltiplo que estamos vendo até aqui, que não se reduz a um
ou ao outro, mas expõe a complexidade da coexistência dos dois ao mesmo tempo, e não
pressupõe uma síntese da relação de uma suposta tese e de uma suposta antítese, mas sim uma
dispersão de hipóteses que estão em uma relação não excludente.
Se Espectros de Marx começa não com o fantasma de Marx ou do comunismo, mas com
o fantasma de Hamlet, o efeito disso é a percepção de que o fantasma do qual Derrida está
falando não é só Marx, mas o rei, o pai, o poder. Ao partir, no início, de uma economia familiar,
vemos que depois essa dá lugar a uma economia pública, entrelaçando o privado e o público, a
relação parental e a relação coletiva. E quando discute longamente sobre teses sobre o fim da
história no apogeu do capitalismo, vemos que, se ele está falando, por um lado, dos espectros
do capitalismo, por outro, ele também está propondo uma leitura da desconstrução, do
marxismo, do comunismo, opostos ao capitalismo, como fantasma. Com isso, Derrida leva a
crer que ir ao tempo em seu desencaixe é ir, ao mesmo tempo, ao que nele há de vida e de morte,
de horror e de luta. É ir ao horror e ao que é contra o horror. A desconstrução é um pensamento
da tensão, um pensamento do atrito.

Quando vamos ao livro Circonfissão, 15 nos deparamos com o estranhamento desde a


forma, em que as perífrases constituem um livro dentro do livro, ou o outro lado do corpo do
texto, ou o pé do corpo do texto, ou os pés cortados do corpo do texto, ou outro corpo embaixo
do corpo do outro texto. Se, na última carta dos “Envios”, intitulada “O retorno”, lemos “Eu
me perguntarei o que significou, desde o meu nascimento ou aproximadamente, girar em torno”
(DERRIDA, 2007, p.282), nos vemos às voltas desse giro também em Circonfissão. Cada
perífrase se faz em um “girar em torno” cujo efeito não é senão vertiginoso: em uma pontuação
que tropeça em incontáveis vírgulas, o texto se constrói em longas volutas até chegar o ponto
final. A conclusão do parágrafo é sempre adiada, e a própria noção de parágrafo é desafiada
porque ele nunca se completa. O caminho é feito pelo corte, no corte:

15
As reflexões tecidas aqui sobre esse livro são fruto das aulas ministradas pela professora Flavia Trocoli, no curso
de pós-graduação “O traço autobiográfico em Proust, Barthes e Derrida”, ocorrido na Faculdade de Letras da UFRJ
durante o primeiro semestre de 2017. Direta ou indiretamente, essas análises são eco e ressonância de sua voz.
74

[...] desde que ao buscar uma frase, busco-me numa frase, sim, eu, e desde um
período circunremoto ao cabo do qual eu diga eu e tenha a forma enfim, minha
língua, uma outra, disso em torno de que girei, de uma perífrase a outra, sobre
a qual sei isso aconteceu porém jamais, segundo o estranho contorno do
evento de nada, o contornável ou não que a mim vem sem ter tido lugar,
chamo-o circuncisão, vejam o sangue mas também o que advém, cauterização,
coagulação ou não, estritamente conter a efusão da circuncisão, a una, a
minha, a única, antes a circunavegação ou circunferência, embora a
inesquecível circuncisão me tenha transportado aonde tive de ir, e circonfissão
se quero dizer e fazer alguma coisa de uma confidência sem verdade que gira
em torno de si mesma, de uma confidência sem ‘hino’ (hinologia) e sem
‘virtude’ (aretologia), sem chegar a se fechar em sua possibilidade, desselando
descartando o círculo aberto, errando na periferia, tomando o pulso de uma
frase contornante, a pulsão do parágrafo que jamais se circompleta, tanto
tempo quanto o sangue, o que chamo assim e assim chamo, continue a advir
em sua veia (DERRIDA, 1996, p.18-19).

Circonfissão se traça em declives, desníveis, desvios, em um movimento desconstruído.


Nele, o corte existe como lugar de passagem: por onde corre o sangue, por onde corre a fala.
Circonfissão é corte e gozo, o corte no corpo e o gozo da fala. Ele é circulação, jorro, fluxo e
corte, ao mesmo tempo como interrupção e manutenção do fluxo. Aqui, vemos novamente o
equívoco como lei, que corta a lei inequívoca inscrita no corpo e abre o texto ao leitor. De novo,
Derrida transforma a lei e faz dela outra coisa. Circonfissão: contrato e aliança. Hannah Arendt,
em O que é política?, diz que contrato e aliança são concepções centrais da política e da guerra:

Contrato e aliança, de acordo com sua origem e seu conceito cunhado tão
ricamente pelos romanos, estão ligados, do modo mais estreito, com a guerra
entre povos e, segundo a concepção romana, representam a continuação
natural, por assim dizer, de toda e qualquer guerra. Nisso também há algo de
homérico ou talvez alguma coisa que já existia antes do próprio Homero
quando ele pôs mãos à obra para dar sua cunhagem poética definitiva ao ciclo
de lendas troianas. Residia no reconhecimento de que também o encontro mais
hostil de homens faz surgir alguma coisa que só é comum a eles, justamente
porque – como Platão um dia expressou – "tal como o agente faz, o sofredor
também sofre" (Górgias, 476), é assim e não de outra maneira, de modo que
quando fazer e sofrer passam, podem tornar-se posteriormente os dois lados
de um mesmo acontecimento. Mas com isso o próprio acontecimento já foi
transformado de luta em uma outra coisa, que só se torna acessível para o olhar
retroativo e enaltecedor do poeta ou do historiador (ARENDT, 2002, p.44).

Assim, contrato e aliança, conceitos bélicos, de guerra, que aparecem em Derrida como
o que há de mais íntimo, “são os dois lados de um mesmo acontecimento”, ao mesmo tempo
que indica o “encontro mais hostil”, indica também “o que só é comum” entre esses implicados
no contrato e na aliança, e, se lêssemos Circonfissão à luz dessa citação, poderíamos dizer ler
75

essa confissão entre um poema e um texto histórico, entre o corte e aquilo que tenta elaborar.
Circonfissão: um gesto de escrever que fere e que tenta curar: ferir e cauterizar, entre a morte
a vida. Nesse livro, a escrita é isso que fere a superfície, uma incisão, uma retirada de sangue.
As perífrases também são um curativo, ajudando na cicatrização, um pergaminho onde se
escreve. Circonfissão é o girar em torno do corpo do texto escrito por Geoffrey Bennington, é
o girar em torno da ferida, que é ao mesmo tempo expor a ferida e cauterizá-la; girar em torno
é ao mesmo tempo buscar uma frase e buscar a si mesmo em uma frase, fazendo-se a cada giro
que faz uma frase; girar em torno se traça em uma perda, e o traço que enuncia a perda e o
desaparecimento, enuncia, no mesmo gesto, a sobrevivência.
Vale lembrar que a um certo “girar em torno” Lacan chamou de “função ética do
erotismo” (LACAN, 1959-1960/1997, p.189), no Seminário 7, quando ele disse a respeito do
amor cortês em sua relação com a sublimação. A esse rodeio em torno do objeto amoroso
inacessível, que já se dá como um girar em torno de um luto, de um centro vazio, dando-lhe
uma forma a cada giro, consistiria propriamente em encontrar as coordenas do prazer que
equivaleria em ver surgir uma forma indecifrável, enigmática, que sempre escapa à apreensão.
Nesse rodeio, nesse girar em torno, nesse dar forma ao vazio, o desvio do objeto libidinal para
novos objetos e finalidades não-sexuais não se faz sintomaticamente, por um retorno do mal-
estar, do recalque, mas por um modo inventivo, criativo que, a cada giro, dá uma nova forma
ao vazio, uma forma que não se fixa, porém (LACAN, 1959-1960/1997, p.119).
Girando em torno daquilo que não se pode nomear diretamente, Circonfissão inscreve
o trabalho de luto no mesmo gesto que escreve um contrato fracassado, quebrado, cortado.
Assim, as perífrases vão se constituindo como um girar em torno de uma elipse que não provoca
nada mais que um deslocamento do centro: cada vez que se gira em torno, o centro se desloca.
Esse texto convoca o descentramento do olhar ao se colocar sempre como uma passagem que
vai se dando em cima de um ponto que articula e desarticula. Nesse movimento, o que está em
jogo neste girar em torno é separar e, ao mesmo tempo, fazer aliança. A aliança só pode ser
feita a partir do que está separado. Isso desmonta a lei da unidade. Para haver aliança é preciso
haver heterogeneidade, diferença. As cenas mesmas se dão entre alianças: de uma história, de
uma tradição, daquele que recebeu um nome, entre um nome singular e outro desconhecido.
Entrelaçando, isto é, mantendo junto à medida que expõe a diferença, confissões e segredos vão
se sustentando em um ponto de incerteza. Nesse ponto de incerteza é que há a transformação:
o porta-voz é sempre sacrificado e, por isso, provisório; o eu se transforma em outro; o tema se
transforma em outro; o nome se transforma em outro; a memória se transforma em outra; a
perda, a ferida, o sangue se transformam. A vulnerabilidade, que também reside nesse ponto de
76

incerteza e nessa transformação, se mostra como uma ética, um modo de ir. Assim, essa suposta
confissão vai se mostrando cheia de furos, perpassada pelo segredo que interrompe o ter que
confessar tudo, o obrigar a dizer. Essa interrupção já é a interrupção de uma sistemática
totalitária do pensamento, mostrando a desconstrução como um tremor do pensamento, como
um abalo aos fundamentos.
Como um astro que orbita a Terra, nesse texto tudo está sempre caindo à medida que
está sempre ao redor. Há nomes que começam com “geo”: Geoff, de Geoffrey Bennington,
Georgette, de santa Georgette, que também pode ser o nome da mãe, Geo, como o irmão a
chamava, que também se reduz a uma letra e um ponto, “G.”, que pode ser o autor, Geoffrey,
que pode ser a pronúncia de “eu” (je), passando assim a ser Derrida, mas que também pode ser
a santa, a mãe... Aparece ainda a palavra “geologicial” parecendo fazer referência ao fundo da
terra, a um deitar por terra, a um cair: “e já os surpreendo vendo-me deitado de dorso, no fundo
de minha terra, percebo, eles compreendem tudo, tal como o geologicial, salvo que vivi na
prece, nas lágrimas, e na iminência a cada instante de sua sobrevivência”; “em minha língua
privada de ti, esta mesma, a intraduzível, em que a palavra justa nos deita por terra, derruba”
(DERRIDA, 1996, p.36-37). É assim, nesse desastre (des-astro), em queda, que essa escrita se
faz, com o peso da gravidade, sempre orbitando, sempre abordando, sempre girando em torno,
ou seja, sempre caindo.
No ensaio “A queda dos corpos: o ‘lance dados’ de Jean-Luc Nancy”, de tradução de
Rafael Marcelo Viegas, presente no livro Sobre o corpo, organizado por Ana Kiffer, Evelyne
Grossman sinaliza que “seria preciso ler Corpus, de Nancy, como o Lance de dados, de
Mallarmé” (GROSSMAN, 2016, p.24). Lendo Corpus como um corpo em queda, como um
acidente (occidere: cair), tal como o nome Ocidente, Grossman diz sobre esse cruzamento de
leituras dessa “prosa inclinada para o desastre” (NANCY apud GROSSMAN, 2016, p.28):

Gravitação, mas também gravidade dos corpos (a severidade, a força da lei) e


ainda, como em surdina, o corpo grávido (“ele desceu em si mesmo, sob a lei
desta gravidade própria que o levou até o ponto onde ele se confunde com sua
carga”): corpo engrossado e que pesa (de gravidus, “carregado”, derivado de
gravis, “pesado”), peso do corpo grávido de si mesmo, que cai de si e se põe
no mundo (GROSSMAN, 2016, p.26, grifos da autora).

É como essa citação que eu diria que também seria preciso ler a escrita de Derrida, nos
livros aqui em questão, como o Lance de dados, em que a gravidade diz também do que se
gesta, como veremos com a palavra porter, do que se porta, como um corpo cujo peso aponta
também para o que está para nascer. Não é só por isso, porém, que me remeto a esse corpo em
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desastre, em queda: o percurso de Circunfissão é ele mesmo acidentado; a imagem a que ele se
refere é a da infância, ou seja, aquilo que está antes, porque diante, da fala, como quem aprende
a falar como quem aprende a caminhar, caindo e retomando os passos; uma das questões do
texto é a ferida da memória que também cai por terra, apresentando-se como um lugar de perda
como a lembrança da mãe que, enferma, já não se lembrava do nome de Derrida. Trazendo a
memória esvaziada de enunciado, desprovida de substância, traz-se a enunciação, a
possibilidade de enunciar. Tocando o limite, toca-se a coisa sem substância, a coisa sem ser,
essa inessência que abre a potencialidades. Não só a substância é perdida no texto, não só o
objeto de amor é um objeto perdido do texto, mas o texto mesmo como objeto e como substância
é perdido: ele se faz à medida que não cessa de cair, tornando-se marca no corpo, memória de
infância, diálogo literário, refazendo-se a cada vez que cai, transformando-se, assumindo o lado
do dorso que deita por terra. O nome também cai e se transforma em outros enquanto se reduz
a uma sílaba, /pr/, de onde se alude a Proust, à prece, ao prepúcio. Nessa operação cirúrgica vão
se costurando nomes da perda em cima da perda do nome. A circuncisão não é um tema, um
enunciado, mas uma enunciação, um procedimento, uma operação de linguagem, um traço, uma
marca de escrita e uma marca no corpo. Derrida faz da circuncisão um palimpsesto. Ele
transforma o sexo em um arquivo, em uma máquina de escrever. É a ferida quem escreve. É a
circuncisão quem escreve. É o corte quem escreve.
Mas, nessa operação cirúrgica, também há a linha de sutura, o laço, a partilha: o
autobiográfico é costurado com referências literárias, com a tradição judaica, com a cultura, de
modo que o eu autobiográfico se dá no risco e sob o risco de Proust, Rousseau, Santo Agostinho,
Nietzsche e de toda uma tradição histórica e cultural que faz laço com a memória, com a
biografia, entrelaçando o pessoal e o coletivo, o íntimo e o público, colocando o eu sob o risco
do outro. Se o lugar de enunciação do texto se faz em um objeto sempre em queda, sempre em
perda, é sob esse risco que também se dá o laço, é sob esse risco do eu que se dá a ponte para o
comum, não se reduzindo a um gozo narcísico do autobiográfico, mas fazendo o autobiográfico
surgir necessariamente como um gênero riscado, cortado, rasurado, em um risco em que o que
se dá a ler não é exatamente uma autobiografia, não é nada exatamente, é algo que se faz, algo
que só se faz como partilha, excedendo ao eu . É esse risco que também convoca a ler o texto
“a partir de um lugar de amor”, como disse Flavia Trocoli, “a partir de um lugar que não está
pronto, que é preciso fazer a cada vez” (TROCOLI, 2017).
Nesse gesto de fazer a cada vez, o discurso filosófico, o gênero do texto e a linguagem
sistemática entram em colapso. Colapso, isto é, collabi, do latim, “cair junto”. Nessa queda,
essa escrita acolhe o que não é sistematizado e, mais ainda, ela suporta a divisão entre ser como
78

sujeito e ser como objeto nisso que a torna ela mesma insuportável, porque sempre em queda.
O sujeito que se traça aqui é um sujeito trágico, que se dá na tensão entre ser sujeito e objeto de
uma experiência, entre tocar e ser tocado. Podemos tecer paralelos com a queda em Proust na
frase em que Flavia Trocoli diz “O amor é em Proust uma função: ler e produzir uma escrita
em torno do desconhecido” (TROCOLI, 2017). Se Albertine é a queda do objeto de amor e se
o eu que amou Albertine cai, então o eu que existe quando há a volta de Albertine é um outro,
não é mais aquele eu. O amor caiu no eu que caiu e o eu caiu no amor que caiu. E esse eu retorna
outro. Quando, por exemplo, em Circonfissão, lemos a frase “‘Dói-me minha mãe’”
(DERRIDA, 1996, p.24), não sabemos quem é o sujeito e quem é o objeto, a voz ativa ou a voz
passiva: acontece uma voz média. Continuando a frase, temos: “‘Dói-me minha mãe’, como se
falasse para e por mim, ao mesmo tempo em minha direção e em meu lugar” (DERRIDA,
1996, p.24). A voz média retorna muito em Derrida, como, por exemplo, nos “Envios” de O
Cartão-Postal: “quando a chamo de meu amor, será que chamo você ou será que lhe digo meu
amor? e quando lhe digo meu amor, será que declaro meu amor ou será que lhe digo, você, meu
amor, e que você é meu amor. Gostaria tanto de lhe dizer” (DERRIDA, 2007, p.14). Também
nessa passagem, Derrida não só escreve em voz média, mas a encena: dizer “lhe digo” é dizer
“digo a você” e, ao mesmo tempo, “digo você”. O texto mostra exatamente essa indeterminação,
essa dupla possibilidade. Quando, por exemplo, em Che cos’è la poesia?, lemos “alguém lhe
escreve, a você, de você, sobre você” (DERRIDA, 2001a, p.114), ser o destinatário é sofrer a
experiência de ser escrito: aquele a quem escreve é aquele que é escrito. Escrever para alguém
é escrever esse alguém. Em outro momento desse texto, lemos: “Eu sou um ditado, profere a
poesia, decore-me, recopie-me, vele-me e guarde-me, olhe-me, ditada, sob os olhos”
(DERRIDA, 2001a, p.113). Encontramos novamente a voz média: a poesia é para ser ditada
(objeto) e, ao mesmo tempo, ela profere (sujeito) “sou um ditado”. Nessa voz reflexiva, temos
sujeito e objeto. A poesia está nessa dupla posição de sujeito e objeto.
A voz média, portanto, ao ser uma transgressão entre sujeito e objeto, é, desde já, uma
posição movente. Há uma alternância de funções, como se dá de forma parecida com a palavra
versus em latim, que assume múltiplas funções, como se dá de forma parecida com as palavras
luto e verso que podem ser substantivos e verbos. Na alternância de funções entre sujeito e
objeto, o sujeito se divide e cai, sujeitado, sub-vertido, um objeto sempre em queda, lançado
diante, inapreensível. Tal como o amor em Proust, girar em torno dessa queda é girar em torno
do amor e girar em torno de um eu que retorna outro. A voz média é um ponto em comum entre
a sintaxe da melancolia e a do amor. Em ambas, sujeito e objeto se confundem. Na melancolia,
o sujeito se confunde com o objeto perdido e só consegue se apropriar do objeto na medida em
79

que vive a sua perda. Não à toa, os melancólicos e os amantes são acometidos por um demônio.
Em Estâncias, vemos a relação entre o humor negro e a esfera do desejo erótico: aqueles que
são acometidos pelo demônio do meridiano e aqueles acometidos por Eros partilham do mesmo
gesto de pretender “abraçar o inapreensível” (AGAMBEN, 2007, p.42).16 Mas um dos detalhes
que nos é mais importante comparece em uma nota de rodapé. Na voz média, amor e poesia
estão relacionados. Conforme a leitura dos trovadores, vemos o verso como alegria de amor
(joi d’amor), em que joi é necessariamente “jogo de palavras” enquanto gozo ou “alegria de
amor”, gioi che mai mon fina, “alegria que nunca acaba” (AGAMBEN, 2007, p.14). A respeito
da expressão joi d’amor, Agmaben nos diz: “o genitivo deve ser entendido também em sentido
subjetivo” (AGAMBEN, 2007, p.211). Aí, a voz média: a poesia é alegria de amor e, ao mesmo
tempo, alegria do amor.
No amor e na melancolia, trocar de posição é, de alguma forma, fazer tremer a
linguagem, porque o sujeito não é colocado em uma posição de maestria, de maestro,
de regente, daquele que dá a direção. Autor, narrador e personagem se confundem. O sujeito
que vai ao amor, como quem vai aos mortos, está sempre descentrado, porque assujeitado.
Todavia, apesar de fazer uso da mesma operação presente na melancolia, penso que uma leitura
do poema que seja mais uma escrita do luto do que uma escrita melancolia, porque a alternância
de posições que pressupõe necessariamente a queda do sujeito não quer dizer a degradação do
sujeito, como acontece na leitura freudiana da melancolia, mas o sujeito como aquilo que já
está, desde o étimo, permanentemente em queda, lançado (subjectus), em que sua alternância
com o objeto não significa a desvalorização do sujeito. Pelo contrário, nessa alternância, o
sujeito emerge outro, ele não é negado nem desvalorizado. Derrida, no entanto, reivindica uma
melancolia, mas uma melancolia diferente da acepção freudiana. Penso que apesar de partir de
uma operação melancólica, o luto infindável ou a melancolia em Derrida já não são nem o luto
nem a melancolia de Freud, mas uma releitura desse, como veremos mais adiante.
Se, em Estâncias, vimos com Agamben que amor e poesia se relacionam na voz média,
em Che cos’e la poesia? Derrida nos fala que essa voz média é a voz do poema:

16
“A antiga teoria humoral identificava na vontade de transformar em objeto de abraço o que teria podido ser
apenas objeto de contemplação. Cobrindo o seu objeto com os enfeites fúnebres do luto, a melancolia lhes confere
a fantasmagórica realidade do perdido; mas enquanto ela é o luto por um objeto inapreensível, a sua estratégia abre
um espaço à existência do irreal e delimita um cenário em que o eu pode entrar em relação com ele, tentando uma
apropriação que posse alguma poderia igualar e perda alguma poderia ameaçar” (AGAMBEN, 2007, p.45). Assim,
a melancolia só consegue se apropriar do próprio objeto na medida em que vive a sua perda, o objeto não é nem
apropriado nem perdido, mas as duas coisas ao mesmo tempo, assim como acontece no fetiche. “Essa contradição
é inerente ao estatuto fantasmático: o objeto da intenção melancólica é real e irreal, incorporado e perdido,
afirmado e negado” (AGAMBEN, 2007, p.46).
80

Logo: o coração lhe bate, nascimento do ritmo, para além das oposições do
interior e do exterior, da representação consciente e do arquivo abandonado.
Um coração se abate, nos atalhos ou estradas, livre da sua presença, humilde,
próximo da terra, bem baixo. (DERRIDA, 2001a, p.114-115).

Auswendig, par coeur, “de cor”, aquilo que se volta para fora fala em voz média: “o
coração lhe bate” desliza para “Um coração se abate”. O ritmo pressupõe sacrifício, o batimento
pressupõe um abatimento, um abate. Não se trata de oposição passivo versus ativo, mas dos
dois ao mesmo tempo. É assim que essa voz média não é aguda, incisiva, assertiva: ela
murmura. Aprender de cor, ou o poema, é falar nessa voz média, nesse murmúrio que está mais
para um tom baixo e grave, como tudo que se volta para o chão, rente à terra.
Se o estar em queda é o insuportável sobre o qual se sustenta o ponto de incerteza
propulsor à transformação, cada ponto, cada quebra, cada corte, cada queda é um dèjá. Ou seja,
o ponto da queda é também o ponto de partida. “Já”, de Jackie, apelido de Jacques, é o ponto
de partida sempre dado, o lance de dados. O corte é a inscrição do nome, é a inscrição do apelido
íntimo, é a inscrição do afeto. Ao mesmo tempo como limite e ponto de passagem, o corte não
se reduz a si mesmo, sempre se excede, produzindo um trans-bordamento. Esse excesso ou
transbordamento é um endereçamento: como lágrima, como gozo. Quando lemos a frase “esta
sílaba ‘pre’ onde se misturam todas as essências do pegar e da prece” (DERRIDA, 1996, p.52)
vamos do prepúcio, do corpo, do corte, à súplica. O gozo em Circonfissão não pode ser lido
sem a efusão de preces e lágrimas (DERRIDA, 1996, p.36-37). A economia dessa escrita passa
por esse endereçamento que aproxima ejaculação e prece. Nela, assistimos a uma profanação
da prece, ou seja, a queda da prece, que se endereça tal como a lágrima e tal como a ejaculação.
A circuncisão escreve a morte, mas também a pequena morte.

Há pouco falávamos de “amar incendiando”, quando falamos que talvez pudéssemos


denominar os “Envios” de “amar incendiando”, tomando emprestado do Monolinguismo do
outro (DERRIDA, 2001b, p.68-69). Em Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio, sobre Sonho,
je te dis, de Cixous, Derrida diz:

Sem a cartografia de todos os itinerários que se poderia seguir através dessa


página tão densa, eu privilegio a linha vermelha de um incêndio, o incêndio
de um amor ardente que abrasa todo um sonho e cujo fogo, se é possível dizer,
81

vai ao pé da letra, da letra à sílaba, depois ao vocábulo, jato, jorrar, eu t’adoro,


eut’” (DERRIDA, 2005, p.54).

Sobre essas palavras, Derrida observa que não há como saber se essas palavras ou essas
sílabas são dela ou do outro, “do outro enquanto vindas do outro ou do outro enquanto dirigidas
ao outro, a ti” (DERRIDA, 2005, p.55), mas as chama, mesmo nessa impossibilidade de saber
quem está falando, de “palavras febris”, de “palavras de fogo ou de estado febril que se reduzem
pouco a pouco como papel queimado” (DERRIDA, 2005, p.55). Ao fim de tudo, ao fim do que
Derrida chama de o “último arquivo ofegante”, a cinza só deixa ler, “no instante suspenso de
uma expiração de um último suspiro”, que ele chama, também, de uma apóstofre, a cinza só
deixa ler um lance, um jato, a sílaba “jet”: “‘E tuas palavras ardentes estão em minha vida, eu
t’adoro eu t’adoro euta eut’” (CIXOUS apud DERRIDA, 2005, p.55). A sílaba é seguida “de
uma apóstrofe suspensiva, je t’adore interrompida para ser repetida sem fôlego” (DERRIDA,
2005, p.55). A essa sílaba repetida até a interrupção do fôlego, em que jet se torna
impronunciável (“euta eut”), apenas legível, entre jet e je t’, Derrida usa as palavras de Cixous
para chamá-la de “palavra de fogo”: “‘lançar as palavras de fogo apesar de tudo’” (DERRIDA,
2005, p.55). É em Feu la cendre, essa cartografia de incêndios difícil de mapear, que vemos
privilegiadamente esse jet, esse jato, esse lance da escrita como uma palavra de fogo.
Em Feu la cendre, Derrida vai ao que queima como quem vai aos mortos e como quem
vai ao amor. Há um modo comum de ir aos mortos e ao amor, há algo em comum entre uma
língua do luto e uma língua dos amantes: antes, a voz média; agora, a disjunção. Vai-se aos
mortos, como se vai ao amor, na desarticulação da língua, no desajuste. Neste caso, podemos
acrescentar: vai-se aos mortos, como se vai ao amor, como se vai à política, como se vai à
história, como se vai ao tempo – ou como não se chega ao tempo, ou como só se vai ao tempo
não comparecendo a ele, comparecendo na disjunção mesma – estando fora dos eixos. O modo
como Derrida vai é fazendo fogueira do discurso tradicional, criando, novamente, outra forma,
à medida em que se incinera. O modo como ele vai é, tal como em um poema, andando mal,
percorrendo um caminho esburacado, indo por cesuras. Cesuras que podem ser compreendidas
na forma e no conteúdo em que o texto se organiza: ele se coloca desde já como, mais do que
um diálogo textualmente apontado por travessões, uma conversa em um emaranhado de vozes
femininas e masculinas, cujos signos gramaticais por vezes desaparecem aos ouvidos quando,
por exemplo, o que seria supostamente “você” se torna “ele”, emprestando-se então a outras
vozes indeterminadas e causando uma indecisão entre a escrita e a voz, um hiato que convoca
sempre a decisão de uma outra voz, apontando assim para um número indeterminado de vozes:
82

“‘uma outra voz, que venha agora, ainda, outra voz... Uma ordem ou uma promessa, o desejo
de uma prece, não sei, não sei ainda” (DERRIDA, 2009, p.12).17
Além disso, o texto é um duplo em sua estrutura, ele se divide em diálogos e fragmentos
de outros livros de Derrida, como Glas, A disseminação e O Cartão-Postal. Essas citações
vindas de fora irrompem em um momento na página esquerda, oposta à conversa, ou ao lado,
ou frente a frente, ou como que no verso, no outro lado, ou o outro do mesmo, surgindo em uma
aparição espectral como cinzas que retornam e se justapõem à conversa sobre as cinzas. De
repente, a conversa sobre as cinzas se mescla com as cinzas que as citações fazem alusão e a
própria palavra “cinza” se mescla com outra coisa. Tais espectros de textos passam a
interromper a leitura linear do diálogo, constituindo-se como cesuras, fazendo parte da conversa
no momento em que surgem ao mesmo tempo em que a interrompem, provocando um curto-
circuito na leitura.
A princípio, falar de cinzas é se remeter aos mortos. Mas Feu la cendre complexifica
essa leitura de alguns modos. Vamos ao primeiro: na cesura que separa ao mesmo tempo que
une a conversa e as citações, lemos as cinzas na conversa emparelhadas com o amor que retorna
das citações dos “Envios” do Cartão-Postal, com seus holocaustos, seu “queime tudo”
(DERRIDA, 2009, p.46-48).18 Segundo modo: em um momento da conversa, convoca-se os
sonetos do poema Al Vesubio, de Francisco de Quevedo, em que encontramos esse incêndio
adjetivado como “amoroso”. Vejamos a passagem completa:

– Mon désir ne va qu’à la distance invisible, immédiatement « grillée » entre


les langues, entre cendre, ashes, cinders, cinis, Asche, cendrier (toute une
phrase), Aschenbecher, ashtray, etc., et cineres, et surtout la ceniza de
Francisco de Quevedo, ses sonnets Al Vesubio, et « Yo soy ceniza que sobró
a la llama; /nada dejó por consumir el fuego /que en amoroso incendio se
derrama. », se disperse, et « será ceniza, mas tendrá sentido; /polvo serán, mas
polvo enamorando. » (DERRIDA, 2009, p.60-61).19

17
Tradução minha. No original: “‘une autre voix, que vienne à cette heure, encore, une autre voix...’. Un ordre ou
une promesse, le désir d’une prière, je ne sais pas, pas encore” (DERRIDA, 2009, p.35).
18
“‘Quant aux Envois eux-mêmes, je ne sais pas si la lecture en est soutenable. Vous pourriez les considérer; si
le coeur vous en dit, comme les restes d’une correspondance récemment détruite. Par le feu ou par ce qui d’une
figure en tient lieu, plus sûr de ne rien laisser hors d’atteinte pour ce que j’aime appeler langue de feu, pas même
la cendre s’il y a là cendre. Fors – une chance’” (DERRIDA, 2009, p.46).
“‘[...] Je placerais un long récit, des noms, Mallarmé, l’histoire du tabac, La fausse monnaie de Baudelaire, l’Essai
sur le don, «Toute l’âme résuméeil y a tant d’années, dans ma première “vraie” lettre: “brûle-tout”»’”
(DERRIDA, 2009, p.47-48)
19
Meu desejo somente se dirige à distância invisível, imediatamente queimada entre as línguas, entre cinzas, ashes,
cinders, cinis, Asche, cinzeiro (toda uma frase), Aschenbecher, ashtray etc., e cineres e sobretudo a cinza de
Francisco de Quevedo, seus sonetos Al Vesubio, e “Yo soy ceniza que sobró a la llama; /nada dejó por consumir
el fuego /que en amoroso incendio se derrama”, se dispersa, e “será ceniza, mas tendrá sentido; /polvo serán, mas
polvo enamorando” (DERRIDA, 2009, p.60-61).
83

Essa passagem encena privilegiadamente a “escrita pirotécnica” de Feu la cendre


(DERRIDA, 2009, p.47). Uma palavra que vai se consumindo na outra, uma língua que vai
incinerando à medida que vai acendendo uma na outra, uma frase que vai se incinerando à
medida que vai acendendo um poema de outra pessoa em outra língua, à medida que a voz da
frase interrompe e se mistura com a voz do poema: a distância-entre se torna ela mesma uma
cinza. O “eu” é, ele mesmo, cinza; o “eu sou” é, ele mesmo, cinza: “Yo soy ceniza que sobró a
la llama”. Atentando para a dimensão amorosa que aparece explicitamente no trecho, arrisco
uma tradução dos versos: “Eu sou cinza que sobrou da chama;/ Nada restou por consumir o
fogo/ que em amoroso incêndio se derrama”. Quanto à segunda parte, traduzindo literalmente
teríamos “será cinza, mas fará sentido;/ pó serão, mas pó em apaixonamento”. Ora, o que
perturba a alusão que se faz das cinzas até então aos mortos é também a conotação amorosa que
agora assume lugar, sobretudo, nesses versos, parecendo se remeter a cinzas de amantes. O
incêndio que consome tudo, inclusive o “eu”, é dito agora como amoroso. Mais ainda, o sentido
que a cinza tem não é outro senão a poeira, pó, “mas”, como adverte a versão original, “mas”
pó em apaixonamento, “polvo enamorando”, pó caindo apaixonado. Polvo, em espanhol,
também possui conotações eróticas dependendo do modo que é empregado, remetendo à
relação sexual: por exemplo, echar um polvo equivaleria a “dar uma trepada”, no coloquial.
Vemos então que, em espanhol, a língua do poema, o que ora seria pó ou poeira, pode assumir,
ainda, um sentido erótico. Ir às cinzas é ir, também, ao amor: ir ao que queima.
O terceiro modo em que falar em cinzas é falar também em amor se dá de maneira mais
indireta, nos sentidos do verbo “incensar”. Em um momento do texto, lemos: “– Il trouve peut-
être indécent d’avoir à commenter, à lire même et à citer cette phrase: c’est proprement
encenser, pour dire le mot. Quoi qu’il prétende, « il y a là cendre » reste à lui” (DERRIDA,
2009, p.27).20 Ora, se se trata propriamente de “incensar”, se “incensar” é a palavra apropriada,
e se é indecente comentar, ler e citar il y a là cendre como “incensar”, se indecente pode ser
entendido como obsceno, é porque parece que, junto ao sentido fúnebre que as cinzas carregam,
há também um sentido de celebrar, elogiar: “Lui (mais c’est peut-être elle, la cendre), peut-être
sait-il ce qu’il voulait ainsi incendier, célébrer, encenser dans le secret de la sentence”
(DERRIDA, 2009, p.35).21 Il y a là cendre, “há cinzas”, aqui, lá, esse locativo incerto, desviante
e duplo como indica a bifurcação de sua letra (“y”), “há cinzas” como o que resta é uma frase

20
“Talvez, ele ache indecente ter de comentar, ter mesmo de ler e de citar esta frase: é propriamente incensar, para
dizer a palavra. O que quer que ele pretenda, ‘il y a là cendre’ lhe resta” (DERRIDA, 2009, p.27).
21
“Ele (mas talvez seja(m) ela(s), a(s) cinza(s)) talvez saiba o que ele queria queimar, celebrar, incensar no segredo
da sentença” (DERRIDA, 2009, p.35).
84

que também pode ser dita por um verbo, uma ação: “incensar”. Verbo esse que indica tanto
celebrar como queimar.
Isso faz muito sentido quando então nos deparamos com o sussurro de Platão no texto
através de Pharmakon: “Un murmure parfumé, le pharmakon désigne parfois une sorte
d’encens” (“Um sussurro perfumado, o pharmakon significa às vezes um tipo de incenso”
(DERRIDA, 2009, p.43)). Sabemos que o pharmakon em Platão quer dizer tanto o remédio
como o veneno: é aquilo que se camufla, se disfarça, “o pharmakon inconsistente de um corpo
plural que já não se sustenta – não permanecer junto a si mesma, não pertencer a si mesma, eis
a essência da cinza, cinza de si mesma” (DERRIDA, 2009, p.47).22
A cinza é o que se lança ininterruptamente. Em Feu la cendre, joga-se com as palavras
como se brinca com o fogo: “Elle joue avec les mots comme on joue avec le feu” (“Ela joga
com as palavras como se joga com o fogo” (DERRIDA, 2009, p.47)). E assim saímos da
dicotomia também quando encontramos Nietzsche: “Gardons-nous de dire que la mort serait
opposée à la vie. Le vivant n’est qu’un genre de ce qui est mort, et un genre très rare” (“Não
digamos que a morte é oposta à vida. A vida é apenas uma espécie do que está morto, e um tipo
muito raro” (NIETZSCHE apud DERRIDA, 2009, p.55)). Além de Nietzsche, encontramos
Virginia Woolf em um momento que nos é, para nós, brasileiras e brasileiros, muito oportuno.
Assim que é dito “Par ces citations, ces références, vous autorisez la cendre, vous construisez
une université nouvelle, peut-être” (“Com estas citações, estas referências, você confirma as
cinzas, você constrói uma universidade nova, talvez” (DERRIDA, 2009, p.53)), lemos, em
seguida, uma passagem de Three Guineas:

“L’argent gagné [par les femmes] ne devra en aucun cas aller à la


reconstruction d’une université à l’ancienne, et comme il est certain qu’il ne
pourra être consacré à la construction d’une université fondée sur de nouvelles
bases, cette guinée portera la mention: chiffons, essence, allumettes”
(WOOLF apud DERRIDA, 2009, p.53).23

Talvez seja excessivo dizer “façamos das cinzas universidades novas”, mas talvez não
seja, no atual momento do Brasil. Nós, mulheres, continuaremos queimando, em muitos
sentidos. E, provavelmente, edificaremos universidades a trapos, gasolina e fósforos. A
propósito dessa frase, poderíamos dizer que há um lindo enjambement nela se inserirmos uma

22
“le pharmakon inconsistant d’un corps pluriel qui ne tient plus à lui-même – ne pas rester auprès de soi, ne pas
être à soi, voilà l’essence de la cendre, sa cendre même” (DERRIDA, 2009, p.47).
23
“O dinheiro ganho [pelas mulheres] não terá que ir para a reconstrução de uma universidade antiquada e, como
é certo que não pode se dedicar a construir uma universidade baseada em uma nova fundação, essa guiné trará as
palavras: trapos, gasolina, fósforos” (WOOLF apud DERRIDA, 2009, p.53).
85

barra: “edificaremos universidades / a trapos, gasolina e fósforos”. Como veremos que, segundo
Agamben, não há estruturalmente enjambement na prosa, apenas no poema, teríamos nesse
exemplo uma grande demonstração do que o filósofo italiano chamou de “potência de paragem”
ao falar do cinema de Guy Debord (AGAMBEN, 1995, s/p).24 Se Agamben fala de “potência
de paragem” no cinema que encena radicalmente o corte, podemos transpor essa “potência de
paragem” para a prosa e ver um corte, uma potência de verso, onde a princípio não há. Mas eu
ia falar do verso. Bem, além das vozes acima e dos versos de Quevedo, encontramos também
outros poetas, como Mallarmé e Baudelaire: “Je placerais un long récit, des noms, Mallarmé,
l’histoire du tabac, La fausse monnaie de Baudelaire, l’Essai sur le don, « Toute l’âme résumée
[...] pour peu Que la cendre se sépare [...] Le sens trop précis rature Ta vague littérature »”
(DERRIDA, 2009, p.47-53).25 Uma longa história, nomes, Mallarmé, a história do tabaco, a
falsa moeda de Baudelaire: nessa “escrita pirotécnica”, tudo isso se traça como uma fumaça
que não deixa nada além de cinzas, de rastros que remetem incessantemente para fora de si.
Uma longa história é rastro de nomes que são rastros de Mallarmé, que é rastro da história do
tabaco, que é rastro da falsa moeda de Baudelaire, que é rastro de Three Guineas de Virginia
Woolf, que é rastro do Brasil de 2019 (com todos os cortes de que estão padecendo a
universidade pública, a educação, os direitos trabalhistas, a luta das mulheres, os direitos
humanos...), que é rastro do holocausto, que é rastro dos “Envios”, que são rastros... Eis que
encontramos a definição de cinzas como “un coup de dés”, “um lance de dados”, no atrito da
frase: “un centre s'effrite et s'attendrit, il se disperse d’un coup de dés: cendre” (DERRIDA,
2009, p.55).
Nessa frase em francês, temos o paralelismo entre centre e cendre, palavras quase
homófonas, diferentes apenas por uma letra. Nessa diferença, centre é incinerado ao longo da
frase, e a frase performa aquilo que diz, um centro dispersado e pulverizado que se transforma
em cendre. Temos também o atritante desenho sonoro desde o começo “un centre s'effrite et
s'attendrit”, em que encontramos a tônica em “rit” de “s’effrite” e “s’attendrit”. Minha tradução
para o português perde a sonoridade do francês: “um centro se desintegra e se suaviza, ele se
dispersa em um lance de dados: cinzas”. Eu gostaria de colocar uma barra ao lado de “suaviza”
e escrever depois da barra a palavra “enternece”, assim: “um centro se desintegra e se

24
Texto disponível em http://intermidias.blogspot.com.br/2007/07/o-cinema-de-guy-debord-de-giorgio.html
Acesso em 02/05/2019.
25
Eu colocaria uma longa história, alguns nomes, Mallarmé, a história do tabaco, a falsa moeda de Baudelaire,
o Ensaio sobre o dom, "Toda a alma resumida [...] por tão pouco quanto a cinza separa [...] O sentido preciso
demais apaga sua literatura vaga” (DERRIDA, 2009, p.47-53).
86

amolece/enternece”. Explico o motivo: em um momento do texto lemos “Elle [a frase “il y a là


cendre”] s’incinère à la seconde”, ao que poderíamos dizer como “ela [a frase “il y a là cendre”]
se incinera ou é incinerada no instante [em que é falada]” (DERRIDA, 2009, p.21). Logo
depois, hesita-se a respeito da escolha do verbo “incinerar”: “mais je n’aime pas ce verbe,
incinérer, je ne lui trouve aucune affinité avec la tendresse vulnérable, avec la patience d’une
cendre. Il est actif, aigu, incisif” (“mas não gosto desse verbo, incinerar, não o encontro em
afinidade com a ternura vulnerável, com a paciência de uma cinza. Ele é ativo, agudo, incisivo”
(DERRIDA, 2009, p.21)). Em outro momento, lemos:

Sa proposition, qu’il y ait là cendre, voilà qu’elle consiste, dans son extrême
fragilité comme dans le peu de temps dont elle dispose (sa vie aura été si
courte) en ce non-savoir vers lequel se précipitent, toujours de pair, l’écriture
et l’aveu (DERRIDA, 2009, p.37-39).26

Ora, não há como desconsiderar esse sentido para s’attendrit, porque isso que se suaviza,
se amacia, se amolece, pacientemente, em uma espera (attendre), em um adiamento, em uma
dispersão, não pode ser compreendido sem la tendresse (a ternura). Attendri quer dizer tenro.
Ou seja, há uma delicadeza nessa suavidade. As cinzas como um centro que se dispersa em um
lance de dados consistem, necessariamente, em uma “ternura vulnerável”, em uma “extrema
fragilidade”.

1.2.1. De cor: Che cos’è la poesia?

Che cos’è lá poesia? é uma pergunta que não foi feita na língua de Derrida. Ele responde
a essa pergunta em uma língua que não é a língua de quem perguntou. As quatro páginas desse
texto podem ser lidas como uma tentativa de resposta. Esse texto pode ser lido como um
diálogo. O filósofo indica que não se pode responder “O que é a poesia?” se não for com alguma
demora. “O que é a poesia?” seria a tradução do título para o português, mas os tradutores
brasileiros preferiram manter no idioma original, resguardando o intraduzível da pergunta. Mas,
se fôssemos traduzir literalmente, teríamos “Que coisa é a poesia?”, o que me cai bem. Sai-se
da substância e se vai para a coisa. Sai-se da pergunta tão filosófica “O que é?”, que exige uma
resposta, uma definição, por vezes clara e sistemática, e nos deparamos com um texto que

26
“Sua proposta, que haja cinzas lá, é que consiste em sua extrema fragilidade como no curto espaço de tempo
que tem (sua vida terá sido tão curta) nesse não-conhecimento para o qual corre, sempre juntas, escrita e confissão”
(DERRIDA, 2009, p.37-39).
87

parece um misto de poema, relato, fábula, ficção, tradução, delírio, digressão, divagação,
diálogo, ensaio, prosa filosófica, enumerações, ou nada disso: talvez ele seja mesmo uma
“coisa”, aquilo que escapa à representação. Foi exigido ao filósofo que ele respondesse em duas
palavras (“Para responder a uma tal questão - em duas palavras, não é?” (DERRIDA, 2001a,
p.113)). Depois de quatro parágrafos, vemos duas enumerações econômicas, sucintas. Mas o
texto continua, aquém e além dessas duas proposições, desses dois algarismos, dessas duas
palavras, “de cor”.
A primeira frase do texto é “Para responder a uma tal questão - em duas palavras, não
é? – pede-se que você saiba renunciar ao saber” (DERRIDA, 2001a, p.113). Mas há um preço
nessa renúncia: “E que saiba disso sem jamais se esquecer: desmobilize a cultura, mas não se
esqueça nunca, em sua douta ignorância, daquilo que você sacrifica no caminho, atravessando
a estrada (DERRIDA, 2001a, p.113)”. Para responder à pergunta Che cos’è la poesia? é preciso
abandonar a bagagem, abandonar parte do peso da cultura que se carrega: “Para responder em
duas palavras, por exemplo, terá sido necessário a você desamparar a memória, desarmar a
cultura, saber esquecer o saber, incendiar a biblioteca das poéticas” (DERRIDA, 2001a, p.115).
Derrida começa então nos indicando que dar essa resposta é fazer uma travessia, é atravessar,
e que não se faz essa travessia sem riscos, perdas, sacrifícios. Para ser possível continuar, algo
é sacrificado pelo caminho. Estar em ignorância é sacrificar algo pelo caminho. A palavra
“atravessar” (do latim transversare) pressupõe corte: o sacrifício está contido na travessia, nisso
que se faz através. Mas aqui vale a pena pensar o sacrifício também no âmbito ritual politeísta,
como oferenda, troca, em uma economia em que a perda se transforma em ganho.
E então temos a voz média:

Quem ousa perguntar-me isso? Mesmo que não pareça, pois sua lei é
desaparecer, a resposta vê-se ditada. Eu sou um ditado, profere a poesia,
decore-me, recopie-me, vele-me e guarde-me, olhe-me, ditada, sob os olhos:
trilha sonora, wake, traço de luz, fotografia da festa em luto (DERRIDA,
2001a, p.113, grifos do autor).

Derrida poderia ser um poeta estilonovista. Na verdade, nesse texto, há a atualização


dessa potência em ato: ele joga/encena como um trovador. Ler Che cos’à la poesia? é escutar
a todo momento ressonâncias de Estâncias, quando Agamben diz que os trovadores concebiam
a poesia como “ditado de amor” (AGAMBEN, 2007, p.208). Dante, por exemplo, “caracteriza
a expressão poética exatamente como um ditado de amor inspirante” (AGAMBEN, 2007,
p.208). Segundo Agamben, a vinculação entre o inspirar de amor e a linguagem poética “não é
afirmada apenas por Dante, mas é lugar-comum entre os poetas de amor, os quais declaram,
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além disso, de forma explícita, que a voz procede do coração” (AGAMBEN, 2007, p.209). Se
Derrida é um poeta de amor ou um trovador quando não mais existem trovadores, se podemos
ler o texto de Derrida articulado com o que Agamben fala do “ditado de amor” na poesia
trovadoresca, o que está implicado nisso é uma dupla articulação do que sempre esteve
fraturado pela metafísica ocidental. Agamben nos dá a primeira articulação:

Concebendo a poesia como ditado de amor inspirante, eles [os poetas de amor]
acabavam conferindo o estatuto mais elevado que lhe pudesse ser atribuído,
situando o espaço do poema, na imaginária escada de Jacó, referida por Hugo
de São Vítor, no limite extremo entre corpóreo e incorpóreo, significante
sensível e significado racional (AGAMBEN, 2007, p.209).

Como ditado de amor, o espaço do poema é situado em um limite extremo, em um


“entre”. Atentando para a fratura instaurada pela metafísica ocidental entre o corpóreo e o
incorpóreo, entre o visível e o invisível, entre o aparecer e o ser, Agamben diz que, tanto a
doutrina pneumática que concebia fantasmas impressos nos espíritos, quanto os poetas de amor
que concebiam a estância do verso como ditado de amor, conseguiram articular o que sempre
esteve separado em dicotomias. Ou seja, conseguiram fazer da fratura um ponto de articulação
do que antes estava completamente separado. “A doutrina pneumática, ao colocar o espírito
como medium entre alma e corpo, procurava sanar a fratura metafísica entre visível e invisível,
corpóreo e incorpóreo, aparecer e ser, e tornar dizível e compreensível ‘a união destas duas
substâncias’” (AGAMBEN, 2007, p.209). Se o meio da doutrina pneumática era o espírito, o
meio dos poetas de amor era a linguagem poética. Assim, a articulação nos poetas de amor
aconteceu na linguagem poética como “lugar mediador que era próprio do ‘espírito’”
(AGAMBEN, 2007, p.209). Então, se Dante caracteriza a expressão poética como um ditado
de amor, se ele diz que a realização do amor está na palavra poética, ele não só volta a inserir a
teoria da linguagem na doutrina pneumo-fantasmática que desenvolveu um papel essencial na
lírica amorosa, mas desloca o meio (medium) do espírito para a linguagem poética. “A inclusão
do fantasma e do desejo na linguagem é a condição essencial para que a poesia possa ser
concebida como joi d’amor (AGAMBEN, 2007, p.211). Assim, Eros e poesia estão ligados no
verso como estância onde se celebra o amor e onde se dirige o desejo. Um ditado de cor é,
portando, um ditado de amor, por meio do qual Derrida liga Eros e poesia tal como as canções
trovadorescas. E aqui temos a segunda articulação: quem faz isso é um filósofo. Mais ainda: é
um filósofo que assume radicalmente a posição de poeta ao responder a uma pergunta sobre o
que é poesia, mas respondendo a essa pergunta não como um poeta. Colocando-se na posição
de outro, como filósofo apontando para poeta e como poeta apontando para filósofo, Derrida
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também articula duas esferas que a metafísica ocidental insiste em separar, a poesia e a filosofia.
Com isso, ele realiza, ele encena, a união que Agamben reivindica para o pensamento ocidental.
Realizando essa articulação, Derrida não a faz de outro modo senão lançando o espaço do
poema ao limite extremo, ao entre: “entre cidade e natureza” e “ao mesmo tempo público e
privado, absolutamente um e outro”, como veremos um pouco mais abaixo (DERRIDA, 2001a,
p.113). Mas o que diferencia Derrida dos trovadores é que a poesia é estância de amor também
enquanto exposição da catástrofe. É nesse duplo, em que amor e horror não estão separados,
que vemos, no filósofo franco-magrebino, a poesia como um gesto de amor. Em Derrida, essa
estância não é uma morada, não é uma estância, é uma estrada, ou uma plataforma de
lançamento.
Ora, a lei da resposta é desaparecer, mas, apesar disso, ou por isso mesmo, ela aparece:
a resposta “vê-se ditada”. Na voz reflexiva, sujeito e objeto, ao mesmo tempo. E a poesia é para
ser ditada (objeto), lançada, no mesmo movimento que ela lança, profere (sujeito) “sou um
ditado”. Como já falamos, aqui a poesia está nessa dupla posição de sujeito e objeto, nessa
posição movente da voz média. Após os dois pontos, temos então aproximações por metáforas
(“trilha sonora, wake, traço de luz, fotografia da festa em luto”). E nesse momento aparece de
novo o sacrifício, agora nos remetendo à morte. Dizer da poesia como “vele-me” é, primeiro,
dizer da poesia como um corpo. Em seguida, a temos como um ato de despertar (wake).
Em Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio, Derrida fala dos escritos de Cixous que
ela escreve na interrupção do sonho, no tempo da vigília, como uma escrita ao despertar:
“oração à beira da cama, palavra de prece amorosamente endereçada [...]. Mas também uma
palavra escrita ao despertar, endereçada, destinada ao despertar. Como se o despertar, ao sair
do sonho, em seu wake, estivesse ainda na vigília do sonho” (DERRIDA, 2005, p.45, grifo do
autor). A vigília, que aparecerá em outros momentos desta tese, é essa interrupção em que a
escrita não é só um despertar, mas ao despertar, endereçada ao despertar, não se inscrevendo
“entre o tempo do sonho e o primeiro tempo do despertar”, mas sendo um “salto de uma
interrupção” (DERRIDA, 2005, p.47) que ainda carrega o sonho, não estando mais no sonho,
mas ainda não estando totalmente fora dele. Além da poesia como um despertar e ao despertar,
temos também a imagem complexa da “fotografia da festa em luto”. Quanto a ela, não podemos
esquecer que fotografar também é um modo de escuta. Devíamos pensar a fotografia como uma
citação. A fotografia já é um corte, um recorte. Eu diria que, com isso, podemos apontar que a
poesia, como uma “fotografia da festa em luto”, também é o olhar para a morte, despertando-a.
“É o outro diante da morte, olhando através dela e a expondo” (LEVINAS apud BUTLER,
2011, p.4).
90

Com “vele-me” temos então o ser olhado, passivo, que sofre a ação, e com “fotografia
da festa em luto” temos o olhar, a ação de olhar, o olho que olha, ativo, sujeito da ação. Ou seja,
o poema é, ao mesmo tempo, o corpo e o olho que olha o corpo, o indizível e o que gira em
torno do indizível, tentando dizer, o sacrifício, o corte, o abate e, ao mesmo tempo, o cortejo.
O poema, como a linguagem, é fazer experiência do limite da linguagem e fazer experiência do
real, do inacessível, do indizível, a cada vez que se diz. Isso que girando em torno do indizível,
abordando-o, colado à morte, como esse olhar, como a fotografia, é um trabalho de luto. A
fotografia não revela nada senão o velamento. A fotografia re-vela, vela de novo, mantém o
ocultamento, o enigma, o velado, mas como um cortejo. Como “cortejo” que contém o sentido
lúdico e o sentido triste, que indica amor e morte, festa e luto, celebração e ritual fúnebre. Mais
adiante veremos que só há Eros porque há velamento.

A resposta vê-se ditada de ser poética. E, por isso, tendo que se dirigir a
alguém, singularmente a você, mas como se se dirigisse ao ser perdido no
anonimato, entre cidade e natureza, um segredo partilhado, ao mesmo tempo
público e privado, absolutamente um e outro, absolvido de fora e de dentro,
nem um nem outro, o animal que se lança na estrada, absoluto, solitário,
enrolado em bola junto de si. Ele pode vir a ser esmagado, justamente, por
isso mesmo, o ouriço, istrice (DERRIDA, 2001a, p.113, grifos do autor).

Só há como se dirigir singularmente se o “você” a que se dirige é dirigido como a um


desconhecido. Ou seja, só há singularidade se há outro. Nesse sentido, “você” será sempre um
anônimo que não tem lugar, não tem porto, não tem paragem, está sempre entre (“cidade e
natureza”). O pronome é um indicador da enunciação, compreendido como o ter-lugar da
linguagem, como o mostrar o dizer, o mostrar a operação efetiva da fala, do discurso. Ele indica
que a linguagem é um ter-lugar, ou seja, que a linguagem escapa o tempo todo a ela mesma,
porque esse lugar sempre se atualiza a cada vez que se tem lugar. É esse “você” remetido como
sempre outro que Derrida profere nessa passagem que começa retornando à menção da resposta,
como na passagem anterior começou retornando à menção da pergunta. As frases de Derrida se
traçam cheias de torsões, de dobras, de recuos e de relances, enrolando-se e se desenrolando,
recuando e desdobrando, como uma onda, ou como um ouriço que, à medida que se enrola e
desenrola, desencadeia movimentos dispersos de seus espinhos. Dirigir-se singularmente a
alguém é abraçar o risco da identidade que não pode ser revelada, devendo ser “um segredo
partilhado”. Ora, o segredo entre uma pessoa e outra já é uma aliança, um laço, algo que se dá
entre e ao mesmo tempo. Algo que se guarda junto a si. Mas Derrida sublinha: esse segredo
partilhado é público e privado e nem um nem outro, é um e outro e nem um nem outro. E, para
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isso, as palavras usadas são “absolutamente” e “absoluto”, em um eco de /ab/, que significa
“fora”. Isso que se partilha, portanto, isso que se guarda junto já é um fora. No desencadeamento
imprevisível dessa frase cheia de vírgulas, cheia de volutas, que começou com alguém, com o
você, com o “ser perdido no anonimato”, termina então em um animal, deslizando, no mesmo
período, do alguém para o animal que não é nada menos que um ouriço: esse animal “enrolado
em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa em suma, modesta, discreta, próxima da
terra” (DERRIDA, 2001a, p.115), esse animal que, quando se enrola, já não sabemos o que é o
dentro e o que é o fora, traz o dentro trazendo junto a si o fora. Lançando-se na estrada, ele está
aberto a todos os riscos, inclusive o da morte.

E se você responde de modo diferente, segundo o caso, considerando-se o


espaço e o tempo que lhe são dados com essa solicitação (lembre-se de que
está falando italiano) por ela mesma, segundo essa economia, mas também na
iminência de alguma travessia fora de casa, arriscando-se na língua do outro
em vista de uma tradução impossível ou recusada, necessária, mas desejada
como uma morte, o que tudo isso, a própria coisa na qual você acabou de
delirar-se, teria então a ver com a poesia? Ou melhor, com o poético, pois você
pretende falar de uma experiência, outra palavra para viagem, aqui a
caminhada aleatória de um trajeto, a estrofe que dá voltas mas nunca reconduz
ao discurso, nem a si, nunca em todo caso se reduz à poesia – escrita, falada
ou mesmo cantada (DERRIDA, 2001a, p.113, grifos do autor).

Derrida volta a começar o parágrafo com a menção à resposta. Percebemos que seu
pensamento dá voltas como estrofes. E ele ainda não respondeu em duas palavras. Mas não é
só nesse ensaio que há essa demora, em Força de lei, por exemplo, na página dezessete, ele diz:
“Ainda não comecei. Acreditava dever começar dizendo que devo endereçar-me a vocês em
sua língua [...]” (DERRIDA, 2010, p.17). Mais de dez páginas depois, ele diz: “Eu disse que
ainda não tinha começado. Talvez eu não comece nunca [...]. No entanto, já comecei”
(DERRIDA, 2010, p.28). Fazendo uso do adiamento como procedimento, usando a
possibilidade de começar como procedimento, usando o começo incessante como
procedimento, é nesse adiamento mesmo que a resposta vai acontecendo, acontecendo na
medida em que não se vai direto ao ponto, mas como quem vai aquecendo, regando a fala,
cultivando as palavras, germinando, fazendo-as crescer, com uma artesania de quem ara a terra,
de quem prepara o terreno e a resposta já está acontecendo aí, nesse movimento manual de um
cuidado que demanda espera. Aliás, não é mais ou menos assim que começa O Banquete de
Platão? Em um começo que se dá antes do começo, começa-se também respondendo, com a
fala de Apolodoro a um interlocutor não nomeado, “Creio que a respeito do que quereis saber
não estou sem preparo” (PLATÃO, 1991, p.37), ou, “Parece-me que posso responder a sua
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pergunta”, apontando, como nos atenta Imaculada Kangussu em Sobre Eros, que o diálogo já
havia começado antes do momento em que começamos a leitura (KANGUSSU, 2007, p.20).
Depois, saberemos que a parte oculta diz respeito a rumores sobre a discussão sobre o amor no
jantar na casa de Agatão. Antes da narração do banquete propriamente dito, o diálogo já havia
porém começado, inclusive, com interrupções, com imprevistos, como por exemplo o atraso de
Sócrates – aquele que diz nada saber – que resolve parar no meio do caminho e ficar parado
(Como diz Aristodemo: “É um hábito seu esse: às vezes retira-se onde quer que se encontre, e
fica parado” (PLATÃO, 1991, p.40-41)), adiando a chegada na casa de Agatão e, com isso,
adiando o começo do banquete.
Em um começo que começa como um início de conversa, que começa hesitante,
tateante, improvisado, com quem primeiro dá de beber, como em um ritual, ou quem recebe um
hóspede em casa, como narrou Aristodemo quando Sócrates chegou, “reclinou-se Sócrates e
jantou como os outros; fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de
costume, voltam-se à bebida” (PLATÃO, 1991, p.42), ou, como disse Lacan de Sócrates,
“Sócrates escolhe servir a Eros para servir-se dele, servindo-se dele ao mesmo tempo”
(LACAN, 1960-1961/1992, p.17), Derrida se demora em um trajeto aleatório pelo qual o
pensamento é conduzido, nessa direção lançada que não se sustenta no eixo linear do sentido
assegurado, que vai na precariedade do discurso em busca de uma resposta, em busca de
responder o que é a poesia. Derrida diz, como lemos na citação acima: "nunca reconduz ao
discurso, nem a si, nunca em todo caso se reduz à poesia". Estrofe e não discurso, estrofe que
não reconduz nem reduz: não reconduz ao discurso nem se reduz à poesia. Nem discurso nem
poesia. Em seu modo de dizer por equivalência, por orações coordenadas e não subordinadas,
modo que poderíamos caracterizar como democrático, Derrida não leva a uma apreensão do
significado do que é poesia, respondendo à pergunta à medida que anula qualquer garantia que
substancialize a poesia. Pelo trecho citado acima vemos que não há como falar de poesia: só há
como falar do poético, porque responder a essa questão talvez só seja possível se falarmos de
uma experiência e não de um saber. O poema é a experiência (ex-peras), isto que está fora dos
limites.
Falar do poético é falar de uma experiência. E o que Derrida faz é falar da própria
experiência: ele fala se colocando de fora, como aquele que está “fora de casa”, como um
estrangeiro, como alguém que não fala a língua que foi a ele dirigida, “arriscando-se na língua
do outro” uma tradução impossível: impossível porque de fato ele não traduz, ele fala em
francês, não em italiano, e impossível porque ele mantém o intraduzível do ouriço. Os
românticos alemães já haviam se servido do porco espinho para fazer alusão aos fragmentos,
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mas Derrida não usa a palavra Igel, como Schlegel e Heidegger, que pode ser tanto porco
espinho como ouriço do mato. A palavra que Derrida usa em francês é hérisson, que pode ser
tanto ouriço como porco espinho. Em uma entrevista, ele diz que hérrisson é uma tradução
frágil, porque esse animal a que ele se refere não tem genealogia, filiação, é único, solitário,
vulnerável: “Nas próprias cinzas dessa genealogia. Não a fênix, não a águia, o ouriço, muito
baixo, bem baixo, próximo da terra” (DERRIDA, 1992, p.309-336). No texto em questão, ele
arriscou a tradução para istrice, em italiano. Na terceira página desse texto, Derrida diz que esse
ouriço é “catacrético” (DERRIDA, 2001a, p.115). Sabemos que catacrese é uma figura de
linguagem que serve para suprir a falta de uma palavra específica, consistindo em uma metáfora
que dá significação a uma coisa por falta de um termo próprio, como “pé da mesa” e “dente de
alho”. Ou seja, hérisson é catacrético porque, na falta de um termo específico, ele o substitui
por istrice. Todavia, os dicionários nos dizem que istrice é porco espinho, e que há um uso
impróprio ao chamar de ouriço, já que, no latim, a palavra quer dizer porco espinho. Então, esse
animal até se aproxima do porco espinho dos românticos alemães, mas não se identifica com
ele, porque é ouriço e não porco espinho. Isso indica que poderíamos ler Che cos’è la poesia?
tal como os fragmentos dos românticos alemães, mas quase, porque, não sendo porco espinho,
não pode ter a definição de fragmento. O ouriço a que Derrida se refere é indefinido. Se
atentarmos para a palavra em inglês, hedgehog, veremos que ela não tem tradução para o
português, aparece como sendo da família do porco espinho e do ouriço, mas não é nem um
nem outro. O que temos então é um esforço de tradução que mantém, porém, o intraduzível.
Como o filósofo está falando para italianos, como ele quer se endereçar em italiano, ele não
privilegia nem o francês nem o alemão, ele tenta se aproximar da língua que a ele foi
dirigida, mas expõe o intraduzível que resta nesse esforço como a singularidade de um animal
que permanece estranho, de origem desconhecida e anônimo.
Então, após a pergunta retórica indicar que tudo isso talvez não passe de um delírio (“o
que tudo isso, a própria coisa na qual você acabou de delirar-se, teria então a ver com a
poesia?”), vemos – e aqui damos mais um giro – que falar de uma experiência, isto é, de uma
travessia (isso que já é ir através do impasse, no e com o impasse, no e com o sacrifício, no e
com os riscos), de uma viagem pelos limites, não é falar da poesia como generalização, não é
nem mesmo falar de poética, mas da singularidade de cada poema e, por isso, de sua
“poemática”:

Não há nunca senão poema antes de toda poiesis. Quando, ao invés de


"poesia", dissemos "poética", deveríamos ter especificado: "poemática".
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Sobretudo, não permita que se reconduza o ouriço ao circo ou ao carrossel da


poiesis: nada a se fazer (poiein), nem "poesia pura", nem retórica pura, nem
reine Sprache, nem "realização-da-verdade". Apenas uma contaminação tal e
tal cruzamento, este acidente. Essa volta, a viravolta dessa catástrofe
(DERRIDA, 2001a, p.115, grifos do autor).

Nem poiesis nem pureza da língua (reine Sprache). Derrida vai contra até mesmo o
sentido grego de poiesis como produção, como obra que se fundamenta em um fazer (poien).
Nem aquilo que é feito nem uma verdade falada pela língua, mas a contaminação, o contágio,
o cruzamento, o acidente que Derrida complementa como “essa volta, a viravolta dessa
catástrofe” – “dessa”, pronome demonstrativo em itálico talvez atentando para a singularidade
da catástrofe. Defender o poema como contaminação, cruzamento, contágio, acidente é, pois,
ver o poema como voltas, reviravoltas, de uma catástrofe singular: “Não há poema sem
acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também”
(DERRIDA, 2001a, p.115). Não nos esqueçamos de uma frase já citada desse texto, que, por
sinal, é a continuação dessa frase acima: o poema é “a ferida áfona que de você desejo aprender
de cor” (DERRIDA, 2001a, p.115). Nessa leitura que estamos tecendo do poema como aquilo
que é um acidente e se inclina para a catástrofe, compreender o poema como voltas ou
reviravoltas de uma catástrofe é vê-lo como isso que já porta uma ferida e que, ao portá-la, já
reporta essa ferida: a ferida é reenvio, abrir-se como ferida é a inscrição de uma ferida outra,
golpeando, nesse gesto, a própria ferida, intervindo nela. O poema expõe a ferida no mesmo
gesto que a reenvia. Não esqueçamos: o ouriço tem espinhos. Ele é vulnerável, mas é resistente.

Eis aí, portanto, sem mais tardar, em duas palavras, para que não se esqueça.
I. A economia da memória: um poema deve ser breve, elíptico por vocação,
qualquer que seja sua extensão objetiva ou aparente. Douto inconsciente da
Verdichtung e da retração.
2. O coração. Não o coração no meio de frases que circulam sem correr riscos
pelos cruzamentos e se deixam traduzir em todas as línguas. Não o coração
dos arquivos cardiográficos, simplesmente, objeto de conhecimentos ou de
técnicas, de filosofias e de discursos bio-ético-jurídicos. Não o coração das
Escrituras ou de Pascal, provavelmente, nem mesmo, o que é ainda menos
evidente, aquele que Heidegger prefere ver em seu lugar. Não, uma história
de "coração", poeticamente envolta no idioma "aprender de cor", este da
minha língua ou de uma outra, a inglesa (to learn lry heart), ou ainda de uma
outra, a árabe (hafiza a'n zahrzkalb) – um único trajeto de múltiplas vias
(DERRIDA, 2001a, p.113, grifos do autor).

Eis aí, depois de quatro parágrafos, a resposta de Derrida em duas palavras que se
desdobram em quatro páginas. Essas duas palavras nada mais são do que a condensação de
quatro páginas em duas palavras: “economia da memória” e “coração” (certamente, dois
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algarismos, mas mais que duas palavras... uma conta incerta). Bem, em “economia da
memória”, Derrida diz que um poema deve ser “elíptico por vocação”. A economia da memória,
portanto, é uma economia da falta, uma economia em que algo é suprimido. Mas a elipse que
faz essa economia não confere apenas o estatuto de elíptico ao poema: “elíptico por vocação”
é mais que elíptico. Ora, “por vocação” entendo um chamado. O poema “elíptico por vocação”
é aquele que sofre a ação de ser chamado a ocultar, a manter em segredo, a manter velado. E
isso, Derrida disse, nada tem a ver com a extensão do poema. Independentemente do tamanho,
ele deve acenar, como um chamado, para uma retração, ele deve apontar para uma condensação
(verdichtung), como o ouriço que se dobra sobre si e já não distinguimos o que é fora e o que é
dentro.
Jacques, dessa vez, Lacan, diz que a Verdichtung, condensação, “é a estrutura de
superposição dos significantes em que ganha corpo a metáfora, e cujo nome, por condensar em
si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia” (LACAN, 1998,
p.515). Ou seja, a “condensação”, palavra que Derrida usa, já contém “poesia”, Dichtung, em
alemão. E ele não reivindica a elipse senão pelo que Lacan chama de “a função propriamente
tradicional dessa”, isto é, a metáfora (LACAN, 1998, p.515). A partir da metáfora do ouriço,
realiza-se a elipse. Nesse gesto, Derrida faz uso indireto de Lacan ao mesmo tempo em que o
rasura ao, através da encenação da metáfora, instituir a definição do poético não pela metáfora,
mas pela elipse. A partir de suas equações, Lacan diz que “a estrutura metafórica indica que é
na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é
de poesia ou de criação, ou, em outras palavras, do advento da significação em questão”
(LACAN, 1998, p.519). É interessante ele dizer que a poesia ou a criação tem relação com um
“efeito de significação” e com o “advento da significação”, pois isso indica que a poesia não é
a significação, mas o efeito, o advento, a significação que advém, que está por vir. Mas, na
continuação do período, lemos que essa substituição “manifesta a transposição da barra”, ou
seja, com a metáfora, a significação, então, acaba por se fazer (LACAN, 1998, p.519). Ora, o
modo como leio a elipse de que fala Derrida corresponderia ao início do que Lacan falou da
metáfora, mas não abarcaria o segundo momento de sua formulação. A meu ver, a elipse,
também tendo relação com o efeito e o advento da significação, mantém o efeito e o advento,
não transpondo a barra, mas permanecendo nela. Se, na metáfora, há o transporte do sentido,
na elipse, há a suspensão dele. A elipse não transporta senão o hiato, a lacuna ou a falta em que
se constitui, e é assim que, nela, a significação não se faz, mas se mantém como efeito ou
advento.
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Quanto à segunda palavra de Derrida, ou ao segundo algarismo, já falamos mais acima


quando foi discorrido que “aprender de cor” não se trata de subjetividade nem de
sentimentalismo. Interessa-nos agora a relação que essas duas palavras passam a ter com a frase
que inicia o parágrafo seguinte: “Dois em um: o segundo axioma enrola-se no primeiro. O
poético, diga-se, seria o que você deseja aprender, porém do outro, graças ao outro e sob ditado,
de cor: imparare a memoria” (DERRIDA, 2001a, p.113). Ora, aí Derrida não realiza senão uma
elipse: quando ele diz que o segundo axioma se enrola no primeiro, havendo dois em um,
escutamos: “o coração” (palavra do segundo axioma) enrola-se na “economia da memória”
(segundo axioma), sendo essa operação ela mesma uma elipse, havendo duas palavras em uma.
A economia da memória é “de cor”.

Você ouve a catástrofe vir. Desde então, impresso sobre o próprio traço, vindo
do coração, o desejo do mortal desperta em você o movimento (contraditório,
está me acompanhando?, dupla restrição, imposição aporética) de proteger do
esquecimento esta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege –
em uma palavra, o porte, a retração do ouriço, como na estrada um animal
enrolado em bola. Gostaríamos de pegá-lo nas mãos, aprendê-lo e
compreendê-lo, guardá-lo para nós, junto de nós.
Você ama – guardar isso em sua forma singular, digamos na insubstituível
literalidade do vocábulo, se falássemos da poesia e não somente do poético
em geral. Mas nosso poema não se acomoda em meio aos nomes, nem mesmo
em meio às palavras. Antes de tudo, está jogado pelas estradas e nos campos,
coisa para além das línguas, ainda que aconteça de lembrar-se nelas no
momento em que se junta, enrolado em bola junto de si, mais ameaçado do
que nunca em seu retiro: ao acreditar defender-se é que se perde (DERRIDA,
2001a, p.114).

Quando leio “você ouve a catástrofe vir”, lembro do que Nancy disse em À escuta.
Falando sobre entendre em francês, ele reivindicou a compreensão dessa palavra não como
entendimento, como apreensão de um conhecimento, alegando que essa é a escuta
tradicionalmente privilegiada pela filosofia que neutraliza o escutar, que entende, conhece, mas
não escuta (NANCY, 2013, p.160-163). Nancy demanda uma compreensão de entendre como
escuta, isto é, como reenvio. Assim lemos o traço que se retraça: “impresso sobre o próprio
traço” temos a re-tração (“retração do ouriço”), de modo que traçar é retraçar e, a retração, se
aponta um movimento para dentro, já é um movimento para fora, porque traça novamente,
reenvia, atua como uma força como o sentido dirigido para o seu exterior, como toda tração.
O movimento das estrofes de Derrida não se livra das aporias. Já vimos com ele que a
experiência como travessia é impasse, é aporia, é ir através e, portanto, no e com o sacrifício.
Compreender o “trazer de cor” é vê-lo na aporia de proteger ao mesmo tempo que expõe à
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morte. Seria o caso de dizer que trazer de cor é dizer “você ama”, mas esse vocábulo talvez já
esteja muito acomodado na proteção do que não se lança, e trazer de cor é, paradoxalmente,
lançar, expor às ameaças. Trazer de cor é um movimento de desconstruir o suporte, rasurando
a marca de nascença, tornando a origem oculta, fazendo da promessa um deixar (a) desejar,
fazendo do porto uma margem de partida:

faça com que a proveniência da marca permaneça de agora em diante


inencontrável ou irreconhecível. Prometa-o: que ela se desfigure, transfigure
ou indetermine em seu porto, e nessa palavra você ouvirá a margem da partida,
assim como o referente na direção do qual uma translação se reporta. Coma,
beba, engula minha letra, porte-a, transporte-a em você como a lei de uma
escritura tornada seu corpo: a escritura em si. A astúcia da injunção pode
inicialmente deixar-se inspirar pela simples possibilidade da morte, pelo
perigo que um veículo traz a todo ser finito (DERRIDA, 2001a, p.114, grifos
do autor).

Em prefácio ao livro O fogo e o relato, de Agamben, intitulado “Pensamento e poesia:


ética e política”, Andrea Santurbano e Patricia Peterle disseram: “A arte, a literatura, é um
espaço do fogo, do mistério, que se dá por meio de resistências: eis aqui a experiência do limite
que está também no projeto ético e político do qual esses textos [de O fogo e o relato] fazem
parte” (PETERLE; SANTURBANO, 2018b, p.21). Nesse trecho e ao longo do livro, vemos
que o fogo está associado ao mistério, ao que é dito também como ilegível, como um
compromisso por tornar legível aquilo que não pode ser lido por aqueles que não podem ler
(AGAMBEN, 2018b, p.93-97). O fogo está atrelado, pois, a uma ética de tornar exposto, em
nome de uma falta, em nome daqueles que faltam, a possibilidade da palavra. Mas isso, para
Agamben, já seria um paradoxo, pois, para ele, a literatura, no esforço de tornar legível, seria a
perda do fogo, a perda do mistério. “Onde há relato, o fogo se apagou; onde há mistério, não
pode haver história” (AGAMBEN, 2018b, p.33-34). Por isso ele diz que os gêneros literários
choram a ligação perdida com o fogo (AGAMBEN, 2018b, p.34). Sobre isso entendo que ao
tornarem legível, ao tentarem contar, ao tentarem narrar, ao fazerem história, os gêneros
literários são isso que salvam o fogo no choro, como choro. Ao mesmo tempo em que atestam
a perda do fogo, saúdam-no enquanto existirem como choro, como choro endereçado a uma
perda, a uma ausência, a uma falta. O fogo é salvo e acenado nesse endereçamento, nessa marca
que indica a sua ausência, o choro. Entretanto, para Agamben, há algo específico que deve
haver nos gêneros literários, nos escritores, nos poetas, que permite dar conta dessa tarefa
impossível de conjugar o fogo e o relato: o tremor. O artista, o escritor, o poeta que domina seu
estilo deve ser acometido por um tremor nas mãos: “nesse gesto imperioso [do artista que
98

domina seu estilo], às vezes se produz um tremor, algo como uma vacilação íntima, em que o
estilo transborda, as cores desbotam, as palavras balbuciam, a matéria coalha e entorna”
(AGAMBEN, 2018b, p.35). Esse tremor, segundo Agamben, é o que testemunha os extremos,
a ausência e o excesso do fogo (AGAMBEN, 2018b, p.35). No tremor, o fogo aparece em sua
ausência e em seu excesso. No tremor, o fogo é exposto em seus extremos. O texto que mostra,
que exibe, que expõe, que dá a ver essa perda e esse excesso de fogo é aquele que treme. Nele,
fogo e relato, mistério e história, ilegibilidade e legibilidade se conjugam paradoxalmente,
sempre em nome de uma exigência, “em nome de um nome que falta” (AGAMBEN, 2018b,
p.93).
Em Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes fala do amor em uma condição
atópica como “o que faz tremer a linguagem” (BARTHES, 1981, p.26). Falar da poesia nesta
condição atópica do amor, do que faz tremer e, por isso, também, do horror, é falar igualmente
do que está na ordem de uma origem desconhecida, sem lugar, sem paragem, sem essência, sem
substância, sem qualidade, inclassificável, incapturável, isso que a nós só chegam seus
movimentos, seus deslocamentos, seus desvios, seus modos de se mover, seus espasmos. Penso
o “trazer de cor” nessa atopia, como isso que faz tremer. Trazer de cor é também transportar
uma catástrofe. É por isso que não podemos reduzir o de cor a um sentimentalismo meloso,
porque trazer de cor passa necessariamente pela finitude, pressupõe uma ferida, pressupõe
ameaças, riscos. Na citação acima, lemos uma série de variações da palavra que Derrida traz
em itálico, “porto”. De “porto” deslizamos para “reporta”, “porte-a”, “transporte-a”. O porto
aqui já não é porto, é envio: o porto reporta, portar é reportar. O portar, aqui, é, também, um
incessante transportar, não como quem transporta de um lugar a outro, mas como quem não
cessa de carregar e de se deslocar. Talvez seja o verso de Celan, Die welt ist fort, ich muss dich
tragen, que mais condense a importância da palavra portée em Derrida. Aparecendo em vários
livros, Fernando Bernardo esclarece sobre o comparecimento dessa palavra em Carneiros e sua
tradução:

Insistente nesta obra, a palavra “portée” é de todo intraduzível na miríade de


significações que condensa na língua francesa onde se dá a escutar como
ninhada, alcance, porte, peso, carga, capacidade, importância, faculdade,
disposição, força, valor... A fim de salvaguardar o seu evidente parentesco em
portar (v.t., ato de levar ou de trazer, de carregar, suportar ou aguentar), e a
sua proveniência etimológica latina, portare [...], optamos, nós, por traduzir
esta palavra (portée) quase sempre por porte (s.m.), no sentido de carga, de
carrego, de fardo ou peso (BERNARDO in DERRIDA, 2008, p.20-21).
99

Assim como a amizade entre “pensar” e “pesar”, entre o pensamento e a gravidade,


Bernardo sublinha, ainda, a tradução de portée “como o próprio gesto do pensar como pesar,
i.e. como sofrer ou padecer e/ou carregar ou suportar” (BERNARDO in DERRIDA, 2008,
p.20-21). A respeito do pensar como um pesar, isto é, como um portar, Derrida diz:

O que se chama pesar? Uma pesagem. Pensar é também, em latim tal como
em francês, pesar, compensar, contrabalançar, comparar, examinar. Mas
para isso, para pensar e pesar, é então preciso portar [porter] (tragen, talvez),
portar em si e portar em cima de si. Supondo que possamos apostar tudo na
etimologia, o que eu jamais farei, acontece que nós não temos em francês a
sorte desta proximidade entre Denken e Danken. Temos dificuldade em
traduzir questões como as que Heidegger coloca em Was heisst Denken?”
(DERRIDA, 2008, p.21).

A tradução de tragen por porter e, por conseguinte, por portar, indica um peso que se
suporta, que se carrega, que se porta, tal como a intimidade entre pensar e pesar. Como Derrida
diz, “temos, nós, nas nossas línguas latinas, esta amizade entre pensar e pesar (pesare), entre o
pensamento e a gravidade. Entre o pensamento e o porte ou a carga [portée]” (DERRIDA, 2008,
p.22). Esse sentido do peso, do porte ou da carga está diretamente vinculado a um luto que o
verso Die welt ist fort, ich muss dich tragen indica (traduzido por Derrida como “Le monde
n’est plus, il faut que je te porte” (BERNARDO, s/d, p.124), “O mundo é/está longe ou acabou,
eu tenho de te portar/carregar” (BERNARDO, s/d, p.126)). Carregar-te, uma vez que o mundo
está perdido, se mostra como uma tarefa ética a que Derrida atribui ao pensamento, fazendo
desse um gesto de portar o outro e suportar os fantasmas. Mas, atrelado a esse sentido, outro
sentido que nos é tão importante quanto a esse é que tragen, logo, porter, diz também
“correntemente da experiência que consiste em carregar [porter] uma criança ainda por nascer,
em andar grávida” (DERRIDA, 2008, p.51). Essa intimidade entre carregar um peso de alo
diante do que já morreu e carregar um peso de algo que ainda está para nascer é o sentido
sempre paradoxal que se condensa e se tensiona no “portar”:

o poema saúda ou abençoa, porta ou carrega [porte] (trägt) o outro, quero


dizer “tu”, ao mesmo tempo como se porta ou se carrega [porte] o luto e como
se porta ou se carrega [porte] uma criança, da concepção à gestação ao pôr no
mundo. Em gestação. Este poema é o “tu” e o “eu” que se endereça a “ti”, mas
também a absolutamente qualquer outro [tout autre]” (DERRIDA, 2008, p.39-
40).

Nascimento e luto, vida e morte estão ambos contidos em tragen, como um


endereçamento a quem ainda está por vir e a quem não está mais aqui, sendo uma linguagem
100

que se dá nesse tempo do “ainda não” e do “não mais”, como uma experiência que porta o outro
em si como a gestação de uma mãe e como a experiência do luto que porta o outro em si como
quem introjeta o objeto perdido em si. Para Derrida, o luto como Freud formulou seria
insuficiente para pensar essa tarefa ética de carregar o outro incessantemente em si. Como uma
“rebeldia” ao luto, indicando o luto como um trabalho que não termina, transformando-o em
uma ética, Derrida aposta na necessidade de “uma certa melancolia” (ele diz: “é preciso a
melancolia” (DERRIDA, 2008, p.52, grifo do autor) para que o esquecimento não aconteça.

Segundo Freud, o luto consiste em portar ou carregar [porter] o outro em si.


Não há mais mundo, é o fim do mundo para o outro na sua morte, e eu acolho
em mim este fim do mundo, e devo portar [porter] o outro e o seu mundo, o
mundo em mim: introjeção, interiorização da recordação (Erinnerung),
idealização. A melancolia acolheria o fracasso e a patologia deste luto. Mas
se eu devo (é a própria ética) portar [porter] o outro em mim para lhe ser fiel,
para lhe respeitar a alteridade singular, uma certa melancolia deve protestar
ainda contra o luto normal. Nunca ela deve resignar-se à introjecção
idealizante. E deve rebelar-se contra o que Freud diz dele com uma segurança
tranquila, como que para confirmar a norma da normalidade. A “norma” não
é senão a boa consciência de uma amnésia. Ela permite-nos esquecer que
guardar o outro dentro de si, como si mesmo, é já esquecê-lo. O esquecimento
começa aí. É então é preciso a melancolia. Neste lugar, o sofrimento de uma
certa patologia dita a lei – e o poema dedicado ao outro (DERRIDA, 2008,
p.52, grifos do autor).

Entendo que essa “certa melancolia” ou essa “certa patologia”, de que Derrida fala, não
se adequa completamente à melancolia discorrida por Freud em que a introjeção do outro no eu
pressupõe necessariamente a depreciação do eu (FREUD, 2006, p.104). Acredito que essa
“certa melancolia” difere da melancolia da leitura clássica de Freud no aspecto em que a
melancolia em Derrida não pressupõe uma destruição do eu pelo peso do objeto perdido que
cai sobre ele, mas um carregar o outro cujo outro precede e determina a existência do eu. Não
faz parte dessa abordagem a depreciação do eu, mas a determinação do eu pelo outro que
preexiste ao eu. Assim, o peso do outro é aquilo que está diante do eu, porque sempre está antes
do eu. Levinasianamente, e contra Heidegger, Derrida entende que portar o outro antecede ao
ser, e que, portanto, como pensava Levinas, o outro preexiste ao eu: “Antes de ser, eu porto,
antes de ser eu, eu porto o outro” (DERRIDA, 2008, p.54). Nesse sentido, o pensamento que
Derrida defende é sempre uma pendência, um estar em dívida para com o outro porque nunca
se chega ao que o antecede, o outro, estando o eu sempre em falta com o outro, portando-o com
uma falta de estar diante dele, mas nunca coincidindo com ele. Não se porta o outro se portar
quer dizer “incluir em si mesmo” em um sentido egológico: “Trata-se de portar [porter] sem se
101

apropriar. Portar [porter] não quer dizer ‘comportar’, incluir, compreender em si, mas inclinar-
se para [se porter vers]” (DERRIDA, 2008, p.53). O que se porta, portanto, é essa distância
sobre a qual se inclina para chegar a um outro que está diante do eu, o que se porta é uma
chegança, é uma aproximação como distância e diferença, é o peso de um outro que não
coincide com o eu, porque sempre vem antes do eu: “Permaneço diante (de ti) devendo, em
dívida e devendo-te diante de ti, devo manter-me ao teu alcance [portée], mas devo também ser
o teu fardo, a tua carga [portée]” (DERRIDA, 2008, p.54). Como esclareceu Fernando
Bernardo, “Derrida joga com a homonímia da palavra ‘devant’, a qual, em francês, tanto se
ouve na forma de preposição ‘diante’ como na de particípio presente do verbo dever,
‘devendo’” (BERNARDO in DERRIDA, 2008, p.54). Portar essa falta, essa dívida, essa
pendência, não é uma dívida que pode ser paga, é uma dívida insaldável, e nisso consiste a ética
desse pensamento, porque, assim como esse luto é um luto que não termina, que não cessa,
permanecer diante do outro, portando-o como um peso de um espectro, é permanecer
incessantemente em dívida para com o outro e, por isso, sempre o carregando, obstinadamente,
obsessivamente. Diferentemente tanto do luto como da melancolia em Freud, o luto em Derrida
seria um luto que não cessa e se aproximaria de uma outra melancolia em que o peso do objeto
perdido sobre o eu seria o peso de um objeto perdido que antecede o eu, e que, por isso, não
coincide com ele havendo a depreciação do eu, mas o determina, o transforma, e coloca a
relação entre eu e outro desde já como uma relação ética em que o eu se cria, se tece, se constitui
enquanto contaminado, afetado, dividido pelo outro, sendo um eu cujo si-mesmo só existe
enquanto enlutado de si, encontrando-se sempre a si mesmo como outro.
Voltando à presença de “portar” em Che cos’è la poesia, a resposta de Derrida em quatro
páginas é uma escrita que incessantemente se reporta, se reenvia, como que nascendo de novo,
e, ao mesmo tempo, portando o luto, apontando para a morte e, ao mesmo tempo, se relançando
ao fora do texto, a uma abertura que aponta para uma constelação de possibilidades que não se
reduzem ao texto, o extrapolam. Não é à toa que analisar esse texto é uma tentativa de traduzi-
lo, traduzir a própria tradução em português. Meu esforço de tentar traduzir o texto já traduzido
de Derrida é uma tentativa que não dá conta do intraduzível que, mesmo traduzido, resta. Os
parágrafos-estrofes de Derrida transportam-se tal como o corte do verso que, como já foi
demonstrado e como veremos melhor, também pode ser chamado de enjambement, podendo
ser traduzido como o salto do verso que causa necessariamente um desencaixe ou um adiamento
entre o som e o sentido, mas que também pode ser entendido como o transporte do verso pela
tradução de enjamber como “transpor”. O verso, nesse sentido, é aquilo que transpõe ou
transporta. Se estamos insistindo em um duplo gesto da escrita de Derrida e, com ela,
102

insistiremos em um duplo gesto do verso, torna-se peremptório adiantar que gesto vem de
gestar. E gestar significa trazer junto a si, portar algo sobre si. Esse texto de Derrida sobre a
poesia, ou melhor, sobre a experiência poética, me faz pensar que o verso, que o gesto do verso,
é isso que traz sempre outro, ou outra coisa, junto a si. E isso se revela no corte e pelo corte. É
no corte que vemos o outro ou a outra coisa que o verso traz em seu gesto. Talvez, a herança
do verso seja esta: trazer o outro, portar o outro junto a si. Se tem gente que porta uma arma,
tem, ao contrário, o verso. Tem o gesto de fazer do porte um transporte, de carregar o outro ao
portá-lo junto a si.
Também podemos entender o verso como “transpor” a partir do que Agamben disse a
respeito não do enjambement, mas de outro corte do verso, a cesura, sobre a qual falaremos
mais para frente, quando o corte não se dá ao fim do verso, mas no meio, em qualquer lugar, de
maneira aleatória. Lemos, na frase de Agamben, a cesura como corte que já é, em si, transporte:
“O transporte rítmico, motor do lance do verso, é vazio, é apenas transporte de si” (AGAMBEN,
1999, p.36). O que o verso transporta não é nada senão si mesmo, isto é, a possibilidade da
palavra, o incessante ter-lugar da linguagem. O verso não transporta algo para algum lugar, não
tem um porto, uma chegada, não é um meio para um fim, é apenas um transporte vazio em que
o que se abre é a possibilidade de dizer, de enunciar, de pensar. Transporte vazio não significa
outra coisa senão o transporte do pensamento, o verso como envio, que não cessa de enviar,
reenviar, transportar o pensamento, permitindo a sua permanência. O transporte no texto do
filósofo e o transporte do verso reportam sempre. Vale a pena adiantarmos também um detalhe
sobre o enjambement: nele, o verso, ao mesmo tempo que aponta para sua retração ao se dobrar
sobre si, aponta para fora, para o outro lado. Há uma intimidade entre a escrita de Derrida e o
verso. Há uma intimidade entre o verso e o ouriço. Talvez não seja possível responder Che
cos’è la poesia? se não for fazendo a experiência do verso, estando nos limites. Trazer de cor é
portar sobre si, cujo porte transporta e cujo porto reporta. Ao ser partida, o porto sempre reporta,
isto é, porta de novo e diferentemente.

Literalmente. você gostaria de decorar uma forma absolutamente única, um


acontecimento cuja intangível singularidade já não separasse a idealidade, o
sentido ideal, como se diz, do corpo da letra. Nesse desejo da inseparação
absoluta, o não-absoluto absoluto, você respira a origem do poético. Daí a
resistência infinita à transferência da letra que o animal, em seu nome, todavia
solicita. É a desgraça do ouriço. O que quer a desgraça, o próprio estresse?
stricto sensu, alertar. Daí a profecia: traduza-me, vela-me, guarda-me um
pouco mais, salve-se, deixemos a estrada (DERRIDA, 2001a, p.114).
103

Ler esse texto é ler, literalmente, o corpo da letra. É isso que indicam os deslizamentos
de Derrida. Ele começa esse parágrafo dizendo do hiato entre o sentido ideal e o literal, e diz
que é no desejo de inseparação entre os dois que se respira a origem do poético. Poderíamos
estranhar ao ler “a origem do poético”, o que seria um contrassenso em Derrida, mas aqui essa
origem é aquilo que se respira: vem de fora. Lembrando a problematização da respiração em
Carneiros, a partir de um poema de Celan, Derrida traz a respiração como o primeiro e o último
sinal de vida, ligada, portanto, ao nascimento e à morte (BERNARDO in DERRIDA, 2008,
p.74) e como o que liga uma pessoa a outra, como uma destinação, uma maneira de se endereçar
ao outro, “uma certa maneira de se virar para o outro e de o acolher” (BERNARDO in
DERRIDA, 2008, p.77). Nesse sentido, a origem do poético seria, portanto, essa ligação vital,
esse endereçamento ao outro desde a troca de ar, desde o tomar ar, esse gesto de inspiração que
Platão já havia caracterizado a atividade poética como uma forma de despossessão de si e
possessão pelo fora – dito como musas.
O que a citação nos diz, ainda, é que a origem do poético não está, pois, na inseparação
do sentido e da letra, na coincidência entre os dois, mas no desejo de inseparação, na
inseparação não realizada. A origem do poético é, pois, uma resistência, “uma resistência
infinita à transferência da letra”. Aqui, temos um outro giro, uma outra volta. Agora, é preciso
atentar ao que acontece nesse hiato, nisso que resiste ao transporte. Essa formulação indica que,
se o poético é o transporte, é também a resistência ao transporte, é o que interrompe o transporte.
Isso, ele sinaliza: é o literal. Tal resistência está performada no nome disso que transporta, no
nome do próprio animal: ler “ouriço” já é ler a tensão do atrito da resistência dos espinhos. Ler
istrice é ler estresse e ler stricto sensu. Ou seja, ler o estresse, a tensão, é ler o corpo (animal, é
preciso dizer), é ler o irredutível, o literal. O ouriço é isso que porta em si o literal, que convoca
um estado de alerta, um instinto de sobrevivência quando o corpo se encontra em ameaça, e
nós, que o lemos, fazemos a experiência de uma resistência, da letra que resiste ao seu transporte
e vice-versa, do desejo de inseparação entre o sentido ideal e o literal.
Gostaria de atentar aqui para a compreensão dessa escrita como um movimento de
resistência, em que escrever já é resistir, resistir ao sentido, movimentar-se em uma tensão que,
como vimos, pode ser chamada de desejo, se mantém enquanto “desejo de inseparação”. Esse
desejo ele mesmo como uma resistência. Atentar para isso talvez seja atentar para uma
dimensão ética do desejo, em que uma economia libidinal não se dissocia de uma economia
política, porque é ao se sustentar enquanto esse desejo, enquanto essa resistência, enquanto essa
tensão disso que é vulnerável mas resistente, como o ouriço, que essa escrita se mantém como
104

transporte, envio, reenvio, lançada, virada, girada, dobrada, voltada para a catástrofe, para a
ferida, para o outro, ao mesmo tempo em que, nesse movimento, se outra (do verbo outrar).

O poema pode enrolar-se em bola, mas ainda assim para virar seus signos
agudos para fora. Sem dúvida, ele pode refletir a língua ou dizer a poesia, mas
ele nunca se refere a si mesmo, ele nunca se move como essas máquinas
portadoras da morte. Seu acontecimento sempre interrompe ou desvia o saber
absoluto, o ser junto de si em autotelia. Esse “demônio do coração” nunca se
junta, antes se perde (delírio ou mania), expõe-se à sorte ou deixa-se, antes,
despedaçar por aquilo que vem sobre ele (DERRIDA, 2001a, p.116).

Sempre lançado para a fora, o poema se lança ininterruptamente ao outro e como outro,
como quando Derrida diz “Nunca assino um poema. O outro assina. O eu apenas é em função
da vinda desse desejo: aprender de cor” (DERRIDA, 2001, p.116). Vemos aqui que o “eu” é
uma produção do desejo, desejo esse que é um atravessamento do fora. A assinatura indica sua
dispersão, a erosão do nome, um nome outro que se traça em cima do nome. A assinatura e o
nome não passam de rasuras, riscos, aberturas, envios a outros nomes. O poema como o que se
reporta é um acontecimento porque, ao se sustentar como desvio, “interrompe ou desvia o saber
absoluto”, instaurando, a cada desvio, a cada envio, uma singularidade. E aqui temos outra
conexão entre a economia libidinal e a economia política, porque isso que Derrida colocou na
conta do “demônio do coração”, como potência de interrupção, de paragem, podemos ler como
a revolução que Guy Debord colocou na conta da poesia.
Em All the King’s men, ele diz: “A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar
vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque ela não é uma matéria consumível.
A poesia não é nada quando ela é declamada, ela pode somente ser desviada (détournée),
recolocada em jogo” (DEBORD, 2008, s/p).27 Para Debord, a poesia se diferencia da economia
do capitalismo justamente porque ele entende a poesia como desvio. Porque se desvia e se
coloca em jogo, a poesia, ao contrário da matéria consumível, não se esgota, não se consome,
não se destrói, e isso, para Debord, confere à poesia um estatuto revolucionário que vai contra
a economia capitalista baseada na sociedade de consumo. É porque se cinde (“nunca se junta”),
se separa de si mesmo e aponta para fora, que o poema, para Derrida, interrompe o saber. Ao
que Debord acrescentaria: interrompe a lógica do consumo, a lógica do capitalismo, a lógica da
economia do espetáculo. A isso Debord chamaria de “momento revolucionário” (DEBORD,
2008, s/p). A isso Derrida chamou de “demônio do coração”.

27
Texto disponível em http://emilianoaquino.blogspot.com/2008/01/all-kings-men.html Acesso em 02/05/2019.
105

1.2.2. Eros, “demônio do coração”

O remetimento a Eros é inevitável. Desde Platão, sabemos que Eros é um demônio ou


um daimon. No Banquete, Diotima diz a Sócrates que Eros “ocupa o meio-termo entre” o sábio
e o ignorante, o belo e o feio, o deus e o mortal (PLATÃO, 2018, p.265-269). Ou, ainda, que
Eros está “entre esses dois extremos” (PLATÃO, 1991, p.74). Por isso, Eros é um gênio,
Diotima diz a Sócrates, porque “tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal” (PLATÃO,
1991, p.75). Como a abordagem de Derrida ao gênio em Gêneses, genealogias, gêneros e o
gênio, em que o gênio é o que gera, o que faz nascer (DERRIDA, 2005, p.55), em Platão lemos
que o amor como um gênio é “um parto no belo” [τόκος ἐν καλῷ], como Diotima diz.28 Em
outro momento, lemos em um discurso indireto de Sócrates: “ – [...] É com efeito, Sócrates,
dizia-me ela [Diotima], não do belo o amor, como pensas”. Ao que ele interrogou: “ – Mas de
que é enfim?”. “– Da geração e da parturição no belo”
[τῆς γεννήσεως καὶ τοῦ τόκου ἐν τῷ καλῷ], respondeu Diotima (PLATÃO, 1991, p.81).29
Ligado à gestação, ao engendramento, ao que faz nascer, podemos dizer que tanto o gênio em
Derrida como um dos sentidos de portar se liga a essa abordagem de Eros diretamente
vinculada à gestação. De novo recorro Ao Banquete para dizer que, talvez de forma implícita,
um dos modos de Derrida ir aos mortos, pelo portar, é também um dos modos em que sua
abordagem se articula com a abordagem de Diotima a Eros.
Como um gênio, Eros é, portanto, um intermediário, ele está no meio do caminho. Sobre
ele, encontramos algumas incidências também em alguns livros de Agamben. Em seu primeiro
livro, O homem sem conteúdo, escrito em 1970, o jovem Agamben cita O Banquete ao falar da
poiesis como esfera da criação, ao que podemos conjecturar que a poesia está colocada sob o
signo desse demônio chamado Eros, havendo, assim, um nexo indissociável entre poesia e Eros
(AGAMBEN, 2014b, p.103-104). Nessa década, o filósofo irá voltar ao daimon em seu segundo
livro, Estâncias, de 1977, e em Gosto, de 1979. Anos depois, em 1985, ele o aborda novamente
em A linguagem e a morte e, em 1990, em A comunidade que vem. Nas publicações mais
recentes e traduzidas no Brasil, encontramos novamente incidências do demoníaco em

28
Edição grega em Perseus:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plat.%20Sym.%20206&fromdoc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0
173&fbclid=IwAR21PRNbpwGFido2FLy3mRa4xUWBoAipVq1p3CE02xCi4DyJs0GupSd6L_Y
Acesso em 23/09/2019.
29
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plat.%20Sym.%20206&fromdoc=Perseus%3Atext%3A1999.01
.0173&fbclid=IwAR21PRNbpwGFido2FLy3mRa4xUWBoAipVq1p3CE02xCi4DyJs0GupSd6L_Y
Acesso em 23/09/2019.
106

Profanações e A potência do pensamento, ambos originalmente de 2005, e Aventura, de 2015.


Se, à primeira vista, não encontramos o retorno do daimon nos livros dedicados ao estado de
exceção, na série Homo Sacer, veremos, na segunda parte desta tese, que há um parentesco no
modo como Agamben pensa o daimon e no modo como ele pensa o que podemos chamar de
horror ou estado de exceção. Há uma cisão fundamental que constitui a base teórica tanto da
teoria política do filósofo como de sua teoria da arte. Se, a princípio, o daimon não visita
explicitamente a sua teoria política, isso não significa que não haja uma interpenetração de suas
teorias que o levam a pensar a política e a pensar a arte, fazendo crer que arte e política estão
mais conectadas do que se evidencia. E como aqui será feita uma leitura do daimon como uma
leitura de Eros, de acordo com O Banquete, podemos indicar que o princípio teórico do estado
de exceção se conecta com o princípio teórico não só da arte, mas do amor e, na acepção
agambeniana, da linguagem. Na filosofia de Agamben, pensar a política, pensar a arte, pensar
o amor e pensar a linguagem são gestos entrelaçados.
Em “Genius”, um dos ensaios presentes no livro Profanações, podemos encontrar um
certo daimon que Agamben chama, nesse texto, de “Genius”. Poderia ser, talvez, a tradução
latina para o grego δαιµων (daimon). No latim, Genius é o “deus a que todo homem é confiado
sob tutela na hora do nascimento” (AGAMBEN, 2007, p.15). E aqui vamos à aproximação de
que estavámos falando em Platão, em Derrida, e agora em Agamben, entre genio e generare:
“gerar”, gestar, em que essa gestação não cessa de nos dar origem, nos superando e nos
excedendo: “Se ele [Genius] parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois,
como algo mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e menos do
que nós mesmos” (AGAMBEN, 2007, p.16). Assim, se “esse deus é muito íntimo e pessoal,
ele é também o que há de mais impessoal em nós” (AGAMBEN, 2007, p.16). O que esse
daimon não cessa de gerar em cada um que ele acompanha é um nascer outro e despertencido
de si mesmo. Gênio é, portanto, aquele que nasce sempre outro. Se por muito tempo a imagem
do gênio foi atrelada a um mágico do conhecimento, esse que conhece só conhece na medida
em que não cessa de nascer de novo, cognoscere, nascer-com, nascer com o mais outro de si
mesmo. Em Aventura, encontramos a complementação desse sentido ao daimon:

E ele se chama “gênio” não porque, como diziam os antigos, nos gerou, mas
porque, fazendo-nos nascer novamente, cortou a ligação que nos unia ao nosso
nascimento. Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o
momento da despedida – que, no momento em que o encontramos, devemos
nos separar de nós mesmos (AGAMBEN, 2018, p.62).
107

O demônio Genius é a cisão, enquanto nascimento e despedida, que nos constitui. Desse
ponto de fratura, em que o nascimento é, ao mesmo tempo, a despedida, nascer de novo significa
nascer outro, cindido de si mesmo. No ensaio “*Se. O Absoluto e o Ereignis”, Agamben vai à
etimologia de daimon: “Quanto ao termo daímon, ele não indica simplesmente uma figura
divina, tampouco aquele que fixa um destino. Pensado segundo seu étimo (que o reconduz ao
verbo daiomai, lacero, divido), daimon significa: o que dilacera, o que divide e cinde”
(AGAMBEN, 2015a, p.149). Ou seja, etimologicamente, o demoníaco é a instauração de uma
cisão. Em Estâncias, lemos que o diabólico ou o demoníaco sempre foi uma cisão inerente à
própria significação:

O simbólico, o ato de reconhecimento que reúne o que está dividido, é também


o diabólico, que continuamente transgride e denuncia a verdade deste
conhecimento. O fundamento desta ambiguidade do significar reside naquela
fratura original da presença, que é inseparável da experiência ocidental do ser,
e pela qual tudo aquilo que vem à presença, vem à presença como lugar de um
diferimento e de uma exclusão, no sentido de que o seu manifestar-se é, ao
mesmo tempo, um esconder-se, o seu estar presente, um faltar. É este
copertencimento originário da presença e da ausência, do aparecer e do
esconder, que os gregos expressavam na intuição da verdade como ἀλήθεια
[alethéia], desvelamento (AGAMBEN, 2007, p.219).

O que podemos depreender dessa passagem é que o signo linguístico já é ele mesmo
diabólico ou demoníaco, uma vez que porta uma dupla unidade de significante e significado.
Significar é, pois, já estar em uma cisão, de modo que o significado como presença contém em
si a ausência do que não ficou manifesto. Nesse sentido, o desvelamento é um duplo movimento
que se dá ao mesmo tempo: o que aparece aponta sempre para o que ficou ausente ou velado, a
presença sempre remete a uma falta ou a uma ausência. Essa cisão é, portanto, constitutiva da
linguagem, e o nexo que liga um significado a um significante não seria nada mais que uma
disjunção demoníaca. O ponto de resistência que suspende e atrasa a função comunicativa não
é externo à linguagem, mas a constitui. “O signo é, por natureza, uma unidade fragmentada,
cindida e que, portanto, aponta sempre para além de si mesmo – para aquilo que, nele, já falta:
o signo é constituído, tal como o Eros platônico, enquanto um ‘elo intermediário’” (PINEZI,
2017, p.97).
No ensaio em que Agamben se dedica a refletir sobre o reflexivo “*se”, uma das
considerações traz um fragmento de Heráclito: “ethos anthropos daimon” (HERÁCLITO apud
AGAMBEN, 2015a, p.149). Esse fragmento foi traduzido como “O caráter é para o homem o
demônio” (AGAMBEN, 2015a, p.149). Mas, como Agamben ressalta, enquanto ethos indica
morada, no sentido do que é de costume, de habitual, daimon não é sequer uma paragem: “não
108

indica simplesmente uma figura divina, tampouco aquele que fixa um destino” (AGAMBEN,
2015a, p.149). Ou seja, se o ethos é para o homem o daimon, se o ethos do homem é o daimon,
se a sua morada é o daimon, então o seu habitat não é senão o lugar em que ele se distancia de
si, em que ele ser torna atópico, em que ele se divide, em que ele se cinde. Em A linguagem e
a morte, Agamben definiu esse “estar em casa” como “estar em casa na maravilha da cisão”
(AGAMBEN, 2006, p.128). Assim, o propriamente habitável é o mais fora, o habitat não é
senão o sair para fora do habitat, o hábito não é senão o sair do hábito. O que é mais próprio ao
homem não é senão aquilo que lhe faz mais impróprio, mais alheio, mais estranho. Como disse
Juliana de Moraes Monteiro em sua tese de doutoramento, “A cisão demoníaca é sempre o lugar
de uma disjunção que, no mesmo movimento de tornar algo próprio, acaba produzindo seu
afastamento, sua expropriação” (MONTEIRO, 2019, p.122). Como a crítica e teórica da arte
também lembra, “o daímon é, de certo modo, Unheimlich e podemos verificar essa correlação
em uma das etimologias investigadas por Freud: ‘em árabe e hebraico, Unheimlich equivale a
demoníaco’” (MONTEIRO, 2019, p.166). O demoníaco é a inclusão, no si-mesmo, do mais
infamiliar ao si-mesmo. O topos do daimon não é uma paragem, mas uma zona limítrofe de
cisão, dilaceramento, divisão, a que encontramos nosso ethos, nossa ética. A ética que reside
no topos de Eros é, portanto, a experiência de uma zona barrada.
Em A comunidade que vem, encontramos uma equivalência a essa compreensão de
demoníaco como o que não cessa de reivindicar o impróprio. No texto intitulado “Demoníaco”,
a partir das literaturas de Walser e Kafka, Agamben diz que o demoníaco desapareceu
justamente nos textos em que o horror do século XX mais compareceu (AGAMBEN, 2013,
p.37). Disso ele constata que o demônio é “a mais afastada de Deus dentre as criaturas” e, se
Deus simboliza a potência, o demônio é a impotência ou “a potência de não ser em Deus”:
“enquanto é essencialmente impotência, não apenas não pode fazer mal nenhum, mas é, antes,
aquela que mais precisa da nossa ajuda e das nossas preces” (AGAMBEN, 2013, p.38). Nesse
sentido, o demoníaco é, em cada ser, “a possibilidade de não ser que silenciosamente implora
o nosso socorro” (AGAMBEN, 2013, p.38). Ou seja, o demoníaco é aquilo que contém a
possibilidade de não ser, é aquilo que sinaliza, na potência presente em cada ser, a sua
impotência. Fugir de nossa impotência ou “servir-nos dela como de uma arma”, como diz
Agamben, é construir o “maligno poder com o qual oprimimos aqueles que nos mostram a sua
fraqueza; e faltando com a nossa íntima possibilidade de não ser, declinamos da única coisa que
torna possível o amor” (AGAMBEN, 2013, p.38). Aqui, então, a impotência do demoníaco se
vincula à possibilidade do amor.
109

Audre Lorde, por outro lado, parece vincular Eros exclusivamente à potência,
incindindo uma leitura sobre o “poder erótico das mulheres” contra as visões machistas de sua
época. Em Irmã Outsider, no ensaio “Usos do erótico: o erótico como poder”, Audre Lorde,
traduzida por Stephnaie Borges, diz do “erótico” como potência, como “energia criativa”, como
“força vital das mulheres” que se estende a todos os âmbitos da vida:

A própria palavra “erótico” vem do grego eros, a personificação do amor em


todos os seus aspectos – nascido de Caos e representando o poder criativo e a
harmonia. Quando falo do erótico, então, falo dele como uma afirmação da
força vital das mulheres; daquela energia criativa fortalecida, cujo
conhecimento e cuja aplicação agora reivindicamos em nossa linguagem,
nossa história, nossa dança, nossos amores, nosso trabalho, nossas vidas
(LORDE, 2019, s/p).

Afirmando o “erótico” como “conhecimento”, indo contra a visão pejorativa que


desvalorizava o erótico e o relacionava às mulheres como pornográfico, Lorde entende que o
“erótico” é o que une o psíquico (que ela chama de “espiritual”) ao político, é o que “cria uma
ponte”: “a dicotomia entre o espiritual e o político é falsa, já que resulta de uma atenção
incompleta ao nosso conhecimento erótico. Pois a ponte que os conecta é formada pelo erótico”
(LORDE, 2019, s/p). O erótico seria, do ponto de vista de Lorde, isso que está no meio, entre o
psíquico, o emocional (“espiritual”) e o político, sendo necessariamente um conhecimento que
faz a ponte entre eles. Ela diz, ainda: “O erótico é o que estimula e vela pelo nosso mais
profundo conhecimento” (LORDE, 2019, s/p). Como aquilo que dá passagem, que cria uma
ponte, o erótico ao mesmo tempo “estimula e vela”, faz nascer e zela, vigia, cuida de uma
profundeza e intensidade que não é senão o elo entre corpo e política.
Em outro ensaio de A potência do pensamento, intitulado “Walter Benjamin e o
demônico”, Agamben discute a leitura de Scholem ao texto Agesilaus Santander, de Benjamin,
problematizando a associação arbitrária que Scholem faz ao associar um elemento feminino,
que o anjo traz, com o satânico (AGAMBEN, 2015a, p.185-188). Agamben se contrapõe a
Scholem dizendo que “existe uma única figura, no patrimônio iconográfico europeu, que reúne
em si, ao mesmo tempo, características puramente angelicais com o traço demônico das garras:
mas essa figura não é Satanás, mas antes Eros, Amor” (AGAMBEN, 2015a, p.189). Em
Estâncias, encontramos Eros como “um pequeno monstro munido de dentes caninos e garras”
na descrição de Plutarco (AGAMBEN, 2007a, p.199). Sobre as variações da figura de Eros
como um demônio sinistro, assim como o demônio meridiano da melancolia, Agamben diz:
110

Assim como a teoria humoral da melancolia estava ligada à influência sinistra


do demônio meridiano (reencarnação de Empusa, figura pertencente ao
cortejo espectral de Hecates, causa também ela, segundo Hipócrates, de
pesadelos e enfermidades mentais), assim também a doutrina médica do amor
hereos expressava a polaridade patológica das influências de Eros-herói-
demônio aéreo. E é esta a figura heroico-demoníaca de Eros, com caninos e
garras, que deve ter inspirado o modelo iconográfico do Cupido “baixo e
mitográfico”, que Panofsky pressupõe estar na origem da representação de
Amor com garras no lugar dos pés, na alegoria de Giotto sobre a castidade e
no afresco do castelo de Sabbionara, cujo protótipo procura reconstruir,
através da ilustração dos Documenti d’amore de Francesco da Barberino, que
mostra o Amor com garras e o arco, em pé, sobre um cavalo a galope
(AGAMBEN, 2007a, p.200).

Com isso, vemos que o amor heroico não é, na sua origem, o amor mais nobre elevado,
como foi veiculado pela mística cristã e, através dessa, pela teoria neoplatônica do amor celeste,
mas o baixo e obscuro, inspirado pelo herói-demônio aéreo (AGAMBEN, 2007a, p.200). Esse
corpo aéreo do demônio, é importante dizer, era considerado “tão maleável a ponto de mudar
de forma” (AGAMBEN, 2007a, p.176). Maleável e instaurado na contradição, era assim que
Eros era um demônio da transformação. Agamben diz que “é no campo da teurgia ídolo-
poiética, em passagem de Proclo, onde se deve buscar verossimilmente a origem do inusitado
tema de Eros em pé sobre um cavalo” (AGAMBEN, 2007a, p.201). Baixo e obscuro, Eros foi
por muito tempo compreendido em uma duplicidade, de modo que “a teoria do amor é uma
polarização audaz do amor ‘heroico-demoníaco’ e do amor-enfermidade” (AGAMBENa, 2007,
p.201-202). Saúde e doença são uma das polarizações dentre as demais contradições sem as
quais não podemos compreender Eros.

O que em Platão era uma contraposição nítida entre dois “Amores” (que
tinham uma genealogia distinta a partir de duas Vênus, a celeste e a terrestre
(“pandemia”), torna-se assim, na tradição ocidental, um único Eros,
fortemente polarizado na tensão lacerante entre dois extremos de signo oposto
(AGAMBEN, 2007a, p.193).

Ao longo do texto “Walter Benjamin e o demônico”, há dois momentos em que


Agamben sublinha a ambiguidade como marca do demoníaco em Benjamin: 1) “no ensaio de
1921 sobre a Crítica da violência, a ambiguidade é a característica dominante da esfera
demônica, e essa ambiguidade é, de igual modo, a marca do direito” (AGAMBEN, 2015a,
p.198); 2) “como já se dizia no escrito de juventude sobre Sócrates, na esfera demônica ‘espírito
e sexo estabelecem uma solidariedade cuja lei é a ambiguidade’” (BENJAMIN apud
AGAMBEN, 2015a, p.198). A ambiguidade constitutiva do anjo de Benjamin se dá também e,
sobretudo, no ponto em cujo aparecimento se encontram origem e destruição (AGAMBEN,
111

2015a, p.200). É nesse sentido que, para Agamben, o anjo de Benjamin “não poderá mais surgir
como uma ilusão satânica” nem como Scholem leu o anjo da história, como “a melancólica
alegoria de um naufrágio”, mas, pelo contrário, “como a chave a que Benjamin confia a tarefa
histórica mais árdua e mais completa experiência de felicidade com que um homem pode
confrontar-se” (AGAMBEN, 2015a, p.197). Mas essa experiência de felicidade não é outra
senão uma experiência de destruição. Não é a felicidade cristã e ocidental como entendemos,
como um “bem supremo”, tal como promulgou a leitura que o cristianismo fez de Ética a
Nicômacos, como um fim a que visam as ações, compreendido em uma lógica de meios e fins
como um “bem final” autossuficiente (ARISTÓTELES, 1999, p.23),30 mas uma remissão do
passado que só se dá por sua destruição, ou seja, por sua citação. “E isso quer dizer que só para
a humanidade redimida o passado se tornou citável em cada um de seus momentos”
(AGAMBEN, 2015a, p.201). Em Benjamin, a capacidade de citar o passado significa que ele
foi apoderado e, assim, destruído, acabado, redimido, deixando de ser um peso nos ombros da
humanidade. Estabelece-se então, aqui, um parentesco entre a citação e o demônio: “na citação,
origem e destruição se interpenetram”, tal como o ponto de aparecimento do anjo de Benjamin.

Aqui, a citação surge como um procedimento eminentemente destrutivo, ao


qual compete a força não de “guardar, mas de purificar, de tirar do contexto,
de destruir”. Sua força destrutiva é, porém, a da justiça: na mesma medida em
que a citação arranca a palavra de seu contexto, destruindo-o, ela a remete
também à sua origem (AGAMBEN, 2015a, p.202).

A ambiguidade na qual se situa a citação e o anjo como demônio ou mensageiro é


justamente o que permite uma ética ou, nas palavras de Agamben, uma justiça. A “capacidade
de arrancar à força o passado de seu contexto, destruindo-o, para restituí-lo, transfigurado, à
origem” é a única forma de salvar o passado, ou melhor, de salvar a humanidade do peso
insuportável do passado (AGAMBEN, 2015a, p.202). Mas, para isso, o insuportável tem de ser
citado. Citá-lo é um modo de “retirar as últimas consequências da experiência única com o
passado” (AGAMBEN, 2015a, p.202). É assim que também podemos aproximar o “de cor” de
Derrida, o “demônio do coração”, com a costura de leituras que estamos fazendo do daimon.
Aqui, mais uma vez, citar de cor não tem nada de cerebral: se antes o caráter afetivo estava
evidente, deslocando o cérebro para o coração, o que se evidencia agora é também uma ética
para com a humanidade. A ambiguidade demoníaca do anjo é uma resistência à tradição que

30
“autossuficente pode ser definido como aquilo que, em si, torna a vida desejável por não ser carente de coisa
alguma, e isto em nossa opinião é a felicidade” (ARISTÓTELES, 1999, p.24).
112

perpetua e repete o passado na ânsia de transmiti-lo em uma identificação da coisa a transmitir


e do ato da transmissão. A ambiguidade demoníaca do anjo é o que, citando o insuportável fora
de seu contexto como uma memória involuntária, conduz o passado à sua origem e ao seu fim
ao mesmo tempo, ou seja, ao seu declínio, à sua destruição e, portanto, à sua salvação,
permitindo “sacudir o peso das costas da humanidade e agarrá-lo nas mãos” (AGAMBEN,
2015a, p.203).
Em Estâncias, Agamben diz que são os poetas que conferem uma polarização positiva
na imagem “baixa e obscura” de Eros, não porque a polarização mórbida foi excluída, mas
porque os poetas foram os únicos que trataram desse demônio não de outra forma senão girando
em torno do demônio. Em outras palavras, “se os médicos aconselham como remédio principal
do amor hereos o coito e recomendam tudo o que possa desembaraçar o enfermo de sua ‘falsa
imaginação’”, os poetas não buscam a cura saindo do círculo fantasmático, mas fazendo dele
um meio de vida (AGAMBEN, 2007a, p.202). A saída não está fora dos fantasmas, mas na lida
com os fantasmas e na afirmação do caráter fantasmático do amor.
E aqui temos um ponto importante: a compreensão de Eros como daimon também passa
por compreendê-lo como fantasma. A lírica trovadoresca e os poetas do dolce stil novo
deixaram uma compreensão de amor como herança para a poesia ocidental moderna que passa
necessariamente como um processo fantasmático (AGAMBEN, 2007a, p.50). Estâncias nos
mostra que há, na experiência amorosa, um caráter rigorosamente fantasmático (AGAMBEN,
2007a, p.182). Se os poetas giram em torno do demônio, convivendo com ele, Agamben mostra
que o mesmo acontece na associação da melancolia com a atividade artística, que “encontra a
sua justificação precisamente na exacerbada prática fantasmática” (AGAMBEN, 2007a, p.53).
O filósofo recorre a Freud, em Criação literária e o sonho de olhos abertos, quando “formula
a hipótese segundo a qual a obra de arte seria, de algum modo, continuação do jogo infantil e
da inconfessada mas nunca abandonada prática fantasmática do adulto” (AGAMBEN, 2007a,
p.53). Ora, o que poetas e melancólicos criam, segundo Agamben, é um “espaço aberto pela
obstinada intenção fantasmagórica”, um espaço que dá “corpo ao incorpóreo e torna incorpóreo
o corpóreo” (AGAMBEN, 2007a, p.54). Assim, seguir as “pegadas do demônio meridiano e do
seu cortejo infernal” (AGAMBEN, 2007a, p.53) ou seguir as garras de Eros é, precisamente,
tornar estranho ou infamiliar o que é mais familiar.
Dar corpo aos fantasmas e “tornar predominante, em uma prática artística, aquilo que,
do contrário, não poderia ser captado nem conhecido”, é, para Agamben, a transposição da
melancolia para a criação (AGAMBEN, 2007a, p.55). Quanto ao amor, os caminhos de
Estâncias indicam que, em Filebo, de Platão, “o artista que desenha na alma as imagens das
113

coisas é a fantasia, e tais ‘ícones’ são definidos depois como ‘fantasmas’” (AGAMBEN, 2007a,
p.133). Mas o tema central do Filebo é o prazer e não o conhecimento. E se Platão vai à fantasia,
é para “demonstrar que desejo e prazer não são possíveis sem essa ‘pintura na alma’”, sem esses
fantasmas (AGAMBEN, 2007a, p.133). O prazer situa-se, portanto, sob o signo do fantasma.
Ou, como Agamben diz, “o fantasma situa-se, portanto, sob o signo do desejo” (AGAMBEN,
2007a, p.133).
Nos caminhos de Platão, a psicologia medieval também concebe o amor como um
“processo essencialmente fantasmático, que implica imaginação e memória” (AGAMBEN,
2007a, p.145). Ou seja, o amor não é compreendido fora de um caráter fantasmático. Se, com
os neoplatônicos, o amor é entendido como um espírito que fere através dos olhos, como uma
“intervenção demoníaca ou até mesmo como doença mental”, na cultura medieval, “o fantasma
emerge ao primeiro plano como origem e objeto do amor, e o lugar próprio de Eros se desloca
da visão para a fantasia” (AGAMBEN, 2007a, p.146): “o processo genético do amor é descrito,
nos termos fantasmáticos da psicologia medieval, como um dobrar-se e um volver-se, quase
como sobre um espelho, da alma em volta do fantasma ‘entendido’ na mente” (AGAMBEN,
2007a, p.182, grifos meus). O dobrar-se, o voltar-se, o volver-se da alma sobre o fantasma: eis
como os medievais entendiam o amor.
É certo que esse volver-se está na figura da fonte e de Narciso como formação da ideia
medieval de amor. A intenção erótica dessa formação não recai, como supomos recair, no amor
de si mesmo, mas no amor de uma imagem, “um ‘enamorar-se por uma sombra’” (AGAMBEN,
2007a, p.147). Assim aparece o tema da ymage na poesia amorosa, em cujo “‘figurar-se’ da
sombra, ‘na medida em que nos aflingem os desejos e os outros afetos’, não é mais que um eco
da teoria porfiriana do ‘corpo aéreo’ dos demônios, tão maleável a ponto de mudar de forma de
acordo com os seus fantasmas” (AGAMBEN, 2007a, p.176). Outro fator importante é que,
nessa concepção, o fantasma não está apartado do intelecto, mas é nele mesmo em que há a
união do indivíduo com o intelecto: “o fantasma (o pneuma fantástico), origem e objeto de
amor, é precisamente aquilo em que, como em um espelho, se efetua a união (copulatio) do
indivíduo com o intelecto” (AGAMBEN, 2007a, p.180).
Agamben chega à conclusão, pela análise da poesia medieval de Cavalcanti, em que “a
experiência do círculo pneumático vai dos olhos à fantasia, da fantasia à memória, e da memória
a todo o corpo, semelhante à fórmula neoplatônica do pneuma fantástico (AGAMBEN, 2007a,
p.178). Ou seja, “basta a aparição do fantasma na fantasia aparecer fixada na memória para que
imediatamente se forme no intelecto” (AGAMBEN, 2007a, p.179). O intelecto é possível pela
aparição do fantasma. Nos poetas de amor, amor e pneuma convergem: o objeto de amor é um
114

fantasma, um espírito, incorpóreo e exterior, e, ao mesmo tempo, um pneuma, uma substância


que corre pelo corpo, corpórea e interior (AGAMBEN, 2007a, p.182-183). Assim, Eros, como
fantasma e como pneuma erótico, como contemplação e como desejo, é a condição do
pensamento, e não o contrário.
Em Ninfas, encontramos essa mesma abordagem quando Agamben situa o amor nos
poetas estilonovistas, dizendo que o amor é a “experiência amorosa dos fantasmas com o
intelecto” (AGAMBEN, 2012b, p.60). Uma vez que “a imaginação circunscreve um espaço em
que não pensamos ainda, no qual o pensamento se torna possível somente por meio de uma
impossibilidade de pensar”, é nessa impossibilidade que os poetas de amor situam a glosa à
psicologia averroísta: “a copulatio, a cópula, dos fantasmas com o intelecto possível é uma
experiência amorosa, e o amor, antes de qualquer outra coisa, é amor de uma imago, de um
objeto de algum modo irreal, exposto, como tal, ao risco da angústia” (AGAMBEN, 2012b,
p.60). A essa angústia, lemos na nota do tratudor, Renato Ambrosio, “os poetas estilonovistas
denominam “dottanza”, que pode ser traduzida por “temor, dúvida, hesitação” (AGAMBEN,
2012b, p.60). Hesitação, dúvida, temor, são constitutivos disso que não é nem a imaginação
nem o intelecto, nem os fantasmas nem o pensamento, mas o que dá liga entre eles, a passagem,
a ponte, a cópula deles. No mesmo livro, Agamben diz que “[a] invenção da ninfa como a figura
por excelência do objeto de amor é obra de Boccaccio” (AGAMBEN, 2012b, p.55) e que, no
Tratado de Paracelso, as ninfas são denominadas como “dupla carne”: “tosca e terrena” e “sutil
e espiritual”, são criaturas consideradas “mais do que animais e menos do que humanos,
híbridos de corpo e de espírito” (AGAMBEN, 2012b, p.50). Ele diz ainda que elas são “em
tudo semelhantes ao homem e, no entanto, condenadas sem culpa a uma vida totalmente
animal” (AGAMBEN, 2012b, p.51). Fazendo referência a Dante como o poeta que denomina
o objeto de amor de “ninfa”, Agamben entende “ninfa” como um “conceito-limite”: “não
somente entre o amante e a amada, entre o sujeito e o objeto, mas também entre o indivíduo
vivente e o único intelecto (ou pensamento, ou linguagem)” (AGAMBEN, 2012b, p.56). A
ninfa, portanto, associada ao reino de Vênus e à paixão amorosa (AGAMBEN, 2012b, p.52),
além de ser o ponto-limte no qual fantasma e pensamento ou imagem e intelecto se unem, é o
que dá liga entre zoé e bíos, entre o corpo biológico e a vida histórica e política. Assim como a
ninfa é o ponto fronteirço entre humano e animal, mais que um e menos que outro, Eros, entre
dois extremos, encontra seu espaço (entre fantasma e pneuma, entre corpóreo e incorpóreo,
entre vida e morte), entre Narciso (que sucumbiu ao seu próprio amor por uma ymage) e
Pigmaleão (que amou a uma imagem sem vida) (AGAMBEN, 2007a, p.203). É assim, situado
entre extremos, que o demoníaco ou o diabólico permite o pensamento.
115

A herança que a lírica amorosa do século XIII transmitiu é o nexo “Eros – linguagem
poética”, o entrebescamen entre desejo, fantasma e poesia no topos outopos do poema”
(AGAMBEN, 2007a, p.213). Além disso, a herança não é apenas o nexo entre Eros e poesia,
mas o nexo entre Eros e pensamento. A poesia era, por assim dizer, o lugar privilegiado, a
estância do denso entrebescamen textual de fantasma, desejo e palavra, “convertendo-se ela
mesma na ‘estancia’ oferecida à gioi che mai mon fina [alegria que nunca acaba] da
experiência amorosa” (AGAMBEN, 2007a, p.14).31 Mas vimos que o intelecto, ou seja, o
pensamento, se forma pelo fantasma, haja vista a própria palavra “cogitação” sobre a qual, em
nota, lemos: “Convém esclarecer que cogitatio, na linguagem medieval, sempre se refere à
fantasia e ao seu discurso fantasmático; só com o ocaso da concepção grega e medieval do
intelecto soberano, cogitatio começa a designar a atividade intelectual” (AGAMBEN, 2007a,
p.25). Não se trata, portanto, de voltar a ênfase ao fantasma em detrimento do intelecto, mas
em ver que a atividade intelectual é necessariamente um discurso fantasmático, isto é, erótico.

Hannah Arendt também falou do daimon algumas vezes. Em A condição humana, lemos
que o princípio político da pólis era o viver junto, o compartilhamento de palavras e atos entre
aqueles que compartilhavam o espaço da pólis, isto é, homens livres. E era na pólis que tais
homens tinham distinção segundo a exibição de si mesmos em ato e palavra. (ARENDT, 2010,
p.245-246). Assim, Hannah Arendt discorre sobre a importância do agir e do falar como modos
de os homens políticos desvelarem, na pólis, quem eram, fazendo aparecer o “quem” em
contraposição a seus atributos, ao “que”. Mas ela adverte dizendo que esse desvelamento nunca
é plenamente alcançado porque as pessoas não possuem esse “quem” como dispõem de suas
qualidades, esse “quem” está sempre interditado para a própria pessoa, ninguém sabe quem
desvela quando revela a si mesmo na ação ou na palavra. A esse “quem” que aparece para os
outros, mas permanece oculto para a própria pessoa, ela assemelha ao daimon, “que acompanha
cada homem durante toda sua vida, sempre observando por detrás, por cima de seus ombros, de
sorte que só era visível para aqueles que ele encontrava” (ARENDT, 2010, p.224-225).

31
Agamben denomina de “doce jogo” esse círculo em que fantasma, desejo e palavra se entrelaçam: “Na prática
poética, entendida como significação do inspirar de amor, Narciso consegue efetivamente apropriar-se da própria
imagem e saciar o seu fol amour, em um círculo no qual o fantasma gera o desejo, o desejo se traduz em palavras,
e a palavra delimita um espaço onde se torna possível a apropriação daquilo que, do contrário, não poderia ser nem
apropriado, nem gozado” (AGAMBEN, 2007, p.212).
116

Segundo Arendt, daimon é aquele que observa pelas costas, por detrás, por cima dos ombros –
como Platão observa Sócrates em O Cartão-Postal – não sendo visível a quem o porta, sendo
somente visível ao outro, a um terceiro.
Hannah Arendt chama essa manifestação do “quem”, à semelhança do daimon grego,
de “sinalização” (ARENDT, 2010, p.227-228). Indicar, acenar, dar sinais, é completamente
diferente de uma exposição que revele o todo. É importante notar essa sutileza, pois essa ideia
implica a noção de que o velamento é parte da manifestação. Manifestar-se, pois, não é a
exposição total, mas uma indicação, uma sinalização. O daimon é aquele que dá sinais, é aquele
que acena, que indica.

A manifestação do “quem” ocorre da mesma forma que as manifestações,


notoriamente duvidosas, dos antigos oráculos, que, segundo Heráclito, “não
revelam nem escondem com palavras, apenas sinalizam”. Esse é um fator
básico da incerteza, igualmente notória, não apenas de todos os assuntos
políticos, mas de todos os assuntos que se dão diretamente entre os homens
(ARENDT, 2010, p.227-228).

Há, portanto, um fator de incerteza e de imprevisibilidade inerente à manifestação do


“quem” ou do daimon. Em nota à passagem acima, lemos:

Sócrates emprega a mesma palavra que Heráclito, semainem (“mostrar e dar


sinais”), ao referir-se à manifestação do seu daimonion (Xenofonte,
Memorabilia, i. 1. 2, 4). A crermos em Xenofonte, Sócrates comparava seu
daimonion aos oráculos, e insistia em que ambos deviam ser utilizados
somente para os assuntos humanos, em que nada é certo, e não para as
questões das artes e dos ofícios, em que tudo é previsível (ibid., 7-9)
(ARENDT, 2010, p.227-228).

Em outro texto de Agamben em A Potência do pensamento, chamado “Kommerell, ou


do gesto”, lemos uma compreensão do verso como gesto (“o verso poético é, em sua essência,
gesto” (AGAMBEN, 2015a, p.212)). Baseado no crítico alemão do século XX, Max
Kommerell, que diz que o elemento conceitual domina na prosa, enquanto a mímica domina no
verso, Agamben diz que o gesto da palavra não deve ser apenas o conteúdo do que é dito, mas
a indicação do “mutismo inerente ao próprio ser falante do homem, o fato de este morar, sem
palavras, na língua” (AGAMBEN, 2015a, p.212, grifo do autor). O gesto do verso não está
enraizado na ordem do que é falado, mas também “na outra face da linguagem”, no “mutismo
de uma língua sem palavras” que expõe este vazio como “‘o acenar e o dar sinais’”, nas palavras
de Kommerell (AGAMBEN, 2015a, p.212). Tal como o daimon se manifesta, aquele que
“mostra e dá sinais”, como vimos na citação de Arendt, o gesto do verso lido por Agamben
117

como um “dar sinais” é a incidência de um apelo, de um chamado que, dizendo, indica, exibe,
expõe, mostra, acena, sinaliza, ao mesmo tempo, no mesmo gesto, a mudez como mãos que
gesticulam na impossibilidade da voz.
Diferentemente do saber certeiro, seguro e previsível, a sinalização, como a
manifestação do daimon ou o gesto do verso, não existe sem o fator de incerteza e de
imprevisibilidade que, como lemos com Arendt, não diz respeito a uma especificidade do
político, mas abrange a todo assunto que se quer humano. Soma-se a essa análise do daimon o
inesperado, o imprevisto, a contingência que descolam a margem de segurança e abre o risco
da falta de garantia, da dúvida, da hesitação, do suspense. Revelar-se, portanto, pressupõe,
antes, um desconhecimento daquilo que será revelado: “A imprevisibilidade do resultado está
intimamente relacionada ao caráter revelador da ação e do discurso, nos quais alguém revela
seu si-mesmo sem jamais se conhecer ou ser capaz de calcular de antemão a quem revela”
(ARENDT, 2010, p.240-241). Fazer a experiência de revelar um “quem”, ou de manifestar o
daimon, ou do gesto do verso, é fazer a experiência de um desconhecimento, de um resultado
que escapa ao controle. E sua sinalização é em si mesma uma experiência, isto é, o passar pelo
limite da linguagem, fazer a experiência do limite da linguagem, que é mostrar o morar sem
palavras na língua.
A leitura cristã de Aristóteles costuma traduzir eudaimonia por “felicidade”, o que
significa dizer que é estar a favor do daimon, estar no daimon, em seu fluxo. Mas Hannah
Arendt adverte:

eudaimonia não significa felicidade nem beatitude; é intraduzível e talvez até


inexplicável. Tem a conotação de bem-aventurança, mas sem qualquer
implicação religiosa, e significa, literalmente, algo como o bem-estar do
daimon que acompanha cada homem durante toda a sua vida, que é a sua
identidade distinta, mas só aparece e visível para os outros. Portanto, ao
contrário da felicidade, que é um passageiro estado de ânimo, e da boa sorte,
que alguém pode ter em certos períodos da vida e carecer em outros, a
eudaimonia, como a própria vida, é uma duradoura condição de existência,
que não é sujeita a mudança nem é capaz de produzir mudanças (ARENDT,
2010, p.241).

Segundo Aristóteles, em quem Arendt se baseia, eudaimonia não tem a ver com o
simples viver, mas com o bem viver, e não diz respeito a um estado momentâneo e transitório
como o que o cristianismo entendeu por felicidade (ARENDT, 2010, p.241). Poderíamos dizer
então que eudaimonia é mais do que felicidade: é uma forma de vida, é uma ética. Estar a favor
do daimon é levar uma vida com base na experiência de se outrar e, além disso, de lançar seu
“quem” ao reconhecimento do outro e estar exposto à experiência do limite da linguagem. Há
118

uma relação intrínseca entre o espaço público e o daimon individual: o daimon só é visto pelo
outro que olha, o “quem” só se revela necessariamente aos olhos de um terceiro, o “quem” só
se revela se estiver lançado no público. Em Homens em tempos sombrios, Hannah Arendt atenta
para isso em um dos textos sobre Karl Jaspers, ao falar sobre a personalidade, como aquilo que
não se pode apreender nem controlar, assim como o daimon grego:

o espírito guardião que acompanha cada homem ao longo de toda sua vida,
mas está sempre olhando por sobre seu ombro, resultando que ele é mais
facilmente reconhecido por todos que encontram o homem do que por ele
mesmo. Esse daimon – que não tem nada de demoníaco em si –, esse elemento
pessoal num homem, só pode aparecer onde existe um espaço público; este é
o significado mais profundo do âmbito público, que se estende muito além do
que entendemos comumente por vida política (ARENDT, 2008, p.82).

Nesse sentido, o daimon não tem a ver com uma subjetividade nem com uma
interioridade, ele é a própria experiência de se lançar ao outro. Por isso, essa experiência só
existe em um estar-junto, em se expor ao outro, em se expor no mundo, jamais em solidão: “só
pode ser alcançada por alguém que lançou sua vida e sua pessoa na ‘aventura no âmbito público’
– quando, nesse curso, arrisca-se a revelar algo que não é ‘subjetivo’ e, por essa própria razão,
não pode reconhecer nem controlar” (ARENDT, 2008, p.82). Se, para Hannah Arendt, o
daimon pressupõe um estar-junto, se é o que só aparece junto ao outro e para o outro, em
Agamben, o daimon é uma experiência inerente à linguagem. Estar na linguagem é, pois, estar
na tensão da dualidade do signo, estar na distorção diabólica e sujeito à linguagem em seu
limite. Juliana de Moraes Monteiro, com o auxílio do estudo de Jean-Pierre Vernant, atenta para
o daimon como um significante ele mesmo trágico: a distorção demoníaca “caracteriza o modo
como na tragédia as palavras acabam por repelir os significados comunicativos, instaurando-se
na barreira resistente à significação e permitindo que o personagem tropece constantemente nas
artimanhas do significante” (MONTEIRO, 2019, p.118). Com Vernant, vemos essa distorção
demoníaca desde o coro: “O coro, no mais das vezes, hesita e oscila, lançado sucessivamente
para um sentido e para outro, às vezes formulando sem saber, com um jogo de palavras, uma
expressão de duplo sentido” (VERNANT apud MONTEIRO, 2019, p.118). Cláudio Oliveira já
teria dito que a sentença de Heráclito, “o êthos do homem é o daímon” [êthos ánthropos
daímon], “seria incompreensível, se não pudéssemos situá-la a partir do campo do trágico”
(OLIVEIRA apud MONTEIRO, 2019, p.120). O caráter do destino imprevisível e inseguro
inerente à manifestação do daimon traz em si mesmo uma tensão. Por isso, estar a favor do
daimon é estar aberto a uma vulnerabilidade que não traz apenas bem-estar, uma vez que o
119

contato com o mais estranho não se resume a felicidade, pelo contrário. A ética demoníaca é
uma ética trágica. Se há felicidade nela, é preciso haver uma compreensão de felicidade não
apartada da tensão que a faz trágica. Sendo, antes, uma ética que convoca uma passagem pelos
limites, ela é uma experiência do amor, como veremos, mas também do horror. É nesse sentido
que Agamben disse que “o encontro com Genius é terrível. Se, por um lado, é poética a vida
que se leva na tensão entre o pessoal e o impessoal, por outro é pânico o sentimento de que [...]
nos aconteça algo infinitamente maior do que nos parece ser suportável” (AGAMBEN, 2007b,
p.18).
Fazer uma experiência do daimon é fazer uma experiência da tensão trágica a que está
exposta a abertura a um fora: em Arendt, esse fora se traduz como “quem enxerga o daimon é
sempre um outro que não a pessoa mesma que está na companhia do daimon”, e como isso é a
manifestação do “quem”, cada pessoa só é conhecida não por ela mesma, mas sempre por outra.
No daimon, o sujeito do conhecimento é sempre um outro. Estar a favor do daimon é fazer a
experiência de um desconhecimento de si mesmo. Em Agamben, o daimon não se mostra ao
fora, ele é o fora, é a própria abertura, na linguagem, que se lança a todo tempo encontrando o
seu próprio limite que tanto leva à transformação como – a partir da minha visão associando o
daimon com essa leitura específica sobre o gesto do verso – ao aceno ou à sinalização do
intransponível. Em uma visão ou na outra, está em jogo um caráter de imprevisibilidade no qual
está lançado o risco de dar de cara com o mais amável e com o mais terrível. Afirmar e acolher
essa duplicidade é assumir o demoníaco como uma forma de vida, como um ethos, como uma
ética.
Em Gosto, vemos que essa ética que acolhe a tensão, a cisão, é uma ética do amor.
Agamben entende o diabólico ou o demoníaco a partir do daimon de Eros em Platão. Situado
no meio do caminho entre os sábios e os ignorantes, entre o corpo e a ciência, entre o visível e
a ideia, o daimon não só funda a filosofia, mas faz da filosofia uma experiência de amor. Se a
metafísica ocidental cindiu o conhecimento em verdade e beleza, outras figurações dessa cisão
se apresentam entre verdade e gozo, conhecimento e prazer, filosofia e poesia (a que Agamben
se dedicou em Estâncias),32 e filosofia e conhecimento, a que Agamben se dedicou em Gosto.
Nesse livro, é dito que a filosofia sempre está em uma relação de falta com o saber, enquanto o

32
Em Estâncias, Agamben diz que o conhecimento é fundado no “esquecimento de uma cisão que se produziu
desde a origem em nossa cultura e que se costuma aceitar como a realidade mais natural e que cai, por assim dizer,
por si mesmo, quando realmente é a única coisa que de fato mereceria ser interrogada. Trata-se da cisão entre
poesia e filosofia, entre palavra poética e palavra pensante, e pertence tão originalmente à nossa tradição cultural
que já no seu tempo Platão podia declará-la ‘uma velha inimizade’” (AGAMBEN, 2007a, p.12).
120

conhecimento é aquele que possui o saber. Enquanto a filosofia goza mas não sabe, o
conhecimento sabe mas não goza. A filosofia, situada no meio termo entre ciência e ignorância,
não chegando a ser conhecimento, se aproximaria então da adivinhação, tal como Eros em O
Banquete, porque ela é desprovida de saber, não tem posse do saber. O que move a filosofia é
justamente essa falta de saber ou esse saber que falta:

O que o adivinhante sabe é, precisamente, que há um saber que ele não sabe
(daí a aproximação com a manía e com o entusiasmo); e é esse saber que
Sócrates parafraseará identificando em um “não-saber” o conteúdo do próprio
saber e colocando em um daímon, isto é, em um “outro” por excelência, o
sujeito do saber que ele profere (AGAMBEN, 2017a, p.45).

O que constitui a filosofia é esse não-saber como falta propulsora e movedora do desejo.
O que leva Agamben a afirmar que há um sujeito do desejo (um philósophos), que não sabe,
mas deseja, mas não um sujeito do conhecimento (um sophós), que sabe, mas não goza. Assim,
no Banquete, ao estabelecer um nexo entre verdade e beleza, entre a ideia e a aparência, entre
o conhecimento e o belo, entre o conhecimento e o gozo, entre um sujeito do conhecimento e
um sujeito do desejo, Agamben acredita que “a teoria do Eros em Platão está voltada
precisamente a fazer com que se comuniquem esses dois sujeitos divididos” (AGAMBEN,
2017a, p.44). Eros seria aquele que conseguiu unir, na cisão, o que só exista em brutal
separação, acentuada, inclusive, por Descartes, que privilegiou o sujeito do conhecimento e
deixou de lado o sujeito do desejo. Assim, anacronicamente, apenas Eros teria movido os
amantes do saber, e não os sábios, em busca pelo conhecimento ou pela verdade,
proporcionando o entrelaçamento entre prazer e saber ou entre sabor e saber, palavras da mesma
etimologia.
Em Estâncias, Agamben falou que a intenção poética deve se voltar para o
conhecimento e o filosofar deve se voltar para a alegria (AGAMBEN, 2007a, p.13), unindo,
assim, poesia e filosofia, conhecimento e gozo. Nesse livro, são os poetas de amor que realizam
a articulação entre linguagem e gozo. Em Gosto, não é surpreendente que quem faça essa
conciliação seja Eros. Essa conciliação não significa, porém, o apagamento da fratura: Eros se
mantém exatamente em sua dimensão medial, intermediária, conciliando as duas partes,
entrelaçando-as, sem abolir a diferença entre elas (AGAMBEN, 2017a, p.23-24):

É esse saber, no qual verdade e beleza se comunicam, que, no auge da filosofia


grega, Platão tinha fixado na figura demônica de Eros; e é ainda esse saber
que, no limiar da idade moderna, tinha aparecido aos poetas do século XIII
121

como “intelecto do amor” na figura beatificante de uma Dona (Beatriz) na


qual, finalmente, a ciência goza e o prazer sabe (AGAMBEN, 2017a, p.58).

O que resultaria desse entrelaçamento seria uma coisa outra. Esse “amor do saber” e
esse “saber de amor” já não seria “nem saber do significante nem saber do significado, nem
adivinhação nem ciência, nem conhecimento nem prazer” (AGAMBEN, 2017a, p.58):

Pois somente um saber que não pertencesse mais nem ao sujeito nem ao Outro,
mas se situasse na fratura que os divide, poderia dizer ter verdadeiramente
“salvo os fenômenos” no seu puro aparecer, sem nem remetê-los ao ser e à
verdade invisível, nem abandoná-los, como significante excedente, à
adivinhação (AGAMBEN, 2017a, p.58).

Essa formulação de Agamben permite ver que esse saber outro, resultante desse
entrelaçamento que une à medida que expõe a diferença na fratura, não faz oposição entre o
“eu” e o “Outro”, mas reivindica a exposição desse hiato que se dá entre os dois, não mais
diferenciando o sujeito pela negação do sujeito como um “isso”, ou um não-sujeito, mas
afirmando a complementaridade entre o “quem” e o “que”, o “eu” e o “isso”. A esse respeito,
Agamben traz a psicanálise como aquela que, por reconhecer o inconsciente como o lugar da
economia do prazer, situa-se “no limite entre estética e economia política, entre o saber que não
se sabe [mas goza] e o prazer que não se goza [mas sabe]” (AGAMBEN, 2017a, p.54). O
filósofo aproxima a economia política do conhecimento, como ela mesma nasceu, como uma
ciência, tendo por objeto o prazer que não se goza, mas sabe, julga e mede: “ela se funda, na
realidade, não tanto no valor de uso (no prazer gozado), mas no valor de troca, isto é, naquilo
que no objeto não pode ser gozado nem apreendido: precisamente no prazer que não se tem?”
(AGAMBEN, 2017a, p.52). E vê a estética como um campo que, diferentemente do
conhecimento e, consequentemente, da ciência da economia política, tem por objeto um saber
que não se sabe, mas goza (AGAMBEN, 2017a, p.52). Assim, a psicanálise assume a posição
medial como Eros, conciliando, na fratura, saber e gozo.
Mas, ao mesmo tempo que Agamben a afirma como uma conciliadora, como Eros, entre
saber e prazer ou saber e sabor, ele discorda da oposição que a psicanálise faz entre o “eu” e o
“isso”: “o Es, um não-sujeito que ela coloca como sujeito do saber que não se sabe, é também
o sujeito de um prazer que não se goza” (AGAMBEN, 2017a, p.54). Nesse sentido, Agamben
estabelece então uma releitura da frase de Freud “Wo Es war, soll Ich werden”: para o filósofo,
o “isso” não deve dar lugar ao “eu” ou o “eu” não deve ocupar o lugar do “isso”, porque o
“isso” e o “eu” são necessariamente complementares e se entrelaçam. Enquanto a técnica e a
economia procuram preencher o abismo que se abre entre “o saber do sujeito e o saber sem
122

sujeito, entre o Eu e o Outro”, Agamben reivindica uma conciliação das duas esferas do
conhecimento e do gozo que não preencha e não oponha os dois, mas seja uma experiência
dessa desarticulação que une enquanto mantêm disjunto os dois ao mesmo tempo (AGAMBEN,
2017a, p.57).
“Um saber que não fosse nem saber do semiótico nem saber do semântico – ou que
fosse ambos ao mesmo tempo – só poderia situar-se naquela fratura entre o significante e o
significado que a semiologia, até agora, suprimiu e ocultou” (AGAMBEN, 2017a, p.57). Em
Lituraterra, Lacan já teria dito que, entre o saber e o gozo, há a letra, esse ponto irredutível,
que faz um litoral entre os dois (LACAN, 1971). Para pensar a linguagem, Agamben, assim
como Lacan, foi à linguística, a Saussure, a Benveniste, a referências em comum, e toda a
reflexão sobre o significante e o significado permeiam as linhas teóricas dos dois, havendo uma
interlocução no modo como pensam a linguagem e uma interseção das duas linhas de
pensamento, a de Agamben e a de Lacan, mesmo que eles não se refiram um a outro
diretamente, apesar de Agamben ter feito algumas menções a Lacan e, sobretudo em Estâncias,
à psicanálise. Por reivindicar um saber outro que se situa na fratura, entendo que o demoníaco
ou o diabólico não seria sinônimo de simbólico, como leu Gabriel Pinezi, ao fazer uma
aproximação entre o daimon em Agamben e o simbólico na psicanálise (PINEZI, 2017). Pinezi
usa diabólico como sinônimo de simbólico (“o caráter simbólico/diabólico da palavra,
entendido por Agamben a partir dos conceitos de daímon e Eros em Platão” (PINEZI, 2017,
p.85)), entendendo o diabólico como aquilo que reivindica a decifração do enigma como a
esfinge:

Ao tratar do conceito platônico de amor como uma das primeiras reflexões


sobre a dupla dimensão “semiótica” e “semântica” do discurso, Agamben fala
em Gosto de uma proximidade entre os sujeitos concebidos pela psicanálise e
pela filosofia, que reconhecem um “não saber” inerente a todo discurso, um
mistério a ser decifrado em cada signo, justamente por conta do caráter erótico
do movimento subjetivo que conduz à decifração (PINEZI, 2007, p.93-94).

É certo que, em Estâncias, Agamben disse que “o simbólico, o ato de reconhecimento


que reúne o que está dividido, é também o diabólico, que continuamente transgride e denuncia
a verdade deste conhecimento” (AGAMBEN, 2007a, p.219), mas porque, para Agamben, o
signo (na dualidade da linguística, como signo e significado) e a fala (na acepção psicanalítica,
entre significante e significante) são, em si, experiência de uma cisão. Falar é, sempre e a cada
vez que se fala, experimentar aquilo que escapa à linguagem articulada, de modo que falar não
é sair do real, é fazer a experiência do real, do que permanece inacessível a cada vez que se diz.
123

Todavia, a saída de Agamben da dicotomia não significa que o diabólico seja a experiência do
sentido como o simbólico. No meu entendimento, o diabólico não reivindica a decifração, ele
se mantém como indecifrável. A minha leitura do que Agamben pleiteia não é a interpretação
e a atribuição de significados como um enigma que deve ser decifrado, mas a experiência
radical da fratura.
Em outras palavras, pensemos na experiência de uma análise: a análise seria um
tratamento do real, fazendo uso do simbólico e do imaginário, em que a entrada no simbólico,
a possibilidade de simbolização, de elaboração, de articulação, de interpretação, também chega
a um limite. Quando nos deparamos com o entrave à significação, quando o sentido não se faz
mais, temos de nos ver às voltas diante do que não está passível de decifração. Na
impossibilidade de dar um sentido, somos levados a fazer um uso disso, a tentar fazer disso
outra coisa, como quem inventa uma língua que nunca existiu, como quem escreve, por
exemplo, um poema. Talvez, o que Lacan chame de saber-fazer, Agamben, a partir de
Aristóteles, chame de uso. Voltaremos a isso.
Talvez tenhamos nos aproximado um pouco do que vem estando em jogo ao longo desse
ponto de irredutibilidade que também apareceu na leitura que fiz dos “Envios” de Derrida: o
envio da cisão é, antes de tudo, a convocação para que se faça uso dessa cisão, para que seja
transformada em outra coisa. Talvez eu tenha caído na trapaça de Derrida ao ter tentado decifrar
Che cos’`e la poesia? quando o que estava em jogo era a perpetuação do poema, do diálogo, da
conversa, do texto, da escrita, fazendo disso, e com isso, outra coisa. Em Agamben, a lida com
a fratura não é diferente. Menos do que reivindicar um sentido, a ferida é lançada como modo
de que se faça dela sempre outra coisa. Assim como em uma análise somos impelidos a fazer
uma experiência diabólica quando não há decifração, mas uma nova cifra, a proposição
agambeniana nos convoca a fazer uma experiência radical do que para a travessia pelo meio,
desse meio do caminho, dessa interrupção. Sua filosofia convoca a uma experiência da cisão,
da fratura, do corte, da desarticulação, da disjunção, não com o objetivo de que algo se articule,
pelo contrário, a demora na cisão que impede toda articulação se constitui como uma ética em
seu pensamento. Fazer uma experiência da cisão é levá-la ao limite, é se demorar nela como
uma passagem até o limite, é fazer uma exposição radical do lapso, do gap, do limiar não
transposto, do desencaixe mesmo, permanecendo nele, não o transpondo. Ao contrário de
Pinezi, eu diria que há um entrelaçamento entre o simbólico e o real, não havendo o
prevalecimento do primeiro, já que não podemos esquecer que, se dizer, para Agamben, é fazer
a experiência do não-dito, a ênfase de seu pensamento não cai no dito ou no sentido, mas na
resistência irredutível que o não-dito deixa no dito, no que se torna irredutível ao sentido e,
124

sobretudo, ao uso que podemos fazer disso. E o uso é inteiramente oposto do útil: enquanto o
útil serve para algum fim, o uso não serve para nada. Tal como o gozo. Ele se sustenta enquanto
meio. Aqui, volto ao que disse no início desse texto quando foi feita a associação entre poesia,
jogo e gozo. Operar com os estragos, fazer uso dos fracassos, das falhas, dos desencaixes, eis o
que permite fazer continuar acontecendo, sem um fim. Nisso consiste o gozo. No mais, acredito
que levar essa cisão até o limite é pleitear não a formação do inconsciente, mas o uso do
inconsciente, não a metáfora, mas a letra, não o simbólico, mas o efeito de real, provocando
não o sentido, mas um hiato, uma lacuna, uma cesura, enviando, incessantemente, a fratura, a
ferida, a cinza, o resto que sobra da contagem econômica de Derrida, transformando-a, sempre,
em outra coisa, fazendo algo com ela – se possível, gozando – para que não se sucumba a ela.
Certamente precisamos de palavras para enviar a fratura, mas o que se envia com elas é menos
o curativo e mais o gesto de cuidar. O gesto que ainda toca a ferida. Um gesto, se falamos com
O Cartão-Postal, com Feu la cendre e com Che cos’è la poesia?, de amor.

No decurso de um processo histórico que tem em Petrarca e em Mallarmé as


suas etapas emblemáticas, [a] tensão textual essencial da poesia romançal
deslocará o seu centro do desejo para o luto, e Eros cederá a Thánatos seu
impossível objeto de amor, para o recuperar, através de uma estratégia fúnebre
e sutil, como objeto perdido, enquanto o poema se torna o lugar de uma
ausência que, no entanto, extrai desta ausência a sua específica autoridade
(AGAMBEN, 2007a, p.213).

Após ter discorrido sobre o entrelaçamento que os trovadores fizeram entre desejo,
poesia e fantasma, Agamben diagnostica, a partir da menção a Petrarca e a Mallarmé, o
deslocamento de Eros para Tânatos. Dizer que o poema “extrai desta ausência a sua específica
autoridade” é dizer que o próprio do poema se torna o luto e não a alegria do amor. Embora
reconhecendo o diagnóstico de Agamben e reconhecendo nele, acima de tudo, uma proposição
ética, acredito, porém, que o poema se mantém como gozo, como joi d’amor, como alegria que
nunca acaba, não por ser somente alegria de amor, mas por ser também e, ao mesmo tempo,
luto. Inclusive, é nesse entrelaçamento, entre festa e cortejo, alegria e luto, que o poema se faz
como gozo [juissance]. O esforço desse texto é mostrar como o poema ainda é estância de amor
e de luto. Mais, ainda: é mostrar como o poema enquanto estância de amor é estância de luto.
E aqui compartilho algo que a citação de Agamben me fez lembrar. Há um filme de
Jean-Marie Straub e Danièle Huille chamado Toute Révolution Est Un Coup De Dés, frase do
125

historiador Jules Michelet.33 Gravado em 1976 nos jardins do cemitério Père Lachaise, em
Paris, sobre os restos mortais dos participantes da Comuna de 1871, foi dedicado aos mortos da
Comuna de Paris. O filme apresenta um grupo de nove pessoas sentadas no gramado do
cemitério, recitando integralmente o poema. Em uma rígida intercalação de vozes, cada ator-
orador denota uma das manipulações tipográficas propostas por Mallarmé na publicação de seu
poema. O corte nesse filme é o abismo da página em branco. A leitura do poema, ou seja, a
maneira como os versos foram encadeados no filme, é apenas uma das possibilidades abertas
por Mallarmé. Assistimos a uma transcriação, primeiro, com Michelet, depois, com a tradução
das possibilidades do literário para o cinema, dando um novo uso ao literário, no caso, um uso
explicitamente político. Esse gesto de transcriação, como a palavra diz, é uma outra criação,
criando um novo uso a partir de algo já criado. Nessa transcriação, a palavra revolução vem
íntima ao poema-constelação e íntima à palavra verso. O espaço físico que preenche as imagens
também é um espaço de memória e de história. Assim como os Straub, Mallarmé também
escreveu à memória de alguém que não mais vivia: seu filho, Anatole. O poema enigmático de
Mallarmé não revela, ele é um gesto de velar, é um luto. Nesse poema que não é uma narrativa,
tem-se, na dedicatória, nisso que é para um outro, nisso que é um envio, um duplo gesto: um
registro (regestus: trazer de volta o gesto, duas vezes o gesto: recordar). A transcriação do filme
também é um gesto de luto. Um lance de dados como um modo de lidar com a morte de um
ente amado e, o filme, fazendo novo uso do poema e potencializando a abertura de seus
significados, de seus não-ditos, recria o poema como um modo de lidar com uma morte coletiva.
Se o verso é uma inscrição que revela à medida que mantém velado, também podemos pensar
o verso como um luto, como aquilo que vela. Um lance não é senão o encontro marcado com
fantasmas, um lance de amor e de morte.

– Mas o poema do qual você fala, você divaga, nunca foi nomeado assim, nem
tão arbitrariamente.
– Você acaba de dizê-lo. Coisa que seria preciso demonstrar. Lembre-se da
questão: "O que é...?" (ti esti; tias ist..., istoria, episteme, phzlosophzá). "O
que é...?" chora o desaparecimento do poema – uma outra catástrofe.
Anunciando o que é tal como é, uma questão saúda o nascimento da prosa
(DERRIDA, 2001a, p.116).

33
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3rhb71VBrdI&t=8s Acesso em 19/06/2019.
126

Eis como termina Che cos’è la poesia?. Vemos travessões, temos um diálogo. Em
Carneiros, a respeito da interrupção do diálogo com Gadamer como uma abertura ao diálogo,
diálogo que passa a ser intermediado pelo poema de Celan, derrida diz: “o que faz por exemplo
do poema (Gedicht) a ordem dada e o ditado de um ditame é também o apelo à resposta
responsável e ao diálogo (Gespräch)” (DERRIDA, 2008, p.13). O poema como um ditado é,
portanto, um apelo a uma resposta e ao diálogo. Duas falas: eis como termina o texto de quatro
páginas em que um filósofo responde à pergunta Che cos’è la poesia?, “O que é a poesia?”,
“Que coisa é a poesia?”. Em duas palavras: há poema. Em duas palavras: um animal. Ou, ainda:
de cor. Duas falas, duas palavras, muitos parágrafos, muitas voltas, quatro páginas. Muitas
elipses, muitas contrições: em duas falas, quatro páginas. No dobro, muitas dobras. No texto, a
rasura da poesia e a escrita do poema, a rasura da ontologia e a escrita da coisa, a rasura do ser
e a escrita do animal. Nessas duas falas do diálogo explicitado, não sabemos de quem são as
vozes, mas suponho que a primeira é de quem lançou a pergunta e, a segunda, de Derrida.
Seguindo essa suposição, chegando ao fim da longa resposta, o remetente indica que tudo o que
foi falado não passou de uma divagação arbitrária sobre o poema. E aquele que supostamente
seria o filósofo, responde que isso seria exatamente o poema. Não há como dizer “o que é” o
poema porque o poema é um acontecimento enquanto uma singularidade que se dá a cada vez
que um poema é escrito. E agora, uma provocação: a pergunta “o que é?”, tão típica da filosofia,
tão ontológica, é, ela mesma, uma catástrofe: nela, o poema desaparece, e o que nasce é a prosa.
Não há como responder ao “o que é?” se não for articulando, se não for estabelecendo ligação,
cópula, casamento, sentido, que talvez só a prosa permita. Poderíamos pensar que o que nasceria
da pergunta “o que é?” seria o conceito. Nesse caso, enquanto o conceito corresponderia ao ser,
ao “é”, ao que faz um, ao que articula, ao casamento, à cópula, do outro lado do conceito
teríamos a literatura, que corresponderia ao não-ser, ao “não é”, que não liga, não casa. Se o
conceito seria a cópula, a literatura seria o gozo. Mas aqui os termos são prosa e poesia: no
lugar do conceito, leia-se prosa, no lugar da literatura, leia-se poesia. Ora, mas se a resposta de
Derrida, enquanto prosa, pode ser lida como um poema, o que temos não é nem um nem outro,
mas os dois, prosa e poema, conceito e literatura, filosofia e poesia.
Pensemos o texto pelo reflexo das falas finais. Ora, a morte do poema saúda o
nascimento da prosa. Não me parece uma catástrofe. Ou melhor, é uma catástrofe, mas cuja
reviravolta se apresenta em duas voltas: chorar a morte do poema é velar o poema, é a imagem
do luto que Derrida trouxe fortemente no início do texto e que perpassou toda sua resposta. Não
se chora a morte senão com lágrimas, isso que cai e que já é um endereçamento enquanto um
transbordamento do corpo. A pergunta “O que é?”, portanto, não existe apartada do poema,
127

existe como luto do poema, o poema é a condição de sua possibilidade. A prosa nasce como
luto do poema, como endereçamento, transbordamento, trabalho de luto e celebração. Um é
uma ramificação do outro, um desdobramento, uma transformação. Não há a compreensão nem
de um nem de outro em uma autonomia, mas em um cruzamento, em um entrelaçamento: um
é o choro pelo outro. A prosa, como lágrimas, como endereçamento, não é mais que uma
continuidade daquilo que é o poema, um envio. É apenas o outro lado do poema. Não há um
sem o outro, mas também não há um casamento não conflituoso, há uma relação tensa, trágica.
O que os relaciona é trabalho de luto e celebração, nascimento e morte. Choro e celebração são
as duas faces da mesma moeda, assim como a fotografia da festa em luto, assim como o cortejo.
Há uma relação de amor entre eles, mas de um amor que não existe sem corte, sem desencaixe,
sem catástrofe. Ora, a resposta de Derrida à pergunta que lhe foi feita não foi senão em prosa.
Em prosa que se contradiz a cada movimento de um fio prestes a partir e tensionado, rasurando-
se como prosa à medida que aponta para verso, para estrofe, com suas infinitas voltas. Entre
prosa, poema, fabulação, divagação, diálogo e outros nomes, essa resposta de Derrida é ao
mesmo tempo uma resposta e a impossibilidade da resposta, é um poema que se faz enquanto
não-chegada da resposta, é uma resposta que se faz enquanto não-chegada de um poema, na
chegada disso que está entre diálogo, divagação, delírio, fabulação... Nesse sentido, uma das
coisas mais interessantes de notar é que o texto termina como o gênero fundante da filosofia, o
diálogo, o diálogo explícito textualmente. E o que se performa nesse diálogo é a rasura do
gênero fundante da filosofia, é a rasura da pergunta que impulsiona a filosofia, é a rasura da
filosofia, é a rasura da pergunta que lhe foi feita. Vemos então que o texto inteiro é essa rasura.
Se, pelo diálogo, o texto não passou de uma divagação e o filósofo não respondeu à pergunta
filosófica que lhe foi feita, podemos intuir que o filósofo não escreveu uma resposta, mas um
poema. Ao mesmo tempo, terminando de modo tipicamente filosófico, como um diálogo
platônico, parecendo condizer finalmente à pergunta filosófica feita a um filósofo, esse modo
tipicamente filosófico não é apenas uma rasura a ele mesmo e à filosofia, mas também uma
rasura ao poema, indicando a prosa. Che cos’è la poesia? termina, então, com um diálogo,
acenando para a prosa. “Ideia da prosa”, um texto de Agamben, não fala senão de poesia, e
termina fazendo alusão aos diálogos de Platão. Um nome? Um lance. Ou, talvez, um flerte. Ou,
talvez, relação amorosa do outro lado. E não é entre júbilo e horror, ritual fúnebre e celebração,
que jaz a relação amorosa do outro lado? Assim, nessa voz média: relação amorosa do outro
lado (genitivo subjetivo e genitivo objetivo).
128

1.3. Entre o cavalgamento e a catástrofe: o lance do amor, do verso, da história –


enjambement e cesura

“Ideia da Prosa” aborda a poesia. Em “Ideia da prosa”, temos o verso. “Ideia da prosa”
aborda o verso e termina com filosofia, com Platão, que defende “o meio termo entre as duas”
(AGAMBEN, 1999, p.33). “Ideia da Prosa” fala de verso e é um encontro entre filosofia e
poesia. “Ideia da Prosa” leva a crer que a ideia da prosa é o seu verso, o poema, e que a ideia
do verso é a prosa, não um se identificando no outro, mas um reivindicando o outro, como em
uma escrita bustrofédica. O verso reivindica a prosa e, a prosa, o verso. Há uma inclinação de
cada um para o que seria, em relação a cada um, o seu verso, o inverso. O que se dá nesse “meio
termo entre” é um encontro, um flerte, um enamoramento, mas não um casamento. Ou melhor,
não uma unidade, mas um encontro, um encontro tensionado entre duas singularidades. O verso
deseja a prosa e a prosa deseja o verso, um se lança para o outro, mas esse desejo só se mantém
na impossibilidade de um se realizar no outro. Esse desejo só é possível porque a comunhão é
impossível.
Em “Ideia da Prosa”, Agamben diz que o verso “esboça uma figura de prosa”, na tradução
para o portugês de João Barrento (AGAMBEN, 1999, p.32), ou, na tradução para o espanhol,
de Laura Silvani, “esboça um passo de prosa” [esboza un paso de prosa] (AGAMBEN, 1989,
p.23). Em seu idioma, no italiano, Agamben diz “accenna un passo di prosa” (AGAMBEN,
1985, p.23). Mais em sintonia com essa está a tradução para o espanhol do que para o português,
já que a palavra que Agamben usa é passo, passo, e não, como Barrento traduziu, “figura”.
Então, “esboçar um passo de prosa” não significa que o verso dá um passo de prosa ou realiza
a prosa, lançando-se em uma continuidade. Apenas fazendo menção a ela, apenas apontando
para ela, apenas acenando para ela, apenas esboçada, a prosa é preservada em sua potência na
interrupção do verso, que já se lança em um novo salto, retornando como verso em seu
movimento de lançar-se no abismo que, acenando um passo de prosa, não realiza este passo: ao
contrário, mantém o impasse.
Para Agamben, o enjambement é aquilo que, estruturalmente, não é possível na prosa. É
o aceno de uma ideia de prosa, de uma potência de prosa, mas não realiza a prosa. Para haver
enjambement é preciso haver quebra na oração, desencaixe, desarticulação. Um trecho do
pequeno texto de Agamben, O cinema de Guy Debord, em que o filósofo lê o cinema desse
último tal como um poema, pelo princípio do enjambement, ajuda a esclarecer a especificidade
do enjambement, convocando a voz de Valéry ao definir o poema pela “hesitação”. Diz
Agamben:
129

A única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os enjambements
e as cesuras. O poeta pode opor um limite sonoro, métrico, a um limite
sintático. Não se trata apenas de uma pausa, mas de uma não-coincidência,
uma disjunção entre o som e o sentido. Por isso Valéry pôde uma vez dar ao
poema esta definição tão bela: “O poema, uma hesitação prolongada entre o
som e o sentido” (AGAMBEN, 1995, s/p).

Em uma entrevista de agosto de 2018 ao blog argentino da editora Eterna Cadencia, Anne
Carson, traduzida por Valeria Tentoni e Martín Armada, disse: “Si la prosa es una casa, la
poesía es alguien en llamas corriendo a través de ella”.34 Se a prosa é uma casa, a poesia não
é nem mesmo uma casa em chamas, mas alguém, alguém em chamas correndo pela casa. De
cara, Carson nos apresenta a poesia como um acidente. Não há melhor metáfora que vai ao
encontro do modo como estamos compreendendo a poesia e a prosa. Parece-me semelhante a
definição da ensaísta e poeta canadense com a concepção de Agamben que veremos a seguir. É
interessante notar que casa e pessoa não estão apartadas: alguém corre em chamas pela casa,
mas nada indica que se está fora da casa, o que só intensifica a tensão. Creio que Agamben diria
que essa pessoa que corre queimando é o enjambement, aquilo que estruturalmente existe no
verso e não na prosa, mas faz com que a identidade do verso seja transgredida na medida em
que acena para a prosa.
Enquanto a continuidade do verso na prosa apagaria a tensão, selando a unidade do
sentido na prosa, realizando aquilo que o filósofo chamou de um “ponto de coincidência” ou
uma “boda mística do som e do sentido” (AGAMBEN, 2014a, p.184), com o enjambement, é
como se “a poesia vivesse, pelo contrário, da sua íntima discórdia” (AGAMBEN, 1999, p.32).
“O enjambement exibe uma não-coincidência e uma desconexão entre o elemento métrico e o
elemento sintático” (AGAMBEN, 1999, p.32), exibe uma desarticulação, um desencaixe.
Porque hesita, o verso, como um lance, é aquilo que conta com o imprevisto, com a não garantia,
com a surpresa, com o seu próprio fracasso, como um pavio aceso, um pavio que queima,
porém, sem se consumir.
Agamben diz que o verso tem um gesto versátil, que ele “accenna un passo di prosa col
gesto medesimo che attesta la propria versatilità” (AGAMBEN, 1985, p.23). Isto é, o verso
esboça um passo de prosa com o mesmo gesto que atesta a sua versatilidade, com um gesto que
não se completa em ato, apenas esboça uma potência, um quase (AGAMBEN, 1999, p.32).
Nesse quase, nesse gesto versátil de apontar para o que ficou fora de si, para o seu outro, a

34
Disponível em eternacadencia.com.ar/blog/contenidos-originales/entrevistas/item/na/ne-carson-si-la-prosa-es-
una-casa-lapoesia-es-alguien-en-llamas-corriendo-a-traves-de-ella.html Acesso em 28/06/2019.
130

prosa, ele transgride sua identidade. Poderíamos dizer: o verso é aquilo que não se sustenta. O
gesto do verso, versátil, só tem a sua identidade naquilo que a transgride: “no mergulho de
cabeça sobre o abismo do sentido, sua unidade sonora é rompida, e, também, sua identidade”
(AGAMBEN, 1999, p.32). No corte, o verso se lança e é “irresistivelmente atraído para lançar
a ponte para o que ele rejeitou fora de si”, que, para Agamben, seria a prosa (AGAMBEN, 1999,
p.32). O verso, então, no gesto em que se lança, atinge o fora de si, ou o seu outro. Essa
versatilidade é atribuída ao gesto do verso de ser isso que sempre se volta para, de ser isso que,
ao se voltar para, ao se dobrar sobre si, traz junto a si, gesta, porta sobre si, gere, sempre um
outro, o verso, o inverso, o outro lado. Desse modo temos, ao mesmo tempo, no movimento do
gesto, o indigesto. No verso, o amor, no verso, o horror.
Podemos ler o verso na hesitação daquilo que se volta para frente, mas incessantemente
retornando para o seu desastre, sua queda, sua quebra, sua disjunção, seu desencaixe, para o seu
impasse, como “uma coisa que se expõe permanecendo, porém, murada”, como disse Agamben
a respeito da “Ideia do amor” (AGAMBEN, 1999, p.51). Há, também aí, uma enunciação em
comum quando o filósofo diz da “Ideia da Prosa” e da “Ideia do amor”. É na distância e com a
distância que o amor pode surgir. Não à toa, Walter Benjamin disse, em tradução de Jeanne-
Marie Gagnebin no ensaio “A questão do ‘Eros’ na obra de Benjamin”: “[a] vida de eros se
acende graças ao longínquo” (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 2008, p.40). Diferentemente de
“distância” [Distanz], “longínquo” [Ferne] em alemão implica uma inapreensibilidade, uma
impossibilidade de apropriação, uma distância inultrapassável, como especifica Gagnebin:
“Posso me aproximar de um objeto distante que desejo possuir, mas não posso apropriar-me do
fern porque o longínquo, no seu essencial afastamento, ultrapassa o quadro de ações
teleológicas: trata-se de uma distância que a ação instrumental do sujeito não consegue abolir”
(GAGNEBIN, 2008, p.40). Eros é um intermediário porque possui asas porque se nutre do
longínquo. Só há amor enquanto mediação se há um jogo entre aproximação e distanciamento.
Não há Eros se não há dialética entre proximidade e distância, ou entre o próximo e o longínquo.
Nessa dialética, Eros é impossível de ser possuído. Gagnebin reforça ainda a ideia de que o
desejo, tal como Eros, se nutre da liberdade do outro em oposição às possibilidades de tomada
de posse do eu. Nesse jogo entre aproximações e distanciamentos em que a despossessão é
força-motriz do desejo e não as propriedades do eu, só há erotismo se há ocultamento,
velamento. Para haver amor é preciso haver uma mínima brecha, uma barra, uma fronteira que
expõe à medida que interdita, entredita. Por isso, o ser que ama se dá no entredito, por isso ele
se vê ditado, entreditado, dito nas quebras, nos cortes, nos estragos da linha.
131

Freud já teria anunciado que o nosso modo mais primário de se mover com a ausência
é um jogo que separa ao mesmo tempo que une, é um jogo em que se joga com o distanciamento.
Ele percebeu que o jogo do carretel ou o jogo do Fort/Da, como o modo de a criança lidar com
a ausência da mãe, no gesto de estender a mão e lançar o brinquedo, no gesto de jogar o carretel
que se ocultava, desaparecendo por um instante da vista, até voltar a aparecer, nesse jogo de
fazer desaparecer e aparecer, nesse gesto de velar e revelar e velar de novo, nesse jogo de brincar
com a distância como um modo de lidar com ela, ele percebeu que esse movimento era um
modo de gozar. Não à toa, ele discorre sobre isso em Além do princípio do prazer, ou seja,
como um movimento de fazer frente aos ditames da pulsão de morte. Jogar com a falta, com a
ausência e com a iminência da perda é, antes de tudo, um jogo lúdico e erótico. É ao fazer da
falta, da perda, da ausência, um jogo, que o poema vela e goza.
O gesto do verso, nessa compreensão que estamos vendo, me faz lembrar do anjo história,
da nona tese Sobre o conceito de história, de Benjamin, cujo corpo é impelido para frente, com
os olhos, porém, presos à catástrofe que se acumula atrás:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que


parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter
esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma
cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1987, p.222-232).

Situado entre o passado e futuro, impelido para frente, “vira as costas”, porém, para isso
que se apresenta à frente (BENJAMIN, 1987, p.226). O anjo da história é um gesto em torção,
um corpo torcido, instaurado no impasse. É nesse impasse e nessa torção que ele é o anjo da
história. Ele não salva o futuro, ele é arrastado, sem escolha, pela tempestade do futuro que
chega a galope, ao mesmo tempo em que encara fixamente o que está às suas costas: que não é
uma “cadeia de acontecimentos”, uma série, mas, ao contrário do que vemos, uma “catástrofe
única”, irredutível (BENJAMIN, 1987, p.226). Penso o gesto do verso como o gesto do anjo da
história, esse que também está inclinado para o que está às suas costas, para a catástrofe. É aqui,
pois, que leio o verso como aquilo que, neste gesto em torção, também se volta para o horror,
para a barbárie, para a catástrofe, para a História.
132

No ensaio Vida Precária, Butler se debruça sobre a noção de “rosto”, introduzida por
Emmanuel Levinas, refletindo sobre demandas morais e traçando o que ela chama de “possíveis
éticas judaicas de não violência” diante de configurações de violência atuais (BUTLER, 2011,
p.4). Para Butler, o “rosto” daquilo que Levinas chama de “Outro” impõe uma questão ética.
Um momento da passagem de Levinas citada por Butler diz: “rosto é o outro que me pede para
que não o deixe morrer só, como se o deixar seria se tornar cúmplice de sua morte. Portanto, o
rosto diz a mim: não matarás” (LEVINAS apud BUTLER, 2011, p.4). Analisando o longo
trecho em que o rosto exprime esse mandamento, Butler traz uma outra passagem em que
Levinas se remete ao texto Life and fate, de Vassili Grossman. Ao dizer sobre esse texto,
pensando o rosto, Levinas não se concentra senão nas costas.

A história... das famílias, esposas e pais de detentos políticos viajando para


Lubianka, em Moscou, para as últimas notícias. Uma linha se forma frente a
um guichê, uma linha na qual apenas se pode ver as costas do outro. Uma
mulher espera por sua vez: [Ela] nunca imaginou que as costas humanas
poderiam ser tão expressivas e que poderiam exprimir estados mentais de
forma tão penetrante. À medida que se aproximavam do guichê, as pessoas
tinham uma maneira peculiar de estender a cabeça e as costas, seus ombros
levantados com as omoplatas movendo-se para cima e para baixo em tensão,
os quais pareciam chorar, soluçar e gritar (LEVINAS apud BUTLER, 2011,
p.6).

Vemos então que o rosto não se reduz ao rosto. O rosto é encontrado ao olhar as costas.
Butler diz:

Aqui o termo “rosto” opera como uma catacrese: “rosto” descreve as costas
humanas, o movimento do pescoço, a tensão das omoplatas. E dessas partes
do corpo diz-se – por sua vez – que choram, que soluçam, que berram, como
se fossem um rosto ou, então, um rosto com boca, garganta ou, de fato, apenas
uma boca e garganta do qual vocalizações emergem e que não tomam estado
de palavras (BUTLER, 2011, p.6).

Encontramos o rosto no dorso, o rosto é representado pelas costas que nos levam a um
limite do dizível, uma vez que o sofrimento vem pela especulação da leitura dos gestos
tensionados do corpo. Aproxima-se do rosto não diretamente, mas aproximadamente, nem por
ele, mas por deslocamentos por outras partes do corpo que são vistas pelo olho que olha as
costas. O mandamento, a ordem ou o imperativo (“não matarás”) não vem pela frente nem pelo
dito assertivo, mas pelo indizível do qual um olhar se aproxima ao se demorar nas costas de
pessoas marcadas pelo sofrimento. Se o rosto é central na compreensão de ética de Levinas,
como discorre Butler, a centralidade de sua importância não vem senão pelo que está do outro
133

lado, do dorso, das costas. Essa é uma ética que começa, sobretudo, com o movimento de olhar
as costas, as costas tensionadas do outro em sofrimento, e de encontrar, em cada gesto
tensionado, um rosto cuja forma traz um som que desafia a linguagem. Olhar para as costas é
fitar a catástrofe.

Se Mallarmé definiu Um lance de dados como “subdivisões prismáticas da ideia”


(MALLARMÉ, 1974, p.151), se Haroldo de Campos leu Um lance de dados como um “poema-
constelação” (CAMPOS in MALLARMÉ, 1974, p.187-192), se o texto que visitamos de
Agamben se chama “Ideia da prosa” (1999), há uma elucidação sobre essa palavra platônica,
“ideia”, que é interessante trazer. O percurso que estamos fazendo, ir ao encontro de dois
extremos, é escutar a ressonância de uma frase de Walter Benjamin em Origem do drama
barroco alemão: “A ideia pode ser descrita como a configuração em que o extremo se encontra
com o extremo” (BENJAMIN, 1984, p.57). O encontro entre dois extremos, eis o que pode
descrever a ideia em Benjamin.
Se pensarmos em Platão, poderíamos ler a ideia como o inacessível, como aquilo que
existe como potência, mas que não é possível apreender. Não à toa, Mallarmé trouxe a ideia à
definição de seu poema: não como o lugar platônico onde se enxerga a luz, onde a verdade se
revela, mas como o escuro onde se vela. O branco da página de Um lance de dados é o escuro
do céu e, as palavras, são as estrelas, os estilhaços, restos refratados de luz, polifonia multicolor
de vozes pelas brechas. A ideia não é o que as letras revelam, porque elas não revelam: elas
velam mais, obscurecem mais, ocultam mais, atuando em conjunto com o branco também
enigmático. O branco da página atua em conjunto com as palavras, estilhaços caleidoscópicos,
potencializando o enigma dessa linguagem contaminada, diagramada como a trivialidade de
um jornal, de nove tipografias, nove entonações e nove vozes. Em uma experimentação formal
que escande o verso e perturba a totalidade da forma, o poema coloca em questão o acabamento
como identidade da obra total e propõe o inacabamento como a dificuldade que faz a forma, ou
seja, a forma está em relação não com uma identidade, mas com o que a coloca em crise.
Estruturado em uma topologia que rompe com a organização linear dos sentidos, o poema exige
um olhar simultâneo em oposição ao olhar linear. O simultaneismo visual e sonoro encena o
lance: a cada lance, o sentido criado se faz e se dissipa. Cheio de torsões (como diz o verso
“torsão de sereia”, lembrando aqui que sereia é esse elemento mítico, presente na Odisseia, que
simboliza também o perigo, o acaso, o canto irresistível que confunde os sentidos – no caso de
134

Kafka, o silêncio terrível, esse elemento híbrido, andrógino, indefinido, enigmático), cheio de
voltas, dando voltas no pensamento. O poeta termina dizendo: “Todo Pensamento emite um
Lance de Dados” (MALLARMÉ, 1974, p.173). Eis o que movimento que constitui poema e
pensamento: um lance.
O que está em jogo é um deslocamento incessante, próprio da irregularidade dos
sistemas caóticos, como o acaso em que estão implicados, ao mesmo tempo, a sorte e o azar.
Nesse lugar – de não entendimento, de rumor, de acaso –, tudo pode ser equívoco e
contingência, qualquer junção é uma hipótese: “[a] procura do absoluto, fadada por definição à
falência, entrevê um êxito possível na conquista relativa sancionada por um talvez”, como diz
Haroldo de Campos (CAMPOS in MALLARMÉ, 1974, p.190). Instaurando a cada lance um
“talvez”, um “como se”, o poema joga com a potencialidade, com aquilo que não está dado,
não está dito, não está visível, mas está na constelação de possibilidades que continua trazendo
sua latência pelo efeito dispersivo dos versos. Assumindo-se como hipóteses, as conexões feitas
serão sempre enigmas. Se em Origem do drama barroco alemão lemos também que “[a]s ideias
se relacionam com os fenômenos como as constelações se relacionam com as estrelas”
(BENJAMIN, 1984, p.56, grifo meu), ou seja, se o branco da página se relaciona com as
palavras, vale lembrar que a palavra, aqui, como as estrelas, é isso que já morreu há muito
tempo, a que a nós só chega o brilho. Vemos, no escuro, aquilo que não está mais lá; vemos, no
escuro, aquilo que já morreu. As palavras são restos, ruínas, vestígios do que não está mais,
presença de uma ausência.
Outro modo como podemos chamar essa composição em que cada conexão feita pode
criar uma constelação relativamente independente, sem perder a relação com o todo, é
“mônada” – não iremos nos ater sobre isso aqui, pois meu interesse é traçar, superficialmente,
alguns modos de compreensão da “ideia” como isso que permite o encontro de extremos,
encontro que permite atingirmos a origem, no sentido benjaminiano, que não é a ida a um
passado primeiro, à gênese, mas um salto interruptivo, o desencaixe, a disjunção, a irrupção no
tempo, sobre a qual falaremos mais adiante. Tal como foi analisada a obra de Baudelaire por
Walter Benjamin, a fim de compreender a modernidade, a mônada pode ser vista tanto como
parte que contém a totalidade, como também pode ser entendida em sua unidade primordial que
apresenta a sua própria possibilidade de interpretação:

porque a ideia é mônada, e em sua autossuficiência contém, em miniatura, a


totalidade do mundo das ideias. “O Ser que nela penetra com sua pré e pós-
história traz em si, oculta, a figura do restante do mundo das ideias [...], em
135

cada mônada estão indistintamente presentes todas as demais” (ROUANET


in BENJAMIN, 1984, p.19).

Pensando Baudelaire como mônada da modernidade, Benjamin parte do poeta como


meio de reflexão para entender a vida moderna, na medida em que o poeta parisiense encerrava
em si tanto a multiplicidade de Paris como a da própria modernidade. Isso significa dizer, de
acordo com a acepção benjaminiana, que “cada ideia contém a imagem do mundo”
(BENJAMIN, 1984, p.68), salvando-se, portanto, na forma de um fragmento que, enquanto
ruína, em sua precariedade, se abre como possibilidade ao pensamento.
Agora vamos ao termo “ideia da prosa”. Descubro que ele não foi dito pela primeira vez
por Agamben, quando encontro uma ocorrência dele na seção “Comentários”, de João Barrento,
sobre os textos de Benjamin reunidos no livro O Anjo da História (BENJAMIN, 2012, p.185).
Escutemos a passagem do manuscrito de Benjamin:

O mundo messiânico é o mundo da atualidade plena e integral. Só nele existe


uma história universal. Aquilo que hoje assim se designa mais não pode ser
do que uma espécie de esperanto. Nada lhe pode corresponder antes de ser
eliminada a confusão instituída com a construção da Torre de Babel. Esse
mundo pressupõe aquela língua para a qual terão de ser traduzidos, sem
reduções, todos os textos das línguas vivas e mortas. Mas não como língua
escrita; antes, como língua festivamente experienciada. Essa festa foi
expurgada de toda a solenidade, não conhece cânticos celebratórios. A sua
língua é a própria ideia da prosa que todos os homens entendem, do mesmo
modo que a linguagem dos pássaros é entendida por aqueles a quem a sorte
bafejou (Fonte: Arquivo Benjamin, manuscrito 441) (BENJAMIN, 2012,
p.185, grifo meu).

Nesse fragmento, Benjamin compreende o mundo ordinário em contraposição ao mundo


messiânico. Talvez, a posteriori, Benjamin discordasse desse jovem Benjamin que propôs a
eliminação da confusão instituída pela Torre de Babel. Talvez, mais tarde, Benjamin proporia
não a eliminação da confusão, mas, o que poderia ser dito da seguinte forma: nesse mundo
ordinário da confusão, no qual a confusão não é eliminada, como instaurar, nele, uma língua
festiva, isto é, a ideia da prosa? É isso o que extraio desse fragmento. A ideia da prosa, língua
festivamente experienciada, é a restituição, na queda e com a queda, da potência de nomear, do
puro jogo de dar nomes, da língua que não é a da revelação solene, que não está a serviço de
pompas e finalidades, que é do fácil entendimento de todos e, mais ainda, que se aproxima,
inclusive, de uma linguagem animal, que já é um paradoxo.
Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, em uma carta de Novalis para
Schlegel, de 1782, lemos: “A Ideia da poesia é a prosa” (NOVALIS apud BENJAMIN, 2011,
136

p.106). Em “Ideia da Prosa”, de Agamben, a ideia da prosa é a poesia. A frase de Novalis aponta
para o verso da frase de Agamben e vice-versa. “Ideia da Prosa” leva a crer que a ideia da prosa
é o seu verso, a poesia, o poema, e que a ideia da poesia, do verso, do poema, é a prosa, não se
identificando um no outro, mas um reivindicando o outro. O verso reivindica a prosa e, a prosa,
o verso. Há uma inclinação de cada um para o que seria, em relação a cada um, o seu verso, o
inverso. Como já falamos, o que se dá nesse “meio termo entre” é um encontro, um diálogo,
mas não um casamento. Ou melhor, um casamento conflituoso, como todo casamento deveria
ser: não uma unidade, mas o encontro entre singularidades. Em uma tarefa benjaminiana, “ideia
da prosa” são imagens do pensamento com toda sua carga fragmentária. Em cada pequeno
ensaio, constelação prenhe de reflexões, há interrupção, cesura, acoplada à infinita tarefa de
nomear e perseguir a ideia sem nunca conseguir apreender totalmente o objeto.

Gostaria agora de propor outra reflexão sobre a ideia. Para isso, recorto duas frases
proferidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu último discurso antes de ser preso,
no dia 07 de abril de 2018: 1) “Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não
pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia”; 2) “[...] eu não preciso de arma, eu
tenho uma língua ferina, é por isso que eles querem me calar”. 35
Sabemos que na filosofia de Platão há a separação de duas esferas, a do mundo sensível
e a do mundo suprassensível. A primeira seria a esfera dos assuntos humanos ou mundanos,
enquanto a segunda seria a do pensamento, onde incluímos a ideia e a verdade. Se a primeira
seria o campo da política ou dos políticos, a segunda seria o campo da filosofia ou dos filósofos.
Esses últimos se ocupariam, portanto, do inapreensível, daquilo que não se aprisiona. De acordo
com Aristóteles, podemos dizer que a primeira esfera seria equivalente ao espaço da pólis, ou
seja, ao espaço político ateniense. Esse espaço, da ação, era o espaço do discurso. Na pólis, os
homens que discursavam eram os homens que agiam. Mas falar e agir só significavam a mesma
coisa no campo restrito da pólis, da política. No âmbito privado, da casa, da oikonomia, o
homem é apenas um animal que fala, mas não discursa.
É importante lembrar que Aristóteles parte sempre do princípio da não contradição. Isto
é, para ele, o mundo deve se organizar de modo a não romper com a harmonia que organiza a
natureza. Então se, para ele, o homem é um animal que fala, o homem não pode ser um animal

35
O discurso na íntegra está disponível neste link: https://www.brasil247.com/pt/247/sp247/350315/Leia-a-
%C3%ADntegra-do-discurso-hist%C3%B3rico-de-Lula.htm Acesso em 04/05/2019.
137

que ruge, já que isso romperia com o princípio da não contradição com a natureza. Do mesmo
modo que se, para ele, o homem político é um animal que discursa, esse homem não pode ter a
língua ferina, pois isso seria entrar em contradição com a natureza.
Mas, voltemos à pólis. Já foi dito que os homens que discursam pertencem à esfera da
pólis, da política. Este é um campo restrito aos homens. E mais: aos homens livres. Aquele que
pode discursar, aquele que pode agir, aquele que pode participar do espaço político tem de ser
estritamente um homem livre. Ou seja, esse é um espaço de iguais. Além da esfera
suprassensível, ocupada pelos filósofos, e da esfera sensível, ocupada pelos políticos, vemos
com Aristóteles que há a esfera da oikonomia, da casa. Se a esfera da pólis é um espaço de
discurso, de ação, a esfera da casa é limitada àqueles que, para Aristóteles, estão mais próximos
à animalidade, isto é, mais distantes do discurso, mais presos à necessidade imediata de
sobrevivência, mais presos à fala não articulada do discurso. Não à toa, as crianças, aqueles que
se encontram antes da linguagem articulada, infans, in-fantes, estão neste espaço. Além delas,
estão as mulheres. Além das crianças e das mulheres, estão os escravos, esses que estão presos
ao trabalho com o corpo para garantir a liberdade dos homens livres, esses que estão presos às
necessidades da vida nua, à sobrevivência do corpo. Em “No espelho do palco”, texto presente
no livro Os Pobes na Literatura Brasileira, ao falar das peças de Martins Pena, Vilma Arêas
fala que a simetria exigida em certas comédias é abalada por uma assimetria “que se caracteriza
pela presença de personagens sem correspondência de pares: os escravos” (ARÊAS in
SCHWARZ, 1983, p.26). Ao contrário da simetria existente nos pares como, por exemplo,
“velhos versus jovens”, os escravizados não faziam par, existiam como resto. Arêas diz que
esses eram “[d]esvestidos de características humanas, sem voz e sem razão” e, ainda, constata:
“os escravos não são propriamente homens, do mesmo modo que o trabalho escravo não é
considerado trabalho” (ARÊAS in SCHWARZ, 1983, p.26). Nesse espaço “sem
correspondência de pares” que caracteriza a cena da escravidão no Brasil do século XIX,
encontram-se também, em outro contexto e em outra época, além dos escravos, os bárbaros, ou
seja, aqueles que não falam grego, e que, assim como os escravos antigos e modernos, eram
considerados sem logos, sem razão. Todos esses podem ser chamados de “outros”. Crianças,
mulheres, escravos, bárbaros são todos outros. E os homens livres, os políticos, os cidadãos
atenienses, podem ser chamados de “iguais”. Os outros, que poderíamos chamar de “comuns”,
de “quaisquer”, estariam, para Aristóteles, mais perto da condição primária do homem, da
condição animal, enquanto os iguais estariam mais perto da humanidade. Ora, disso podemos
depreender que animalidade e humanidade dizem respeito a quão perto e quão longe o homem
está da liberdade. Vemos então que política e liberdade sempre estiveram em relação, apesar de
138

nunca terem significado a mesma coisa. E que ser outro sempre significou, de algum modo, não
ser livre e ser excluído da política.
Veremos como Lula une essas esferas e como a noção de que há seres livres é subvertida. Em
seu discurso, no sindicato dos metalúrgicos, antes de ser preso, Lula une as três esferas: mundo
sensível, que é o mesmo da pólis/da política, mundo suprassensível, dos filósofos, e o dos que
estão na esfera da necessidade/sobrevivência, que são os que, para Aristóteles, estão mais
próximos da animalidade. Lula diz que não é mais um ser humano, mas uma ideia. Mas antes
ele também disse que possui a língua ferina. Nesse sentido, ele condiz com Aristóteles na
medida em que, para Aristóteles, o homem é um animal. Mas ele não é um animal que fala,
como Aristóteles definiu o ser humano, nem um animal que discursa, como Aristóteles definiu
o homem político, ele é um animal cujo discurso é um rugido. No primeiro poema do livro
Mugido, de Marília Floôr Kosby, há um verso que diz assim: “o mugido foi a ação escolhida
para essa desarticulação” (KOSBY, 2017, p.11). Assim como o mugido, é como se disséssemos,
no caso de Lula, que “o rugido foi a ação escolhida”, o que já se mostra um paradoxo, pois
mugido ou rugido e ação são incompatíveis aristotelicamente. O paradoxo se duplica quando o
rugido não foi a ação escolhida para uma desarticulação, mas para uma articulação, para um
discurso, um discurso que, porém, é animalesco, ferino. Então, contrariamente ao que
Aristóteles previu, ele está muito mais próximo da animalidade que caracteriza os outros, os
que são excluídos da política. Esses outros, sabemos, são todos e todas nós. Hoje, não dá mais
para achar que alguém é livre. Hoje, não temos garantia nem do básico para a sobrevivência.
Hoje, ainda hoje, trabalhamos para garantir o mínimo necessário para a sobrevivência. E isso,
desde muito tempo, já significava “não ser livre”. Além disso, o contingente carcerário, em sua
maioria negro, coloca a negros e negras a impossibilidade de se dizer livre, inclusive, quando
não se está preso, porque ser negro ou negra é um indicativo de que se pode ser mais facilmente
encarcerado. Como o título do livro e da conferência de Angela Davis, “A liberdade é uma luta
constante”, se a liberdade ainda é uma luta constante para trabalhadores, pessoas pobres e
mulheres, para negros e negras, tampouco a liberdade é uma garantia, como não era com as
pessoas escravizadas.
Ora, ao ser isso que está no campo da ação/da política e ter ao mesmo tempo um atributo
animalesco, Lula junta a esfera dos excluídos (essa em que estamos, essa que está mais perto
da animalidade) com a esfera dos políticos, mas também com a dos filósofos, desses que se
ocupam da Ideia. Ao se colocar no campo da Ideia, que a priori não está em nenhum dos outros
dois campos, ele se coloca no campo dos filósofos, dos que se ocupam daquilo que é
inapreensível, daquilo que não se aprisiona. Congregando as três esferas, ele não passa a ser
139

uma esfera ou outra, mas as três ao mesmo tempo. Ele passa a ser isso que é hibrido. Ele desloca
a Ideia de Platão e propõe um novo sentido à Ideia como esse híbrido que comporta as três
esferas (a ação, o pensamento e a necessidade/sobrevivência). E se Lula diz que não vai parar
porque é uma ideia, se ideia então é isso que não morre, que não finda, que não para, então uma
ideia é mais que uma ação e um ato, já que ambos têm fim. Se ele não vai parar, se ele vai
permanecer em movimento mesmo com sua morte, se ele vai permanecer movendo mesmo com
seu fim, se ele não finda porque ele é uma ideia, ele se aproxima muito mais de uma potência
(e, poderíamos dizer, do desejo – disso que não está nem no âmbito da necessidade nem no
âmbito da demanda). Mas ele só é uma ideia na medida em que ele transgride a propriedade da
Ideia, pois, ao ser a junção das três esferas, ele não é mais a Ideia, mas uma animalidade da
Ideia, ele é aquilo que Aristóteles chamaria de monstruosidade, aquilo que desobedeceria ao
princípio da não contradição da natureza: ele é uma ideia que tem pernas e discursa com uma
língua ferina. Ele é a contradição da Ideia. Aquilo que permite a sua inapreensibilidade e a sua
potência é aquilo mesmo que a faz mortal, isto é, sua condição animal de ter língua ferina.
Assim, Lula é a ideia que Platão não pensou e que a política grega não conheceu. E é isso que
faz dele um político, um filósofo e um outro, excluído, como nós, seres quaisquer (e como os
poetas).
Na proposta do plano de governo de Jair Bolsonaro, na parte concernente à educação,
sobretudo, às universidades, encontramos a frase: “transformar ideias em produtos”.

Fui a Mallarmé, a Benjamin, a Novalis, a Agamben, a Platão, a Aristóteles e a Lula para


dizer que um dos termos que se faz muito presente aqui, a “ideia”, reveste o caminho de meu
pensamento quando reflito sobre o gesto do verso. “Encontro dos extremos”, “língua festiva”,
“hibridismo”, “o que aponta para o seu outro”, tais são as percepções que compõem a
constelação do modo como eu entendo a ideia. A ideia é, aqui, desde já, uma subversão. É, por
assim dizer, uma aberração. Ainda, é aquilo que não para, não para, não parará. Contra a lógica
do produto, a ideia é aquilo que não tem fim. No dia 04 de abril de 2016, o presidente Lula
disse a seguinte frase em seu pronunciamento na sede nacional do PT: “Se quiseram matar a
jararaca, não fizeram direito, pois não bateram na cabeça, bateram no rabo, porque a jararaca
140

está viva”.36 Deixo aqui ressoando essa ideia, isso cuja língua rasteja, como um anfíbio, pelos
chãos, isso que faz da língua uma trapaça, um jogo, do qual toda a multidão entende e brinca.
Fazendo minhas as palavras de Baudelaire em sua apresentação/carta, digo: “ouso dedicar-lhe
a serpente toda” (BAUDELAIRE, 1995, p.277).

“Ideia da cesura”, outro texto de Agamben presente no livro Ideia da Prosa, se baseia em
dois versos de Sandro Penna: “Vou a caminho do rio num cavalo/ que quando eu penso um
pouco um pouco logo estaca” (AGAMBEN, 1999, p.34). A cesura é essa quebra radical dentro
do verso que, no segundo verso, aparece com a repetição de “um pouco”. Agamben traz a antiga
associação do “logos como um cavaleiro ‘fiel e veraz’ que monta um cavalo branco”,
recuperando Orígenes que diz “que o cavalo é a voz [...] que só o logos torna inteligível e clara”
(AGAMBEN, 1999, p.34). Vemos, então, que não é nova nem moderna a associação do
conhecimento a isso que vem rápido, certeiro, claro, fielmente conduzido sem titubeios. Se o
cavaleiro é o logos, o cavalo seria uma voz inarticulada. Aristóteles, em A Política, diz: “dentre
os animais, apenas o homem tem logos” (ARISTÓTELES, 2009, p.16). Aristóteles chamaria
essa voz de que Agamben fala de phoné. Esse é o som desprovido de logos. Vejamos a diferença
em uma passagem de A Política:

Único dentre todos os animais, o homem possui a palavra. Sem dúvida, a voz
é o meio pelo qual se identifica a dor e o prazer. Por isso é dada aos outros
animais. A natureza deles só vai até aí: possuem o sentimento da dor e do
prazer e podem indica-lo entre si. Mas a palavra existe para manifestar o útil
e o nocivo e, por consequência, o justo e o injusto. É isso que é próprio dos
homens, em comparação com os outros animais: o homem é o único que
possui o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto. Ora, é a
comunidade dessas coisas que faz a família e a cidade (ARISTÓTELES, 2009,
p.16).

Enquanto a phoné estaria ligada a um som, ao inarticulado, à sensação, aos estímulos de


prazer e dor, aos instintos, ao corpo, à necessidade, à sobrevivência mais imediata ao corpo, ao
simples viver, o logos estaria ligado ao discurso articulado, às oposições entre útil e nocivo,
bem e mal, justo e injusto, ao bem viver. Para Aristóteles, o homem é um animal que fala, mas

36
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/03/04/a-jararaca-esta-viva-confira-
trechos-do-pronunciamento-de-lula-sobre-a-lava-jato.htm Acesso em 05/03/2019.
141

o homem político é um animal que tem linguagem, é um animal que não fala simplesmente,
mas que discursa, que possui logos. Estar no logos ou estar na linguagem é estar na política.
Tudo aquilo, todos aqueles, todas aquelas que estão mais próximos/as da dimensão da phoné,
estão excluídos/as da política. Como disse Rancière em “O começo da política”, “[a] destinação
supremamente política do homem atesta-se por um indício: a posse do logos, ou seja, da palavra,
que manifesta, enquanto a voz apenas indica” (RANCIÈRE, 2018, p.15-16, grifos do autor). A
cesura, estacando o logos, deixa ver o inarticulado, exibe, expõe, acena, sinaliza, indica aquilo
que não se realiza pelo discurso. Lemos ainda em Rancière: “Dir-se-á que a diferença está
marcada precisamente pelo logos que separa a articulação discursiva de uma dor e a articulação
fônica de um gemido” (RANCIÈRE, 2018, p.16). Vemos então que a política exclui a dor e o
gemido e se atrela à articulação discursiva e à articulação fônica. Ora, se a política sempre
excluiu o inarticulado e se atrelou ao articulado, se a política sempre excluiu o cavalo e se
atrelou ao cavaleiro, se a política sempre excluiu a dor e o gemido, que se aproximam mais da
animalidade, do incivilizado, e se atrelou ao discurso, como ver o verso com uma política outra
que não exclui a dimensão da phoné?
O que para o cavaleiro que conduz seu cavalo no verso de Penna, o que suspende o logos
que torna inteligível e clara a voz, é o pensamento: “[o] elemento que faz parar o lance métrico
da voz, a cesura do verso, é, para o poeta, o pensamento” (AGAMBEN, 1999, p.35). O filósofo
ressalta ainda a sutileza de a cesura ser marcada pela repetição nas duas margens da quebra,
conferindo “um intervalo intemporal entre dois instantes” (AGAMBEN, 1999, p.35).
Interrompendo o passo ou o galope, a quebra não interrompe só a cadência linear da eloquência,
mas antes explode o tempo, sendo mesmo uma interrupção do tempo, do tempo do verso, uma
interrupção do tempo no meio do verso, que não opera como demarcação temporal de um início
ou um fim, mas como uma fenda, uma falha, um corte, que se faz como meio, não servindo à
asseguração de um sentido, mas, como intervalo atemporal, um meio de abertura a
possibilidades de sentidos e, ao mesmo tempo, a indicação de uma falta, a sinalização de uma
ausência.
Recordo-me aqui do salto em Benjamin, em seu conceito de “origem” [Ursprung], que
não é um salto (sprung) para a origem (ur) enquanto gênese, mas uma irrupção no tempo, uma
rachadura, uma ida ao tempo em sua disjunção (BENJAMIN, 1984, p.32). A origem, em
Benjamin, nada tem a ver com gênese. É, antes de tudo, o ponto de contato entre dois extremos,
é a possibilidade de dois tempos, contrários, se encontrarem, quando extremos se encontram
em um ponto de disjunção. É um salto que tensiona dois extremos, “que emerge (entspringt)
do vir-a-ser e da extinção” (BENJAMIN, 1984, p.19). É o que emerge do tempo disjunto entre
142

o “ainda não” e o “não mais”. Por esse tempo ser liberto do fluxo da história contínua e do
encadeamento causal, ele é um salto atemporal. O “tempo-de-agora” [Jetztzeit] é justamente
uma contração do tempo que em Benjamin lemos como uma cesura revolucionária: ele “solapa
a linearidade infinita do chronos e institui o tempo-de-agora como kairos messiânico”
(AGAMBEN, 2008, p.11). Esse tempo revolucionário instaura uma outra ética, uma ética da
cisão, uma ética da cesura, do que está entre, da separação que divide, do hiato, da lacuna, do
sulco, da falha, da fenda, da fratura, do corte. Ao contrário de inaugurar uma “doutrina das
normas”, a ética do “tempo-de-agora” ou do salto atemporal ou da cesura se assume como uma
“postura firme e ao mesmo tempo hesitante” (AGAMBEN, 2008, p.15), porque ela se encarrega
de transportar algo que pertence ao real, ao traumático, ao inacessível, cujo nome é
desconhecido, mas cujo transporte se faz necessário não só para curar o tempo, mas para que a
fratura seja reenviada como condição do alívio do insuportável do tempo.
Em Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt já teria dito a História são as interrupções:
“A História não é a narrativa que quer abranger a uma totalidade que, por isso, se constrói como
uma narrativa, linear, lógica, cronológica. A História são as situações, feitos ou eventos que
interrompem essa narrativa” (ARENDT, 2014, p.72). Estamos tecendo, pois, uma abordagem
do verso a partir de entrelaçamentos entre o modo como poetas o viam como lugar de conflito,
entre o modo como nesse conflito podemos ler um gesto deslizante que permite uma escrita da
revolta e do amor, que permite ler, no verso, o amor (eros) e horror (catástrofe), entre o modo
como Derrida vai ao que queima, como Benjamin falou do tempo, como Hannah Arendt falou
da História, como Lacan falou do amor e como Agamben falou da cesura e do enjambement. A
ida ao que queima em um duplo gesto, a origem como um salto interruptivo, um ponto de
disjunção, a História como a história das interrupções, o amor como o tempo ou o ponto de
suspensão e, a cesura e o enjambement, também como desencaixe, desarticulação, suspensão,
hesitação. Essa abordagem permite entrelaçar também o que o Agamben chamou, em outro
texto, de contemporâneo. Em O que é o contemporâneo? (2009) lemos que contemporâneo é
um ponto de fratura. Contemporâneo é aquele que não coincide com o tempo, que se situa nas
fendas do tempo, que está em um ponto de não coincidência, de disjunção, de desarticulação
com o tempo.
Agamben começa O que é o contemporâneo? com uma conversa com Barthes e
Nietzsche, nos remetendo que esse início de conversa já vem de outros tempos. Em Como Viver
Junto, Barthes termina um trecho com o que ele chama de “paradoxo”: “uma relação insuspeita
entre o contemporâneo e o intempestivo – como o encontro de Marx e Mallarmé, de Mallarmé
e Freud sobre a mesa do tempo” (BARTHES, 2003, p.11-12). Nietzsche, em um momento de
143

Segunda Consideração Intempestiva; da utilidade e desvantagem da história para a vida,


termina dizendo sua visão sobre sua profissão: “[...] não saberia que sentido teria a filologia
clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva – ou seja, contra o
tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE,
2003, p.5-7). Atuar de maneira intempestiva, de acordo com Nietzsche, é, pois, atuar contra o
tempo. Atuar no tempo não é outra coisa senão do que atuar contra ele. Atuar
intempestivamente é, no tempo, atuar contra o tempo em prol do tempo que virá. Ou seja, essa
atuação intempestiva já possui uma responsabilidade para com o por vir. Quando Agamben se
pergunta O que é o contemporâneo?, ele coloca Barthes e Nietzsche na mesma mesa para iniciar
essa conversa e junta o que Nietzsche falou do intempestivo e o que Barthes falou da relação
entre o contemporâneo, aqueles que viveram ao mesmo tempo ou no mesmo tempo, e o
intempestivo, estabelecendo uma conversa anacrônica, portanto. O contemporâneo, para
Agamben, seria necessariamente esse anacronismo: não uma coincidência com o próprio
tempo, mas uma convivência entre aqueles que não coincidem com seus tempos, com aqueles
que não seriam contemporâneos entre si. Ser contemporâneo não seria compartilhar o mesmo
tempo, mas fazer viver junto aquilo, aqueles ou aquelas que não coincidem. Esse fazer viver
junto é um gesto interventivo e interruptivo no tempo. O contemporâneo está em uma relação
de desconexão, dissociação, não-coincidência, discronia com o seu próprio tempo, aderindo a
ele ao mesmo tempo que dele se distancia.
O filósofo italiano vai ao poema do poeta russo Osip Mandelstam, “O século”. A partir
da primeira estrofe (“Meu século, minha fera, quem poderá/ olhar-te dentro dos olhos/ e soldar
com o seu sangue/ as vértebras de dois séculos?”), Agamben tece uma leitura de que esse poema
não é sobre a época ou o século, mas sobre a relação do poeta com o tempo, ou seja, sua
contemporaneidade (AGAMBEN, 2009, p.60). De acordo com o poema, o filósofo conclui que
essa relação é de um olhar fixo nos olhos do “século-fera”, e que o preço pago por essa
contemporaneidade é o próprio corpo, o próprio sangue com o qual deve soldar o “dorso
quebrado do tempo” (AGAMBEN, 2009, p.60-61).
O que Agamben não diz, apesar de parecer partir disso de maneira indireta e implícita, é
que verso e vértebra têm a mesma raiz. Abordar o tempo, aqui, é abordar o verso. É abordar o
poema, a poesia, a e o poeta. Assim como o tempo, o corpo do poema é um corpo todo cortado
que tem seu eixo, sua coluna, quebrada. O poema é um corpo que não se sustenta. O poema é
insuportável. Sendo as vértebras do tempo, ele também é o insuportável do tempo. Tal como
“O século”, lançar a pergunta que o poema lançou é lançar uma exigência que, por ser
impossível de ser atendida, deve-se sempre tentar atendê-la. É pela impossibilidade de sutura
144

dessa quebra que o gesto de expor a fratura do verso é também um gesto de cuidar das fraturas
expostas do tempo: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra” (AGAMBEN,
2009, p.61). O corte, a quebra, a fratura e, ao mesmo tempo, a tentativa de reparo do irreparável.
Dizer de um tempo é dizer, ao mesmo tempo, de uma vida e de um coletivo, como
Agamben ressalta: “Os dois séculos, os dois tempos não são apenas, como foi sugerido, o século
XIX e o XX, mas também, e antes de tudo, o tempo da vida do indivíduo (lembrem-se que o
latim saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o tempo histórico coletivo”
(AGAMBEN, 2009, p.60). Se vimos que tempo e verso se identificam pelas vértebras, agora
vemos também que vida individual e tempo coletivo estão relacionados por aquilo que há de
mais material e de mais perecível: o corpo. Há algo em comum entre a vida humana, o tempo
e o verso: as vértebras. Mais especificamente, as quebras. E aqui, mais uma vez, nessa quebra,
o verso/século tenta realizar um “gesto impossível” de se virar para trás:

Não apenas a época-fera tem as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-
nascido, com um gesto impossível para quem tem o dorso quebrado quer virar-
se para trás, contemplar as próprias pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto
demente:

Mas está fraturado o teu dorso


meu estupendo e pobre século.
Com um sorriso insensato
como uma fera um tempo graciosa
tu te voltas para trás, fraca e cruel,
para contemplar as tuas pegadas.
(AGAMBEN, 2009, p.62).

Tal como o anjo da história de Benjamin, que realiza um “gesto em torsão” ao manter os
olhos arregalados para trás enquanto seu corpo é impulsionado para frente, o contemporâneo
para Agamben é esse que se instaura no “gesto impossível” do século, no “gesto impossível”
do verso que, com o dorso quebrado, quer se virar para trás. Destaco ainda os dois adjetivos
que Mandelstam usou para designar o século: estupendo e pobre. Esses dois extremos, como
júbilo e horror, amor e horror. Não há como ir a eles sem ser em um gesto que é, também,
extremo. Só em um gesto-limite se vai ao limite. Um gesto-limite que, em meio à clareza
excessiva do tempo, de suas luzes, de seus holofotes, consiga enxergar o escuro:
“contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p.62). O que Agamben chama de escuro, trevas,
obscuridade, sombra, eu chamo de horror. É no gesto torcido, no gesto impossível do dorso
145

quebrado do verso que se vai às quebras do tempo, à barbárie. O poema é ele mesmo uma
quebra, uma fratura, uma vertigem, uma vértebra, como o tempo, mas, ao contrário desse, ele
ao mesmo tempo expõe e luta contra a sua própria catástrofe ao girar em torno dela.

No livro Levantes, organizado por Didi-Huberman, os ensaios de Judith Butler, Antonio


Negri, Marie-José Mondzain e Jacques Rancière de certa forma abordam o levante em aspectos
que se encontram com essa abordagem da interrupção ligada a um tempo nos limites ou no
horror da extrapolação dos limites. Antes desses ensaios, o ensaio de abertura de Didi-
Huberman traz um paradoxo afim com nossa abordagem quando ele pergunta “O que somos
sob o chumbo do mundo?”, ao que ele responde, “Titãs derrotados e, ao mesmo tempo, crianças
dançantes” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.16).
Nesse ensaio, Didi-Huberman fala do levante como um “gesto”, um “gesto de levante”,
um “gesto sem fim”, em que o significante “gesto” comparece com frequência mesmo sem ser
teorizado (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.16-18). Indo à interrupção, Antonio Negri, por
exemplo, fala de “uma pausa entre duas ações, um intervalo muito breve, quase uma parada,
uma contração do tempo” (NEGRI in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.38). Todavia, ele reivindica
algo mais que a interrupção como uma breve suspensão, ele demanda uma pausa que não seja
breve: “fazer da interrupção uma pausa e não uma breve suspensão” (NEGRI in DIDI-
HUBERMAN, 2017, p.38). Para Negri, é nesse esforço que o gesto se efetua como um excesso,
“um excesso de ser”, um “‘sopro’” como na criação do mundo (NEGRI in DIDI-HUBERMAN,
2017, p.38-39). Tal “‘sopro’”, mesmo de improviso, deve ser construído “no exercício coletivo
do sofrimento e do desejo” (NEGRI in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.42). Necessidade e para-
além-da-necessidade, portanto, são, para Negri, o centro desse gesto que é entendido como um
gesto coletivo e que já indica um excesso. Ainda, provindo das necessidades de sobrevivência
(“o levante está plantado na dura materialidade da necessidade” (NEGRI in DIDI-
HUBERMAN, 2017, p.42)) e do desejo, indo da necessidade ao desejo, esse gesto se faz em
não como um processo, mas como um salto, um “salto sem fim”, diz Negri (NEGRI in DIDI-
HUBERMAN, 2017, p.42).
Jacques Rancière, por sua vez, pensa o levante como “uma maneira de conjugar
movimento e repouso” em que o levante talvez não seja um “tornar-se ativo” do pathos, mas
tonar ativo e passivo indistintos (RANCIÈRE in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.65-67). Dessa
forma, para Rancière, o levante seria um “cair-levantar sem fim pela repetição que subtrai seu
146

movimento da oposição entre ativo e passivo, subtraindo-o daquilo que normalmente comanda
a atividade do ativo e funda seu privilégio sobre o passivo, ou seja, a busca de uma meta”
(RANCIÈRE in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.66). Assim, suspendendo a ordem dos lugares e
das posições, contra a ideia de finalidade que recairia sobre os comandados, o levante
instauraria uma voz média, seria um uma forma de minar o poder começando desde a subversão
da noção de que os ativos comandam e os passivos são comandados.
Judith Butler e Marie-José Mondzain ressaltam a situação-limite na qual se situa um
levante. Butler diz: “o levante é consequência de uma sensação de que o limite foi ultrapassado
(BUTLER in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.23). Ela diz, ainda, da possibilidade de se considerar
levantes como “transbordamentos” (BUTLER in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.36).
Transbordamentos que implicam, entretanto, em sensações compartilhadas, em laços, “laços
que se estabelecem entre aqueles que sofrem e resistem” (BUTLER in DIDI-HUBERMAN,
2017, p.28).
Marie-José Mondzain, na esteira de uma compreensão do levante frente à situação-
limite do tempo, diz que os movimentos de um levante desafiam todos os limites, movendo-se
“entre limites”, situando-se “entre os excessos” (MONDZAIN in DIDI-HUBERMAN, 2017,
p.48). É ao se sustentarem em uma “zona indeterminada” que os levantes tentam acabar com
os excessos do poder (MONDZAIN in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.48). A essa “zona
indeterminada” do levantar, Mondzain discorre como uma “arte da balança”: a arte do peso e
do contrapeso, entre o movimento e a força eruptiva (MONDZAIN in DIDI-HUBERMAN,
2017, p.52). Ele dá exemplos de gestos de oscilação, voos do Cupido, do dançarino, do acrobata,
saltos que correspondem a essa “arte da balança” em que se condensa o gesto da arte, que é
“pôr o espectador na perturbação de um problema simultaneamente jubiloso e angustiante”
(MONDZAIN in DIDI-HUBERMAN, 2017, p.61, grifo meu).
Longe de tentar dar cabo das discussões que esses ensaios trazem sobre levante, uma
vez que o objeto desta tese não é esse, trouxe apenas alguns pontos que se encontram entre
certos aspectos dos pensamentos desses teóricos sobre o levante e a abordagem que estamos
tecendo do verso. O comparecimento do princípio da interrupção, da suspensão, e de uma
localização no limite do tempo, em um excesso, em um transbordamento, em um tempo mesmo
que está no excesso, na extrapolação dos limites, parecem perpassar vários modos como alguns
pensadores vem pensando o tempo atual e formas de enfrentá-lo. Por isso, julguei ser
interessante pinçar o que nesses modos ressoam com a possibilidade de pensar o gesto do verso
que vem sendo construída aqui.
147

[...] ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque


significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas
também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se
infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode
apenas faltar. Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as
vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais
distante: não pode em nenhum caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado,
e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar
de tudo, contemporâneos a esse tempo (AGAMBEN, 2009, p.65).

Perceber no escuro uma luz que, dirigida a nós, distancia-se de nós, é perceber o ponto de
inacessibilidade que, embora inapreensível, é visto a olhos nus como as palavras de Mallarmé
que, como as estrelas, são indícios daquilo que não está mais lá. “Ser pontual num compromisso
ao qual se pode faltar” é enxergar essa “luz que, sem nunca poder nos alcançar, está
permanentemente em viagem até nós”, é enxergar, em um ponto de não-coincidência, de
disjunção no tempo e com o tempo, o indício de uma falta, de uma ausência (AGAMBEN,
2009, p.66). Digo que comparecer a esse compromisso talvez seja o que Baudelaire chamou de
“ponto de encontro com os mutilados da vida”. Vale a pena escutar o trecho de “As viúvas”,
um dos Pequenos poemas em prosa:

Diz Auvenargues que há nos jardins públicos alamedas frequentadas


sobretudo pela ambição desiludida, pelos inventores infelizes, pelas glórias
malogradas, pelos corações dilacerados, por todas essas almas tumultuosas e
fechadas em que ainda murmuram os últimos suspiros de uma tormenta, e que
recuam para longe do olhar insolente dos alegres e ociosos. Estes recantos
sombrios são o ponto de encontro dos mutilados da vida.
A tais lugares é que o poeta e o filósofo gostam de encaminhar, de preferência,
as suas ávidas conjecturas. Existe aí, para elas, alimento certo. Pois se há um
lugar que eles desdenham visitar, como insinuei há pouco, é sobretudo a
alegria dos ricos. Essa turbulência no vazio não lhes oferece o mínimo
atrativo. Ao contrário, sentem-se eles irresistivelmente atraídos para tudo que
seja frágil, arruinado, aflito, órfão. (BAUDELAIRE, 1995, p.289-290).37

Comparecer às rachaduras do tempo é um encontro marcado com a falta. A “alegria dos


ricos”, sabemos bem, não conhece esta falta. Encontramos o poeta e o filósofo convivendo

37
No original: “Auvenargues dit que dans les jardins publics il est des allées hantées principalement par l’ambition
déçue, par les inventeurs malheureux, par les gloires avortées, par les coeurs brisés, par toutes ces âmes
tumultueuses et fermées, en qui grondent encore les derniers soupirs d’un orage, et qui reculent loin du regard
insolent des joyeux et des oisifs. Ces retraites ombreuses sont les rendez-vous des éclopés de la vie.
C’est surtout vers ces lieux que le poète et le philosophe aiment diriger leurs avides conjectures. Il y a là une pâture
certaine. Car s’il est une place qu’ils dédaignent de visiter, comme je l’insinuais tout à l’heure, c’est surtout la joie
des riches. Cette turbulence dans le vide n’a rien qui les attire. Au contraire, ils se sentent irrésistiblement entraînés
vers tout ce qui est faible, ruiné, contristé, orphelin”.
148

nesse ponto, nesse ponto do malogro. O ponto de encontro com os mutilados da vida é o
encontro marcado do contemporâneo: o encontro marcado com “tudo que seja frágil, arruinado,
aflito, órfão”. Como disse Baudelaire, o poeta e o filósofo e, Agamben diria, os
contemporâneos, “sentem-se irresistivelmente atraídos” para isso que contém uma falta, para
isso que é mutilado, esburacado, resto, ruína, tal como, no corte, o verso se lança e é
“irresistivelmente atraído” para lançar a ponte e atingir o fora de si (AGAMBEN, 1999, p.32).
Nessa ressonância do filósofo no poeta, no ato de convocar à mesa Agamben e Baudelaire e
colocar seus textos em relação, assim é que digo que o gesto do verso é o ponto de encontro
dos poetas e dos filósofos.
Colocar em relação é o que Agamben, nesse texto, chama também de “citar”:

Isso significa que o contemporâneo [...] é também aquele que, dividindo e


interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação
com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de "citá-la"
segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu
arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder (AGAMBEN,
2009, p.72).

Contemporâneo é aquele que coloca em relação. Citar é colocar em relação e colocar em


relação é ler de modo inédito a história e, portanto, escrevê-la de outro modo, transformá-la.
Nesse sentido, como já vimos com Benjamin e Derrida, “citar” é muito mais um gesto de escuta.
E de reescrita da história. Nessa reescrita, importa mais o que acontece nos intervalos, o que
acontece nas cesuras, ou seja, as relações que elas permitem. O filósofo termina o texto dizendo
que é de nossa capacidade “dar ouvidos” a essa exigência, à exigência supracitada. Ele não diz
que devemos ler, enxergar, escrever, ele diz: “dar ouvidos” (AGAMBEN, 2009, p.72). Ser
contemporâneo é um trabalho de escuta, e aqui me lembro de Derrida em Che cos’è la poesia?
quando ele diz que citar “de cor” como um ditado não é um exercício de memorização, mas de
uma memória do corpo, uma memória muscular involuntária como aquilo que se traz como o
ritmo do batimento do coração (DERRIDA, 2001, p.114-115). Penso que quando Agamben
disse que ser contemporâneo “é, acima de tudo, um ato de coragem”, de agir de acordo com o
coração, não há como não relacionar o “de cor” de Derrida – também no que ele se enlaça com
o caráter relacional, coletivo, comunitário que Benjamin confere à “coragem” na leitura do
poema de Hölderlin – e escutar: ser contemporâneo é um ato de cor.

*
149

Em O que é o contemporâneo?, Agamben usa o termo “cesura” três vezes para falar da
descontinuidade ou da divisão introduzida no tempo. Em Observações sobre Édipo, de
Hölderlin, vemos que a cesura se insere em uma questão rítmica que diz respeito ao todo da
construção trágica:

O transporte trágico é, na verdade, propriamente vazio e o mais desprovido


de ligação. Com isso, na consecução rítmica das representações em que o
transporte se apresenta, torna-se necessário o que na métrica chama-se
cesura, a palavra pura, a interrupção anti-rítmica, a fim de ir ao encontro da
mudança torrencial” (HÖLDERLIN, 2008, p.69, grifos do autor).

Foi com base nessa passagem de Hölderlin que Agamben falou sobre a cesura. A cesura
interrompe a representação e, nessa interrupção, a palavra se apresenta. A interrupção da cesura
é a condição da mudança, da transformação entre o que estava se dando antes e o que se passa
a dar depois. Quebrando o ritmo, a cesura instaura uma suspensão do que estava sendo
representado em curso, operando como uma transformação. O transporte trágico é, como lemos
em Hölderlin, a disjunção mesma. O transporte trágico é a cesura enquanto ponto de interrupção
como meio de condição para o surgimento da palavra. Além disso, esse tempo trágico se
caracteriza por uma quebra rítmica ou por intervalo antirrítmico que se dá pelo silêncio do coro
e não pelo canto. Essa linguagem do silêncio emerge na quebra, no intervalo, e o que ela mostra
não é a morte, mas a possibilidade da palavra. A cesura instaura um silêncio que não encerra,
ao contrário, existe enquanto meio de transformação. Na cesura, a palavra se mostra em sua
pura potencialidade. Segundo Claudia Castro, “a linguagem do silêncio emerge na cesura,
condição de possibilidade de toda verdade histórico-filosófica, gesto mudo de ruptura
salvadora” (CASTRO, 2009, p.34). É na exposição da cesura, na ruptura que fraciona e
fragmenta, que emerge, do silêncio, a possibilidade. A cesura seria uma abertura em que, ao
mesmo tempo que oculta, assume-se como uma interrupção e um dar passagem. Assim, entendo
a cesura no duplo gesto de exibição, indicação, sinalização de um buraco intransponível e, ao
mesmo tempo, de abertura. Em um só movimento há um duplo gesto que tanto indica a falta
como o que se abre entorno da abordagem dessa falta.
Nessa economia da falta, penso certos poemas como diz o verso do poema “Espectros
de guerra”, do livro A dolorosa raiz do Micondó, da poeta africana Conceição Lima: “sei que
certos poemas juntam os versos como se os deitassem numa vala comum./ Certos poemas
sentem dó da metáfora, trancam a porta na cara da rima” (LIMA, 2012, p.31). Esses versos
traduzem o modo como penso uma certa poesia brasileira contemporânea. Assim, cara a cara
com o real. Se pensarmos um poema estruturado em cesuras, cheio de buracos, o que vemos
150

são incessantes valas. Penso a cesura como uma vala. Ela em si mesma indica uma falta. Nela,
vela-se. Nela, também a palavra é velada, o sentido é velado, a pontuação é velada. Fazendo do
poema um corpo todo cortado, a cesura expõe o poema enquanto velado e enquanto velamento.
Cesura e enjambement são, antes de tudo, cortes. A estrutura do poema é o corte. O poema é
um corpo cortado. Certamente leio um sentido fúnebre nisso. O poema é um corpo que carrega
as catástrofes. Por isso, vejo a cesura como aquilo que faz do poema também um trabalho de
luto. Ou seja, como aquilo que gira em torno do corte, da falta, como aquilo que gira em volta
do sulco, do buraco, do irreparável, do inacessível, do real. Nesse sentido, o poema é a tentativa
de elaboração que se mantém enquanto tentativa, que se mantém enquanto trabalho de luto que
não chega a se realizar, a se completar, mantendo-se perpetuamente como um trabalho, fazendo
do luto uma luta sem fim, sustentando-se incessantemente como uma tentativa de falar, como
um querer-falar. Como trabalho de luto infindável, o poema indica a falta de palavras ao mesmo
tempo em que aborda essa falta, isto é, ao mesmo tempo em que diz. Expondo o corte, o buraco,
o sulco e, ao mesmo tempo, a tentativa de dizer, o poema, ao mesmo tempo, mostra a falta,
expõe o abismo, exibe o buraco inapreenchível, indica-o, aponta-o, e gira em torno dele, dando
contorno a ele, tentando dizer. É por isso que o poema só revela na medida em que vela, ele não
revela nada senão o próprio velamento, o próprio velar de novo, re-velar.
Em Ideia da Prosa, o texto dedicado à cesura, “Ideia da cesura”, discorre sobre a cesura
como estrutura do verso. Em O que é o contemporâneo?, encontramos a cesura como um dos
modos de nomear o intervalo ou espaço livre do “limiar inapreensível entre um ‘ainda não’ e
um ‘não mais’”, como isso que disjunta, quebra, requebra, e permite colocar em relação
(AGAMBEN, 2009, p.68). Encontramos essa acepção também em Espectros de Marx de
Derrida, em que uma ética da alteridade que passa necessariamente pelos fantasmas se instaura
nesse tempo entre “o não-mais e o ainda-não: nisto que desajunta o presente vivo, diante dos
fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram” (DERRIDA, 1994, p.12). Esse
intervalo já é um tempo espectral, porque ele seria justamente uma suspensão do tempo que
indica, paradoxalmente, a sua iminência. Para Derrida, “ser justo” se atrela diretamente a essa
concepção de tempo, de modo que quem é justo é aquele ou aquela que vai ao tempo em seu
desajuste: “ser justo: momento espectral, momento que não pertence mais ao tempo [...]. Furtivo
e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá tempo”
(DERRIDA, 1994, p.12-13). Não há como ser justo se não se vai ao tempo de modo furtivo e
intempestivo, isto é, do modo como o tempo mesmo se apresenta em sua disjunção. Tal modo
de ir se constitui como uma justiça que não se dirige apenas a quem está vivo, que não restringe
a uma presença, mas também aponta para além e aquém do que está vivo: “A injunção de uma
151

justiça que, para além do direito, ergue-se no respeito do que não está, não está mais ou ainda
não está vivo, presentemente vivo” (DERRIDA, 1994, p.134, grifos do autor). É por isso que
esse já é um gesto cujo tempo não é fixo, abrindo-se a um chamado singular que contempla em
si uma coletividade não limitada ao presente, mas ao que já foi e ao que virá.
Em Agamben, aquele que não coincide com o seu tempo é contemporâneo; em Derrida,
encontramos essa mesma disjunção na frase que ele pega de Hamlet: “The time is out of joint,
o tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado, deslocado, desconcertado” (DERRIDA,
1994, p.34). Tal como o anjo da história de Benjamin, tal como o contemporâneo em Agamben,
encontramos a mesma abordagem em Derrida como “disjunção na presença mesma do presente,
espécie de não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo (essa intempestividade ou
essa anacronia radicais [...])” (DERRIDA, 1994, p.43). É interessante notar a economia que
Derrida deposita na frase “o mundo está fora dos eixos” ao longo do texto, cuja leitura passa
necessariamente por um sentido de falta, de perda, de dívida, de débito, trazendo lado a lado a
dimensão do trabalho e do luto. Nessa frase, o filósofo traz o demitido, o deportado, o
desajustado, todos os que são, de algum modo, excluídos: “o mundo se encontra deportado, fora
de si mesmo, desajustado” (DERRIDA, 1994, p.35). Dessa maneira, tal disjunção temporal não
diz respeito apenas ao tempo, mas à história e ao mundo (“Time: é o tempo, assim como é a
história e também o mundo” (DERRIDA, 1994, p.35)). Para Derrida, não se vai a essa disjunção
do tempo, em sua espectralidade, se não se vai como um espectro. Ir de modo justo ao tempo,
à história e ao mundo pressupõe, portanto, uma lógica do fantasma, um modo de ir disjunto a
isso que está desajustado, um modo de ir capenga, manco, coxo, a isso mesmo que anda mal.
Tanto em Derrida como em Agamben e em Benjamin, a cesura, como desarticulação, é uma
ética, um modo de ir, e essa ética é necessariamente um trabalho e um trabalho de luto.
Por tudo isso, poderíamos dizer que o trabalho do verso não tem de ser um trabalho
cronológico; pelo contrário, o verso convoca o crítico a ler de forma anacrônica, porque o verso
pode ser lido como a justaposição de tempos diferentes. O encontro marcado do contemporâneo
é no verso. Como Derrida diz, “A anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um
olhar com que sempre será impossível cruzar” (DERRIDA, 1994, p.23). Ir ao tempo em sua
quebra, em sua cisão, em sua cesura, em sua disjunção, subtraí-lo do fluxo linear e contínuo,
interrompê-lo para, só assim, poder mostrá-lo, vai ao encontro da abordagem dos momentos de
hesitação, dos momentos de parada do verso, quando Agamben continua uma citação mais
acima em que ele fala “A única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os
enjambements e as cesuras” (AGAMBEN, 2007, s/p). Depois de falar sobre o enjambement no
trecho citado anteriormente, eis o que ele fala da cesura junto com Hölderlin:
152

É também por isso que Hölderlin pôde dizer que a cesura, ao parar o ritmo e
o desenrolar das palavras e das representações, faz aparecer a palavra e a
representação enquanto tais. Parar a palavra é subtraí-la do fluxo do sentido
para a exibir enquanto tal (AGAMBEN, 1999, p.35-36).

A cesura é a fenda que traz a possibilidade da palavra. Entre uma palavra e outra, o que
há nesse ínfimo de silêncio é a devolução da palavra à possibilidade da palavra. A cesura não
transporta nada a não ser a palavra mesma, a não ser a possibilidade de dizer. A cesura é uma
economia, uma contenção, uma economia da linguagem do poema, uma falta, uma exposição
da falta, um velamento. O que ela revela não existe senão no movimento incessante de
velamento. Ela só revela na medida em que vela. Sustentando-se como falta e exibindo a falta,
ela é uma falta que, porém, faz mover, porque também se sustenta como um quase, e provoca
“deliciosos quases” (como Mallarmé falou), provoca iminências de sentido ao mesmo tempo
em que é uma resistência a ele. Nesse jogo, nesse gozo, se faço aqui uma leitura erótica da
cesura, e se a cesura também é, na forma do poema, a explicitação do buraco, se ela é uma falta
que aparece radicalmente em sua estrutura, se ela é uma falta e a indicação dessa falta, se ela é
aquilo que vela, vemos então que os princípios de velamento e amor se dão no mesmo espaço:
Eros e Tânatos, vida e morte. Em tensão.

Interrompendo o passo veloz do cavalo, suspendendo “o gesto a meio”, como Agamben


diz, ou, poderíamos dizer, a meio gesto, em um gesto que não se completa, que se interrompe
bruscamente, que se interrompe pelo meio antes mesmo de chegar ao fim do verso, que impõe
um limite, um buraco, antes mesmo de chegar ao fim ou ao limite do verso, em um gesto a
meio, esse passo não é mais o embalo do cavalo que traz o logos veraz, é um passo estranho,
de passadas contrapostas, meio desengonçado, como “num extravagante passo de ganso”
(AGAMBEN, 1999, p.35). A cesura estaca o cavalo do verso: estaca a voz, estaca o logos. Se
o enjambement é o cavalgamento, o salto, a cesura estaca o salto, retraindo-o em um lance que
o transforma, em um gesto que o transforma em um gesto a meio. E o “motor do lance do
verso”, o transporte rítmico, abre, em sua fenda abismal que interrompe o galope e impõe um
passo de ganso, a possibilidade do sentido, na interrupção que suspende e transforma e faz parar
– para pensar –, estando o pensamento, portanto, nesta interrupção, nesta suspensão
(AGAMBEN, 1999, p.36). Vale lembrar que “pensamento” já tem em si, etimologicamente, a
153

suspensão, pendere, de modo que pensar já é estar em suspensão (como podemos ler em “Ideia
do Pensamento”, texto dedicado a Jacques Derrida, desde já um endereçamento e um envio
(AGAMBEN, 1999, p.101)). Como já falamos da intimidade entre “pensar” e “pesar” em
Derrida, verso e pensamento são aquilo que pende, eles se identificam na pendência, no que
está pendente, no que está, poderíamos dizer, em falta. Em ambos há um adiamento do sentido,
um sentido que está por se fazer, um sentido que pende, que falta. Eles se identificam nesse
“frágil equilíbrio” de uma “balança em equilíbrio precário”, como disse Agamben no texto Para
uma ontologia e uma política do gesto, servindo-se de uma metáfora de Focillon:

Certa vez, para descrever a especial qualidade da imagem artística, Focillon


se serviu da metáfora de uma balança em equilíbrio precário, na qual a haste
parece balançar, “milagre de uma imobilidade hesitante, tremor leve e
imperceptível que nos indica que ela vive” (AGAMBEN, 2018, s/p).38

Para uma ontologia e uma política do gesto, um dos textos que Agamben se dedica a
pensar o gesto, tem trechos que já compuseram outro livro, Ninfas, a partir do qual ele entende
que o mais importante na dança não é o movimento, é a interrupção do movimento. É com base
na teoria de um coreógrafo do século XV, Domenico de Piacenza, que Agamben leva essa
interrupção, com a qual ele havia pensado as imagens em Ninfas, para pensar o gesto no outro
texto, Para uma ontologia e uma política do gesto. Tanto em Ninfas como em Para uma
ontologia e uma política do gesto lemos que essa interrupção de que fala Domenico de Piacensa
se chama “fantasmata”. Em Ninfas, Agamben coloca: “Em um momento da definição de
fantasmata, ele [Piacenza] diz: ‘parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da
medusa, como diz o poeta, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele
instante’” (AGAMBEN, 2012b, p.23-24). Em Para uma ontologia e uma política do gesto,
lemos de forma parecida, assim:

Portanto, decisivo para compreender a natureza do gesto é o momento da


interrupção e da suspensão, isto é, sua relação com o tempo compreendido
como sucessão cronológica linear. Sempre me tocou o fato de que um grande
coreógrafo do século XV, Domenico da Piacenza, em seu tratado Dell'arte di
ballare e danzare, coloque no centro da dança um momento de parada que
denomina “fantasmata”. Eis sua definição: “uma presteza corporal, a qual [...]
faz parar a cada instante como se tivesse visto a cabeça de Medusa, isto é, uma
vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele instante [...] agindo com
medida e memória” (AGAMBEN, 2018, s/p).

38
Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Disponível em https://flanagens.blogspot.com/2018/03/para-uma-
ontologia-e-uma-politica-do.html Acesso em 23/11/2019.
154

Podemos ler essa compreensão do gesto como o gesto do verso tal como o estamos lendo
em sua associação com o contemporâneo, com o anjo da história, com a disjunção da qual falou
Derrida, enfim, pela consonância com o princípio da interrupção, da suspensão do sentido, em
cuja parada repentina se concentra uma tensão entre dois movimentos. Nesse gesto que diz
menos de um movimento e mais de um espectro do movimento, de uma contração do tempo e
do movimento tensionados na presteza corporal em uma brusca parada, fitar a cabeça da
Medusa é como “a presteza corporal” do anjo da história cujo corpo é carregado de tensão na
torsão que o insere entre o passado e o futuro, fitando a cabeça da Medusa, como o olho
arregalado que fita a catástrofe que cresce atrás, com o corpo impelido, porém, para frente. É
nessa estabilidade precária – como um acrobata pendurado em um trapézio ou como o
equilibrista de Aby Warburg que Agamben se refere em Ninfas, um equilibrista cuja legenda
da letra K leva a crer que talvez seja a figura do artista (Künstler) – que o gesto do verso se dá
como um ínfimo momento de parada da oscilação pendular do pensamento, não conduzindo a
uma superação da contradição como seria a Aufhebung hegeliana, mas contendo em si o
tensionamento de dois opostos, sendo, portanto, necessariamente ambíguo, bipolar, tensivo e,
enquanto uma parada, enquanto uma interrupção do sentido, enquanto um abismo do sentido,
uma abertura (AGAMBEN, 2012b, p.42).

Em um dos ensaios de La boca del testimonio, de Tamara Kamenszain, a poeta argentina,


ao tratar de um poema de César Vallejo, fala de “la boca del testimonio” como “un paso de
poesía” (KAMENSZAIN, 2007, p.11). No ensaio, o testemunho se relaciona à poesia na medida
em que o eu do poema “reconhece não saber nada de si” e pede ao outro, ao “tu”, para que lhe
diga: “‘Cuéntame lo que me pasa’”, le pide el yo al tú en um poema de César Vallejo. Así, en
un acto de perdida extrema donde reconoce no saber nada de sí, el yo se gana, dando un paso
de poesia, la boca del testimonio” (KAMENSZAIN, 2007, p.11). O eu surge a partir dessa
perda inicial de um saber, surge a partir de um não saber, de não saber de si. O momento em o
testemunho surge seria então o momento em que se dá a possibilidade da poesia: o passo de
poesia. O passo de poesia, a indicação da sua possibilidade, seria o momento em que o
testemunho abre a boca, como quem dá sinais de fala, como quem dá sinais da possibilidade de
dizer, mesmo que não se realize uma fala logicamente concatenada, na impossibilidade mesma
de se realizar uma fala ordenada, sistemática, sendo o testemunho essa impossibilidade mesma.
A poeta complementa: “la poesía sólo abre a la boca cuando tiene para decir algo paradojal”
155

(KAMENSZAIN, 2007, p.13). Colocando o paradoxo como condição da poesia e do


testemunho, a partir do exemplo paradigmático de Vallejo que ela traz no ensaio “Testimoniar
em oxímoron”, Tamara aponta que o que compõe esse paradoxo é, a um só tempo, vida e morte:
“la poesía de Vallejo, compelida siempre a escribirse en oxímoron, remata a un tempo vida y
muerte ante nuestras narices” (KAMENSZAIN, 2007, p.23). O que está em jogo nisso, o que
se atinge, o que se acerta, no testemunho como condição de possibilidade da poesia, que toma
forma como paradoxo em que vida e morte estão enlaçadas, é a vida. E a palavra que Tamara
usa em espanhol, como verbo, para dizer isso, é “golpe”, que, nessa formulação, nos chega na
ambiguidade do sentido: “golpea la vida agujereando cualquier calcificación de sentido”
(KAMENSZAIN, 2007, p.19). No paradoxo que perfura qualquer calcificação do sentido, é a
vida que é atingida, acertada.
Kamenszain tece uma leitura da poesia de Vallejo, o poeta que testemunhou a Guerra
Civil Espanhola, inscrevendo-a como uma crise [crisis], uma crise do humano diante de um
sentimento de animalidade, animalidade que se coloca como condição para que a poesia exceda
ao humano: “un sentimiento de profunda animalidad (‘quiero escribir pero me siento puma’)
es la condición para que la poesía humana de Vallejo encuentre [...] su posibilidad de
escribirse más allá de lo humano” (KAMENSZAIN, 2007, p.39). Fazendo referência a O que
resta de Auschwitz, de Agamben, Kamenszain diz que, na poesia em questão, como testemunho
de uma crise, a crise do humano, “o homem está sempre mais aquém e mais além do humano”
(AGAMBEN apud KAMENSZAIN, 2007, p.33), transitando entre duas correntes, do humano
e do inumano, que coexistem, mas não coincidem: “‘[e]stas corrientes coexistem pero no son
coincidentes, y su no coincidencia, la divisoria sutilísima que las separa, es el lugar del
testimonio’” (AGAMBEN apud KAMENSZAIN, 2007, p.33). A esse caminho do humano em
busca do humano em um encontro impossível cujo resultado é o testemunho da crise [testimonio
de la crisis], a esse caminho que se faz no paradoxo, Tamara diz que, esse caminho, “que sortea
cualquier apareamiento dualista para buscar la salida en oxímoron, es tan recto en su
obstinación en espiral que se impone a cada vuelta como un camino ético” (KAMENSZAIN,
2007, p.34). O humano que está em busca do humano é o caminho escolhido pela poesia de
Vallejo para abrir espaço, a cada escansão, a cada volta, a uma nova crise, “a un nuevo golpe
de crisis”, para usar as palavras da poeta (KAMENSZAIN, 2007, p.34). As voltas desse
caminho não retilíneo que se constrói na crise, em crise, enquanto crise, fazem desse caminho,
por isso mesmo, um caminho ético, cujo modo de responder ao chamado dos mortos não se dá
senão pela interrupção, pela suspensão do sentido.
156

Enquanto uma narrativa interrompida, enquanto um testemunho, enquanto um caminho


que se faz pela interrupção do sentido, como o choro que interrompe as palavras, como lágrimas
que se endereçam aos mortos, a quem não pode falar, a poesia como resposta aos mortos foi
chamada por Vallejo, segundo Tamara, de “‘responso’”: “aquí poesía debe ser entendida como
una narrativa interrumpida por el llanto. Vallejo la llamó ‘responso’. Como si la suspensión
del sentido que acompaña al llanto fuese un modo de ‘responder’ a los muertos”
(KAMENSZAIN, 2007, p.58). A suspensão do sentido, aqui, indica um transbordamento, o
choro, o pranto, uma reação do corpo que também nos coloca expostos, como seres vulneráveis.
Nesse passo de poesia como a abertura da boca do testemunho, não é o pensamento que se abre
na interrupção, como vimos na abordagem de Agamben, é tão somente a exposição do ser pelo
corpo, tão somente sua nudez, tão somente o pensamento suspendido pela reação do corpo.
Nessa interrupção, poderíamos dizer, é o corpo quem fala. As palavras se suspendem e dão
lugar tão somente ao que transborda e ao que falta a elas, ao que está aquém e além delas.
Assim, nessa suspensão do sentido no poema, o que se abre, como um transbordamento, um
endereçamento, é o corpo. Nesse passo de poesia desse caminho cheio de voltas, a interrupção
é abertura ao corpo, é quando o corpo mais comparece, quando aquele que abre a boca se vê
em extrema exposição por uma resposta que falta e que, paradoxalmente, é o corpo que dá.

Depois dessa passagem por La boca del testimonio de Kamenszain, retomo Agamben não
em uma contraposição, mas em uma justaposição, considerando as duas abordagens como
complementares. Colocada essa consideração, vamos para o final de “Ideia da prosa” de
Agamben, em que o filósofo conta que o escudeiro se encaminhava à Corte para ser armado
cavaleiro: antes de ser armado cavaleiro, o escudeiro, “enquanto ia andando, embalado pelo
andamento da cavalgadura, adormeceu” (AGAMBEN, 1999, p.36). Quando o cavalo para por
um instante, o poeta acorda. Essa interrupção é um gesto de despertar. Essa quebra é uma
resistência. Visualmente, podemos ver que é um atrito entre as palavras, podemos ver que esse
desencaixe, essa desarticulação atrita as palavras de uma forma outra do que se elas estivessem
em um sentido contínuo e linear. Antes de tudo, esse desencaixe produz uma fricção, uma
rugosidade entre as palavras, colocando-as em uma nova relação, em uma nova interação, em
um novo contato, em resistência. Resistente como todo atrito, como toda força de contato que
atua sempre que dois corpos entram em choque e há tendência ao movimento. Resistente,
portanto, como o que move e como o que faz mover. Resistente por criar uma resistência entre
157

as palavras, na voz, na leitura, por ser um gesto resistente, por criar uma resistência no gesto,
por criar um impasse. Resistente também por ser uma suspensão súbita, este gesto de despertar,
subitamente, sobressaltado, é também um espanto – esse que é o princípio da filosofia e da
poesia.
Gostaria de atentar para a tradução de enjambement para o português: “encavalgamento”
ou “cavalgamento”. Em meus ouvidos chega um sentido erótico do termo. Leio um sentido
erótico ou amoroso do verso pelo enjambement, me parecendo que ele faz do verso uma
instância amável. Creio que é uma visão que complementa a que Agamben falou da estância do
verso nos trovadores como joi d’amour. Quando comentei com minha amiga e escritora mineira
Laura Cohen, em uma conversa informal, sobre essa minha escuta, ela disse: “Aqui, em Minas
Gerais, nós falamos ‘encoxamento’”. Mais erótico que cavalgamento seria, certamente,
encoxamento. Fiquei pensando nessa tradução mineira e um detalhe que me chamou a atenção
no deslocamento do “salto” para a “coxa” foi a dupla possibilidade de olhar para essa palavra,
cujo destaque pode ser alternado entre as duas funções, substantivo e verbo. O que torna tudo
mais interessante, além de os mineiros colocarem a ênfase no substantivo, jambe, perna (ou
coxa), e não nos verbos jamber, saltar, ou enjamber, transpor, é que a palavra “encoxamento”
é de uso popular. Quem nunca ouviu jovens de uma cidade grande como o Rio de Janeiro
dizerem “fui encoxado no ônibus”, ou “fui encoxado no metrô”, ao passarem o perrengue de
ocupar um espaço apertado em meio a uma multidão de gente? Geralmente essas frases se dão
no feminino, já que são as mulheres que mais sofrem a violência de homens abusivos nesses
espaços.
Ontem, no dia 04 de junho de 2019, ministrei uma oficina no Instituto Federal do Rio de
Janeiro. Quando falei da possibilidade de tradução do enjambement como “encoxamento”, uma
aluna, a Amanda Cunha, disse: “O que me veio à mente quando você disse ‘encoxamento’ foi
a expressão ‘feito nas coxas’”. Essa expressão vem do modo como os escravos faziam as telhas:
eles faziam as telhas em suas coxas, o formato das telhas era o de suas coxas, ou seja, o resultado
não era uniforme nem regular. Hoje, voltei à tese e resolvi incluir a associação da Amanda, que
me deu mais um sentido ao enjambement. Enquanto eu pensava no sentido erótico ou amoroso,
eis que me chegava, como que em um choque, um sentido oposto a tudo que é amoroso. A partir
da associação de Amanda (aquela cujo nome diz “amável”), o enjambement será o amor e o
horror. Será o irregular e o não uniforme também como o sentido que desencaixa, como a
expectativa que é solapada, mas será, sobretudo, aquilo que não é nem regular nem uniforme
como espectro de um trabalho terrível. Depois disso, ver o enjambement também como o que
dá irregularidade e não uniformidade ao verso é ver a dor, a ferida, o horror que se abrem nesse
158

movimento. Se o enjambement faz do verso uma instância amável, agora, com a Amanda,
sabemos que ele também aponta para a catástrofe. Nessa quebra, nessa fratura, nesse
desencaixe, lemos amor e lemos horror.

Mesmo que Agamben tenha usado a imagem do cavalo no texto “Ideia da cesura” e não
em “Ideia da prosa”, onde ele fala do enjambement, e ainda que o enjambement seja
necessariamente o desencaixe sintático e, a cesura, o desencaixe ou uma quebra qualquer,
arbitrária, no meio do verso, sabemos que o efeito de ambos é o mesmo. Atenho-me ao efeito.
Se pensarmos em “cavalgamento”, podemos ir de Roberto Carlos ao Funk. Destaco dois pares
de versos de “Cavalgada”: “Sem me importar se nesse instante/ Sou dominado ou se domino”;
“E na grandeza desse instante/ O amor cavalga sem saber” (CARLOS, Erasmo; CARLOS,
Roberto, 1977). Quanto ao Funk, poderia me remeter a músicas que trazem explicitamente o
cavalgamento, como o clássico “Eguinha Pocotó” de MC Serginho, ou “Vai Cavalgando”, de
MC MR Bim. Poderia me remeter inclusive à “Paradinha”, de Anitta, de que me lembro quando
penso no efeito da cesura e do enjambement, mas agora não me remeto a nenhuma letra
especificamente, mas aquém ou além da letra, me remeto também ao ritmo, à batida, à dança,
ao movimento que os corpos fazem enquanto dançam Funk. Nesse caso, dispenso as letras,
porque o corpo fala. Certamente, vocês já viram ou já dançaram, fazendo com os seus próprios
corpos, o movimento da articulação que, como toda articulação, necessita da desarticulação
para ser realizado. Queria falar do “cavalgamento” como essa fricção, como um movimento
que se sustenta no encaixe não realizado da fricção, no espaço de abertura, de manobra, que
não é nem a plena articulação nem a plena desarticulação, mas algo entre os dois ou os dois ao
mesmo tempo.
Poderíamos pensar, com isso, junto à cesura, privilegiadamente, em um gozo que não se
dá ao fim, como um poema que teria um grand finale, mas que vai se dando ao longo, como os
“deliciosos quases” de que falou Mallarmé. Um gozo feminino, múltiplo, cujo efeito de
desencaixe ou quebra ou um gesto a meio é, acima de tudo, um incessante começo, um novo
começo que se instaura em cada quebra, aquilo que não para de se inscrever, a permanente
possibilidade de uma escrita do amor, o movimento que se dá incessantemente no efeito desse
duplo gesto no mesmo, de encaixe e desencaixe, como meio. Como se está sempre à beira do
desencaixe, o gozo vai se dando ao longo da movimentação e não ao fim dela.
159

Como os versos de “Cavalgada” dizem, este efeito é um instante. Acontece em um lance.


E como todo acontecimento, não cabe em si, aponta para fora, transborda: eis a “grandeza desse
instante”. A grandeza disso que dispensa um saber (“O amor cavalga sem saber”), como quando
nos vemos tomados, espantados, sobressaltados, em aporia. Movemo-nos, porém, na grandeza
desse instante: nos vemos tomados ao mesmo tempo em que movemos, somos movidos ou
saltados ou assaltados (ou cavalgados) ao mesmo tempo em que movemos ou saltamos ou
sobressaltamos (ou cavalgamos). Nessa voz média, a voz do amor, ativo e passivo: “Sem me
importar se nesse instante/ Sou dominado ou se domino”.
“Fazer o amor, como o nome indica, isso é poesia”, disse Lacan em Encore (LACAN,
1972-1973/2010, p.149). Escutemos essa frase assim, isolada. Se Lacan não vinha falando de
poesia no contexto do seminário, se a poesia entra subitamente nessa formulação de Lacan,
escutemos sua frase como um poema, ou o poema em sua frase. Ele não se demora na poesia,
ela aparece como um lance, e essa aparição ou essa intrusão da poesia nessa frase é, para mim,
enigmática. Detenho-me nela justamente pela brevidade com que Lacan nos lançou, como
faísca, a associação entre amor e poesia. Lacan vinha falando que o que se aborda no amor não
é amor, mas a causa do desejo, o objeto-a, e que “aí está o ato de amor”, nessa impossibilidade
de apreender o amor, nessa abordagem incessante ao desejo, nesse girar em torno (LACAN,
1972-1973/2010, p.149). A isso Lacan associa com a poesia. Mas além dessa breve relação
entre amor e poesia, ou entre a abordagem do desejo e a poesia, sabemos que o princípio do
amor para Lacan é o desencaixe. O amor suplanta o real da impossibilidade de encaixe na
relação sexual. O amor articula o que se dá como desarticulado e só existe se há e porque há
essa desarticulação. Se fazer o amor é poesia, não podemos esquecer que a compreensão
lacaniana do amor está atrelada à relação de encaixe e desencaixe, articulação e desarticulação.
O amor e a poesia, ditos por ele como um fazer, não são, porém, um fazer que tem início e fim
como a produção de um produto, é uma abordagem incessante ao desejo que não se reduz nem
se finda em um fazer, que não cessa de se manter como abordagem, abeirando-se, circundando,
orbitando, girando em torno. Nesse sentido, pensar esse fazer que não se limita a uma produção
de uma obra, é pensar de outra forma a poiesis, e, como Agamben disse em O fogo e o relato,
“a tentativa de pensar de outra forma a poises, o fazer dos homens, não pode deixar de pôr em
questão também o modo como concebemos a política” (AGAMBEN, 2018b, p.76). Pensar esse
fazer, fazer o amor, isto é, a poesia, é, pois, pensar a práxis, a política, articulando essas duas
esferas (poesia e política), ou essas três esferas (amor, poesia e política), que por vezes foram
separadas no pensamento ocidental.
160

Encore: “mais, ainda”, eis como traduziram a sacanagem de Lacan. Nós, brasileiras, não
dizemos “mais, ainda”, nós dizemos “não para, não para, não para!”. E isso também está no
Funk. Eu ia dizer que o Funk, mais precisamente a música “Não para”, de Anitta, deu a tradução
de encore que nenhum(a) tradutor(a) brasileiro(a) jamais deu. Mas fui alertada para o texto
“Ver Helena em toda mulher”, de Barbara Cassin, traduzido por Fernando Santoro em 2005,
em que o tradutor questiona, em uma nota, a tradução do título do livro de Lacan: “não podemos
nos esquecer o contexto sexual, em que ‘encore’ é o que ordena a mulher ao homem quando
ainda quer gozar, ou, em português de alcova, ‘não pára!’” (SANTORO in CASSIN, 2005,
s/p).39 Flavia Trocoli me alertou para outra possibilidade de escuta de encore: encorps, no
corpo.
Ora, em Encore, Lacan diz que o amor é uma ilusão que suplanta o desencaixe da relação
sexual. Para Lacan, a relação sexual é um desencaixe, é a impossibilidade do encaixe, é a
impossibilidade da unidade. Por isso, só há amor se há esse desencaixe. No desencaixe, na
impossibilidade de unidade, há uma ilusão, que dura um instante, de que isso se encaixa. O
amor é essa ilusão. Para haver amor, é preciso haver essa ilusão, é preciso haver a ilusão de que
algo se articula, de que algo se encaixa, mas porque previamente só há o desencaixe como
condição possível. Todavia, em um lance, temos a ilusão de que algo não só se articula, mas se
inscreve. Em um lance, algo começa a se escrever. Por um instante, temos a ilusão de que se
escreve. Isso é o amor. É por isso que o amor é crer em um lance, nesse breve instante, nesse
momento que Lacan chama de “tempo de suspensão” ou “ponto de suspensão” (LACAN, 1972-
1973/2010, p.275) de que falamos no ínicio desse texto. Assim vemos que Lacan fala do amor
pelo mesmo princípio que Agamben fala do verso: a partir do desencaixe, da desarticulação e
da suspensão. Podemos ler o verso em Agamben pelo mesmo princípio teórico que Lacan fala
do amor. Tanto a cesura, mais radicalmente, como o enjambement, são um ponto de suspensão,
uma quebra, um desencaixe, uma disjunção, uma desarticulação, uma paradinha, é preciso
enfatizar, cujo efeito, porém, é um “não para”: a ínfima interrupção de um breve instante é por
onde a interpretação se abre, por onde a multiplicidade do sentido se faz, por onde a
ambuiguidade se faz, por onde se instaura o ponto em que sempre é possível começar, em que,
pelo meio, sempre é possível continuar – a dizer, a ler, a escrever, a pensar, a gozar, a responder
aos mortos.

39
Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1707200506.htm?fbclid=IwAR0clCl9Ixgr1H1gBfwP2vkLC71HYgA
2O6kV1LZYXzRmNY_p34vQL0s9YXk Acesso em 09/06/2019.
161

Se, em “Cavalgada”, vimos o não-saber, mas o gozo, sabemos, porém, que isso que para,
brevemente, como uma paradinha, ao mesmo tempo que provoca um “não para”, provoca
também o pensamento (parar – para pensar), como vimos em Agamben e indica a reação
transbordante do corpo, como vimos em Kamenzsain. Entre a “Cavalgada” e o efeito do
cavalgamento ou da cesura, encontramos o verso entre o gozo, o corpo e o saber, mantendo
junto – à medida que expõe suas diferenças – aquilo que estava destinado a ficar separado. O
verso interrompe, então, o destino do Ocidente. Nele, corpo, gozo e pensamento, suspostamente
opostos, se entrelaçam. E se o pensamento já é suspensão, ele também é a oscilação de um peso,
porque pendere não é apenas o objeto penso, pendido, mas o gesto do que está pendido, isto é,
pendulando, pendendo, oscilando, o que alude a uma balança que, por sua vez, pode nos aludir
à imagem da justiça. Agora, entre o saber, o gozo e o corpo, juntam-se a ética e a política. Seria
possível um pensamento do verso em que, pensando verso, pudéssemos pensar história e pensar
amor? Poderíamos pensar esse entrelaçamento como um despertar? No efeito de interrupção do
galope, no gesto do verso como um passo que, resistindo, porém, saltando, permite o
pensamento, permite parar para pensar, no mesmo gesto em que o corpo é que comparece,
sendo, portanto, um gesto de abertura ao pensamento e ao corpo, ao pensamento e ao que
transborda o pensamento, ao pensamento e ao momento em que o pensamento falta, ao
pensamento e à resposta do corpo, em um mesmo gesto que permite, ainda, se lançar e amar e,
no verso disso, se voltar para a catástrofe, respondendo ao chamado dos mortos. Indo ao que
queima, como quem vai aos mortos, como quem vai ao amor. Nesse gesto, saber, gozo, corpo
e justiça se encontram no ponto de encontro dos mutilados da vida.

Na introdução do Seminário 8, A Transferência, intitulada “No começo era o amor”,


Lacan, antes de chegar à sua discussão sobre O Banquete, começa a falar sobre o amor antes de
começar propriamente, antes de entrar no diálogo. Justapondo essa frase, “No começo era o
amor”, ao lado de enunciações de terceiros como “No começo era o verbo”, “No começo era a
ação” e “No começo era práxis”, Lacan parte dessa frase não como enunciado, não como um
dizer que se fixa no dito, mas em seu valor de abertura e possibilidade, em seu valor de
enunciação: “No começo era o amor” (LACAN, 1960-1961/1992, p.12). Entre desvios (em um
momento, ele diz: “Antes de chegar lá...”; em outro momento, ele diz: “Peço-lhes perdão por
esse longo desvio” (LACAN, 1960-1961/1992, p.13-15), entre desvios, assim como o atraso de
162

Sócrates para chegar à casa de Agatão, assim como o rodeio de Derrida para responder à
pergunta que lhe foi feita em Che cos’è la poesia?, Lacan, entre desvios, para falar do começo,
vai ao amor no começo da psicanálise e como começo da psicanálise e, antes de chegar ao
começo de O Banquete, ele vai, primeiro, não a Platão, não a Sócrates, mas vai ao amor em um
“efeito de um luto”: ele vai à morte de Sócrates (LACAN, 1960-1961/1992, p.15). Mais
precisamente, ele vai à morte de Sócrates como uma questão política, àquele que foi condenado
à morte “com o consentimento de todos”, por sua condição sem lugar, sem paragem, por sua
condição atópica “na ordem da cidade”, não condizente com o ordenamento normativo
(LACAN, 1960-1961/1992, p.18). Usando inúmeras vezes a palavra “espanto” [étonnement],
inclusive interrogando “o que há de ‘espantoso’ nessa morte” e no fato de que ela ainda aconteça
nos dias de hoje [Et “quoi d’étonnant” si une action si vigoureuse, dans son caractere
inclassable – “si vigoureuse qu’elle vibre encore jusqu’à nous” – a pris sa place. “Quoi
d’étonnant” à ce qu’elle ait abouti à cette peine de mort... (LACAN, 1960-1961, p.6)]–
aproximando-se muito do modo como Benjamin usa esse termo em uma de suas teses Sobre o
conceito de História, que iremos ver mais para frente –, usando a palavra que designa o começo
da poesia e da filosofia, tal como foi dito por Sócrates e Aristóteles, Lacan não vai ao amor
senão por essa palavra, pelo começo da poesia e da filosofia, e não vai ao amor senão pelo luto,
pela morte de Sócrates como uma questão política que ainda se repete na atualidade (LACAN,
1960-1961/1992, p.18).
Além da morte de Sócrates, Lacan vai à morte de Freud, o pai da psicanálise, o começo
da psicanálise. Antes de ir amor, mas já indo ao amor, já sendo esse movimento um começo,
ele vai a duas mortes que portam um começo. Nesse caminho cheio de voltas, antes de ir ao
começo do amor, no começo antes de começar, antes de ir ao Banquete, Lacan vai a essas duas
mortes para fazer os ouvintes chegarem ao espanto: “Para onde os conduzo?”, ele pergunta aos
ouvintes e, ao final do mesmo parágrafo, responde: “[...] para fazê-los chegar ao espanto”
(LACAN, 1960-1961/1992, p.18) [...nous porte à l’étonnement (LACAN, 1960-1961, p.7)].
Em mais um desvio, ele diz: “Concordo, de bom grado, que me perco, que não tenho que
conduzi-los aos últimos impasses, que fazendo-o de saída irei espantá-los, se já não o estão,
com Freud, senão com Sócrates” (LACAN, 1960-1961/1992, p.18). Lacan, portanto, ao falar
de amor, não apenas conduz ao começo da psicanálise, mas, entrelaçadamente, conduz ao
começo da poesia e da filosofia. Assim, ele leva a crer que não se vai ao amor como começo
senão pela poesia e pela filosofia como começo, não se vai ao amor senão pelo espanto e, ainda,
que não se vai ao amor senão pelo luto como começo. Isso se relaciona com o que Lacan fala,
163

na esteira de Freud, de compreender “a posição do amor” como uma “posição precária, posição
ameaçada, vamos dizer logo, posição clandestina” (LACAN, 1960-1961/1992, p.22).
Compreender o verso como aquilo que se volta para o amor e para o horror é compreendê-
lo em uma tensão trágica. Tensão que remonta aos primórdios da poesia. Sócrates, em Teeteto
de Platão, disse que a origem da filosofia é o espanto: “Estou vendo, amigo, que Teodoro não
ajuizou erradamente tua natureza, pois admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não
tem outra origem a filosofia” (PLATÃO, 2010, p.55). Onde se lê admiração lê-se espanto. A
palavra thaumázein em grego (θαυµάζω) quer dizer “espanto”, “admiração”, “assombro”.
Espantar-se, portanto, é sofrer a “vertigem” (palavra usada por Teeteto, em Platão, quando ele
diz que o que está sendo pensado por Sócrates lhe causa “espanto” e que, quando ele olha para
essas coisas que estão sendo pensadas, elas lhe provocam “vertigem” (σκοτοδινιῶ)40) que tanto
pode ser causada por admiração como por assombro. Em introdução a Antígone, no texto
intitulado “A voz contrária de Antígone”, Trajano Vieira atenta para o sentido ambíguo do
adjetivo que qualifica “homem” nesta passagem da tragédia: “Somam-se os assombros [deiná]/
mas o homem ensombra o próprio assombro [deinóteron]”. Assombro significa, ao mesmo
tempo, “‘terrível’ e ‘espantoso’”, diz Trajano (VIEIRA in SÓFOCLES, 2016, p.15).
Aristóteles, em Metafísica, complementa Sócrates dizendo que o poeta é, de certo modo,
filósofo: “Através do espanto, pois, tanto agora como desde a primeira vez, os homens
começaram a filosofar [...]. Mas aquele que se espanta e se encontra em impasse reconhece seu
não-saber. Por conseguinte, o filômito é, de certo modo, filósofo: pois o mito é composto do
admirável, e com ele concorda e nele repousa” (ARISTÓTELES, 2013, A2, 982B 12-19,
p.11). Filômito, aquele que compõe mitos, seria o que entendemos por poeta. Temos aí que
filósofo e poeta compartilham da mesma condição, a de se espantar, isto é, a de ser tomado por
admiração, por assombro, que os coloca em impasse, em aporia, lançando-os em um não-saber,
reconhecendo, pois, sua ignorância. Há, portanto, uma ligação entre espanto ou assombro,
impasse, vertigem e não-saber. Se, para nós, admiração e assombro nos chega como dois
contrários, sabemos: ambos os sentidos estão na mesma palavra, espanto. Assim, compreender
o verso em uma tensão trágica é lembrar que o princípio grego da poesia, pelo espanto,
pressupõe também essa tensão irresoluta.
Etimologicamente, a palavra “espanto” vem do latim expaventare: “ex-, ‘para fora’,
pavere, ligado a pavor, medo, tremer de medo.” Se em grego temos thaumázein, de onde vem
“admiração”, “assombro”, “espanto”, em latim vemos como o espanto está intrinsicamente

40
Ver Pucheu, Espantografias, livro inédito.
164

vinculado ao horror, ao tremer, ao temer (Temer, verbo e nome/sobrenome. Vemos que falar
de espanto é, também, falar sobre nomes, sobre nomes que apontam para o amor ou para o
horror). “[T]oda literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror”, disse Silvina Lopes em
Literatura, defesa do atrito (LOPES, 2012, p.78). Com ela, poderíamos dizer que poesia é, ao
mesmo tempo, alegria e dor, amor e horror, assombrar-se diante do admirável e assombrar-se
diante do horror, assombrar-se diante do assombro do amor e diante do assombro do horror,
estas duas modalidades do espanto, isso que causa “vertigem” – uma derivação do étimo de
“verso”, vert –, isso que faz tremer, colocando-nos em êxtase, ékstasis, isto é, em deslocamento,
em movimento para fora determinado por horror ou assombro. Ou seja, lançando-nos para fora
de nós mesmos. Espantar-se ou assombrar-se ou admirar-se, portanto, é entrar em contato com
o fora diante do qual não se possui conhecimento prévio.
Se o começo da filosofia e da poesia é o espanto, Hannah Arendt, em “O interesse pela
política no pensamento filosófico europeu recente” (1954) – publicado no livro A dignidade da
política (2002b) –, diz de uma recusa das filosofias antiga e moderna em reconhecer a
experiência do horror:

É como se [esta] recusa [...] tivesse sido herdada da recusa tradicional de


conceder à esfera dos assuntos humanos o thaumádzein, esse espanto diante
do que é tal como é, do que, segundo Platão e Aristóteles, é o começo de toda
filosofia, e que eles próprios já tinham se recusado a aceitar como condição
prévia da filosofia política. Pois o terror mudo diante do que o homem pode
fazer e do que o mundo pode se tornar está, sob vários aspectos, ligado ao
espanto mudo de gratidão de onde surgem as questões da filosofia (ARENDT,
2002b, p.88).

Colocando-nos a necessidade de pensar uma nova filosofia política, Arendt diz que tal
mudança “provavelmente consistirá na reformulação da atitude do filósofo em relação à esfera
política” (ARENDT, 2002b, p.89). Ora, se desde a antiguidade o assombro esteve separado dos
assuntos humanos, inclusive pelos filósofos, se os próprios filósofos já separavam o espanto ou
o assombro da esfera humana, da esfera política, da esfera pública, separando, então, filosofia
e vida, filosofia e gente, filosofia e a vida comum, filosofia e a vida em comum, talvez não só
uma nova filosofia política precise partir dele como impulso de questionamento, mas também
uma política precise começar dessa capacidade de se assombrar com a vida, com a vida comum
e com a vida em comum, com isso que se diz passar ao largo do humano e que, no entanto,
sempre está rente a ele, com isso que só reafirma a animalização do humano na medida em que
pleiteia a sua humanidade, com isso que sempre foi assunto humano, apesar de parecer assunto
dos bichos, com isso que sempre ameaçou a vida e a vida comum e a vida em comum, o horror.
165

Mais que demandar uma filosofia política que parta da vida e do “assombro perante o que é tal
como é”, perante o real, poderíamos dizer, perante o que nos emudece diante do que está às
claras, sem véu, é necessário demandar uma política que parta da vida e da capacidade de se
assombrar, desse gesto que falta à política. O espanto é um gesto do corpo que indica uma falta,
uma falta de palavras, de onde, porém, é preciso começar a falar. Talvez, hoje, possamos dizer
que se espantar é condição para começar. Talvez só haja política se houver espanto. Talvez a
política seja isso que começa quando começa a capacidade de se espantar.
Se o começo da filosofia e da poesia é o espanto e se aqui estamos pleiteando uma
política que comece pelo/no/com o espanto, vemos que ele, o espanto, o assombro, também
está presente em uma das teses Sobre o conceito de História de Benjamin, a tese 8, que vem
imediatamente antes da tese sobre o anjo da história. Para além do gesto do anjo e de seu rosto
com olhos arregalados, Benjamin nos leva a crer que, além da filosofia e da poesia, o assombro
também deve ser o princípio da História:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que


vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que
nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa
posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da
circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso,
considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os
episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um
assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o
conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante
assombro é insustentável (BENJAMIN, 2012, p.13).

O estado de exceção em que vivemos, onde a exceção se tornou a regra, é um espaço


onde a lei fica em suspenso, onde, como disse Hannah Arendt, “tudo é possível” (cf.
AGAMBEN, 1995, s/p). Apesar de haver um princípio de suspensão no qual se funda o estado
de exceção, a suspensão como estamos vendo no verso é inteiramente oposta, porque a violência
que funda o direito suspende o próprio direito, fundando um não-direito dentro do próprio
direito, o que faz com que toda a história do direito seja essa violência e esse suspense. Como
diz Derrida em Força de Lei, “a fundação do direito fica suspensa a um ato performativo puro”
(DERRIDA, 2010, p.84). Na configuração da polícia, por exemplo, essa suspensão aparece
novamente, porque ela suspende a separação entre a violência que fundou o direito e a violência
que conserva o direito, inventando assim uma zona em que tudo é possível, inventando o direito
dentro do direito, se comportando como um legislador sem ser de sua função promulgar a lei
(DERRIDA, 2010). Ou seja, a suspensão não é exclusiva ao estado de exceção, ela já existe no
166

aparato policial que caracteriza o estado de direito. Mas iremos ver que, se essa suspensão é
excludente, ou inclui no mesmo gesto que exclui, a suspensão no verso é inclusiva, incluindo
justamente aquilo que é excluído pela suspensão na qual o estado de direito é fundado. Por ora,
adianto apenas que elas são opostas: enquanto a primeira instaura o horror, a segunda expõe o
horror e, ao mesmo tempo, se volta para o amor. A suspensão do verso nos leva tanto ao amor
quanto ao horror dos tempos, mas para que seja possível expor a falta de palavras e, no mesmo
gesto, a tentativa de falar, de enunciar, enquanto a outra suspensão, como gozo enquanto pura
pulsão de morte, instaura o estado puro do horror: o do emudecimento.
Quando nos perguntamos, assombrados, “Como essa barbárie ainda acontece em 2019,
ou em 2020, ou em 2018?”, isso, para Benjamin, não é um assombro filosófico, porque ele nada
move, ao contrário, paralisa. Não gera conhecimento, não gesta um nascer-com, não gesta um
nascer outro, só gera o estado mudo da constatação de que o horror não cessa de acontecer. A
História que se sustenta por essa constatação, por esse assombro, Benjamin diz, “é
insustentável”. Esse assombro apenas significa que, se a História tem por princípio esse
assombro, ela não se sustenta. É preciso inventar uma outra História que não se sustente pelo
princípio do horror, é preciso inventar uma História que instaure o efetivo estado de exceção,
isto é, onde a exceção não seja a regra. E essa História deverá ter como princípio o gesto de
espanto que, na vertigem do desencaixe do tempo, exponha o real intransponível e faça nascer
a possibilidade de conhecimento entre a linguagem e aquilo que está aquém ou além da
linguagem, em uma falta ou em um excesso: um balbucio, um grito, um grunhido, um mugido,
um rugido, um corpo que rasteja (como serpente, esse bicho demoníaco), que se dobra sobre si
(como ouriço), que porta revoltas (como carneiro), que parece que salta como um cavalo mas
realiza um passo de ganso, um corpo estranho assim, que não se sustenta, que se debate, que se
revolve, que se revolta. O ponto de encontro com os mutilados da vida será no espanto, entre a
falta de saber (o gozo e o corpo) e o começo do pensamento (o saber). O ponto de encontro com
os mutilados da vida será no golpe do verso, na vertigem entre um ponto a mais e uma vértebra
a menos.
Assim, leio a tensão trágica do duplo gesto do verso como gesto de espanto, em que
cesura e enjambement expõem a falta e/ou a pendência de palavras e sentidos, ao mesmo tempo
em que são os lugares por onde é possível começar a falar (e começar a falar não é ter domínio
da linguagem, pelo contrário, se o poema é um corpo cortado, interrompido, ele não é, antes de
tudo, um corpo que domina a linguagem, mas um corpo que transborda, como vimos em
Kamenszain, que se debate, se revolve, se revolta). O gesto do verso é, pois, o espanto. Se no
167

começo é o espanto, digo: filosofia, poesia, política e história: no começo é o amor, no começo
é o horror.
168

II. MATÁVEIS: AMÁVEIS


169

2.1. Matável: Amável

Movemo-nos na precariedade e é a ela que o amor traz os seus abismos.


(Silvina Rodrigues Lopes, Sobretudo as vozes)

vão queimar a vida!


vão queimar a vida!
[...]
os amantes de rua
mutilados
dançam sobre a brasa.
(Bruna Mitrano, Não)

Escrevo parte desse texto para o XV Simpósio da Pós-Graduação em Ciência da


Literatura, acontecido entre os dias 01 a 04 de outubro de 2018, na Faculdade de Letras da
UFRJ, um mês depois do incêndio do Museu Nacional, acontecido no dia 02 de setembro de
2018. Um dia antes do incêndio, acabei parando na mira de quatro fuzis, por um erro de
caminho, ao voltar de um jantar na casa de um amigo. Horas antes, eu estava escrevendo esse
texto. Horas antes, no mesmo dia, pela manhã, fui ao lugar do genocídio de um milhão de
escravos que chegaram ao Rio de Janeiro na zona portuária, atualmente denominada “Porto
Maravilha”, depois das reformas urbanas do então prefeito da cidade, Eduardo Paes. Tais
reformas despejaram centenas de pessoas de suas casas sob o choque de ordem que massacrou
a população pobre desempregada em nome do projeto de “cidade limpa”, projetada no Museu
do Amanhã, que custou duzentos e cinquenta milhões de reais, construído com o apoio da
poderosa Fundação Roberto Marinho, erguido na mesma zona portuária, na região do Valongo,
porto de entrada por onde adentraram milhares de escravos durante um passado sempre
presente. Sempre presente porque sempre soterrado sob o Amanhã, durante um começo que se
resume a uma palavra, escravidão, durante outro começo que se resume a outra palavra,
indústria, uma das misérias do progresso do início do século XX. Desde o começo da história
deste país e desta cidade, essa área foi marginal. Sabemos que são das áreas marginais que vêm
a força bruta que faz mover essa maquinaria. São elas, as marginais, o começo desse país e
dessa cidade. No lugar do começo, o Amanhã – o futuro gigantesco, monumental,
demasiadamente futurista (desde sua arquitetura até a sua programação, com a arte atrelada ao
progresso, com a ciência atrelada ao puro cientificismo), com seus espelhos d'água olhando
para o horizonte da Guanabara, olhando para o início dessa cidade, coincidindo com o lugar do
começo, o mesmo lugar em que milhares de pessoas foram e são usadas como massa de
manobra para a construção diária de um amanhã que os mata.
170

Eis que o Amanhã é o exemplo vivo do que Benjamin chamou de monumento de cultura
como monumento de barbárie. Mas o amanhã continuará muito mais próximo dos pulos na água
que os meninos – em sua maioria pobres e negros – estão dando bem ali, na Baía de Guanabara.
Nesse dia, pela manhã, enquanto eu via o lugar do genocídio, eu me lembrava de quando eu
havia lido a asquerosa notícia da festa de inauguração do Amanhã. No fim do dia, assisti ao
atentado da bomba no Riocentro no filme de Silvio Da-Rin, “Missão 115”, dando continuidade
a mais uma história de barbárie, a mais uma história de extinção em um passado recente da
ditadura brasileira. Voltando para casa, vi a história em chamas. A segunda extinção dos
dinossauros. A segunda morte de Luzia, o fóssil que sobreviveu onze mil anos, mas morreu
mais um pouco nas chamas de 2018. Um dia antes, eu sobrevivia mais um pouco, salva pelos
fuzis que escolheram me deixar com vida, sem saber que o maior sobrevivente seria o meteoro.
Sem saber que, dias depois, um ataque não daria fim a outro atentado que se resume a um
homem que quer todas as mulheres mortas. Sem saber que, a partir de então, continuaríamos,
ainda, em 2019, e depois, precisando estalar a língua em um grito de “não”.

O que é política? é a pergunta que intitula um livro de Hannah Arendt (2002). Nele, a
filósofa diz que, compreendida em uma relação de meios e fins, a política nada mais é do que
um meio para atingir um objetivo, a vida, que está para além do que ela mesma pode assegurar
(ARENDT, 2002, p.24). Ora, se a vida sempre foi ou deveria ser o objetivo ou a finalidade da
política, então o que a política assegura é tudo, menos a vida, sobretudo em termos modernos,
em que a lógica da finalidade está atrelada à lógica do produto, do próprio e da propriedade,
pressupondo necessariamente um expropriado. Hoje, vemos, sentimos, sabemos,
explicitamente, que o objetivo ou a finalidade da política não é a vida. Quando comecei a
escrever este texto, vi que era impossível repetir, aplicando aos nossos dias de hoje que a vida
é ou continua sendo a finalidade da política, porque, por mais que seja legalmente, por mais
que, juridicamente, a política tenha a vida por fim, por mais que isso esteja escrito sem estar
legível, por mais que Hannah Arendt pudesse estar falando nesse sentido, e é provável que ela
estivesse falando neste sentido, por mais que achemos isso, ou que isso possa ser tido como
óbvio, hoje, não precisamos ler em lugar algum para sabermos, explicitamente, que a vida não
é objetivo ou finalidade da política.
Nesta democracia, ou nesta oligarquia, ou nesta plutocracia, ou nesta democracia morta,
ou nesta democracia ainda não nascida, ou neste fantasma de democracia, ou nesta oligarquia
171

ou plutocracia disfarçada de democracia em que vivemos, nisto que não sabemos ao certo o que
é, nisto que nem sabemos nomear, a política assegura seu objetivo, a riqueza, às custas da vida.
Aristóteles, em A Política, já teria identificado a moeda como o meio e o objeto da arte de
adquirir riquezas, que deveria divergir da ciência da economia em uma democracia, atendendo
à necessidade, mas, em uma oligarquia, não diverge (ARISTÓTELES, 2009, p.26-31). Hoje, o
meio, o objeto e o fim da política coincidem no mesmo, na obtenção de riqueza. Se a vida
sempre foi um fim da política, e, portanto, exterior à política, a política sempre esteve a serviço
de excluir a vida. Mas, se ter a vida por fim é colocar um empecilho entre a política e a vida, o
que vemos hoje é a exclusão da vida como preço: às custas de uma vida que é mais ou menos
matável, mais rapidamente ou mais vagarosamente matável. Isso sempre foi grave, mas a
gravidade, hoje, talvez recaia no assombro de ver que isso está explícito, desvelado, sem véus,
descarado, ou melhor, às caras e às claras: somos matáveis. Apenas mais ou menos matáveis.
O pobre, preto, favelado, em relação a mim, é mais matável que eu. Em relação a um homem,
eu, enquanto mulher, sou mais matável, mas, em relação a uma mulher lésbica, sou menos
matável. A minha mãe, pensionista do estado do Rio de Janeiro, é menos matável que o pobre,
preto, favelado, mas é mais matável que eu, porque, como ela, uma multidão de servidores foi
morta aos poucos no ano de 2017 – pelo governo do estado do Rio de Janeiro, regido pelo ex-
governador Luiz Fernando Pezão, atualmente preso – carecendo do mínimo necessário para a
sobrevivência. Nesta escala, eu posso me considerar privilegiadamente salva não porque tenho
vida, mas porque sou menos matável. Quando vou às manifestações, sou mais matável que as
minhas cachorras, que ficam em casa. Somos matáveis, enquanto deveríamos ser apenas
amáveis. Curiosamente, a palavra “amável” está na palavra “matável”, parecendo estar, também
aí, o vínculo entre amor e morte.
Nesta relação em que uns podem ser mortos rapidamente e outros podem ser mortos aos
poucos, Jair Bolsonaro, Flavio Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Moro,
Mourão, Cunha, Temer, por exemplo, não são seres matáveis, porque, se fossem, já estariam
mortos há muito tempo, não haveria tentativa fracassada. Tampouco, é claro, são amáveis. Nem
amáveis nem matáveis, porque só quem é outro aponta para o fim, e eles não são o outro, mas
a identidade, o poder, que quer se preservar enquanto o mesmo, aniquilando toda possibilidade
de alteridade. Também não são sobreviventes. Na gravação grampeada em que o então senador
Aécio Neves pede dois milhões de reais ao empresário Joesley Batista, ele diz, referindo-se à
pessoa a quem seria atribuída a tarefa de pegar a mala com a quantia: “Tem que ser um que a
172

gente mata ele antes de fazer a delação”.41 Eles são os que matam. Nós somos sobreviventes
porque sofremos e porque fitamos a morte a todo o momento. Não são sobreviventes aqueles
que não sofrem e não estão sob risco de morte. São, esses, os detentores do poder. Fora os
poderosos e os sobreviventes, há apenas os mortos. Nós, matáveis, somos sobreviventes. E
quem sobrevive é sempre outro, porque ele só existe em relação com a morte e com quem está
morto. Um verso do livro Não, de Bruna Mitrano, diz: “em toda alteridade, resta um pouco de
fim” (MITRANO, 2016, p.28). Ou seja, tudo que é outro aponta para o fim. A sobrevivência
está ligada à alteridade e à morte. Mas deveríamos ser só amáveis e não matáveis. Já disse que
não afirmo isso como uma essência nem como uma qualidade, mas como um nome que vem de
um modo de estar em relação no e com o mundo.

A nossa política ocidental, desde Aristóteles, sempre foi fundada em uma divisão que
chancela os que podem participar da política e exclui os que não podem participar. Um dos
critérios em que essa divisão se ancora, e que, ainda hoje, sobretudo hoje, lutamos contra ele, é
a exclusividade da capacidade de discurso a homens. Mais primário que isso é a caracterização
da política exclusivamente pelo discurso entendido como fala articulada, elaborada, lógica.
Desde a Grécia, a pólis, o âmbito estritamente político, era exclusivo àqueles que podiam
discursar. E apenas homens livres podiam discursar. Mulheres, escravos, crianças e bárbaros
nunca puderam discursar. Como ação e discurso significavam a mesma coisa, uma vez que os
mesmos que podiam agir eram os mesmos que podiam discursar, esses últimos não podiam agir
nem tampouco discursar. Segundo Aristóteles, em A Política, esses apenas falavam, mas não
discursavam, apenas tinham voz, phoné, como um som que dá sinal de dor ou prazer, mas não
tinham linguagem, logos, porque estavam mais próximos à animalidade, mais presos à
necessidade imediata de sobrevivência (ARISTÓTELES, 2009, p.16). Assim, estavam mais
perto do balbucio, do gaguejo, do mugido, do rosnado, do rugido, de todo som que não era o
do articulado do discurso. Vemos então que a base da nossa política ocidental desde sempre se
constitui sentenciando aqueles que devem ser excluídos. A esses são vetados o discurso e a
ação.
Antes de ser assassinada, Matheusa Passareli passou por um tribunal e foi julgada
também porque, ao tentar se defender, falava frases desconexas, sem lógica, sem articulação.

41
Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/grampo-revela-que-aecio-pediu-2-milhoes-dono-da-jbs-
21353924 Acesso em 03/07/2019.
173

Além disso, ela foi assassinada igualmente porque estava nua. Nua, desconexa e de gênero não-
binário, subvertendo a definição, a captura em uma identidade, sustentando-se na
indecidibilidade, Matheusa foi, por isso, reduzida a um corpo nu. Sem nenhuma justificativa,
essas foram as justificativas para considerar esse corpo um corpo matável.
Em apresentação a Antígone, no texto “A voz contrária de Antígone”, Trajano Vieira,
pensando a tragédia grega, diz que “‘a ausência de limite é fruto da ‘temeridade’, fatal a
qualquer projeto civilizatório” (VIEIRA in ANTÍGONE, 2009, p.16). Creonte, um tirano, ao
imaginar que seu poder era ilimitado, viu seu mundo desmoronar. Hoje, não temos mais
tragédias, mas sofremos de efeitos trágicos: vivemos em uma perda de limites. Paradoxalmente,
o efeito dessa perda não é outro senão o excesso. E se “excesso” significa “ir além da conta”,
ou “aquilo que sobra”, ou “o limite extremo”, significa também, etimologicamente, “saída”
(excedere, de ex-, “fora”, mais cedere, “sair, ir embora, retirar-se, abandonar”). As palavras
“excesso” e “exceção” têm a mesma origem. Excesso e exceção só são a saída enquanto
inacessíveis, enquanto opostos ao acesso. Aproximar-se do excesso é se aproximar do
inaproximável. Dizer que hoje vivemos no excesso de uma política ou em uma política de
exceção é dizer que vivemos em uma política inaproximável que perdeu todos os limites.
Enquanto ela perde completamente os limites que traçam o outro, enquanto ela, na perda de
limites, exclui e aniquila o outro, talvez a poesia instaure uma política inédita que não exclui,
mas denuncia, acolhe e articula as vidas que sempre foram reduzidas ao limite da existência, à
vida biológica do corpo, à animalidade, e que, por isso mesmo, sempre foram passíveis de ser
condenadas à morte. Em um livro que está entre o excesso e a falta, encontraremos uma ética
dos extremos que confere um estatuto que a política nunca conferiu a esses e essas que são
matáveis.

Bruna Mitrano nasceu em 1985 e se apresenta como “favelada, professora da rede


pública e mestre em Literatura Portuguesa (UERJ)”.42 Em 2016, lançou seu primeiro livro de
poemas, intitulado Não, pela editora Patuá. Composto por sessenta e sete páginas, entre verso,
prosa e desenho, em uma pontuação instável, em letras todas minúsculas, em uma ausência
majoritária de títulos, esse livro gira à altura de tudo que grita à margem da vida e ao rés do

42
Conferir nas mini-biografias presentes nas seguintes revistas eletrônicas em que alguns de seus poemas foram
publicados: http://diversosafins.com.br/diversos/janela-poetica-iii-46/
e http://revistaoceanica.blogspot.com/2016/08/bruna-mitrano.html Acessos em 17/06/2019.
174

corpo. No primeiro poema, lemos: “na estrada de terra/ da cidade vazia/ a criança preta empunha
um pedaço de pau./ ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro/ quanto ruínas.” (MITRANO,
2016, p.15). O objeto desse poema é a criança preta, ou melhor, o corpo nu prematuro da criança
preta, ou melhor, o corpo nu da criança preta “tão prematuro/ quanto ruínas”, esse desajuste,
esse adiamento do sentido provocado pelo desencaixe entre “prematuro” e “ruínas”, provocado
pelo corte, pela quebra que traz a imprevisibilidade da morte, da finitude, ao que acabou de
nascer, ao que nasceu antes do tempo, sendo o desajuste mesmo disso que é, ao mesmo tempo,
o que nasceu cedo demais e o que remanesce depois de morto, ao mesmo tempo, o cedo demais
e o tarde demais coincidindo em um corpo, em uma coincidência paradoxal que acusa um
descompasso do tempo:

na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
morte ao rei!
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre –
o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.
(MITRANO, 2016, p.15)

No começo, era a ordem da criança preta. No primeiro poema do livro, a primeira voz é
da criança, da infância, da criança preta, nua, de pés descalços, que não emite exatamente uma
voz, mas um som gutural, isso que não é uma fala articulada, mas um som distorcido, grave,
rouco, profundo, provindo da ranhura da garganta. Aristóteles diria que esse poema é
monstruoso, porque estruturado em contradições: como pode uma criança ser prematura e
velha? Como pode uma criança emitir um som distorcido que, no entanto, diz? Como pode uma
criança guturar “morte ao rei!”? Como pode uma criança preta guturar “morte ao rei!”? Como
pode uma criança preta e nua guturar “morte ao rei!”? Uma criança prematura emite um som
monstruoso ou fantasmático que anuncia “morte ao rei!”. O poema se tece em distorção e
desproporção, em uma desmedida que vai crescendo: de um lado, uma criança prematura, do
outro, a ordem no som gutural; de um lado, um pedaço de pau, do outro, o rei; de um lado, a
partícula “pre”, do outro, a partícula “pós”; de um lado, a criança preta e prematura, do outro,
a criança velha quanto ruínas; de um lado, a criança preta, do outro, o rei, a igreja, o patriarcado;
de um lado, a criança livre, do outro, a igreja abandonada; de um lado, o sino da igreja, do outro,
175

um pedaço de pau na mão da criança; de um lado, a badalada aguda do tempo, do outro, a


distorção interruptiva de um som infantil, de um som que não chega a ser um discurso, mas que
não deixa de ser uma voz, de uma voz que é mais que um som e menos que um discurso, de
uma voz que é um som e uma fala, um imperativo, uma ordem. O que torna esse poema
monstruoso é que toda essa desproporção não se dá como dois lados díspares, mas como dois
lados que acontecem ao mesmo tempo. A desproporção se dá entre o monumental e o mínimo
ao mesmo tempo. Não só entre monumental e mínimo, mas entre contradições e distorções que
subvertem a suposta ordem natural. No começo, era a ordem da criança preta – que mais se
parece com um fantasma do que com uma criança.
Para além desse primeiro poema que abre o livro, encontramos vários exemplos do que
gira à margem da vida e ao rés do corpo ao longo de todo o livro: “cabeças moles, ferrugem no
canto dos dentes”; “puta que pari um bicho morto”; “risco indócil na coxa”; “o filho podre a
filha cerca viva”; “língua solta que soca o asfalto”; “deceparam os pés aninhados”; “a mão
convulsa”; “mijo morno”; “a convulsão de quem nada tem”; “olhos graves lama-mangue”; “as
mãos estavam vazias”; “homem louco”; “desdentada não consegue emprego”; “suor. escorre
na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até o cóccix.”; “sangue seco nas
minhas coxas”; “sangue de quem se aborta”; “suor seco”; “lágrimas, coriza, bichos”; “um pau
maior que o corpo, maior que eu, que sangro e sangro muito”; “a mão aberta, vulnerável, atirada,
como se de fora do corpo”; “tenho as gengivas suturadas à mostra” (MITRANO, 2016, p.16; p.18;
p.18; p.20; p.22; p.24; p.24; p.26; p.26; p.28; p.29; p.29; p.36; p.37; p.39; p.42; p.47; p.49; p.54; p.62).43
Nesse livro, o encontro com os mutilados da vida também está diretamente vinculado à
excreção, às substâncias expelidas pelo corpo (suor, mijo, sangue, lágrimas, coriza). Se
encontramos exemplos do que gira à margem da vida e ao rés do corpo, é porque, em outras
palavras, ao longo de todo o livro, encontramos os mutilados da vida:

a carranca me rindo
eu
em queda livre desde às cinco da tarde
língua solta que soca o asfalto
vendo
a tragédia pronta pra despacho
um bicho baixo se esgueirando
um colchão largado na calçada
vão queimar a vida!
vão queimar a vida!

43
Como foram muitas citações, optei por tentar não poluir visualmente o texto e não quebrar tanto o seu ritmo
com as referências vindas ao fim de cada citação, então, coloquei-as ao fim da última citação, com as páginas
aparecendo respectivamente. Adotei esse padrão ao longo de todo esse capítulo.
176

deceparam os pés aninhados


atearam fogo –
os amantes de rua
mutilados
dançam sobre a brasa.
(MITRANO, 2016, p.22)

O poema acima se intitula “arranca”, palavra arrancada da primeira palavra do primeiro


verso, “carranca”. De cara, nos deparamos com essa formulação contraída: “a carranca me
rindo”. Montemos a cena: há uma escultura com forma animal ou humana, necessariamente
assustadora, que está rindo de um “eu” que está “em queda livre desde às cinco da tarde”. A
partir daí, não sabemos mais quem ou o que é o “eu”, ele cai em queda livre e se transforma em
“língua”, “tragédia”, “bicho”, “colchão”, “amantes”. Nessa metamorfose, quem vê a tragédia?
Seria o eu, ou a língua? Ou o eu transformado em língua solta? Seria a língua quem vê a
tragédia? Impossível montar a cena. A violência desmonta a própria sintaxe e a definição clara
de sujeito e objeto. O que queima também é a sintaxe, atingida pelo fogo e pela mutilação.
Não há uma narrativa que interligue as ações, dando um sentido a elas. O poema é uma
descrição sintética de lances de imagens em sequência, como se vários pontos de vista sobre
uma cena – às vezes nonsense – fossem ejetados a golpes de jatos curtos. Aqui, uma língua que
golpeia contra a dureza da concretude inabalável do asfalto resiste à interpretação e
impossibilita a decifração. As cenas são vomitadas como em poemas expressionistas, sem uma
narrativa que conecte sentido aos versos, com imagens curtas, caóticas e desconexas que
condensam uma violência com uma visão apocalíptica e um fim igualmente assustador,
violento, obscuro, terrível. Mais estruturado em cortes de cenas do que em cenas, o poema se
sustenta no desencaixe da interrupção que, na forma e no conteúdo, não só desafiam a leitura,
resistindo à legibilidade, mas fazem da leitura uma experiência do insuportável. Não se sabe o
que está acontecendo exatamente, não se sabe se “os amantes de rua” são o “bicho”, não se sabe
se a cena é de um sacrifício de um bicho, um ritual de despacho, ou se é uma violência cometida
contra pessoas, no caso, moradores de rua, não se sabe se há três cenas, de um eu que cai, de
um bicho sendo sacrificado e de pessoas sendo violentadas, não se sabe se há duas cenas, de eu
que cai e, revolvendo-se, debatendo-se, olha uma cena de sacrifício ou de uma violência, não
se sabe se a cena é uma só em que o eu que cai vê a si mesmo como bicho e amantes de rua, vê
não o sacrifício alheio, não a violência alheia, mas a sua própria tragédia. Eu diria que não é
uma opção ou outra, mas todas essas possibilidades ao mesmo tempo.
No poema, a tragédia do eu que cai se confunde com o despacho, com o bicho
sacrificado, que se confunde com uma violência, uma violência que não é sacrifício ritualístico
177

de um bicho, mas uma mutilação de pessoas. De todas as interrupções, a que mais se destaca é
a que opera ao mesmo tempo como interrupção e ligação: a repetição “vão queimar a vida!/ vão
queimar a vida!” interrompe o poema como um todo, destacando-se justamente por ser uma
repetição (e por ser uma repetição exclamativa), sendo determinante, como único refrão, para
interligar o que vem depois ao que veio antes. Em meio a um jato de imagens nonsense, um
choque de realidade: não há como se ler “língua solta que soca o asfalto” ao pé da letra, mas há
como se ler “vão queimar a vida!” ao pé da letra. No final, a dança da morte, uma metáfora
terrível: “os amantes de rua/ mutilados/ dançam sobre a brasa”. Seria isso “a tragédia pronta pra
despacho”? Na metáfora, o sacrifício transporta a violência não sacrificial, o bicho transporta o
humano, o suportável transporta o insuportável: queimam pessoas como se sacrificam um
bicho, mutilam pessoas como se sacrificam um bicho, decepam pés como se sacrificam um
bicho. Sustentando o insuportável entre o literal e a metáfora, o poema se sustenta enquanto
decepado. Só se dá a ler enquanto arrancado, enquanto partes que faltam. Nele, o insuportável
também é a justaposição entre os sujeitos “eu”, “língua”, “tragédia”, “bicho”, “colchão”,
“amantes”. Do eu aos amantes, do eu em queda livre aos amantes de rua, do eu que cai aos
amantes que queimam, do eu a uma parte subtraída do corpo, do eu ao bicho, do eu a outros,
do eu a uma parte arrancada, do eu a partes subtraídas consecutivamente, do eu mutilado a
outras mutilações, do que foi cortado à dança que resiste ao corte.
A estranheza final vem por esta palavra: dança. O que movimenta, o que une, o que faz
dois, o que faz par, finalizando imagens sequenciais de mutilação, não abranda, pelo contrário,
torna tudo mais terrível. A dança passa a ser o elemento estranho no poema, mais estranho que
“a língua solta que soca o asfalto”. Sua intrusão vem da impossibilidade de suavidade,
movimento, articulação, ligação, nessa cena em que tudo é disruptivo, desconexo,
desarticulado, violento, mutilado. O que faz dos amantes de rua amantes? O que os liga? A
mutilação? A dança sobre a brasa? No poema, os amantes de rua não aparecem indissociados
do fogo que os queima, eles aparecem enquanto amantes de rua mutilados que dançam sobre a
brasa. A dança é o que torna os amantes fantasmas. A dança torna tudo mais terrível porque
pessoas com os pés decepados não dançam, mas, no poema, elas dançam. No poema, os amantes
existem na condição de fantasmas. A dança, aquilo que faz par, não torna tudo mais terrível
porque articula, mas porque leva o inarticulado até o limite, não fazendo outra junção senão a
dos amantes com os fantasmas, com o que mais resiste à morte, com o que, depois de morto,
continua vivo, em uma sobrevida que se torna maior quanto maior for a deformação e não o
contrário. A sobrevida e a dança são do próprio poema como coisa arrancada.
178

Quando foi perguntado a Derrida Che cos’è la poesia?, ele respondeu que não há nem
poesia nem poética, apenas poema, apenas poemática. Mas agora eu vou me ater à experiência
não de um poema, mas de um livro, Não, de Bruna Mitrano, pensando como seus poemas
deixam ler uma poemática, levando a crer que a poemática é o que, na re-citação, se escuta de
um poema, que a poemática é, do e no poema escrito, o não escrito que se permite ler, o (não)
poema soprado, sussurrado pelos poemas escritos. Assim, a própria noção de poemática
subverte a noção de livro como unidade, e é nesse sentido que penso o Não como um livro não
uno, cuja leitura pode se dar através de um poema e de outro, entre um poema e outro, e não
necessariamente de sua totalidade. Isso vale para os outros livros que serão analisados nesta
tese, nos próximos capítulos. E isso também vai ao encontro do modo como compreendo o Não:
em um imperativo, ou em um manifesto, há muito mais improviso e riscos do que se imagina à
primeira vista. A escuta de Derrida, filósofo, escreveu, como poeta, um poema da poesia, uma
poemática no lugar da poética, uma experiência do poético. Aqui, minha escuta do livro Não
escreve uma poemática em uma economia de duas palavras: “matáveis: amáveis”. E, à
poemática do “de cor”, eu acrescento duas letras: “de corpo”.
O ponto de encontro com aqueles e aquelas que estão marcados pela falta e nela se
revolvem também é o comparecimento do corpo não só pela parte que falta, mas pelo que dele
é expelido, pelo que excede a ele, pelo excesso. “Não há o que se ver que não sobrecarregue a
carne” (MITRANO, 2016, p.33): assim poderíamos definir a experiência dos poemas de Não.
Poderíamos dizer que são poemas da sobrecarga, do sobrecarregar: do excesso, das sobras, dos
restos (“carranca”, “carcaça”, “cacos de vidro”, “fatia gorda”, “boca e mãos luzindo
engorduradas” (MITRANO, 2016, p.22; p.63; p.45; p.56; p.31)), do abjeto, abjectus, do
“atirado por terra” (“a mão aberta, vulnerável, atirada, como se de fora do corpo”). A presença
de muros e paredes nos poemas também nos leva a crer que aqui se está sempre no limite – (I)
da vida; (II) do corpo; (III) da lucidez: “ela pediu pra eu não enlouquecer/ parei de tomar os
remédios pra tentar ser gente/ mas uma chuva forte caiu/ era janeiro/ e me escorreguei/ perdi o
senso” (MITRANO, 2016, p.33); (IV) do tempo: “bomba-relógio falta pouco pro fim do dia
pouco pro fim do mês $ pouco pro fim do ano quanto pro fim da linha” (MITRANO, 2016,
p.32); (V) do espaço: “é preciso fugir pelas beiradas” (MITRANO, 2016, p.18, grifo meu),
“aos berros no meio da rua” (MITRANO, 2016, p.29, grifo meu), “tomba no meio da rua”
(MITRANO, 2016, p.33, grifo meu) –, sem esquecer que a favela é o lugar por excelência onde
se vive em condições extremas, em situações-limite, (“um homem construiu sua casa com as
179

próprias mãos./ demoliram a casa e ergueram um muro” (MITRANO, 2016, p.26), denunciando
o limite e denunciando, ainda, a ultrapassagem dos limites: a violência contra o corpo, o
abuso,44 a dupla condição de mulher e de mulher favelada que faz de sua vida uma vida matável.
Em Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I (2010), de Giorgio Agamben, lemos
que o homo sacer é uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter de sacralidade liga-
se pela primeira vez a uma vida humana. Homo sacer é uma vida insacrificável, pertencida aos
deuses, porém, é isso mesmo que autoriza sua morte. Uma vida insacrificável, porém, matável.
Enquanto sanciona a sacralidade de uma pessoa, esse princípio, sustentado em uma contradição,
autoriza sua morte. Sacro é aquele que é destinado aos deuses, e não aos homens, por um
sacrifício, e não por uma condenação ou assassinato. Mas o surgimento do homo sacer
transforma o sacrifício em assassinato, e esse assassinato da pessoa sacra não é tido como crime,
ele passa a ser lícito. Assim, o homo sacer, enquanto aquele que pode ser morto, não está mais
na esfera do sacrifício nem na do direito humano, porque quem o mata não é punido. O homo
sacer está fora do direito humano e, ao mesmo tempo, do divino, porque passa a poder morrer
justamente por ser sacro e não o contrário.
O estado de exceção se caracteriza exatamente por essa suspensão, pela suspensão da
regra. O estado de exceção não é nem uma situação de direito nem uma situação extraordinária,
é um limiar paradoxal de indiferença entre elas. Nele, a exceção se constitui como regra. Em
Homo Sacer, Agamben nos diz que a estrutura da exceção é o fundamento da política ocidental.
Ela se constitui através de uma exclusão, a da vida nua. Nos gregos, essa vida nua, chamada de
zoé, era a vida diretamente atrelada à sobrevivência do corpo, à necessidade, ao simples viver.
Diferentemente dessa, havia a bíos, a vida além do simples viver, além da necessidade, da
sobrevivência, dos limites do corpo: a vida que podia ser política, a vida que podia ser bem
vivida. A essa vida pertenciam, por exemplo, os homens livres, cidadãos da pólis, aqueles que
podiam participar da política. Esses não estavam presos ao simples viver, mas ao bem viver.
Assim, a política ocidental se funda em uma exclusão primeira: a exclusão da vida nua. Todavia,
essa não era uma exclusão total, porque a bíos só funcionava às custas da zoé. Esses e essas que
não eram livres trabalhavam para que outros fossem livres, para que outros participassem da
vida política. A liberdade de uns se dava às custas do trabalho de outros que não desfrutavam
da liberdade porque haviam nascidos não-livres. Assim, a exclusão da zóe não era mais que
uma exclusão inclusiva (uma exceptio) na pólis (AGAMBEN, 2010, p.15). Ela não estava

44
“eu deitada em desmanche e você de pé, distante, cabeça curvada triplicando o queixo, um embaço e eu não
reconheceria, não fossem as pernas abertas, os pés roçando meu quadril, seu pau ao centro tomando proporções
desmesuradas, um pau maior que o corpo, maior que eu, que sangro e sangro muito” (MITRANO, 2016, p.47).
180

totalmente dentro, mas também não estava totalmente fora, porque ela era a engrenagem do
sistema. Ela estava excluída enquanto condição fundamental para que a política acontecesse às
custas dela. Como Agamben sintetiza, “[a] vida nua tem, na política ocidental, este singular
privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens” (AGAMBEN, 2010,
p.15). No modus operandi dessa política, a vida nua se torna, simultaneamente, sujeito e objeto
do ordenamento político. É por isso que Agamben diz que a política ocidental se funda em uma
aporia (AGAMBEN, 2010, p.18), porque a vida nua está fora da política, mas, ao mesmo tempo,
coincide com o espaço político, na medida em que o sustenta como engrenagem e na medida
em que é capturada por ele.

A política, na execução da tarefa metafísica que a levou a assumir sempre mais


a forma de uma biopolítica, não conseguiu construir a articulação entre zoé e
bíos, entre voz e linguagem, que deveria recompor a fratura. A vida nua
continua presa a ela sob a forma de exceção, isto é, de alguma coisa que é
incluída somente através de uma exclusão (AGAMBEN, 2010, p.18).

Desse modo, bíos e zoé, externo e interno, vida política e vida nua se indeterminam na
perda de limites em que é instaurado o estado de exceção, ou melhor, em que é instaurado o
próprio direito. A política ocidental nunca conseguiu articular essas duas esferas, zoé e bíos,
voz e linguagem, phoné e logos, interior e exterior, casa e rua, porque nunca existiu uma política
que não fosse fundada sobre essa fratura, sobre essa cisão que, ao separar ao mesmo tempo em
que captura, se torna uma zona de indistinção. Essa cisão não articula, a captura que ela faz não
é uma inclusão política, é uma inclusão como captura, como parte de engrenagem de um sistema
que opera capturando aniquilando e não incluindo ou articulando sem aniquilar. Nas palavras
de Agamben: “[a] exceção é uma espécie de exclusão [...]. Mas o que caracteriza propriamente
a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação
com a norma; ao contrário, essa se mantém em relação com aquela na forma da suspensão”
(AGAMBEN, 2010, p.24). A relação de exceção não exclui exatamente, ela, antes, suspende.
A vida nua se relaciona com a vida política em uma suspensão. Por isso, não é exatamente uma
exclusão, ou a exclusão não é total, é uma exclusão inclusiva, é uma exclusão que opera pela
captura. Segundo o étimo, exceção é ex-capere, capturada fora, e não simplesmente excluída
(AGAMBEN, 2010, p.166).
Podemos encontrar figurações do homo sacer tanto na antiguidade grega como na
antiguidade romana, mas também em outras épocas, desde a modernidade até os tempos atuais.
Uma figuração atualizada do homo sacer é, por exemplo, as mulheres que abortam. Em agosto
de 2018, vivemos a proibição da legalização do aborto pela lei feminicida na Argentina.
181

Mulheres que abortam são codificadas, pelo aparato judicial, como criminosas. O Estado
intervém no corpo biológico da mulher como aparato policial. Eis a coincidência entre política
e biologia e entre política e polícia. Essas esferas diferentes simplesmente se confundem, se
tornam uma, e uma questão que deveria ser tratada como saúde pública é tratada como caso de
polícia. O corpo completamente capturado pela política/polícia é o Estado decidindo sobre a
vida, decretando a morte. Além desses exemplos, não seria forçado se fizéssemos um paralelo
dos viventes gregos atrelados à zoé com os trabalhadores no capitalismo. Eles estão presos à
condição de trabalhar para sobreviver e são a engrenagem de um sistema que a todo momento
os exclui e os mata exatamente por serem trabalhadores. Eles não são totalmente excluídos
porque estão em relação com o capitalismo na medida em que são o sustento do sistema. A
situação se complica mais ainda quando essa exclusão-inclusiva não se dá só por serem
trabalhadores, mas por serem trabalhadores pobres. A situação se complica mais ainda quando
essa exclusão-inclusiva se dá por serem trabalhadores negros, por serem trabalhadores pobres
e negros. E aí entramos na questão tão cara a Michel Foucault, fundamental para o pensamento
de Agamben sobre o estado de exceção: na modernidade, o Estado coloca a vida biológica em
seu centro, o poder se torna estritamente vinculado à vida nua. O homem não é mais
simplesmente um animal vivente, mas um animal em cuja política está em questão a sua vida,
o seu ser vivente passa a ser o centro do jogo político, a sua vida de ser vivente passa a estar no
centro da política. Isso se agrava com as tecnologias de controle, como o poder midiático
espetacular, que passam a estar lado a lado desses procedimentos de captura. Se a vida nua
estaria originariamente situada à margem do ordenamento, daquilo que não poderia ser
controlado, na modernidade, há a coincidência progressiva entre zoé e bíos. O problema dessa
coincidência é que essa indistinção entre interno e externo, privado e público, vai se transformar
em mecanismo de poder. A vida biológica vai coincidir com o espaço político e encontra no
fascismo e no nazismo o pior dos limites: neles, a vida nua passa a ser o critério político
supremo. E, assim, a biopolítica, somada às tecnologias de extermínio que passaram a surgir
sem precedentes com os campos de concentração, constitui o somatório mais mortífero do gozo
que fundamenta o horror desses tempos. Esse somatório não institui outra política que não uma
política de morte, uma política feita para matar, isto é, a aniquilação da política. Corpos
marcados para morrer, corpos matáveis, eis o sintagma que cruza os tempos, constituindo-se
como o fundamento da política ocidental. São os corpos absolutamente matáveis que formam
o corpo político do Ocidente (AGAMBEN, 2010, p.122).
Assim, se Foucault pensou a biopolítica na modernidade, quando o corpo passa a ser
capturado pela política, quando a vida biológica passa a ser objeto e centro da política, quando
182

há a politização da vida nua por mecanismos de controle que instituem uma marca que diz que
somos identificáveis, reconhecíveis, controláveis e matáveis, a decadência da política se agrava
quando isso se transforma em um mecanismo de extinção em massa, como aconteceu nos
campos de concentração e, antes disso, nas colônias, como alerta o filósofo camaronês Achille
Mbembe, em Necropolítica, atualizando os estudos de biopolítica ao repensar o paradigma do
terror moderno sob o ponto de vista da escravidão e da ocupação colonial. De acordo com
Mbembe, “[a] ocupação colonial tardia difere em muitos aspectos da primeira ocupação
moderna, particularmente em sua combinação entre o disciplinar, a biopolítica e a necropolítica.
A forma mais bem-sucedida de necropolítica é a ocupação colonial contemporânea da
Palestina” (MBEMBE, 2018, p.41). Assim, das colônias às fronteiras contemporâneas, dos
campos de concentração às cidades sitiadas do Oriente Médio, dos massacres a indígenas e
chacinas a negros e pobres como acontece de forma atualizada nos dias de hoje, sobretudo, nas
periferias e favelas do Rio de Janeiro, a vida é reduzida ao corpo, aos corpos que “devem
morrer” em um cotidiano ele mesmo militarizado que passa a assumir “uma modalidade de
crime que não faz distinção entre o inimigo interno e o externo” (MBEMBE, 2018, p.48).
Quando não são mortos, a condição de escravo relega suas vidas a uma vida indigna de ser
vivida, uma vida sem valor, descartável, supérflua que, em outras palavras, é uma morte em
vida: como os escravos, esse corpo “é mantido vivo, mas em ‘estado de injúria’, em um mundo
espectral de horrores, crueldade” (MBEMBE, 2018, p.28), ou, ainda, viver sob esse terror que
caracteriza tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais contemporâneos é
“experimentar uma condição permanente de ‘viver na dor’” (MBEMBE, 2018, p.68).
Pensando o terror a partir dos fenômenos da escravidão e da colonização, Mbembe tece
uma crítica da crítica política contemporânea que toma como paradigma o projeto de
modernidade para pensar a soberania que privilegia as teorias normativas da democracia e o
conceito de razão. Nesse caso, a política é pensada a partir da razão como categoria fundadora:
“é com base em uma distinção entre razão e desrazão (paixão, fantasia) que a crítica
contemporânea foi capaz de articular uma certa ideia de política, comunidade, sujeito”
(MBEMBE, 2018, p.9).

A partir dessa perspectiva, a expressão máxima da soberania é a produção de


normas gerais por um corpo (povo) composto por homens e mulheres livres e
iguais. Esses homens e mulheres são considerados sujeitos completos, capazes
de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação. A política,
portanto, é definida duplamente: um projeto de autonomia e a realização de
acordo em uma coletividade mediante comunicação e reconhecimento. É isso,
dizem-nos, que a diferencia da guerra. (MBEMBE, 2018, p.9)
183

Contra a crítica que não questiona a suposta autonomia do sujeito e a razão como centro
do pensamento político, que não questiona o paradigma em que “a política é o exercício da
razão na esfera pública”, Mbembe, para pensar a política, dispensa a razão como categoria
fundadora e parte das categorias de vida e morte, pensando a relação entre política e morte em
que a primeira passa a ser um “trabalho de morte”, um “direito de matar” (MBEMBE, 2018,
p.16). Na modernidade, “o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base
normativa do direito de matar” (MBEMBE, 2018, p.17). Nesse sentido, Mbembe lembra que,
no Estado nazista, política e guerra se tornaram o mesmo, houve “a fusão completa de guerra e
política (racismo, homicídio e suicídio), até o ponto de se tornarem indistinguíveis uns dos
outros” (MBEMBE, 2018, p.19). Hoje, poderíamos dizer que, no caso do Brasil atual, há uma
fusão entre política e polícia (e milícia). E o que complexifica e questiona o pensamento sobre
a política a partir da categoria de razão é, por exemplo, o fato de que algumas pessoas políticas
não estão eximidas de serem matáveis. Se o lógos, a razão, também era uma característica da
vida política e se isso era o que também a diferenciava da vida nua, hoje temos exemplos de
que a vida política não priva uma pessoa da condição de matável. Mulher, negra, lésbica,
provinda de favela, defensora dos direitos humanos, militante dos direitos das mulheres,
denunciante dos crimes cometidos por milícias, Marielle cruzou a fronteira que separava a vida
nua da vida política e foi morta por aqueles que a relegavam à vida nua e não a concebiam em
uma vida política, não concebiam a inclusão na política dessas e desses que sempre foram
excluídos da política. A razão e o discurso de Marielle não a privou da condição de matável,
pelo contrário. Deslocando a razão para a vida e a morte, a máxima “para morrer, basta estar
vivo” poderia ser a máxima dos tempos atuais, mas não, ela não serve. Ela não serve porque há
aqueles que estão vivos e não são matáveis. A política que não se quer como antipolítica não
deve mais ser vista como o exercício da razão na esfera pública, mas como a inclusão das vidas
matáveis sem mecanismo de captura que as aniquile, como a inclusão daquilo, daquelas e
daqueles que estão incessantemente no limite entre a vida e a morte.
Em O Uso dos Corpos, último livro da série “Homo Sacer”, Agamben diz: “O mistério
do homem não é aquele, metafísico, da conjunção entre o ser vivo e a linguagem, mas aquele,
prático e político, de sua separação” (AGAMBEN, 2017b, p.234). Se o estado de exceção,
fundamentado na perda de limites, traça entre as duas esferas, a bíos e a zoé, um limiar em que
não é mais possível distinguir uma da outra, se a exceção se mostra como a forma originária do
direito e forma originária da política ocidental, se a cisão não disjunta e articula, aproximando
à medida que mantém a diferença, mas confunde as duas esferas, como instaurar uma relação
184

de articulação que deve recompor a fratura, ou seja, como instaurar uma relação em que se faça
experiência da articulação enquanto disjunção e desencaixe, isto é, enquanto uma relação que
coloca junto à medida que expõe a diferença que as separa, como instaurar a experiência da
fratura, da cisão, da disjunção, do desencaixe, como aquilo que une ao mesmo tempo em que
exibe a diferença, como aquilo que aproxima ao mesmo tempo em que mostra a radical
separação, como instaurar não uma relação de exclusão-inclusiva, não uma relação de captura,
mas uma relação de libertação do que se mantém capturado?
Fazer experiência da fratura significa, pois, fazer experiência do ponto de articulação e,
ao mesmo tempo, do ponto da divisão. Na primeira parte desta tese, foi dito que há um
parentesco no modo como Agamben pensa a teoria política e no modo como ele pensa a teoria
da arte. Mas como podemos indicar que o princípio teórico do estado de exceção se conecta
com o princípio teórico não só da arte, do verso, da linguagem, mas do amor? Ora, a pedra
angular de sua teoria é a cisão, a fratura. Agamben não vai à política, nem à arte, nem ao amor,
nem à linguagem, sem ser em um ponto de disjunção que une ao mesmo tempo que separa, que
articula ao mesmo tempo que desarticula. No amor e na arte, fazer a experiência da cisão é fazer
experiência do ponto de fratura enquanto articulação e desarticulação, ao contrário da cisão que
funda o estado de exceção que não permite a experiência da articulação e da desarticulação, da
aproximação e do distanciamento, mas da identificação total, da perda de limites que apaga a
diferença, da indistinção, do mesmo. Em outras palavras, eu diria que o pensamento de
Agamben sobre Eros, sobre o daimon e sobre a poesia, nos casos analisados no capítulo anterior,
pensa a tentativa de articular o que a metafísica ocidental sempre manteve separado, não como
identificação da poesia com a filosofia, do verso com a prosa, do saber com o gozo, não com
esses se tornando o mesmo, mas com um entrelaçamento que une à medida que expõe a
diferença. Já em seu pensamento sobre o estado de exceção, haja vista que a cisão entre zoé e
bíos as identifica indistintamente por uma captura, pela captura da zoé, de modo que a
articulação entre elas já está dada, mas como uma articulação excludente, ou como uma
exclusão-inclusiva, a nossa tarefa não é pensar nem a conjunção que identifica nem a
articulação que captura, mas a liberação da captura e a relação de tensão que pressupõe um
desencaixe e não uma identificação total.

Uma das frases ou um dos versos que poderia definir a poética de Não seria: “em toda
alteridade, resta um pouco de fim” (MITRANO, 2016, p.28). Tudo que é outro, como o verso
185

define, aponta para o fim. Tratando de modo inseparável o outro e a finitude, vai-se ao outro lá
onde ele se encontra sob ameaça, no limite. Poderíamos dizer que esse livro se compõe por uma
linha de força do excremento, do expelir, definido por essa partícula “ex-”, que, como foi dito,
quer dizer “fora”. O Não expele, ejeta, vomita, soca, golpeia, lança. Como a poeta e tradutora
Nina Rizzi escreveu no prefácio, esse livro é um poema-molotov. Em mais um exemplo, lemos
o movimento de arremessamento: “era a primeira vez que não se arrependia dos gritos, do murro
na porta, de mais um copo atirado contra a parede” (MITRANO, 2016, p.45). Ao mesmo tempo
em que há esse gesto de voltar para fora, de devolver para fora o que violentamente entrou, as
secreções e tudo o que o corpo põe para fora é também o que há de mais íntimo, de mais
constitutivo, de mais familiar. Esse gesto mostra que o estranho e o que vai para fora é o dentro
do dentro. Um dia, Ana Kiffer chamou esse “dentro do dentro” de “torsões”, ou, ainda, de
“invaginações”. Como em um poema, cheio de interrupções, cheio de pontos, pontos
interruptivos, sulcos, fissuras, como quem confere a cada palavra a força do mínimo da
condensação de uma partícula, em uma postagem no facebook, em 03 de março de 2018, Ana
Kiffer disse: “as bordas já não são mais as margens. nem o fora. mesmo que continuem
marginalizadas. negadas. abusadas. violadas. mas são ainda assim mais complexas hoje. como
torsões. dentro do dentro. invaginações. colocam em cena novos corpos”. 45 Aqui, é esse dentro
do dentro que, como torsões, invaginações, são as bordas, um dentro que, como as margens, é
marginalizado, mas aponta para o fora na medida em que mais se adentra, na estranheza das
substâncias quentes e fluidas do próprio corpo.46
A palavra que mais se repete no livro é “grito” (cf.: MITRANO, 2016, p.16; p.17; p.28;
p.31; p.32; p.42; p.45; p.47). Por onde um texto grita, por onde ele explode, por onde ele estala,
é também por onde o sentido não se faz ou se dissolve. O grito é a falta e, ao mesmo tempo, o
excesso da linguagem. O som disforme como um grito, como um som gutural, é o inarticulado,
o desajuste que não cabe nas palavras, estando antes delas ou excedendo a elas. Esse livro, como
um grito, é uma luta com as palavras, quando já não se consegue fazer ouvir. Tratando do que,
em geral, não queremos ler, não queremos ver, não queremos ouvir, o modo como os poemas
fazem isso é fazendo com que escutemos um estrondo, mobilizando também todos os outros
sentidos. “Eles fazem ouvir um barulho insuportável como o “barulho oco dos coágulos

45
Disponível em
https://www.facebook.com/search/top/?q=invagina%C3%A7%C3%B5es%20ana%20kiffer&epa=SEARCH_BO
X Acesso em 03/03/2018.
46
De algum modo, essa abordagem pelo “dentro”, ainda que não contradiga, inverte o caminho de Nancy quando
ele diz em “Corpos estranhos estrangeiros” que “o ‘dentro’ não está em nenhum lugar a não ser entre o fora e o
fora” (NANCY, 2015, p.43). Em nossa abordagem, diríamos “o fora não está em nenhum lugar a não ser entre o
dentro e o dentro”: quanto mais se adentra, mais se é um corpo estranho, estrangeiro, infamiliar.
186

esbofeteando a água da privada” (MITRANO, 2016, p.18), ou um barulho estridente do


estilhaço do “copo quebrado” (MITRANO, 2016, p.31), um barulho de um “murro na porta, de
mais um copo atirado contra a parede” (MITRANO, 2016, p.45). Nada disso está na ordem do
articulado, do elaborado, então poderíamos dizer que, neste Não, a reação comparece mais do
que a elaboração. Os poemas desse livro são menos da elaboração, do psíquico, da fantasia, e
mais do somático, do estômago. Mas sem ruminação. Ao contrário, aqui há, sobretudo,
indigestão: antirruminante, não digere, não elabora, mas regurgita, vomita, devolve aquilo que
não desce; não, porém, sem um corpo convulsivo, revolvido. Como uma resposta que vem
no/do corpo que se revolve, aqui se está sempre rente às necessidades básicas de sobrevivência:
da fome, da sede, dos excretas, da recepção dos sentidos, isso que está mais diretamente
relacionado com órgãos ou partes do corpo.
Uma das palavras que Aristóteles mais usa n’A Política é “necessidade”. A necessidade
de trabalhar para viver, na Grécia, significava não ser livre, sendo o contrário de liberdade.
Hannah Arendt diz que “quando se está sujeito à nua e crua necessidade da vida” não somos
seres livres (ARENDT, 2002, p.31). Quando a necessidade precisa ser assegurada antes da
liberdade, não somos seres livres. Na sociedade moderna, por necessidade, o trabalhador não
podia abandonar o trabalho. Vemos então que, desde tempos remotos, a política e a liberdade,
que nunca foram a mesma coisa, mas sempre estiveram em relação, excluem a necessidade, a
falta, a carência. Desde os gregos, só temos cumprido o nosso destino político ao separar a
necessidade ou a falta da política.
Um dos poucos poemas que, no respectivo livro, possui título, se chama “verão”.
Substantivo ou verbo? Pelo poema, vemos que se trata da estação mais quente. Nele, não há
“eu”: há ele, ela, as crianças, o menor, o maior, os moleques de rua, a menina, a vizinha. Mas
as cenas são descritas do ponto de vista d’“ela”: “caneca descascada no chão, café, garrafa
térmica amarelenta, café forte. o marido parece até que sente o cheiro de longe, tá molhado de
mangueira, bebe sem açúcar, de pé, copo americano. sempre magro, o marido, ela não entende.”
(MITRANO, 2016, p.36). Há um centro principal e outros periféricos ao redor dos quais as
cenas giram. O principal é o ventilador que parou, por onde inicia e fecha a cena, em que no
começo lemos: “na calçada, ela e as crianças. calor de cozinhar lá dentro, o ventilador parou.”
(MITRANO, 2016, p.36). No final, lemos: “baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre
pra fechar a janela. suor. escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o sovaco, molha até
o cóccix. cheiro de café, cheiro de suor. final do ano, ah, ventilador de teto” (MITRANO, 2016,
p.37). Ao redor disso, a necessidade de comer, o dente que falta, a descrição de um cotidiano
comum, levando a crer que esse poema também pode ser uma crônica:
187

o maior solta pipa. céu colorido, vento bom. os moleques da rua de trás cortam
todo mundo, o maior xinga sozinho, ela grita ele, ele tem que comer, essa
merda custa dinheiro. o maior acena e ela ri, um dente faltando, vai ao dentista
qualquer dia, desdentada não consegue emprego, ela é boa de serviço. A
espuma branca dentro do copo, ela esfrega na perna. a menina descoloriu o
cabelo, faz sucesso, já namora. a gente cria filho pro mundo, a vizinha diz
(MITRANO, 2016, p.36).

Um cotidiano de quem está rente à necessidade, de quem o dente e o ventilador disputam


como prioridades. O calor comparece não só como substância líquida que o corpo expele, como
o que excede aos limites do corpo (“suor. escorre na frente da orelha, salpica o buço, mela o
sovaco, molha até o cóccix”), comparece também pela falta – do ventilador. Nesse poema de
descrição simples, sem contorcionismos com a língua, sem imagens desconexas, sem
metáforas, tudo está muito claro, tão claro que não precisa fazer sentido: está posto e só. Pela
descrição e pela enumeração, há uma exatidão de quem sente calor e tem a percepção imediata
do mundo, sem decifração e sem comentário que produza sentido para uma cena tão
incontornável.
Aqui, temos a duração de meio dia, da hora do almoço, do pico do sol, até a hora que
“baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins”. Quem abre e fecha a cena é o ventilador de teto.
E quem acusa o limite do tempo é o grito da cigarra. Nesse meio tempo, nesse tempo a meio, o
que acontece nessa metade de dia? I) A claridade: o claro do dia e o clareamento dos pelos; II)
o vazamento: o calor que escorre, o vazamento no teto e uma mãe que amamenta, de cujo seio
o leite vaza; III) o corte: o corte da unha e o corte da brincadeira de pipa; IV) o cheiro forte: o
cheiro forte de café e o cheiro da água oxigenada e amônia e suor. Os contrastes de intensidade
se dão entre o corpo e o fora. Nessa cena doméstica, ordinária, corriqueira, o grito da cigarra, o
corte no poema, acusa o limite não só do tempo, mas de todos os excessos: da claridade, do
vazamento, do cheiro forte. Gostaria de acreditar na mentira de que as cigarras explodem
quando cantam. Afinal de contas, sempre vem um insuportável acompanhado nesse grito: “ah
esse calor terrível” (MITRANO, 2016, p.31). Não o verão carioca, mas mais que isso: o calor
típico de quem queima e derrete à margem do centro. O calor típico do verão em Bangu, por
exemplo, bairro localizado na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. O que vemos em
“verão” é o que resta depois do derretimento, depois do último grito: o exoesqueleto da cigarra,
a casca que encontramos presa às arvores depois da última muda do inseto. Nesse poema,
encontramos o escorrimento, o vazamento, o derretimento, o descascamento, a descoloração,
essa finitude das coisas e das pessoas que habitam um lugar-limite em uma temperatura-limite,
188

onde o céu colorido entra em contradição com a “garrafa amarelenta”, a “caneca descascada”,
a mulher desdentada. “[V]erão” é, por assim dizer, um resto, uma casca que, ao contrário de ser
um suplemento, é uma lacuna, aponta para o que não está lá, como marca de uma ausência:
resta o líquido expelido pelo corpo, restam partes do corpo (“orelha”, “buço”, “sovaco”,
“cóccix”, “unha”), resta o dente que falta, resta a falta do ventilador. Essa cena doméstica não
é tanto a casa e o que gira em torno dela, mas os furos da casa e do que gira em torno deles, os
furos que fazem da casa uma casca: o habitat é uma presença que aponta para uma ausência, é
um fóssil, um resto, uma ruína: o exoesqueleto da cigarra.

o garoto corre de chinelo,


depósito de ânsias apreendidas ou
ainda a convulsão de quem nada tem.
olhos graves lama-mangue
na cara preta salpicada de farelo de biscoito.
o garoto tão pequeno já sabe andar de ônibus –
livrai-nos do mal, mãe, dá conta santificada de seus filhos
e o bebê carrega sobre a barriga redonda como se nunca tivesse saído -
sozinho:
um homem construiu sua casa com as próprias mãos.
demoliram a casa e ergueram um muro.
(MITRANO, 2016, p.26)

Nesse poema, temos o deslizamento do “garoto tão pequeno” ao “homem”. Ambos estão
ligados pelo verso de uma palavra só, “sozinho”. Se garoto ou se homem, encontramos a mesma
questão do poema anterior: desde os primeiros versos até os últimos, a falta. Se o corpo marcado
pela falta comparece nos poemas, aqui, as mãos do homem foram amputadas. Demolir aquilo
que ele construiu com as próprias mãos é demolir, de alguma forma, suas mãos. No lugar das
mãos, um muro. No lugar da casa, um muro: um limite ao corpo e um corpo nos limites. No
Não, não há redenção. Há uma contingência, a única contingência a barrar a necessidade: o
amor. Mas veremos também que o amor não vem no tom maior de uma salvação, vem no tom
menor da precariedade do corpo, dos abismos do corpo, do toque, do tato, de nenhum discurso:
a pobreza de discurso é condição para nomear e para amar. Não se nomeia nem se ama nem se
articula no discurso, mas na pobreza de discurso. Dizendo de outro modo, é preciso que o
discurso abrigue tal precariedade, faltando ou excedendo a si, para que aqui se diga o amor. Em
um poema, lemos: “pisando em ovos esperamos uma resposta aguda, a minha mão fria nas suas
costas brandas ou nossos discursos pobres em algum café” (MITRANO, 2016, p.28). Não é um
imperativo cujo título mesmo já seria uma resposta. Mas vemos que ele é ao mesmo tempo uma
busca de resposta. Em outro poema, lemos que a resposta é uma lacuna:
189

“re:_________________.” (MITRANO, 2016, p.34). Ora a resposta reduzida a um verso que


nada diz senão uma lacuna, que nada diz senão a evidenciação da própria linha do verso, ora a
resposta como a mão nas costas ou “nossos discursos pobres em algum café”. Entre a lacuna, o
tato e o prosaísmo como “discursos pobres”, a resposta não é nenhum discurso, mas a afirmação
de uma pobreza de discurso como dignidade maior da enunciação.
Sabemos que a linguagem não está dada, ela existe como possibilidade, mas precisa de
um estímulo exterior para que aconteça. A linguagem mesma é um excesso. Em Espectros de
Marx, Derrida já disse que ela está em uma “relação excessiva ou excedida para com o outro”,
uma vez que a linguagem é uma experiência do fora, instaurada na ética e voltada para o outro
e desde o outro (DERRIDA, 1994, p.93). Podemos dizer que o amor só existe na linguagem,
assim como podemos dizer que a ética só existe na linguagem, mas não podemos dizer que a
linguagem é, a priori, ética, nem que a linguagem é, a priori, a forma privilegiada de amar, se
não nos libertarmos da concepção de linguagem enquanto discurso que não acolhe o que, os
que e as que sempre foram excluídos e excluídas da linguagem. Como Butler diz em Vida
Precária, “o Outro é a condição do discurso. Se o Outro for anulado, também o será a
linguagem” (BUTLER, 2011, p.10). A linguagem só existe enquanto ética a partir do momento
em que ela é desde o outro, pelo outro e para o outro, especificamente, por esse Outro marcado
pela precariedade, pela violência, pela falta. Apenas quando a concepção de linguagem for
desvinculada de uma autonomia do eu, da ligação direta com o lógos como razão e estiver em
relação com todos aqueles e todas aquelas que um dia foram excluídos da linguagem e, por
conseguinte, da política, é que a linguagem será irrestritamente ética e política.
A poesia e a filosofia se entrelaçam como linguagem enquanto possibilidade de uma
política outra se acolhem o desencaixe, a desarticulação, a lacuna, a falta e os que estão em
falta, os que vivem historicamente na falta. Em O Banquete de Platão, sabemos pelo daimon de
Sócrates, a fantasmática Diotima de Mantineia, a estrangeira ausente que fala pela boca e pela
memória de Sócrates, que Eros nasce do encontro de Poros com aquela que estava mendigando
os restos, Pênia (PLATÃO, 2002, p.36-37). Ele nasce do encontro entre “recurso” e “falta”,
entre “expediente” e “pobreza”, como alguns dizem, entre “riqueza” e “penúria”. Levando-se
em conta que Poros também quer dizer abertura, Eros seria filho de uma dupla ausência, a da
abertura e da falta. Ou seja, Eros é filho de uma dupla falta (nossa aporia por excelência).
Talvez, assim, saímos de uma síntese, de uma dialética, compreendendo o amor fora da lógica
do produto. Pênia, que gerou o amor, por exemplo, andava junto com Aporia, essa que, pelo
espanto, deve estar presente como condição nos filósofos e nos poetas: encontrar-se sem
caminhos. Não exatamente sem caminhos, mas em um impasse. Ou melhor, em uma resistência
190

de dar algum passo diante de uma força que se impõe e afeta, à revelia de quem é por ela afetado,
escapando do controle de quem é por ela afetado. Falta, pobreza, penúria, abertura, impasse e
resistência: eis o que liga amor, poesia e filosofia, andando juntos. Não à toa, Lacan disse no
Seminário 8 que “o amor é dar o que não se tem”. Não está em questão um preenchimento, mas
uma falta constitutiva, não suprida, a que só podemos dar contorno – na qual e com a qual se
movem e fazem mover amor e poesia. O esforço dos corpos neste gesto de dar contorno, de
abordar, talvez seja o gesto de amar, assim como a linguagem nasce da ausência, sendo,
portanto, um excesso. Dizendo como Barthes enunciou uma “carta de amor”, nos Fragmentos
de um discurso amoroso, “esse vazio de não ter nada a dizer e ter uma vontade louca de
significar o desejo” (BARTHES, 1981, p.32). Se a falta está diretamente associada com abertura
e resistência, se amor, poesia e filosofia movem-se na e com a falta, a abertura, a resistência, só
eles, juntos, são capazes de instaurar uma política que parte da falta e com a falta.
O Não tem a ver com a experiência da pobreza. É sem camuflar esse lugar que pode surgir
a pergunta: desse lugar, como amar? Sabemos que há uma falta constitutiva no amor, a
mitologia de Eros está ligada à pobreza, à penúria, à necessidade, mas a pobreza constitutiva
do amor é o que impulsiona a sua possibilidade. Não se pode, portanto, romantizar a pobreza
quando o que ela impulsiona não é nada senão a morte. Se o amor é, de alguma forma, uma
experiência fundada na pobreza, como, na experiência da pobreza, é possível fazer a experiência
de uma falta para além da falta da necessidade? Como amar desse lugar? Como resta o amor
no horror?

O livro de Bruna Mitrano trabalha com todos os cinco sentidos, como vemos com os
seguintes exemplos: “as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água” (MITRANO,
2016, p.56), “penetrar a ponta da língua nas substâncias quentes fluidas vivas” (MITRANO,
2016, p.57). Nesses exemplos, que são poemas em sequência, um seguido do outro, vemos que
o que está em jogo no tato e no paladar é a extremidade, a ponta da língua, as pontas dos dedos,
isto é, o limite. Quanto ao olfato, encontramos “cheiro de café, cheiro de suor” (MITRANO,
2016, p.37), assim, dois extremos justapostos. Com relação à audição, já dissemos que esse Não
faz barulho, um barulho que alguns diriam insuportável: “um grito vinha da cozinha”
(MITRANO, 2016, p.31) e “outro copo quebrado” (MITRANO, 2016, p.31). E, quanto à visão,
temos muitos exemplos: o livro se apresenta, de cara, como uma janela para a escuridão: é
preciso fitar o escuro para enxergar. Começando e terminando com dois retângulos negros que
191

cobrem o branco das páginas e antecedem qualquer palavra, este livro coloca todos os sentidos
em jogo, e desafia, sobretudo, a visão, onde excesso de escuridão e excesso de claridade (já que
encontramos tanto a cegueira da “noite longa demais” como a luz ofuscante do “meio dia”)47
parecem ser, aqui, a mesma coisa. Fazendo-nos fitar o excesso, de escuridão e de luz, os versos
que abrem o livro como epígrafe indicam que essa abertura é como a abertura de um ritual:
“abro minha guerra./ estou na sua frente./ me olha.” (MITRANO, 2016, p.11).
Ao longo do livro, a visão também está em jogo das seguintes maneiras: “Não há o que
se ver que não sobrecarregue a carne”; “É nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?”; “de
olhos meio abertos”, “cego que com olhos de não ver/ tateia os gemidos riscados no chão”
(MITRANO, 2016, p.33; p.39; p.42; p.56, grifo da poeta). Se pensarmos em como a poesia foi
vista ao longo do tempo, a partir dos sentidos, passamos por uma longa tradição, da antiguidade
à modernidade, em que a visão foi predominante (o poeta era aquele vidente ou visionário que
deveria fazer ver, fazer enxergar, trazer do escuro para o claro) e já há algum tempo essa
supremacia da visão foi dando espaço ao tato: a poesia não tem que deixar nada claro, ela tem
que fazer mover, e, para isso, ela precisa tocar. Nesse caso, ela toca na ferida. O que comparece
é a ferida aberta, não a costura, não o curativo, não a cicatriz. É interessante notar que o paladar
e o tato, o toque, o contato, eram tidos por Aristóteles, e por toda uma tradição aristotélica,
como os sentidos mais baixos. E veremos que o Não faz desses sentidos, especialmente, a sua
ética. Nele, algo sempre vai à boca:

odeio refrigerante mas


bebi coca cola
só pra fazer sentido.

nada de bom ou terrível aconteceu hoje.


(MITRANO, 2016, p.51)

Sem contorcionismos, sem imagens desconexas, nos deparamos com outro poema
simples, direto, desta vez, sucinto, curto, como que dando uma amornada no tom e no ritmo do
livro. Poderia ser uma anotação de diário, ou uma confissão. De algum modo, desse modo
simples, ele também vai à ferida, a simplicidade não se exime dela. Essa boca vai à podridão
trivial da mercadoria. A ferida não reside apenas na intensidade da profundidade, mas também

47
Os exemplos em que aparecem, de alguma forma, a escuridão excessiva da noite são “a noite longa demais pra
lembrar da sua mão naquelas coxas” (MITRANO, 2016, p.16); “lodo acumulando durante a noite, palavras turvas
escoando pelo ralo” (MITRANO, 2016, p.41, grifos da poeta). Quanto ao “meio dia”, encontramos nos versos:
“meu bem, seu amor é patético ao meio dia” (MITRANO, 2016, p.31); “morre com farofa ao meio dia”
(MITRANO, 2016, p.32).
192

na superfície. Abocanha-se, também, o não-sentido da superfície. No livro, vemos um eu-


performativo em jogo com as dificuldades impostas pelo capitalismo, evidenciando e
denunciando ainda mais o vivente preso às necessidades de sobrevivência, sem condições
dignas para supri-las, como veremos mais adiante em outro exemplo com um poema do qual,
por ora, destaco os versos em que a contagem regressiva do tempo se confunde com a conta do
dinheiro e com o prazo da morte: “bomba-relógio falta pouco pro fim do dia pouco pro fim do
mês $ pouco pro fim do ano quanto pro fim da linha conta nos dedos.” (MITRANO, 2016,
p.32). No poema supracitado, a ironia comparece: beber coca cola, a contragosto, beber um
símbolo do capitalismo, beber o que se odeia, beber o que não desce, beber o indigesto como
um modo de dar um sentido àquilo que não o tem. Levar o refrigerante à boca, esse líquido
explosivo, que estala na boca, como um gesto de dar um sentido, retira, ironicamente, o não-
sentido da vida, que é o árduo da vida, a experiência mesma da vida. Mas, esse gesto mesmo,
de levar à boca o indigesto a contragosto, não fez o menor sentido: “nada de bom ou terrível
aconteceu hoje”. O terrível é deslocado, com ironia, como se a coca-cola impedisse o terrível,
mas também o bom, não tendo nenhum sentido senão essa vida morna: na contramão da
propaganda “Coca-cola dá mais vida”, veiculada a partir dos anos 70, “apresentando a Coca-
Cola como um dos prazeres simples da vida, diferenciado e aceitável em qualquer lugar” 48, o
poema denuncia: nessa mais valia, o que se subtrai da vida é a sua experiência mesma, a
intensidade, e talvez isso seja o mais terrível que o poema mostra em uma crua economia de
superficialidade e simplicidade.
Foi dito que o Não faz, dos sentidos mais baixos, a sua ética. Poderíamos desdobrar isso
dizendo que essa ética do baixo vai desde a ausência da maiúscula nos poemas, da ausência da
grandiloquência, da ausência de nomes próprios, da retração da metáfora, do truncamento do
ritmo, da presença de uma topologia marginalizada do Rio de Janeiro, das cenas menores, do
cotidiano, da doença, da mesquinhez, da podridão, da animalidade, da origem rasurada de si
como um aborto de si mesmo (“meu sangue é vivo porque é sangue de quem se aborta”
(MITRANO, 2016, p.47)), disso tudo que abarcaria um mundo ínfero. É curioso notar que essa
palavra, “ínfero”, significando aquilo que é inferior, que está abaixo, faz parte da linguagem do
estudo da vida vegetal, precisamente, da morfologia botânica, para indicar a posição do ovário
em relação ao receptáculo. Na botânica, é dito que o ovário de uma flor é ínfero quando ele se
localiza na parte inferior do receptáculo e, por isso, “ovários ínferos originam falsos frutos”,
porque o receptáculo fará parte da formação do fruto, não deixando com que esse último se

48
Disponível em https://www.cocacolabrasil.com.br/historias/cronicas-da-coca-cola-um-negocio-global Acesso
em 04/07/2019.
193

desenvolva plenamente.49 Não à toa, o cristianismo usará a palavra latina inferus, que
significava “lugares baixos”, de onde sairá “inferno”. Leio o Não como esse ovário ínfero, cujos
frutos coincidem com o receptáculo, não sendo senão isso que não é exatamente um fruto, mas
o que não chega a ser um fruto, sendo em si mesmo um receptáculo, ao mesmo tempo um fruto
e um receptáculo, o que sai para fora e o que sustenta esse fora, o fora que fica mais dentro e a
sustentação desse fora no dentro, essa contenção, essa tensão extrema que sustenta o fora como
o dentro mais dentro. Se pensarmos no modo como o Não pode ser visto como um receptáculo,
ele é sempre um receptáculo em crise, portando em si o fora que se confunde com dentro, o
fruto também será sempre um fruto em crise, nunca um fruto, sempre um fruto retido, ao mesmo
tempo familiar e infamiliar em relação ao receptáculo que, por sua vez, é o outro de si mesmo
e vice-versa.
Em contraste com poemas de uma linguagem muito simples, como o da Coca-Cola, há
vários outros poemas sobrecarregados de imagens, muitas vezes condensando imagens
diferentes em uma extensão curta, como os primeiros poemas analisados. Mesmo quando há
pontuação, não há aeróbica, eles não respiram. Como vimos, os poemas são lances de imagens
com mudanças de foco, com “o enquadramento impreciso”, como diz um poema (MITRANO,
2016, p.18). As cenas são expostas de modo cru e descritivo, sem muita maleabilidade. Mas
isso não significa que os poemas revelam a cena toda; pelo contrário, as cenas que são jorradas
e descritas indiciam que há sempre algo que ficou fora de cena. Se elas mesmas já são o
obsceno, a desconexão que as justapõem reforçam ainda que, no que o poema coloca em cena,
insiste o que se mantém velado, fora de cena, de modo que não conseguimos completar o
quebra-cabeça, havendo sempre uma lacuna. Lacuna essa que potencializa a tensão entre as
imagens que, em si mesmas, já são carregadas de tensão. A intensidade está, inclusive, nos
próprios significantes e no modo como eles são articulados. A palavra escolhida traz, em si,
corpo, e vários poemas já começam com uma intensidade desde seus primeiros versos: “cabeças
moles, ferrugem nos cantos dos dentes”; “puta que pari um bicho morto”; “rasgava a camisa
com os dentes”; “ela pediu para eu não enlouquecer”; “tem espinhos na língua”; “eu deitada em
desmanche e você de pé, distante”; “a mão aberta, vulnerável, atirada, como se de fora do
corpo”; “as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água”; “roçar a língua na ferida
não cicatrizada dum desconhecido” (MITRANO, 2016, p.16; p.18; p.24; p.33; p.39; p.47; p.54;
p.56; p.57). No começo, era a “puta que pari um bicho morto”, assim com o verbo em primeira
pessoa, no passado, “pari”, como quem diz: “ela, a puta, sou eu”. No começo eram “cabeças

49
https://www.dicio.com.br/infero/ Acesso em 31/08/2019.
194

moles”, eram “espinhos na língua”: o começo quase sempre é uma entrada de sola na porta –
“abro minha guerra”. Como disse Tamara Kamenszain em La boca de testimonio, “si algo se
puede llegar a decir en relación con el sexo o con la muerte, hay que hacerlo metiendo la pata,
sin pelos en la lengua” (KAMENSZAIN, 2007, p.101).
Apesar de ter um eu que se cansa, escorrega, cai, deita, curva, tomba, essa luta de MMA
não sucumbe aos golpes. Entretanto, não é fálica, pelo contrário, é toda feita de fracassos,
precariedade e exposição de vulnerabilidade. Há muitas quedas: “em queda livre desde às cinco
da tarde”, “era janeiro/ e me escorreguei/ perdi o senso”, “o corpo ainda sente/ curva-se ao
inevitável/ tomba no meio da rua”, “quem cai na gira não levanta” (MITRANO, 2016, p.22;
p.31; p.31; p.54). Se podemos dizer que aqui se faz presente a reação do corpo afásico que luta,
que se debate, se revolve, expondo seus limites, deslizamos por significantes que derivam de
“gesto”, como “indigesto” (usamos a palavra “indigestão” acima) e “gestação”.
A gestação é um tema que aparece pela sua negação ou interrupção, pelo aborto: “puta
que pari um bicho morto”; “gestação infinita/ o filho podre a cerca viva/ meu útero arregaçado
expelindo medo em sangue/ porque é meu horror que gero –/ sei me ferir”; “frutas que nasceram
podres/ as que nasceriam pra sempre”; “nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.”;
“meu sangue é vivo porque é sangue de quem se aborta, é sangue de quem implodiu e é
arrancada a fórceps” (MITRANO, 2016, p.18; p.20; p.24; p.39; p.47). O Não gesta aquilo que
não vingou, aquilo que não chegou a ser. Incide aqui um apelo para ver essa poética como o
lugar não daqueles que são, mas daqueles e daquelas que nunca puderam ser, que nunca tiveram
o estatuto de ser. Essa reflexão se torna pertinente se pensarmos que, desde Platão, a poesia era
aquilo que revelava, e isso era compreendido como passar no não-ser ao ser, ou seja, fazer com
que algo que não fosse passasse a ser. Mas não podemos perder de vista que essa revelação
sempre implicou um velamento, aquilo que se mostra, que se dá a ver, não pode ser entendido
fora do duplo gesto do que se mostra ao mesmo tempo em que oculta. Precisamos, então, ver
como esses poemas permitem fazer a experiência daquilo que não chega a ser, daquilo que foi
interrompido, ou, mais contundentemente, obstruído, impedido. Aqui, a problematização da
teoria platônica da passagem do não-ser ao ser se dá especialmente pela experiência da pobreza,
que antes impede e obstrui do que dá passagem.
Na forma, no gênero, talvez esse livro se defina como aquilo que não chega a ser.50
Muitos poemas poderiam ser definidos como poemas em prosa, mas essa definição é

50
Opto por não fazer uma leitura dessa poesia como “antipoesia” ou “antipoética” porque compreendo o termo
“anti” como reativo à poesia, desejando negar o verso, o poético e a poesia. Poderia ser feita uma leitura do Não
como recusa do poético, como negação de si, mas não enquadro essa leitura nas recusas dos movimentos de
195

insuficiente, porque não tem como se ter certeza, já que a falta de pontuação em muitos deles
permite ler o que seria linha como verso. É o caso do poema citado abaixo, em que poderíamos
colocar uma barra facultativa em cada fim de linha, indicando a possibilidade do verso e a
indecisão da forma. Mesmo quando há pontuação, o fato de existirem muitos poemas que, pela
mancha na página, sugerem que são poemas em versos, esse fator influencia na leitura do livro
como um todo e faz com que nos deparemos com um impasse no momento de, supostamente
determinados pela leitura de um livro de poemas, definirmos as páginas em que estruturalmente
o texto não se parece com um poema porque suas linhas se estendem marcadas ou não por
pontuação. Às vezes, a pontuação aparece só como ponto final, como os poemas da página
dezoito, mais curto e mais estreito, 51 e da página trinta e dois, mais longo e mais largo:

bomba-relógio 6h levanta lava a cara duas vezes envelheceu


muito esse ano banho rápido roupa pronta engole o café e sai
o sol a gente sustos dorme chega gritos é assim a molecada
espera na fila sala de aula arrastam cadeiras o giz no quadro
formiga a gengiva cinco tempos morre com farofa ao
meio dia almoça naquela pensãozinha xexelenta mas tem papel
no banheiro volta a mesa grande cadê os óculos médias
faltas tá na hora anda torto a pasta pesa e cai no meio do
corredor revoada os papéis escapando das mãos gritos é assim
bomba-relógio falta pouco pro fim do dia pouco pro fim
do mês $ pouco pro fim do ano quanto pro fim da linha conta
nos dedos.
(MITRANO, 2016, p.32)

Apesar da mancha maior na página por causa dos versos mais alongados, os versos,
todos estruturados em cesuras, não têm a duração de uma prosa. Para além da pontuação, nos
encontramos em uma indecisão da forma também pela majoritária ausência de títulos, com
exceção dos poemas “arranca”, “verão”, “habitat” e “dois pra lá” (MITRANO, 2016, p.22, p.36-
37, p.63, p.65). Não sabemos se os títulos e as pontuações são aleatórios, mas a majoritária
ausência e a repentina presença de pontuação e títulos aumentam ainda mais a indecisão da
forma e do gênero, tensionando mais a leitura, fazendo com que a fronteira entre prosa, verso e
desenho seja tênue e fazendo com que, em meio ao inominado (ausência de títulos), nos
deparemos com nomes (títulos). Desse modo, o Não é menos um terreno consolidado pelo peso

vanguarda, como o concretismo, primeiro porque acredito que a poesia brasileira mais recente não se compreende
em projetos estéticos, segundo porque não percebo uma ânsia dos poetas e das poetas de negar nem o verso nem
mesmo a poesia. Pelo contrário, vejo cada vez mais a exigência de se reivindicar como poesia aquilo que
tradicionalmente não seria poético, como é o caso dos poemas performados nos Slam das Minas.
51
“puta que pari um bicho morto/ risco indócil na coxa/ barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada/
estilhaços imagens/ o enquadramento impreciso/ aparar as arestas até triturar os ossos do rosto/ as unhas perfuram
lentas a boca grande calada/ é preciso fugir pelas beiradas/ sem alarde.” (MITRANO, 2016, p.18).
196

de seu imperativo e mais um terreno esburacado e instável em que não se percorre senão com
giros, impasses, contorcionismos, quedas, enfim, improviso.
O que se subtrai ao nome, de alguma forma, é o que ainda não chegou a ser, ou o que
está ao rés do ser. Gestando o indigesto, esse Não também porta em si o que ficou atravessado,
pelo meio. Se atentarmos para a palavra “gesto”, vemos que essa palavra e derivações dela são
relativas ao corpo, à história e à política. Lembremos de “gesta”, que quer dizer história,
narrativa, registro – que vem de regestus: trazer de volta, duas vezes o gesto: recordar. Na
antiguidade, essa palavra tinha um compromisso com a memória, haja vista a obra do imperador
romano Augusto, Res gestae, que cita os feitos realizados durante sua carreira política. Mas,
para os romanos, essa memória tinha a ver com a origem enquanto passado fundacional de
Roma, ou seja, era uma memória da qual provinha toda a autoridade. É o contrário do que
vemos, por exemplo, no gesto do salto no conceito benjaminiano de Ursprung, em que a origem
não é um passado fundacional como resgate de autoria, de autoridade. Nesse gesto do salto do
tigre, tempos díspares se conectam anacronicamente porque o que os justapõe é a atualização
do horror. No campo da política e da economia, o gesto está em gerere, gerir, gerência, gestão.
No campo do corpo, gestus, particípio de gerere, quer dizer gesticulação, movimento. Derivado
dos verbos agere e gerere temos “agir”. De acordo com a etimologia, agir não é um ato que
tem início e fim, porque agere é pôr em movimento, um exercício contínuo. Segundo Hannah
Arendt em Entre o passado e o futuro, “agir traduz um movimentar-se para trazer gestas”
(ARENDT, 2014, p.22), ou seja, agir e gestar estão intimamente imbricadas, de modo que agir
é uma gestação, um movimento que indica nascimento.
Como mencionamos na primeira parte da tese, gesto é um significante que, embora não
teorizado, retorna recorrentemente no livro dedicado à exposição Levantes. Nele, em texto
introdutório, Didi-Huberman diz que “gesto de levante” é exclamar o desejo, expor a pulsão de
vida (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.16). Usando-se da partícula ex-, as possíveis definições do
gesto vão mostrando uma vinculação com o fora. Como um grito, o gesto do Não porta o
indigesto. Trazendo, no gesto, o indigesto, o Não é a atualização do horror no grito, na luta com
as palavras, no corpo que se revolve, se revolta, na impossibilidade da narrativa: é por ser
indigesto que esse gesto é uma narrativa interrompida, atravessada. O Não, um movimento em
si mesmo interruptivo, gesta os mutilados da vida, o que não vingou. Ele mesmo é uma
interrupção, e se sustenta em uma economia da falta que não re-age senão em um excesso. Ele
se sustenta como o que porta ou gesta a necessidade, a sobrevivência, daqueles e daquelas que
sempre foram excluídos da política.
197

Há um mito platônico no qual pode ser lida uma determinação do vivente humano pela
falta e pelo excesso, ainda que, na maioria das interpretações, o homem tenha sido pensado
exclusivamente pelo excesso que o vincula à divindade. Em Protágoras, o roubo do fogo por
Prometeu, e a consequente doação desse elemento ao vivente humano, parece ter dado ao
homem sua imagem semidivina. Esquecem-se, entretanto, geralmente, desse mito, do gesto de
Epimeteu, para quem o humano fora esquecido. Se este mito é o de Prometeu, ele não deixa de
ser igualmente o de Epimeteu, no que diz respeito a uma compreensão do humano. O que
significa o gesto de Epimeteu? O que significa o gesto de Prometeu? Como o humano se situa
não na exclusividade desses dois gestos, mas no intervalo entre os dois, ou seja, no entrelugar
da falta e do excesso? Ao mesmo tempo menos do que o animal e mais do que o animal.
Em Protágoras temos o diálogo entre Sócrates e o personagem homônimo ao título
sobre o ensino da virtude. Em um determinado momento, Sócrates diz que a virtude é
espontânea e natural e não pode ser ensinada, mas Protágoras vai mostrar que a virtude não é
natural, não é adquirida de nascença, é uma prática, ou seja, vem de fora, é artificial, transmitida
e, por isso, é ensinável. No diálogo, vemos que um ponto crucial para chegar à virtude não é
outra coisa senão o fogo, o elemento mais essencial do qual os humanos foram feitos. Na dúvida
entre explicar pelo mito ou pelo discurso, Protágoras opta pelo mito: “querem que eu mostre
como um velho falando a jovens, sob a forma de um mito, ou devo expor num discurso?”
(PLATÃO, 1986, p.104). Então, sua formulação começa assim: “Era uma vez um tempo em
que os deuses existiam, mas os gêneros mortais não existiam” (PLATÃO, 1986, p.104). Os
deuses modelaram os homens com uma mistura de terra e fogo e, “quando iam trazê-los à luz,
determinaram a Prometeu e a Epimeteu que ordenassem e distribuíssem poderes para cada um
deles como convém”, conforme a natureza de cada. (PLATÃO, 1986, p.105). Todavia,
Epimeteu distribuiu todos os poderes aos animais irracionais, esquecendo-se do gênero humano
(PLATÃO, 1986, p.105). Diante do impasse do irmão, “vem-lhe ao encontro Prometeu, para
inspecionar a distribuição, e vê que os outros animais de tudo estão harmoniosamente providos,
mas que o homem está nu, descalço, sem cobertor, sem armas” (PLATÃO, 1986, p.105). Ora,
provindo do fogo e da terra, o humano primeiramente está em falta em comparação aos animais:
a eles falta o essencial, o fogo. No começo, os humanos eram menos que os animais.
Para reparar seu esquecimento, “Prometeu rouba de Hefesto e Atena a sabedoria técnica
com o fogo” (PLATÃO, 1986, p.105). Logo, aquilo de mais essencial, o fogo, não foi dado aos
humanos, foi roubado. Certamente, Prometeu ficou em dívida e foi processado por roubo. No
começo, os homens possuem o essencial por um litígio. Primeiro, por uma falta, o
esquecimento, segundo, por uma reparação a essa primeira falta cometida, reparação que não é
198

senão o cometimento de uma outra falta, o roubo. Vemos então que os humanos são constituídos
de duas faltas principais: esquecimento e roubo. Uma vez realizado o roubo, o humano já tinha
a técnica do fogo, já podia se aquecer, preparar seus alimentos, “mas a política ele não tinha,
pois ela estava com Zeus” (PLATÃO, 1986, p.105). De que adianta fogo sem política?
Certamente, só a um bando de selvagens, porque a virtude política é condição para a existência
de cidades. Se não há virtude política, não há cidades, apenas selvageria. Somente Zeus podia
dar a política, mas “a Prometeu não mais cabia entrar na acrópole, a morada de Zeus”
(PLATÃO, 1986, p.106). Então, Prometeu entra na oficina de Atena e de Hefesto: “sem ser
visto ele penetra e, roubando de Hefesto a arte do fogo e de Atena o restante, ele dá ao homem,
e é disto que para o homem vêm recursos de vida” (PLATÃO, 1986, p.106). A partir de então,
o humano, que foi menos que o animal, passa a ser mais que o animal: é de um litígio dos
deuses, do que excede aos humanos, que vêm os recursos aos humanos, e esses passam a ter
elementos divinos:

Desde que o homem partilhou de sorte divina, em primeiro lugar (por causa
de seu parentesco com o deus) foi o único dos animais a honrar os deuses e se
punha a erguer altares e estátuas de deuses; logo depois com a técnica
articulou voz e nomes e descobriu casas, roupas, calçados, leitos e alimentos
da terra (PLATÃO, 1986, p.106).

Vemos que a técnica roubada está diretamente relacionada com a linguagem. Sendo
mais que os animais e menos que os deuses, os humanos, graças à técnica roubada pelos deuses,
articulam voz e nomes. Mas, e a política? “[A] técnica política ainda não tinham” (PLATÃO,
1986, p.106). Sem política só havia dispersão e destruição (PLATÃO, 1986, p.106). Nesse
momento os humanos conseguiam sobreviver apenas dispersos, pois, sem política, não há
vínculo, não há cidades. Nesse momento, os humanos ainda não tinham noção de justiça: ser
justo é condição para ficar entre os homens, ou seja, é condição para haver cidade, comunidade.
Assim, Protágoras diria a Sócrates: já que, por uma falha, por uma falta, Prometeu não pode
entrar na morada de Zeus e roubar a virtude política, essa virtude política precisa ser ensinada.
Por isso que, como diz Protágoras, essa virtude não é “natural nem espontânea, mas ensinável”
(PLATÃO, 1986, p.107). Não provinda dos deuses nem da natureza, ela é algo que os humanos
terão de construir com as próprias mãos. E nada garante que um excelente tocador de flauta,
que teria nascido para tocar flauta, seja um homem justo, tenha virtude política, por mais que
seus pais o tenham transmitido, ensinado, essa virtude. Ou seja, a virtude política não é uma
vocação, um talento nato, como os gregos atribuiriam ao excelente tocador de flauta. E, por
mais que ela seja ensinável, nada garante que a pessoa seja justa, porque a justiça não é uma
199

essência, um dote, não é nem mesmo um roubo ou um presente dos deuses. A virtude política
é o que, apesar de ensinável, nunca está garantido.
O fogo constitutivo do humano se relaciona com uma falta e com um excesso, com o
que, provindo de uma dupla falta, de um esquecimento e de um roubo, e provindo de fora dos
humanos, do que os excede, permite articular voz e nomes. Mas se o fogo é matéria-prima da
articulação, se a articulação já é um produto do fora e de uma dupla falta, vimos que falta algo
mais que o fogo para a política: algo que não é dado nem roubado, algo que se mantém como
falta, que se mantém como um fazer, como uma prática, como uma transmissão que, porém,
nada garante. Para chegar à virtude política (a questão do mito não é tanto o que é virtude, mas
se ela é ensinável ou não), Protágoras foi ao início de tudo, ao fogo, ao esquecimento, ao roubo,
à técnica, à sobrevivência, à voz, à articulação, mas a política resta como o que falta ou excede
a tudo isso. Apesar de a condição do humano ser mais que o animal e menos que os deuses, a
política instaura um limite em que não basta que o humano simplesmente permaneça sendo
mais que o animal e menos que os deuses: isso não garante a política, porque a virtude política
não é nem natural nem divina, não é dote, não é roubo, não é presente e também não é um
resultado: a virtude política não é, ela não está na ordem do ser, mas do fazer, a virtude política
se faz, ela existe enquanto prática da transmissão instaurada em uma falta constitutiva. Se os
deuses deram os recursos, eles deixaram os humanos com uma falta, a política. Se os recursos
fazem dos humanos mais que animais e menos que deuses, a falta está aí para desafiar essa tal
definição de humano.

Dissemos que o Não porta ou gesta aqueles e aquelas que sempre foram excluídos da
política. Por habitarem a falta e o excesso, as extremidades, nunca o meio termo, nunca a justa
medida, Aristóteles diria que esses e essas estavam mais próximos de uma monstruosidade.
Esses e essas que nunca chegaram a ser sempre foram relegados, de algum modo, a uma
dimensão mais animal, irracional, insensata, ilógica, selvagem, violenta, rasteira, suja, informe,
disforme, estranha. Desde Aristóteles, esses e essas que não chegavam a ser eram os mesmos
que não podiam discursar, eram considerados mais próximos à animalidade, mais presos à
necessidade imediata de sobrevivência (“um bicho se olha pro outro enquanto come, é
sobrevivência/ não é competição” (MITRANO, 2016, p.17)), da vida nua, da fala não articulada
do discurso. Como dissemos, o fundamento da nossa política ocidental se define por seres que
discursam e outros que apenas falam, grunhem, rosnam, mugem. O Não é isso que está mais
200

para bicho, e não para o lógos, para a articulação. O Não gesta esses e essas que sempre foram
excluídos da política, que têm a vida condenada como “frutas que nasceram podres/ as que
nasceriam para sempre”, como o corpo prematuro da criança preta cujo nascimento já é ruína
(“a criança preta empunha um pedaço de pau./ ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro/
quanto ruínas.” (MITRANO, 2016, p.15)), como isso que desafia a definição de humano.

amarra pendura deixa pingar


que a terra seca apaga a última gota –
a galinha me olha de um olho só
ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe
e o açougueiro gargalha
se sacode todo mole
tem larva na carne fresca e
não tem graça nesse lugar.
(MITRANO, 2016, p.60)

Este Não, como um poema diz, sustenta o insuportável, “sustenta os olhos de pavor (/)
diante do inevitável de ser bicho” (MITRANO, 2016, p.57). Nele, há muitas galinhas, muitos
abates, muitos despachos, muitos sacrifícios, e ser bicho é a condição que mais se aproxima
desses e dessas que nunca chegaram a ser, que são reduzidos a um pedaço de carne. Aqui o
horror se plasma na cena do abate: o remetimento às clássicas posições sexuais pela imagem de
um bicho remetem para além do abate do bicho. A gargalhada do açougueiro se contrapõe com
o último verso, “não tem graça nesse lugar”, denunciando que, onde há riso, há, na verdade,
muito horror, menos por se tratar de uma galinha e mais por se tratar da gargalhada do
açougueiro. As gargalhadas nesse livro são, no mínimo, sinistras, pelo que há em torno delas:
“quem cai na gira não levanta/ diz aos gargalhos” (MITRANO, 2016, p.56); “gargalhou outra
vez sem motivo./ tivesse língua, lamberia o bico da 38 spl carregada” (MITRANO, 2016, p.65).
A gargalhada não deixa de soar como uma gargalhada diabólica, no sentido sempre ambíguo
do demoníaco. O terrível nesse poema também vem do fato de que, nesse livro, ler sobre bicho
é ler sobre gente. Nesse poema lemos “tem larva na carne fresca”. Nos perguntamos: na carne
da galinha? Três páginas depois vemos de novo a larva, mas agora como “visco vermelho” que
se expele do próprio corpo e se encontra no dorso de um homem, no dorso que não é dorso, é
carcaça, isso que só os bichos têm: “um equívoco,/ sangro./ o visco vermelho é larva na carcaça
apodrecente do homem” (MITRANO, 2016, p.63). Uma das atualizações do horror nesse livro
é a proximidade entre humano e animal pelo que há de mais abjeto. Sustentar olhos de pavor
diante do inevitável de ser bicho é fazer fitar a cabeça da Medusa a cada poema. É isso que o
201

Não faz, ele faz parar, como quem dá de cara com o insuportável. Mas ele também gira e faz
girar.

deito, abro as pernas em pássaro e curvo a cervical pra, daqui, te ver. no centro,
os lábios úmidos do animal todo boca devoram a sua imagem diminuída pela
máxima distância suportada – sobre o corpo inerte, não obstante o grito
esmurrar a película que encobre o peito, no golpe extático da pequena morte,
dançam o líquido branco espesso e meus muitos coágulos – emaranham-se,
escorrem. as mãos, não soltamos. (MITRANO, 2016, p.44)

Um pouco mais da metade para o final do livro – começando a partir da página trinta e
nove52 e se intensificando ao longo das quase trinta páginas seguintes – comparecem cenas de
relação amorosa e, depois, de modo mais explícito, o amor. O poema da página quarenta e nove
evidencia isso quando, no verso “lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor,/ amornaram seus
dedos”, a definição de amor se identifica com as secreções, com o que está mais ao rés do corpo,
com o que nos cola à nossa condição animal:

você não sabe se enxugar,


eu disse rindo.
das suas pernas encharcadas brotavam poças escuras
que no corredor escuro
pareciam buracos –
eu não desviava,
espalhava seus abismos.
até que ficava insuportável te ver escorrer
e eu me agachava e lambia dos seus extremos até o pé,
a língua desmoronando em cada dobra,
enquanto você ardia por toda a dor do mundo.

e foi por ela,


foi por toda a dor do mundo,
que chorei em seus pés
e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,
lágrimas, coriza, bichos,
tanto amor,
amornaram seus dedos.
(MITRANO, 2016, p.49)

52
“tem espinhos na língua./ o encontro é quando lambe o racho da minha sola./ até que o primeiro lapso nos levante
às pressas -/ ensacamos entulhos com sutilezas de rancor./ nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos./ é
nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?/ sim, estaremos sempre sozinhos -/ guardo nossos segredos com
muitas mãos,/ seu sangue seco nas minhas coxas.” (MITRANO, 2016, p.39).
202

Aí, pela primeira vez, nesse Não, essa animalidade aparece de modo afirmativo ao ser
aproximada ao amor. Por uma associação não esperada, nomeia-se, por um nome também não
esperado, “amor”, que já indica o para além da necessidade, isso que até então não estava saindo
da necessidade, do corpo vivente: “o que nos prendia um ao outro não era apenas necessidade,
mas algo que trazíamos debaixo da pele” (MITRANO, 2016, p.41). Aqui, pela primeira vez,
parece, minimante, nomeia-se de outro modo, queima-se de outro modo, arde-se de outro modo:
o amor não só aparece, como ecoa: nos últimos versos, “tanto amor, amornaram seus dedos”, o
“amor” é duplicado na quentura de “amor-naram”, parecendo ser o contraste com o “Verão”
escaldante anterior em que se escorre, se desmancha, se descolore.
A dimensão animal que coloca incessantemente na condição de outro, impuro, informe,
estranho, hostil, longe de aludir a uma identidade, se abre a uma alteridade que implica um gesto
em que o amor não vem pelo reconhecimento do rosto, mas pelas substâncias do corpo que são
tocadas pela mão do outro: a suposição dos traços do rosto alheio vem pelo acolhimento das
mãos alheias à matéria expelida. Ou seja, quem reconhece o outro é, antes, esse corpo estranho
expelido (“e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,/ lágrimas, coriza, bichos,/ tanto
amor,/ amornaram seus dedos.”).
No Não, o amor aparece como gesto que não desvia dos buracos do outro, mas os
espalha até o limite: é assim, lambendo os limites do outro, que se ama. Ama-se também como
um gesto-limite: a língua não lambe senão dos “extremos até o pé”, os buracos espalhados, as
dobras, as ranhuras. A língua que lambe os extremos e desmorona em cada dobra arde
afirmativamente como amor por uma segunda e última vez no poema da página sessenta e três:

um equívoco,
sangro.
o visco vermelho é larva na carcaça apodrecente do homem,
diz vontade,
entre minhas pernas –
sol no corpo flácido de sono.
estica o pescoço e a boca cansadafaminta,
bicho, lambe –
da língua à pele,
estala uma baba espessa.
entreabertos, os lábios imensos:
a gota incólume,
na dobra esgarçada
parece amor.
(MITRANO, 2016, p.63)
203

A gota da carne abatida três páginas atrás não foi, nesse livro, a “última gota”
(MITRANO, 2016, p.60). O poema citado acima se chama “habitat”. Nele, lemos que essa
morada começa pelo sangue como um equívoco. Depois vamos vendo que essa morada é uma
travessia pelo corpo. Mais que uma travessia, uma travessia erótica. Mas comecemos pelo
começo: o equívoco. “[U]m equívoco,/ sangro”. O “visco vermelho” no verso seguinte parece
ser esse sangue que, como equívoco, deixa de ser sangue e passa a ser visco vermelho que deixa
de ser visco vermelho e se transforma em “larva”. Três páginas atrás, líamos a larva na carne
fresca. Agora, a larva está na “carcaça apodrecente do homem”. O dorso também é um
equívoco: aqui, ele é carcaça. Mas agora a larva não está na carne fresca, está na carcaça podre.
O restante do poema pode levar a crer que se trata de uma cena erótica: “bicho, lambe –/ da
língua à pele,/ estala uma baba espessa./ entreabertos, os lábios imensos:/ a gota incólume,/ na
dobra esgarçada/ parece amor”. Nada leva a crer que o abjeto agora não é bem-vindo. Pelo
contrário, “a carcaça apodrecente do homem” faz parte da cena erótica, o amor não acontece
sem ela: “diz vontade, entre minhas pernas”. Faz parte da cena erótica o “corpo flácido de
sono”, faz parte da cena erótica “a boca cansadafaminta”. Nada disso indica que não há amor.
Pelo contrário, tudo isso conduz ao amor, que só surge como amor no último verso, como
especulação, como hesitação: “parece amor”.
Habitat é o abjeto transformado em meio de amor. Não é a casa limpa, arrumada,
perfumada: é a morada mais estranha: o abjeto como meio de vida, como forma de amor. No
poema anterior, o amor surgiu pelo contato, pelo toque, com substâncias do corpo (“e supus as
linhas do seu rosto quando minhas águas,/ lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor”), o amor surgiu
também pela boca, pela “língua desmoronando em cada dobra” (MITRANO, 2016, p.49). Nesse
poema, parece que lemos um esgarçamento da dobra, um desdobramento do esgarçamento da
dobra, um esgarçamento do desmoronamento na dobra: “entreabertos, os lábios imensos:/ a
gota incólume/ na dobra esgarçada/ parece amor” (MITRANO, 2016, p.63). Nele, o amor
também surge na gota que desmorona nos lábios imensos, também surge pelo contato com
substâncias quentes e fluidas do corpo. Se, antes, o amor foi tateado na língua desmoronada na
dobra, agora, o desmoronado na dobra esgarçada (“a gota incólume”) indica o amor, não
chegando diretamente pelo “ser”, mas se aproximando indiretamente pelo “parecer”, girando
em torno, especulando, como quem tateia, como quem indica, como quem acena, como quem
associa, como quem aprende a dar nomes.

*
204

É importante dizer que o caráter afirmativo da animalidade vem também pelo rito, ou
seja, por isso em que corpo e mensagem se relacionam em intimidade. Alguns poemas sugerem
rituais de matriz africana, como o candomblé, em que o corte, o sangue, o sacrifício, estão
presentes, mas que, como sabemos, carregam um significado festivo e celebrador. Trazendo um
dos ritos mais discriminados como obscuro, selvagem, diabólico, histérico, em que, não à toa,
um corpo dá lugar a outro, uma voz dá lugar a outra voz, tornando esse corpo mesmo um
mensageiro, um intermediário, um medium, ou, como se diz na Umbanda, um “cavalo”, aquele
sobre o qual se monta, “quem cai na gira não levanta” porque essa é uma incorporação que não
se identifica com possessão, mas, antes, com uma despossessão de si que leva rente aos que estão
ao rés do chão. Poderíamos definir essa escrita também como “a tragédia pronta pra despacho”:
como um padê para Exú – esse daimon que faz ponte entre os humanos e os deuses, que habita
a escuridão, o limite, a margem, a beira, a encruzilhada –, a carne é exposta como a de uma
galinha cortada, cujas vísceras só são morte e sacrifício na medida em que são uma oferenda,
um apelo. A afirmatividade das estranhezas desse corpo pagão vem igualmente aí, no rito, onde
se dança sobre a brasa, onde “a carne lateja alegre diabólica”:

as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água e


a carne lateja alegre diabólica enquanto a fatia gorda dança
severamente aos aplausos do cego que com olhos de não ver
tateia os gemidos riscados no chão

quem cai na gira não levanta


diz aos gargalhos
a santa de vidro quebrou cedo
olho daqui os pedaços de quem não olha
tem um sorrisinho antagônico
hipocrisia mordaz nas palavras rasas
comiseração e deboche
olho de boi morto.
(MITRANO, 2016, p.56)

Entre a plataforma de versos mais alongados e o abismo dos versos mais encurtados,
entre dois pedaços, entre uma “fatia gorda” e “pedaços de quem não olha”, entre a subtração do
humano pela carne e a subtração de carne do humano, entre a subtração do humano pelo excesso
e a subtração do humano pela falta, entre duas metonímias opostas, entre o que sobra e o que
falta, esse corpo começa a dar um giro e mostra que já sabe cair, já sabe queimar, já sabe brincar
com o fogo. O mesmo se evidencia mais adiante, na página sessenta e dois: “[mãos de pólvora
afagando o fogo]”. Esse corpo já sabe dançar: se, no começo do livro, lemos que “os amantes
de rua/ mutilados/ dançam sobre a brasa”, essa dança, que até então tinha comparecido
205

timidamente, sempre expondo o preço pago para que essa dança aconteça, a instauração de uma
falta, um pedaço arrancado, um corte, um sacrifício, sempre se situando, ainda, na beira entre
o que queima pela morte e o que queima também por subverter a morte, agora, mais para o final
do livro, esse corpo deixa de se curvar inevitavelmente apenas à dança macabra da morte e traz
à cena a vida-a-mais que se instaura em uma pequena morte: “no golpe extático da pequena
morte, dançam o líquido branco espesso e meus muitos coágulos” (MITRANO, 2016, p.44).
Orgasmo, esperma, lágrimas, coriza, sangue, os excessos agora se endereçam ao outro.
No ensaio intitulado “Escrita e corpo: inscrição, excreções, exceções”, presente no livro
Demoras na aporia: bordas do pensamento e da literatura, organizado por Piero Eyben, Ana
Kiffer fala sobre lugares de passagem do corpo, como boca, ânus, ouvido, nariz, como “lugares
de contaminação entre os corpos e a escrita” (KIFFER, 2012, p.54). Ela diz que “esperma, pus
e outras secreções”, que aparecem na obra de Artaud, apontam para uma “forma amorfa do
fluxo, da passagem”: “[l]ugares que parecem mostrar como a passagem de um pelo outro
provoca, por um instante, o abandono de ser um e ser outro. Esse passar um no outro é um
passar outramente” (KIFFER, 2012, p.54). Com Kiffer, podemos dizer que essas secreções
expelidas pelo corpo se apresentam agora como “lugares de passagem” que, em uma sobrevida,
passam a ser um a-mais que aproxima um certo modo de morrer a um mais-que-apenas-viver:
“morreria já a essa hora?/ danço.” (MITRANO, 2016, p.65).
No mesmo texto referido acima, Kiffer diz da arte, do pensamento ou da literatura como
um espaço vital que dá lugar às existências dos corpos: “Eles mesmos natimortos como diria
Artaud. Reinventar corpos, essa poderia ser uma sobrevida, como quis Derrida” (KIFFER,
2012, p.55). Se, até aqui, na leitura de Não, a dimensão do corpo-bicho tinha comparecido mais
como uma promessa daquilo que não foi, mais como herança do que não chegou a ser, mais
como impedimento e interrupção da vida como legado e mais como denúncia de um corpo
reduzido à vida nua, para o final do livro, porém, esse corpo-bicho passa a ser celebrado
diabolicamente, eroticamente. O corpo que, nesse giro, passa a saber-fazer, a saber-se-mover-
com, entrelaçando Eros e Tânatos, agora se mostra também como o que eu chamaria de uma
ética do excesso, do excremento, da sobrecarga: o poema da página cinquenta e sete parece
condensar tudo o que foi abordado ao longo do livro e, como nenhum outro, traz, nessa
poemática, um modo de fazer, uma ética, um “ – exercício de libertação – ”:

roçar a língua na ferida não cicatrizada dum desconhecido


que não se presta a gemidos mas sustenta os olhos de pavor
diante do inevitável de ser bicho insano galopa arrefece no
subsolo da cidade de cal
206

penetrar a ponta da língua nas substâncias quentes fluidas vivas


– exercício de libertação –
(MITRANO, 2016, p.57)

Do outro lado, na página seguinte, um cavalgamento:

(MITRANO, 2016, p.58)

No Não, os corpos estão sempre nus. Eles foram impressos em preto e branco no livro,
mas fora do livro eles ganham uma vida contrastante em cores sempre quentes. Os desenhos,
como tudo no livro, também provêm da precariedade. Em entrevista em que perguntam à poeta
sobre o material utilizado nos desenhos, ela diz que os desenhos são feitos com caneta e giz de
cera: “tudo muito precário”53. Seria esse desenho a continuação do poema anterior? Ou um
desdobramento dele? As cores sugerem: seria um cavalgamento sobre a brasa? Duas mulheres,
uma sobre o dorso da outra, duas amantes, cavalgando sobre a brasa?

53
Entrevista concedida em 2017 a Chris Herrmann e Nuno Rau, para a Mallarmargens – Revista de poesia e arte
contemporânea. Disponível em http://www.mallarmargens.com/2017/08/mallarvista-007-entrevista-com.html
Acesso em 10/07/2019.
207

(MITRANO, arquivo pessoal)

Do outro lado, na página seguinte, temos outra face desse dorso. Em um piscar de olhos,
em um golpe de vista, em uma virada, em um lance, passamos supostamente de um dorso em
que acontece um amor erótico para um dorso em que não nos assegura a brasa de um amor, mas
a brasa de uma lágrima gélida de horror:

houvesse a negativa
a rouquidão da mãe
seu dorso
os pelos revolvidos
aqueles dedos talvez
mas duas ou três historinhas mixurucas
e o oitavo branco esquimó.

gelo na língua: a cara lisa, lagrimando brasa, em riso esquizo


cacarejento estala, essa dor do cão!
(MITRANO, 2016, p.59)

Entre especulação, disfonia (“rouquidão”), partes do corpo, bichos, estalo e uma


temperatura no extremo, se fosse para definir esse poema, eu usaria uma palavra dele e o
chamaria de “poema esquizo”. É difícil encontrar algum sentido nele. A conjunção adversativa
quebra a especulação inicial e é também esse “mas” que me faz ler esse poema como um
extremo do anterior. Com o “mas” vem o adjetivo “mixurucas” e a “dor do cão” que, se não
tivesse sido antecedida por “mixurucas”, eu poderia até escutar como uma dor de amor, um
208

gozo, mas, dessa vez, parece que o gozo não coube no cálculo: um não a menos (“houvesse a
negativa”), uma brancura a mais – uma brancura excessiva (“o oitavo branco esquimó”) – e
“duas ou três historinhas mixurucas” resultam em uma “dor do cão” que subtrai o amor.
É preciso se demorar no breve relâmpago do poema anterior ao citado mais acima,
porque sabemos que, quando o horror se impõe, o amor aparece na brevidade de um relâmpago,
retido em um lance. Ele irá retornar, mas ainda haverá algumas larvas, ele não irá retornar a não
ser entre larvas. Voltemos uma página atrás, o outro lado da anterior, e nos demoremos no
poema em que o galope, o cavalgamento, o amor, aparecem como uma ética, como um “–
exercício de libertação –” (MITRANO, 2016, p.57). Essa é uma ética, é preciso dizer, erótica:
é como se o poema respondesse à pergunta “o que deve ir à boca?”. Esse poema condensa o que
foi faiscando ao longo do Não: ele mostra que é no desmoronamento da língua que se vai às
ranhuras do outro (“o encontro é quando lambe o racho da minha sola”), à ferida do outro que
permanece não cicatrizada (“roçar a língua na ferida não cicatrizada dum desconhecido”), aos
buracos que constituem os abismos do corpo: “a língua desmoronando em cada dobra, enquanto
você ardia por toda a dor do mundo”.
Segundo Aristóteles, no “Livro III” da Ética a Nicômacos, enquanto os animais
irracionais estão apenas em relação de instinto54, e não de prazer, com os sentidos, os humanos,
ao contrário dos animais, estão também em relação de prazer. Pessoas concupiscentes são
aquelas que se comprazem com os prazeres quando esses são objetos de desejo para elas
(ARISTÓTELES, 1999, p.66).55 Ou seja, quando, diferentemente de como acontece com
animais, elas não estão em relação com os sentidos por necessidade ou instinto, mas por desejo.
Mas é justamente isso que, para Aristóteles, aproxima os humanos dos animais, é justamente o
desejo que condena os humanos como animais: “a concupiscência é justamente condenada
porque ela existe em nós não enquanto criaturas humanas, mas enquanto animais”
(ARISTÓTELES, 1999, p.67). Na concupiscência, os humanos são condenados como animais
porque, nela, o prazer não é moderado, e o excesso, certamente, tem uma face monstruosa e
transgressora para Aristóteles: “comprazer-se em tais coisas é bestial”, ou “o excesso em
relação aos prazeres é concupiscência e é condenável” (ARISTÓTELES, 1999, p.67-68).

54
Os cães, por exemplo, não sentem prazer em cheirar as lebres, e sim em comê-las, mas seu cheiro lhes revela
que elas estão por perto; nem o leão sente prazer em ouvir o mugido do boi, e sim em devorá-lo, mas ele percebe
pelo mugido que o boi está perto, e por isto parece que o mugido lhe dá prazer; da mesma forma ele não sente
prazer porque vê um veado ou uma cabra selvagem, e sim pela expectativa de vê-los transformar-se num repasto
(ARISTÓTELES, 1999, p.66).
55
“[...] as pessoas concupiscentes se comprazem com estas coisas [odor de unguentos perfumados ou de iguarias
requintadas] porque elas lhe trazem ao pensamento os objetos de seus desejos. Podemos até ver certas pessoas,
quando famintas, deleitando-se com o odor dos alimentos, mas o deleite com esta espécie de coisas é característico
das pessoas concupiscentes, pois estas coisas são objetos de desejo para elas” (ARISTÓTELES, 1999, p.66).
209

Dos cinco sentidos, o tato e o paladar são prazeres que parecem servis e bestiais, porque
podem se tornar mais que prazer, podem se tornar um “gozo efetivo”. E, para Aristóteles, esse
“gozo efetivo” vem “em todos os casos através do tato, tanto em relação aos alimentos quanto
à bebida e às relações sexuais” (ARISTÓTELES, 1999, p.67). Aristóteles aproxima o anseio de
alimento com o amor quando esses se dão pela falta, pela função de suprir uma privação, pela
necessidade. Ele diz: “o desejo de alimentos é natural, já que as pessoas que se veem privadas
deles anseiam por alimento ou bebida, ou às vezes por ambos; acontece o mesmo com o amor
(como diz Homero)” (ARISTÓTELES, 1999, p.67). Ou seja, para Aristóteles, o amor, como o
alimento, se dá em função de uma necessidade a ser suprida, e não para além da necessidade,
como o desejo. As pessoas que comem além da necessidade, como as que desejam, são
chamadas de “‘loucas do ventre’, no sentido de que elas enchem o ventre além da medida certa”
(ARISTÓTELES, 1999, p.67). A essas, Aristóteles define como “as pessoas de natureza
especialmente servil” (ARISTÓTELES, 1999, p.67), contrariamente às moderadas, que
integram a “espécie de pessoa conforme a reta razão” (ARISTÓTELES, 1999, p.68). As pessoas
concupiscentes se aproximam dos animais e das crianças, porque também essas “vivem sob a
instigação dos apetites”:

Se elas não forem preparadas para ser obedientes e submissas à autoridade de


quem as cria, irão longe demais, pois num ser ainda irracional o desejo do
prazer é insaciável e generalizado; com efeito, se eles forem numerosos e
violentos, aniquilarão a própria capacidade de raciocinar. Por isso eles devem
ser poucos e moderados, e não devem de forma alguma opor-se à razão – é
isto que pretendemos dizer com “obedientes” e “submissos à autoridade” – e
da mesma forma que a criança deve viver de conformidade com as instruções
de seu preceptor, a parte apetitiva de nossa alma deve viver de conformidade
com a razão. Logo, na pessoa moderada a parte apetitiva da alma deve
harmonizar-se com a razão, pois o objetivo de ambas é aquilo que é
nobilitante, e a pessoa moderada deseja as coisas que deve desejar, como deve
desejar e quando deve desejar; é isto que a razão determina (ARISTÓTELES,
1999, p.69).

Vemos que o que aproxima crianças, animais e pessoas concupiscentes é o que os


distancia da razão, ou o que os aproxima do desejo. O lógos é a medida da moderação, do bem
viver, do justo, da civilidade, enquanto o desejo é a desmedida do simples viver, do nocivo, da
selvageria. A ética aristotélica sobre a qual se ergueu o mundo e a política ocidentais é, sabemos,
uma ética que reafirma a dicotomia entre corpo e alma, corpo e mente, corpo e pensamento, em
outras palavras, desejo e razão. Aos primeiros, corpo ou desejo, sabemos que opera a posição
do escravo, e, além dele, da mulher, da criança, do animal. Aos outros, opera a posição do
senhor, do homem. Contra a Ética a Nicômacos, contra a ética em que se fundamentou a cultura
210

ocidental, a ética do Não é uma ética dos necessitados e dos concupiscentes, ou seja, dos que
desejam. Se o imperativo desse Não pode ser entendido como um manifesto, o leio como
Marcos Siscar disse em De volta ao fim que manifestar “não pode mais ser entendido como ato
de fixar determinados princípios” (SISCAR, 2016, p.14). Ele relaciona o manifestar com o
desejo: “manifestar nada mais é do que explicitar o desejo de dar sentido, ou seja, um modo de
se debater com a questão do sentido” (SISCAR, 2016, p.14). Aqui, explicitar o desejo é, pois,
um modo de se debater. Assim, o manifesto está intimamente relacionado com um modo de se
debater, isto é, explicitar o desejo. Enquanto um modo de se debater, a palavra de ordem do
manifestante, ao contrário da lei do poder, diz de um desejo. Porque deseja, aquele que
manifesta é aquele que tem o movimento de debater, revirar, revolver, revoltar. Como uma ética
do desejo e como uma ética que passa pelo paladar e pelo tato é que ela pressupõe a ferida: a
língua do poema deve ser a que roça a ferida, a que penetra as substâncias quentes.
No limite, “na dobra esgarçada”, esse grito sustenta o que está sempre à beira de
desmoronar e que, no final do livro, desmorona: a língua. No último poema, lemos o verso
“tivesse língua”. Isto é, a língua, já não se tem. Mas é nesse desmoronamento da língua que o
amor se sustenta também naquilo que está, no extremo, à beira de desmoronar: “a gota incólume,/
na dobra esgarçada/ parece amor” (MITRANO, 2016, p.63). Nesse esgarçamento que aproxima
os limites no mesmo gesto que os distancia, esse corpo que, paradoxalmente, faz uso de todos
os sentidos, coloca também as mãos em jogo não porque as tem, mas porque as mãos, assim
como a língua, estão em uma relação de perda: “algo haveria de se perder, sempre, no vácuo
entre duas mãos sobrepostas” (MITRANO, 2016, p.45). As mãos não existem como parte
constitutiva de um corpo, elas ora existem pela falta, como presença de uma ausência, ora como
mãos que só existem com outras: “guardo nossos segredos com muitas mãos” (MITRANO,
2016, p.39), “as mãos, não soltamos” (MITRANO, 2016, p.44).
Na palestra de abertura à exposição “Levantes”, Didi-Huberman nos lembra que,
etimologicamente, manifestar é “fazer festa com as mãos”56. Nesse Não como um manifesto,
as mãos não existem previamente: o manifesto é também o aceno da falta das mãos, ele é o que
indica as mãos que faltam e, ao mesmo tempo, é um manifesto de muitas mãos, de mãos que só
existem em relação com outras. Assim, como um manifesto do desejo, esse manifesto também
se dá entre extremos. Entre um corpo com muitas mãos e um corpo mutilado (“se não me restam
mãos, olho”, “as mãos estavam vazias”, “a mão aberta, vulnerável, atirada, como se de fora do

56
Disponível em
https://www.sescsp.org.br/online/artigo/11440_LEVANTES+IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LU
TA Acesso em 01/07/2019.
211

corpo” (MITRANO, 2016, p.29, p.47, p.54)), esse Não, ao contrário de se fechar totalmente em
uma negação, ele dá aquilo que ele não tem, tal como um gesto de amor.
No último poema, um nome, um título: “dois pra lá”. Um dos poucos títulos presentes
no livro, um dos poucos nomes: no último poema, um passo de dança. No começo era a dança,
vimos. No fim, também. No começo era a dança do horror da morte. No fim, “morreria já a essa
hora?/ danço.”. Não lêssemos o que vem antes disso, teríamos a certeza de que, no fim, a dança
seria uma alternativa à morte:

gargalhou outra vez sem motivo.


tivesse língua,
lamberia o bico da 38 spl carregada,
pra deixá-la ainda mais aguda,
a noite.
ela,
morreria já a essa hora?
danço.
(MITRANO, 2016, p.65)

Mas há um corpo mutilado que perdeu a língua desde o primeiro poema do livro.
“[T]ivesse língua, lamberia”: uma especulação, assim, no futuro do pretérito, nesse tempo verbal
disjunto que indica a possibilidade, mas não o ato: lamberia o bico do revólver, mas, a língua, já
não a tem: o verso diz “tivesse língua”. Tivesse língua, lamberia o bico da arma. A língua, por
onde se chega às “substâncias quentes e fluidas”, por onde se roça “a ferida dum desconhecido”,
agora, aqui, entraria em gozo com uma arma, “lamberia” o horror, mas a língua já desmoronou
– no quente, no fluido, na ferida. A língua ficou lá, se perdeu lá, se encontrou lá. Aqui, a língua
foi salva pela especulação: “tivesse língua”, essa que não tem mais. A especulação barrou o
horror. “[T]ivesse língua, lamberia” o bico da arma para deixar a noite mais aguda. Mas parece
que há uma outra interrupção ao horror. Entre o sujeito (“ela”) e o verbo (“morreria”), há um
intruso, uma vírgula, uma larva. Não se sabe o motivo dessa intrusão. Algo deve haver de separar
“ela” de “morreria”. Algo deve haver de assegurar uma instância para “ela”, um verso todo só
com “ela”, só “ela”. Seria a vírgula, essa intrusa, que salvaria “ela” da morte? Ela seria o eu que
“danço”? Ou ela seria quem “gargalhou outra vez sem motivo”? Ou ela seria “a noite”? Mas a
noite não gargalha. Literal ou metáfora? Nessa especulação, a morte se mantém suspensa, existe
como possibilidade, assim como uma língua lambendo o bico de um revólver, o horror não deixa
de existir como possibilidade, mas o poema não nos diz que ele se realiza: dessa vez, a morte
também paira em suspensão no futuro do pretérito. O que se realiza, porém, sem dúvida, é uma
dança.
212

Dando continuidade à leitura, de novo, o futuro do pretérito (“morreria já a essa hora?”),


só que, agora, com uma diferença: o presente o sucede: “danço”. Isto sabemos: quem “danço” é
o eu – esse que já caiu em queda livre. Entre o futuro do pretérito e o presente, entre a potência
e o ato, dessa vez é o horror que paira como fantasma, suspenso, dessa vez é a morte que paira
como fantasma, suspensa, não abandonando esse compasso, ou esse descompasso, de estar ora
de um lado, ora de outro, ora o condutor do pas de deux, ora o conduzido. Nessa coreografia, só
uma coisa é certa: não existe o passo sem o fantasma: a dança é, ela mesma, a alternância da
posição do fantasma. Ora o humano assume a posição de fantasma, como os amantes de rua, ora
o horror e a morte assumem a posição de fantasma, como nesse poema. Os poemas dão duas
opções: dança-se sendo o fantasma ou dança-se com o fantasma. Sem fantasma, não há dança.
No primeiro caso, amor e horror estão terrivelmente entrelaçados: nele, é o fantasma que resta.
No segundo caso, o horror ronda, mas resta alguém – e quem ocupa a posição de fantasma é o
horror. Entre a morte e a vida, entre fantasma e vivente, entre sobrevivente e vivente, move-se,
baila-se, gira-se. O poema imediatamente anterior ou o último desenho do livro nos diz:

(MITRANO, 2016, p.64)


213

Se o corpo-bicho, a vida nua estava sendo exposta e denunciada até então em sua
precariedade, foi preciso que houvesse uma torção que não acarretasse em um aprender a
articular, mas em um desmoronamento do corpo e da língua para que se pudesse então se
aproximar – com uma língua desmoronada –, pelo nome de amor, o que estava apenas em
condição de horror, para que se pudesse nomear de amável o que estava apenas em condição de
matável. A mudança desse estatuto não veio pela normatização – da língua, do corpo – mas pelo
giro no desmoronamento esgarçado ao extremo. Compreendo esse Não nesse giro, isto é, nisso
que também acontece em um grau de improviso. Esse imperativo, esse Não, essa negativa,
constrói-se a si mesmo tateante, recriando-se, trabalhando sobre si mesmo, sofrendo
transformações, em giros, em quedas, em alternância de formas, em golpes, em revolvimentos,
no que não vinga, no que fica atravessado, em contingência, em especulação, em buscas de
resposta, em lacunas, em obstruções: o Não se constrói na precariedade, enquanto
desmoronamento, não enquanto um dizer fixo que se ergue altivo e normativo. Ele não se
desenha em regras pré-estabelecidas, em manuais, em discursos, em palavras de ordem, mas em
experimentação, em um corpo que gira.
Pelo giro no desmoronamento esgarçado ao extremo, vemos então que algo se articula,
algo minimamente começa a se articular, da metade para o fim do livro, quando as cenas
começam a acenar para o amor e quando finalmente surge o amor como nome. Mas essa
articulação vem do limite da desarticulação. A articulação não vem como elaboração, não vem
como um saber, mas como um saber-fazer: fez-se algo com o limite da desarticulação, fez-se
algo no/do/com o desmoronamento da língua e não com a língua. Nem só reação do corpo nem
só articulação, nem só necessidade nem só para-além-da-necessidade, nem só vida nua nem só
vida desejante, mas os dois ao mesmo tempo, não porque se aprendeu a ter o domínio da
linguagem, do discurso, mas porque, ao contrário, excedeu a eles, habitando o desmoronamento
para que se pudesse, então, associar, aproximar, nomear, amar. O pensamento que surge daí – a
princípio, tateante, se indiciando indiretamente por cenas, até se mostrar diretamente com o
nome – não é um pensamento ditado pela razão, mas não se pode dizer que por isso não há
pensamento: é pela via do desmoronamento que surge o pensamento. Não pela construção fálica
que ergue em direção ao céu, não pela armação da língua, não pela língua bélica, não pela
calcificação das vértebras quebradas, mas pela experiência radical da fratura do eixo que liga a
pélvis ao crânio, articulando-os lá no limite da medida que expõe a distância que os separa.
Dessa forma, esse grito de Não instaura uma ética dos extremos, da falta e do excesso:
uma ética que também é uma ética do excremento, disso que o corpo expele, “substâncias
quentes e fluidas”, “lágrimas”, “coriza”. Nesse sentido, não podemos falar de ética sem dizer
214

que a concepção de ética desse texto subverte o que Aristóteles chamou de ética no “Livro II”
de Ética a Nicômacos, já que, para Aristóteles, “o excesso e a falta são características da
deficiência moral e o meio termo é uma característica da excelência moral” (ARISTÓTELES,
1999, 1106b, p.42). A ética implicada aqui, ao contrário, é uma ética dos extremos. Contra a
falta e o excesso, Aristóteles promulgava a ética como o meio termo. Aqui, a ética é o avesso
da ética de Aristóteles: além de a ética existir justamente como experiência dos extremos, da
falta e do excesso, os amáveis não são o que se encontram em situações intermediárias, mas em
situações extremas. Nessa ética, o excesso, ao contrário do excesso da política vigente, inaugura
uma articulação não capturada entre matável e amável, em uma relação não excludente com o
corpo. Nessa ética, a palavra amável está na palavra matável, articulando aquilo que a política
nunca articulou.
215

2.2. Campo minado: entre tiros e acenos, legados e restos

para Cristiana

acordei na madrugada, amor, e havia tiros que circulavam atrás da nossa


[janela sombreando a
mandala da colcha que resolvemos usar como cortina.
faz barulho lá fora e em breve você acorda no sentido santa cruz e eu
[permaneço aqui, atenta e
ouvinte da fisiologia dos gatos
compreendendo a lógica feroz dos
nossos vizinhos e celebrando minhas pequenas vitórias de testemunha
viva do que todos os dias permanece
sendo a vida incompreensível.
já já amanhece, amor, e eu vou
vendo no tempo meu espelho
descobrindo um outro cabelo branco
ou um desgaste obstinado da pintura
perto da parede que há um ano era lisa.
os tiros não param.
não vou mais fazer aquela pergunta
sobre o tempo porque a adriana calcanhotto disse que não interessava
a visão política dos poetas então
eu fico aqui insone neste bairro da zona norte ouvindo rajadas das muitas
[vidas separadas do
morro da outra rua eu penso nas crianças lá em cima no
morro dos macacos eu penso que
a minha profissão é uma utopia
eu penso que gostaria de dividir com você um mundo justo (eu prometi a
[mim mesma que escreveria este poema sem a palavra mundo ou tempo mas
[eu falhei, me desculpem os poetas
que são expertises em tudo em que sou fraca, desculpem os críticos, as
[adrianas, amigos ou
irmãos feéricos da poesia)
em que todo fim de mês não precisassem existir brigas em função das contas
[ou que sempre
conseguíssemos decorar o que dizer ou fazer para o casal que nos pede
[dinheiro na entrada do
supermercado
(o bebê está sempre com remelas)
enfim, amor, como poderíamos bem respirar
diante de tanta disparidade, como conseguimos comer peixe sabendo que há
[os tiros e
as crianças e o casal
como eu posso dormir se a minha beleza fraqueja diante dessa inaptidão dos
[poetas?

uma vez eu te disse, amor, tuas mãos são saúde e as


minhas têm uma espécie de maldição
que é dedilhar o caos, saber o relevo e o tamanho da crosta das cascas que é
[olhar a mandala e
216

só ver os tiros, amor, você e essa palavra que preciso repetir para não
[adoecer, amor, os tiros, as
crianças, teu sono cansado, as fissuras, a tarde imensa da minha solidão, o
[som dos tiros
invadindo a nossa cama, o passado a meu lado, minha memória
nem amanhece e o que há é a guarita do teu sono pesando firme o desejo de
[outra madrugada
com menos tiros tão próximos de nós,
amor, outro tempo, outro mundo,
outra forma de traduzir a falência
que brilha na remela da criança,
vou repetir o vocativo que me
sugeriram retirar da poesia, amor
outro tempo, outro mundo
para nós.57

A carta acima, o poema acima, de Tatiana Pequeno, é, até agora, inédito em livro. Ele
foi publicado na Revista Gueto dias depois do primeiro lançamento do livro Onde estão as
bombas, pela editora Macondo, em julho de 2019. Em e-mail trocado com a poeta, em que eu
pedia poemas a ela, ela me disse “[esse poema] ia entrar pro Onde estão as bombas, mas retirei”.
Leio-o então como um poema que não está, mas que poderia estar, leio-o como uma parte
retirada, como uma parte que quase pertenceu, que chegou a pertencer, que esteve como
possibilidade de pertencimento, mas restando não-pertencida; leio-o como um dentro que está,
porém, fora; leio-o assim, nesse limiar.
O título se confunde com o destinatário e o endereçamento a ele. O título é a destinatária.
No começo, a destinação, a dedicação, a dedicatória. No começo, o amor: “acordei na
madrugada, amor”. Mas, também no começo, no mesmo e primeiro verso, o horror: “acordei
na madrugada, amor, e havia tiros que circulavam atrás da nossa janela”. Desde o título, esse
poema poderia ser uma carta de amor. Há uma enunciação sempre amorosa: “já já amanhece,
amor”. Esse vocativo, “amor”, comparece ao longo do poema: “enfim, amor”; “uma vez eu te
disse, amor”. Escrever para a pessoa amada enquanto a pessoa dorme. Escrever para a pessoa
amada o que se passa enquanto a pessoa amada dorme ao lado de quem escreve. Mas essa carta
de amor extrapola a intimidade, ela não se reduz à intimidade. Nela, há prenúncio de morte e
celebração. Mas o que se celebra não é exatamente a vida em si em oposição à morte, é o fato
de ser “testemunha/ viva do que todos os dias permanece/ sendo a vida incompreensível”. Esse
poema-carta-de-amor é, desde então, testemunho, testemunho do que permanece na

57
Poema publicado na Revista Gueto: https://revistagueto.com/2019/07/29/cinco-poemas-de-tatiana-
pequeno/?fbclid=IwAR2FtjMlDrOAErzAP3mYvakegIrf26p4wM458ChIco-uMT92vn74FiMw4r4 Acesso em
29/07/2019.
217

incompreensibilidade da vida. O que se passa, entre tiros, enquanto a pessoa amada dorme ao
lado de quem escreve, em vigília, insone?
O ato da escrita acontece entre tiros, o tempo da escrita acontece entre tiros, o poema-
carta-de-amor é escrito entre tiros. Entre tiros, a “fisiologia dos gatos” desliza para “a lógica
feroz dos vizinhos”, o “cabelo branco” que indica a passagem do tempo ou desgaste da pintura
da parede do quarto (“descobrindo um outro cabelo branco/ ou um desgaste obstinado da
pintura/ perto da parede que há um ano era lisa”) desliza para o tempo-agora em que a cantora
famosa separa poesia e política.58 O que se dá entre esses dois tempos são os tiros: “os tiros não
param” é o verso que separa um tempo do outro, uma cena da outra. Entre tiros, um poema,
uma carta de amor, uma carta aos críticos, uma autocrítica ou um eu que se pensa (irônica e não
ironicamente), uma carta aos poetas, uma carta ao ofício, uma carta ao nosso tempo, um desejo
de um tempo outro, um testemunho.
A crítica a uma certa crítica desliza para o lugar em que se está, o pensamento sobre o
lugar de ofício desliza para a constatação do lugar fronteiriço em que se está geograficamente
em relação aos tiros, embaixo, em um quarto em um bairro da zona norte do Rio de Janeiro,
distante e perto do morro “lá em cima”. Como testemunho, o poema também se escreve na
falha, na rasura, terminando com as palavras mundo e tempo, quebrando a promessa inicial:
“(eu prometi a mim mesma que escreveria este poema sem a palavra mundo ou tempo mas eu
falhei, me desculpem os poetas/ que são expertises em tudo em que sou fraca, desculpem os
críticos, as adrianas, amigos ou/ irmãos feéricos da poesia)”. Mostrando que quem escreve é a
falha, no fim inscrevem-se “tempo” e “mundo” na rasura da promessa de não escrever “tempo”
e “mundo”: “amor, outro tempo, outro mundo,/ outra forma de traduzir a falência/ que brilha
na remela da criança,/ vou repetir o vocativo que me/ sugeriram retirar da poesia, amor/ outro
tempo, outro mundo/ para nós”. Ao inscrever “tempo” e “mundo” na rasura, na quebra, na falha
da promessa, o que se inscreve não é senão outra palavra, que também é outra crítica à crítica:
ao inscrever “tempo” e “mundo”, inscreve-se “amor”, rasurando a crítica, escrevendo em cima
dessa, riscando-a, borrando-a, inscrevendo-se, novamente, ao traçar as palavras “tempo”,
“mundo” e “amor”, um pensamento sobre a poesia.
Cruzam-se, no poema, uma carta de amor, um pensamento sobre a profissão, sobre o
ofício de poeta, sobre a poesia, sobre a crítica, sobre o mundo, sobre o tempo, de modo que a

58
Adriana Calcanhoto organizou É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira,
publicada pela Companhia das Letras em 2017. Em entrevista ao Suplemento Pernambuco, sobre a antologia, ela
disse: “não me interessa visão política dos poetas”. A entrevista está disponível aqui:
https://suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1802-n%C3%A3o-estou-interessada-na
posi%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-dos-poetas.html Acesso em 18/10/2019.
218

vida íntima de casal leva a pensar no casal que pede dinheiro na entrada do supermercado, a
briga pelas contas na vida pessoal desliza para a pobreza intransponível, as contas a serem pagas
deslizam para a miséria. As perguntas deslizam para uma resposta que não se decora. Aliás, as
perguntas feitas são dirigidas ao “amor”, que comparece em seu adormecimento, e que não dá
repostas. O poema também é uma carta não só de amor, mas ao amor. As perguntas feitas são
dirigidas ao amor, assim como escrever na vigília é escrever ao despertar. O que se passa, entre
tiros, falando ao amor, enquanto ele adormece, é a vigília que cruza o pessoal e o coletivo, o
lugar em que se está em casa e no mundo. O poema é um desejo de partilha, de dividir, de
colocar junto, de colocar em relação, justaposto, o que está separado, como o débito da poesia
e as contas do casal, como a falha da poeta e as fissuras entre os tempos e os mundos, como as
brigas de casal por causa das contas e o casal na rua que pede dinheiro na entrada do
supermercado, como o quarto embaixo e as crianças “lá em cima” no morro, como o desenho
da mandala e o do traçante dos tiros, como o sentido por onde se encaminha certa crítica e o
sentido santa cruz (para onde vai o amor quando acorda (“em breve você acorda no sentido
santa cruz”)), como a beleza das expertises da poesia e a remela do bebê, como o amor e o
horror, essas disparidades (“enfim, amor, como poderíamos bem respirar/ diante de tanta
disparidade”).

Em Onde estão as bombas, o existir das cartas, das destinações explicitadas enquanto
envios, denominadas ou não, é uma constante. Dentre outras, há uma “carta para alguém depois
dos protestos”, em que a quentura e a densidade da noite que “ferve” e “arde sulfurada” “das
cavalarias/ de choque e da pimenta azeda” contrastam com o vazio e com os restos. Nesse
poema que, em algum grau, como o anterior, é uma carta e um testemunho, o início da história
do Rio de Janeiro e do Brasil é atualizado no presente, a Praça XV, primeiro porto da cidade, é
atualizada nas cavalarias de choque, as especiarias são atualizadas no spray de pimenta (“é
quente a noite no rio e a praça xv/ arde sulfurada pelo estranho torpor/ dos normais depois das
cavalarias/ de choque e da pimenta azeda que/ trouxeram nos barcos dos pinheiros/ sal vinagre
especiarias azeviche” (PEQUENO, 2019, p.42)), a colonização é atualizada nas demissões
(“agora ferve a noite no rio e o centro/ está vazio como se os habitantes / todos tivessem sido
demitidos” (PEQUENO, 2019, p.42)). Entre o centro e o subúrbio, o protesto e o silêncio, a
marcha e o amortecimento, palavras e nenhuma escuta: “não há pequenina luz nenhuma a/
penas um homem em farrapos/ que diz ter uma palavra importante/ a ser compartilhada embora/
219

ninguém aqui possa ouvi-lo” (PEQUENO, 2019, p.42). No poema, quem denuncia o adeus,
quem emite o sinal, o aceno, não são senão os restos, o que não vingou, como “alguém
mergulhando suicidado na/ imensidão apodrecida da baía” (PEQUENO, 2019, p.42).
Em Aceno, outro livro da poeta, encontramos outra carta “depois dos protestos”, cujo
destinatário é nomeado. Se o endereçamento a “alguém” é também um endereçamento aos
“protestos”, já que falar “depois dos protestos” é falar desde os protestos, nesta próxima carta,
o endereçamento amoroso é também um endereçamento desde os protestos, de modo que se
endereçar ao amor ou à pessoa amada é se endereçar desde a política. Só que, aqui, amor e
política estão entrecruzados em um luto:

carta para Mariana, depois dos protestos

penso sobre o seu silêncio e escuto agora


uma artilharia pesada de gás e de choques
como se aguardasse o impossível gesto
que você prometeu nunca me direcionar.
guardo a sua face pelo rosto lavado de sal
da última despedida e nada do que fomos nos
quartos onde sistematicamente nos despe
dimos repara os mais de mil quilômetros do
litoral que percorro há meses para chegar
no movimento central das reivindicações e
na marcha correta dos aflitos e dos protestos.
os dias têm sido tentativas ignorantes
de ver como é sagrada a depredação e os
ajustes, mais por você que por mim pois re-
tive da última internação outros monolitos
que não posso e não consigo devolver ou
simplesmente fazer deslizar rápido pelos
néfrons. porque é por meio deles que não
amo e não serei capaz de amar outros senão
vândalos e hereges - tu mesmo esquecida
acenando entre bandeiras e táxis a perda dos
empregos para os quais não se nasce ou sobre
vive. de ti, Mariana, apenas a réstia de imagem
depois da revista da guarda a caminho de uma
filiação médica (ou militar) em Madureira: algo
como uma página escondida sob mãos desfeitas
e desenlaçadas num inverno de muito medo
e combate.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2013


(PEQUENO, 2014, p.72-73)

Pensar sobre o silêncio da pessoa amada e escutar um barulho insuportável como “uma
artilharia pesada de gás e de choques”. Nos lugares onde o amor se deu, “despir” é solapado
220

por “despedir” (“quartos onde sistematicamente nos despe/ dimos”), o lugar onde se dá o
encontro amoroso também é o lugar do desenlace. Os cômodos de proximidade e intimidade
são lugares que despem, que deixam nu, em cuja nudez está embutida a possibilidade de
despedida. Os quartos onde o amor foi encontro e despedida não reparam a distância
quilométrica para chegar ao movimento público. Os quartos não reparam o efeito imoral das
bombas de efeito moral que assolam as ruas de 2013 até hoje. No poema, há deslizamento entre
despir e despedir, mas não há deslizamento nos monólitos que atravancam os lugares de
passagem do corpo. Entrecruzam-se estados de emergência: o corpo exposto à vida nua (o corpo
em um hospital), a política (a marcha dos aflitos), e o amor (em despe/dida). Na despedida
desnuda do amor, o desnudamento do corpo, a vida em sua nudez de quando o atravessamento
dos monólitos se assemelha ao atravessamento de vândalos e hereges: todos como excretas
indesejadas. Os monólitos não deslizam por onde, no corpo, é passagem, os néfrons: eles ficam
atravessados como excretas indesejadas. A retenção dos monólitos, isso que fica atravessado
no corpo, que não desliza, é o meio pelo qual não se ama outros senão “vândalos e hereges”,
isso que, como os monólitos, se não filtrado, fica atravessado como excreta indesejada. Os
monólitos como indicação do que fica atravessado, do que interrompe o fluxo, são a imagem
dos vândalos e hereges como isso que também se carrega no corpo, e o amor é colocado ao lado
desses: “tu mesmo esquecida”. O amor é colocado ao lado desses, dos esquecidos, como aquele
que acena para a perda, a perda dos empregos. Amor, política, corpo e economia estão em
íntima relação, ou, falar de amor é falar de corpo em uma relação política-econômico-social.
No poema, estar a caminho do “movimento central das reivindicações” é lembrar o
caminho do subúrbio, do desencontro amoroso, e fazer restar, como a maior carta amor diante
da perda e do desenlace, o caminho de uma filiação da qual não se quer fazer parte. Nesse resto,
traz-se, no amor, a linhagem dos desempregados. Destinar uma carta a um amor é destinar uma
carta às “mãos desfeitas/ e desenlaçadas”, essas que estão sempre marcadas pela nudez do corpo
exposto à demissão, à despe/dida. O luto de um amor se mistura com outra dimensão da perda.
Aqui, o sentido de perda traz lado a lado a dimensão do trabalho e do luto, duas economias
calcadas no dano.

24 de abril de 2018: a professora e poeta Tatiana Pequeno começa a sua fala “Pelo direito
à literatura”, na Faculdade de Letras da UFRJ, com a epígrafe: “É isso. A liberdade intelectual
depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre
221

foram pobres, não só por duzentos anos, mas desde o começo dos tempos” (WOOLF, 2014,
s/p). 59
No final da década de 1920, Virginia Woolf é convidada a falar em universidades
inglesas sobre as mulheres e a ficção. Em 2014, a Editora Tordesilhas publicou uma tradução
dessas conferências (“A room of one’s one”, 1929) com o título Um teto todo seu.
As mulheres nunca puderam começar. Já foi dito que quem sempre pôde agir, quem
sempre pôde discursar, quem sempre pôde ter ação, quem sempre pôde começar foram os
homens. A humanidade sempre foi definida pelo homem, na maioria das vezes, com agá
maiúsculo. Nessa metonímia, a mulher sempre perde. A mulher é tomada pelo homem. Perde
ainda mais porque quem perde não é a mulher, mas as mulheres. Tomadas pelo homem, as
mulheres sempre perdem. As mulheres nunca foram, elas sempre foram essa pobreza de ser,
sempre estiveram ao rés do ser. “As mulheres gozam de menos liberdade intelectual do que os
filhos dos escravos atenienses” (WOOLF, 2014, s/p).
No começo, era a violência. Em Da Revolução, Hannah Arendt nos lembra que o início
da história humana é um início criminoso, “atestado pelos lendários primórdios de nossa
História, como a antiguidade bíblica e clássica o relatam: Caim matou Abel e Rômulo matou
Remo” (ARENDT, 1988, p.17). O primeiro verso do poema que abre o livro Onde estão as
bombas, intitulado “origem”, é “naquele ano foram cinco tiros” (PEQUENO, 2019, p.9). No
texto “Tatiana Pequeno: uma poesia política do assombro”, cuja versão completa ainda é inédita
em livro, publicada, entretanto, em versão parcial como posfácio ao respectivo livro, Alberto
Pucheu diz:

Todos sabemos que o Rio de Janeiro é uma cidade em que se pode dizer que,
no começo, era a bala e a miséria, que, no começo, antes de haver o verbo (o
lógos), a luz ou alguém, já havia a miséria e o assassinato, sobretudo, a miséria
instaurada pelo Estado e o assassinato estatal – militaresco, policialesco,
senadoresco, deputadesco, miliciano, traficante – que promove a miséria e os
outros crimes individualizados (PUCHEU in PEQUENO, 2019, p.101).

No começo, a miséria, a violência, o assassinato:

naquele ano foram cinco tiros


pow pow pow pow pow pow
um sexto que furou a geladeira de
refrigerantes mais antigos do bar
você deve ter caído para a esquerda
e um homem fugiu com um cano
fumegante um homem assassino

59
Edição em ebook.
222

deixou você no chão sangrando


os pulmões a inteireza da coluna
tinha que haver uma linha que te
costurasse pow
uma galeria para a gente pendurar
o futuro pow
bombas de você morrendo
nos caquinhos de cerâmica pow
os pés infantis no piso
depois meus avós não quiseram
matar aquele assassino pow

era trabalhador, dissemos


faltou lembrar
também era poeta
pow.
(PEQUENO, 2019, p.9)

No começo, o assassinado, e quem sabe, o assassino, se confundem com o poeta e


trabalhador. Sabemos, pelo documentário de Pucheu, Tatiana Pequeno: muambas e bombas
para o nosso tempo, que o homem assassinado é o tio da poeta:

Como pode ser lido em tal primeiro poema, intitulado “origem”, o tio
assassinado era poeta, havendo, desde o início, um poeta morto. Um poeta
morto e uma poeta que herda essa morte (in)familiar e a poesia, dando a essa
morte uma dimensão terrivelmente poética. Pela estrutura do poema, por sua
sintaxe, por seus espaçamentos de pausas e continuidades, uma ambiguidade
se faz, ao fim, resguardada pelo deslocamento da segunda, última e, se
comparada à anterior, breve estrofe, que então se destaca: a de que trabalhador
e poeta possam ser não apenas o tio assassinado, mas também o assassino do
tio, fazendo com que o trabalho e a poesia transitem, indiscernivelmente, do
assassinado ao assassino e deste de volta àquele (PUCHEU, 2019, p.14).

No começo, o assassinato e a poesia, em uma origem que os confunde. O poema ele


mesmo é traçado em tiros, escrevendo-se à medida em que é baleado. Os tiros comparecem no
poema, interrompem-no, cortam-no, mas também o escrevem. “Em sua não dicotomia e em sua
não contraditoriedade, a poesia desliza de uma dimensão contrária à outra. No começo, havendo
a bala, há, igualmente, poesia” (PUCHEU, 2019, p.14). No começo, o sangue – o que se herda,
o que se transmite. No começo, a herança é uma tragédia, o sangue é violência e transmissão,
interrupção e continuidade, corte e passagem, entre a falta da linha e a exposição de uma
linhagem, entre “tinha que haver uma linha que te/ costurasse” e o arremate da lembrança
“também era poeta”.
“Como se ganha a vida?”, perguntou Tatiana Pequeno em sua fala na Faculdade de
Letras.
223

O segundo poema de Onde estão as bombas nos mostra que o começo se transmuta, mas
remanesce, de modo que o segundo poema não é exatamente aquele que vem depois do começo,
mas um começo que aponta para o que veio antes, antes mesmo desse livro.60 No título deste
poema, temos a indicação, entre parênteses, de um ano, “(ainda 2014)”, ano em que foi
publicado o segundo livro da poeta, Aceno, levando a crer que Onde estão as bombas não se
reduz em si mesmo:

o rumo da ponte é niterói


mas o que vale, aos pedaços,
ficou mesmo na baía, antes
dos pedágios, na estrada
entre as bagagens caídas
da viagem de volta para
os falsos & faustos mares
ao redor dos campos de libra.
(PEQUENO, 2019, p.10)

O poema acima se chama “campo de libra (ainda 2014)”. Ele aponta para a passagem,
a ponte, mas só para indiciar o que fica pelo caminho, atravessado, “aos pedaços”. Em minha
primeira leitura desse poema, eu não sabia o que era “campo de libra”, então busquei no google
e vários jornais on-line falavam dele. Um deles, dizia assim:

O campo de Libra é uma das maiores descobertas já realizadas no pré-sal


brasileiro e o principal projeto de Exploração e Produção da Total no País. A
Total E&P do Brasil faz parte do consórcio responsável pela exploração e
desenvolvimento do campo [...]. Localizado na Bacia de Santos, a
aproximadamente 200 km da costa do Rio de Janeiro, Libra cobre uma área
de 1.550 km² – equivalente ao tamanho da cidade de São Paulo – e está situado
em águas ultraprofundas, em lâmina d’água de aproximadamente 2.000
metros. Atuar em águas profundas está no DNA do Grupo Total.61

60
Em texto ao Suplemento Pernambuco, intitulado “Tatiana Pequeno e os bastidores de ‘Onde estão as bombas’”,
publicado em 11 de dezembro de 2019, a poeta escreve sobre o processo de escrita do livro: “Em outubro de 2013,
bem longe do Rio de Janeiro, começou a nascer este meu último livro de poemas, Onde estão as bombas. Embora
já houvesse a escrita de meu segundo livro, Aceno, em processo, intuía que o que acontecia coletivamente em
termos nacionais pudesse reverberar subjetivamente. Depois também de uma quase-morte, depois de emagrecer
quase um terço do meu corpo por conta do adoecimento, depois do assassinato de Cláudia Silva Ferreira pela
PMERJ, depois das manifestações feministas contra os retrocessos propostos pelo Legislativo nacional no ano de
2015 em relação à uma criminalização mais insidiosa contra mulheres no caso de um aborto, depois da deposição
golpista e misógina de Dilma Rousseff, depois que os ratos saíram de seus bueiros, depois da prisão de Lula, depois
da execução de Marielle Franco, depois das eleições de 2018, depois de tudo isso atormentava uma pergunta que
era – como haverá depois?” (PEQUENO, 2019b, s/p). Disponível em
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/67-bastidores/2399-tatiana-
pequeno-e-os-bastidores-de-onde-est%C3%A3o-as
bombas.html?fbclid=IwAR038_ZHqDG7p7I4zmaeUnEjxm97SgLbM8eHswsYYvxYiV_XbknZx_tU4NA
Acesso em 11/12/2019
61
Matéria disponível em https://br.total.com/pt-br/libra-os-desafios-de-uma-das-maiores-descobertas-do-pre-sal-
brasileiro Acesso em 18/10/2019.
224

“[C]ampo de libra” é a agressão do dinheiro, da exploração, do capitalismo, do acúmulo


que não deixa restos. Ao longo do texto veremos que a economia dessa escrita inscreve
justamente o inverso dessa economia de exploração: se “atuar em águas profundas está no DNA
do Grupo Total”, se essa exploração é a sua assinatura, assinatura disso que se quer total, as
muitas camadas de Onde estão as bombas atuam na contramão dessa assinatura exploratória,
totalizante, com uma contra-assinatura selvagem antitotalizante, porque, como veremos, se
localiza entre “mulher-bomba” e cachalote, ou mais além e mais aquém de uma cachalote, por
exemplo, entre as águas profundas e a terra, entre bicho e gente cuja origem é de tão impossível
definição quanto sua assinatura é sempre o rastro da possibilidade de extinção e não da
possibilidade de exportação. Fazendo referência a uma das forças da economia do país, o pré-
sal, o poema desliza do macro ao micro, do que move a economia pública ao que interdita a
passagem, ao que fica, na economia doméstica, inviabilizado: “as bagagens caídas”.
Novamente, poderíamos falar em herança. O que se leva, aqui, é o que se perde. O que se traz
é o que fica interrompido. É interessante notar que, em outro poema, a palavra “campo” surge
no plural, como sobrenome, “campos”, em um poema que é uma crítica à tradição da poesia,
que fala de “legados e heranças”:

acabamos de cruzar a europa


dizem dois paulistanos profes
sorados lado a lado e amigos
pela janela desta primavera
vejo um jacarandá com pouco
lilás vivo depois do peso deste
longo e miserável outono
(casacos caros parcelados de
acordo com a lógica do crédito)

fiquei neste país cruzando


o oriente de uma certa
sombra
& nesta dificuldade sempre
me endividei mais e perdi
calculando errado se valia
mais a pena táxi, metrô ou
uber

(mais valia)

deveria ter cruzado a europa


há anos ao invés de gastar
meu português brasileiro
com militâncias, receitas
225

e razões apaixonadas dos


meus latinos sentimentos
deixados na linha verde

bem longe de perdizes e


desse tesão infinito que os
homens têm de escrever e
falar quadriculados sobre
legados e heranças daquela
semana boa moça de 22 ou
do reinado dos campos
entre nós cariocas
não tão concretos

rústicos.
(PEQUENO, 2019, p.26-27)

“[M]uito tesão pelos campos em perdizes” apresenta, como uma contra épica, uma
crítica à tradição de uma certa elite cultural da poesia que repousa nos irmãos Campos e no
concretismo. Com humor e ironia, o poema indica um vínculo entre o movimento de vanguarda
como uma poesia que se quer de exportação, simbolizada no elitismo acadêmico dos “profes”
que acabam de “cruzar a europa”. Aos “quadriculados” paulistas “tão concretos”, contrapõem-
se os “rústicos” cariocas em um jogo de oposição que se desdobra em cidade x campo, exterior
x interior, São Paulo x Rio de Janeiro, europeização x latinidade, ricos x pobres, credores x
endividados, estética x política, chamando atenção, ao fim, para o que é mais campo que os
Campos, isto é, não concreto, mas rústico, como isso que sempre anda ao lado dos que trazem
a falta, os endividados. Nesse entrelaçamento entre economia, política, crítica, ensino e poesia,
levar os campos ao pé da letra não é ir em direção a um projeto de cidade, é ir em direção ao
interior mais rés do chão, transformando como legado aquilo que menos vale. Posto isso, há um
detalhe nesse poema que vai para além da oposição entre Rio de Janeiro x São Paulo, um detalhe
que aponta mais para o caráter indígena da palavra “carioca” em oposição a todo projeto
arquitetônico de cidade. Por essa palavra, São Paulo e Rio de Janeiro, ambas como “casa do
homem branco”, não estão tanto em oposição, os rústicos perdem para ambos, concretos e
cariocas, como menos valia.
Entre dívidas e créditos, há, porém, o incalculável que, apesar de andar na superfície, é
relegado ao mais subterrâneo do que o metrô, porque habita a linha de extinção:

avanço protegida por uma película


de vidro — esta janela — por onde
filtro cegada pelo sol o bebê caído
de uma teta mirrada de mãe verde
entrando pelo coletivo e assumindo
226

seu desejo de transbordar tudo o


que for falta. queria escutá-la mas
havia uma transparência imanente
eu a trouxe para cá, todavia
queria que ela falasse no meu poema
ela pede centavos para não morrer
e diz a cerveja poderia me ajudar a parar
a cerveja no entanto é muito lenta
abro a bolsa constrangida porque
aqui sou eu que tenho pele demais
aqui sei que estou retornando à casa
aqui gaguejo e murmuro ainda constrangida
pela visão do bebê absorto pendurado
no semelhante peito caído
posso te fazer algo a mais e
ela diz me dá dinheiro e depois me esqueça
muitos dizem sentimos muito e é ver
dade que não há nada que possamos fazer
ressono de culpa, acordo, ela permanece atrás, sentada com
seu bebê atravessado pelo contágio
é uma criança hipotônica recém-saída
da faixa dos conflitos onde se espera a gratuidade dos extermínios
nunca vou esquecer o seu corpo tampouco sua voz de fantasmas e
ausências graves de fumo.
me esqueça — relembro — essa frase
que guardo há meses doendo os dedos
quando conto as moedas quando
retomo o mesmo caminho para os
sonhos ou para casa para a espinha
que fica a me botar de pé entre sorrisos,
salários ou cabelos novos.
vamos te esquecer certamente
eu vou tanto que te guardo aqui neste
poema para lembrar que não podemos
te esquecer porque nós te levamos
às pedras nós transformamos você
também em cinza eu finjo que não
a conheço quando prossigo depois
do sinal fechado e me esforço para
saber onde foi que nos separamos
e em que espelho empobrecido ficou
a tua verdadeira face que diz aqui
é o que me restou dos acidentes.
me esqueça, sei, compreendi mas
é que não posso é que não sei e é
exatamente o que faço todos os dias
não sei e não saber relembra o fim
desta civilização genocida
eles não sabem
os especialistas não sabem
estou e estamos sonâmbulos à nossa revelia.
olho-te inteira e queria que me olhasses
de volta para que tua criança ameaçasse um choro um
escândalo uma antipatia enquanto
tento te esquecer através da minha
227

poesia já que te dei um nome secreto


e gravito entre o teu silêncio e a minha falta de economia neste longo
poema solitário
perdoa-nos a pele, perdoa a indiferença dos poetas,
as notas nos bolsos,

fica.
(PEQUENO, 2019, p.23-25)

O poema, que é uma narrativa, que é um “breve ensaio”, intitulado “breve ensaio contra
a minha indiferença à cracolândia do jacaré”, traça, em oximoros, o que fica, o que fica
interrompido no caminho em que se avança (“avanço protegida por uma película”). No avanço
do caminho, “casa” (lugar de destino: “aqui sei que estou retornando à casa”) e “coletivo” (lugar
em que se está: “avanço protegida por uma película/ de vidro — esta janela — por onde/ filtro
cegada pelo sol o bebê caído/ de uma teta mirrada de mãe verde/ entrando pelo coletivo”) são
atravessados em um contágio. No coletivo que adentra o caminho de casa, o que fica
atravessado é o começo de uma vida que menos se parece com uma vida. Poderia ser um
natimorto, mas é um bebê (“seu bebê atravessado pelo contágio”). A película de vidro que
protege é, porém, perfurada por um “bebê caído/ de uma teta mirrada de mãe verde”. No excesso
de luz, a “ver/dade” fura, e “ver”, apesar de rimar com “fazer”, não indica a mesma coisa, pois
a “verdade” solapa a rima, assim como o real que fura. O que se filtra do sol é o que se expõe
sem filtro: “avanço protegida por uma película/ de vidro – esta janela – por onde/ filtro cegada
pelo sol o bebê caído”. Retornar à casa é ser atravessada por uma “voz de fantasmas” que está
no “coletivo”. O “poema solitário” é uma escrita do “coletivo”, uma escrita da invisibilidade de
uma multidão daqueles e daquelas que, apesar de estarem ao nosso lado, em um coletivo, estão
à margem do olhar. Uma escrita da invisibilidade e, também, da inviabilidade, no transporte
que se quer como viabilidade. No coletivo, o que transborda é a falta em contraste com o
excesso que falta (“aqui sou eu que tenho pele demais”).
O retorno à casa, ao lar (com toda a carga simbólica que essa palavra tem, como
aconchego, proteção, acolhimento, conforto) é atravessado pela “faixa dos conflitos onde se
espera a gratuidade dos extermínios”. A saída é atravessada por uma criança “recém-saída/ da
faixa dos conflitos onde se espera a gratuidade dos extermínios”. A vida recém-saída sai de
uma vida sem vida, de uma vivente que, como um fantasma, não está exatamente viva, mas não
está morta, está como uma morta-viva, uma vida sem vida. Uma oferta de “algo a mais” é
atravessada por um pedido de subtração, o esquecimento (“ela diz me dá dinheiro e depois me
228

esqueça”). A tentativa de esquecer é escrita enquanto rasura na permanência da escrita. Em


cima da certeza do esquecimento (“vamos te esquecer certamente”), o “breve ensaio” é uma
escrita do não esquecimento. No final, uma “herança abraâmica (judaica, cristã, sobretudo
cristã, e islâmica)” (DERRIDA, 2008, p.43): o perdão. Mais precisamente, três pedidos de
perdão (“perdoa-nos a pele, perdoa a indiferença dos poetas, as notas nos bolsos”) e uma aporia:
finca-se a per-duração da memória lá onde se diz de seu esquecimento; no perdão, a doação, o
per-doar. O pedido de perdão é precisamente um perjúrio, ele indica o não cumprimento da
promessa, a sua traição. É só nessa traição que o perdão será justamente um per-doar, uma
perduração. Assim, nessa infidelidade, garante-se a manutenção do perdão, isto é, da
recordação. Na promessa não cumprida, no contrato desfeito, traça-se a tentativa de
reversibilidade do que já é irreversível, pois, como Derrida diz, “só se tem a perdoar o
imperdoável” (DERRIDA, 2008b, p.44). Todo o poema é um pedido de perdão enquanto
recordação, enquanto tentativa de “memória absolutamente viva do inapagável” na
contracorrente da certeza do esquecimento (DERRIDA, 2008b, p.44). Esse perdão, porém, é
paradoxal: ele não é só um perdão por não cumprir com pedido de esquecimento, mas um
perdão por, todos os dias, cumprir com o pedido de esquecimento (“me esqueça, sei,
compreendi mas/ é que não posso é que não sei e é/ exatamente o que faço todos os dias”). Ele
é, a um só tempo, um “perdão por não te escutar” e “perdão por, todos os dias, te escutar”62.
Nesse paradoxo, a escrita dessa promessa cumprida e não cumprida, a escrita sobre e por sobre
o esquecimento, se condensa toda no último verso, em apenas um verso, em uma condensação
extrema de uma palavra. O último verso, deslocado do restante do poema, separado por um
espaço em branco, por um hiato, “dissociado e separado pela duração abissal de um branco de
silêncio, como que um aforismo disjunto, a sentença ou o veredito de um outro tempo”, é uma
volta do poema ao poema, é, como sulco, uma dobra (DERRIDA, 2008a, p.32). Na economia
de um verso, uma réplica do poema todo, “a sentença, a pausa, o último apelo, o dizer ou o
ditame, ou mesmo o veredito do poema” (DERRIDA, 2008a, p.37), a súplica: “fica”.

62
Em A literatura em segredo, sobre a leitura de Kierkegaard do sacrifício de Isaac em Temor e tremor, Derrida
diz: “Abraão assim pede perdão por ter estado disposto a fazer o pior sacrifício com o objetivo de cumprir seu
dever para com Deus. Ele pede perdão a Deus por ter aceitado fazer o que Deus ele mesmo tinha lhe ordenado.
Perdão, meu Deus, de ter escutado, diz-lhe em suma. Há aí um paradoxo que nós não deveríamos cessar de pensar.
Ele revela em particular uma dupla lei secreta, uma dupla limitação inerente à vocação do perdão. Ela nunca se
mostra como tal mas ela sempre deixa ouvir: eu não te peço perdão por ter te traído(a), [...] eu te peço perdão, ao
contrário, por ter te escutado(a)” (DERRIDA, tradução inédita de Piero Eyben).
229

Vemos que há um deslocamento implicado nos poemas, em que o foco não é a chegada,
mas o que fica atravessado. Em outras palavras, o que está em jogo nesses poemas é o preço
que se paga para realizar a travessia: o que fica para trás, o que se deixa para trás, o que se
perde, o que se sacrifica, enfim, o pedágio:

não lembro exatamente qual era teu nome


se rodrigo rafael ricardo renato
eu usava um anel para dedos largos
tucum certamente jamais marcassita
vinha de cordovil pela penha (aos treze)
e sabia que no caminho da poesia
haveria de atravessar vielas variadas do subúrbio
e a defloração do corpo era um preço
caro que as mulheres pagam
muito cedo como pedágio para permanecer vivendo
(fiz parte muito tempo do grupo de fêmeas
que desconheciam a diferença entre
romance e estupro)
(PEQUENO, 2019, p.81)

A citação acima é um trecho do poema “caixa de joias”. Nessa caixa de pandora abre-
se a experiência do trauma. Muitos poemas de Onde estão as bombas expõem uma travessia
pelas margens que atravessam mundo afora. Atravessar uma violência – que, nesse caso, é uma
violência contra as mulheres – não é só atravessar os subúrbios, é atravessar certa história do
Brasil e certa história daqueles e daquelas que ficam à margem no mundo. Nessa “caixa de
joias”, “vão-se os anéis” e fica “uma mão aberta”, e o que resta dessa caixa é o “corpo curado
no curtume”: “onde perdi tudo ficou uma mão aberta/ na porta daquele cômodo mofado/ vão-
se os anéis caídos nos bueiros dos subúrbios/ fincam-se os dedos no silêncio/ do corpo curado
no curtume” (PEQUENO, 2019, p.82).
Podemos dizer que esses poemas estão sempre a caminho do subúrbio, mesmo quando
não estão efetivamente. Isso significa que o destino para onde os poemas acenam é sempre o
que fica à margem, um subterrâneo que na verdade está exposto na superfície. Seja na travessia
das vielas do subúrbio, ou na travessia de casa para o trabalho, ou do trabalho para a casa, ou
do campo para a cidade, ou na travessia entre duas cidades, ou entre dois estados, ou ainda entre
dois países (como indica o poema “lírica decolonial”), os poemas se endereçam a uma
comunidade de marginais que atravessam o mundo por fora, pelo litoral, pelas costas, pelo lado,
pela beirada, pela margem. Muitos desses poemas, desde antes do livro Onde estão as bombas
e depois dele, tratam do que resta, seja no cenário do horror, como o poema anterior, seja no do
230

amor, como o poema a seguir. Neles, a intimidade é ela mesma um campo minado, cheio de
furos, como uma travessia para o coletivo:

dos móveis que trouxe de amargosa


restam
um aparador usado na cozinha
hoje no banheiro
uma cadeira de plástico em que
alguém escreveu o meu nome
abaixo de um adesivo de uma
campanha de dilma
em amargosa conheci uma mulher
com este nome
deitei com ela
ela deitou comigo
não posso dizer que profissão tinha
pois não quero magoá-la com esta
provável exposição
além da cama
nos víamos às quartas-feiras na
praça depois das dezoito horas
sentávamos nos bancos e não
falávamos quase nada sobre
nossas diferenças (escurecia)
apenas
ela me dizia pegando com
discrição algum cacho
é muito lindo o seu cabelo
& no dia em que o caminhão
saiu da cidade com a minha mudança
uma cama, livros, cadeiras, apara-dor
roupas, sapatos, panelas, discos
estivemos depois juntas numa esquina
dilma levou um envelope com o que
ela dizia ser uma lembrança, presente
e quando abri não havia carta ou palavra
talvez fosse um modo de significar a nos
sa mudez
era um pequeno pedaço de seus
cabelos
e nesta época em que eu ainda não
podia amar
coloquei os fios entre as mãos
cheirei
e um vento vindo de brejões
levou embora sua dádiva
não houve lágrima talvez
um segredo trocado um
sussurro
algo como uma voz que
se desfaz no avançado
dos minutos e diz
- talvez não devêssemos mesmo
231

durar.63

O poema acima intitula-se “os móveis que trouxe de amargosa”. Ele é inédito em livro.
Ele poderia estar em Onde estão as bombas, mas também poderia estar em Aceno, em que a
cidade de Amargosa comparece três vezes, como localização em que o poema foi escrito,
acompanhado pela data: por exemplo, ao fim do poema “a reza”, lemos “Amargosa, 01 de julho
de 2013” (PEQUENO, 2014, p.68). Em “os móveis que trouxe de amargosa”, política e amor
se confundem em um nome próprio. Casa e cidade, intimidade e exterioridade, pessoal e
coletivo, individualidade e cultura se enlaçam nessa junção que se desdobra, selada por um
segredo. O que mais restou de Amargosa, esse nome que deriva de amargo, mas que também
contém amor e gozo, não foi tanto os móveis da casa, mas o que mais perece, o que menos dura.
Do mais perene ao mais frágil, fia-se, na cena doméstica da mudança, endereçamentos:
endereçar-se ao novo destino, à nova casa, é se endereçar ao país; endereçar-se à mulher com
quem se deitou é se endereçar à ex-presidenta desse país, endereçar não uma carta, não uma
lágrima, mas o que não ficou retido entre as mãos, é endereçar o efêmero, o transitório, na
durabilidade do que irá chegar ao destino. “[O]s móveis que trouxe de amargosa” é um poema
de passagem que diz menos sobre os móveis e mais sobre um nome, levando a crer que o que
se trouxe de amargosa foi o que não durou de um encontro amoroso, que coincidiu com um
mandato de uma mulher que teve sua presidência interrompida, que também não durou. No
poema, o que se traz são menos os móveis e mais os móveis como sustento do insustentável.
Os móveis sustentam a inscrição simbólica de um nome que aponta para o que não vingou, na
política e no amor. Os móveis sustentam aquilo que não irá se sustentar, os móveis são “apara-
dores” do insustentável. O poema, assim, é ele mesmo um transporte, não tanto de móveis, mas
de um nome, de um nome que porta a interrupção, e de um nome que transporta – do amor para
a política, do durável para o transitório, da perenidade para a interrupção, do sustentável para o
insustentável, do que suporta o que não se sustenta. Aqui, a travessia se dá às custas de, como
outro poema nos mostra, mas de outro modo:

1. desorientação

teu passo chegou próximo


junho de dois mil e catorze
duas músicas um gesto entre
os cabelos à espera da barca

63
Poema publicado na “Revista Germina”:
https://www.germinaliteratura.com.br/2019/tatiana_pequeno.htm Acesso em 20/09/19.
232

na outra ponta: atravessar


a solidez da água lentamente.

2. pedágio

na primeira folha depois


do nó central do livro
estava teu poema e um
desenho da árvore mais
imensa do caminho para
a vista poente do gragoatá.

3. crítica lírica

permaneci sentada diante da tua nudez


cada possibilidade de passo parecia um
gesto falso atento a fáceis e previsíveis
perigos
até que reconheci no olhar a percepção
do finito que comparecia entre nossas
diferenças
nunca tive medo, disse, e você cruzou
os dedos sorrindo para lembrar da pele
desbaratada
nunca nem sempre é fácil estar nu
eu sei disse e cantei em segundos
uma pequena canção
você então se deitou ao meu lado
e dormimos últimos pela primeira
e única-lírica ocasião.
(PEQUENO, 2019, p.46-47)

Esse poema traça um caminho tateante, entre “desorientação” e “pedágio”, entre a


tentativa de uma rememoração, de localização de um tempo (“teu passo chegou próximo/ junho
de dois mil e catorze”), de localização de um espaço, de um momento (“à espera da barca”), de
gestos do corpo antes da travessia (“duas músicas um gesto entre/ os cabelos à espera da barca”),
do preço pago quando se atravessa (“pedágio”), como um pensamento que se dá tateante em
anotações ainda sem elaboração. Às vezes, o deslocamento para o trabalho, na travessia Ponte
Rio-Niterói, pode coincidir com a leitura de um livro, e o pedágio, ao fim da ponte, depois do
vão central, coincide com a travessia “depois/ do nó central”, com o tropeço em um poema e
em um desenho que não se espera encontrar.
Esse poema traz de volta o ano do Aceno, 2014, livro marcado, sobretudo, por um duplo
luto, uma separação amorosa e uma separação de uma cidade (os poemas são escritos entre o
campo ou o interior e a cidade, ou entre duas cidades, Rio de Janeiro e Amargosa, na Bahia).
233

Atendo-nos aos três momentos do poema citado, percebemos que essa travessia é uma travessia
amorosa, talvez, um deslocamento para o trabalho que se confunde com um trabalho de luto.
No trajeto que estamos fazendo em que indissociamos poesia e vida, é preciso dizer que Tatiana
Pequeno é professora na Universidade Federal Fluminense, na Faculdade de Letras localizada
no Campus do Gragoatá, e, moradora do Rio de Janeiro, atravessa a ponte Rio-Niterói todos os
dias em que vai para o trabalho.
Chegar ao último momento, “crítica lírica”, é passar necessariamente por
“desorientação” e “pedágio”. Essa crítica, como isso que sempre chega depois, como um
pensamento sobre algo que já se deu, como uma elaboração, pode ser não só uma crítica à
relação amorosa, mas também uma definição de “crítica lírica”, de modo que crítica e amor,
crítica e trabalho de luto se indissociam. Na crítica, como ponto de chegada em que há uma
cena amorosa em jogo, comparecem mais os gestos implicados nesse desencontro ou nesse fim
de encontro em que crítica e corpo estão em relação. Nessa relação, ponto de chegada coincide
com ponto de partida, com o fim, sendo a crítica ao mesmo tempo um ponto de encontro e um
desenlace, uma junção e um ponto de disjunção de um corpo diante da nudez do outro corpo,
de um corpo que encara a nudez do outro em um encontro que é o primeiro e o último (“e
dormimos últimos pela primeira/ e única-lírica ocasião”). Finitude, gestos, nudez, corpo,
compõem esse poema-memória-anotação-diário de viagem-trabalho de luto-carta em que amor
(mesmo que seja o fim de um amor, mesmo que seja a crítica de um amor, mesmo que seja um
amor em crise), poesia e crítica se confundem nessa travessia, em que o percurso de um luto de
um amor coincide com a crítica como ponto de chegada.
Se nesse deslocamento está implicado um percurso em que ir para o trabalho é ir também
a um trabalho de luto, em “campo de libra”, o deslocamento para o trabalho é um campo minado
que passa a abranger uma multidão de pessoas que se deslocam, que atravessam (ponto
nevrálgico desse tempo em que mares são cemitérios de imigrantes), passa a abranger também
uma multidão de trabalhadores que faz a mesma travessia, mas também outras travessias, em
que a maior importância desse percurso é o que fica de fora da economia: o incalculável, o que
se perde no caminho, o que fica atravessado, interrompido, sem chegar ao destino. O que resta
da viagem de ida não é o destino, é a viagem que sempre é uma “viagem de volta”, seja no
trabalho tateante de um luto, seja no caminho para o trabalho: nos dois casos, ir ao trabalho é ir
em direção a um luto, é um voltar-se para o que ficou para trás.
No terceiro poema de Onde estão as bombas lemos, em uma viagem, um aceno, um
adeus, e o que se aporta é um sacrifício:
234

aportei com as tigelas de volta


saia guardada de dançar chula
onde por acaso não fiz o santo

pedi que não me punissem


porque o sacrifício já era maior
que a raspagem da cabeça

os eguns se deitaram e
o pai omulu proibiu depois
suas subidas.
(PEQUENO, 2019, p.11)

Em “adeus ao pelourinho”, o sacrifício maior é a chegada. Não o sacrifício da


ritualística de “raspagem da cabeça”, ritual de iniciação ao candomblé. Nos poemas vistos até
agora, o que se transmite desses deslocamentos é o que ficou atravessado. Os poemas não são
o resultado do sucesso da travessia, eles são anti-épicos, são a passagem para o transverso.
Depois de “origem” e depois de “campo de libra (2014 ainda)”, “adeus ao pelourinho” nos traz
um ponto de chegada que se volta à ancestralidade africana como ponto de partida. Nesses três
primeiros poemas, há deslocamentos em jogo. No primeiro, além de a linhagem ser um
deslocamento, o que se desloca com a linhagem são as posições sociais, assassino, trabalhador
e poeta. No segundo e no terceiro, o deslocamento é tema. Os três poemas eles mesmos
deslocam, uma vez que apontam para histórias de vida que estão também para além deles, mas
que estão neles como aceno: eles portam histórias do que fica/dos que ficam pelo caminho,
como as almas dos mortos vagando no mundo dos vivos como fantasmas ou como os eguns que
o Orixá da morte e da vida proibiu de subirem.

Aceno também começa com herança, com o que se traz, o que se porta junto a si:

a urna avermelhada que trago


por dentro da costura deixa
aberta a poça que me sai de
baixo o ventre é de onde
partem os naufrágios quando
mudas as viagens trazem o mar
e finados são os filhos as luas
todas as mulheres são cruzes
punhos vapor e sentinelas
acordam várias lâminas de
passagem sobre o chão e a
pedra – fêmeas criam estirpes
235

de fria couraça e também


preparam a dura e lenta sorte
dos que perdem o medo e a
parte sedada de si. nas urnas
não adoecem mais as aves
lançam elas o corpo trançado
das labaredas. queimam os
obituários e as lapelas tidas
como cimento para o Amor
e para os nomes.
(PEQUENO, 2014, p.9)

Nesse primeiro poema do livro, intitulado “assinatura”, também há viagens e naufrágios.


Nele, a bagagem é uma urna que, indiciando-se em metáforas, pode ser inicialmente um ventre
em sangue, depois, um lugar onde se queima. Um ventre ou uma urna funerária, ou um ventre
como uma urna funerária, o que se porta, como assinatura, o que o poema gesta, como um
ventre, é uma urna funerária prenhe de uma estirpe fêmea. Traçado entre cesuras, com vários
versos sem pontuação até chegar a primeira pausa, com o travessão, o poema se traça em
combustão, como se uma metáfora fosse acendida ou apagada na outra, formando um fluxo de
versos como se o poema estivesse ele mesmo se riscando nas chamas. Ao fim, a assinatura não
é senão cinzas, os nomes queimados, os suportes, para o amor e para os nomes, queimados.
Essa assinatura traz toda uma linhagem que se alinhava “por dentro da costura”. Começa pelo
ventre, a vida, e passa pelos finados, a morte, de modo que, devido às cesuras, não sabemos
exatamente quem são os finados. Eles podem ser “os filhos as luas/ todas as mulheres”. O lugar
onde se traça a travessia entre morte e procedência é o mesmo em que o amor e os nomes
queimam. No começo, a assinatura é uma origem incendiada, é uma linhagem entre ventre e
couraça, pessoa e animal, punhos e aves, que se tece na morte e no fogo.
Ao final do livro Onde estão as bombas, somos remetidos a um certo começo, a um
começo rústico, selvagem, primitivo, da nossa história. No fim, o começo. Um começo que por
muito tempo fez parte de um legado. Um começo que foi incendiado:

eles venceram gaguejando


pragas
dançaram macabramente
em cores de bandeira a
coreografia dos incêndios
estou tentando atravessar
as ruas
mas esbarro nos mortos
e nas armas
do abandono — restos
das árvores que o temporal
236

levanta garantindo o encontro


definitivo com o passado —
há corpos na esquina
cacos e papéis da quinta
e de longe posso mapear
onde estão as outras bombas
porque o ataque já foi iniciado
e nós nos mantemos vivos
enquanto os soldados
vão errando alguns
dos seus alvos
(nós)
deixamos um débito gigantesco e
nosso dinheiro não paga a natureza
também foi queimado o canto dos povos
talvez não haja música para a extinção
(PEQUENO, 2019, p.83)

Esse poema intitula-se “museu nacional”. Ele e o próximo, “museu nacional.2”,


compõem um par. Leiamos a sequência para, a posteriori, tecermos a análise:

em setembro de noventa
meus colegas queimaram
pontas agrestes de um cabelo

foi durante o recreio


da quarta série
alguém levou um isqueiro

e por trás do balanço maior


um pequeno incêndio foi
provocado

nada comparado ao
desaparecimento do
crânio que luzia

mas

meus colegas também


queriam abrasar a memória
de uma infância alijada

atearam fogo
aos fios de contas de uma história
disseram

— você é a mais feia dentre nós

& como os assassinos de hoje

gritaram como dominicanos


237

— queimem-na

sou um animal muito antigo


também serei mulher-bomba.
(PEQUENO, 2019, p.84-85)

A história continua. Antes dela. O segundo poema vem depois na sequência, mas se
remete a um tempo anterior ao do primeiro. O primeiro poema dá passagem ao segundo como
o passado relampeja no presente e não o contrário. O primeiro poema dá passagem enquanto
ele mesmo é um passo interrompido, uma travessia impedida, intransponível. Ele dá passagem
na medida em que expõe o que impede a travessia, o que fica no meio do caminho: os mortos
(“estou tentando atravessar/ as ruas/ mas esbarro nos mortos”). O poema é a intransponibilidade
do equívoco: I) a passagem, o passo, o passe, a transmissão é interrompida pela dança macabra
(“eles venceram gaguejando/ pragas/ dançaram macabramente”) e pela “coreografia dos
incêndios” que não permite o passo, mas impede a passagem; II) nós nos mantemos vivos não
porque fomos salvos, mas porque ainda não fomos alvos por um erro de cálculo (“e nós nos
mantemos vivos/ enquanto os soldados/ vão errando alguns/ dos seus alvos/ (nós)”); III)
queimar um começo é queimar o legado, o que fica não é o crédito, mas a dívida, o que fica é
o que se perde, o que fica é a extinção.
Na sequência do primeiro para o segundo poema, o débito é o legado, ele é que dá
passagem: outra história interrompida, outro legado interrompido. Na narrativa, o discurso
direto fura o poema, e a voz do passado surge como uma voz atual: em destaque (gráfico, com
o uso de travessão e itálico), a voz da violência, do extermínio, cruza os tempos. A história dos
incêndios é feita de história pessoal e de história coletiva. Nas “pontas agrestes de um cabelo”,
toda uma história queimada, a memória queimada, e, agora, a Amazônia queimada. Mas nas
mesmas “pontas agrestes de um cabelo”, muitos cabelos queimados, a cultura africana
queimada, a história do Brasil queimada, os oprimidos e oprimidas, desde o começo,
diariamente queimados. No “pequeno incêndio” de um cabelo, todos os grandes incêndios da
história.
Se o primeiro poema conta a história do que teve a história interrompida, o segundo
poema continua, só que de trás para frente temporalmente, outra história interrompida, outro
começo incendiado: na infância incendiada, todo um começo, que se transmitia pelo canto de
um povo, incendiado. Como uma memória que se acende na outra, setembro de 2018 leva a
setembro de 1990 e a antes disso, àquela velha história da inquisição, ainda tão atual. Falando
nisso, hoje, 19 de setembro de 2019, vi que na página da Revista Quatro Cinco Um nas redes
238

sociais foi publicada a capa da edição de outubro: no mês das bruxas, a consagrada atriz
Fernanda Montenegro aparece em trajes negros, com livros aos seus pés e uma corda amarrada
pelo corpo. O título da revista é “Salvem os livros. Salvem as bruxas”.64 Em tempos de Brasil
de Bolsonaro e de Rio de Janeiro de Crivella, aquele que mandou censores da prefeitura caçar
HQ’s e livros com capas e temáticas homoafetivas na 19ª Bienal dos Livros, a fogueira da
inquisição deixa de ser uma velha história. O incêndio da história do país é o incêndio da história
das mulheres, assim como é o incêndio de negros, pardos, indígenas, assim como é o incêndio
de arquivos, de livros, de florestas. A história nacional é um holocausto pessoal e coletivo, a
história nacional é um holocausto para aquém e para além da história nacional.
Se o que fica da infância é a infância queimada, ateada, impedida, interrompida
(“queriam abrasar a memória/ de uma infância alijada”), o poema deixa, porém, um legado:
“mulher-bomba”. Legado esse que é constituído, ao mesmo tempo, entre perda e excesso, entre
o que foi excluído e o que ainda não existia, entre o não-mais e o ainda-não, entre o que foi
tirado e o que excede: “mulher-bomba” é uma produção entre o que foi arrancado e isso que é
mais que mulher. Se, até então, o legado era o que ficou atravessado, aqui ele se complexifica
entre o débito e o acréscimo e entre o que se é e o que será: o que se é aponta para antes e para
o que ainda vai ser: um animal muito antigo que também irá ser mulher-bomba (“sou um animal
muito antigo/ também serei mulher-bomba”).
Voltaremos a falar sobre “mulher-bomba”, mas para isso percorreremos antes o
caminho do “animal muito antigo”, isso que antecede e tem estreita relação com “mulher-
bomba”. Vamos do fim ao começo. Voltemos ao começo do livro, ao quarto poema, que vem
depois de “origem”, de “campo de libra (ainda 2014)” e de “adeus ao pelourinho”:

correndo vinha búfala


caminhada em punho
tronco pesado de gado
eu vinha bovina
correndo vinha rinoceronte
pisava forte como arma
até concreto de chão
coagulava e mexia
correndo vinha a galope
na sina de advertir espantalhos
marchando com vontade
a sutileza das vindas
correndo nasci mamute
tronco grande animal
médico para ensinar

64
Disponível em https://www.facebook.com/search/top/?q=quatro%20cinco%20um&epa=SEARCH_BOX
Acesso em 19/09/2019.
239

subir e descer com leveza


nascendo cresci mamute
pronta para as famílias
no plural
e eis que se espantaram com as minhas entranhas
dei à luz um menino
— elefante extinguido
passado como fóssil
íntimo dos intestinos
mamute, rinoceronte
búfalo ancestral

quando morri
recebi de presente
a pisada de um mamute
fiquei esmagada
na humaneza
preferi ser mesmo animal
agora meu menino se foi
o pai danou-se pela selva
fiquei colecionando presas íntimas
sagradas antropológicas
correndo vigilante
totêmica búfala e tabu
(PEQUENO, 2019, p.12-13)

“[S]ou um animal muito antigo”, disse o final do poema “museu nacional.2”, muito
antigo como os fósseis, insetos, aracnídeos, répteis, plantas, os cantos dos povos indígenas, o
crânio de Luzia, os mamíferos empalhados da fauna brasileira, as múmias, os sarcófagos, as
estelas funerárias do Egito Antigo, o meteoro, todos queimados. Um animal muito antigo como
um “búfalo ancestral”, como diz um verso do poema supracitado cujo título é “teoria da poesia”
– no genitivo subjetivo e objetivo.
No começo do poema lemos: “correndo vinha búfala/ caminhada em punho/ tronco
pesado de gado/ eu vinha bovina”. Guiados pelo título (“teoria da poesia”), em uma primeira
leitura poderíamos dizer que a poesia é que “correndo vinha búfala”, já que o título indica a
poesia. Mas a sequência dos versos torce essa leitura quando nos deparamos com o verso “eu
vinha bovina”. Seria esse “eu” a poesia falando de si mesma? Seria esse “eu” a poeta? O eu-
performativo confunde poeta e poesia em que ambas estão implicadas em um animal que se
transmuta (búfala, gado, rinoceronte...). No poema, poesia, poeta e animal se confundem e, na
transformação incessante que não cessa de nascer outra, na forma e no corpo de outro animal,
o substantivo no qual o animal exerce a função de sujeito da ação também se transforma de
substantivo para verbo em que o animal, já outro, dessa vez, se torna objeto da ação:
“espantalhos” desliza para “espantaram”. O animal que adverte aquilo que espanta outros
240

bichos, os espantalhos, o animal que, “correndo vinha a galope/ na sina de advertir espantalhos”,
também irá provocar outro espanto (“nascendo cresci mamute/ pronta para as famílias/ no
plural/ e eis que se espantaram com as minhas entranhas”), e, como provocador de espanto, ele
só é objeto na medida em que é ao mesmo tempo sujeito. As entranhas desse animal espantam
também porque dele nasceu o que não vingou, também porque dele nasceu o já extinto, ou
melhor, porque ele carrega, gesta, um outro animal anterior a si que, por sua vez, era plural
(“mamute, rinoceronte/ búfalo ancestral”). O animal gesta uma ancestralidade extinta: “e eis
que se espantaram com as minhas entranhas/ dei à luz um menino/ — elefante extinguido/
passado como fóssil/ íntimo dos intestinos/ mamute, rinoceronte/ búfalo ancestral”.
“[T]eoria da poesia” é um poema que conta uma história, a história de um animal, de
seu nascimento até sua morte, que não só se transmuta em outros animais, mas também em
poesia e na poeta, de modo que a história do animal é a história da poesia e da poeta mulher
que escreve, mas também de toda e de todo poeta que se abre nesse eu-performativo singular.
Na primeira parte desta tese, foi dito do espanto como o começo da poesia e da filosofia. Nesse
poema, há um começo implicado nessa história que indiscerne o começo da poesia, da poeta,
do animal. Nessa história, o espanto, por onde se começa a poetar e a filosofar, também aparece.
Se o poema, como uma teoria, como uma “teoria da poesia”, é pensamento e poesia, ou seja, é
poema, filosofia, história, teoria, se há, no poema, uma história da poesia, se ele também é o
começo da poesia, o espanto que ele mobiliza não é só tema, mas também teoria. Há, no poema,
como uma “teoria da poesia”, uma outra teoria do começo da poesia, isto é, uma outra teoria do
espanto. Nesta outra teoria do espanto ou do começo da poesia, a poesia tem uma linhagem
animal. Não apenas uma linhagem animal, mas uma linhagem de um animal plural, que se
transforma, em cuja transformação não está em jogo apenas o animal, mas o animal e o humano,
o animal como humano e o humano como animal, como animal plural prenhe de uma
ancestralidade animal extinta.
Advertir os espantalhos, aquilo que, feito de trapos, simula a presença do humano para
espantar, e espantar famílias, no plural (“nascendo cresci mamute/ pronta para as famílias/ no
plural”), são as duas vias pelas quais o espanto aparece em uma característica de estranheza,
não correspondente à “humaneza”. Na tríade poesia-animal-poeta, o que é gestado do espanto,
do começo, da linhagem, é uma extinção: o que nasceu é o que foi extinto. Além disso, essa
extinção que essa tríade porta é “íntim[a] aos intestinos”: porta-se, gesta-se visceralmente, a
marca de uma ausência.
Na segunda estrofe do poema, no fim da vida dessa tríade em que os três se confundem
em um só, parece que o animal (ou a tríade) se transforma naquilo que gestou, em fóssil. Mas,
241

mais que fóssil, em fantasma: “quando morri/ recebi de presente/ a pisada de um mamute/ fiquei
esmagada/ na humaneza/ preferi ser mesmo animal/ agora meu menino se foi/ o pai danou-se
pela selva/ fiquei colecionando presas íntimas/ sagradas antropológicas/ correndo vigilante/
totêmica búfala e tabu”. Algo que corre vigilante depois que morre é, na minha leitura, um
fantasma. O animal fêmeo, solitário, fóssil depois de morto, não ficou nem morto nem vivo,
mas, mais ainda do que símbolo ancestral coletivo como um totem, restou em tabu, enigma,
fantasma. Nesse poema, uma “teoria da poesia” que provém do espanto, do começo, da
linhagem, passa necessariamente pela animalidade e pelo fantasmático, pelo entrelaçamento
entre poeta (não só o humano em geral, mas, especificamente, a mulher que escreve), poesia,
animal; como fantasma, remanesce, ainda, viva.

Em um momento de O animal que logo sou, Derrida diz: “O animal nos olha e nós
estamos nus diante dele. E pensar começa talvez aí” (DERRIDA, 2011, p.57). Ora, só essas
frases de Derrida já demandariam um longo debruçar-se sobre. Mas pincemos o que nos
interessa de imediato nessa colocação: Derrida atribui a possibilidade (o uso do “talvez” indica
isso) do começo do pensamento por uma posição em que o humano é objeto do olhar do animal
que é sujeito. Derrida atribui a possibilidade do começo do pensamento pelo “assujeitamento”
do humano (DERRIDA, 2011, p.51). Contra a tradição bíblica em que o animal é criado para
ser domado pelo humano, contra a tradição heideggeriana da supremacia do humano como ser
dotado de linguagem, contra a tradição do Cogito, ergo sum cartesiano, Derrida colocará o
começo do pensamento no ponto de vista do animal, demandando, portanto, uma animalidade
ao começo do pensamento, demandando um começo que se dê por uma inversão de posições,
demandando um começo que se dê pela nudez, pela nudez do humano diante do olhar do animal,
demandando um começo do pensamento que se dê pelo ser visto e não por aquele que vê (contra
a tradição do Deus todo-poderoso que paga para ver (DERRIDA, 2011, p.38, grifo do autor)).
Em tradução de Piero Eyben, Gérard Bensussan começa o texto “Jacques Derrida – uma poética
da animalidade”, no livro Demoras na aporia, com essas frases de Derrida em O animal que
logo sou. Bensussan parte dessas frases para dizer que gostaria de pensar a partir desse “olhar
de outrem mais outro ainda que Outrem, mais velho que toda metafísica, mais originário que
todo dualismo” (BENSUSSAN, 2012, p.31, grifos do autor).
Na escrita de Derrida, o animal é antes de tudo um “operador de escritura, de leitura, de
interpretação” que é inseparável de um caráter autobiográfico: “Os animais me olham [...], eles
242

me saltam cada vez mais selvagemente aos olhos à medida que meus textos parecem se tornar,
como quiseram fazer-me crer, cada vez mais ‘autobiográficos’” (DERRIDA, 2011, p.67).
Escrever na posição de objeto de um olhar animal é escrever, pois, em uma exposição, em uma
nudez em cujo “eu” está implicado sempre um outro, ou em cuja autobiografia não se traça
senão como uma escrita do outro, já que a assinatura de um animal é aquela que tem a
possibilidade de “traçar, apagar ou confundir sua assinatura” (DERRIDA, 2011, p.63). Como
uma traça, essa escrita dá conta de “rasurar o ‘ser’” (DERRIDA, 2011, p.74), abrindo-se a “uma
irredutível multiplicidade vivente de mortais” como um “híbrido monstruoso” sempre traçado
em sua possibilidade de ser morto por alguém que tem o destino traçado para dominar
(DERRIDA, 2011, p.74-75). Derrida fala sobre isso referindo-se à quimera “esperando ser
morta por seu Belerofonte” (DERRIDA, 2011, p.74-75). Ou seja, parece que a condição de um
“híbrido monstruoso” é esperar por alguém que o vai matar. Dizendo de outro modo, a
referência a um “híbrido monstruoso” se passa necessariamente por essa relação não com a
morte, mas com o aniquilamento, com o extermínio, com o assassinato, com a matabilidade.
Falar de animais é falar de herança, falar do que vem depois ou do que vem atrás: “Estar-
atrás-dele no sentido da caça, do adestramento, do domar ou Estar-atrás-dele no sentido da
sucessão e da herança?” (DERRIDA, 2011, p.28, grifos do autor). Como sabemos pela tradição
bíblica, “ele [Deus] criou o homem à sua semelhança para que o homem sujeite, dome, domine,
adestre ou domestique os animais nascidos antes dele, e assente sua autoridade sobre eles”
(DERRIDA, 2011, p.37, grifos do autor). O homem vem depois do animal: dizer “eu sou” é
dizer "ser depois” (DERRIDA, 2011, p.14). No começo, era o animal. Depois, o homem. Por
último, a mulher, que estará, porém, mais próxima ao que veio primeiro. A mulher está depois
do homem que está depois do animal. A mulher é o depois do depois, ela vem mais atrás do
que vem atrás. Nem mesmo tratada no plural, como Derrida reivindica que se fale “animais”,
nesse texto, a mulher não aparece, tampouco as mulheres. No relato bíblico, não são homens e
mulheres de ascendência sobre os animais, são apenas os homens: “Deus deixa Isch
completamente só [...]. Isch, ainda sem mulher, ia ganhar ascendência sobre os animais”
(DERRIDA, 2011, p.38). No texto de Derrida, as mulheres aparecem quando o filósofo fala do
mito grego de Belerofonte, o herói que, com seu cavalo, mata Quimera e, mais tarde, as
amazonas. As mulheres aparecem na seguinte frase: “Belerofonte se encontra como presa das
mulheres” (DERRIDA, 2011, p.85). As mulheres aparecem como sinônimo de nudez, de
vergonha, de indecência, de despudor: “Então as mulheres vêm a ele, oferecem-se a ele com
despudor; têm a dupla indecência de se expor nuas, de propor seus corpos e de se prostituir, isto
é, de se vender” (DERRIDA, 2011, p.85-86). Mas Belerofonte “não cede aos seus avanços
243

despudorados” (DERRIDA, 2011, p.85-86). Sobre o recuo de Belerofonte, Derrida o assemelha


a uma “pulsão imunitária”: “Esse movimento de vergonha, de contenção, essa inibição, essa
retirada, esse recuo, é sem dúvida como a pulsão imunitária, a proteção do imune, do sagrado
(heilig), do santo, do separado (kadouch), a própria origem do religioso, do escrúpulo religioso”
(DERRIDA, 2011, p.85-86). Aqui, sem dizer, mas indicando, Derrida mostra que as mulheres
equivaliam à posição do animal. A mulher, como o animal (em um singular que não se abre a
um plural, mas se reduz como um todo), está na origem da religião como aquilo de que se deve
recuar, como uma doença de que se deve ser imune.
Mulher, vergonha e doença, portanto, estão diretamente relacionadas, tal como a nudez,
que se dá depois do pecado, depois da queda, e é desde então vinculada à culpa (AGAMBEN,
2014, p.114). No começo, a mulher herda não o que é mais próximo ao homem, mas o que é
mais próximo ao animal, isso que veio antes do homem. Derrida diz que, em um texto seu (“Um
bicho-de-seda”), em que a animalidade está associada à abertura da diferença sexual, “o
pensamento do que é nu, diz-se, como um verme, se trata precisamente da nudez, com e sem
véu” (DERRIDA, 2011, p.68). Se, no começo da vida, o sexo do homem se assemelha a um
verme, a isso que não é um sexo, na homofonia da palavra “verme” em francês (ver) escutamos
vers, “verso”. Poderíamos dizer: o pensamento do que é nu, como um verso. Podemos dizer, no
começo, havia o verme, havia o verso, havia o “ser depois” e havia o ser mais depois que o
depois, isto é, havia essa pobreza de ser, isso que Heidegger vai chamar de “ser vivo sem mais
(in einem Nur-Lebenden)” (DERRIDA, 2011, p.46) ou de “pobre de mundo (weltarm)”
(DERRIDA, 2011, p.72). Como Agamben diz em O Aberto: o homem e o animal, para
Heidegger, o animal é definido “por uma pobreza e por uma falta”, o mundo não se revela a ele
(AGAMBEN, 2012, p.78). Assim, por não ter um mundo que se revele a si, o animal é “um ser-
pobre”, um ser em falta, um ser que carece (AGAMBEN, 2012, p.86).
Ora, a história do homem é fundada em uma falta: “Caim confessa uma falta excessiva:
ele matou seu irmão após não ter sacrificado um animal a Deus” (DERRIDA, 2011, p.80). No
começo, a violência, o assassinato. A armadilha de Iahvé cai sobre Caim, o cultivador, que mata
seu irmão, Abel, o pastor. A respeito dessa “insistência redobrada sobre a nudez, a falta e a
falha na origem da história humana em relação ao animal”, Derrida tece uma associação com o
mito grego de Epimeteu e Prometeu em que “o homem recebe a princípio o fogo e a técnica
para compensar sua nudez” (DERRIDA, 2011, p.82). É “com base em uma falta ou um defeito
do homem que este se fará sujeito mestre da natureza e do animal” (DERRIDA, 2011, p.43-
44). Em O aberto, Agamben diz: “A descoberta humanística do homem é a descoberta da sua
falta a si mesmo” (AGAMBEN, 2012, p.48). Fundado em uma falta, o homem terá, no domínio
244

sobre o animal, a suplência dessa falta. O excesso que então o constituirá se dá às custas de, do
domínio, do sacrifício, do assujeitamento. Demandar uma mudança de posição em que o
homem passa a estar nu diante do olhar do animal, em que o homem passa a ser o objeto, o
objeto do olhar do animal, é de certo modo demandar uma vingança do animal sobre o homem,
como Derrida especula:

Há muito tempo, é como se o gato se lembrasse, como se ele me lembrasse,


sem dizer uma só palavra, o relato terrível da Gênese. Quem nasceu primeiro,
antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito tempo?
Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O sujeito? Quem
continua, há muito tempo, sendo o déspota? (DERRIDA, 2011, p.39).

Se a mulher veio só depois do que o que veio depois e está mais próxima, porém, do
que veio primeiro, a herança que ela traz não diz respeito ao que veio imediatamente antes dela,
mas ao que veio mais anterior que o homem. A vingança da mulher não seria então de uma
reivindicação do que veio antes, mas do que veio só depois que o depois que aponta para o mais
anterior. Se Agamben diz “é preciso interrogar sobre o modo como – no homem – o homem foi
separado do não-homem e o animal do humano” (AGAMBEN, 2012, p .29), é certo que
interrogar sobre o modo como – no homem – o animal foi separado do humano é interrogar,
antes, sobre o modo como a mulher foi separada do humano. Se, em outro momento, o filósofo
italiano diz “a única tarefa que parece ainda conservar alguma seriedade é a ‘gestão integral’
da vida biológica, isto é, da própria animalidade do homem” (AGAMBEN, 2012, p.107), se
ainda, de outro modo, ele diz “devemos investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas
aquele prático e político da separação [entre humano e animal]” (AGAMBEN, 2012, p.29),
investigar o mistério prático e político da separação se passa por enxergar o que não tem
mistério nenhum, se passa por essa pura visibilidade da nudez que, de tão nua, nos trespassa
com a voz de um fantasma, se passa pelo que é desprovido de segredo, pelo que não é velado,
pelo que não está coberto, isto é, se passa também e, sobretudo, por voltar um passo depois –
não como a finalidade de chegar ao que veio primeiro, mas para se dar conta de que talvez não
faça tanta diferença entre o que veio primeiro e o que veio mais depois que o depois, e que
interrogar o mistério da separação entre homem e animal se passa por interrogar a exclusão-
inclusiva da mulher na humanidade.
Em Nudez, Agamben diz: “ver um corpo nu significa perceber a sua pura
cognoscibilidade para além de qualquer segredo, para além ou aquém dos seus predicados
objetivos” (AGAMBEN, 2014, p.118). Ou seja, a nudez aí é a pura possibilidade do
conhecimento, é aquilo que torna possível conhecer sem, porém, apreender em atributos. Na
245

psicologia medieval, segundo o filósofo, “a nudez é o tremor que torna o corpo cognoscível,
mas que permanece, em si, inapreensível” (AGAMBEN, 2014, p.121). Podemos falar dessa
nudez para falar do segredo da cisão entre homem e animal: “a ausência de segredo é o seu
tremor especial” (AGAMBEN, 2014, p.128-129). Ou seja, falar do segredo dessa cisão não é
falar de um segredo, é falar do que está mais exposto, mais explicitamente nu, e que por isso
faz tremer, como mostram os versos da poeta: “correndo vinha rinoceronte/ pisava forte como
arma/ até concreto de chão/ coagulava e mexia” (PEQUENO, 2019, p.12-13).

O poema que segue ao “teoria da poesia” parece continuar tecendo esse começo, essa
linhagem, mas agora com outros elementos. Nele, a ancestralidade vem em dois nomes, ou em
dois sobrenomes, ou na estranha justaposição de um sobrenome atual a um nome arcaico, ou
na antecedência do sobrenome ao nome, antecedência do sobrenome atual ao nome arcaico.
Colocando o sobrenome no lugar do nome e o nome no lugar do sobrenome, o atual antecede
e, ao mesmo tempo, fica ao lado do mais antigo. Ambos passam a compor, nessa inversão, um
nome e um sobrenome, isso que é matéria de transmissão:

SILVA ANTÍGONA

primeiro a poesia foi solapada por


um desenho errado que fizeram
dela. foi exposta entre os gentios
de uma biblioteca eminente sabia
mente iluminada ao cifrão mais
vantajoso da república quando
disseram — ainda tolos — que era
engenho ou arte ou descendência
a moeda da sua larga circulação.
depois a poesia não chegou ao que
era o seu destino, a distância, e o
que seria munição transformou-se
naquilo que o poder engendra na
psicologia da servidão voluntária:
dor, bicheira, melancolia, exílios,
enforcamentos, bactérias, prisão.
agora a poesia tem companhia tem
um número incontável de letras tem
esses nomes que evocam o seu dia
mais ancestral de artesanato e saída.
ela então migrou daquela região grave
e grega onde hoje se deve os fundos da
terra e troca a guarda bem ao nosso lado
246

entre apertos de mão, palavras sobre crise


(acenos, claro, porque implicar-se é um
gesto permitido pelas normas da saúde)
e ensaios e mais ensaios que jogo ao mar
quando encaro os terminais próximos
do trabalho que não é de libra e recordo
que este é, afinal, o novo antropoceno e
boa será mesmo a poesia que apenas
indique nos seus versos mais rupestres os
caminhos que tenham levado a sabedoria
lírica os rios as violetas e os humanos
mais sensíveis à sua completa extinção.
(PEQUENO, 2019, p.14-15)

Nessa assinatura, “silva antígona”, lemos, novamente, uma genealogia, uma história da
poesia: “primeiro a poesia foi solapada por/ um desenho errado que fizeram/ dela”. O poema
continua uma “teoria da poesia”, mas tecendo uma outra teoria da poesia. Com suas assonâncias
em alguns ecos esparsados em /ia/ (“poesia”, “sabia/mente”, “psicologia”, “melancolia”,
“companhia”, “dia”, “sabedoria”) e /ão/ (“cifrão”, “circulação”, “munição”, “servidão”,
“prisão”, “mão”, “extinção”) estaríamos quase lendo um canto, mas, de cara, nos deparamos
com a estranheza do título. Seria o poema uma tragédia? Seria a escrita do poema a inscrição
de uma tragédia? Seria o poema a escrita de uma nova tragédia cuja personagem principal é a
poesia, agora como “silva antígona”? Outro poema do livro nos dá uma pista. O primeiro verso
de “cantilena da outra ponta da praia” diz “meu pai era pequeno além de silva” (PEQUENO,
2019, p.35).
Silva é um dos sobrenomes mais comuns nos brasileiros e brasileiras. Silva também é
uma palavra latina que significa mata, floresta, selva, selvagem. Silva são os que podem ser
presos. Silva são os que podem ser mortos. Em “cantilena da outra ponta da praia” lemos “meu
pai era pequeno além de silva”. A poeta porta essa herança, ela carrega esse sobrenome. Aliás,
ela também carrega o adjetivo transformado em sobrenome. Tatiana Pequeno da Silva traz em
si os pequenos e os silvas – ou os “silva’s”, como intitula um poema presente no livro Aceno
(PEQUENO, 2014, p.11) cuja apóstrofe não é o plural, mas, em inglês, diz o que é dos Silva.
A mulher poeta Pequeno da Silva traz os pequenos, os silvas e o que é dos – ou o que
comumente é atribuído aos – Silva, traz a selva, a selvageria, os que podem ser presos, os que
podem ser mortos, os pequenos, paradoxalmente pequenos, porque também são apequenados
enquanto grandes animais selvagens, rupestres, arcaicos.
A junção entre Silva e Antígona, entre Brasil e Grécia, entre atual e arcaico, entre o mais
comum e o mais incomum, entre o sobrenome e o nome, entre os que morrem e os que têm o
desejo de enterrar os mortos, entre uma linhagem e aquela que teve a linhagem interrompida,
247

entre os que são mortos e aquela que não deveria ter nascido, essa junção traz uma
ancestralidade fundante da contemporaneidade. Ancestralidade essa que também surge pela
afronta à lei, a lei que impede de enterrar os mortos e a lei que chancela a matança dos/das
Silva’s – como diz a famosa letra do funk: “era só mais um silva que a estrela não brilha”. Não
furtando o olhar à extinção, o poema não só conta o começo da poesia como entrevê o futuro
dela, e, nesse futuro, a “boa poesia” será aquela cuja selvageria nos versos indique, mostre,
acene o caminho da extinção de uma matéria viva que sempre foi tradicionalmente cara à
poesia: “boa será mesmo a poesia que apenas/ indique nos seus versos mais rupestres os/
caminhos que tenham levado a sabedoria/ lírica os rios as violetas e os humanos/ mais sensíveis
à sua completa extinção”.

Nessa história selvagem da matéria da poesia, ou da poesia em sua matéria, a


poesia será uma história da poesia que mostre o aniquilamento da poesia (ao
menos, da lírica) e do que há de mais sensível, ou seja, de rios, violetas,
saberes, poetas e muitos de seus “irmãos de misérias e assombros”. Nela, no
que virá enquanto extinção, todo e qualquer “aceno”, todos e quaisquer
“apertos de mãos”, todas as “implicações” com o outro perderão seus sentidos
de ser, senão o de resguardar uma memória do que, então, terá minimamente
havido. Nessa história selvagem da poesia, o futuro da poesia, lido desde o
presente, é o poema que estabelece tal história, o poema histórico de nossa
história a contrapelo (PUCHEU, 2019, inédito).

Poema que é uma história a contrapelo, “silva antígona” parece ser um complemento a
“teoria de poesia”, por um ponto de vista, reescrevendo-o, por outro, continuando-o em um
contraponto. O poema, que também é uma história, é igualmente uma crítica a uma certa teoria
de poesia e a uma certa poesia. Em contraposição a uma certa poesia, ele pressupõe, propõe e
define uma “boa poesia” que ainda está por vir. De um ponto de vista, poderíamos ler com
ironia essa “boa poesia”, já que remete ao velho juízo de gosto que define a poesia como ruim
ou boa, ou seja, cuja figura do crítico é assumida como aquele que julga. Mas, por outro lado,
dizer “boa poesia” também pode ser uma forma de usar de um modo irônico a expressão que
alguns críticos, ainda hoje, devem usar, o que leva a crer que ainda hoje existe uma certa crítica
que julga pelo gosto e que a “boa poesia”, para essa certa crítica, deve ser “apenas” (“boa será
mesmo a poesia que apenas”) aquela que maneja a “sabedoria/ lírica os rios as violetas e os
humanos/ mais sensíveis”. Possivelmente, uma poesia sem metáforas seria vista por essa crítica
como uma poesia ruim. Possivelmente, “boa poesia” seria aquela que se firma como totem e
tabu. De todo modo, “teoria da poesia” e “silva antígona” são dois poemas, duas histórias, duas
teorias, duas críticas, em que está em jogo a extinção: no primeiro, está em jogo a extinção da
poesia mesma, mas sua sobrevivência como fantasma e enigma, “totem búfala e tabu”; no
248

segundo, é a extinção de uma certa poesia que está em jogo, e não da poesia, que viverá da
extinção dessa matéria constitutiva da poesia. Em “teoria da poesia”, talvez, a sobrevivência da
poesia como fantasma esteja, porém, vinculada a um caráter sagrado, enquanto em “silva
antígona” a vida da poesia esteja vinculada a um caráter profano. Poderíamos também dizer
que em “teoria da poesia” prevalece uma pré-história, enquanto em “silva antígona” uma
história.
Essa história se divide em um passado (“primeiro a poesia foi solapada por”), em um
presente (“agora a poesia tem companhia tem”) e em um futuro (“boa mesmo será a poesia que
apenas”). Em todo o passado exposto no poema, a poesia percorreu um campo minado: o verso
“foi exposta entre os gentios/ de uma biblioteca sabia/ mente iluminada” e os subsequentes
(“[...] ao cifrão mais/ vantajoso da república quando/ disseram — ainda tolos — que era/
engenho ou arte ou descendência/ a moeda da sua larga circulação”) mobilizam termos de uma
cultura (iluminismo), de uma economia (liberalismo) e de uma política (república)
determinadas. Se o poema dá como ponto de partida o que poderiam ser os entornos dos séculos
XVII e XVIII, ele nos diz que, nesse percurso inicial, “a poesia foi solapada”. No que tange ao
estilo artístico ou literário, esse período abrangeria o barroco. Mais à frente, todavia, o poema
parece retomar esse primeiro começo quando sintetiza: “ela [a poesia] então migrou daquela
região grave/ e grega onde hoje se deve os fundos da/ terra e troca a guarda bem ao nosso lado”.
Pela retomada fazendo referência à Grécia e, de acordo com a minha especulação do tempo que
o poema mobiliza, é possível também que o estilo literário em questão seja o arcadismo. De
todo modo, o poema nos diz que, depois do começo, a poesia ainda continuou errando o seu
destino: “depois a poesia não chegou ao que/ era o seu destino, a distância, e o/ que seria
munição transformou-se/ naquilo que o poder engendra na/ psicologia da servidão voluntária:/
dor, bicheira, melancolia, exílios,/ enforcamentos, bactérias, prisão”. Pelo visto, elementos do
romantismo fizeram parte do campo minado e especialmente enclausurado que a poesia traçou,
destacando os versos “depois a poesia não chegou ao que/ era o seu destino, a distância”. Porém,
ao presente, a poesia chegou de outra forma: “agora a poesia tem companhia tem/ um número
incontável de letras tem/ esses nomes que evocam o seu dia/ mais ancestral de artesanato e
saída”. Não mais errando o outro, o mais longe, espacialmente ou não, a poesia do “agora” é
plural, remonta-se à sua própria feitura, e “troca a guarda bem ao nosso lado/ entre apertos de
mão, palavras sobre crise/ (acenos, claro, porque implicar-se é um/ gesto permitido pelas
normas da saúde)/ e ensaios e mais ensaios que jogo ao mar/ quando encaro os terminais
próximos/ do trabalho que não é de libra e recordo/ que este é, afinal, o novo antropoceno”.
249

Tentando ler esse final com calma, vemos que esse poema nos apresenta, pela primeira
vez, a vinculação da poesia com o trabalho, elemento que também aparece em outros poemas
analisados. Há também uma apresentação da poesia como interação de corpos, como gestos,
como acenos. Localizado entre parênteses, “acenos”, aos meus olhos, assumem um destaque
principal e não um destaque secundário como de praxe assumem os complementos que vêm em
parênteses. Digo isso porque “acenos” pode ser tanto um terceiro elemento e, portanto, um
complemento que vem depois de “apertos de mão, palavras sobre crise”, mas também pode ser
lido como uma posterior definição sintética de “apertos de mão, palavras sobre crise”; nesse
sentido, “apertos de mão, palavras sobre crise” seriam “acenos”. Pela primeira vez, pois, nesse
poema, a poesia vem definida como um gesto, ironicamente acompanhado de uma crítica à
norma, à lei, ao que regula a vida (“gesto permitido pelas normas da saúde”).
No poema, “gesto” vem como “acenos”, como mostra a sequência dos versos: “entre
apertos de mão, palavras sobre crise/ (acenos, claro, porque implicar-se é um/ gesto permitido
pelas normas da saúde)”. Se podemos ler “acenos” como uma síntese de “apertos de mãos” e
“palavras sobre crise”, vemos que “gesto”, aqui, implica corpo (“apertos de mão”) & discurso
(“palavras sobre crise”). Além de “gesto”, também é por “implicar-se” que “acenos” é aludido.
Em nossa língua, “implicar” tem vários sentidos, desde amistoso até hostil, inclusive jurídico.
Etimologicamente, um dos sentidos de “implicar” não é senão “entrelaçar”, palavra que tem se
repetido muito nesta tese como indicação do que mantém junto à medida que expõe a
diferença.65 No poema, o gesto como “implicar-se”, como aquilo que entrelaça, como aquilo
que se dobra para dentro, que envolve, acontece entre corpo e discurso. O gesto não é apenas
“apertos de mão”, mas também “palavras sobre crise”, ou seja, toque e palavra. Nesse
entrelaçamento, esses acenos colocam em relação aquilo que por muito tempo ficou separado,
a saber: pensamento e corpo. Nesse poema, que pode ser lido como ensaio, que pode ser lido
como crítica, que pode ser lido como história da poesia, lemos não só uma proposição da poesia,
mas uma proposição da noção de gesto diretamente atrelada à poesia e que, além disso, traz o
gesto como entrelaçamento, indissociável do toque e da palavra.
No mais, palavras, aqui, vêm na especificidade de palavras “sobre crise”, isto é, o
necessariamente político e o não necessariamente político, como “apertos de mãos”, compõem,
lado a lado, o que o poema traz como “gesto” ou “acenos”. É certo que “palavras sobre crise”
pode dizer respeito à configuração política do nosso tempo, do nosso país, mas, conforme os
versos anteriores encaminham, pode dizer respeito também à própria poesia. Nesse sentido, o

65
Disponível em etymonline.com: "from Latin implicatus, past participle of implicare "to involve, entwine,
entangle, embrace". Acesso em 22/10/2019.
250

tempo em crise e/ou a poesia em crise passam a ser matéria dessa poesia e dessa troca de
palavras mencionada no poema (“palavras sobre crise”). De todo modo, esse gesto é um
receptáculo de crise, é um gesto crítico, ou seja, gesto e crítica não se dissociam, pelo contrário,
a crítica (“palavras sobre crise”) compõe o gesto. Esse gesto, a um só tempo como toque e
palavra, é um gesto em questão, que implica a indicação da relação de distanciamento e
aproximação, tal como um aceno.

Ao final de “silva antígona”, o caminho da poesia se encontra com o caminho do


trabalho, e um quarto elemento, ou um sinônimo de todos os outros elementos, aparece junto
com “apertos de mãos”, “palavras sobre crise”, “acenos”: “ensaios” (“ensaios e mais ensaios
que jogo ao mar/ quando encaro os terminais próximos/ do trabalho que não é de libra”). Ora,
podemos ir do literal ao metafórico para pensar “ensaios que jogo ao mar”, mas é preciso
observar que, em Onde estão as bombas, há também o poema chamado “breve ensaio contra a
minha indiferença quanto à cracolândia do jacaré”. O que quero dizer com isso é que a palavra
“ensaio” é usada para intitular um poema. Como vimos, há uma dimensão ensaística nos
poemas, sendo uma narrativa fraturada entre história, crítica, carta. Alberto Pucheu atenta para
essa dimensão ensaística no posfácio ao livro:

Nele [em Onde estão as bombas], há um movimento de redução de metáforas


em nome de uma intensidade mais direta que, respondendo à do real em uma
narratividade fraturadamente lírica (em uma “nar/rativa”) ou no intervalo
poético da fratura narrativa, se lança a atingi-la, como é evidente em poemas
impressionantes como “l’air du temps”, “expertise”, “breve ensaio contra a
minha indiferença à cracolândia do jacaré”, “mulher do fim do mundo” e
“poema angélico-adiliano”, dentre outros. Essa dimensão de uma
narratividade fraturada da lírica, em que a ausência de pontuações contribui
para um espaçamento a “deixar o aglutinado de palavras livre”, confunde-se
com uma dimensão ensaística dessa poesia (PUCHEU in PEQUENO, 2019,
p.98).

“Ensaio” vem do latim exagium e significa “pesar, de testar”, de exigere, “pesar,


examinar”, formado por ex-, “fora”, mais agere, que tem múltiplos significados, como agir,
mas também “medir peso”.66 Vimos que o movimento do verso, nas interrupções que o

66
Disponível em etymonline.com: “from Late Latin exagium "a weighing, a weight," from Latin exigere "drive
out; require, exact; examine, try, test," from ex "out" (see ex-) + agere "to set in motion, drive" (from PIE
root *ag- "to drive, draw out or forth, move") apparently meaning here "to weigh." Acesso em 22/10/2019. E
também em https://origemdapalavra.com.br/palavras/ensaio/ Acesso em 24/09/2019.
251

compõem, cesura e enjambement, são quebras que permitem parar, parar para pensar, sendo
essa mínima interrupção o que permite o pensamento, isso que, como já foi falado, tem a
suspensão no nome, pendere, que já é uma balança, aquilo que pende e pesa. Então, tanto o
poema como o ensaio podem ser lidos, portanto, enquanto ato de balançar, de pender, de pesar,
que, porém, não finda no ato. Entendendo o ato como isso que tem um início e um fim, na
acepção aristotélica, Agamben se contrapõe ao ato e propõe a noção de gesto para pensar a arte
e a política, substituindo o paradigma da ação, que se dirige a um fim, a uma finalidade, para o
do gesto, que se subtrai a toda finalidade. Entendido em uma de suas acepções, “o gesto é a
exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal” (AGAMBEN, 2015b, p.59).
Gesto é a exposição de um puro dar passagem. Isso significa que ele está a serviço não de uma
comunicação ou de uma transmissão, mas de uma comunicabilidade. De acordo com isso, o
gesto não se assume nem como significado nem como significante, mas no intervalo entre eles,
e o poema passa a ser um lugar não de enunciado, mas de enunciação, de evocação. Como foi
dito na primeira parte desta tese, ao contrário de preencher os vazios da língua com palavras, o
gesto não está na ordem do que é falado, mas no “mutismo de uma língua sem palavras” que
expõe, que exibe este vazio como um aceno, um dar sinais. Assim, o vazio é mostrado,
sinalizado, e não preenchido, e, neste mostrar, incide uma exigência, um apelo (AGAMBEN,
2015a, p.212). Encontramos uma formulação parecida com essa em “Notas sobre o gesto”, no
livro Meios sem fim, em que Agamben fala do gesto como aquilo que “assume e suporta”, ou
seja, não como o que deve resgatar o que já se perdeu, mas como aquilo que deve exibir/assumir
e sustentar/suportar a falta (AGAMBEN, 2015b, p.58).
Em Para uma antologia e uma política do gesto, Agamben diz: “Comecei a refletir sobre
o gesto no início dos anos oitenta e posso dizer que, desde então, dele não deixei de me ocupar,
mesmo se de modo descontínuo e subterrâneo” (AGAMBEN, 2018, s/p). Há vários ensaios em
que o gesto comparece no pensamento do filósofo e, frequentemente, a noção de gesto vem
aparecendo em diversas discussões sobre arte, literatura e política.67 No livro Motim e

67
Além de ser um conceito caro ao pensamento de Giorgio Agamben e aparecer em diferentes acepções ao longo
de seus ensaios e entrevistas, a palavra “gesto”, antes de aparece em Levantes, já aparecia abundantemente em A
sobrevivência dos vagalumes, ambos de Didi-Huberman. Os dois pensadores, apesar de possuírem um objeto de
estudo em comum que é, sobretudo, a obra de Aby Warburg, possuem divergências entre si a respeito de algumas
concepções. O livro Gesto, organizado por Dani Lima, também se dedica a pensar o gesto a partir de entrevistas
com diversos teóricos de várias áreas. Apesar de a discussão sobre o conceito ter pontos de contato com a
abordagem do verso tecida aqui, não farei, porém, uma ampla discussão em torno desse conceito, por considerar
que o desdobramento dessa discussão pode se sobrepor à leitura do “gesto” que o poema traz, correndo o risco de
sobrepor a teoria ao poema. No que acrescenta à leitura do poema, tentarei trazer aqui o que achar suficiente. Caso
haja interesse na questão específica sobre o poema como um gesto, contra a dicotomia pensamento x ação, sugiro
a leitura de meu ensaio (“O poema como um gesto”) publicado nos Anais da Abralic de 2018, disponível em
http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547745096.pdf
252

destituição agora, o termo propõe, a partir da atual fragmentação do mundo, um comunismo


como “retorno à terra”, onde nada equivale e tudo se singulariza:

Realizar a promessa de comunismo contida na fragmentação do mundo


demanda um gesto, um gesto a se refazer interminavelmente, um gesto que é
a própria vida: o gesto de compartilhar passagens entre os fragmentos, de
coloca-los em contato, de organizar seu encontro, de abrir os caminhos que
levam de uma extremidade de mundo amigo a um outro, sem passar por terra
hostil, o gesto de estabelecer a boa arte das distâncias entre os mundos
(COMITÊ INVISÍVEL, 2017, p.53, grifos do Comitê).

Essa citação ressoa o que está implicado no pensamento sobre o contemporâneo, aquele
que coloca em relação, que faz convergir as extremidades, que não deseja anular as distâncias,
homogeneizando e unificando, mas operar via o jogo de aproximação e distanciamento, como
foi dito acima sobre o aceno e sobre o gesto tal como o poema traz, um gesto que implica toque,
palavra, troca, contato. Além disso, nessa citação, o gesto também aparece como aquilo que se
refaz interminavelmente, sem finalidade, sendo esse movimento, como o trecho diz, “a própria
vida”. Em “Notas sobre o gesto”, Agamben diz que o gesto não é nem um fazer (facere), ligado
à produção (poiesis), pois essa também implica uma finalidade, uma atividade executada, nem
mesmo um agir (AGAMBEN, 2015b, p.59), que, enquanto práxis, segundo a acepção de
Aristóteles em Ética a Nicômacos, é um fim em si mesmo.68 Para Hannah Arendt, como falamos
no capítulo anterior, agir implica um exercício contínuo, um a-gere, movimento que traz gestas,
isto é, possibilidades de nascimento. Mas, não findar não significa estar isento de finalidade; o
agir não termina, mas é impulsionado por finalidades, sobretudo se se trata da cultura clássica
grega na qual Arendt se baseia, em que agir tinha a finalidade de descobrir, invadir, colonizar,
explorar, escravizar. Além disso, conforme essa tradição, como já foi dito, só os livres tinham
a capacidade de ação. Se a ação não termina, mas tem uma finalidade, uma ação que não termina
nem tem uma finalidade não seria, para Agamben, uma ação, mas um gesto. Tampouco seria
uma produção, mas um uso. Nessa proposição, o deslocamento que está em jogo é a mudança
da relação entre ação (práxis) e produção (poiesis) como paradigma político ocidental para
pensar a arte e a política, para a relação entre gesto e uso, já que, ao longo da história, a política

68 “A distinção entre facere e agere deriva de Aristóteles, que na Ética a Nicômaco (1140b) opõe a ação (praxis)
e a produção, o ‘fazer’ (poiesis): ‘O gênero da praxis’, ele escreve, ‘é diverso do da poiesis. O fim do fazer é, com
efeito, outro que o próprio fazer, enquanto o fim da praxis não pode ser outro, uma vez que agir bem é em si mesmo
o fim’” (AGAMBEN, 2018, s/p)
253

sempre esteve vinculada à ação e, nessa relação, palavra e pensamento ficavam apartadas da
política.69
O estatuto político se acrescenta ainda à relação entre gesto e uso porque ela não se dá
naqueles que são livres, mas naqueles que não são, naqueles e naquelas a quem não é e nunca
foi permitida a ação. 70 Por isso, esses e essas não agem como quem domina, mas como quem
não domina, ou seja, não como quem age, mas como quem improvisa, esboça, indica, sinaliza,
exibe, expõe, mostrando o impedimento histórico da ação. Assim, essa escrita que é poema,
ensaio, crítica, carta, que tem o gênero indecidível, deve ser vista menos como um corpo de um
dançarino que domina os movimentos e mais como um corpo qualquer em cujos gestos pode-
se ler um passo de dança lá onde não se está dançando. A ênfase do pensamento de Agamben
recai, entretanto, menos sobre o gesto ser a indicação do impedimento da ação e mais sobre o
gesto ser afirmativamente isso que se diferencia da ação por ser sem finalidade.
Já dissemos que desde a modernidade, pelo menos, a política exclui a vida ao tê-la como
finalidade. Hoje, a riqueza é o meio, o objeto e o fim da política. Se um dia Hannah Arendt
(2002) disse que a vida era finalidade da política, e se, nessa lógica, a vida já estaria fora da
política, como algo que precisasse ser alcançado, hoje não podemos dizer mais isso, porque a
vida não é nem o fim nem, como deveria ser, o meio da política: ela é aniquilada pela política.
Ao contrário da finalidade que se insere na lógica da mercadoria, o poema é e responde a um
apelo ou a um chamado sem corresponder a uma finalidade. É assim que leio a passagem do
texto “Em nome de quê?”, presente no livro O fogo e o relato, em que Agamben diz: “Quem
afinal, encontra coragem de falar, tem a consciência de falar – ou, eventualmente, de calar – em
nome de um nome que falta” (AGAMBEN, 2018, p.93). É em nome dessa mesma falta que
assim leio, no mesmo livro, uma passagem parecida, no texto “Sobre a dificuldade de ler”:
“Gostaria que refletissem sobre o estatuto especial de um livro que é destinado a olhos que não
podem lê-lo e foi escrito com uma mão que, em certo sentido, não sabe escrever” (AGAMBEN,
2018, p.107). Ou, ainda, também de forma parecida com essa última, a resposta de Agamben à
pergunta que intitula seu texto “A quem se dirige a poesia?”: “O verdadeiro destinatário da

69 “Vocês sabem que, de Aristóteles a Hannah Arendt, a esfera da política sempre foi definida como a esfera
própria da praxis, isto é, da ação (actio é a tradução latina de praxis)” (AGAMBEN, 2018, s/p). E, ainda, uma outra
passagem: “O gesto não se deixa inscrever nos dois polos dessa alternativa, na qual Aristóteles pretendia fundar o
primado da ação política: não é uma atividade dirigida para um escopo exterior, como a poiesis, nem um fim em
si, como a práxis” (AGAMBEN, 2018, s/p).
70
Para um aprofundamento sobre uma ética do – uso do corpo do – escravizado, com base na escravidão grega e
não na escravidão moderna, ver O Uso dos Corpos, de Giorgio Agamben (2014).
254

poesia é aquele não pode lê-la” (AGAMBEN, 2015, s/p)71. Ler talvez seja o exercício de rastrear
esses alguéns que faltam, esses alguéns que não podem ler.
Podemos pensar então que a literatura fala em nome de uma falta. Em outras palavras,
fala em nome dos matáveis, daqueles e daquelas cujos nomes são diariamente excluídos da
história. E fazer essa experiência, como vimos, não está fora da literatura, está nela. Cada livro
fala com e para, em nome de algo ou de alguém, mesmo que este destinatário não esteja
explícito. Cabe a nós dizer quem é este destinatário e continuar a tarefa que esses livros nos
coloca. Isso é fazer do meio um meio, isso é permitir com que o meio continue sendo um meio,
que não se esgota como um objeto útil que visa a um fim, continue sendo um meio destituído
de qualquer finalidade que esteja para além dele mesmo. Isso é permitir com que a vida seja o
meio e não o fim. Dizendo de outro modo, a literatura não é nem um meio para um fim nem um
fim em si mesmo porque ela nunca chega: ela sempre volta, ela sempre volta a esses e a essas
que nunca puderam ser, que nunca tiveram o estatuto de ser. É nessa habilidade que as linhas
ou os versos de um texto literário devem ser a impressão dos gestos dos corpos daqueles e
daquelas que nunca tiveram o estatuto de ser. Nessa política que diariamente aniquila a vida de
todos e de todas que nunca tiveram o estatuto de ser, que nunca puderam agir e começar, fazer
uso como quem usa o corpo sem ter liberdade de agir é instaurar um gesto, a possibilidade de
um começo. Sustentando-se como um movimento que não cessa, que não se esgota como um
objeto útil que visa a um fim, política e poesia se encontram na definição mesma que Aristóteles
– em uma adversativa, no Livro I da Política – deu à vida, na definição de vida que desde o
começo fundamentou a política: “Mas a vida é uso, e não produção” (ARISTÓTELES, 2009,
p.19).
O ensaio, em seu sentido etimológico, no entanto, como vimos mais acima, porta, em si,
o ato, a ação, o agir (agere) que já é, porém, um gestar, um portar a possibilidade do nascimento.
Nesse sentido, se poema, ensaio, crítica e história da poesia estão implicados na escrita da poeta,
podemos dizer que essas definições, que aqui se entrelaçam à beira de uma indecisão, são menos
um ato de julgar, como ainda se atribui à crítica, e mais um ato que não finda, que está para
além do ato, por ser um gesto e não um ato na acepção aristotélica que pressupõe um início e
um fim.72 O que essa escrita coloca em jogo, enquanto ensaio, poema, crítica, como um “pesar”

71
AGAMBEN, ¿A quién se dirige la poesía?. Tradução de Gerardo Muñoz & Pablo Domínguez Galbraith.
Disponível em https://ficciondelarazon.org/2015/06/12/giorgio-agamben-a-quien-se-dirige-la-poesia/ Acesso em
24/11/2019.
72 Nem potência nem ato, mas os dois juntos, o que implica o que um corpo pode fazer e o que ele faz, a
possibilidade e o ato, a potência e o ato, ao mesmo tempo (ou “um agitar recíproco da potência no ato e do ato na
potência”). Assim, no gesto, “as categorias da ontologia – existência e essência, quidditas e quodditas, potência e
255

enquanto um gesto, não é um julgamento, mas os limites – e penso isso não com Agamben, mas
exclusivamente pelos poemas de Tatiana, afetando desde já as proposições do filósofo pelas
proposições extraídas dos poemas. O que se pende e, ao mesmo tempo, o que fica pendido, o
que falta e o que excede, o que sobra, o que resta. Trata-se de uma questão de extremidades.
Nesse pender, nesse pesar, essa economia de extremidades em faltas e excessos não é uma pura
medição em si, mas, ao contrário, aponta para o que, nessa economia, é incalculável. Nesse
poema como ensaio, como ato que é mais que ato, que é gesto, que porta em si a possibilidade
do nascimento, o que se garante é a manutenção do incalculável, do irredutível, como a
manutenção da vida. Ou seja, essa escrita, que se quer poema, ensaio, crítica, história, trata de
uma questão de ética.
Em Para uma antologia e uma política do gesto, depois de aproximar sua concepção de
gesto ao “meio puro” de Benjamin, ou seja, a isso que subverte a dualidade dos fins e dos meios
e não deve exibir senão a sua medialidade, o filósofo italiano faz alusão àquela metáfora de
uma “baçança em equilíbrio precário” que o historiador da arte francês Henri Focillon usou
para falar da imagem artística, metáfora de que falamos na primeira parte desta tese”
(AGAMBEN, 2018, s/p). Como também já foi dito, é, sobretudo, ao que há de interruptivo e
suspensivo nesse movimento de “uma balança em equilíbrio precário” que Agamben associa o
gesto.73 Leio essa escrita de que estamos falando, de Tatiana Pequeno, como essa balança. Na
economia que acena para a sua interrupção, para o incalculável como o irredutível da vida, o
que se gere ou se gesta é sempre a possibilidade de um nascer, de um nascer outro, singular
(ressoando as palavras do Comitê Invisível sobre a terra ser o lugar desse gesto interminável
onde tudo se singulariza). Mesmo sendo e por ser um pesar, o que nos permite escutar um luto,
e mesmo sendo e por ser, em sua pendência, em sua quebra, em seu tremor, aquilo que leva, ao
mesmo tempo, a pensar, a amar e a fitar o horror, esse gesto sempre é um balanço sobre a vida
e sobre a morte. Ele se constitui como um aceno para outra vida possível, uma condição de
possibilidade para a mudança. Poema, ensaio, crítica, como “pesar” enquanto gesto – noção
aqui já duplamente atravessada pelo efeito dos poemas (dos limites, das extremidades, do
incalculável) no pensamento agambeniano sobre o gesto e vice-versa –, enquanto um modo de
expor e de se relacionar com o irredutível da vida, com o incalculável das faltas e dos restos,
são constatação, denúncia e aceno para a transformação. Nos poemas que estamos vendo, esse

ato, ser e ente – colapsam necessariamente uma sobre a outra, coincidem, isto é: acontecem juntas” (AGAMBEN,
2018, s/p).
73 “Portanto, decisivo para compreender a natureza do gesto é o momento da interrupção e da suspensão, isto é,
sua relação com o tempo compreendido como sucessão cronológica linear” (AGAMBEN, 2018, s/p).
256

gesto é indissociavelmente o indigesto, o atravessado, o interrompido, o não-nascido. O aceno


para o nosso tempo, para a nossa vida, vem também do que se gesta de uma vida não vingada,
não nascida. Vem, também como vimos no Não de Bruna Mitrano, do indigesto. Revolver o
indigesto é o uso ou a tarefa ética que se faz desse indigesto. A leitura que se dá a ele deve
acenar para ele enquanto ruminação e abertura incessante, não digerindo o indigesto, mas o
mantendo entre a ruminação e a regurgitação, trazendo-o de volta como possível transformação
da vida indigesta que se leva.

Entre a cesura desde as palavras (“nar/rativa”) e o livre fluxo de palavras, essa escrita
se tece entre poema e ensaio, de modo que a fratura na narrativa não só acena a um ponto de
real, perturbando a lírica e a narrativa, mas propulsionando o caráter ensaístico, improvisado,
que aqui tem relação direta com a precariedade da forma no que isso diz respeito ao efeito
cortante da pobreza. Ou seja, se a fratura não só traz o poema na narrativa, mas também o
ensaio, levando a crer que o corte, e não a linearidade, pode ser um ponto de intimidade entre
o poemático e ensaístico, essa intimidade não é produzida senão pela precariedade da forma
que apresenta o efeito cortante da pobreza desde o interior das palavras. Na ferida cortante
desde os significantes, a forma poemática, ensaística, dramática, autobiográfica não se sustenta
em nenhuma formulação generalizante, não mostrando senão a sua precariedade como meio,
não mostrando senão a forma aflita, como isso que desregula a lógica das formas (TROCOLI,
2018, p.116-125).
Por outro lado, ensaio também tem a ver com gestos e acenos, com passos, com um
corpo que improvisa, com um movimento que hesita, com um gesto que fica pelo meio. No
poema em questão, há mares implicados indiretamente, pela referência direta à Grécia e, talvez,
indiretamente, ao Brasil, a Portugal, se nos atermos aos estilos literários. Podemos pensar que
um ensaio jogado ao mar finalmente cumpriria o destino não cumprido da poesia, isto é, a
distância. Como uma garrafa com uma mensagem, esse lance seria um endereçamento, e a
poesia, como ensaio, reescreveria a história dos descobrimentos, inscrevendo uma outra
história, a história do endereçamento, da destinação, e não do descobrimento.
Sejam terminais de ônibus ou de barcas, dada a proximidade com o mar, o trabalho é o
que media essa relação mais estreita entre ensaio e jogada, ensaio e lance, e a relação mais
abrangente entre poesia e o “novo antropoceno”. Se a poesia agora se caracteriza por apertos
de mão, palavras sobre crise, acenos, ensaios jogados ao mar, a relação dela com o novo
257

antropoceno é intermediada pelo “trabalho que não é de libra”, pela economia que não move o
país, mas por outra economia, que não é do ganho, do acúmulo, do lucro, do progresso, mas de
um dispêndio que é um envio errante. Há, em “silva antígona”, uma refundação da poesia que
passa por uma reescrita da história da poesia em que quem encara o mar é uma poeta, uma
mulher que, dirigindo-se ao trabalho, e não comandando caravelas, não invadindo, não
colonizando, anuncia o que será, no futuro, a poesia, ou simplesmente manifesta o seu desejo.
Anunciar o futuro como manifestação de um desejo é prenunciar sem qualquer certeza. E o que
essa poeta mulher decolonial deseja é, desde o tempo-de-agora, uma poesia-testemunho, uma
poesia que seja as marcas de uma ausência, que indique, que acene para os caminhos da
extinção. Seja uma poesia que acene para a morte de uma certa poesia, seja uma poesia que
acene para a morte de tudo que é vivo, seja os dois, “silva antígona” escreve uma história da
poesia em que o futuro da poesia é o trabalho de luto, anunciado ou manifestado do desejo de
uma poeta mulher que se dirige ao trabalho e vincula a gestação de um “novo antropoceno” à
poesia por vir.

meu pai era pequeno além de silva


vendia lâmpadas que acendiam as
cidades e voltava para casa sempre
ferido pela doença haldólica de cair
as lâmpadas que meu pai vendia nunca
iluminaram sua verve lírica
cantava secretamente pequenas árias
de óperas famosas e devia ao sagrado coração
de jesus a sua pele escura
nem o pouco dos seus olhos eu herdei.
faz mais de trinta anos que ele me guardou
todas as conchas da praia de iguabinha
e disse vou escondê-las para você ir
encontrando belezas sempre que voltar
aqui
meu pai se esqueceu das marés o que
ele prometeu nunca mais pôde ser visto
ele desapareceu numa certa manhã chuvosa
de janeiro e nunca mais atravessou com facas
a porta de nossa casa em bonsucesso ele
nunca mais colocou os dedos entre os cabelos
da minha irmã mais nova ou falou alto o nome de
meu irmão mais velho e marinheiro
ele não pôde daqui
sair vivo
faz mais de trinta anos que coleciono conchas
(PEQUENO, 2019, p.35)
258

Passando pelo “pai omulu” (em “adeus ao pelourinho”), depois pelo pai que se danou
pela selva (em “teoria da poesia”), passando pelo orixá, depois pelo animal, agora comparece
esse outro pai, um pai que cai, treme, desmorona, em uma dança que aponta para a morte, como
indica, sobretudo pelo título, o poema “epilepsy is dancing” (PEQUENO, 2019, p.32). Mas
colocar em cena, ao longo do livro, a queda do pai, antes do que afirmar essa queda, é um gesto
de vingá-la. Ou melhor, ela só é afirmada na medida em que é vingada, porque esse pai em
queda é da linhagem dos que portam a carência, dos que têm “as mãos sempre suspensas”, e
evocar a figura do pai a partir de sua queda é vingar todos e todas que caem e que caíram pelo
atributo da selvageria, da animalidade, do encarceramento (PEQUENO, 2019, p.72).
Não se pode esquecer que o título desse poema, “cantilena da outra ponta da praia”,
contém uma expressão usada por militares para se referir ao local de execução de opositores da
ditadura militar. Na época da ditadura, esse local era a base da Marinha na Restinga de
Marambaia, no Rio de Janeiro. Após esse período, “ponta da praia” passou a ser usada como
uma expressão, ou como um código. Em 21 de outubro de 2018, uma semana antes das eleições
presidenciais, foi transmitida uma fala de Jair Bolsonaro aos apoiadores de sua candidatura na
Avenida Paulista. Em um momento, referindo-se pejorativamente aos petistas e aos apoiadores
do PT, Bolsonaro disse: “Petralhada, vocês vão para a ponta da praia”.74 No poema, não há
nenhuma referência explícita a essa ponta da praia específica, mas como um rastro, que é um
reenvio, uma ponta da praia sempre remete a “outra ponta da praia”: nessa cantilena, como
simples canção, como uma oração, no réquiem ao pai, escuta-se um réquiem aos violentados
pelos muitos extermínios diários.
Há, no livro Ideia da Prosa, de Agamben, um texto, o primeiro texto do livro, que se
chama “Ideia da matéria”. Ideia da Prosa começa, portanto, com uma “Ideia da matéria”
denominada como silva. Seguida dessa palavra, em parênteses, lemos: “(floresta)”. Agamben
diz: “Onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra. Quem nunca
alcançou, como num sonho, esta substância lenhosa da língua, a que os antigos chamavam silva
(floresta), ainda que se cale, está prisioneiro das representações” (AGAMBEN, 1999, p.29).
Agamben chama de “silva” (tradução latina de “matéria”), com os antigos, a matéria-prima da
língua, a “substância lenhosa da língua”, isto é, aquilo que dá forma. Para os antigos, essa era

74
Conferir trechos desse discurso de ameaça nos links:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/27/opinion/1553688411_058227.html
https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN1MW017-OBRTP
Acesso em 20/10/2019.
259

a matéria desde a qual as narrativas eram feitas, desde a qual era possível narrar. Ao falar dessa
matéria como silva, Agamben toca em um ponto retornante em sua filosofia: fazer a experiência
de tocar os limites da linguagem não é tocar o indizível, pois tocar o indizível não é tocar a
possibilidade de dizer, é estar “prisioneiro das representações”, de modo que, sem a matéria, só
há a representação. Fazer a experiência de tocar os limites da linguagem é fazer a experiência
da infância, isto é, a experiência em que a linguagem aparece como pura potencialidade. Não
como dito, mas como possibilidade de dizer. A lenha da língua, sua silva, sua selva, é então a
matéria desde a qual é possível dizer. Em outras palavras, silva aparece nesse texto de Agamben
como o ponto desde o qual é possível falar, como matéria-prima da linguagem. Essa reflexão
permite com que desloquemos o lugar que a história confere a isso, a esses e a essas que são
silva, capturando-os como matáveis, e possamos desativar essa captura instituindo um outro
lugar ao pensar isso, esses e essas que são silva como lugar-limite que é começo, em que a
possibilidade de dizer assume, aí, um estatuto político onde possibilidade e responsabilidade se
encontram indissociadas. Silva é a possibilidade de dar forma, é o lugar desde qual o é possível
dizer e, por ter sido historicamente capturado, não é apenas o lugar a partir do qual é possível
dizer, mas é o lugar de onde é preciso que se diga.
Daquele de quem herdou “pequeno além de silva”, não herdou os olhos, mas, das mãos
que tremem, conchas (“meu pai alegre sua mão tremendo fingindo ser maestro alguma
música” (PEQUENO, 2019, p.32)). Aquele que era “pequeno além de silva” também era aquele
que iluminava a cidade. Dele ficam as cidades iluminadas, essa herança coletiva, e as conchas,
essa herança pessoal e familiar, que são recolhidas do mar, como flores, com a diferença de que
elas duram. O poema mesmo, “cantilena da outra ponta da praia”, também é uma herança, um
canto, uma oração ou uma prece, algo pequeno, precário e singelo, ao pai que “cantava
secretamente pequenas árias/ de óperas famosas”. O pai, como o tio morto ou o assassino do
tio, era trabalhador, “vendia lâmpadas que acendiam as/ cidades”. Subida e queda estão
implicadas nesse que acendia as cidades e “voltava para casa sempre/ ferido pela doença
haldólica de cair”. Voltar para casa sempre tinha um preço como indica o corte do verso: voltar
significava voltar ferido pela queda. As lâmpadas iluminavam a cidade, mas não iluminavam
seu lirismo; “a sua pele escura” era herdada do ou devotada “ao sagrado coração/ de jesus”,
mas a promessa que ele fez não pôde ser cumprida. Entre promessas, devoções, dedicações,
heranças, a morte atravessa a cena familiar que resta, na casa em Bonsucesso, interrompida,
com uma parte a menos. Entre o que se perde e o que fica, a parte que falta indica figurações
da queda: na queda do silva, a queda do trabalhador; na queda do canto, uma cantilena; na queda
260

do pai, a herança do pequeno, do precário, do frágil e do delicado, como as conchas; na herança


não genética, a herança do que se dá (não os olhos, mas as conchas).
Silva é o pai, é o vendedor, o trabalhador, é aquele que porta a selva no nome, é aquele
que é pequeno, é aquele que dá luz à cidade, é aquele de “pele escura”, é aquele que cai. A
poeta traz o sobrenome que herda do pai ao lado do nome de Antígona, aquela que quer fazer
valer o luto do irmão, proibido pela lei. Em “silva antígona”, a história da poesia será a história
dos silvas, a história daqueles que deixarão de ser “só mais um”, porque a poesia será a luta
pelo luto. Não só o luto de Antígona desliza do privado para o público como também o “silva”
desliza do privado, do familiar, do doméstico, para o coletivo. Entre o dentro e o fora, se em
“silva antígona” a herança do nome remonta à história da poesia, em “silva’s”, do livro Aceno,
vemos que essa história que pode ser a história do pai, que pode ser a história da poesia, que
pode ser a história de milhares de brasileiros e brasileiras, também é a história da extinção de
um amor em um quarto em chamas:

Silva’s

no quarto está a luminária inútil


para os nossos rostos abertos por
esse cinzel de palavras já sabidas até
que some atrás do biombo o selo aba
fado da noite do tapete embolorado
onde deixei caírem as moedas do meu
preço que coalha junto às vagas a visão
comprometida dos ajustes pois sobram
impressões erradas das cenas amorosas
sobre a espuma protegida de cinza
sobre o colchão uterino de plástico
sobre a viga destruída a sangue porque
estamos sempre à força de um segredo
sem número, à esquerda do que é zero
como se esta lava inteira coubesse no
fundo de um copo e o ritual das taças
quebrasse todo o dia aqui porque calo
e acendo a ex-cidade pelo túnel como guia
espesso do que nos sobrou depois de um
ano com todos os filhos perdidos. assim
é tempo de descerem as escadas e então
novamente abro o seu mapa para rezar
o desvio sinuoso dos encontros com os
dedos a postos pelos endereços antigos.
os cômodos mais baratos apressam a
saída. suspensos são os abraços antes
dos elevadores por onde a respiração
cederia ao suor que mancha ou marca,
tarde, a Luz das madrugadas no quarto
onde somente deito oblíqua numa floresta
261

e espero.
(PEQUENO, 2014, p.11)

“Silva’s” se passa em um quarto. Se já falamos em cantilenas e em naufrágios, agora


uma herança portuguesa do “fado” surge do corte, da quebra, do “aba/ fado da noite”. Nesse
quarto, tudo leva a crer que o destino desse amor é pesado, quente, irrespirável. A presença de
“impressões erradas das cenas amorosas” e do pronome oblíquo átono no verso que diz “do que
nos sobrou de um/ ano com todos os filhos perdidos” mostram que aqui se trata de um amor
que se rompeu. “Silva’s” é um poema das sobras da partilha partida. O que sobrou: “sobram/
impressões erradas das cenas amorosas”, “e acendo a ex-cidade pelo túnel como guia/ espesso
do que nos sobrou depois de um/ ano com todos os filhos perdidos”. “Silva’s” é um quarto que
se parece com uma terra arrasada: o colchão uterino é de plástico, a viga está destruída a sangue,
o tapete em fungos. Aqui, todos os números são negativos: “suspensos são os abraços”, sobram
“os filhos perdidos”, as “impressões erradas”, sobra não a casa, mas a “ex-cidade”, “estamos
sempre à força de um segredo/ sem número, à esquerda do que é zero”. Nesse cômodo, tudo
que se quebra, fadado a menos, soma uma “lava inteira”. Ao fim, o quarto se confunde com
floresta, única palavra que, no poema, remete à silva. O poema traz pelo menos essas três
ambientações, quarto, cidade, floresta. Do mais dentro ao mais fora, do urbano ao selvagem,
“silva” abrangeu o pai, a história da poesia e agora passa a abranger uma história de uma ruptura
amorosa ou de um luto. Esse nome ou sobrenome, “silva”, é, ele mesmo, travessia. Fluido, ele
dá passagem e se desloca nas mais variadas situações, havendo um legado em jogo, mesmo que
o que fique seja não a intimidade do quarto, mas os riscos de uma floresta na madrugada, não
o ritual do casamento, mas os filhos que não nasceram – não herdeiros – de um cômodo em
chamas.

Até aqui, uma história da poesia se confundiu com a história de silva, como nome e
sobrenome, como uma assinatura que porta uma linhagem e sua extinção. Os poemas
entrelaçam legado, começo, genealogia, linhagem, filiação, ofício, poesia, política, crítica,
animalidade, extinção. Como o primeiro poema que vimos, “para Cristiana”, o poema a seguir
enlaça o amor, mas, agora, esse também é enlaçado a uma selva:

Cris Lopes, dedico meu livro pra você


262

porque enquanto estamos aqui as artérias ficam apertadas pela região centro
[oeste
e você me dança o corpo grande em fartos
copos de líquido morno vertendo água
enquanto estamos aqui os teus olhos nos
livram dos corredores de emergência
e tua direção búdica nos assegura alguns
dias possíveis de encontros e sono tranquilo
enquanto estamos aqui nesta pequena selva
a luz do fim da tarde combate a minha voz
embargada pela tipografia das minhas digitais
lançadas com estilhaços e o lastro das bombas
enquanto estamos aqui é tua a pega do mercúrio cromo e do algodão
este teu gesto de cuidar das escoriações
que nos restam dos planos da maior usina
de armas tóxicas do planalto central
enquanto estamos aqui entre as palavras
o apreço por elas nesta festa escrita
brasília ateia fogo em seu povo
e nos incendeia
mas, cris, se for destino a destruição
que morramos sussurrando amor entre
rendas
e que possamos saber usar as nossas armas
bombas ou chutes ou sabres
quebremos tudo, meu amor,
enquanto estivermos por aqui
restituamos a luta
as armas
os fios
e mostremos os dentes
em nome dos filhos que não tivemos
em nome da gravidade deste tempo
em nome da constelação do teu sorriso
que, por amor, chega no circuito elétrico
das bombas e as desarma como sabedoria
doce entre alicates e fios
amor, química e sutura para os bombardeios
que todos os dias nos furam.75

O poema acima não está no livro Onde estão as bombas e em nenhum outro. Ele foi
postado no facebook no dia 12 de julho de 2019, como uma dedicatória, na ocasião do
lançamento do livro Onde estão as bombas na Festa Literária de Paraty. Supostamente, o poema
é sem título, mas, como a dedicatória, na postagem, ocupou exatamente o lugar do título, optei
por fazer do que seria a dedicatória o título: “Cris Lopes, dedico meu livro pra você”.

75
Postado no facebook, no dia 12 de julho de 2019. Disponível em
https://www.facebook.com/search/top/?q=Cris%20Lopes%2C%20dedico%20meu%20livro%20pra%20voc%C3
%AA&epa=SEARCH_BOX Acesso em 12/07/2019.
263

É curioso notar que esses dois poemas de amor (esse e o primeiro, “para Cristiana”)
não estão no livro. Muitos poemas de Onde estão as bombas dizem às claras, como devoluções
de bombas que nos são jogadas diariamente. No documentário de Pucheu, a poeta diz sobre
isso: “esses poemas deixaram de ser bombas para mim, talvez, depois que eles foram escritos,
mas são bombas que eu vou lançar para os outros, porque os outros precisam ler e ouvir tudo o
que é dito aí [no livro]”. Isadora Bonfim Nuto, em “Mulher do fim do mundo”: poesia feminista
contemporânea contra a cultura misógina, comunicação apresentada no I Encontro Encrencas
de Gênero, ocorrido em setembro de 2019, no Polo Avançado de Cultura Contemporânea, na
Faculdade de Letras da UFRJ, disse muito bem a respeito desse aspecto nesse livro de Tatiana:

Assim, para um tempo em que tudo está às claras, uma poesia e uma
linguagem também às claras. Trata-se também de uma forma de revidar com
as mesmas armas: de responder à exposição com exposição, com evidência,
com clareza, sem rodeios e sem amenização. Porque amenizar o terror não é
liberar-se dele. Em tempos em que o terror é um projeto político, em que as
mortes não são apenas alegóricas, mas reais, em que os incêndios não são
apenas metafóricos, mas reais, em que as armas e tiros não são apenas
símbolos feitos com as mãos, mas, também, reais, o real se manifesta em toda
a sua crueza, se mostra mais absurdo que o absurdo, e talvez seja essa a única
maneira de lidar com ele: ir direto ao ponto (NUTO, 2019, inédito).

É certo que muitos poemas vão “direto ao ponto”, como, por exemplo, “mulher do fim
do mundo” (“um pedaço de carne assim querendo vara/ mete com força pra ensinar a temer o
corpo/ macho que é sério estoca e põe de quatro/ arreganha a pele simulando arrimo e estupro//
se for loura a gente cai fundo e exige dp anal/ se for gorda a gente troca o nome fura o/ plástico
dá o número errado e goza dentro” (PEQUENO, 2019, p.33)) e como o “poema angélico-
adiliano” (“uma mulher gorda não pode ser assertiva./ uma mulher gorda não pode não sorrir
e/ dar de costas de ombros ou de lado porque/ uma mulher gorda está sempre contente/ pelo
que suportam dela e da sua placidez” (PEQUENO, 2019, p.54)). Nesses dois poemas, há um
discurso, o discurso do opressor. Neles, quem fala é o opressor que, nos dois casos, está atrelado
ao machismo, à misoginia e à gordofobia. Neles, o discurso que vai direto ao ponto se apresenta
como um logocentrismo que se mostra indissociável de um falologocentrismo. Neles, não há
brechas nem restos. Poderíamos dizer que outros poemas, como em “l’air du temps” (“eu nunca
viajei para a europa/ meus colegas de profissão riem/ assim constrangidos quando/ digo séria
não, eu nunca viajei/ para A europa/ fui somente ao paraguai em/ 90 e 91 (de ônibus)”
(PEQUENO, 2019, p.16)), há um discurso (às vezes direto, às vezes indireto, às vezes indireto
livre), predominantemente narrativo, mas, diferentemente dos outros dois, mesmo quando
quase não há metáfora, há, porém, restos (como as muambas em “l’air du temps”), brechas,
264

camadas, dobras, não significando que a redução do transporte da metáfora seja ir “direto ao
ponto”.
Todavia, talvez o amor não tenha entrado no livro porque trazer o amor como bomba e
vice-versa requer tal figura de linguagem. Mas a poeta tampouco abandona as metáforas nos
poemas desse livro, como vimos em poemas lidos até aqui, levando a crer que não se escreve
sobre o real, sobre isso que não cessa de não se escrever, sem mobilizar essa mão dupla que não
abre mão de fiar entre o ponto e a linha, ou que não se vai direto ao ponto a não ser por muitas
voltas pelo litoral, ou que escrever sobre o real é um trabalho pela tentativa de simbolização,
justamente porque nos tiraram o direito a ela. Onde estão as bombas acontece na tensão entre
a metáfora e o literal, entre o complexo e o direto, entre a clareza e a obscuridade. Sem abrir
mão dessa tensão em que o livro mesmo se tece, coloco o amor onde ele não está: junto às
bombas.
Sem saber se essa postagem, oriunda de uma contingência, foi alçada ao nome de
poema, aqui, chamo essa postagem, essa dedicatória, pós-livro e circunstancial, também de
poema. A dedicatória do livro, de fora do livro e posterior a ele, o excede. O poema que não
está no livro começa e segue como uma justificativa ou uma resposta a essa destinação. Nisso
que é postagem, dedicatória, poema, o verso que se repete é “enquanto estamos aqui”. Onde
estão as bombas é um título que indica um lugar e uma pergunta. Se formos ao último poema,
seremos transportados à pergunta “para/ onde/ vamos/ ?”, últimos versos de “necrobrasília”
(PEQUENO, 2019, p.90). No livro, não há resposta para essa pergunta. Dizer “enquanto
estamos aqui” talvez seja outra forma de dizer o que não ainda foi, o que ainda não chegou, o
que fica atravessado. Em versos irregulares em que alguns longos se contrastam com versos
mínimos reduzidos a uma palavra, como “rendas”, “as armas”, “os fios”, o poema tece um
curto-circuito entre dois destinos: o aqui e a destruição.
Nesse curto-circuito, o poema-postagem-dedicatória é ele mesmo não uma escrita do
destino, mas uma tentativa de errar o destino, de não coincidir com ele, de traçar um caminho
outro, atravessando-o. Em um outro poema presente no livro, “these are de days of our lives”,
um verso diz: “escrevendo uma carta para atravessar” (PEQUENO, 2019, p.75). Isso leva a crer
que o modo de se dirigir é um modo de atravessar. O poema, como uma carta, dirige-se a
alguém, à pessoa amada e ao tempo-espaço de agora (“enquanto estamos aqui”). Na destruição
que aparece como fio possível do destino (“mas, cris, se for destino a destruição”), o percurso
do poema se constrói em oximoros: a estranheza do verso “quebremos tudo, meu amor”, se lido
em sua literalidade, reside na junção entre violação e amor em que um chamado de amor é um
chamado à violação. O amor que é chamado a violar também é o amor que, ao final do poema,
265

desarma bombas e sutura. O que eu quero dizer é que não há, no poema, uma oposição aos dois
gestos, mas um deslizamento de um para o outro, de modo que os dois coexistem. Morrer
sussurrando amor entre rendas é tão romântico que parece não anteceder o verso que vem na
sequência: “quebremos tudo, meu amor”. O verso “que morramos sussurrando amor entre/
rendas” romanticamente antecede uma sequência de versos que estão longe de caracterizar esse
romantismo de sussurros e amor entre rendas: “que morramos sussurrando amor entre/ rendas/
e que possamos saber usar as nossas armas/ bombas ou chutes ou sabres/ quebremos tudo, meu
amor, enquanto estivermos por aqui”. Em um livro em que o amor comparece em seu fora,
trazer o amor ao campo do real, ou trazer o amor ao livro, é ler “quebremos tudo, meu amor”
não apenas em sua possível carga simbólica na qual o poema se costura, mas justamente no que
o seu ponto de captura se descola da carga simbólica do poema e atinge o real. Por isso, leio
esse verso como desarticulador do fio semântico que vinha se costurando nos versos
antecedentes e que se alinhava também ao final em que o amor é posto como sutura.
Esse é um poema escrito pelo cruzamento do fio que tece a renda e do fio elétrico de
uma bomba. Nele, o amor é ambos, o que arma e o que desarma bombas, o que golpeia (“e que
possamos saber usar as nossas armas/ bombas ou chutes ou sabres”) e o que sutura (“este teu
gesto de cuidar das escoriações” e “amor, química e sutura para os bombardeios/ que todos os
dias nos furam”). De todo modo, o poema é ele mesmo uma sutura, um gesto de cuidado, de
dedicação, em que a química que escreve é mercúrio cromo e algodão e não o tóxico das armas,
em que o que escreve são as palavras e não o fogo destruidor de Brasília.
O adjunto adverbial “aqui” são as artérias que bombeiam o sangue do coração para o
corpo, também são as vias arteriais da região centro-oeste, são o corpo e a rua, o corpo e o corpo
da cidade, o corpo e o corpo marginal da cidade, o centro do corpo e a periferia da cidade. Uma
das complementações de “enquanto estamos aqui” é “nesta pequena selva”. De “pequeno e
silva” para “pequena selva”, continua a variação do nome que traz o tempo, a história e todas
as implicações políticas das “armas tóxicas do planalto central” e do fogo de Brasília (“brasília
ateia fogo em seu povo”). Amor e política estão fortemente imbricados nesse nome que porta a
selva, que em outros poemas também aponta para a poesia, para a história da poesia, para a
crítica, para um começo, para uma linhagem e para o que se herda. Aqui, novamente, fala-se
em nome de uma falta, dos não-herdeiros, dos não-nascidos: fala-se “em nome dos filhos que
não tivemos”. Além deles, fala-se desde o mais baixo e desde o mais alto: “em nome da
gravidade deste tempo” e “em nome da constelação do teu sorriso”. De novo, dirigir-se à pessoa
amada é se dirigir ao cenário coletivo, dirigir-se à intimidade é se dirigir ao fora, em nome de
uma falta, em nome do tempo, em nome do amor.
266

QUERIDA,

meus peitos pesam muito


vou descansá-los ao asfalto
aberto
depois da visita das armas
sobrou pouco corpo para o
desmonte
os tiros vieram pela direita
atravessaram sua cabeça
naquela esquina do morro
do estácio rua com nome
de papa que nunca ajoelhou
seu menisco velho
numa disputa entre a milícia
o pcc, o terceiro, o cv e o ada
linha primeiro amarela, saca
depois avenida brasil
agora são meus peitos pesando
o fôlego na linha vermelha
fuzis desmontados neste ano
armas são inofensivas
podem ser apenas artefatos
de quem coleciona dor

em análise sempre se repete as


palavras
para permitir a escuta de um outro
sentido

colecionar é juntar
mas também ensinar junto
o que a arma diz é

vamos matar vocês todos


um por um
lentamente

mas eu também tenho raiva


e coleciono dores

só não tenho fuzis


mas bombas aqui
entre as pernas
bombas que também
faço com as mãos
meus peitos pesados
querida
podem atrapalhar o
atirador

matem uma outra


chegarão dez mil
267

explosivas
gigantes fogos de santelmo

e os meus olhos e o meu rosto


revigorarão todas as sementes
cultivadas pelo leite vindo dos
peitos mais pesados desta terra.
(PEQUENO, 2019, p.39-40)

Um poema. Um pensamento em formação. Uma confissão (“mas eu também tenho


raiva/ e coleciono dores”). Uma carta. Derrida começa O animal que logo sou da seguinte
maneira: “Para começar – gostaria de me confiar a palavras que sejam, se possível fosse, nuas”
(DERRIDA, 2011, p.11). No começo de O animal que logo sou, a nudez. Começar esse texto
é começar, pois, pela nudez. Ele continua: “Gostaria de eleger palavras que sejam, para
começar, nuas, simplesmente, palavras do coração” (DERRIDA, 2011, p.11). Nessa frase,
Derrida complementa com uma definição de nudez: palavras nuas são palavras do coração. Na
página seguinte, Derrida dedica um longo parágrafo a nomear amigos em agradecimento e a
recordar os outros encontros e a recepção que lhe foi dada com hospitalidade. Começar com
palavras nuas ou começar pela nudez é, pois, começar pelo coração, isto é, pela recordação,
pela gratidão (isso que está na ordem do dom), pela amizade.
O título do poema supracitado, no modo como aparece, é um vocativo, isso que convoca.
A vereadora Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, favelada, ativista dos direitos humanos,
atuante na CPI das Milícias, e o motorista Anderson Gomes, foram assassinados na Rua
Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, onde essa rua cruza com a Rua João Paulo I, no limite
entre os bairros Estácio e Cidade Nova. Em fogo cruzado no poema, estão não só os grupos
organizados do tráfico (“o pcc, o terceiro, o cv e o ada”) e as milícias, mas a cartilagem da
articulação do Papa e os peitos pesados da mulher remetente; os peitos pesados e as armas
pesadas; o corpo exposto e o corpo militarizado; o corpo da mulher exposto e o corpo armado;
os peitos e os fuzis; o peso dos peitos no corpo que porta a vida e o peso do corpo armado que
porta a morte; os peitos pesados que carregam, que alimentam, e o corpo obstruído; os peitos
que carregam e alimentam e as vias obstruídas; os peitos que carregam e alimentam e os tiros
que atravessam o corpo; o corpo como via e o corpo atravessado, interrompido, assassinado; a
zona exposta do corpo traçada na linha vermelha da cidade, a parte de um corpo de mulher
exposta na zona de risco da cidade, exposta nas linhas que transportam e cortam a cidade do
Rio de Janeiro e as linhas ou vias que por vezes também são áreas de fogo, não viabilizando,
mas inviabilizando, não transportando, mas interrompendo o transporte. Uma das zonas
erógenas do corpo de uma mulher, essa zona vermelha que não deve ser mostrada, que não deve
268

ser trazida à cena, que é obscena quando exposta, a parte por onde também se caracteriza a
maternidade, o desenvolvimento da vida, é exposta nessa zona de atrito, nessa zona arriscada,
limítrofe, entre vida e morte.
Esse poema, como outros, também diz do que se porta, do que se carrega: alguns portam
fuzis, outras, peitos pesados. Ele faz escutar a seguinte pergunta: o que resta? Ele nos diz:
“sobrou pouco corpo para o/ desmonte”, como a “teta mirrada” e como o que “resta dos
acidentes”, em “breve ensaio contra a minha indiferença à cracolândia do jacaré”. Mas ele
também nos diz: os “peitos mais pesados desta terra”. Os peitos atravessam o poema, que
começa e termina com os peitos pesados. No começo estão sobre o asfalto, depois estão em
meio às vias de trânsito, depois são os mesmos peitos que fazem parte do corpo explosivo que
tem bombas entre as pernas e que, no final do poema, carregam a herança: “matem uma outra/
chegarão dez mil/ explosivas/ gigantes fogos de santelmo// e os meus olhos e o meu rosto/
revigorarão todas as sementes/ cultivadas pelo leite vindo dos/ peitos mais pesados desta terra”.
Em “querida,”, o corpo da mulher como aquele que porta o que virá é o contraponto ao corpo
armado que porta fuzis. Enquanto aquele é o corpo ligado à terra, ao cultivo, à vida, esse é o
corpo-artefato, inanimado, ligado à morte. Mas o corpo da mulher também é apresentado como
um campo minado, não só como aquele que sofre a explosão, mas como aquele que explode. O
corpo-vida também é um corpo explosivo, mas não como um fuzil, porque os versos dizem:
“só não tenho fuzis/ mas bombas aqui/ entre as pernas/ bombas que também/ faço com as mãos”.
Nada impede de ler, na cena do poema, um corpo que guarda, literalmente, bombas entre
as pernas. Mas já vimos que as bombas não se eximem da metáfora e da função de metáfora
nesse livro. Ao contrário, elas cumprem uma produção de sentido, um transporte, uma tradução,
uma substituição: bombas são a miséria, o cotidiano violento, o machismo, a misoginia, a
gordofobia, enfim, as bombas são metáfora por excelência, produzindo sentidos diante da
mudez e do estrondo ensurdecedor da bomba literal. Poderíamos ler a cena dos versos acima
em uma dicotomia entre o literal e a metáfora. Mas aqui creio que não se trata de dicotomia,
mas de indecisão. Se a dicotomia entre metáfora e literal é falsa quando ambos produzem
violência, saímos da violência, nesse caso, quando as bombas assumem um sentido metafórico.
Entre o literal e o metafórico, e não ou um ou outro, poderíamos ler um corpo que porta objetos
explosivos e um corpo que, eroticamente, explode. Certamente, uma possível saída da violência
se dá por um desses sentidos, o erotismo, que vem pelo metafórico. Mas vamos nos manter
nesse campo minado dessa zona de indecisão entre o violento e o erótico, porque é só na
indecisão que o erótico se torna uma opção, um outro sentido. Nessa indecisão, a violência vem
do corpo não que porta fuzis, mas do corpo que é alvo deles, e, nessa indecisão, está em jogo o
269

surgimento de outra zona oculta, erótica e erógena: o que queima, o que explode, entre as
pernas. Não o falo, representado pelos fuzis, mas a potência explosiva de um corpo de uma
mulher, ou um dos modos como duas mulheres gozam: “bombas que também/ faço com as
mãos”. Na indecisão, não só as bombas podem assumir um sentido erótico como os peitos
pesados passam a ser um escudo protetor: “meus peitos pesados/ querida/ podem atrapalhar o/
atirador”. Os peitos pesados pesam mais do que um fuzil, porque agora eles atrapalham o
atirador.
Mas toda essa possibilidade de um outro sentido só veio depois da “análise”, depois de
os versos se voltarem sobre si mesmos, pensarem o próprio poema e indicarem outras direções.
Em uma dobra, o movimento dessa análise é reflexivo, volta-se sobre os versos anteriores,
desdobrando-os: se os versos finais da primeira estrofe são “armas são inofensivas/ podem ser
apenas artefatos/ de quem coleciona dor”, o que não lemos sem ironia, os versos que compõem
a estrofe seguinte dizem: “em análise sempre se repete as/ palavras/ para permitir a escuta de
um outro/ sentido”.
No texto “Edmond Jabès e a questão do livro”, em A escritura e a diferença, Derrida
fala sobre poesia e história a partir da dobra, da re-flexão. Ele diz que “a única coisa que começa
pela reflexão é a história” (DERRIDA, 1995, p.54). Nas dobras da escrita de Jabès, Derrida
pinça, na literalidade, a historicidade, e lê o movimento das reflexões de Livre des questions
como poesia e história (DERRIDA, 1995, p.55). É assumindo esse vínculo, esse
entrelaçamento, que leio os poemas de Tatiana Pequeno nesta injunção: a escrita dos poemas é
uma reescrita da história em que verso e pensamento se indissociam, sendo o verso uma escrita
do pensamento.
Atendo-nos à palavra “análise” que aparece no poema, remetemo-nos a uma prática que
se compromete, pela escuta, em cuidar das feridas, dos bloqueios, das interrupções do outro,
propulsando travessias, sentidos e a reinvenção de escritas. A “análise” aqui é uma análise do
próprio poema, que se escuta e transforma os sentidos, a partir de, especificamente, a escuta de
uma palavra em duas, “coleciona dor”. Depois dessa re-flexão, de um voltar-se sobre si mesmo,
o poema se desdobra como uma nova história. O corpo que mata e coleciona dor é transformado
em um pensamento sobre o que se transmite, sobre a transmissão, conceito presente na
psicanálise, na pedagogia e no que aqui viemos falando de herança, de legado, do que resta, do
que se doa, do que se porta. Em “coleciona dor” escuta-se “colecionador” e “co-lecionador”.
Nesse deslizamento, vamos do acúmulo à partilha, do intransmissível ao transmissível, da morte
à vida, da arma ao ensino. No campo minado desse poema, um caminho imprevisível: o
trabalho, o ofício, a prática de lecionar. Traça-se então uma pedagogia, um “ensinar junto”, a
270

partir da dor e com a dor. Uma carta à Marielle, um ensaio sobre o nosso tempo, uma carta às
mulheres, uma carta ao tempo por vir, uma carta aos que ainda não nasceram, esse poema
também é a transmissão de uma pedagogia.
É interessante observar que colecionar é uma questão que retorna em alguns poemas,
mas contra a lógica do acúmulo e do original. Em “l’air du temps”, por exemplo, a “galeria de
falsificados” (“no retorno da viagem a nossa/ vida tinha muita expectativa/ esparramávamos as
compras/ sobre a cama e no entardecer/ de bonsucesso contávamos/ os enormes investimentos/
das galerias de falsificados” (PEQUENO, 2019, p.17)) são as muambas que a mãe comprava
no Paraguai para revender e é essa “galeria de falsificados” que espelha a poesia: “o que minha
mãe não sabe é que deve-se/ a minha poesia à muamba daquela infância/ porque
verdadeiramente era/ aquilo que passava por mim/ e que eu queria/ mas jamais poderia ser meu”
(PEQUENO, 2019, p.18). Essa poesia acontece graças à muamba da mãe, ou seja, a poesia é
aquilo que foi transmitido pelo trabalho da mãe à revelia de uma intenção da mãe. Herdada
dessa “galeria de falsificados”, a poesia, como as muambas, está em uma relação subversiva de
contrabando e fora da lógica do original.
No primeiro poema do livro, “origem”, também aparece “galeria” como “tinha que
haver uma linha que te/ costurasse pow/ uma galeria para a gente pendurar/ o futuro”
(PEQUENO, 2019, p.9). Aqui, como a linha que costura, a galeria se contrapõe ao que
interrompe a vida, como uma linha da memória que permite a continuidade e a projeção. Se,
nesse poema, a galeria como projeção de um futuro foi impedida, em outro poema, intitulado
“galeria”, o que se dá são imagens da infância a partir de um “fio da memória”, a chegada da
avó, que tece a rememoração. Como uma linha que tece um fio narrativo, como a prosa, mas
não exatamente, porque sem pontuação, o fluxo de um verso longo e prosaico que dura quarenta
e três linhas costura muitos fios a partir da chegada da avó como aquela que “subia as escadas
com presentes”, ou seja, como aquela que portava um dom, uma doação, como aquela que
transmitia:

minha avó subia as escadas trazendo nas mãos um embrulho pardo ela vinha
com presentes de comer a herança das farinhas pequenos gestos de amor em
pacotes de cem gramas os pães os fios dos barbantes virando cabelos e laços
da boneca que eu mergulhava no fundo amarelado do tanque e em seguida
punha para tomar a garapa de café preto conosco doce bem doce a minha avó
perguntava como chamava a boneca e eu dizia algum nome estrangeiro coisa
tipo personagem de novela e ela não sabia repetir o nome ela apenas ria e
partia a bisnaga em muitos pedaços para saciar a fome da gente que nunca foi
nem era nem podia ser pequena porque de onde ela vinha a seca tinha levado
todo mundo embora e me contava histórias colocando linhas brancas no
encaixe certo das agulhas finas ela falava de lado mostrando seu cabelo cinza
271

eu dizia vó eu quero ter o cabelo como o seu [...] eu queria mesmo era ser
como ela que subia as escadas com presentes nas mãos ao fim da tarde nos
verões já tão ressecados pelo fio da memória e do tempo ela com o mesmo
vestido estampado que certamente havia ganhado de uma das irmãs dela a
minha avó costurou para mim anáguas e certa vez pedi que fizesse também
para minha boneca com nome de cão mileide e ela fez uma anágua completa
de cambraia para nós e eu pedia que ela repetisse o nome da rua em que morou
rua guanacás porque desde sempre soube que o endereço tinha a ver com o
uso das anáguas seu cabelo cinza e seus pés gastos deitada no chão gelado da
cozinha para diminuir o calor eu via que seus pés iam de muito cansaço e
rachaduras e ainda assim eu queria chegar sempre levando pequenos presentes
sobras de tecidos das roupas que ela fazia para fora os pães a mortadela minha
avó chegava como rainha maga e embora não tenha sabido me ensinar direito
a ler fingia seguir as letras comigo fingindo que sabia como só as pessoas
generosas como um raio de sol podem ser no caminho para fermentar as
farinhas e esquentar o chão em que se costura ensina e cozinha a minha avó
se despedia prometendo fartura caso houvesse leitura [...] (PEQUENO, 2019,
p.37-38).

Muitos fios se entrelaçam a partir da chegada da avó, aquela que veio da falta, de onde
“vinha a seca”, e trazia a farinha como herança: “os fios dos/ barbantes virando cabelos e laços
da boneca” se entrelaçam com o fio das histórias que avó contava “colocando linhas brancas
no encaixe certo das agulhas”, que se entrelaçam com a costura das anáguas que traz em si
alguma costura com a rua onde a avó morou, que se entrelaça com os fios dos cabelos da avó,
“seu cabelo cinza”, que se desejava herdar. Nesse poema, a “galeria” é, sobretudo, transmissão,
isto é, aquilo que sai de si, que é dedicado ao outro, portanto, fora da lógica da coleção como
acúmulo. Além disso, nesse poema, o que se herda não aparece pela lógica do original, mas
aparece positivamente pelo fingimento, como pelo falsificado em “l’air du temps” (“embora
não tenha sabido me ensinar direito a ler fingia seguir as letras comigo fingindo que sabia como
só as pessoas generosas como um raio de sol podem ser”). Nessa coleção de memórias, fartura
e leitura estão diretamente associadas e, tal como em “querida,” a palavra “colecionar” tem o
sentido de “ensinar junto”. Nessa “galeria”, coleção também não é a posse de um objeto, mas
aquilo que se doa, como um presente, que se partilha, como a comida, que se transmite, como
as histórias. Colecionar é o que aponta para esse chão comum, “o chão em que se costura ensina
e cozinha”.
Em “querida,”, na torsão dos versos e dos sentidos haverá, de novo, uma volta que se
repensa, de novo, uma análise, em que ensinar junto não se aparta totalmente de colecionar
dores: “mas eu também tenho raiva/ e coleciono dores”. Porém, o que diferencia essas duas
modalidades de colecionadores é que uns portam fuzis e outros/outras atrapalham o atirador.
Frente ao gozo que mata um a um lentamente, poder fazer das bombas uma metáfora é conferir
ao corpo matável o seu caráter de ser um corpo que goza porque ama e não porque mata. Esses
272

dois gozos se implicam no poema, o da morte e o do amor, e, como um trabalho de transmissão


que se tece cheio de furos no fogo cruzado entre o literal e a metáfora, o poema, como os peitos
pesados, gesta a vida nua, exposta, vulnerável, a ser vingada na amabilidade de corpos que
explodem entre as pernas e na coletividade de muitas vidas, “todas as sementes”, que nascem
de um trabalho, de um cultivo, de uma partilha, de um “ensinar junto”.

O poema “querida,” retoma, implicitamente, um ponto trazido em “museu nacional.2”:


o legado “mulher-bomba”. Sobre “museu nacional.2”, dissemos que esse legado foi constituído
entre perda e excesso, entre o que foi excluído e o que ainda não existia, entre o não-mais e o
ainda-não, entre o que foi tirado e o que excede. Retomando o que foi dito na leitura do poema,
“mulher-bomba” é uma produção entre o que foi arrancado e isso que é mais que mulher. Entre
o débito e o acréscimo e entre o que se é e o que será, o que se é aponta para antes e para o que
ainda vai ser: “sou um animal muito antigo/ também serei mulher-bomba”. Na versão do texto
de Alberto Pucheu publicada como posfácio ao livro de Tatiana Pequeno, não consta o seguinte
trecho que ainda permanece na versão inédita em livro, mas cuja reflexão sobre a “mulher-
bomba” nos interessa:

A “mulher-bomba” é uma decorrência de se viver enquanto mulher, a que traz


um incêndio traumático no corpo, assegurando a responsabilidade que, então,
cabe, senão a todos, inevitavelmente, à mulher, para que essa responsabilidade
possa um dia caber também aos homens. Por viver enquanto mulher, por
experimentar em seu corpo a violência da “humaneza” esmagadora, por fazer
em seu corpo a experiência da destruição de tudo o que é mais sensível, é
preciso à mulher, ao menos a essa mulher-poeta (mas também a muitas
outras), tornar-se uma “mulher-bomba” para instigar o coletivo a se
transformar em uma possibilidade bem além da “humaneza” destruidora.
(PUCHEU, 2019, inédito)

Eu gostaria de atentar para outro sentido, que não exclui o de Pucheu, mas o
complementa, que pode ser acrescentado a essa monstruosidade ou a essa animalidade “mulher-
bomba”, a partir dos versos do poema “querida,”: “só não tenho fuzis/ mas bombas aqui/ entre
as pernas”. Tornar-se esse excesso entre perdas, esse para além da “humaneza”, não apenas
indica a experiência da extinção e a possibilidade de um outro devir que não humano, mas, essa
espécie “mulher-bomba”, além de portar em si a marca do fim, como um animal muito antigo
extinto, também porta bombas entre as pernas. Isso que porta a marca da destruição é um corpo
minado não como um “homem-bomba” que reduz o outro e a si mesmo ao “estatuto de pedaços
273

de carnes inertes” (MBEMBE, 2018, p.64). Bombas entre as pernas dão à “mulher-bomba” o
estatuto desejante e erótico de um corpo intrinsecamente amável e matável. Esse corpo que é
ele mesmo reduzido a um pedaço de carne (de novo, como diz o primeiro verso do poema
“mulher do fim do mundo”: “um pedaço de carne assim querendo vara” (PEQUENO, 2019,
p.33)), tem na estranheza “mulher-bomba” a junção irremediável entre extinção e desejo, horror
e amor. Além disso, leio esse corpo minado como um campo minado, pronto para explodir,
como um corpo “cheio de minas”, isto é, no sentido da gíria. Um corpo que traz em si todo um
coletivo, muitas mulheres, jovens, meninas, garotas, um corpo que gesta a possibilidade de um
começo que se dê com aquelas que têm bombas que explodem entre as pernas, como diz a frase
de um desenho da artista e poeta Priscilla Menezes em que o desenho é um clitóris-estilingue e
o seu título é “uma revolução começará com terminações nervosas”.76
Isso que é um animal muito antigo e que será o que não é exatamente humano, mas outra
coisa que o excede, requer também a compreensão do animal, em Onde estão as bombas, como
o grande outro. Essa estranheza expõe uma diferença estrutural, fundante, que preserva a
selvageria, isto é, também aquelas e aqueles que estão na condição de “silva”, animalizados.
No livro, a forma como se incide a crítica feroz contra a animalização do humano é através da
incorporação até o limite da animalidade como o grande o outro. Afirma-se até o limite essa
animalidade, incorporando-a, incorporando a ancestralidade que ela resgata, o arcaico, a
extinção, a vida nua, o corpo exposto e, sobretudo, o devir sobrevivência que está imanente ao
devir animal. Essa animalidade afirmada até o limite transforma e, ao mesmo tempo, expõe, a
fundação pela exclusão. No traçado de uma genealogia que aponta para a sua extinção, como
vimos ao longo dos poemas, especialmente em “teoria da poesia” e “silva antígona”, não é o
humano ou a humanidade o paradigma da subjetividade, mas o “animal radical”
(BENSUSSAN, 2012, p.31). Transformando a animalização negativa do feminino e da mulher,
da mulher gorda, da pessoa marginalizada, suburbana, todas aquelas e todos aqueles são
convocados em uma linhagem ao mesmo tempo familiar e estranha ao serem evocados em uma
genealogia que vem na figura do pai “mulato cafuzo mameluco/ geograficamente perdido ou
aniquilado” (PEQUENO, 2019, p.72). Traçar uma diferença que preserva a selvageria é
instaurar a possibilidade de um devir outro, de uma metamorfose, de uma transformação, de
uma manutenção da estranheza e, também, de sua insubmissão, de sua insubserviência, já que
os animais selvagens, indomesticáveis, indomáveis, insubmissos, não estão a serviço de.

76
Desenho disponível em
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10213705575655721&set=pb.1295086822.2207520000.157028265
8.&type=3&theater Acesso em 23/09/2019.
274

Em um poema diretamente destinado a’“o assassinato de marielle franco”, esse corpo


que foi criminosamente apagado, esse corpo político, é também um corpo selvagem, um corpo-
terra, corpo-fruta, corpo-animal que tem “a pisada de um búfalo” e “um fôlego vindo das
raízes”: “como apaga um corpo depois/ de correr nele o vinho de tanta/ fruta gorda e suculenta/
você segura nas mãos da vida/ e nela há respiração timbre/ a pisada de um búfalo/ um fôlego
vindo das raízes” (PEQUENO, 2019, p.79). A terra, a natureza, o campo, a selva e a animalidade
estão presentes, de algum modo, desde o primeiro livro de Tatiana Pequeno, Réplica das
Urtigas (2009). Se, no poema anterior, vimos o vínculo entre esse corpo-animal com o corpo-
político, no poema a seguir, esse vínculo se estreita com o amor. Podendo ser lido como uma
carta, já que o título é o apelido da destinatária, isso que é mais íntimo do que o nome, atrelados
à animalidade, à selvageria, ao “assentamento das matas”, estão um “habitante natural” na
estranheza do outro (“onde/ se era estranha”), estão “dois ventres”, uma relação amorosa,
erótica, entre duas mulheres:

dani

O meu senhor estava


implícito no fim do verde
porque amante nunca
ela podia mais
uma pele alérgica com os
ossos vivos gêmeas de silêncio
selvageria.
Apenas no colchão um poço
de cavalos, os termos de deus
ela impedia o que nasceu
na primavera e para mim
pesado era o seu cabelo
a porção mais viva de um
azeite muito fino que me
escorria de verduras onde
se era estranha. habitante natural
em forma de líquido e ouro
sobre dois ventres contra
o interior das serras.
Por acaso o seu nome continha
uma fala, e de noite
os pés iluminavam de branco
a ardósia e a cisterna
para depositar o leite
assoprado a grito pela
ave de rapina:
voava porque a animalidade
era a causa leve de sua beleza
e sobre
o assentamento das matas
275

o pólen fixo nos meus dedos


na boca
ela
era.
(PEQUENO, 2009, p.39-40)

Remeter a silvas e a selvas é se remeter a todo o horror incidido a tudo que é silva e a
tudo que é selva, e é se remeter ao amor que se abre nisso que é selvagem, galopante, erótico,
e que, por ser também desejante, sobretudo se se trata de duas mulheres, é, exatamente por sua
amabilidade, instituído como matável. Em Aceno, a mulher que ama se confunde com o que há
de mais profundamente enraizado na terra. Essa vida amável é matável porque ama e porque
sua vida é tão nua quanto a de uma árvore que só sabe da sobrevivência. Mas, nesse caso, a
associação com a terra é diretamente vinculada ao amor, como se, aqui, desejo e sobrevivência
estivessem intimamente conectados, sem separação, atrelando essas duas características,
capturadas pelo poder que mata (o desejo – novamente, sobretudo se se trata de duas mulheres
– e a sobrevivência), à irremediável condição de amável:

o pinheiro feminino

sabes quando chega a hora de sair


e uma imagem nua do que somos
acompanha mesmo o peso das extremidades?
São quatro as nossas mãos perfumadas por
temperos e dois os vértices para onde sempre
desistimos ou nunca podemos apenas nos diluir
como ânsia e aceno vindos depois do ritmo
e da ruína de um girassol, sede & árvore para
alimentarmos os nossos filhos ou, Mariana,
guardarmos uma imagem amarelada das salsas
como força de um movimento sôfrego e tão curto.
Estou aqui. Como se fosse um fundamento.
(PEQUENO, 2014, p.31)

Aqui, a amabilidade é refundada pela terra. Isso que se aproxima da vida nua vegetal ou
animal da sobrevivência reforça, aqui, a condição de amável, não de matável. Em outro poema
do mesmo livro, a terra, o campo, o trabalho no campo, e o amor, se interconectam novamente
em um cuidado que é cultivo e que é pedagogia como possibilidade um novo começo:

a educação do campo

as crianças sentadas nuas na terra


brilham entre muitos fios de cabelo
em que debulho de vermelho o gado
276

nos assentamentos no cimo e nas matas.


cresce a trança que deixo nascer entre
o cuidado e a roça do milho junino e
também de repente a cidade é a chuva
matinal com sua alfazema de terra e não
deixo de te esperar nesta cama onde
diversas noites sussurrei entre todas as
lembranças da vida litoral
“aqui vamos sempre poder recomeçar”.
(PEQUENO, 2014, p.60)

Talvez Agamben chamasse esse último verso, “‘aqui vamos sempre poder recomeçar’”,
de “feliz demora dos homens sobre a terra”, quando ele diz sobre “o paradeisos, o jardim no
Éden, que Dante define como o ‘lugar eleito/ à humana natureza para seu ninho’”,
(AGAMBEN, 2018, s/p). É essa “feliz demora”, que não pressupõe um meio para um fim, mas
um modo de ser no qual a gestualidade é sempre a exibição de um meio onde se pode começar,
porque prescinde de finalidade, que ele define “como um paradigma genuinamente gestual e
político” (AGAMBEN, 2018, s/p). Resta juntar a isso a demanda de que se reconheça como
“paradigma político” não a gestualidade dos que sempre puderam (re)começar, mas dos que e
das que nunca puderam e por isso expõem, como meio, a impossibilidade mesma de começar,
de agir, dando um uso a essa impossibilidade, transformando-a.
Mas o que eu ia dizer é que um dos eixos que sustenta o livro, a animalidade, a
selvageria, tudo o que está mais próximo da necessidade e da sobrevivência, não está só atrelado
à falta e à perda, a esses e essas que carecem, mas a um risco do excesso, do acúmulo, das
sobras. A condição de matável não só se alia à condição de pobreza, de raça e de gênero, mas
à condição de ter um corpo grande, um corpo que é tido socialmente como um impedimento,
um entrave, como isso que também fica atravessado. Assim, se essa escrita aborda os restos –
não como o que naturalmente se transmite, mas como o que muitas vezes não se transmite
natural ou geneticamente, como o que resta do que não foi transmitido – esses restos, como
sobras, como excessos, são expostos desde o corpo:

[...]
assim como os psicanalistas, os artistas
e os professores universitários,
os editores também não gostam de gordas
mal sabem que mais nova,
tive um jogo da memória
de animais marinhos fortes
sonhava em ser cachalote
e conhecer o oceano profundo
e outras espécies diferentes da minha
277

até os sessenta anos nadando


o corpo enorme e belo
cetáceo
queria
morrer perto de algum arquipélago
e ter minha ossada enorme sendo
justiçada pelo tempo
não virei cachalote
mas poeta
e como tal
também sou versada
na arte da natação
de nunca esquecer
a minha elefântica
memória.
(PEQUENO, 2019, p.57)

O trecho citado é do poema intitulado “antílope-cetáceo” cujo primeiro verso começa


com “sobre as bombas” (PEQUENO, 2019, p.56). Antílope: grupo de mamíferos bovídeos.
Cetáceo: mamíferos marinhos. Essa junção, “antílope-cetáceo”, já é, portanto, um paradoxo. Se
cetáceo deriva do grego Ketos que significa monstro marinho, a junção “antílope-cetáceo” é
uma monstruosidade maior ainda, porque junta, em apenas uma espécie, mamíferos terrestres
e marinhos. Antílope-cetáceo é o impossível, é um mamífero bovídeo-marinho. O poema nos
leva a crer que a afirmação dessa impossibilidade não se incorpora na cachalote, porque, como
sabemos, é apenas um cetáceo. O final do poema indica que a afirmação dessa impossibilidade
acontece em outra espécie: poeta. E aqui o “novo antropoceno” que traz em si o caminho da
extinção parece ser mais animal do que se imagina, assemelhando-se a esse “antílope-cetáceo”
que porta uma “elefântica/ memória” e, versado na “arte da natação”, cada vez menos naufraga,
cada vez menos afunda, como outro poema nos diz, como um complemento: “ainda assim o
mar está aqui e cada/ vez menos me afunda/ persisto a nadadas com braços gordos/ e cansados
mas boio sabida de ser esse/ um dos meus talentos/ boio e seguro a onda para andar/ mesmo no
de fora das linhas” (PEQUENO, 2019, p.43). Se o “novo antropoceno” é esse que traz a marca
da extinção, sendo um “antílope-cetáceo”, mais do que nunca, sua “arte” é a da sobrevivência.
Ele sempre vai ser o que resta dos naufrágios.
A continuação do poema entrelaça ao amor esse modo “antílope-cetáceo” de sobreviver:
“boio e seguro a onda para andar/ mesmo no de fora das linhas/ sigo a fazer anos e deixar minha/
letra neste mar que agora entendo/ precisar ser mais raso para desaprender a ir buscar amor
somente no fundo escuro/ dos oceanos e das natações nos dias” (PEQUENO, 2019, p.43-44).
Nos versos, outra pedagogia ou um aprendizado surge em sua negatividade, no desaprender:
depois da travessia pelo fundo escuro, precisa-se aprender a buscar o amor no raso, onde se
278

pode respirar. O que interessa nisso é a articulação entre essa sobrevivência “fora das linhas”,
que se dá entre o fundo e a superfície, entre dois extremos, entre duas intensidades, nunca em
linha reta, com a busca do amor. No poema, o habitat selvagem de sobreviver é articulado com
um caminho por onde se busca amor. Se os poemas sempre se destinam ao subúrbio, mesmo
que esse subúrbio não seja um lugar, mas o subterrâneo que, na verdade, está na superfície de
todos os lugares, o caminho em direção ao amor, aqui, se assemelha ao caminho do subúrbio.
Em Onde estão as bombas, tudo o que traz a marca da destruição, como silva’s, selvas,
pelos, cabelos, cor da pele, está em jogo nessa economia de faltas e excessos em que o resultado
é o incalculável do dano: herda-se, pois, o incomensurável, “o tamanho tão/ grande e pesado",
como mostra o poema “as eclusas”, que diz de uma memória, que diz de um deslocamento
partindo da “rua quito”, “depois/ de olaria na chegada da penha”, passando pela rima em um
“chevette prata/ cujo adesivo dizia arroz feijão/ saúde e educação” (PEQUENO, 2019, p.63-
65), chegando ao intransponível: “incomensurável” foi a palavra que se herdou da mãe
(PEQUENO, 2019, p.65).77 E aqui voltamos ao começo, à assinatura, ao que se porta, ao que
se herda, entrelaçando esse campo minado de um corpo minado a um campo de amabilidade,
em que o corpo, como a terra, sendo um campo de amabilidade, é um cultivo de vida, um campo
de possibilidade:

a cor da pele

era alto como o rumor das vozes


no quarto ao lado
as mãos sempre suspensas
ao coração
uma experiência negra
do meu pai mulato cafuzo mameluco
geograficamente perdido ou aniquilado
e não me contaram esta outra história
do brasil
um dia levaram amaciante
despejaram atrás no meu cabelo

77
“[...]/ e naquele dia chovia e estávamos/ provavelmente no chevette prata/ cujo adesivo dizia/ arroz feijão/ saúde
e educação e olhei para o/ alto no fim da tarde cinza pelo/ plástico e o carro/ era um abrigo/ uma cavidade naquela
altura/ dos meus poucos e vagos anos/ e soube que nunca haveria mais/ tradução nenhuma para a altura/ das coisas
fossem as palmeiras/ fosse a beleza da canção da cindy/ lauper que tocava naquele momento/ fosse o banco do
carona vazio/ como já havia tempo e foi neste/ mesmo dia que pedi à minha mãe/ que me desse um sinônimo para/
a altura das palmeiras próximas/ do céu e ela me ensinou uma palavra/ que levei muitos anos para esquecer/ e
depois para lembrar o tamanho tão/ grande e pesado daquela palavra que/ não era minha mas que ficou em mim/
a palavra da minha mãe repetindo por/ muito tempo mesmo enquanto eu queria/ perdê-la/ incomensurável/ e eu
não sabia reproduzi-la até que/ repeti até aprender o modo certo de/ saber dispersar pela voz o seu tamanho/
incomensurável/ como a paixão nas tragédias/ incomensurável/ como as mordidas das/ mães” (PEQUENO, 2019,
p.64-65).
279

negociaram meu silêncio


e soube depois que o gesto
da violência
faria uma assinatura em mim
juntei meus pais e parti
restou uma química de
muitos anos
amônia viva entre os dentes
aquele rumor dos mortos
da loucura aberta das afrenias
eram todos os pelos se desfazendo
o fim encontrando um sim
as assinaturas sobre o meu temperamento
escreveram um caminho minado de
raças
eu mulher que também não pode ser louca
(sempre tentam me coroar)
o pai foi como uma parede de hortênsias
experiência negra de múltipla
assinatura
depois que tatuei o paraíso no punho
e vinguei um pouso aqui
sei que a morte me ronda há muito tempo
e para ela mostro os dentes de amônia
o corpo grande talhado de tintas que
nunca pactuaram com a brancura das verdades
nem com os neutros
ela me espreita todos os dias no meu sono
eu acordo e digo
tenho mais um dia para contar a história dos subúrbios
vou escrever para descansar da vigília
em algum futuro a poesia falará
o cimento do muro será mato
e a palavra hortênsia ou planta forte
enfim me vingará de todas as bombas.
(PEQUENO, 2019, p.72-73)

Se não se herda a cor da pele, se não se herda os olhos, se não se herda a genética, herda-
se, muito mais que a genética, o que não é natural, o que não é orgânico, o que não é genético,
o que não é naturalmente transmitido. Herda-se, por exemplo, conchas; herda-se o que fica de
experiências. De “a cor da pele”, a assinatura que se carrega é o gesto da violência. Herdam-se
os gestos de uma experiência: “as mãos sempre suspensas/ ao coração/ uma experiência negra”.
O poema mostra que o gesto é um resto, que ele indica o que ficou. Esse gesto, como resto,
também é uma química, “amônia”, isso que é corrosivo e inflamável. Os poemas que vimos
indicam que as assinaturas, que são supostamente o registro de um começo, são a marca da
morte: a assinatura é um campo minado. Nelas, há todos os começos extintos, todas as raças
que são destruídas: “as assinaturas sobre o meu temperamento/ escreveram um caminho minado
280

de/ raças”. A assinatura ou o que resta é a marca de uma ausência e, ao mesmo tempo, uma
múltipla assinatura.
Aqui, também, falar de uma linhagem é falar de poesia. Na história de um legado tem-
se a inscrição de uma nova poesia. No “rumor dos mortos”, um legado para a poesia. No “rumor
das vozes/ no quarto ao lado”, uma “história dos subúrbios”. Nas cartas endereçadas à pessoa
amada, a linhagem dos marcados pela falta e pela perda. No fogo cruzado da violência contra
o corpo, uma “mulher-bomba” que vive para contar a história da extinção com o mesmo cuidado
de quem escreve uma carta de amor. Nessa nova poesia, uma vida selvagem ligada a uma
experiência de múltipla assinatura, como a do pai, vingará todas as bombas.
Onde estão as bombas é um livro de poemas, ensaios, cartas, narrativas fraturadas e,
sobretudo, é uma reescrita da história, uma reescrita decolonial, uma reescrita selvagem, uma
reescrita operária, de quem vive na perda, na falta, na sobrevivência, de quem revolve a terra –
essa nossa terra, em que a indicação de onde viemos é uma contradição para onde estamos indo,
uma terra incendiada, uma terra arrasada –, uma reescrita operária que, ao mesmo tempo em
que cria pontes e travessias entre amor, luto e política, entre amor e horror, entre pessoal e
coletivo, expõe, no que não chega, no que fica atravessado pelo caminho, o que as implode, o
que as fratura, construindo, desde aí, desse ponto de disjunção, uma denúncia ao desmonte e à
história da extinção, e uma escrita da sobrevivência ao desmonte. Denunciando a história que
nos foi contada até hoje (de cultura do estupro, de misoginia, de machismo, de gordofobia, de
racismo, de preconceitos econômico-sociais) e tecendo uma reescrita da história, Onde estão
as bombas é uma carta para o nosso tempo enquanto um livro que não se reduz em si mesmo,
que está nos livros anteriores a ele e nos poemas que vieram depois dele: “Não posso dizer
que Onde estão as bombas tenha se esgotado do ponto de vista temático – tenho a sensação de
que ainda não terminei de escrevê-lo”, diz a poeta ao Suplemento Pernambuco (PEQUENO,
2019b, s/p). Apontando para fora, para antes e depois, excedendo a si mesmo, Onde estão as
bombas vinga as bombas em um gesto de aceno a quem vive sob o efeito das bombas, vinga os
matáveis na escrita de um novo começo, de um aceno ao “novo antropoceno”.
281

2.3. Coices, cios, trotes e outros troços

“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato”, disse Joaquim, dando início
ao longo poema “Os Três Mal-Amados”, de João Cabral de Melo Neto, em que o amor comera
tudo: “O amor comeu minha certidão de nascimento, minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu
nome” (MELO NETO, 1986, p.365). O amor inclusive comeu “minhas roupas”, “meus
remédios”, “meus exames de urina”, “meus banhos frios”, “[c]omeu até essas coisas de que eu
desesperava por não saber falar delas em verso”, o amor comeu tudo, “comeu minha paz e
minha guerra”, finalmente, o amor comeu até mesmo o “meu medo da morte” (MELO NETO,
1986, p.365-372).
“O cupim comeu minha sorte”, disse o verso de Valeska Torres (TORRES, 2019, p.33)
em poema homônimo, presente no livro de estreia da poeta, O coice da égua, publicado pela
Editora 7Letras em 2019. Se, no poema de Cabral, o amor é um troço que come até o medo da
morte, no poema de Valeska Torres, o troço não é o amor, mas o “traçante” da bala:

traçante
um furo na bermuda do meu cunhado
no jacarezinho
é bala halls perdida na goela
a míngua inchada depois zunido

o cupim comeu minha sorte


passam espirrando inseticida de porta em porta
inseto ruim desses que provocam picadas
é morto depois de umas pancadas
pernilongo é cadáver

qual é o pente que te penteia, homem?


qual é o pente que te penteia?
qual é o pente?
pistola .38
(TORRES, 2019, p.33)

No artigo intitulado Roberto Correa dos Santos: a traça, o traçado da obra, Maurício
Chamarelli (2019) diz o seguinte a respeito da tradução de Luiz Fernando Medeiros (2016) ao
conceito de trace de Derrida:

No dia 4 de maio de 2016, em uma aula pública na Faculdade de Letras da


UFJF, o professor Luiz Fernando Medeiros propunha uma tradução inventiva
e/ou traidora para uma palavra que será meu mote aqui. Na ocasião, dizia o
282

professor, para que se preservasse o gênero do substantivo, o conceito da trace


derridiana deveria ser traduzido não pelo masculino e mais correto rastro
(nem, obviamente, pelo falso cognato traço), mas pelo substantivo feminino
traça. O argumento da preservação do gênero é, me parece, estratégico, no
sentido de que abre uma possibilidade de leitura mais abrangente do que
promete. Primeiramente, promete-se uma correspondência de gênero à qual se
chega por uma curiosa proximidade sonora, habitualmente sacrificada na
tradução mais precisa por rastro. Por outro lado, trace-traça não deixa de
ressoar a inaudível (e intraduzível) troca do ‘e’ pelo ‘a’ na famosa différance
derridiana e não somente na troca da marca do feminino em francês (‘e’) pela
marca equivalente em português (‘a’): aqui, a troca se faz, talvez, audível, de
uma língua a outra (talvez na medida em que a pronúncia das vogais pós-
tônicas no português costuma se apagar: trace... traça... deixando a cargo da
pronúncia do ‘r’ a troca de línguas); mas mesmo essa escuta se dá somente na
medida em que se deseja silenciar aquilo que fala na voz da tradução, a troca
dos gêneros la trace – o rastro. Além disso, a proximidade sonora esconde –
dessa vez totalmente inaudível – a diferença entre o ‘ç’ e o ‘c’, ambos, nas
duas línguas, pronunciados como fricativa alveolar surda [s]. A différance
[s]/[s] escreve – ou antes desenha – aqui o corpo mesmo do inseto, como se a
‘cedilha’, a cobrinha que se estende para baixo do ‘c’ no ‘ç’, fosse o símile
gráfico – quase um caligrama – do pequeno corpo que se dispõe para fora do
casulo, elíptico e achatado, da Phereoeca Uterella, corpo que se retrai e se
estende conferindo, assim, o movimento de minhoca pelo qual, antes da fase
adulta, a traça-das-paredes se locomove levando consigo seu casulo – pequena
casa onde se protege seu futuro de pupa e de voo, como que uma diminuta
arché dessa arquitraça; origem contemporânea de seu caminho, agora ainda
um túnel, uma passagem mais do que uma fonte (na medida em que se abre
para os dois lados); por outro lado, origem de um evento por vir, a pupa, e que
é, ainda, desde sempre atravessada pelo rastro, o resto e as cinzas de outras
passagens: a traça-das-paredes tece seu casulo com terra, poeira e dejetos de
outros insetos (CHAMARELLI, 2019, p.31-32).

A longa citação nos permite pensar que, no poema de João Cabral, o amor, mais do que
troço, é traça, que o traço do amor é, antes, traça, que a escrita do amor é traça, que o amor é
traçado à medida que corrói, à medida que come, que fagocita, inscrevendo-se e afirmando-se
à medida que corrói a identidade, as propriedades do sujeito, tudo o que seria classificado como
“seu”, tudo o que o pertenceria, constituindo-o como possuidor de atributos. No poema de João
Cabral, o amor se inscreve no apagamento do próprio, no apagamento de todos os atributos que
identificariam o sujeito. Se Maurício Chamarelli extraiu consequências da tradução de Luiz
Fernando Medeiros que nos permitiu pensar o traço derridiano como traça, o poema de Valeska
nos coloca a tarefa de pensar o traçante. Seria possível pensar do traço à traça e ao traçante?
O poema da poeta vai se inscrevendo à medida que é traçado, em zigue-zague visual na
página, percorrendo o caminho da bala que se confunde com um caminho de um cupim.
Engendrado no rastro, o poema se inscreve no atravessamento à medida que é atravessado: o
traçante da bala que fura a bermuda do cunhado se confunde com a bala atravessada na goela:
“traçante/ um furo na bermuda do meu cunhado/ no jacarezinho/ é bala halls perdida na goela”.
283

Depois, temos uma formulação estranha: “a míngua inchada depois zunido”. Como ler “míngua
inchada”? Paradoxo? Contradição? Ter-se-ia alojado um “m” na íngua? Ter-se-ia atravessado
direto o “l” da língua e parado no “m” inflamado, inchado, incontornável da pobreza, da
carência, da penúria que se aloja na “míngua”? Teria a traça comido a preposição e o artigo de
“à míngua”, restando apenas “míngua”? Como que em resposta a uma infecção bacteriana ou
viral por um parasita, um verme, a palavra também incha, como íngua, com uma letra a mais.
A propósito, “íngua” comparece em um poema do livro, nos versos “meu pescoço todo inchado
tenho ínguas/ os médicos me disseram que é por me estressar demais” (TORRES, 2019, p.81).
Da íngua à míngua não vamos só do inchaço à escassez, mas somos levados ao inchaço da
escassez, a essa palavra que, em sua escassez, “míngua”, pela subtração, porta o inchaço, a
inflamação em si (“íngua”), e que, pela corrosão de sua primeira letra, aponta para a anterior,
para isso que é mais primeiro e primário, a “língua”, como se íngua, língua e míngua
pertencessem a uma “arquitraça”, e a língua fosse isso que traz em si o inchaço e a insuficiência,
ou a inflamação da escassez, ou como se a língua já fosse ela mesma uma carência inflamada.
Voltemos ao verso: “a míngua inchada depois zunido”. Assim, sem pontuação, a
estranheza da coexistência da “míngua inchada” dá lugar ao “zunido”. Seria o zunido no ouvido
decorrente do traçante, do barulho do tiro? Seria um zumbido que afeta as membranas do
tímpano em decorrência do ruído elevado que passa rente ao ouvido, comprometendo a escuta?
Voltemos ao que seria a próxima estrofe do poema ou a outra volta do ziguezague:

o cupim comeu minha sorte


passam espirrando inseticida de porta em porta
inseto ruim desses que provocam picadas
é morto depois de umas pancadas
pernilongo é cadáver

No poema engendrado no atravessamento, traça-se, no zunido da bala, o zunido de um


pernilongo. Mas antes disso há uma traça, o cupim. Se o amor como traça no poema de João
Cabral termina com o amor comendo até o medo da morte, o traçante que se traça em traça no
poema de Valeska traça a morte. O que resta desse traçado, ou melhor, desse traçante? O último
verso diz: “pistola.38”. Lendo o poema debaixo para cima desse ziguezague, a partir desse
último verso, vemos que ele nos leva a crer que se porta uma arma como se porta um inseticida.
Nesse sujeito oculto da frase “passam espirrando inseticida de porta em porta”, nesse sujeito
que não é o cupim, porque, ao contrário desse, está no plural, não sabemos quem “passam
espirrando inseticida de porta em porta”, como não sabemos de onde vem o “traçante”, como
284

não sabemos de onde vem o furo na bermuda, como se provindo de uma picada repentina de
um inseto.
Como sabemos, balas perdidas são sempre balas achadas, elas atravessam sempre os
mesmos corpos, como corpos que transitam na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de
Janeiro. A propósito disso, cito Alberto Pucheu a respeito de um deslizamento que Tatiana
Pequeno faz da “zona norte” para “zona morte”:

deslize mínimo de uma letra, uma alteração de uma letra que ganha um
puxadinho gráfico, um ínfimo deslocamento de um grafema, a desviar, sem
sair do lugar, a zona norte para a “zona morte” ainda cortada pelo suspense do
enjambement – “zona/ morta” –, superpondo-as ao nos dar a real da periferia
e das comunidades de nossa cidade (PUCHEU, 2019, inédito).

Nesse deslizamento cujo inchaço se dá por mecanismos trapaceadores que a pobreza


impõe, cujo inchaço se dá por condições de precariedade, a letra “ganha um puxadinho gráfico”,
uma perna a mais como uma bengala, para indicar que o norte no Rio de Janeiro é a morte, para
indicar, a partir desse inchaço, a coincidência entre norte e desnorteamento de vida. É o que diz
o que resta desse traçante, como vemos na última estrofe ou na última volta desse ziguezague
como um caminho sem volta:

qual é o pente que te penteia, homem?


qual é o pente que te penteia?
qual é o pente?
pistola .38

Depois disso não seria forçoso dizer que o poema leva a crer que se porta “um inseticida
de porta em porta” como se porta uma arma. Aqui, não é o amor que escreve como traça, aqui
o amor não come o medo da morte, aqui, do traçante, resta a “pistola 38”, atravessada
(visualmente no meio da página), mas como se a traça ou o cupim voltasse ao seu início, ao
início de onde veio o traçante, como se esse caminho ou esse traçado em ziguezague não fosse
senão um caminho circular, que volta sempre ao mesmo ponto, que retorna para onde começa
o caminho sem volta. Mas antes de chegar a esse começo do fim, o poema vai nos atravessando
como a traça ou o rastro em Derrida, que “inscreve em si mesmo o reenvio ao espectro de outra
coisa” (DERRIDA, 2008, p.33), ludibriando-nos como em um jogo de azar em que a sorte é
comida desde a largada, já que somos confundidos a cada volta desse trajeto: bala de revólver
e bala halls, zunido de inseto e zunido de tiro, traçante e traça/cupim. Por fim, parece que até
uma música atravessa o poema. Chegamos a escutar: “Nega do cabelo duro/ Qual é o pente que
285

te penteia/ Qual é o pente que te penteia”, indiciando a quem se dirige o traçante: a pessoas
negras, atestando que essa violência está diretamente relacionada ao racismo. Nossa escuta,
porém, logo desliza para a resposta: o pente se refere a como é chamado coloquialmente o
carregador de munição destacável de uma arma de fogo. No poema de Cabral, o amor comeu o
medo da morte. No poema de Valeska, a traça traçante traça, na sorte, esse caminho
supostamente aleatório, a morte.

“Depois de velha e pelancuda o que me resta é ser comida pelas traças” (TORRES,
2019, p.32). Esse é um verso do poema anterior a’ “o cupim comeu minha sorte”, chamado
“Carne moída”. Ele também se passa como um jogo de azar: “Rolam os dados/ no tribunal/
vencem/ mais fortes/ de pele/ de olhos/ de cabelos/ de sacos” (TORRES, 2019, p.31). É nesse
rolamento de dados que no começo do poema estamos no “meio fio do Ceasa”, depois, por um
lance, estamos no “cemitério de Inhaúma”, quando então lemos “Búzios. General Osório. Zona
Sul” que desembocam nas “ruas de São Paulo” (TORRES, 2019, p.31-32). Assim como falamos
que os poemas de Bruna Mitrano mostram não a cicatriz, mas a ferida aberta, poderíamos dizer
o mesmo dos poemas de Valeska: “Torrando no meio fio do Ceasa,/ homens armários me olham
de esguelha,/ sabem que ferida aberta é lugar pra mosca botar ovos” (TORRES, 2019, p.31). A
ferida aberta coincide então com o eu que fala. Depois dessa cena de três versos, somos
remetidos a um dístico: “Abobrinha carne moída arroz feijão/ o prato à mesa” (TORRES, 2019,
p.31). Então, “Rolam os dados” dá início a uma longa estrofe de versos curtos:

Rolam os dados
no tribunal
vencem
mais fortes
de pele
de olhos
de cabelos
de sacos
no cemitério de Inhaúma
um após o outro.
Pretos acumulando cargas
dentro de caminhões baús
o burrinho sem rabo empenando
um sol a pino
gargalha
ele ri de mim
ele ri de todos
286

menos
das sungas maiôs
(TORRES, 2019, p.31)

Rolam os versos como rolam os dados no tribunal: entre a Avenida Brasil (onde se
localiza o Ceasa) e o cemitério de Inhaúma, entre o lugar da venda de alimentos e o lugar da
putrefação da carne, o prato à mesa, mas, antes do prato à mesa, entre o centro de abastecimento
de mercados e o prato com abobrinha, carne moída, arroz, feijão, entre o lugar em que se vende
o que será a comida no prato e a comida pronta no prato feito à mesa, um entrave: “um lugar
pra mosca botar ovos”. E então vemos que o “prato à mesa” é o que articula e sapara o “lugar
pra mosca botar ovos” com o “cemitério de Inhaúma” (estruturalmente, o dístico também se
localiza entre as duas estrofes, o tríptico inicial e a longa estrofe supracitada composta de
dezenove versos). Como no Não de Bruna Mitrano em que a pobreza transporta o excesso, a
sobrecarga, aqui, há a descrição literal disso: “Pretos acumulando cargas”. Não sabemos se
quem torra no meio fio é o eu que é olhado pelos “homens armários” ou os “homens armários”.
Pode ser os dois, mas a “ferida aberta” que coincide com o eu que é olhado leva a crer que quem
torra no meio fio feito carne é o eu que está em jogo na ação, sofrendo-a, que o eu que torra é
o eu de Torres, de Valeska Torres. A cena se transforma, mas “torrar” parece ser o estado que
permanece: torra-se no meio fio do Ceasa, torra-se no “sol a pino” que “gargalha”:

ele ri de mim
ele ri de todos
menos
das sungas maiôs

Búzios. General Osório. Zona Sul

Praias e mais praias com gente miúda na quarta-feira


o dólar em alta magra sexy salto 15 saindo da boate um escândalo
na bolsa da mulher um garoto baleado correndo entre os carros da avenida
Nossa Senhora de Copacabana, onde foi que a Senhora se escondeu?
(TORRES, 2019, p.32)

Nesse trecho, o deslizamento de que vínhamos falando assume uma radicalidade: não
só muda o cenário, a paisagem, o lugar da cena, da Avenida Brasil e do cemitério de Inhaúma
para zonas ricas da cidade e do Estado do Rio, como “Búzios. General Osório. Zona Sul”, mas,
em um mesmo verso, o deslizamento se dá de uma palavra para outra: “o dólar em alta magra
sexy salto 15 saindo da boate um escândalo”. Mistura-se um vocabulário da economia com os
padrões esperados da beleza no movimento em que “o dólar em alta” deixa de aparecer no
287

masculino ao concordar “magra” com “alta” e não com “dólar”. Da expressão “o dólar em alta”,
“alta” é deslizado como adjetivo que puxa os outros clichês da propaganda mercadológica. A
segregação espacial e social que se incide também pelo que queima (o sol que “ri de todos/
menos/ das sungas maiôs”) não vem sem atrelar o símbolo do capitalismo (“o dólar em alta”)
com o padrão de beleza imposto pela mesma sociedade de consumo. O deslizamento dentro do
próprio verso encena o engendramento múltiplo da mesma máquina. O jogo de imbricação de
cenários opostos se reitera aqui também no jogo de opostos “homens armários” x “gente
miúda”, como se o foco se distanciasse e a visão da praia se tornasse muito menor, porque muito
mais distante geograficamente, do que a visão, aproximada em zoom, porque muito mais
próxima geograficamente ou espacialmente, de quem está no meio fio do Ceasa. A ausência de
pontuação em muitos momentos, os enjambements e as cesuras fortalecem ainda mais o
deslizamento e a coexistência de sentidos dissonantes: “o dólar em alta magra sexy salto 15
saindo da boate um escândalo/ na bolsa da mulher um garoto baleado correndo entre os carros
da avenida”. Nessa estrofe, a que se remete o escândalo? Seria “um escândalo” a mulher, ou o
dólar na bolsa da mulher, ou, ainda, o “garoto baleado correndo entre os carros”? Na leitura
corrida dos versos, nos vemos em uma suspensão do sentido quando lemos o final do terceiro
verso emendando com o quarto: “um escândalo/ na bolsa da mulher um garoto baleado correndo
entre os carros da avenida”. À primeira vista, lemos: “na bolsa da mulher um garoto baleado”.
Isso seria um escândalo mesmo. Mas, com o decorrer dos versos, vemos que uma coisa desliza
sempre para outra coisa de si, que o dólar puxa um padrão de beleza imposto pelo mercado, que
a violência desse mesmo capitalismo puxa o garoto baleado, de modo que vão se dando, de
forma abrupta, variações de uma mesma economia de violências.
Até que esbarramos na clareza da pergunta formulada com todos os elementos sintáticos
devidamente colocados: “Nossa Senhora de Copacabana, onde foi que a senhora se escondeu?”.
A trava, aqui, parece ser não a larva, mas a vírgula no lugar certo, o ponto de interrogação no
lugar certo, a pontuação presente no verso conforme a norma, a pergunta feita em português
claro e correto. É essa pergunta que não tem resposta que parece compor mais um
desdobramento do escândalo. Tendo relação com essa pergunta, a epígrafe do livro, do poeta
militante do movimento negro que vem dos subúrbios cariocas, Éle Semog, nos diz: “Não posso
rezar todos os dias,/ a igreja abre às sete e a fábrica às seis./ Então, senhor, perdoai-me”
(SEMOG in TORRES, 2019, p.13). De outro modo, encontramos a resposta à pergunta acima
em outros versos de outro poema do livro: “deus não anda entre os meus/ sobrevoa em
helicópteros/ arranha-céus/ onde dorme em colchão de penas” (TORRES, 2019, p.23). É nessa
impossibilidade de conciliação entre o alto e o baixo, que, assim como o Não de Bruna Mitrano,
288

esse livro de Valeska se dedica ao mais baixo. No poema “Atenção ao usar a creolina pois é um
produto tóxico”, começamos embaixo, sob o fogo, sob um fogo que reenvia a outro lugar mais
baixo:

crepito sob o fogo da passarela vinte e dois


o cheiro de creolina chamusca

🔥 em chamas 🔥

a carne na laje em brasas


domingo,
foice segunda
vigiam até o bujão de gás da minha casa

o sal grosso que tempera a pista salgada de acari

na bifurcação o despacho duas cabeças de galos raspadas


defumador em uma das mãos de maria conga na outra segura a crista dos galos
[pretos
é preto o galo que ela segura pela crista

os dois corpos minúsculos em cima do prato de barro

sob o luar do sangue rubro escorrendo das cristas que cantaram


as luzes desaceleram do carro blindado
o senhor tranca rua olha de soslaio os galos pretos pisados pelo coturno do
[soldado

soldado 1 diz:
galo calado não faz raiar do dia

soldado 2 diz:
corta as penas desse galo pra minha família cumê

dois galos sem cristas escaldados em banho maria depenados


três tabletes de tempero de galinha
a morte que tem cheiro de creolina quando ando pela passarela vinte e dois na
[avenida brasil.
(TORRES, 2019, p.19-20, grifos da autora)

Analisando o poema por cenas conforme os lugares em que elas se passam, teremos uma
primeira cena: “passarela vinte e dois”; segunda cena: “laje”, “minha casa”; terceira cena:
“acari”; quarta cena: “passarela vinte e dois”. Na primeira cena, um produto tóxico, comumente
289

usado como desinfetante e popularmente chamado de “creolina”, é queimado na passarela vinte


e dois. Dando forma às chamas, não apenas escrevendo-as, não só lemos as chamas, mas as
vemos, desenhadas, como se as palavras não bastassem, como se precisassem de um excesso
de forma para enxergar às claras: “🔥 em chamas 🔥”. Na segunda cena, há a duração de um
tempo que, porém, parece interrompida: “a carne lateja em brasas/ domingo/ foice segunda”.
De difícil interpretação, no ouvido que escuta a passagem do tempo, “foi-se”, temos a
imposição, pela letra, de uma ferramenta agrícola que, é preciso dizer, junto com o martelo, é
símbolo que tradicionalmente representa a classe trabalhadora, pelo comunismo e pelos
partidos comunistas, “foice”. Seria, então, “segunda”, o primeiro dia da semana em que se
trabalha, em contraposição ao domingo da carne em brasa na laje? Não se sabe. O poema parece
caminhar em sulcos, queimando o tempo, reduzindo-o a cinzas, à escuridão (“sob o luar do
sangue rubro”, “as luzes desaceleram”, “galo calado não faz raiar do dia”), reduzindo as cenas
à coisa, ao fogo, indo ao ponto em que queima. Há algo em comum que liga o que está na
passarela vinte e dois e na laje ou na “minha casa”: o fogo, a chama, a brasa, a explosão. Nessa,
não é a creolina, mas a carne que está “em brasas”. Da carne que queima em “minha casa”,
somos levados à “pista salgada de acari” (“o sal grosso que tempera a pista salgada de acari”).
Parece que lá, como a carne, como a creolina, também há algo que está queimando.
Depois disso, lemos uma bifurcação. Mas essa bifurcação é visualmente encenada no
verso “o sal grosso que tempera a pista salgada de acari”, que, graficamente, compõe uma
bifurcação entre a estrofe anterior e a seguinte. E então, o ritual, o sacrifício: “na bifurcação o
despacho duas cabeças de galos raspadas/ defumador em uma das mãos de maria conga na outra
segura a crista dos galos pretos/ é preto o galo que ela segura pela crista”. No sacrifício
ritualístico, a ênfase na cor do galo: a cor preta aparece duas vezes, ratificada, “a crista dos
galos pretos/ é preto o galo que ela segura pela crista”. Mas o que está em jogo nesse ritual,
nessa bifurcação, é menos ele em si e mais para onde ele desliza: “o senhor tranca rua olha de
soslaio os galos pretos pisados pelo coturno do soldado”. O que está em jogo nesse ritual é a
violência pelo qual ele é atravessado: sob o coturno do soldado, o galo preto deixa de pertencer
à esfera ritualística por um fator externo ao próprio ritual, o soldado. Como o coturno, o discurso
direto atravessa o poema. Nas falas dos soldados, o galo é destituído da esfera do sagrado e
restituído à função da necessidade, da alimentação. Isso leva a uma complexidade da violência:
a do soldado, que desrespeitou o ritual, isto é, violou a tradição de matriz africana, cometendo
um crime de intolerância religiosa, mas, mais complexo que isso, é que o soldado se assemelha
a um faminto, ou, se não ele, ao menos sua família, e isso fica explícito na fala do segundo
290

soldado, quando ele diz “corta as penas desse galo pra minha família cumê// dois galos sem
cristas escaldados em banho maria depenados/ três tabletes de tempero de galinha”.
A ambiguidade do poema é tamanha que a violência se complexifica ao não sabermos
se a fala do soldado justifica o ato de violência contra o ritual para restituir o sagrado à
necessidade, para destituir o sagrado em nome da alimentação de sua família. Nesse sentido,
ele seria carrasco e vítima ao mesmo tempo. O soldado não deixou o galo lá depois de pisado,
não jogou o galo fora, não ficou indiferente ao galo em uma violência que seria puro gozo, ele
disse: “corta as penas desse galo pra minha família cumê”. É claro que é possível fazer toda
uma leitura metafórica desse poema, recaindo na imagem do animal, preto, sacrificado, pisado
pelo soldado, que remete às condições em que pessoas pobres, negras e faveladas são
submetidas na profundidade e na superfície dos bairros do subúrbio e da periferia do Rio de
Janeiro. O uso do termo “banho maria” também se contrapõe ao “maria conga”, usado mais
acima, em uma contraposição de tradições de marias. Mas, a meu ver, lendo pela ferramenta da
letra, lendo pela letra como ferramenta, a sequência das falas dos soldados complexifica a
leitura, colocando o soldado um uma posição dupla, sem resolução, complexificando os
personagens da pobreza.
Ao final, o último verso retoma a primeira cena, ao lugar do começo, a “passarela vinte
e dois”, quando ainda não sabíamos de que o cheiro de creolina no início do poema se tratava
de morte. O elemento novo nesse retorno, a morte, retroage à carne, ao galo preto, ao “cheiro
de creolina”, que nos faz ouvir “crioula”, que nos faz ouvir preconceito, violência, morte, crime:
escuto essa palavra aqui também porque ela aparece em outro poema, em outro contexto, como
“crioulla”, fazendo menção aos criollos, que, na América Espanhola, eram os descendentes de
espanhóis que nasciam nas colônias e não na metrópole, tendo sido aportuguesada para
“crioulos”, assumindo-se como um termo racista e classista, preconceituoso, que passou a ser
sinônimo de não-branco, abarcando mestiços, mas, sobretudo, negros. Em poema dedicado à
Argentina (“para a Argentina”), com um título que se indica como uma abertura a um campo
de possibilidades, “(Insira uma frase de Eva Perón)”, temos a recorrência da palavra “crioulla”
como tempero, salsa criolla, muito usado para temperar carnes, mas que, no poema, aparece
especificamente ligado a um enchido, a salsicha: “da goela/ o pollo descendo/ abaixo até o/
engasgo/ yo soy soy yo/ a balsa que atraca no rio/ Paraná a faca que corta o/ pão massudo
dentro/ salsicha temperada de salsa crioulla” (TORRES, 2019, p.79-80). O engasgo do eu, um
eu engasgado, um eu que é um engasgo, um eu atravessado, um eu atravessado pelo frango,
uma goela atravessada, se confunde com a balsa que atraca, com a faca que corta, com a
salsicha. É nesse sentido que, em “Atenção ao usar a creolina pois é um produto tóxico”, a
291

morte se volta à carne, ao galo preto, ao “cheiro de creolina”, falando de um sacrifício animal
como se não estivesse falando apenas só disso, falando de uma morte como se não estivesse
falando apenas dessa morte. É nesse como se que, “sob o fogo” e “sob o coturno do soldado”
se tornam o mesmo lugar em que o limite que restringe ao animal deixa de existir.

Voltemos ao verso “Nossa Senhora de Copacabana, onde foi que a Senhora se


escondeu?”, de “Carne moída” (TORRES, 2019, p.32). Não sabemos se é Nossa Senhora que
responde, na estrofe seguinte, “Anteontem pintei as unhas”, como quem diz “aqui estou eu”,
isto é, como quem não está, como quem não responde, como quem se esqueceu de estar. Os
versos seguintes dizem: “Anteontem pintei as unhas/ de vermelho/ pelas ruas de São Paulo/ o
gongo soou um colapso nervoso, gritou comigo/ não revido”. Poderia ser a resposta de Nossa
Senhora à pergunta feita a ela, quem sabe ela resolveu sair da Avenida Nossa Senhora de
Copacabana e ir pelas ruas de São Paulo... Mas é provável que seja o eu do poema em uma nova
cena. Desses santos, de Nossa Senhora a São Paulo, não sabemos quase nada, a ausência de
pontuação e a presença pontual dela voltam a confundir os sentidos (“o gongo soou um colapso
nervoso, gritou comigo/ não revido”). Quem gritou? O gongo? Não sabemos. Seria demais
exigir conexão de um coice. Desconexa como um coice repentino, ou como um “colapso
nervoso”, essa cena atravessa o poema. Aliás, é como um “colapso nervoso” que essas cenas se
articulam no ponto em que as desarticula, uma desliza para a outra, mas uma é diferente da
outra. Como se fosse resto mal processado, o poema, como uma “crise de nervos” ou como uma
“carne moída”, aponta, ao final, o que sobrou desse processo:

Acumula-se inacabados:
cinco ou seis projetos arquitetados a essa hora do dia
remendados com fita crepe.
dois ou três possíveis relacionamentos que nunca me
disseram hora ou lugar de encontro.
um quebra-cabeças, duas costuras no rasgo de minhas blusas,
46 horas mal dormidas.

Depois de velha e pelancuda o que me resta é ser comida pelas traças


em mim cabem
vigas aço concreto camisinhas cacos estiletes balanças dedos esmalte
[absorvente fígado
queijo nojo nojo nojo nojo nojo
(TORRES, 2019, p.32)
292

Nesta lista, o que se soma, o que se acumula, na equação, não são as resoluções, mas o
que resta de “inacabados”, incompletos, interrompidos. Um acúmulo ou excesso de fracassos:
remendas, desencontros, furos, desencaixes. O corpo, ele mesmo, assume esse lugar de
acúmulo: “em mim cabem/ vigas aço concreto camisinhas cacos estiletes balanças dedos
esmalte absorvente fígado”. Esse corpo que já não é mais um corpo, que já excedeu ao corpo,
que comporta “vigas aço concreto”, é um corpo de sobras, desde a pele (“pelancuda”), além da
pele: esse corpo não é mais só orgânico, biológico, mas também artificial, feito, por exemplo,
dos mesmos pilares que estruturam um prédio, feito também de objetos (“camisinhas”,
“estiletes”, “balanças”). Já não é um corpo orgânico, mas um corpo em que o orgânico e o
artificial o constituem igualmente, tal como um corpo comível pela traça, que come desde papel
até concreto. O que resta desse poema intitulado "Carne moída” é um corpo comível pela traça.
O último verso, como uma traça que come até o queijo que cabe nesse corpo, a traça vai
traçando um caminho que cresce inversamente proporcional: à medida que come o queijo, as
palavras não diminuem, mas aumentam, e o queijo se transforma em um “nojo” crescente. O
deslizamento de “queijo” para “nojo” pela assonância da sílaba /jo/ é o deslizamento da palavra
que, comida pela traça, não desaparece, mas é fagocitada, isto é, vai se alimentando de um
corpo, reproduzindo-se nele, transformando-o à medida que o destrói. Sabemos então que, ao
contrário do que imaginávamos, o que resta não é o corpo comível pelas traças, mas o que, dele,
resta: o nojo.

Os poemas “Carne moída” e “O cupim comeu minha sorte” pertencem à primeira seção
do livro, “Ferrete em brasas”. O livro é composto por quatro seções: “Ferrete em brasas”, “A
bufada”, “No cio, relincha” e “O coice”. Em “Carne moída” falamos do acúmulo que não é da
ordem da lógica capitalista, ao contrário, é um acúmulo de fracassos, de inacabamentos. Essa
ideia aparece em outro poema dessa seção, em que o amor também comparece. O primeiro
poema em que o amor comparece explicitamente, ao contrário da expectativa, não é na seção
em que há o cio, mas, antes, na seção em que há “Carne moída” e “O cupim comeu minha
sorte”. O amor aparece em um lugar que também contraria as expectativas. Ele aparece no
“Hospital Rocha Faria” (TORRES, 2019, p.27). Mas leiamos esse poema junto ao anterior a
ele, “Alagada na merda”, porque em ambos há o acúmulo como procedimento que se organiza
pelo princípio da retenção, do entupimento, do congestionamento, do que impede a passagem.
É em meio ao extremo desse entupimento que aparece pela primeira vez o amor:
293

✨ o paetê ✨
a miçanga e a corda arrebentam do macramê
estouram tubulações no apê do meu amor

era para ser verão


mangueiras jorrando

a piscina de 5.600l entupida até a borda

era para ser verão


se não fossem os esgotos em transbordo na estrada da água grande
nossos chinelos enlameados
se não fossem as goteiras no brt da penha I

chicletes
grudam na poltrona da que me deito
nos braços do meu amor

peço que no hospital rocha faria – onde na veia tomam soro


os velhos esses de pelancas e mordidas
que um dia eles se deitem possam queimar ainda o cachimbo
e que enfermeiras possam limpar o que um dia,
feridas.
(TORRES, 2019, p.27).

Como diz a poeta Natasha Felix em prefácio ao livro, Valeska Torres “usa
absolutamente tudo à sua volta como ferramenta. Somos jogados às avenidas, ruas, odores,
celebridades, objetos, emojis, cortes de carne” (FELIX in TORRES, 2019, p.8): como as
chamas foram colocadas entre chamas em “Carne moída”, o paetê é colocado entre paetês, a
palavra paetê aparece entre a forma paetê, entre esse brilho que não chega ao leitor sem um
estranhamento quase cômico pelo destaque a uma literalidade do brilho lá onde não tem brilho
nenhum, em um poema intitulado com o nome de um hospital. Leio esse brilho todo como isso
que ofusca, um brilho estourado, tão excessivo que estoura e ofusca, como a claridade
insuportável de um verão escaldante em pleno meio-dia. Leio dessa forma porque, começando
por uma imagem de tecelagem manual, ao longo do poema vemos que ele todo é resistência ao
alinhavamento, que ele não se traça alinhavando, mas rompendo, estourando, arrebentando. Da
cena doméstica, passando pela rua, chegando ao hospital, é no excesso que o poema se faz: no
excesso de entupimento até o transbordamento. É esse transbordamento, o que excede os
limites, que rege o poema na contradição entre o que era para ser e o que é: “era para ser verão”
aparece duas vezes; na segunda, lemos “era para ser verão/ se não fossem os esgotos em
transbordo na estrada da água grande/ nossos chinelos enlameados/ se não fossem as goteiras
no brt da penha I”.
294

O poema é esse desencaixe entre o verão da “piscina de 5.600l entupida até a borda” e
o verão da “água grande”, o verão onde a piscina é entupida e onde o esgoto é entupido. Como
um devaneio, como quem fantasia, como quem sonha acordada, esse poema explosivo em que
macramê, tubulações, mangueiras, piscinas, chicletes, esgotos estouram, os versos “era para ser
verão/ mangueiras jorrando// a piscina de 5.600l entupida até a borda” são ilhados no poema,
ou, dizendo de outro modo, essa estrofe atravessa o poema em que o que impera são os
impedimentos, os atravancamentos de um verão, um verão fracassado.
O paetê inicial, deslocado, em um verso só, parece dar início ao estouro do poema: do
mínimo ao macro, do artesanal, do ínfimo, do miúdo, do micro que vai aumentando e se
agigantando, passando de uma miçanga de cordão a uma goteira, passando do doméstico para
o coletivo, passando do “apê do meu amor” para o “brt da penha I”. Todos ligados por um fio
comum: o estouro, o transbordamento. O transbordamento não é transportado senão por um fio,
por uma conta, em conta-gotas. Parece que tudo se passa em um transporte, em um coletivo,
em um transporte público: do paetê ao hospital, o objeto transporta o íntimo e a exterioridade,
a casa e a rua, o amor e o horror.
No hospital, o ponto final desse caminho a conta-gotas, para-se no lugar que não é senão
um dos paradigmas do estado de exceção, onde os limites da bíos e da zoé são indiscerníveis,
onde os limites também estão excedidos, estourados. Sem alinhavamento, mas por irrupções,
vai-se à veia: o modo como se fala dos velhos é “esses de pelancas e mordidas”, o corpo é a
metonímia para se referir aos velhos, a vida nua é a metonímia, tomam-se os velhos não por
seus nomes, mas pelo estágio da vida marcado no corpo, “os velhos esses de pelancas e
mordidas” (pelancas e mordidas, esses excessos). Esses, “os velhos”, nos limites excedidos,
tomando soro nas veias, também são parte de um conta-gotas e, talvez, de uma vida que está
“por um fio”. De algum modo, esse trajeto se acumula em um transbordamento que desemboca
em uma súplica: é a precariedade que esteve em jogo ao longo de todo o caminho, e, no fim,
pede-se um mínimo de prazer a quem padece da precariedade no corpo. Da casa à rua e ao
hospital, o poema gira em torno disso que não tem contenção, como o esgoto em
transbordamento e a ferida aberta.

Vamos ao poema anterior a esse, “Alagada na merda”:

açoitam-se jumentos e queimam-se cascos na estrada velha da pavuna


295

a fogueira crepitando transformando o que um dia vivo no carvão que no outro


[fagulhas

descamo tenho queimaduras mais profundas que os bueiros da minha cidade


que entopem a qualquer garoa fina
enquanto eu nunca entupo depois de uma tempestade

a água até o tornozelo

pingo

o balde escorrendo pela rachadura

depois que vier o raso é preciso desinfetar as casas com copos de café de água
[sanitária;
é preciso retirar a lama; a roupa encardida; os livros molhados.

na seca
esperar por caminhões pipas para encher as cisternas, implorar por enchentes

que alagam
porque é melhor ter muito do que viver no nada.
(TORRES, 2019, p.25)

No primeiro verso, a imagem do título da seção, de um “ferrete em brasas”: “queimam-


se cascos na estrada velha da Pavuna”. “Alagada na merda” começa com uma cena de violência
ao animal, e o que antecede o excesso de água do alagamento não é senão o fogo. Na segunda
estrofe, o verso “descamo tenho queimaduras” parece retomar em uma diferença o que fora
queimado nos primeiros versos do poema. Há algo em comum entre os cascos dos jumentos, as
fagulhas da fogueira e o verso que inicia a segunda estrofe: todos queimam. Até aqui,
poderíamos dizer que o poema descama: uma cena se desdobra na outra como uma camada de
pele que vai sendo retirada. Nos cascos dos jumentos que queimam na estrada velha da Pavuna
estão também esse corpo que descama em queimaduras profundas e vice-versa. A camada mais
profunda da pele é comparada a bueiros de uma cidade. No corpo, o corpo da cidade. Na pele,
ou na erosão da pele, o subterrâneo da cidade. Do que queima na pele ao que entope na cidade:
“descamo tenho queimaduras mais profundas que os bueiros da minha cidade/ que entopem a
qualquer garoa fina/ enquanto eu nunca entupo depois de uma tempestade”. No processo
metonímico, o corpo é tomado pela queimadura e, a cidade, ou o corpo da cidade, pelo bueiro.
O que os aproxima ao mesmo tempo que os diferencia é a profundidade e, a partir dela, a
comparação de que, enquanto o segundo entope, o primeiro nunca entope. O entupimento
aparece então pela profundidade do buraco: pela profundidade do buraco da ferida relacionada
com a do bueiro, pelo que, no corpo, leva ao corpo da cidade, pelo buraco no corpo que leva ao
buraco no corpo da cidade.
296

Como em “Carne moída” lemos os buracos desde a sintaxe dos versos “que enfermeiras
possam limpar o que um dia,/ feridas”, em que a vírgula – aqui em excesso – ocupa o lugar do
verbo (“foram”), também neste poema há supressões na sintaxe: se tentássemos reescrever o
verso “a fogueira crepitando transformando o que um dia vivo no carvão que no outro fagulhas”,
uma opção seria “a fogueira crepitando transformando o que um dia [esteve] vivo no carvão
[e/mas] que no outro [dia transformou-se em] fagulhas”. Parece que é a fogueira crepitando que
escreve o verso, parece que os versos são a inscrição das cinzas, ou são as cinzas que escrevem
ou, ainda, que quem escreve é a incineração. Rompendo as ligações, criando sulcos, as
supressões agem, sobretudo, no tempo, reduzindo-o às coisas, “feridas”, “fagulhas”,
consumindo o tempo desse longo verso em que o mote é exatamente o processo de uma
fogueira, ou seja, uma transformação que se dá no tempo. O tempo do verso se reduz à coisa
irredutível.
Continuando o poema, descamação e escorrimento se dão como um mesmo processo:
as camadas de uma pele queimada, isto é, camadas de pele morta, descamadas, vão atingindo o
mais profundo, mas o mais profundo é atingido em seu processo de transbordamento. Ou seja,
não se vai de cima para baixo senão para apontar que o mais profundo do que está embaixo é o
que irrompe para cima. Nesse caso, chegar à profundidade é chegar desde um transbordamento,
desde o que, na profundidade, excede a ela. Visualmente, o verso de uma palavra só, “pingo”,
é um pingo no poema, vem depois do verso deslocado “a água até o tornozelo”, verso esse que
é o começo do alagamento visual na página. Alagamento que, porém, é retido. O tempo da água
se dá em três versos, ou se dá no deslocamento gráfico dos três versos em relação ao restante:

a água até o tornozelo

pingo

o balde escorrendo pela rachadura

Os versos voltam a se ajustar à margem esquerda quando se fala do depois da


tempestade: “depois que vier o raso é preciso desinfetar as casas com copos de café de água
sanitária;/ é preciso retirar a lama; a roupa encardida; os livros molhados”. A casa, misturada
às profundidades do bueiro, assim como o corpo é a via para a mesma profundidade. O acúmulo
novamente aparece como denúncia de uma vida suburbana que sofre dos excessos causados
pela negligência política. Essa denúncia se constrói desde o animal, desde o corpo, desde a casa,
que parecem ser parte de um processo de descamação, escorrimento, incineração, como se todos
297

se constituíssem como camadas de uma mesma pele. Ao fim do poema, de novo, a súplica: se
o poema todo, via o entupimento, tocou a ferida aberta como uma denúncia às condições sub-
humanas, ele termina com a mudança do tempo em que não se implora senão pelo excesso que
causa transbordamento: “na seca/ esperar por caminhões pipas para encher as cisternas,
implorar por enchentes”. Sem resolução, sem saída, longe de se constituir como um
procedimento estético, essa falta de saída denuncia justamente a situação irresoluta de quem
vive no nada, na falta, na carência. Ao final, deseja-se a enchente, a tempestade, que no início
é causadora de entupimento, “porque é melhor ter muito do que viver no nada”. O excesso
aparece então ironicamente como a resolução dos problemas: na verdade, sabemos pelo poema
que ele não resolve. Voltando ao mesmo ponto, chega-se a um extremo que equivale ao outro:
o excesso coincide com a carência, o transbordamento coincide com a seca, o muito coincide
com o nada.

O primeiro poema da seção “No cio, relincha”, contrariando as expectativas, talvez,


chama-se “Inhaca”. Nele, o excesso leva a “ser de menos” e “ser de menos já é demais”:
“quando você nada mais nada menos que um homem me diz que/ precisa ficar sozinho longe

de mim eu falo demais eu amo demais/ grito cuido demais/ ser de menos já é
demais” (TORRES, 2019, p.55). O primeiro poema de “No cio...” é a violência do que alguns
insistem em chamar de amor, é a violência do que, sob o nome de amor, excede o ser até que
esse ser não seja mais: “o amor/ está entranhado feito inhaca no sofá da minha casa/ por homens
que cresceram sobre minha sombra/ esgueirando-se querendo se grandes em cima de mim/ aqui
dentro/ até eu mesma/ não ser” (TORRES, 2019, p.56). Em “Inhaca”, o amor é o que cheira
mal, o que fede, é o mau cheiro excessivo, ou, como em algumas gírias, é o azar, é “má sorte”.
O amor é o “demais” que comparece na explicitação gráfica da fonte, é o “demais” que contrasta
com o tamanho das letras do restante do poema, é o “demais” que exige, da parte do personagem
masculino, um “ser de menos” que, porém, no ponto de vista da voz feminina, é inegociável:
“ser de menos já é demais”. Ao final do poema, o amor é o excesso que anula o ser do outro.
Há duas violências implicadas nesses dois processos: no primeiro, o “demais” que a
caracteriza, pelo olhar do outro, leva a uma violência a “ser de menos”. O amor é, portanto, um
excesso que causa um dano que deve ser reparado pela redução do ser, “ser de menos”. No
segundo, a personagem feminina, que outrora se viu implicada em “ser de menos” em nome do
298

amor, denuncia o amor como o excesso que ao longo da vida anulou o seu ser. O amor como
excesso, aqui, não é senão a violência que tolhe o ser. O amor é o nome de uma violência.
Diferentemente do amor como traça no poema de João Cabral, o “não ser”, aqui, não é a
corrosão da identidade causada pelo atravessamento da diferença do outro, o amor aqui é a
destruição da possibilidade de existência do outro, é a destruição do outro fisicamente e
subjetivamente, é a aniquilação da diferença. O começo do poema e o que se segue mostra que
“Inhaca” não é excesso de amor, é exceção, extrapolação de limites, violência:

pescoço virado
de galo decepado em encruzilhada
um homem os olhos arregalados
para minha bunda
grita

carne avulsa
açougue vendida em miolos
paleta acém peito fraldinha e músculo
vendida na feira livre
embolodasvozesnoengarrafamento

chorosa mijo na cama


estragada uma maçã podre
quando você se desfaz de mim como de seus lixos
quando você larga um tiro em mim quando ama outras mulheres me
diz não me ama como amava antes de outras mulheres
quando você trepa em mim me olha os olhos vazios como sacola
voando por entre os fios de um poste
quando você some do whatsapp, do facebook, do instagram e nunca
me diz o porquê das coisas se realmente há alguma coisa que ainda
resta em você

além do homem branco barbudo sem míngua nem casa musculoso


com o pau duro dizendo quanto excito com o meu abraço que para
mim é só um baraço quem sabe ali poderíamos selar nossas almas
quando você nada mais nada menos que um homem me diz que
precisa ficar sozinho longe de mim eu falo demais eu amo demais
grito cuido demais
ser de menos já é demais

[...]
(TORRES, 2019, p.55)

Novamente, um sacrifício, novamente, um galo. Tal como no Não, a carne do açougue


nunca se reduz ao abate do animal. A carne sempre pode indicar uma carnificina: “nessa cidade
nunca se sabe de nada porque a mando dos colhões rasgam/ a facadas jugulares todos mortos
na Kennedy, Maré, Parada de Lucas/ a carnificina a céu aberto a mando dos colhões porque é
299

dito que é/ preciso ter para andar pela cidade” (TORRES, 2019, p.81). Em “Inhaca”, na
justaposição de cenas, o animal reenvia ao humano: o galo de pescoço virado desliza para ao
homem de olhos arregalados. A bunda desliza para carne avulsa. Não há limites entre o animal
e o humano. No assédio, tudo se reduz a um pedaço de carne. Tomada pela parte do corpo, a
mulher é tomada pela carne. Na carne, o animal, a aniquilação da mulher, a mortificação da
mulher, reduzida às sobras: “você se desfaz de mim como de seus lixos”. A mulher, esse resto
de não-ser. E o homem? Os versos dizem: “[...] se realmente há alguma coisa que ainda/ resta
em você// além do homem branco barbudo sem míngua nem casa musculoso/ com o pau duro
dizendo quanto excito com o meu abraço que para/ mim é só um abraço”.
A “míngua” aparece novamente: “sem míngua nem casa”. Sem carência nem recurso,
poderíamos dizer, só um inchaço como os músculos (“musculoso”), um inchaço como “o pau
duro”. O homem, esse excesso, é definido na síntese: “nada mais nada menos que um homem”.
Com todas as letras, o poema diz, é isso que ele é: não um animal, não uma maçã, não um lixo:
um homem. O terror maior reside nisso. É sendo um homem que, enquanto excesso irredutível,
é sinônimo de violência. O homem enquanto excesso é, nesse poema, a violência irredutível –
intransponível, impossível de ser metamorfoseada, comparada – que reduz e aniquila a mulher.

Em outro poema temos outra configuração do amor. Se, no poema acima, o amor é o
que fede encrostado no sofá, no poema abaixo, aquilo que federia como inhaca, como o suor, é
relíquia de um amor. “Da testa larga” começa com o que restou:

restaram o gosto do suor salgado em que o beijava pelas ruas de bonsucesso


restaram as coxinhas massudas e oleosas que secavam no escorredor
sujo com pedaços de frituras queimadas
restaram a paçoquita moída na embalagem fechada
sobraram os chupões estampados no pescoço
e o varar das noites
você, enfiando com doçura amor
com doçura
sua piroca sem que seus pais pudessem ouvir
(TORRES, 2019, p.63)

Com o recurso já usado em outros poemas analisados, aqui também a pessoa é referida
pela parte do corpo: a metonímia dá o título “Da testa larga”. Leio esse atributo como um modo
de subverter o caráter pejorativo pelo qual chamam as pessoas quando as tomam por partes do
corpo que não condizem a padrões de beleza impostos. Então, intitular um poema de amor de
300

“Da testa larga” é conferir um novo uso a esse atributo, é quando a parte do corpo capturada é
liberada da captura ao ser afirmada amorosamente, quando a “testa larga” é objeto de desejo,
investimento erótico, e, falar dela, “Da testa larga”, é falar de amor.
No começo, os restos: suor, coxinhas massudas e oleosas, paçoquita moída, chupões,
sexo. Substâncias expelidas pelo corpo, gordura, o que vai à boca, o que se come, o que se
morde, tudo que já foi afetado por um processo de transformação pelo contato, seja a paçoquita
moída, sejam os chupões. Depois dessa lista de restos, lemos:

amar pode ser longo demais para alguém como eu


você disse
que deixo botijões de gás abertos
pincelo blush nas maçãs das minhas bochechas pinto meus lábios com batons
[fortes
chupo paus e engulo a
porra
(TORRES, 2019, p.63)

De novo, o amor aparece como excesso: “amar pode ser longo demais para alguém como
eu”. O “demais” do amor retorna em outro verso deslocado: “um perigo iminente seria demais
amar por tanto tempo o perigo” (TORRES, 2019, p.63). Com isso, esse poema nos diz que amar
é perigoso porque é duradouro, porque é longo, “longo demais”. Em contraposição a esse tempo
de longa duração, teríamos “uma hora”, “nunca se sabe qual hora – pode ser às 13h ou às 2h45
da madruga –/ mas nessa hora é preciso cerrar bem forte os punhos/ esmurrar o estômago do
desgraçado/ até que então, purifiquem/ os beijos” (TORRES, 2019, p.63). De difícil
interpretação, hesitei muitas vezes na leitura desse poema, sem saber se lia literal ou
metaforicamente. Vi-me em um impasse, sobretudo, no final: se lia literalmente “esmurrar o
estômago do desgraçado”, lia metaforicamente “até que então, purifiquem/ os beijos”, se lia
metaforicamente o primeiro, tendia a se harmonizar com o sentido do segundo. Se lia
literalmente o primeiro, tratar-se-ia de uma violência, mas em resposta a alguma violência que
não está no poema, ou uma forma violenta de amar? Sem achar indícios de uma violência que
precisaria ser respondida ou a ela reagida, optei por ler esses versos finais como uma realização
defendida de um amor. Se o poema começa com o que restou de um amor, parece que ele não
termina com o fim anunciado do amor, mas com a realização do amor.
O verso “amar pode ser longo demais para alguém como eu” instaura um divisor de
águas entre a primeira estrofe, cujo mote são os restos, e o restante do poema. É certo que sobras
e excessos são, de novo, o procedimento, também na segunda parte: “você disse/ que deixo
botijões de gás abertos/ pincelo blush nas maçãs das minhas bochechas pinto meus lábios com
301

batons fortes”. Mas parece que isso – juntamente com “chupo paus e engulo a/ porra”, que não
leio de forma moralizante como excesso, mas como constatação – é exatamente o “longo
demais” que constitui o perigo, o amor: “um perigo iminente seria demais amar por tanto tempo
o perigo/ nunca se sabe qual hora – pode ser às 13h ou às 2h45 da madruga –/ mas nessa hora
é preciso cerrar bem forte os punhos/ esmurrar o estômago do desgraçado/ até que então,
purifiquem/ os beijos”.
Parece então que se realiza finalmente o perigo: “esmurrar o estômago do desgraçado”.
Realizando o perigo, realiza-se o amor, como se esmurrasse o estômago justamente por ter
padecido de um perigo do qual se defendera (“amar pode ser longo demais para alguém como
eu”). Nesse sentido, não há nada mais ironicamente amoroso do que chamar de “desgraçado” a
pessoa amada, incidindo uma culpa sobre aquela que a fez amar o perigo. Amando porque
odiando, odiando porque amando, parece que o perigo do amor se realiza. Mostrando uma
história de amor pelo inverso, o poema começa pelo fim do amor e termina pela realização do
amor.

A seção “No cio, relincha” é composta por seis poemas: “Inhaca”, “Espectro”, “O vício
do crédito fácil”, “Pombo morto”, “Da testa larga”, “Nós dois cantando Sidney Magal na feira
de São Cristóvão”, respectivamente. Todos os poemas dessa seção falam de amores passados,
apenas o poema “Nós dois cantando Sidney Magal na feira de São Cristóvão” tem o tempo
verbal no presente. Aqui, o amor também aparece como um perigo na ambiguidade das
expressões: “estar perdida” significa estar amando e “estar fudida” mantém a ambiguidade de
estar em maus lençóis e de estar exatamente nos lençóis onde se deveria estar. Vamos ao poema:

estação da Penha
desemboco perdida na linha de fuga, percebo
– como se percebem os furos de tatuí na areia de Grumari –
o grão de purpurina no fim do carnaval
são quatro por dois isso que inflama o meu peito
não chupo a espinha do peixe,
não como mocotó

sonho em me bronzear sob o sol de ramos


me banhar no piscinão
ao seu lado
com as mãos entrelaçadas nas suas
bebendo Itaipava
302

sou mulher de gostos caros, digo a você enquanto


rasga meu sutiã
gasto
por amaciantes

picho na murada do prédio


seu nome <3 meu
para que você saiba o quão merda eu sou
quando apaixonada

meus pais me apontam dedos disseram para não me perder demais


¡perigo águas profundas, correnteza e redemoinho!
é tarde,
depois de meia-noite
nossos horários são verões

é tarde

estou fudida
porque a foda tem o gosto do meu homem
e disso meus lábios não cansam
(TORRES, 2019, p.65-66)

Abolição, São Cristóvão, Jacaré, Jacarezinho, Manguinhos, Estação da Penha,


Bonsucesso, Inhaúma, Pavuna, Irajá, Avenida Brasil, Avenida Dom Hélder Câmara, Avenida
Brás de Pina: o primeiro verso de alguns poemas quase sempre contém a localização, como em
uma carta: “Torrando no meio fio do Ceasa” (“Carne moída”, grifo meu); “açoitam-se jumentos
e queimam-se cascos na estrada velha da Pavuna” (“Alagada na merda”, grifo meu); “restaram
o gosto do suor salgado em que o beijava pelas ruas de bonsucesso” (“Da testa larga”, grifo
meu); “estação da Penha” (“Nós dois cantando Sidney Magal na feira de São Cristóvão”, grifo
meu). Quando não estão no primeiro verso, os lugares aparecem em algum momento, como
“jacarezinho” em “O cupim comeu minha sorte”, “Inhaúma”, em “Carne moída”, “avenida
brasil”, no verso “a morte tem cheiro de creolina quando ando pela passarela vinte e dois na
avenida brasil”, em “Atenção ao usar a creolina pois é um produto tóxico”, e nos versos “o
vapor/ de um capô aberto no meio-fio na avenida brasil” em “Marlene”. “Manguinhos”, na
estrofe “São dois filhos bantos,/ que cantaram sob o sol ao som do berimbau,/ se matam hoje
em Manguinhos,/ ao troco do capital”, no poema “Dois filhos bantos”, “dom hélder câmara”
em “Pombo morto”, “Irajá” em “Que merda é essa de troncal?”, “Jacaré” em “Que merda é essa
de troncal?”, “avenida brás de pina” em “Carne de sol”. E, ainda, no pior cenário, “Kennedy,
Maré, Parada de Lucas” aparecem no horror da “carnificina a céu aberto” (TORRES, 2019,
p.31, p.25, p.63, p.33, p.31, p.20, p.83, p.36, p.61, p.75, p.76, p.77, p.81).
303

Todas essas localidades compõem o subúrbio e a periferia do estado do Rio de Janeiro.


“Nós dois cantando Sidney Magal na feira de São Cristóvão” não começa, apesar do título, na
feira de São Cristóvão, no Centro Luiz Gonzaga de tradição popular nordestina e point do
karaokê nas noites cariocas, mas na “estação da Penha”. Teria perdido o caminho para a feira?
O verso em seguida diz: “desemboco perdida na linha de fuga”. Segue-se, então, os rastros, que
não são, porém, de humanos: “desemboco perdida na linha de fuga, percebo/ – como se
percebem os furos de tatuí na areia de Grumari –/ o grão de purpurina no fim do carnaval”.
Segue-se o rastro micro de algo miúdo: os grãos de purpurina como se furos de tatuís. O rastro
aqui também brilha, como os paetês no “Hospital Rocha Faria” cujo brilho excessivo aponta
para um desencaixe muito grande do tempo. Mas se o rastro aponta para o horror, aqui esse
rastro aponta para o amor, como as cinzas do “fim do carnaval”.
Os versos seguintes, como se anotações mentais aleatórias de um atravessamento de
quando se está na feira de São Cristóvão no momento em que se está: “são quatro por dois isso
que inflama o meu peito/ não chupo a espinha do peixe/ não como mocotó”. Não sabemos se
“quatro por dois” se refere à banda pernambucana e baiana, mas é essa medida que é usada para
se dizer o quanto o peito está inchado, inflamado, inguado, acometido por um excesso. Não
chupar a espinha do peixe: uma maneira se prevenir de um perigo. No lugar de comida
nordestina típica, não comer mocotó é, curiosamente, não comer a pata, no caso, a pata bovina,
parte do animal de onde também vêm os coices.
Na primeira estrofe temos, então, desorientação, rastro, inflamação, negação. Nas três
estrofes seguintes, a listagem dos “sins”: “sonho em me bronzear sob o sol de ramos/ me banhar
no piscinão/ ao seu lado/ com as mãos entrelaçadas nas suas/ bebendo Itaipava// sou mulher de
gostos caros, digo a você enquanto/ rasga meu sutiã/ gasto/ por amaciantes// picho na murada
do prédio/ seu nome <3 meu/ para que você saiba o quão merda eu sou/ quando apaixonada”.
Nessas três estrofes, a segunda contradiz a primeira, nos levando a ler com ironia – como quem
faz troça – o verso “sou mulher de gostos caros”, depois de acabarmos de ler uma lista com
gostos módicos. No enjambement entre o penúltimo e o último versos da terceira estrofe, o
sentido é solapado em “quão merda eu sou/ quando apaixonada”. “Merda”, aqui, assume o
mesmo sentido que “perdida” ou “fudida” que aparece na última estrofe do poema. Uma
vulnerabilidade é assumida nesses versos para se dizer da condição de se estar apaixonada,
como quem corre perigo, como quem porta um “demais” no peito, como quem sofre uma
inflamação, como quem padeceu do perigo, como quem pegou um caminho sem volta, como
quem caiu – apaixonada. O poema parece aí nesse ponto uma confissão: “para que você saiba
o quão merda eu sou/ quando apaixonada”. No picho, essa inscrição no concreto, essa
304

precariedade subversiva, a declaração de amor que porta a confissão: “picho na murada do


prédio/ seu nome <3 meu/ para que você saiba o quão merda eu sou/ quando apaixonada”. Da
desorientação inicial à advertência dos pais de não se “perder demais”, a profundidade, o
excesso (“¡perigo águas profundas, correnteza e redemoinho!”) agora é afirmado porque
amorosamente: “é tarde// estou fudida”, como quem já se perdeu desde o início, afirma a foda,
e essa afirmação não vem senão pelo que vai à boca, o sentido mais baixo, como vimos: “estou
fudida/ porque a foda tem o gosto do meu homem/ e disso meus lábios não cansam”.
“Nós dois cantando Sidney Magal na feira de São Cristóvão” é uma carta de amor que
precisa passar pela estação da Penha, que precisa passar por Ramos, que precisa passar pela
cerveja barata, pelo sutiã gasto, pelo picho, porque, se não houvesse isso, essa lista que compõe
os “sins”, não haveria a carta de amor, não haveria a confissão, não haveria amor. O amor passa
necessariamente por esses lugares. Sem esse percurso, não haveria o poema. Em outras
palavras, o modo como se constrói esse poema é indissociável do modo como se ama. E esse
modo passa necessariamente pelo subúrbio, pelo acessível, pelo popular, pelo comum e pela
precariedade.
Isso se relaciona com o que diz um poema da poeta, editora, professora, tradutora,
cantora e compositora brasiliense Tatiana Nascimento, autora dos livros de poemas Mil994
(Padê, 2018), Lundu (Padê, 2016) e Esboço (Padê, 2016). No livro 07 notas sobre o apocalipse
ou poemas para o fim do mundo, publicado em parceria pelas editoras Garupa e Kza1, em 2019,
o longo poema “cuíer A.P. (ou “oriki de shiva”, v.28 out. 2018)”, presente na seção “07 notas
sobre o apocalipse, ou, daria um poema esqueersito, essa revolução”, diz:

nós vamos destruir tudo aquilo que você ama


e tudo que vc chama “amor”
a gente vai destruir

porque c chama “amor à pátria”


o que é racismo
c chama “amor a deus”
o que é fundamentalismo
c chama “amor pela família”
o que é sexismo homofóbico y
c chama transfobia de “amor à natureza”
(o que que c sabe da natureza? pra vc a natureza
é só mais alguém pra ser dominada)
o q c chama de “amor pela segurança”
é militarismo
y o capitalismo
c chama de “amor pelo trabalho”
(mas mentira, é pura adoração pelo dinheiro)
e o que c chama de amor pela democracia
305

é golpe.
o que c chama de “amor à humanidade”
é especismo, achar que todas as outras pessoas
no planeta, todas as pessoas não-humanas
têm que servir a você
y esse seu “amor pela Palavra”, pela sacralidade da escritura,
na real é só um caso histórico de má-tradução – que
conveniente pra vc, né, chamar deus de “ele”
mas eu, que olhei dentro de mim e via a face
amorosa de deus, sei que Ela
é Preta.
você que come ódio que vive ódio que
vomita ódio, qual é a face do deus
que olha de volta sua mirada?

então se liga: nós somos


seu
apocalipse
kuír, y vamo destruir
tudo que vc ama, seus ideais de
“civilização”, “cultura erudita”,
“amor pela liberdade”,
“justiça”,
isso que não passa de liberalismo,
galerismo burguês,
política racializada de
encarceramento, epistemicídio,
genocídio colonial: quer matar tudo
que ri, tudo que goza, tudo
que dança,
tudo que luta.
quer matar a gente.
mas a gente, que nem semente daninha,
vinga, se espalha, sobre
vive!
porque a gente, que você amaldiçoa
em nome do seu amor doentio, segrega
dor, htcisnormativo,

a gente que é amante,


a gente é que vive y espalha

amor. 78

78
No livro, o último verso, “amor”, aparece sozinho na página 12. Há um longo espaçamento, praticamente de
uma página, entre o verso “a gente é que vive y espalha”, que está na página 11, e o último verso, “amor”, que está
na página 12. Na impossibilidade de manter esse espaçamento na citação, recorro a fotografias dessas páginas do
poema tal como ele se apresenta no livro:
306

(NASCIMENTO, 2019, p.9-12)

No poema de Tatiana Nascimento, “nós somos/ seu/ apocalipse” é dizer nós somos o
seu fim do mundo não porque vamos lhe matar, mas porque a afirmação do nosso modo de
amar nega o seu horror travestido de amor, porque o seu modo de amar nos aniquila e aniquila
o nosso modo de amar (“quer matar tudo/ que ri, tudo que goza, tudo/ que dança,/ tudo que
luta./ quer matar a gente”). “[N]ós vamos destruir tudo aquilo que você ama” é dizer “o seu
modo amar nos aniquila e nós vamos te aniquilar não porque iremos te matar, mas porque
amamos de forma radicalmente oposta a você, porque o seu modo de amar não é amor, é
horror”: racismo, fundamentalismo, sexismo, homofobia, militarismo, capitalismo, especismo,
ódio, liberalismo, espitemicídio, genocídio. Com uma escrita abarcada por gírias (“então se
liga”); pela informalidade (“conveniente pra vc, né”); pela linguagem coloquial (“a gente”);
pela escrita tal como marcada pelo sotaque (“vamo destruir”); pela escrita tal como a sonoridade
da palavra de quando é falada (“cuír” e “kuír”); pelo comparecimento do “cu” que porta o som
da palavra queer quando falada; pelo uso do “y” no lugar do “e” aditivo (“o q c chama de
“amor pela segurança”/ é militarismo/ y o capitalismo”), interferindo no português com o
espanhol, propiciando uma escrita marcada pelo cruzamento latino-americano; por fraturas no
interior das próprias palavras, como “segrega/ dor” e “sobre/ vive!”, indicando, pelas cesuras,
a possibilidade de leitura de duas palavras na mesma, indicando que segregar já porta a dor, e
que, dizer sobre o que se espalha por sobre, é dizer do que sobrevive; por contrações e
abreviaturas que compõem a linguagem das redes sociais (“htcisnormativo”, “vc”, “c”, “q”),
linguagem que certas vezes reduz a palavra à letra, em uma economia radical de um ponto
nevrálgico; por uma escrita em que o título já é uma economia da condensação de três palavras
em uma, “esquerda”, “queer” e “esquisito” em “esqueersito”; por uma escrita em que letra e
voz se diferenciam quando o poema é lido no papel e quando é lido em voz alta; enfim, por
uma escrita que em sua economia também subverte a norma gramatical, a norma culta
307

gramatical e, em todos os sentidos, a norma (de gênero, do capitalismo, do liberalismo, do


fundamentalismo religioso, do colonialismo, do ultraconservadorismo). Em um livro do qual
falaremos daqui a pouco, Ana Kiffer propõe um pensamento sobre escritas cuja questão da
língua “já não se trata mais de falar ou de inventar uma língua menor no limite das línguas
instituídas ou das línguas maiores (noção até certo ponto romântica), mas de ‘falar mal as
línguas maiores’” (KIFFER, 2019, p.46). Penso que a escrita desses poemas se insere um tanto
nesse movimento de “falar mal” a língua instituída como inscrição de uma nova subjetividade
que rompe com os laços normativos a que uma cultura colonial submeteu outra. Além disso,
como bem atestam Julia Klien e Heloísa Buarque de Hollanda, a “nova onda” de poetas é
marcada por uma forte influência da oralidade: “Convivem agora o poema escrito, mais
‘literário’, com o poema falado, mais abertamente ativista. Essa poesia oral, é importante notar,
não vem apenas do impacto do rap, como se poderia presumir, mas também de pesquisas de
oralidades regionais” (HOLLANDA, 2018, s/p). Assim, como vemos com o exemplo do poema
de Tatiana Nascimento, uma parte da produção poética atual tensiona fortemente o escrito e o
oral, a fala e o corpo, produzindo subjetividades não normativas ao romper com a norma culta
da língua.
O ponto, enfim, em que relaciono esse poema com o poema de Valeska Torres é que,
em ambos, o amor passa necessariamente pelo modo como se dá esse amor, e, nos dois casos,
falar de amor é falar de um modo específico de amar que, no caso de Valeska, se passa
necessariamente pelo subúrbio e pelo que está em torno do subúrbio, e, no caso de Tatiana
Nascimento, se passa necessariamente pela ruptura das normas de gênero e por um
posicionamento político claramente de esquerda em que esse posicionamento também não se
dissocia desse modo de amar. O posicionamento político, então, diz completamente respeito ao
modo como se ama. O que está em jogo no poema é uma disputa de narrativa sobre o amor,
uma afirmação de uma tradução contra outra, que não desvincula o modo como se ama do
posicionamento político.
Dizer “modo como se ama” significa pensar não o ser, não a essência, mas a relação ou
um ser que não se define por si mesmo, mas um ser que já é um ser-em-relação. Ao questionar
a ontologia de Heidegger e a metafísica do ser, Agamben, seja mais longamente em O uso dos
corpos, seja mais brevemente em A comunidade que vem, discorre sobre a compreensão do ser
como modalidade, isto é, como um modo de exposição no mundo. Essa noção de “exposição”
enquanto “não pressuposição de um ser, mas a sua exposição”, parte de uma semelhança com
a caracterização do espaço político de Hannah Arendt: já foi dito que esse era compreendido
pela fala e pela ação, mas a questão é o que está em jogo nisso: o aparecimento. Em A condição
308

humana, ela diz: “a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns
para os outros” (ARENDT, 2010, p.220, grifo meu). Em outro momento, lemos: “Ao agir e ao
falar, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais únicas, e
assim fazem seu aparecimento no mundo humano” (ARENDT, 2010, p.224, grifos meus). Em
outro momento, continuando e desdobrando a respeito dessa manifestação do homem político
em um espaço medial, interrelacional, em que aparecer significa aparecer para o outro e sob o
olhar do outro, e por isso implica em estar sujeito a todas as imprevisibilidades, ela diz, em uma
nota de rodapé que foi citada na primeira parte desta tese e que recito agora: “Sócrates emprega
a mesma palavra que Heráclito, semainen (“mostrar e dar sinais”), ao se referir à manifestação
do seu daimonion” (ARENDT, 2010, p.227). Como o daimon que imprevisivelmente mostra e
dá sinais, Arendt define um dos princípios do espaço da política como um espaço em que se
exibe, em que se mostra, em que se aparece, em que se expõe, em que se expor já é estar sujeito
à imprevisibilidade.
Em uma ginástica de pensamento, escuto, na compreensão modal de Agamben do ser
como exposição, um aspecto dos princípios pelos quais Hannah Arendt caracterizou a política:
um “espaço de aparecimento” ou de exposição79. Portanto, quando digo “modo como se ama”
significa dizer que esse modo também é o modo como a pessoa se expõe ao mundo, à vida, o
que implica nesse princípio da política como “espaço de aparecimento” ou espaço em que se
mostra e dá sinais, se acena, se exibe, se expõe, se gesta, se gera. Sobre um ser que é definido
pelo que continuamente ele gera, sobre um ser que se define pelo modo como ele se gesta no
mundo, pelo modo como ele se gera, pelos usos que ele faz de si, Agamben diz que a existência
assim não é pensada como uma propriedade, como algo que definiria propriamente ou
essencialmente o ser, mas como “um hábito, um ethos” em que o que está em jogo são os usos
que o ser faz de si, definindo-se então muito mais por uma impropriedade (AGAMBEN, 2013,
p.35). Ethos é palavra grega que significa “hábito”, “costume”, da qual derivou a palavra
“ética”. Agamben procede disso a compreensão de que a “ética é a maneira que não nos ocorre
nem nos funda, mas nos gera” (AGAMBEN, 2013, p.35, grifo do autor). Dizendo de outro
modo, o ser não se define nem só pelo provisório nem só pelo necessário, mas pelo modo, pelo
hábito, pela maneira como ele faz uso de si no mundo e esse modo é o que necessariamente
constitui o seu ethos, a sua ética (AGAMBEN, 2013, p.35).

79
Fiz questão de dizer “um aspecto” porque a compreensão de Agamben não tem a ver com a preponderância da
fala e da ação que para Arendt caracteriza a política. Pinço apenas o princípio da “exposição” que é central nessa
abordagem de Agamben e é exatamente o que está em jogo – mesmo que pela ação e pela fala – na concepção de
política em Arendt.
309

Nesse sentido, a ética não seria a pressuposição de um conjunto normas, mas, antes, se
determinaria pelo modo como o ser se gera, se gesta, se expõe ao mundo. Isso significa dizer
que o corpo exposto no mundo não é, pois, desvinculado do modo como esse corpo se expõe
ao amor. Por isso, de uma vez por todas, a esfera privada a que as relações amorosas foram
confinadas ao longo de todos esses séculos deve hoje ser considerada não como o fora da
política, mas como determinante da política. Uma política outra seria não a que dá a um ser
pressuposto um espaço de exposição, mas aquela que se determinaria pela “existência como
exposição” (AGAMBEN, 2013, p.91), exposição que é, antes de tudo, o modo como se vive, o
modo como o corpo se expõe ao mundo, ao outro, em suma, o corpo exposto. E certos modos
de amar já fazem, de certos corpos, corpos expostos. Tal exposição é em si uma captura da
política: são expostos porque estão em risco, mas se expõem nesse e com esse risco para
enfrentar essa captura. Uma política que não a (antipolítica) vigente não faria da exposição uma
captura, mas partiria dela, enquanto modo como um corpo se relaciona com/se expõe ao mundo
(em casa, na rua, no amor, nesse ser-em-relação), para se definir.

Em uma postagem no facebook no dia 04 de dezembro em 2019, em decorrência, dentre


outros horrores, da chacina da Polícia Militar a jovens negros e negras durante baile-funk em
Paraisópolis, periferia de São Paulo, Luciana di Leone disse:

não é um amor edulcorado o que vai nos fazer sobreviver neste massacre que
é o Brasil. Nada vai nos fazer sobreviver. E uso o nós porém tenho total
consciência de todos os privilégios que afastam desse nós. Mas mesmo assim
vamos sobreviver, raivosos, e vingativos, com um amor esdrúxulo. Como diz
o poema de Tatiana Nascimento, "Apocalipse Queer ou Cuíer A.P. (ou oriki
de Shiva)”80

“[A]gradeço ao ódio,/ catapulta para os dias que estão” são as primeiras palavras de O
coice da égua. Elas aparecem onde geralmente viria a dedicatória. Como agradecimento, elas
não deixam de ser, também, a dedicatória. Seria demais falar de amor e horror nesse livro
recalcando o ódio que também aparece nele, como desde o título em “Manifesto de ódio aos
colhões”, por exemplo:

[...]

80
Disponível em https://www.facebook.com/luciana.d.leone Acesso em 08/12/2019.
310

nessa cidade nunca se sabe de nada porque a mando dos colhões rasgam
a facadas jugulares todos mortos na kennedy, Maré, Parada de Lucas
a carnificina a céu aberto a mando dos colhões porque é dito que é
preciso ter para andar pela cidade
é preciso armar-se até o dentes, atrás de trincheiras, portando
produtos bélicos oucam bem nunca uma: xota, xereca, tetas. nunca.
nessa cidade é preciso ter colhões rosados de preferência,
de preferência os
rosados
[...]
(TORRES, 2019, p.81)

Temos passado por uma conjuntura mundial de ascensão da extrema-direita que nos tem
colocado em contato com o pior, inclusive, de nós mesmos, e muitas vezes temos tratado o
ódio, que também nos constitui, como tabu. Falamos muito do ódio da direita, mas não falamos
do nosso ódio, como se apenas amássemos e não odiássemos, como se o ódio não fosse uma
das paixões que acomete todos os seres humanos. Todos sentimos ódio, a questão é por quê,
por quem e o que cada um faz com ele e como. No filme Racionais: por um Brasil menos
ignorante, Djamila Ribeiro, sobre o livro Sobrevivendo no Inferno, disse: “esse livro foi uma
forma de organizar o ódio”.81 Em Ódios políticos e política do ódio, Ana Kiffer e Gabriel Giorgi
entendem o ódio não como um afeto nem como uma paixão homogênea, “mas como um
condensador e modulador de afetos diversos, que conjuga uma constelação de paixões que
passam pela reprimenda, pela fúria, pela ira e pela indignação” (KIFFER; GIORGI, 2019, p.12).
Em meio ao ódio aniquilador que tem comparecido especialmente na última década com
o crescimento da extrema-direita e “uma necropolítica que avulta e se institui no lugar do que
antes críamos ser o pacto civilizatório”, haveria, por outro lado, uma ambiguidade do ódio que
“atravessa desejos emancipatórios, criativos e potentes presentes em nossas sociedades e
insurgentes através dos discursos e práticas contemporâneas manifestas nos movimentos negro,
periféricos, indígena, entre outros” (KIFFER; GIORGI, 2019, p.13-14). Kiffer e Giorgi
enfatizam o caráter estremecedor do ódio: “Antes de tudo, o ódio é um terremoto, um
estremecimento raivoso dos protocolos da expressão democrática” (KIFFER; GIORGI, 2019,
p.16, grifo dos autores). É como um tremor do pacto civilizatório, como um tremor da
democracia que o ódio aqui é visto como uma quebra de aliança, quebra de contrato, ruptura
com o que antes ficava supostamente pacificado pelo pacto da democracia (KIFFER; GIORGI,
2019, p.17). Giorgi falará de uma “crispação”, de uma “irritação”, de uma “contração”, como
uma contração muscular, como uma “cristalização nervosa e muscular”, como um inchaço no

81
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hp-zkcj9n38 Acesso em 21/08/2019.
311

músculo, esse “rompimento das retóricas do consenso democrático que haviam marcado a
norma de uma democracia na qual a crise econômica e social produzida pelas políticas
neoliberais desde os anos 1990 originava contradições cada vez mais insolúveis” (GIORGI,
2019, p.80).
À “política do ódio”, eles contrapõem, no plural, os “ódios políticos”. As formas de
inscrição que se distanciam dos repertórios clássicos da cultura letrada e do suporte do livro,
expandidas ao meio eletrônico, cartazes de manifestações, panfletos, instalações e
performances, eles chamam de “escritas precárias”, “escritas de borda”, “escritas
performáticas”, que desafiam as formas de representação escrita (KIFFER; GIORGI, 2019,
p.15). Essas escritas são “escritas agônicas”, partem de uma desorganização e de um “estado
de agonização da palavra”, como um corpo que treme ao “dizer/gritar/escrever” (KIFFER,
2019, p.45-47). Ao se perguntam sobre “como diferir esse ódio criador de vidas no seio do
abandono, da exclusão, da precariedade e do atentado constante ao próprio direito à vida do
ódio – dispositivo político – que se aglutina como desejo de aniquilamento” (KIFFER, 2019,
p.38), Kiffer diz que há uma nuance: o que os diferencia, como Kiffer aponta, é que a “política
do ódio” opera por um “desligamento” e os “ódios políticos” operam por “separação”:

A meu ver, tendo a ler o desligamento como algo que veio estruturando a
matriz unificadora branca, de origem colonial, em que ódio e exclusão
equivalem à submissão e aniquilamento. E tendo a ler que a separação
inaugura a possibilidade de relação – por mais contraditório que soe
inicialmente (KIFFER, 2019, p.58).

Enquanto o “desligamento” seria apenas o rasgo dos tecidos comuns, a “separação” seria
rasgo e refazimento de laços, ruptura e novos agenciamentos, desenlace como produção de
novas relações, ao contrário do “desligamento” da “política do ódio” que opera apenas
exterminando em prol de uma identidade, de um privado, de um próprio. Enquanto o
“desligamento está na base das afecções exigidas no desempenho do que se julga ser uma vida
bem-sucedida nos sistemas neoliberais” (KIFFER, 2019, p.61), a “separação se impõe com o
surgimento das reivindicações minoritárias” (KIFFER, 2019, p.62) que se suporta enquanto
“relação mesmo no desenlace”, que suporta a interrupção como construção de relação
(KIFFER, 2019, p.69). É nessa importante distinção entre “ódios políticos”, a que a “separação”
se vincula, e “política do ódio”, a que o “desligamento” se vincula, que, segundo os teóricos,
uma nova resposta à crise dos sistemas democráticos não se dará por um consenso, pela farsa
da igualdade, por um novo pacto civilizatório pacificador, mas por uma ruptura desse pacto,
312

que seja, em sua quebra mesma, a produção de novos laços não passivos. Ao final de seu ensaio,
Kiffer fala desse ódio (como separação) como amar. Ela diz: “amar também como rasgar”:

Odiar não como recusa ou não aceitação. Não como desligamento ou


extermínio. Mas como separação constitutiva de novas singularidades comuns
a serem postas em Relação. Amar não como estado de resiliência, passividade
ou tecido reintegrado. Não juntar retalhos. Mas amar também como rasgar
(KIFFER, 2019, p.71).

Amar também, paradoxalmente, como quebra de contratos, litígio, desencaixe,


desenlace, desacordo, ruptura, quebra, mal-entendido, duelo (luta e, no sentido dessa palavra
em espanhol, luto), ainda, como crispação, irritação, contração, “nesse movimento semântico”
físico e subjetivo, corporal e afetivo (GIORGI, 2019, p.80) é um modo como pode ser visto
esse amor não mais “edulcorado”, mas um tanto “raivoso”, “vingativo”, para usar as expressões
de Di Leone, que aparece não só em Tatiana Nascimento e em Valeska Torres, mas em Tatiana
Pequeno e em Bruna Mitrano. Seja pelo grito em Mitrano, seja pela vingança em Pequeno e
Nascimento, seja pelo caráter explosivo dos coices em inchaços/ínguas/inflamações/contraturas
em Torres, seja pela precariedade desde a sintaxe, desde a forma, que aparece em todas elas,
penso que essas escritas operam como as “escritas precárias” de que falam Kiffer e Giorgi no
que elas atuam separando e não desligando, no que elas atuam separando enquanto
reestabelecimento de novos laços.
Por exemplo, voltando ao poema de Valeska, “Manifesto de ódios aos colhões”, vemos,
pelos versos, que esse manifesto é claramente contra a política fálica, bélica, racista e misógina
que, como uma “política do ódio”, extermina: “nessa cidade nunca se sabe de nada porque a
mando dos colhões rasgam/ a facadas jugulares todos mortos na Kennedy, Maré, Parada de
Lucas”. Especialmente pelo verso “a mando dos colhões rasgam/ a facadas jugulares”, vemos
que à “política do ódio” se identificam os “colhões” que “rasgam”, que rasgam jugulares a
facadas, que matam, exterminam a população pobre, negra e periférica na zona periférica
compreendida por Avenida Kennedy, Maré e Parada de Lucas. A essa “política do ódio”, o
poema como um “ódio político” não opera rasgando como operam os “colhões”, opera rasgando
enquanto indica fazimentos de relações, opera, portanto, como um procedimento de ruptura e
rearticulação: se nessa cidade é preciso “armar-se até os dentes, atrás de trincheiras, portando/
produtos bélicos” e nunca uma “xota, xereca, tetas”, a relação que o poema tece é exatamente
com o que é excluído pelos “colhões”: “xota, xereca, tetas”.
Frente ao extermínio de uma política fálica, bélica, armamentista, machista, misógina,
racista, de entricheiramento, de fechamento, de encarceramento, o “Manifesto de ódio” como
313

um “ódio político” rasga relações com os “colhões” que representam a “política do ódio” no
mesmo movimento em que estabelece uma aliança entre as lutas feminista, negra e periférica.
Na segunda parte do poema, essa aliança vem em nome de vidas que foram exterminadas pela
“política do ódio”: “a mando dos colhões a morte é ofertada por/ Maria, Benedita, Andreia,
Marielle/ todas ditas malditas!” (TORRES, 2019, p.82). É ao que se abarca no que, para os
“colhões”, é maldito, são a todas que se abarcam no que, para os “colhões”, são “malditas”, é a
isso que é mal dito que esse inchaço, esse estresse, essa estricção, essa irritação (“transito à
espreita/ meu pescoço todo inchado tenho ínguas/ os médicos disseram que é por me estressar
demais” (TORRES, 2019, p.81)) tensiona, fratura e reconfigura como uma ruptura e
rearticulação de pactos.
Falando do ódio como aquilo que “eletrifica novas enunciações” que “apostam no litígio
como reconfiguração radical do mundo em comum e das imagens de igualdade” (GIORGI,
2019, p.90), Giorgi não traz senão um importante pensador que vê o “mal-entendido” como o
ponto central da política, Rancière (GIORGI, 2019, p.96). Em O Desentendimento: política e
filosofia, vemos que, para Rancière, a política começa pelo litígio, pelo dano. É porque há o
erro que há política. A política é fundada por um erro de cálculo:

O que os clássicos nos ensinam é, antes de mais nada, o seguinte: a política


não se ocupa dos vínculos entre os indivíduos, nem das relações entre os
indivíduos e a comunidade, ela diz respeito a uma contagem das ‘partes’ da
comunidade, que é sempre uma falsa conta, uma dupla contagem ou um erro
de conta” (RANCIÈRE, 2018, p.9).

O fundamento da política é a suspensão. O começo dela é uma desmedida, é uma


ausência de limite. Ela começa por um dano maior: “O dano pelo qual existe política não é
nenhuma falta pedindo reparação. É a introdução de um incomensurável no seio da distribuição
dos corpos falantes” (RANCIÈRE, 2018, p.34).82 Esse incomensurável que não cabe, que
excede à contagem, é tido, porém, como parte: Rancière diz que o povo é tido como uma parte,
mas ele não é senão apenas uma parte dos sem-parte (RANCIÈRE, 2018, p.15-34). Ou seja, o
povo é aquilo que é incluído em sua exclusão, não em seu pertencimento, mas na negação de
seu pertencimento, em seu despertencimento, em seu dano. Nessa inclusão-exclusiva, o que
está em jogo nessa definição é uma inclusão ilusória, uma inclusão que não passa de exclusão.

82
“O incomensurável que funda a política não se identifica com nenhuma ‘irracionalidade’. É antes a própria
medida da relação entre um logos e a alogia que ele define – no duplo sentido da alogia que, no grego de Platão e
Aristóteles, significa duas coisas: a animalidade da criatura condenada apenas ao ruído do prazer e da dor, mas
também a incomensurabilidade que separa a ordem geométrica do bem da simples aritmética das trocas e das
reparações” (RANCIÈRE, 2018, p.57).
314

“Mas é mediante a existência dessa parte dos sem-parte que a comunidade existe
enquanto comunidade política, ou seja, enquanto dividida por um litígio fundamental”
(RANCIÈRE, 2018, p.24). O que faz a existência de uma comunidade política, para Rancière,
é exatamente o dano, a comunidade política é o dano, é um dano que institui o povo como parte
quando, na verdade, “o povo não é uma classe entre outras[,] é a classe do dano que causa dano
à comunidade” (RANCIÈRE, 2018, p.24). Fundada em um duplo dano em que o povo é a causa
e o objeto desse dano, a política, sendo um dano ao povo e instituindo o povo como dano,
acontece efetivamente quando há a interrupção desse litígio fundamental (RANCRIÈRE, 2018,
p.26-28). Em outras palavras, poderíamos dizer, contra a política que secularmente se institui
decretando o povo como dano, contra a política que historicamente é fundada nesse dano, a
política efetiva, contrariamente a essa antipolítica vigente, seria a interrupção dessa lógica:
“Ora, só há política mediante a interrupção, mediante a torção primária que institui a política
como o desdobramento de um dano ou de um litígio fundamental (RANCIÈRE, 2018, p.28).83
Ao contrário dessa política efetiva, Rancière chama a política que conhecemos de
polícia:

Chama-se geralmente pelo nome de política o conjunto de processos pelos


quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a
organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de
legitimação dessa distribuição. Proponho chamá-los de polícia (RANCIÈRE,
2018, p.42, grifo do autor).

Política seria, então, a interrupção da lógica do litígio pela comunidade que tem, como
elemento em comum, o dano. Essa comunidade do dano, os pobres, o proletariado, o povo, os
“plebeus”, como diria Rancière, são excluídos da política como aqueles que não possuem fala,
apenas som, tal como a distinção aristotélica entre phoné e logos.84 Assim, um dos elementos
que está em jogo no litígio que institui a política é a oposição entre animais lógicos e animais
fônicos, diz Rancière em “O dano: política e polícia” (RANCIÈRE, 2018, p.36).

83
Ele diz, ainda, em outro momento: “[...] não existe sempre política. Ela acontece, aliás, muito pouco e raramente.
O que comumente se atribui à história política ou à ciência do político na verdade depende, com frequência muito
maior, de outras maquinarias, que por sua vez provêm do exercício da majestade, do vicariato da divindade, do
comando dos exércitos ou da gestão dos interesses. Só existe política quando essas maquinarias são interrompidas”
(RANCIÈRE, 2018, p.32).
84
“A política não existe porque os homens, por meio do privilégio da fala, acordam seus interesses em comum. A
política existe porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e
instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento,
a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão” (RANCIÈRE,
2018, p.40).
315

Gabriel Giorgi parte dessa oposição para falar dessa escritas que operam “no limite da
linguagem articulada”, vendo o ódio contemporâneo como um “lugar limítrofe entre a
linguagem articulada e o barulho da voz, onde os limites do dizível entram em questão”
(GIORGI, 2019, p.95). Assim, é “entre a palavra articulada, autorizada, com valor normativo,
e aquelas linguagens irreconhecíveis, ilegítimas, sem autoridade, insignificantes”, como
“murmúrio, tumulto, rumor, clamor, esse contorno no qual as palavras se dissolvem no grito,
no sussurro, na meia-voz [...]”, é “essa zona impessoal entre a palavra e som”, “a fricção entre
voz e palavra”, o lugar em que se situa o ódio político (GIORGI, 2019, p.95).
A partir dessa disputa “pelo que conta como logos ou como barulho”, a partir desse
“mal-entendido”, Giorgi, com base em Rancière, considera que é “nessa tensão entre palavra e
barulho como configuradora do público que devemos situar a pergunta pelo ódio, do ódio
escrito como ódio político” (GIORGI, 2019, p.97).

No centro dessa disputa: o grito, o barulho, o tumulto, o murmúrio, a fofoca,


a voz anônima, o que se diz a meia-voz, o que circula e fricciona os modos da
dicção pública: a voz, o barulho na língua. É nessa fricção, entre o que pode
ou não ser palavra, enunciado válido, que tem força de verdade, que Rancière
localiza o trabalho do público, o fazer público (GIORGI, 2019, p.97).

O “ódio político” operaria, então, rompendo o pacto do dizível, do reconhecível, do


legítimo, do normativo, do autorizado, do articulado, e aqui eu leio essa ruptura de pacto, essa
separação que é, ao mesmo tempo, rearticulação, na chave do “desentendimento” de Rancière:
para ele, um sujeito político “é um operador que junta e separa”, é um mensurador de distâncias
“entre uma parte reconhecida e uma ausência de parte”, isto é, é aquele que não se identifica
pela parte a que pertence, mas pela distância que o coloca como incontado em relação à parte
reconhecida:

“Mulher” em política é o sujeito da experiência que mensura a distância entre


uma parte reconhecida e uma ausência de parte. “Operário”, ou melhor,
“proletário”, é da mesma forma o sujeito que mensura a distância entre a parte
do trabalho como função social e a ausência de parte daqueles que o executam
na definição do comum da comunidade. Toda subjetivação política é a
manifestação de uma distância desse tipo. Toda subjetivação é uma
desidentificação, um arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um
espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma
contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parte e uma ausência
de parte” (RANCIÈRE, 2018, p.50).

Os incontados, como sujeitos políticos, contariam ou mediriam a distância entre a


palavra e o som, contariam, mensurariam, portanto, o litígio, o dano a que foram expostos,
316

colocando em relação grupos que aparentemente não teriam relação. Assim, partilhando uma
distância, essa comunidade dos incontados não se definiria senão pelo duplo sentido da palavra
“partilha”: comunidade e separação (RANCIÈRE, 2018, p.40). Não pela lógica do consenso do
traço igualitário, mas pelo tratamento do dano, tratamento que implica não a agregação que
pressupõe o pacto da política vigente ou, segundo Rancière, da polícia, mas a “partilha” em que
ruptura e articulação constituem um mesmo movimento.
E, depois dessa aproximação do “ódio político” de Kiffer e Giorgi com o princípio de
“partilha” da política como “mal-entendido” ou “desentendimento” de Rancière, arremato esse
nó com um trecho de um poema de Marceli Andresa Becker, poeta cujo livro de estreia está no
prelo, de algum modo voltando ao vínculo que Kiffer fez do amor com o ódio político:

amar o homem que tu és


[...]
a mim não cabe amar inadvertidamente
não posso esquecer as meninas, a escola em realengo
os últimos dias
de eloá
o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018
uma mulher a cada duas horas no brasil
seis mulheres a cada hora no mundo
não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no laço
capturadada assim, como um animal
não esquecerei amanda
nina, bruna
a poça que se formou no chão durante o aborto, de um vermelho sem fim
não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada
não esquecerei minha irmã
minha mãe
minha avó, morta com um tiro no peito
-
tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais
eu te amo mais, meu amor -
porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio85

Junto ao que Kiffer e Giorgi falaram do “ódio político” das “escritas precárias” que
fazem estremecer o pacto consensual, igualitário e civilizatório da democracia, que desafiam,
como um barulho, um grito, um murmúrio, um sussurro, “a política do ódio” fundada também
no logos, na normatividade da linguagem sistemática, ordenada, articulada, eu vinculo os
poemas de Valeska Torres, Tatiana Pequeno, Bruna Mitrano e essa carta de amor, que é,

85
Disponível em https://www.facebook.com/GerminaRevistaDeLiteraturaEArte/posts/2973291352713148/
Acesso em 26/08/2019.
317

também, uma carta às mulheres, que é, também, uma carta ao nosso tempo, que é uma
rememoração, que é um trabalho de luto. Essa carta de amor sintetiza, pelo “mais”, pelo amor
que, dito pela mulher sujeito do poema, é maior do que o amor do personagem masculino a que
a voz da mulher se dirige (“eu digo eu te amo mais/ eu te amo mais, meu amor”), essa carta,
esse poema, sintetiza o “amor esdrúxulo” com o qual e pelo qual vamos sobreviver, isto é, um
amor que não é apenas amor, mas um amor com ódio como o que confere maior potência, como
o que confere esse “mais”, ao amor. Ao contrário de suprimir o amor, de diminuir o amor, esse
ódio amplifica o amor, aumenta o amor, quando “amar mais” não significa amar “com amor
apenas”, mas “amar com ódio”.
Vamos sobreviver “com um amor esdrúxulo”, isto é, esquisito, excêntrico, extravagante,
um amor que não tem a ver com água com açúcar, mas com uma vingança que tampouco diz
de morte, de genocídio, já que essa é a tradução de amor da “política do ódio” exemplificada
no poema de Tatiana Nascimento. Essa vingança é no sentido de uma praga, de uma traça, de
um troço que se espalha e vinga, vive. Como dizem os versos:

mas a gente, que nem semente daninha,


vinga, se espalha, sobre
vive!
porque a gente, que você amaldiçoa
em nome do seu amor doentio, segrega
dor, htcisnormativo,
a gente que é amante,
a gente é que vive y espalha

amor

A vingança, aqui, é isso que logra, que obtém êxito, que sobrevive, rasteiramente, se
espalhando pela terra: o que vinga aqui é um coletivo (“a gente”), um coletivo amante (“a gente
que é amante”), em que o seu espalhamento é necessariamente o espalhamento do amor, porque
o que vinga e se espalha como “semente daninha” não é o amor em si, é o coletivo amante, é
um “nós” que porta não o amor em si, mas um modo de amor (“esqueersito”) que, no poema
de Nascimento, passa a ser a afirmação da tradução de amor contra a má tradução pelo horror.
A sobrevivência está, pois, diretamente atrelada ao “amor esdrúxulo”, para usar o termo
de Di Leone, ou ao amor “esqueersito”, para usar o termo do poema. Sobreviver, isto é, vingar,
espalhar-se por sobre, é sobreviver como ou enquanto se ama esdruxulamente ou
esqueersitamente. Se, em outro momento, falamos que a sobrevivência está diretamente
atrelada à morte e à alteridade, agora esse poema nos diz que ela também está indissociável do
318

modo como se ama – também porque esse modo de amar está indissociado de um corpo em
risco, marcado pela possibilidade da violência e da morte.

Em Corpos em aliança e a política das ruas, de tradução de Fernanda Miguens, Judith


Butler diz: “uma condição compartilhada de precariedade situa nossa vida política” (BUTLER,
2018, p.106). Nesse livro, Butler traz uma discussão importante a respeito do que foi tematizado
ao longo desses capítulos: ela coloca em questão o pensamento de Hannah Arendt no que ele
se ancora no modelo da pólis grega em que política e corpo são opostos e inconciliáveis. Além
de Arendt, mas ainda com relação a ela, Butler pontua uma discordância também com
Agamben:

O impulso para o conceito de Giorgio Agamben de “vida nua” deriva dessa


concepção de polis na filosofia política de Hannah Arendt e, como eu
sugeriria, corre o risco de incorrer no mesmo problema: se buscarmos dar
conta da exclusão propriamente dita como um problema político, como uma
parte da própria política, então não será possível dizer que, uma vez excluídos,
esses seres perdem aparência ou “realidade” em termos políticos, que eles não
têm posição social ou política ou foram expulsos e reduzidos a meros seres
(formas de “ser dado” excluídas da esfera da ação) (BUTLER, 2018, p.88-89).

Butler acredita que afirmação da vida nua destitui ainda mais as populações que desde
sempre foram excluídas de formas de ação. Assim, a teórica norte-americana quer pensar como,
diante dessa exclusão histórica, é possível pensar em modos de ação justamente porque essas
populações desde sempre foram excluídas da ação, enquanto, diferentemente, Agamben quer
pensar, colocando em xeque o paradigma de ação, como é possível pensar em uma política que
não parta do princípio da ação, já que, para ele, ela nunca foi possível a essas populações.
Enquanto Butler não abre mão da ação, mesmo que essa ação não seja em termos gregos,
enfatizando que essas pessoas excluídas têm e devem ter ação, Agamben parte da
impossibilidade da ação para pensar uma política que não parta, desde seu vocabulário, daquilo
que sempre operou excluindo, isto é, a ação. Há vários conceitos, em Agamben, que poderiam
indicar uma política alternativa à política fundamentada na ação, como “forma-de-vida”,
“gesto”, “profanação”, “inoperosidade”, conceitos que são abordados ao longo de todo seu
pensamento, mas, por não serem objeto desse estudo, não serão desenvolvidos aqui.
Logo na introdução de Corpos em aliança, Butler formula uma pergunta muito parecida
com a pergunta que Agamben formulou na entrevista a Alessandro Leogrande, “Do desastre
319

nos salvará a vileza de Pulcinella”, título de seu livro ainda inédito no Brasil que, entretanto, já
está sendo traduzido. Butler pergunta: “Que significa agir em conjunto quando as condições de
ação conjunta estão destruídas ou entrando em colapso?” (BUTLER, 2018, p.29). Agamben
pergunta: “o que pode um corpo quando toda ação se tornou impossível”? (AGAMBEN, 2016,
s/p)86. A partir dessa pergunta, Agamben vai pensar em uma política que começa quando toda
ação se tornou impossível, ou o que pode um corpo quando não pode mais agir politicamente
(AGAMBEN, 2016, s/p). Butler, diferentemente, quer afirmar formas de ação enquanto
possibilidade, sobretudo, em condições de precariedade, justamente porque as condições de
ação estão destruídas. Embora haja discordâncias quanto ao partir ou não partir da ação, penso
que a performatividade em Butler se assemelha ao que os conceitos de Agamben desembocam
no “uso”, isto é, em um operar que desativa determinações a que algo está atrelado, sendo em
si mesmo uma abertura a possibilidades, sendo a possibilidade ininterrupta de transformação, a
possibilidade de fazer, de algo, sempre outra coisa. Isso que possibilitaria errar o destino e que
seria eminentemente político, para Agamben, se assemelha, a meu ver, com o que está em jogo
na ideia de performance ou de performatividade de gênero como a possibilidade de um processo
de deslocamento, a possibilidade de criar formas, de pôr em xeque a noção de identidade, de
não coincidir com o biológico, de subverter essência e substância, de burlar as normas, enfim,
de poder fazer de si, discursivamente, corporalmente, outra coisa, desativando a normatividade
e os dispositivos de poder que capturam a vida.
Com relação às ponderações no pensamento de Hannah Arendt, estabelecendo
pontuações no pensamento da filósofa alemã, indo com ela em alguns aspectos e, em outros,
discordando dela, Butler considera que a noção de “espaço de aparecimento”, de exibição, de
exposição, que Arendt atribui como característica da política a partir da Grécia Clássica, não
pode hoje ser pensada excluindo o corpo, excluindo aquilo que a política sempre excluiu.87
Como foi dito na primeira parte, para Arendt, a política é um espaço em que os homens se
exibem, se mostram, se expõem, aparecem. Assim, Butler concorda com Arendt quanto ao
“espaço de aparecimento”, bem como com a ideia de que a política é um espaço que acontece
entre corpos, ou seja, de que a política se define por esse “entre”, sendo necessariamente
interrelacional, um espaço que é negociado, mas Butler aponta os limites de Arendt quanto a

86
Essa entrevista foi traduzida por Vinícius Nicastro Honesko no blog Flanagens. A tradução que eu uso da
pergunta é, porém, de Davi Pessoa, em uma postagem no facebook em 12 de agosto de 2017, quando tomei
conhecimento da entrevista. A entrevista está disponível em http://flanagens.blogspot.com/2016/09/do-desastre-
nos-salvara-vileza-de.html Acesso em 21/09/2018.
87
“Hannah Arendt certamente tinha tanto a polis grega clássica quanto o fórum romano em mente quando afirmou
que toda ação política requer o ‘espaço de aparecimento’” (BUTLER, 2018, p.82).
320

alguns pontos: dentre eles, um é a determinação desse “espaço de aparecimento” da política


pela fala e pela ação88, excluindo os movimentos corporais, o silêncio, a respiração, a exposição
do corpo desprovida de vocalização, por conseguinte, determinando a política pela exclusão do
corpo; outro problema é a tal da “igualdade” que, na polis, como já foi falado, significa
igualdade entre homens livres. O pensamento de Arendt sobre a política, portanto, exclui o
corpo – afirmando o paradigma grego que circunscreve o corpo à esfera da necessidade, da
sobrevivência, e não da liberdade 89– e todos aqueles e todas aquelas que historicamente não
são livres, como mulheres, como escravos, que se atualizam nos negros, como bárbaros, que se
atualizam nos imigrantes. Amplificando essa crítica, Butler pensa que, o que une a condição
das pessoas oprimidas e violentadas pela normatividade de gênero, em seu pensamento sobre
teoria queer, ao qual ela se dedicou ao longo de todo seu trabalho, com a condição de outra
parcela de pessoas oprimidas e violentadas, é a precariedade, é a vida não digna de ser vivida a
qual estão submetidas:

Em Problemas de gênero (1989), algumas vezes parecia que certos atos que
os indivíduos podiam executar tinham ou podiam ter um efeito subversivo
sobre as normas de gênero. Agora eu estou trabalhando a questão das alianças
entre várias minorias ou populações consideradas descartáveis; mais
especificamente, estou preocupada com a maneira pela qual a precariedade –
esse termo médio e, de algumas formas, esse termo mediador – pode operar,
ou está operando, como um lugar de aliança entre grupos de pessoas que de
outro modo não teriam muito em comum e entre os quais algumas vezes existe
até mesmo desconfiança e antagonismo (BUTLER, 2018, p.34).

Operando a partir da “precariedade” como um “termo mediador”, a filósofa


estadunidense não só traz o corpo para o centro da política e como questão política, ao contrário
de Hannah Arendt mas, é pela noção ainda de um “corpo em risco”, de corpos em que o
aparecimento ou a exposição já significa um risco, como um corpo de um manifestante frente
à polícia, como um corpo negro frente à polícia, como um corpo “pobre, preto, favelado” frente
à polícia, como um corpo doente frente à desigualdade de assistência médica, como um corpo

88
“Não pode ser que a ação seja um poder específico de fala, e que o ato de fala seja o modelo da ação política.
Essa pressuposição de Arendt em A condição humana presume que o corpo não entra no ato de fala, e que o ato
de fala é entendido como um modo de pensar e julgar. A esfera pública na qual o ato de fala se qualifica como a
ação política paradigmática é uma esfera que já está, na visão dela, separada da esfera privada, o domínio das
mulheres, dos escravos, das crianças e daqueles muito velhos ou enfermos para trabalhar. Em um sentido, todas
essas populações estão associadas com a forma corporal da existência, caracterizada pela ‘transitoriedade’ de seu
trabalho, e contrastada com feitos verdadeiros, que incluem a realização de obras culturais e o ato falado”
(BUTLER, 2018, p.52-53).
89
“Para Arendt, ao que parece, aqueles que agem a partir da necessidade agem a partir do corpo, mas a necessidade
nunca pode ser uma forma de liberdade (as duas são opostas), e a liberdade só pode ser alcançada por aqueles que
estão bem, não famintos” (BUTLER, 2018, p.54).
321

de uma mulher que anda na rua, como os corpos de gays, lésbicas e todos os corpos que se
abrem na sigla LBGTQI+, que Butler instaura um pensamento em que pensar o corpo como
centro e questão da política é mais que pensar o corpo, é pensar um corpo em risco. E esse
pensamento não se faz senão ele mesmo como uma aliança: nele, pensar a teoria da
performatividade de gênero é pensar, entrelaçadamente, uma amplidão de vidas que, pela
precariedade, são determinadas como descartáveis.
Assim, Butler faz do próprio termo queer um transporte, pensando-o como uma via,
uma ligação, um elo, como um termo que já é um envio, que se lança de si para além de si, que
transporta, carrega ou reenvia a um outro: “o termo queer não designa identidade, mas aliança,
e é um bom termo para ser invocado quando fazemos alianças difíceis e imprevisíveis na luta
por justiça social, política e econômica” (BUTLER, 2018, p.79). Unindo perfomatividade e
precariedade, Butler vai às minorias sexuais no ponto em que as liga com as populações
precárias: a condição de serem matáveis, descartáveis ou vidas “não passíveis de luto”
(BUTLER, 2018, p.34). Se é a precariedade que situa a nossa vida política, como disse a teórica,
se a precariedade é o fator que nos localiza em um comum que partilhamos, Butler inverte o
princípio mesmo pelo qual a política é pensada desde os primórdios. Pensar a política é então
pensá-la pelo ponto que desde os seus fundamentos ocidentais era considerado o oposto da
política.
O que une não apenas os poemas de Valeska Torres com o de Tatiana Nascimento, mas
também esses com os de Bruna Mitrano e de Tatiana Pequeno, é exatamente esse ponto de
precariedade em que as vidas que neles estão em jogo são vidas matáveis, expostas à morte,
não como um “ser para a morte” em que a morte é pensada como naturalmente dada, mas como
um ser para o assassinato, para o extermínio, isto é, não como um ser morrível, mas como um
ser matável. “A ‘precariedade’ designa a situação politicamente induzida na qual determinadas
populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas
mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”
(BUTLER, 2018, p.40).
Ao longo do livro, Butler esclarece o que e como ela entende “precariedade”, com o
cuidado de não essencializar o termo, de não cair no perigo de fortalecer argumentos
“paternalistas de proteção” quanto às mulheres, por exemplo, de não o atrelar a termos de ser
ou ente que pudesse cair em uma essência vulnerável (BUTLER, 2018, p.154). Por isso, ela
delimita: “quando dizemos que o corpo é vulnerável, estamos dizendo que ele é vulnerável à
economia e à história” (BUTLER, 2018, p.162). Ninguém é vulnerável em si, a precariedade
ou a vulnerabilidade se dá como condição de desamparo do Estado, de diferentes formas, a
322

diferentes grupos da população. Ela faz questão de dizer que “a precariedade é a distribuição
diferencial da condição precária” (BUTLER, 2018, p.41):

Populações diferencialmente expostas sofrem um risco mais alto de doenças,


pobreza, fome, remoção e vulnerabilidade à violência sem proteção ou
reparações adequadas. A precariedade também caracteriza a condição
politicamente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas de
populações expostas à violência arbitrária do Estado, à violência urbana ou
doméstica, ou a outras formas de violência não representadas pelo Estado, mas
contra as quais os instrumentos judiciais do Estado não proporcionam
proteção e reparação suficientes (BUTLER, 2018, p.41).

Em outro momento, lemos: “A precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queers,


as pessoas transgêneras, os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas
também as minorias raciais e religiosas: é uma condição social e econômica, não uma
identidade” (BUTLER, 2018, p.65). Essa marca que é um elo, que porta a interdependência, a
aliança, que se torna o comum de tantos e tantos que, a princípio, não teriam muito em comum,
é também o que une os poemas analisados aqui.
A título de explicitação deste elo, penso em outro poema de Tatiana Nascimento,
publicado no mesmo livro referido, “manifesta queerlombola, ou tecnologia / ancestral / de cura
/ amor / y de / prazer” (NASCIMENTO, 2019, p.35). De cara, no título, encontramos a junção
entre as palavras queer e “quilombola”. Mais que uma junção, queer dá em quilombola, queer
está em quilombola. As duas juntas já não são exatamente uma adição da luta de gênero com a
luta quilombola, da luta de gênero com a luta negra, mas a transformação em outra palavra, a
transformação em outro nome, nem queer nem quilombola, mas queerlombola. Esse novo nome
já excede a identidade, não diz mais respeito a um, mas é em si uma aliança que, por sua vez,
não é uma mera adição, mas a transformação da identidade, a transformação da independência
em interdependência. A nova palavra transforma, inclusive, o gênero da primeira: manifesto
vira manifesta. Inverte-se a concordância, indecidindo entre substantivo e verbo, transformando
o substantivo. Essa “tecnologia”, como diz o título, essa máquina de transformação da
linguagem, do discurso, da iterabilidade performática, em outro título de outro poema vem
associada ao amor: “o amor é uma tecnologia de guerra (cientistas subnotificam arma-
biológica) indestrutível”. Amor que, pelo poema, sabemos que é um amor entre duas mulheres
(“é nossa arma de guerra, ‘mana minha’, desejada// amante” (NASCIMENTO, 2019, p.21)).
Essa “tecnologia” transgressora em que queer e quilombola se transforma em queerlombola
não é senão um engendramento que parte do corpo & do modo como se ama:
323

cola-velcro - é da diáspora
qüenda-neca - é da diáspora
morde-fronha - é da diáspora
gilete (“corta -
pros-2-lado”) - é
da
diáspora

viadagem
é coisa de pretx sim

queerências
é coisa de pretx sim

sapatonice
é coisa de pretx sim

transex assex bissex pansex


é coisa de pretx sim

[...]
(NASCIMENTO, 2019, p.35)

Contrapondo o que “é da diáspora” ao que “é coisa de pretx sim”, enquanto as


designações ligadas ao gênero e ao investimento amoroso da primeira estrofe são atreladas à
diáspora, ao deslocamento forçado, ao preconceito, portanto, levando a crer que essas
designações não são “coisa de pretx”, mas do colonizador, as designações dos dísticos
(“viadagem”, “querências”, “sapatonice”, “transex assex bissex pansex”) são, ao contrário,
afirmadas na cor do corpo colonizado, do corpo que sofreu a diáspora. A cor, que a princípio
não teria a ver com as afirmações de gênero, corrobora as afirmações de gênero.
No cordel da série “Pandemia” da n-1 edições, intitulado Cuírlombismo literário, não
só encontramos a palavra “aqueerlombamento” riscada, seguida de “acuírlombamento”,
(“aqueerlombamento acuírlombamento”), como também Tatiana explica “a parecença entre
queer e quilombo”: “a parecença entre queer e quilombo sugere algo urgente a celebrar y a
retomar pra nossas lutas e existências, já que os pilares mais rígidos y antigos do racismo
colonial são o silenciamento e as expectativas sexuais sobre corpos negros” (NASCIMENTO,
2019b, p.4, grifos da autora). Nesse livro, como no poema anterior, afirma-se o modo como se
diz a palavra no poema anterior, “Apocalipse cuír”, com “cu”, forjando o conceito de
“cuírlombismo”. Essa invenção, Tatiana explica, vem de uma junção de Nascimentos,
precisamente, de dois Nascimentos: a conceituação de Beatriz Nascimento, que diz que “mais
que ‘grupos de escravos fugidos’, eles [os quilombos] forma experimentações de liberdade”
(NASCIMENTO, B. apud NASCIMENTO, T., 2019b, p.16), com o programa de outro
324

Nascimento, o grande intelectual e ativista negro Abdias do Nascimento, que compreende o


quilombismo como “‘um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação
de um Estado Nacional Quilombista, inspirado na República dos Palmares’” (NASCIMENTO,
A. apud NASCIMENTO, T., 2019b, p.15). Nas palavras de Tatiana: “conectando a
conceituação pioneira de nascimento b. ao projeto de nascimento a., forjo desde meu lugar
afrodiaspórico sexual-dissidente o conceito de cuírlombismo literário (nascimento t.)”
(NASCIMENTO, 2019b, p.18).
Se, em Tatiana Nascimento, a luta de gênero está aliada à luta negra (que vem não só
pelo corpo, pela cor, mas pelo espaço de luta dos escravos, os quilombos, sendo, portanto, uma
luta que passa pelo corpo, pela religiosidade ancestral africana e pelo quilombo enquanto espaço
territorial e espaço simbólico de organização, criação e resistência, de luta90) e ambas operam
pelo amor, em Valeska Torres, o amor aparece diretamente relacionado com a luta das mulheres
e com a luta dos desfavorecidos economicamente. Na mesma abordagem em que se fala de um
relacionamento, fala-se de assédio contra a mulher, fala-se de um cenário periférico e/ou
suburbano e das formas variadas de miséria da lógica sinistra que rege o capitalismo. Ao longo
do livro, vamos vendo em vários os poemas os efeitos do capital, como os versos de “Dois
filhos bantos”: “São dois filhos bantos,/ que cantaram sob o sol ao som do berimbau,/ se matam
hoje em Manguinhos,/ ao troco do capital” (TORRES, 2019, p.36). A existência pautada em
uma escala de precariedade fica evidenciada nos versos que mostram o mais precário que o
precário, o mais precário que o trabalho já precarizado, quando o que já é precarizado se torna,
para muitos, “artigo de luxo”: “Na minha casa,/ essa de muro encardido,/ uber é artigo de luxo.//
Na minha casa,/ essa de portão descascado,/ táxi é samu 192” (TORRES, 2019, p.75).
Econômica, social, de gênero, religiosa, a precariedade que une esses poemas e essas poetas,
além de, na esteira do pensamento de Butler, colocarem a necessidade de pensar a superação
da cisão entre privado e público, doméstico e político, corpo e política, trazem essas questões
em uma abordagem em que o investimento amoroso engendra os poemas, levando a crer que
um pensamento sobre a política começa, também, desde o modo como se ama.

90
Em Cuírlombismo Literário, Tatiana Nascimento diz: “compreender quilombo como resistência e organização
vem da atlântica beatriz nascimento, ao rejeitar a definição rasa (“agrupamento de escravos fugidos”) e redefinir:
‘numerosas formas de resistência [com as quais] x negrx manteve ou incorporou a luta árdua pela manutenção de
sua identidade pessoal e histórica’. o quilombo ‘[...] representou na história do nosso povo um marco na sua
capacidade de resistência e organização’. (1985, p.117)” (NASCIMENTO, B. apud NASCIMENTO, T., 2019b,
p.14). E, ainda: “[...] ao longo de sua reconfiguração, os quilombos tornaram-se sistemas organizacionais
complexos, de produção cultural, convivência inter-racial, trocas de saberes, sistemas decisórios diversos”
(NASCIMENTO, 2019b, p.16).
325

“[S]ão tempos de ligações desesperadas em busca de cesta básica/ de esgoto


amarronzado bosta carne comida camisinhas usadas de casca de paredes rachadas limo”
(TORRES, 2019, p.57). Esses versos de Valeska são de “Espectro”, outro poema da seção “No
cio, relincha”. O poema é a seda enrolada antes do tabaco queimar. No tempo de um cigarro
cabem o pensamento sobre os “dedos queimados” que enlaçam relação amorosa e condições
precárias de trabalho, relação amorosa e condições indignas de vida, relação amorosa e pobreza:
“as horas do almoço são mínimas/ as cozinhas também/ todos em caixa de papelões revirando
sacolas plásticas” (TORRES, 2019, p.57-58).
“Espectro” diz das feridas de um amor: “a vingança destruiu as suas melhores horas,
digo a ele”, “coração é máquina do tempo, ele me diz”/ entre os dedos queimados/ o beck em
nossas mãos termina em feridas” (TORRES, 2019, p.57-58). Dizer das feridas de um amor,
como um fantasma que volta na fumaça de um cigarro, é dizer “são tempos de ligações
desesperadas em busca de cesta básica/ de esgoto amarronzado bosta carne comida camisinhas
usadas de casca de paredes rachadas limo” (TORRES, 2019, p.57). Um vocabulário econômico
perpassa quase todos os poemas: em “Espectro”, falar do público é falar “nos cômodos da minha
casa me negam cartões de crédito, cheques” (TORRES, 2019, p.57). Fala-se do tempo, da
sociedade, do público, falando disso que é propriamente econômico, doméstico, como os
“cômodos da minha casa”. Falar do fim de um amor e falar do tempo é falar um vocabulário
econômico e biológico, isso que pertenceria tão somente à vida nua: “uma seda comprada a
varejo,/ e o corpo já não se satisfaz só pelo estômago” (TORRES, 2019, p.58).
“No começo, foi a práxis”, disse Luciana Di Leone em um artigo sobre poesia
contemporânea, afeto e economia. Di Leone fala sobre o termo oikonomia a partir do
pensamento de Agamben em O Reino e a Glória: “No começo, foi a administração da casa, a
prática do viver junto, parece se depreender da genealogia levada adiante por Agamben” (DI
LEONE, 2015, p.215). Em O Reino e a Glória, Agamben diz:

Oikonomia significa “administração da casa”. No tratado aristotélico (ou


pseudoaristotélico) sobre a economia, lê-se que a techne oikonomike se
distingue da política, assim como a casa (oikia) se distingue da cidade (polis).
A diferença é confirmada na Política, em que o político e o rei, que pertencem
à esfera da polis, aparecem qualitativamente contrapostos ao oikonomos e ao
despotes, que se referem à esfera da casa e da família (AGAMBEN, 2011,
p.31).
326

Na Política, Aristóteles afirma que a oikonomia diz respeito às partes de que a família
é formada: “os elementos da economia doméstica [oikonomia] são exatamente os da família, a
qual, para ser completa, deve compreender escravos e indivíduos livres [...] [composta] em três
classes de indivíduos: o senhor e o escravo, o marido e a mulher, os pais e os filhos”
(ARISTÓTELES, 2009, 1253b/p.17). Assim, em “O mistério da economia”, presente em O
Reino e a Glória, Agamben ressalta que “oikos não é a casa unifamiliar moderna nem
simplesmente a família ampliada, mas um organismo complexo no qual se entrelaçam relações
heterogêneas, que Aristóteles distingue em três grupos”: relações despóticas, relações paternas
e relações gâmicas, em que a primeira se dá entre senhores e escravos, a segunda entre pais e
filhos e a terceiro entre marido e mulher (AGAMBEN, 2011, p.31). O que une essas relações
ditas econômicas, Agamben diz, “é um paradigma que poderíamos definir como ‘gerencial’, e
não epistêmico; ou seja, trata-se de uma atividade que não está vinculada a um sistema de
normas nem constitui uma ciência em sentido próprio [...], mas um certo modo de ser”
(AGAMBEN, 2011, p.31-32).
O que Agamben vai mostrar, porém, é que a política é impregnada por esse vocabulário
gerencial que provém da teologia econômica: as noções de “governo”, “gestão”, “controle”,
“ordenação”, “organização”, dão um tom eminentemente doméstico de uma teologia
econômica que rege a política ocidental (AGAMBEN, 2011, p.38). Depois da polis grega e,
sobretudo, com o cristianismo, a política passou a coincidir com esse paradigma gerencial que
pertencia a uma esfera que ela mesma se opunha (AGAMBEN, 2011, p.31-66). Analisando
exemplos de textos teológicos dos séculos II e III em que o termo oikonomia aparece, Agamben
diz, por exemplo, que “[c]aracterizando a ekklesia em termos domésticos, ao invés de políticos,
Paulo [São Paulo] só faz continuar um processo que já havia começado [...]. Exemplos
significativos são o uso de oikos em 1Tm 3,15, em que a comunidade é definida como ‘casa
[não ‘cidade’] de Deus [oiks theou]” (AGAMBEN, 2011, p.39). Assim, a comunidade, essa
palavra que fundamentalmente caracterizava o político, com base em seu fundamento grego,
era “representada desde o início nos termos de uma oikonomia e não daqueles de uma política”
(AGAMBEN, 2011, p.39).
Isso leva a crer que o que imaginamos por política nunca passou de uma administração
da casa, que a administração de um Estado como algo público nunca deixou de equivaler a uma
administração privada da casa. Nessa esteira em que governantes administram um país como
se administrassem suas próprias casas, caímos no perigo de perceber que certos abusos de poder
despóticos que caracterizavam a esfera doméstica e não a esfera política comparecem no
governo de um país, já que se perde a diferença entre privado e público e aquele que seria um
327

déspota nas relações domésticas continua sendo um déspota como governante. A inserção da
economia na política, praticamente como se uma fosse a outra, mostra-se hoje tão atual e, talvez,
desde a modernidade, elas tenham sido de fato toxicamente inseparáveis pela existência do que
começou a surgir no capitalismo com o nome de “mercado”, isto é, compreendido, no sistema
capitalista, como um conjunto de famílias proprietárias, como um conjunto, portanto, de
interesses privados, que domina a política, aquilo que deveria ser público. Cláudio Oliveira diz
muito bem sobre isso em artigo publicado no Estadão, em 21 de novembro de 2014, intitulado
“O mercado como dissolução da diferença entre público e privado”:

O que significa [...] afirmar que a política sofre pressões da economia e, mais
precisamente, pressões do mercado, essa entidade que, a partir das sociedades
modernas capitalistas, trabalha no sentido da dissolução da distinção entre
espaço público e espaço privado, entre economia e política? Nada mais nada
menos que afirmar que os interesses públicos, na modernidade, a partir do
momento em que as sociedades ocidentais se tornam capitalistas, estão
submetidos a interesses privados. É esse o grande insight de Karl Marx ao
escrever sua famosa obra, O Capital, na segunda metade do século XIX.
Isso que nós chamamos de mercado não pode, nesse sentido, ser entendido
como algo que possa substituir a sociedade, único espaço propriamente e
genuinamente político. O mercado não é nem uma família nem uma
sociedade, mas uma tentativa de abolição da diferença entre família e
sociedade, entre interesses públicos e interesses privados. O mercado é, na
verdade, uma reunião de famílias ou uma reunião de interesses privados que
tentam, reunidos, influenciar decisões que deveriam ter um estatuto
unicamente político, isto é, público (OLIVEIRA, 2014, s/p).

Se Agamben pensa a economia como a origem da política no Ocidente, Di Leone


acrescenta a essa relação o pensamento sobre o afeto nessa prática inaugural, em que a troca
econômica é inseparável de uma lógica afetiva. No livro de Valeska Torres, como vimos,
percebemos que nele não se fala das relações domésticas, amorosas, íntimas, afetivas sem que
se parta de um vocabulário econômico. No começo foi a práxis, a prática, a política, o viver
junto, indissociado da oikonomia, do afeto, do corpo, da necessidade, da sobrevivência, do
amor. Esse certamente é um começo que rasura o começo da política ao aliar não o que sempre
esteve aliado, isto é, economia e política, mas, especificamente, amor e práxis. Deslocando o
olhar do atributo exclusivamente mercadológico da economia e visando outro ângulo, o afeto,
pensar o amor na amplidão que ele abrangeria desde uma crítica à relação paternal aristotélica
até as mais diversas formas de amor, talvez seja um modo de desativar um tipo destrutivo da
relação entre economia e política em que o privado não mina o público, ao contrário, se dá,
antes, pela afetação do público no privado, em que a questão pública determina o privado e não
o contrário.
328

É outro sentido, portanto, que não está em O Reino e a Glória, que Luciana Di Leone
pega para atrelar a economia à política: a via do afeto – o que eu li, extraindo consequências,
como uma desativação da relação destrutiva, ou de um dos tipos destrutivos, que se dá na
indissociação entre economia e política. Em outro momento do livro, Agamben diz que a
política é aquilo que deveria libertar o vivente de seu destino biológico ou social (AGAMBEN,
2011, p.273). Em um dos ensaios de A comunidade que vem, chamado “Ética”, lemos uma
formulação semelhante a essa: “O fato do qual deve partir todo discurso sobre a ética é que o
homem não é nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou
espiritual, nenhum destino biológico” (AGAMBEN, 2013, p.45). Libertar do destino é garantir
a possibilidade de não ser aquilo que se foi destinado, naturalmente, biologicamente,
socialmente, a ser. A política seria, então, o que deveria garantir essa possibilidade, ou seja, não
outra coisa senão a transformação, a abertura a outra coisa, a garantia dessa abertura. Em outras
palavras, ao contrário de uma política que tem uma relação com a economia de governo dos
corpos, que atesta a atualidade da biopolítica (outra face destrutiva da relação política-
economia), a política que se quer política deve atuar desativando esse dispositivo econômico
que opera capturando os corpos e as relações. Os modos diversos de amar como uma
desativação da relação entre política e economia atrelada ao mercado, por exemplo, não quer
dizer que o amor, em si, é político, mas que o modo como se ama, o modo como se expõe ao
amor, diz completamente respeito ao modo como se vive em comunidade e que, nessa
desativação, não é a relação privada que dita a pública, mas a pública que influencia e/ou
determina a privada. Os modos de amar desativam a operação econômica sobre os corpos se
eles operam em uma abertura, se eles permitem a possibilidade de ser aquilo que não coincide
com biológico e com o socialmente determinado. Mais que os governos do estado, do país, são
determinados modos de amar (o que tem a ver com questões de gênero, questões sociais,
questões sócio-econômico-espaciais, todas as questões que estão em jogo em um modo como
se ama), que talvez mais instauram e garantem a política, porque afirmam aquilo que a política
vigente, a biopolítica vigente, a política econômica vigente, não cessa de aniquiliar, a
possibilidade de não coincidirmos com o nosso destino – social e biológico – para o qual
supostamente fomos determinadxs.
No sentido que Di Leone aborda a economia, que não é vinculada ao mercado, mas ao
afeto, a práxis não seria mais, então, a esfera da ação compreendida como característica do
espaço político em que os homens livres falam e agem, a práxis tampouco seria uma ação que
instauraria um início e um fim, segundo a acepção aristotélica, tampouco se reduziria
exclusivamente ao material, ao concreto, como a dicotomia entre teoria e prática, mas seria um
329

modo de viver em relação, seria a política enquanto relação, interdependência (e não


independência como atributo da ação) de corpos, em seus modos de viver em relação (com tudo
que isso implica, vendo a práxis como este estar-em-relação como tudo de material, simbólico,
imaginário que isso implica, inclusive, nos modos de viver em relação amorosamente), em seus
modos de viver em relação que desde o começo a política excluiu para se instaurar.
Em um momento de O Reino e a Glória, Agamben aponta modos de desativação do
dispositivo de captura da economia, e um dos exemplos a que ele recorre são os dias sabáticos,
os dias inoperosos, os dias em que se interrompe a produção, se interrompe a máquina, se
interrompe a obra, e apenas há “celebração” da possibilidade de criar, da potência criativa que,
nesse dia sabático, porém, não realiza a potência no ato, apenas se contempla essa potência, a
possibilidade de criação (AGAMBEN, 2011, p.273).91 O sábado seria então o dia em que o
humano se contempla como aquele que pode criar sem, porém, a obrigatoriedade de realizar a
produção. O ser humano como um ser produtivo seria tão somente aquele que celebra a
possibilidade de criar, e não aquele que está a serviço de um sistema cujo centro é a realização
da obra, do produto, e não a possibilidade criativa. “Tornar-se sábado”, então, é a expressão
que ele usa para dizer dessa inoperosidade que não significa senão o vazio no centro da máquina
(AGAMBEN, 2011, p.263). E operar em torno desse vazio seria, para Agamben, a ideia de uma
produção libertadora, pois não haveria então um centro que pudesse ser capturado na máquina
governamental, mas apenas um vazio em torno do qual se giraria sem finalidade. A partir disso,
Agamben não recorre senão à poesia como exemplo, especificamente, ao hino como “forma
específica de celebração”:

Que o fim último da palavra seja a celebração é um tema recorrente na tradição


poética do Ocidente. E, nela, a forma específica da celebração é o hino. O
termo grego hymnos deriva da aclamação ritual que se gritava no matrimônio:
hymen (muitas vezes seguida de hymenaios) (AGAMBEN, 2011, p.257).

Gostaria de atentar para essa derivação do “hino” de “hímen” e, por conseguinte, ao


clímax que a celebração culmina, ao fim de hinos, no amen [amém]. Segundo Agamben, com
base na Elegias de Rilke, hinos sempre são, ao mesmo tempo, celebração e lamento: o lamento
só pode ocorrer na esfera da celebração (AGAMBEN, 2011, p.259), porque os hinos não
celebram apenas a presença dos deuses, mas também seu adeus, sendo ao mesmo tempo
saudação de chegada e de despedida (AGAMBEN, 2011, p.259). Falando aos deuses, o que os

91
“Espinosa chama de ‘contemplação da potência’ uma inoperosidade interna, por assim dizer, à própria operação,
uma ‘práxis’ sui generis que consiste em tornar inoperosa toda potência de agir e de fazer específica”
(AGAMBEN, 2011, p.273).
330

hinos falam é tão somente a possibilidade de reverberação, de eco, é “pura vontade de falar”,
assim, eles são “o girar em falso da língua” como “desativação radical da linguagem
significante”, e o amen no final “não diz nada, apenas consente e conclui o que já foi dito”
(AGAMBEN, 2019, p.259). Leio o “Apocalipse Cuír” ou “cuíer A.P.” de Tatiana Nascimento
nessa chave de compreensão do hino, como uma prece que contém em si celebração e lamento
e cujo “hino”, que já deriva de “hímen”, se relaciona com um deslizamento que vai do “cu” ao
“hímen”, e, no final, escutamos e confirmamos, reafirmamos, ecoamos, dizendo apenas amen,
amem – essa confirmação que nada mais é do que mais um giro em torno do que foi dito no
hino, o amor.
Recentemente, em novembro de 2019, a cantora Linn da Quebrada, que se declara
“bicha, trans, preta e periférica. nem ator, nem atriz, atroz. bailarinx, performer e terrorista de
gênero”92, lançou o clipe da música Oração93 como um hino à comunidade LGBTQI+, com
participação de artistas transsexuais e não-binárias como Liniker Barros. No clipe, a violência
policial contra pessoas transgressoras de gênero e negras foi exposta ao ser integrada, à
gravação, a viatura da Polícia Militar que, durante a gravação do clipe, impediu a ocupação da
igreja abandonada – mesmo com Linn portando em mãos os documentos que autorizavam a
ocupação – pela equipe de artistas.94 Na letra da música, vemos o deslizamento entre as palavras
“oração” e “ereção” (“entre a oração e a ereção/ ora são, ora não são”), “homens” e “hímen”
(“se homens/ se amam/ ciúmes/ se hímen/ se unem”), “bruxas” e “bixas”, “clamem” e “amem”
e “amem” e “amém” (“não queimem as bruxas/ mas que amem as bixas/ mas que amem/ que
amem/ clamem/ que amem/ que amem as trevas também/ amém”).95
Voltando à inoperosidade da língua de que fala Agamben, ela se junta, aqui, com o
exemplo do poema de Tatiana Nascimento, ao que é historicamente excluído da política: uma
mulher negra e lésbica. Não concordaria com Agamben com o fato de a poesia ser em si mesma
política por ser uma inoperosidade, por transgredir a normatividade da língua. Como já foi dito,
considero que, hoje, o tempo nos exige mais que isso. Como eu poderia falar que a poesia de
Temer é política? Como falar que a poesia é em si mesma inoperosa e, por isso, política, se um
político como Temer é poeta? Acredito que desafios do agora nos impede de ir até o fim com
essas formulações. Sigo com elas, portanto, indicando o que, para mim, nesse momento do país
e do mundo, se coloca como um limite. Por isso, penso que é preciso se ater à materialidade do

92
https://www.linndaquebrada.com/
93
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=y5rY2N1XuLI Acesso em 30/11/2019.
94
https://farofafa.cartacapital.com.br/2019/11/02/linn-da-quebrada-ora-em-terreno-minado/
95
https://www.vagalume.com.br/linn-da-quebrada/oracao.html
331

texto, à economia do poema, a como ele se dispõe, como ele se organiza, como ele opera, em
sua singularidade. Por isso, também, não usei o exemplo do poema de Tatiana Nascimento
porque “A” poesia seria inoperosa, mas porque, à leitura que eu fiz do poema aliada a aspectos
que Agamben falou sobre a inoperosidade nesse texto, o poema também trata,
irremediavelmente, de corpos que estão sendo excluídos. É por a inoperosidade estar, aqui,
atrelada a essa exclusão, que, para mim, esse poema se constituiu um exemplo, não apenas pela
necessidade nem apenas pela contingência, mas ao que podemos dizer como “contingentemente
necessário ou necessariamente contingente” – e quem disse isso foi Agamben ao dizer também
sobre o “irreparável” enquanto um ser que só se dá como um ser assim em que o assim é
propriamente o modo como ele se expõe ao mundo. A esse assim ele chamou de “irreparável”,
a constatação de que tão somente existe o ser como exposição e que isso não se pode reparar.
E a esse “irreparável” ele também chamou de amor: “ver algo simplesmente no seu ser-assim:
irreparável, mas não por isso necessário; assim, mas não por isso contingente – é o amor”
(AGAMBEN, 2013, p.98). Temos então agora um outro emprego do viemos chamando de
irreparável. O amor como irreparável seria a deposição da essência e da aparência,
correspondidas como necessidade e contingência respectivamente, o amor como irreparável é
tão somente amar uma pessoa como tudo que ela implica, sem partir daquelas frases “amo isso
em você, mas não aquilo”, ou “o necessário para eu amar alguém é...”. O amor como irreparável
é amar o modo como a pessoa se expõe no mundo, com tudo que isso implica. É esse “com
tudo que isso implica” que é o irreparável, o que leva a crer que amar implica em amar o que
não tem conserto, o que não se repara.

“O vício do crédito fácil”, outro poema da seção “No cio, relincha”, é dividido em duas
partes (TORRES, 2019, p.59). Na primeira parte, promessas:

não ache que o acesso imediato ao dinheiro para realizar sonhos seja
motivo de comemoração
não se endivide para realizar o seu sonho de consumo
compre à vista e ainda tem troco

pág. 20
há opções bem em conta para você proteger o seu imóvel e pertences
de imprevistos como roubo e incêndio
pág. 33
empréstimo? melhor dizer não! mas se for inevitável, mostramos como
pagar o menos possível de juros
332

veja na pág. 10
que tal adquirir aquele smartphone dos sonhos ou trocar a velha
geladeira por uma novinha, isso sem recorrer ao parcelamento no
cartão de crédito

fundos de renda fixa crédito pessoal seguro carta verde


descumprimento de oferta limite de crédito x renda seguro residencial

nossos valores:
1.nossa missão exige uma neutralidade total
2.devemos desenvolver a capacidade de levar em conta as necessidades
de nossos interlocutores externos e internos
3.o êxito de nossa missão é condicionado por nossa credibilidade e
pelo reconhecimento dos melhores profissionais do mercado

Em Declaração – isto não é um manifesto, de Michael Hardt e Antonio Negri, lemos:

Atualmente, ter dívidas está se tornando a condição geral da vida social. É


quase impossível viver sem contrair dívidas: crédito educativo, hipoteca para
a casa, financiamento para o carro, seguro para a saúde etc. A rede de
segurança social passou de um sistema de bem-estar social para um de
endividamento, pois os empréstimos se tornaram o principal meio de satisfazer
as necessidades sociais. Sua subjetividade se configura sobre a base da dívida.
Você sobrevive se endividando, e vive sob o peso de sua responsabilidade em
relação à dívida (HARDT; NEGRI, 2014, p.22).

Hardt e Negri falam, a partir de 2011, o que eles consideram “as profundezas da crise
econômica e social, caracterizada pela desigualdade extrema” (HARDT; NEGRI, 2014, p.10).
Pensando o neoliberalismo e as lutas sociais que ocuparam as ruas a partir de 2011, com a
exemplaridade de Occupy Wall Street, mas, desde antes de 2011, no final de 2010, no norte da
África e no Oriente Médio, com rebeliões contra regimes opressores e destituição de tiranos,
estendendo-se à Europa, por exemplo, à Espanha, em Madri e Barcelona, à Grécia e à Inglaterra,
os autores analisam “as condições sociais e políticas em que essas lutas se originaram” a partir
de “formas dominantes de subjetividade produzidas no contexto da crise social e política
corrente” (HARDT; NEGRI, 2014, p.9-17). Uma dessas formas, o que eles chamam de “figuras
subjetivas da crise” neoliberal, é a figura do endividado (HARDT; NEGRI, 2014, p.21). A
dívida funciona, sabemos, pelo princípio do sem-limites. Seu fundamento é esse, é nesse gozo
que ela funciona. “O efeito da dívida é forçar a trabalhar arduamente” (HARDT; NEGRI, 2014,
p.22), sempre para pagá-la, de modo que o trabalho não opera pela vida, mas pela dívida,
reduzindo, aos poucos, a vida, uma vez que “transforma a culpa numa forma de vida” (HARDT;
NEGRI, 2014, p.23).
333

Aprofundando apenas o empobrecimento, não fazendo do trabalho um meio de


libertação, mas uma subjugação sem fim a um esquema de aprisionamento que embota cada
vez mais a possibilidade de criação, a dívida tem total relação com a precariedade de que
falamos. Hardt e Negri dizem: “Outrora, havia uma massa de trabalhadores assalariados; hoje,
há multidão de trabalhadores precarizados” (HARDT; NEGRI, 2014, p.23). Se, antes, na
exploração do capital, havia uma ilusão de trocas entre os trabalhadores e os proprietários,
agora, nessa outra fase da exploração do capital, marcada pela dívida, há uma “relação
hierárquica entre devedor e credor” (HARDT; NEGRI, 2014, p.24). Os autores consideram que
a transição da exploração do capital à dívida corresponde à mudança da hegemonia do lucro à
hegemonia da renda: hoje, “o capitalista acumula riqueza por meio da renda, e não do lucro”, e
essa renda é direcionada, sobretudo, para pagar dívidas, o que caracteriza o trabalhador, antes
de tudo, um consumidor, e não um produtor, uma vez que sua produção é voltada ao ciclo
vicioso da dívida (HARDT; NEGRI, 2014, p.24-26).
Maurizio Lazzarato, em outro livro da n-1 edições, O Governo do Homem Endividado,
traduzido por Daniel da Costa, também entende que o neoliberalismo desloca o lucro para a
renda e, ainda, para o imposto: “Entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1980, o
neoliberalismo operou um deslocamento estratégico decisivo, que se manifesta pela hegemonia
da renda financeira e do imposto em detrimento do lucro” (LAZZARATO, 2017, p.29). Para
Lazzarato, a crise veio antes, em 2007, “a partir do colapso do mercado imobiliário americano”
(LAZZARATO, 2017, p.11). Todavia, ele ressalva: “trata-se de uma definição restritiva e
limitada[...]. A crise e o medo constituem o horizonte insuperável da governamentalidade
capitalista neoliberal” (LAZZARATO, 2017, p.11). De difícil precisão cronológica, Lazzarato
considera que a grande expropriação que, segundo ele, está em curso desde 2007, tem
precedente na “inaudita concentração de riqueza” que começou nos anos 1970 (LAZZARATO,
2017, p.27). Em matéria de 09 de dezembro de 2019, publicada na Carta Capital, os dados do
Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU),
divulgados no mesmo dia da matéria, mostram que o Brasil é apresentado como “o segundo
país do mundo com maior concentração de renda”:

Os 1% mais ricos concentram 28,3% da renda total do País. Os dados deixam


o Brasil somente atrás do Catar, onde a proporção é de 29%. Nesses dois
países, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos. Já os 10% mais
ricos no Brasil concentram 41,9% da renda total.96.

96
“Desigualdade: Brasil tem a 2ª maior concentração de renda do mundo”. Disponível em
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/desigualdade-brasil-tem-a-2a-maior-concentracao-de-renda-do-
mundo/ Acesso em 09/12/2019.
334

Em 2014, ano da primeira edição do livro, Lazzarato dizia que, nos Estados Unidos,
“país eminentemente neoliberal, 1% dos americanos detém 40% da riqueza do país” e que, na
França, em 2009, “os 10% mais ricos em termos de rendimentos beneficiavam-se, em média,
de um nível de vida 6,7 vezes maior do que os 10% mais pobres” (LAZZARATO, 2017, p.28).
Hoje poderia ser dito que o nome para trabalhador seria “devedor”. É a dívida, não o
trabalho, não a produção, e é a condição de devedor, não de trabalhador, ou é a condição de
trabalhador porque devedor e vice-versa, que caracterizam economicamente a maioria da
população mundial. Nas palavras de Lazzarato, para apreender o deslocamento decisivo
operado pelo neoliberalismo do lucro para renda e imposto, “é preciso se desfazer do conceito
economicista de ‘produção’” (LAZZARATO, 2017, p.29). Ou, como dizem Hardt e Negri,
“hoje, a exploração se baseia principalmente não na troca (igual ou desigual), mas na dívida,
ou seja, no fato de que 99 por cento da população está sujeita – deve trabalho, deve dinheiro,
deve obediência – ao 1 por cento restante” (HARDT; NEGRI, 2014, p.25).
Já foi dito, no início desta tese, que o neoliberalismo é a crise como forma de governo.
Esse modelo econômico nada mais seria então do que uma produção perversa, sistemática, de
precariedade. Sendo, de certo modo, um retorno a relações de servidão, o trabalhador, servo de
um senhor, agora o senhor das finanças, é a atualização de épocas passadas em que “os
imigrantes e as populações nativas nas Américas e na Austrália tinham de trabalhar para
comprar a si mesmos até quitar a dívida, mas, com frequência, a dívida deles crescia
continuamente, condenando-os à servidão indefinida” (HARDT; NEGRI, 2014, p.27). Nesse
sistema que se alimenta de precariedade, não apenas a pobreza, tematizada por todas as poetas
analisadas aqui, se torna emblemática, mas, mais precisamente, a figura do desempregado –
sobre o qual Tatiana Pequeno tematizou explicitamente em seus poemas, especificamente, em
“carta para alguém depois dos protestos” e “carta para Mariana, depois dos protestos”,
analisados no capítulo anterior –, se torna emblemática e paradigma de nosso tempo. Hardt e
Negri apontam, porém, que “uma nova figura de pobre está emergindo, incluindo não só o
desempregado e o trabalhador precarizado com trabalho irregular, de tempo parcial, mas
também o trabalhador assalariado estável e o estrato empobrecido da suposta classe média”
(HARDT; NEGRI, 2014, p.26). Esses que suspostamente não compartilhariam de uma
precariedade, agora fazem parte da escala ampliada que nivela a população pela condição de
precariedade. “A pobreza deles se caracteriza sobretudo pelas cadeias de dívida”,
complementam Hardt e Negri (HARDT; NEGRI, 2014, p.26). Estar em dívida é, portanto, estar,
de algum modo, na cadeia de precariedade.
335

Voltando ao poema “O vício do crédito fácil”, ele pode ser lido como um contrato de
quitação de dívidas, um feirão de facilitação de créditos, um cardápio de planos de empréstimos,
financiamentos, seguros, mas, virando a página, logo vemos que, na segunda parte do poema,
essa oferta de promessas dá lugar a promessas não cumpridas e, nesse vocabulário de consumo,
de dívidas, de créditos, insere-se uma relação amorosa:

se prometeu, tem que cumprir

wagner santos, fotógrafo


“fui à compra do frango cuja oferta havia sido anunciada na tevê à
noite. olhei nas prateleiras e não achei.”

quase disse em voz alta,


roberto de souza me prometeu gozos que nunca me deu
e isso me frustra até hoje

wagner & eu, mesmo distantes, nos compreendemos

ligamos, indignados, para o serviço de defesa do consumidor

disse a ela
meu ex acreditou todas as vezes que eu disse gozei
disse não sei o porquê de tantas mentiras mas quando se ama fazemos
coisas que não sabemos bem o motivo

estava carente e queria gozar, estava carente precisava .........................

a telefonista bateu forte o telefone, do outro lado da linha


(silêncio)
e eu ainda pedia o meu gozo
os meus segundos
com a telemarketing que não compreendeu as coisas que se perdem quando se
[ama.
(TORRES, 2019, p.60)

Entrelaçadas, entretanto, fracassadas, a promessa do mercado e a promessa da relação


amorosa: o frango e o gozo. Entrelaçadas, como se fossem as mesmas, a reclamação do
consumidor “wagner santos, fotógrafo” e a do eu que “quase disse em voz alta/ roberto de souza
me prometeu gozos que nunca me deu”. No outro verso, “wagner & eu” formam um par, um
casal, como se finalmente o encontro amoroso se desse pelo encontro de promessas fracassadas
(“wagner & eu, mesmo distantes, nos compreendemos”), de créditos que se transformaram em
dívidas, de credores que se transformaram em devedores. As promessas frustradas da relação
do consumidor com o produto e da relação amorosa coincidem no trato mercadológico do “se
prometeu, tem que cumprir”. A “defesa do consumidor” como o lugar em que
privilegiadamente se resolve dívidas se torna o lugar de queixa do dano de ambas as relações,
336

a mercadológica e a amorosa: “ligamos, indignados, para o serviço de defesa do consumidor”.


O gozo como um “crédito fácil” se plasma do capitalismo neoliberalista para a relação entre
um homem e uma mulher em que o homem credita o gozo à mulher ou acredita na promessa de
gozo da mulher como um “crédito fácil” (“meu ex acreditou todas as vezes que eu disse gozei”).
Fala-se do amor com um vocabulário econômico em tom de crítica às relações em que
o amor vira uma relação de consumo em que a mulher tem que gozar para agradar o homem,
que ocupa o lugar de consumidor. Relegando o gozo feminino a nenhuma importância, o que
importa é o gozo fálico que deve ser sempre atendido, ainda que, para isso, a mulher precise
fingir o gozo. No poema, o homem dá crédito a mulher pelo gozo que, na verdade, não existiu.
A relação amorosa se resume a uma relação de devedores e credores: o homem promete gozos
que nunca deu e a mulher finge gozos que não teve. Ambos credores e, na verdade, ambos em
débito. Nesse contrato, ao tentar reaver o dano, a mulher permanece na falta: ao ligar “para o
serviço de defesa do consumidor”, como quem recebe um trote, “a telefonista bateu forte o
telefone, do outro lado da linha/ (silêncio)”. A reparação do dano, se passa como um trote, que
afirma a irreparabilidade do dano e, por assim dizer, a permanência no prejuízo, na perda, como
quem não perde apenas o gozo, mas também aquilo que se perde quando se trabalha para pagar
dívidas, o tempo (“e eu ainda pedia o meu gozo/ os meus segundos/ com a telemarketing que
não compreendeu as coisas que se perdem quando se ama”). O que articula as duas relações,
amorosa e mercadológica, não é senão a relação de contrato de uma relação amorosa como a
relação de contrato de consumidor. A abordagem do gozo amoroso como um “crédito fácil” se
identifica com o gozo sem limites da lógica capitalista do consumo que não produz senão o
ponto de precariedade em que amante e consumidor se identificam, o dano da promessa não
cumprida, o dano do crédito fácil.
Nessa economia de danos, o poema que falta a ser abordado da seção “No cio, relincha”
se chama “Pombo morto”. Ele também trata de reparação, talvez, da tentativa, talvez, da
impossibilidade. Como outros poemas, ele começa com um animal abatido. Se, na leitura de
“Atenção ao usar a creolina pois é um produto tóxico”, vimos que a passagem do tempo vai
sendo apagada também pela supressão dos verbos, indo ao tempo em suas cinzas, em sua
escuridão, reduzindo o tempo à coisa, ao que queima, em “Pombo morto”, luta-se contra o
tempo porque, aqui, o tempo é selvagem e voraz e também leva algo à redução:

o tempo com suas grandes mandíbulas esmigalhando a carniça caída


feito o pombo morto entre carros

as cutículas sangrando espirrando líquido vermelho tudo é dor


337

dentro as unhas se quebram a cada soco dado nesse punho que é meu
desespero essa fala comprida esse wifi torres 123 minha bolsa bege
aquela carteira de trabalho rabiscada os seios com estrias brancas e
largas são minhas as estrias essa vulnerabilidade o cotovelo cicatrizado

taquara faça carinho em dias de sol como aquele domingo de galeto pepsi
e transas de compridas horas no quarto o eu rebocado com pasta branca

sinto falta do que foi meu e não será de ninguém não será
não pela morte mas pelos dias que foram nossos ninguém nunca
arrancará de mim o que foi meu não com o tempo com o tempo não
tirará de mim o que foi meu você aquele domingo de pau vermelho
com as veias tão minhas

em caso de emergência utilize o martelo 296 me dando crises pânico


em abolição quebro os cacos pequenininhos para sair de dentro deles
como saem os espíritos apossando-se das pequenas coisas quebro
você no canto nunca meu nem mesmo eu para voltar ao lugar do vaso
barro sem flores sem água sem terra

o poema fudido suplica todo ferido pra que te deixe atravessar a rua
de longe
te vejo indo
(TORRES, 2019, p.61)

Como os outros poemas, “Pombo morto” também trata de uma condição de


vulnerabilidade, mas que não é explicitamente econômica nem social, é a vulnerabilidade
exposta pela perda. Em um dos capítulos de Corpos em aliança, “A vulnerabilidade corporal e
a política de coligação”, Butler amplia a noção de vulnerabilidade que já tinha exposto em Vida
precária: os poderes do luto e da violência quando atrela a perda à vulnerabilidade: “A perda
e a vulnerabilidade parecem se originar do fato de sermos corpos socialmente constituídos,
apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações” (BUTLER, 2019, s/p)97. “A perda
nos transformou em um tênue ‘nós’”, ela diz ainda em Vida precária (BUTLER, 2019, s/p).
Um dos laços que nos faz, que nos liga, em um comum, é a perda. Aqueles e aquelas que já
estiveram expostos e expostas à vulnerabilidade da perda formam uma comunidade da perda, o
que significa dizer que, nesse caso, é a perda e o luto que instituem uma vida política. Em
Corpos em aliança, ela menciona a relação da vulnerabilidade com o imprevisto, o
incontrolável, o inesperado, que diz respeito tanto à perda quanto ao amor, em suma, que diz
respeito ao fato de que somos corpos expostos ao mundo:

O corpo está exposto à história, à condição precária e à força, mas também ao


que é espontâneo e oportuno, como a paixão e o amor, a amizade repentina ou
a perda repentina e inesperada. Na verdade, pode-se dizer que tudo aquilo que

97
Tradução de Andreas Lieber. Edição em ebook.
338

é inesperado em relação à perda toca uma vulnerabilidade nossa que não pode
ser prevista nem controlada de antemão. Nesse sentido, a vulnerabilidade
denota uma dimensão do que não pode ser antevisto, previsto ou controlado
(BUTLER, 2018, p.162).

Como vimos, alguns corpos são historicamente mais vulneráveis do que outros
conforme as estruturas sociais, econômicas e políticas, ficando diferencialmente expostos, mas
realçar a vulnerabilidade como característica que nos constitui, ou dizer que “todos somos seres
vulneráveis”, “é marcar a nossa dependência radical não apenas dos outros, mas de um mundo
sustentado e sustentável” (BUTLER, 2018, p.164). Dada essa vulnerabilidade, os fatores
históricos pesam, aumentando-a, agravando-a e desdobrando-a na medida em que as estruturas
sociais, econômicas e políticas falham historicamente, condenando uns a uma maior
vulnerabilidade. Sofrer uma perda expõe-nos à vulnerabilidade, que aumenta e se agrava
quando o Estado institui que essa perda não é passível de luto quando assassina corpos negros
nas favelas, por exemplo, e os institui como vidas descartáveis, ou quando a falta de assistência
do Estado a determinados corpos os institui sistematicamente como corpos que não devem viver
uma vida digna. Por isso, “a vulnerabilidade não se reduz a uma particularidade ou a uma
disposição episódica de um corpo distinto, mas é, na verdade, um modo de relação que repetidas
vezes coloca algum aspecto dessa distinção em questão” (BUTLER, 2018, p.144).
“Pombo morto” é a vulnerabilidade de um corpo exposto à perda, de um corpo marcado
pela irreparabilidade do dano. Algumas formulações nele poderiam levar a crer que se trataria
de reaver o que, por direito, deveria ser de posse, de reaver “o que foi meu”. Esse poema, porém,
está longe de indicar uma relação amorosa como uma relação mercadológica. A impossibilidade
de reaver o dano, aqui, trata da perda irreparável pela qual se faz luto. Trata-se da imagem do
luto em que a perda de uma pessoa é sentida como a perda de uma parte do corpo, sintetizada
em “tudo é dor”. Tudo que pertence ao eu: “as cutículas sangrando”, “as unhas [que] se quebram
a cada soco dado nesse punho que é meu”, “desespero essa fala comprida esse wifi torres 123
minha bolsa bege”, “aquela carteira de trabalho rabiscada os seios com estrias brancas e/ largas
são minhas as estrias essa vulnerabilidade o cotovelo cicatrizado”. Do corpo (cutículas, unhas,
punho, fala, seios, estrias, cotovelo) ao que está fora do corpo (wifi, bolsa, carteira de trabalho)
que, porém, também constitui o eu, também caracteriza, assina, o eu (o “wifi torres 123”, a
“bolsa bege”, a “carteira de trabalho rabiscada”), o que se afirma exatamente não é o eu, mas o
eu afetado pelo outro, pela perda do outro, como um eu que porta o outro que já o constitui e
não quer perder por nada esse outro em si, não quer sofrer a perda e o dano da perda, não pela
perda em si, pela morte, mas pelo que foi em vida, não pela perda, mas pelo preenchimento,
339

dos dias, do tempo, do corpo: “sinto falta do que foi meu e não será de ninguém não será/ não
pela morte mas pelos dias que foram nossos ninguém nunca/ arrancará de mim o que foi meu
não com o tempo com o tempo não/ tirará de mim o que foi meu você aquele domingo de pau
vermelho/ com as veias tão minhas”.
Aqui, o transbordamento é do corpo em perda, do corpo que sofre a perda: “as cutículas
sangrando espirrando líquido vermelho”. Entre o estar preenchido e o estar arrancado, entre o
estar possuído (amorosamente, pelo inchaço do corpo outro: “você aquele domingo de pau
vermelho/ com as veias tão minhas”) e o estar vazio (“nem mesmo eu para voltar ao lugar do
vaso/ sem barro sem flores sem água sem terra”), entre o que já se teve e o que não se tem mais,
de todos os poemas de “No cio, relincha”, “Pombo morto” é o poema em que o amor comparece
mais dolorosamente indissociado do luto. A dor como isso que corta se inscreve desde a sintaxe:
é um poema radicalmente estruturado no corte, na cesura, na fratura, na quebra no interior dos
versos. As três estrofes mais longas, compostas de cinco versos cada, radicalizam o efeito da
cesura. Sem nenhuma pontuação, os versos se atropelam em uma longa carreira de trotes ou
mesmo em galopes acelerados como o “desespero [d]essa fala comprida”.
Falar de luto também se passa pelo subúrbio. Entre a Taquara e a Abolição, entre a Zona
Oeste e a Zona Norte, o amor e o pânico, o que já se teve e o vazio: “taquara faça carinho em
dias de sol como aquele domingo de galeto pepsi/ e transas de compridas horas no quarto o eu
rebocado com pasta branca” e, em oposição, “em caso de emergência utilize o martelo 296 me
dando crises pânico/ em abolição quebro os cacos pequenininhos para sair de dentro deles/
como saem os espíritos apossando-se das pequenas coisas quebro/ você no canto nunca meu
nem mesmo eu para voltar ao lugar do vaso/ barro sem flores sem água sem terra”. O
procedimento de emergência afixado no ônibus 296, sentido Irajá-Castelo, traça o poema: “em
caso de emergência utilize o martelo”. Não se sabe se o desespero do luto leva ao pânico do eu
no ônibus, o que se sabe é que se aborda o que se passa com o eu dentro do ônibus no subúrbio
na mesma abordagem sobre a perda amorosa. Ambos pertencem à e constroem a mesma
abordagem. Essa última estrofe longa em que o trânsito comparece pela linha de transporte
parece ser a ponte para a última estrofe, composta pelo contraste de um primeiro verso longo e
os outros dois versos subsequentes curtíssimos, chegando ao fim não como quem vai reduzindo,
mas como quem para sob o efeito do irredutível, chegando ao fim com uma condensação limite
como o efeito de quem para bruscamente um galope: “o poema fudido suplica todo ferido pra
que te deixe atravessar a rua/ de longe/ te vejo indo”.
“Pombo morto” é uma súplica. O primeiro verso da última estrofe (“o poema fudido
suplica todo ferido pra que te deixe atravessar a rua”) não só sintetiza o que foi tematizado ao
340

longo do poema, a súplica, mas se revela, ele mesmo, como súplica. O poema não só foi a
súplica do eu. Ao longo dele, não só houve a súplica do eu representada no poema, mas, agora,
não é o eu que suplica, é o poema, como personagem, que dirige uma súplica ao eu, que, além
de personagem, passa também a ser narrador. O eu atende então a súplica do poema, esse que
está “fudido” porque “todo ferido”, semanticamente e sintaticamente, no sentido e na
construção, nos versos esburacados amplamente traçados em cesuras. Do transporte na
penúltima estrofe à travessia suplicada na última estrofe, um “deixar ir”: atravessar a perda,
fazer o luto, enfim. Atravessaram a perda o eu e o poema que, por sua vez, não se reduz a um
suporte de elaboração da perda, mas opera como personagem em que ele mesmo se faz como
desconexão e ferida. Ao fim do esvaziamento do sujeito do poema, que vai do preenchimento
ao vazio (“vaso/ sem barro sem flores sem água sem terra”), que vai se distanciando (“de longe,
te vejo indo”), resta o poema como um sujeito – sujeito e objeto da súplica. No deslizamento
do sujeito do poema ao poema como sujeito, o atravessamento não foi só da perda (no duplo
sentido do genitivo, da perda que atravessou o sujeito e o poema e da perda que foi atravessada
pelo sujeito e pelo poema), mas de um luto em que o poema não foi mero suporte, mas
personagem em jogo que, ao mesmo tempo, suplicou e propiciou o luto, tornando a perda digna
de luto, sendo, ao mesmo tempo, demanda e acesso, apelo ao luto e luto, não um meio para,
mas um meio em si.

Vou me dirigindo ao fim pelo último poema do livro, “Marlene”, que compõe a última
seção, “O coice”. Ele também implica ônibus. Implica uma mulher em trânsito. “Marlene” se
dirige a um nome que falta. Em nome de um nome que porta uma falta, tenta compor em partes
os cacos de uma vida que não é mais: “foi-se ela, ruínas” (TORRES, 2019, p.86). “Marlene” é
um longo poema, que já teve outra versão, em prosa, em crônica, além da do livro, mas, no
livro, que é a que eu vou me ater, ele é composto de três partes.98 Da prosa ao verso, como se
ainda estivesse tentando contar uma história, porém, mais interrompida, mais fraturada, como
se ainda estivesse tentando narrar não de outra forma senão pelas quebras, pelos estilhaços, o
texto sofreu versões, transformações, foi falado em público em uma performance (DI LEONE,

98
Soube da existência dessa outra versão pelo ensaio de Luciana Di Leone, “Y ahora que sí se escucha”: oralidad,
colectivos y resistencias en la poesia contemporánea brasileña, publicado na Revista “El jardín de los poetas” (DI
LEONE, 2019, p.9). Nesse ensaio, Di Leone comenta sobre essa versão em crônica que está disponível em
https://issuu.com/valeskaangelo/docs/marlene__de_valeska_torres Acesso em 04/12/2019. O ensaio está
disponível em https://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/eljardindelospoetas/article/view/3804 Acesso em
04/12/2019.
341

2019, p.1-12), não se limitando a si mesmo, mudando de forma, indo a esse nome de vários
modos, seja com a prosa, seja com o verso, seja com o corpo. Tentemos ir a cada uma das partes
do poema. Eis a primeira:

Marlene baba.
O ônibus tropeça.
Marlene baba com os ombros caídos,
na quina
a cabeça quicando da janela.

Marlene quicando.
Quica quica
quica
e
scor
rega.

Quica & escorrega


os lábios compridos e grossos, a barriga pulando do abadá.
Os carros ((((empilhados esmagados))) dentro do baile.
Tudo é onda quando puxo o loló.
Para aguentar o
tranco do motor do
ônibus
o calor dos dias asfalto bruto e machucado,
o vapor
de um capô aberto no meio-fio na avenida brasil.
(TORRES, 2019, p.83)

Como já foi dito, O coice da égua sempre aponta para o subúrbio. Ele é feito de
passarelas e ônibus. Há vários poemas no livro em que ônibus comparecem, como vimos em
“Pombo morto”, como também aparece, por exemplo, em “Que merda é essa de troncal?”, em
que a mudança das linhas do Rio de Janeiro executada pelo plano de racionalização de ônibus
do então prefeito Eduardo Paes, denominado de “Troncal”, é tematizada criticamente como um
projeto de segregação sócio-econômico-espacial: “Irajá,/ vagando longe/ três é o número de
vezes/ que é preciso flertar com o cobrador/ a passagem por fim é mais cara que um pastel do
china” (TORRES, 2019, p.75). A distância que separa a zona mais rica e mais privilegiada da
cidade, a Zonal Sul, é agigantada em um abismo em relação ao subúrbio: “Zona Sul são 21
estações/ 47 minutos/ para a chegada na terra inabitada” (TORRES, 2019, p.75). Em outro
poema, “Mijada”, lemos: “comendo banana (baixinho para que ninguém ouça minha língua
empapada de saliva [...]/ comendo na poltrona puída do caxias x méier” (TORRES, 2019, p.41).
Em “De xereca para xereca”, “a massa se fode dentro de um ônibus lotado/ roçar da pica na
bunda da mulher” (TORRES, 2019, p.43). A precariedade econômico-social e das condições a
342

que as mulheres são submetidas em transportes públicos no Rio de Janeiro, especialmente em


ônibus, também são expostas em “Marlene”. Como Luciana Di Leone disse, em um ensaio que
fala sobre a performance de Valeska a esse poema, em um dos eventos do Slam das Minas no
Rio de Janeiro, “es un poema que trae como cuestión el asedio institucional y sexual sobre los
cuerpos, sobre el cuerpo de una mujer negra en el transporte público, donde la precariedad
del ómnibus, las calles con pozos, la cantidad de personas, el calor, son experiencias tan
crueles como cotidianas” (DI LEONE, 2019, p.8).
Em “Marlene”, também os versos quicam e escorregam na página. Poderíamos estar
falando de trote, não no sentido como já foi falado como troça, trapaça, deboche, mas no sentido
da andadura do cavalo e da égua, como poderíamos atribuir a diversos poemas desse livro em
que há ampla alternância de versos curtos, médios, longos, longuíssimos, assim como o
contraste entre curtíssimos e longuíssimos, em que o trote se dá tanto pelo rápido deslizamento
de um significante no outro, de uma cena na outra, de um sentido no outro, como pelo
encarrilhamento visual das palavras nos versos muitas vezes repletos de cesuras. Poderíamos
ainda ler “quica & escorrega” e nos remeter ao trote no sentido erótico da dança do Funk, em
que há tanto a associação com a periferia quanto o problema da hipersexualização da mulher
(DI LEONE, 2019, p.8). Poderíamos ainda dizer que Marlene poderia estar dançando em meio
a uma multidão em uma micareta, vestida com seu abadá (“a barriga pulando do abadá”). Mas
Marlene não está dançando em um baile-funk, não está em uma micareta, e esse “quica &
escorrega” não se trata de trote nem de galope: Marlene está sofrendo os tropeços do ônibus
enquanto dorme.
Junto à estrofe em que também está Marlene, a voz em primeira pessoa, o eu: “Tudo é
onda quando puxo o loló./ Para aguentar o/ tranco do motor do/ ônibus/ o calor dos dias asfalto
bruto e machucado,/ o vapor/ de um capô aberto no meio-fio na avenida brasil.” Falar de
Marlene parece falar de uma experiência pessoal enquanto se está no coletivo, no ônibus. Na
segunda parte do poema, parece que se trata de uma cena doméstica:

tirando o sabonete que antes inhaca


é labuta queria ter dito
é correria o corre da briga de galo não se abocanha o milho antes de chegar no
[galinheiro

o tamanco cor-de-rosa
arranhado na sola
que tacaram na vidraça
em que onde se abria de material finíssimo,
uma flor
343

pela janela
dentro
os estilhaços

na pochete cinza
as moedinhas cor cobre
contando um a um
para pagar os estragos

era um desses meninos


de cadarço desamarrado
que anda com pereba
resfriado
com o cotovelo rachado
de tanto subir muro

pela pinça é que se tiram


os cacos
disse dona marlene
que é dita chocadeira

de pai zarolha e mãe parteira

depois da baixaria
o sossego

frango desfiado
salpicão

quem dirá ao pássaro


que alpiste se come cru

quem dirá que meninos


não comem figos
pois preferem goiabeiras

quem dirá que é da barriga que nascem


os putos as putas

quem dirá a marlene que se perde o teto


mas ganha as estrelas

a ordem de despejo é clara


nem mais uma noite nem mais um dia

nos braços,
açafrão, cominho
um menino

vaga arrastando o pé
marlene é um barril de pólvora
(TORRES, 2019, p.84-85)
344

No final da primeira parte, o eu do poema comparece na mesma cena em que se fala de


Marlene. No início dessa segunda parte, o eu aparece em hesitação quanto à Marlene, “queria
ter dito”, distancia-se como personagem e se mantém como narrador. A “inhaca”, aqui, não é
excesso de um amor que na verdade é horror destruidor, mas talvez excesso de trabalho que
também pode ser destruidor: “é labuta queria ter dito/ é correria o corre da briga de galo não se
abocanha o milho antes de chegar no galinheiro”. A metáfora do trabalho como “labuta” é a
briga, briga de animais, “briga de galo”. Na estrofe seguinte, outra cena. A metáfora da briga
desliza para outra cena, de que se ocupam as seis estrofes seguintes, que também parece expor
uma violência, que depois é dita como “baixaria”. Contrapõem-se a “cor-de-rosa”, “flor” e
“material finíssimo” a vidraça em estilhaços. Ao material finíssimo da flor, os cacos. Do que
escorrega, a própria Marlene, ao que não escorrega, mas atravessa, fere, fura. Da janela do
ônibus à outra janela que, por mera intuição, digo que pode ser de sua casa, já que, mais à frente,
nessa segunda parte, parece se dizer indiretamente de uma casa quando se diz “teto” e “ordem
de despejo”. Da janela de um coletivo à janela de casa, esse é um poema de impactos: o ônibus
tropeça, Marlene quica na janela do ônibus, o tamanco atravessa a vidraça. Tudo leva a crer que
Marlene levou um coice metafórico, certamente, um prejuízo. Cata-se “moedinhas” para pagar
o estrago, cata-se cacos. Não sabemos quem causou estrago, mas o menino aparece por
características que dizem que ele também padece de condições precárias: “era um desses
meninos/ de cadarço desamarrado/ que anda com pereba/ resfriado/ com o cotovelo rachado/
de tanto subir muro”. É por meio de uma operação manual que exige precisão e delicadeza que
Marlene retira os cacos: “é pela pinça que se tiram/ os cacos/ disse dona marlene”. Mais tarde,
ela sairá – na verdade, não sabemos se ela, o sujeito é oculto –, talvez seja ela que mais tarde
sairá carregando “nos braços,/ açafrão, cominho/ um menino”, esse “material finíssimo”, a
matéria vida. Mas, antes disso, a única identificação indireta dada a Marlene é um atributo
animal: nessa briga de galos, Marlene é a galinha, “é dita chocadeira”. Em outro poema lemos:
“a mando dos colhões a morte é ofertada por/ Maria, Benedita, Andreia, Marielle/ todas ditas
malditas!” (TORRES, 2019, p.82). Assim como essas, Marlene também é dita maldita. E a
filiação dessa parideira não é menos dita maldita: entre aquele que porta um problema físico e
aquela que se ocupa do parto: “de pai zarolha e mãe parteira”.
Até aqui, o poema parece narrar alguns impactos na vida de Marlene, não de outra forma
senão pelo impacto como meio: ela sofrendo o impacto, seja contra a janela de um ônibus, seja
pelo que atiraram contra sua janela. Se, no início dessa parte, o eu recua em seu não dito, em
“queria ter dito”, na outra metade dessa parte, que eu leio como a partir de “depois da baixaria”,
vemos uma repetição dessa estrutura de pergunta sem ponto de interrogação: “quem dirá”?
345

quem dirá ao pássaro


que alpiste se come cru

quem dirá que meninos


não comem figos
pois preferem goiabeiras

quem dirá que é da barriga que nascem


os putos as putas

quem dirá a marlene que se perde o teto


mas ganha as estrelas

Maldita e entre dois não-ditos (“queria ter dito” e “quem dirá”), Marlene porta uma
história que parece dizer de outras histórias: galo, galinha, frango, pássaro, todos como
metáforas de uma crueza da vida reduzida à vida nua, à animalidade, à precariedade. Na
verdade, voltando à história de Marlene sem nunca ter saído, o último dístico, tratando
diretamente de Marlene, complementa essa crueza da vida nua reduzida à perda. Da janela do
ônibus à janela de casa, de uma janela à outra, a perda do teto, a casa se estilhaçando: o
desmonte, a perda da casa. Marlene, a “dita chocadeira”, a maldita, a parideira, aquela que
ininterruptamente gesta, gesta/porta uma história em que o “material finíssimo” da vida, a
matéria mais delicada, está indissociado do mais precário, e essa contradição não é exposta
senão por impactos, estilhaços, explosões, estrondos, enfim, pelos limites: “marlene é um barril
de pólvora”. Na terceira e última parte, os versos dizem:

encardido o ar-condicionado faz zum num estrondo


prestes a ruir
as almofadas comidas entre as frestas salpicados de mostarda farelos de bolo

marlene trabalha com óculos na ponta do nariz um olho certo o outro nem
[tanto
herança paterna
eu diria
cirrose também

marlene engaveta documentos burocráticos


seus dentes num bruxismo
arranhando
encardidos de café varejos e coca-cola

é só a marlene estufando o estômago


boca de veludo na juventude boca de trator num outro tempo
esse que no poema
nada adoça
346

foi-se ela, ruínas

dos términos,
é de longe o mais tristonho.
(TORRES, 2019, p.86)

Marlene voltando do trabalho, Marlene em casa, Marlene no trabalho. O luto é feito


assim nesse poema, nesse modo de vida percorrido em estilhaços. Tudo ruindo: os dentes “num
bruxismo”, o ar-condicionado, em que se assemelham com os dentes também por estarem
ambos “encardido[s]” e, além desses, provavelmente o fígado (“cirrose também”), as
almofadas, a janela em estilhaços, a casa sem teto, tudo se reduzindo até, por fim, Marlene:
“foi-se ela, ruínas”. Se a seção “No cio, relincha” aparentemente parece tratar de poemas
supostamente relacionados a relações amorosas, e quando nos deparamos com eles, na maioria,
essas relações são atreladas ao luto, com a exceção de “Nós dois cantando...”, é na seção “O
coice”, porém, que o luto mais longo e “mais tristonho” se dá com o de Marlene. O coice da
égua termina menos como um coice e mais como uma passagem, um dar passagem, uma
passarela, carregando uma herança e dando visibilidade a ela. Uma passagem, porém,
paradoxal, enquanto o que a constitui é o que fica atravessado, travado, indigesto. De traçantes,
traças, traços, troças, troços, trotes, O coice da égua termina com restos, cinzas, ruínas, toda
uma composição de impactos – desde as palavras (todas essas começando nesse truncamento
ou nesse travamento do som em /tr/) – como o que fica, resta, reduzido, de um tempo de
desmontes em que nós caminhamos entre ínguas e, à míngua, desmontados, intuindo que o que
anda desgovernado não são as éguas: e aqui termino com uns versos do primeiro poema do
livro, “Indomável”: “as suásticas estampadas no peito;/ a selagem da égua indomável”
(TORRES, 2019, p.15). O coice da égua é o desgoverno do nosso tempo sem freios nem limites.
347

CONCLUSÃO

Contra o tempo: palavras de 3 minutos a mais

Eu tenho pesadelos, todas as noites.


Eu tenho pesadelos e acordo com o choro de minha mulher que não consegue
dormir.
Ela pergunta se eu quero que ela tire a perna de cima de mim.
Ela pergunta se eu quero que ela tire o peso de nossos ombros, de nossos
corpos cansados.
Corpos gordos, cansados, com pelos nas axilas e feias. Feias, fadigadas e
feministas de esquerda. Não somos bonitas como as mulheres de direita.
As mulheres direitas são fraquejadas e limpas e de axilas depiladas.
Não desminto essa informação.
Eles não entenderão que eu não sou mulher e tampouco quero ser um homem.
Eles jamais entenderão a escolha de ser um corpo manifesto na cidade.
[...]
Eu tento escrever essas memórias com um final menos cortante, e viro pro
outro lado e juro que acredito que ontem mesmo eu tinha um poema na boca,
uma palavra em que eu acredito que transformou outras mulheres, eu juro que
anteontem mesmo eu falava essas palavras de esperança e revolução e várias
mulheres ouviam e concordavam que somos revolução e eu juro, não, “quem
jura mente”...
Eu afirmo que ontem mesmo eu vivi esse tipo de tortura, de violência, de
silenciamento. Ontem mesmo eu perdi amigos, familiares, parentes,
ancestrais...
E eu prometo, pela minha vida, que hoje mesmo...
– me abraça, meu amor, dorme tranquila
Eu prometo que hoje mesmo a gente vai falar palavras de democracia.
Eu prometo, meu amor, que hoje mesmo a gente vai fazer acreditar
novamente.
A gente vai fazer,
Viver,
Acreditar,
Ser
Essa multidão.
(BRITO, 2019, p.14)

Uma das epígrafes do livro de estreia de Letícia Brito, Antes que seja tarde para se falar
de poesia, publicado pela Editora Malê, em 2019, é de Gênesis, que poderia ser a Bíblia, mas é
uma poeta slammer que participa ativamente do Slam das Minas, junto com Letícia Brito: “Mas
o tempo morreu”, diz Gênesis (GÊNESIS in BRITO, 2019, p.5). Ainda nesse antes do começo,
em um momento da dedicatória, Letícia diz: “Dedico [este livro], especialmente, ao futuro dos
meus filhos" (BRITO, 2019, p.7). É nessa disjunção do tempo que eu localizo este livro.
Falando desde o fim do tempo e, ao mesmo tempo, não se abstendo do tempo. Falando a partir
da morte do tempo e de um tempo por vir, ao qual se dedica. Antes que seja tarde, contra o
348

tempo, correndo contra o tempo, esse livro se dedica, também, ao que virá, não projetando,
porém, no futuro, a sua expectativa, mas já sendo aquilo que deseja para o tempo que ainda não
veio.
Aqui, tudo é trabalhado com o tempo: o primeiro poema do livro se intitula “Velocidade
do som” e no final dele lemos: “A revolução não será discreta/ pois agora/ - em cada esquina -
/ nascerá um poeta” (BRITO, 2019, p.12). Com a “poesia falada” (spoken word/poetry slam)
acontecendo hoje em grandes proporções, sobretudo, não restrita às zonas privilegiadas da
cidade, pelo contrário, sendo movida por poetas da periferia, é nesse contexto que hoje talvez
possamos constatar que os jovens e as jovens não são ou não desejam tanto ser rockstars, mas
poetas. Para Letícia Brito, que em 2017 fundou o Slam das Minas do Rio de Janeiro e
representou o Brasil no campeonato internacional Rio Poetry Slam na Festa Literária das
Periferias (Flup), transformar o povo em poetas (“Estamos transformando o povo em poetas”
(BRITO, 2019, p.11)) é mais que uma revolução, é uma revolução cheguei ou chegay, em que
se aparece, se mostra, se exibe, se expõe sem discrição, uma revolução, poderíamos dizer,
brilhosa, com glitter, como indica outro poema, “Intervenção de emergência”, que começa com
“Eu ando vendendo glitter” e termina com “Eu ando aceitando abraços”, sendo o brilho, o
glitter, a ponte que leva a esse laço e a essa substituição da mercadoria pelo afeto (BRITO,
2019, p.51-53). Como disseram os versos de Maiakóviski, “gente é pra brilhar,/ não pra morrer
de fome”, os versos de Tatiana Nascimento redisseram de forma diferente: “‘gente é pra brilhar/
não pra morrer’/ sem nome” (NASCIMENTO, 2019, p.36). Entre a fome e o esquecimento,
duas formas de morrer, seria esse um brilho diferente dos vagalumes sobreviventes de Didi-
Huberman? Como Didi-Huberman diz, se servindo de Pasolini, a respeito da ligação erótica e
alegre que está nos lampejos do desejo animal e nas “gargalhadas ou gritos da amizade
humana”, “Pasolini até indica, muito precisamente, que a arte e a poesia valem também como
esses lampejos, ao mesmo tempo eróticos, alegres e inventivos” (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p.20-21).
Didi-Huberman já teria falado, em A sobrevivência dos vagalumes, que Plínio, o Antigo,
teria falado do vagalume como uma mosca que vive enquanto está no fogo e que a matéria de
sua vida seria “estranha e inquietante”, luminescente e esverdeada como a de um fantasma
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p.13-14). Diante dessa aproximação do vagalume com uma mosca,
com uma larva, Didi-Huberman falará, a partir de uma carte de Pasolini que falava de uma noite
alegre com amigos em Palermo, que o poeta e cineasta “se desnudava como uma larva [comme
um ver], afirmando ao mesmo tempo a humildade animal – próxima do solo, da terra, da
vegetação – e a beleza de seu corpo jovem” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.22). Comparando o
349

corpo desnudo de Pasolini em estado de alegria e de desejo como um vagalume, Didi-Huberman


diz que ele “dançava como um ver luisant”, ao que as tradutoras atentaram que, “se traduzido
literalmente, significaria “larva brilhante”, para reforçar a comparação inicial do corpo desnudo
com o de uma larva (comme un ver)” (CASA NOVA; ARBEX in DIDI-HUBERMAN, 2011,
p.22). Para Didi-Huberman, “a dança dos vaga-lumes, esse momento de graça que resiste ao
mundo do terror, é o que existe de mais fugaz, de mais frágil” (DIDI-HUBERMAN, 2011,
p.25). Resistindo aos holofotes do fascismo e à luz ofuscante da mercadoria, a chama dos
vagalumes seria um sinal, frágil e intermitente, que indicaria, ao mesmo tempo, um “lamento
fúnebre” e uma potência de “acenar na noite” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.25-30). Didi-
Huberman mostra que os vagalumes, em Pasolini, é uma questão política e histórica, que esse
“lamento fúnebre” representava o desaparecimento dos vagalumes que simbolizava tanto as
catástrofes ambientais produzidas pela indústria quanto o desparecimento do “espírito popular”
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p.34), sendo a metáfora de “um túmulo dos povos perdidos”
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p.97). Esse caráter político desse inseto, dessa larva de fogo, que
porta desejo e luto, erotismo e luta política, se enfatiza ainda quando Didi-Huberman se remete
ao estudo de Osamu Shimomura, então ganhador do prêmio Nobel e sobrevivente das radiações
da bomba americana lançada sobre Nagasaki, em 09 de agosto de 1945, que evoca o relato à
palavra “vagalume”, exposto a nós, leitores, em uma nota de rodapé:

uma grafia original significando literalmente “fogo que cai gota a gota”, e em
que os pequenos lampejos dos insetos formam o argumento – discreto, mas
firme – das bombas incendiárias, das balas riscantes, até mesmo da poeira em
movimento que passa sobre as cidades japonesas bombardeadas em 1945
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p.51).

Portando um brilho que não se quer discreto como o dos vagalumes, mas que talvez
traga o mesmo sentido de erotismo e luto, desejo e luta política, alegria e lamento, esse brilho
purpurinado como paetê ou glitter também mostra que sua condição não existe desatrelada de
precariedade, que seu brilho já aponta para a extinção a que o corpo exposto está passível.
Popular e símbolo de festa, ele porta uma chama que indica a catástrofe.
É assim, popular, que outro poema do livro, “Velocidade do som”, fala para uma
multidão, fala para uma variedade que apenas uma letra é capaz de portar: “E ouçam todos: /
padre, professor, polícia, patrão...” (BRITO, 2019, p.11). Na economia de uma letra, P é polícia,
professor, padre, patrão, é “pedintes”, mas é também “povo” e é também “poeta”: “O poeta
grita/ o poeta berra”, “Estamos transformando o povo em poetas” (BRITO, 2019, p.11).
350

Deslizando na propagação de uma onda, essa letra P vai se deslocando e portando diferentes
funções conforme o poema vai correndo contra o tempo, na “velocidade do som”, tal como a
revolução que nasce em cada esquina no nascimento de um poeta.
Nos jogos ou competições de Slam, o que está em jogo é o tempo. A cada vitória de um
e de uma slammer, ele ou ela ganha mais tempo de fala. Se cada apresentação tem o tempo
máximo de 3 minutos, ser aprovado ou aprovada pelo júri popular é ganhar mais 3 minutos.
Assim, no Slam, poesia é, sobretudo, ganhar tempo. Falar um poema é falar desejando mais
tempo, mais tempo de fala. No Slam, o jogo é pelo direito ao tempo de fala e de escuta – àquelas
e àqueles que historicamente não podem falar e não são escutados: mulheres, pobres, negrxs,
gays, lésbicas, transexuais, transgêneros, não-binários, enfim, aos corpos que “põem em xeque
as normatividades de gênero” (BRITO, 2019, p.7).99
Na tese de doutorado intitulada Dispersões, proliferações, poesia, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ em
março de 2019, Bruno Domingues Machado atenta para o fato de que, em Aristóteles, “as
grandes categorias de movimentos – a da afecção, da qualidade, das alterações – são
considerados por ele tão movimentos como aqueles que hoje consideraríamos os movimentos
primariamente físicos” (MACHADO, 2019, p.179). Dizendo de outro modo, de acordo com a
Física de Aristóteles, não são os objetos da física apenas os deslocamentos no espaço-tempo,
mas tudo o que, “por natureza”, compreende o princípio de movimento e repouso
(ARISTÓTELES, 2013, 192b 8). Assim, a diferença entre um movimento físico e um
movimento qualquer seria, para Aristóteles, apenas qualitativa, mas não de natureza, pois
ambos são constituídos do princípio de movimento – que traz em si necessariamente o repouso.
O deslocamento no espaço-tempo será objeto da física como ciência apenas a partir do século
XVII, antes disso, a physis “poderia tratar tanto de deslocamentos pelo espaço como dos
movimentos da poética, da música, da política, da alma, da ética” (MACHADO, 2019, p.179).
O movimento da physis era, portanto, tanto físico como o deslocamento de um corpo no espaço,
quanto social, histórico, poético, político. O que desejo com isso não é naturalizar um

99
Roberta Estrela D’Alva, baseada no livro The Cultural Politics of Slam Poetry, de Susan B. A.Somers-Willett,
nos conta que o Slam nasceu em 1986 em Chicago: “Foi no ano de 1986, no Green Mill Jazz Club, um bar situado
na vizinhança de classe trabalhadora branca no norte de Chicago, nos Estados Unidos, que o operário da construção
civil e poeta Mark Kelly Smith, juntamente com o grupo Chicago Poetry Ensemble, criou um ‘show-cabaré-
poético-vaudevilliano’ (Smith, Kraynak, 2009: 10) chamado Uptown Poetry Slam, considerado o primeiro poetry
slam. Smith, em colaboração com outros artistas, organizava noites de performances poéticas, numa tentativa de
popularização da poesia falada em contraponto aos fechados e assépticos círculos acadêmicos. Foi nesse ambiente
que o termo poetry slam foi cunhado, emprestando a terminologia ‘slam’ dos torneios de beisebol e bridge,
primeiramente para denominar as performances poéticas, e mais tarde as competições de poesia. Assim, em um
fim de noite, de forma orgânica, e a partir de um jogo improvisado, o poetry slam nasceu” (D’ALVA, 2011, p.120).
351

movimento social, poético, político, é pensar que, no livro de Letícia Brito, ir à física é ir à
política, é ir ao tempo, ao horror do tempo, desse espaço-tempo, e é ir ao amor. Nesse livro, ir
à física é ir, portanto, a uma constelação de movimentos que do deslocamento do espaço-tempo
vamos ao amor e vamos ao horror.
O poema que abre este texto é o segundo poema do livro. Ele se chama “Gatilho”. Ele
também trata de algo que comparece em outro poema chamado “Física Aplicada”. Alguns
versos desse poema dizem assim: “Não se prova, senhoras e senhores, a resistência de um peito
se uma bala o atravessa/ [...] A gravidade trata o projétil da mesma forma que o rico trata o
pobre nessa sociedade:/ onde tudo o que sobe, um dia vai ter que descer’” (BRITO, 2019, p.25).
Ao final de “Física Aplicada” lemos: “Peito resistente/ é o de sua mãe preta/ que transformou
luto em luta” (BRITO, 2019, p.25). O poema “Gatilho” pertence ao mesmo movimento de
“Física Aplicada”, pertence ao corpo do objeto de onde sai o projétil. O poema é ele mesmo um
disparador. O primeiro verso, “Eu tenho pesadelos, todas as noites”, dispara um poema, dispara
uma carta, dispara memórias, dispara confissões, dispara promessas, dispara um manifesto.
Duas pessoas dormindo juntas, uma tem pesadelo, mas é a outra que acorda não conseguindo
dormir. A vigília da mulher amada, a sua insônia, os corpos que se entrelaçam amorosamente,
o peso dos corpos que se entrelaçam amorosamente, levam a um manifesto aos corpos que não
se enquadram na norma “de direita”:

Ela pergunta se eu quero que ela tire o peso de nossos ombros, de nossos
corpos cansados.
Corpos gordos, cansados, com pelos nas axilas e feias. Feias, fadigadas e
feministas de esquerda. Não somos bonitas como as mulheres de direita.
As mulheres direitas são fraquejadas e limpas e de axilas depiladas.
Não desminto essa informação.
Eles não entenderão que eu não sou mulher e tampouco quero ser um homem.
Eles jamais entenderão a escolha de ser um corpo manifesto na cidade.

O processo de escrita do poema entra no poema, é o poema, tece o poema: “Eu tento
escrever essas memórias com um final menos cortante, e viro pro outro lado e juro que acredito
que ontem mesmo eu tinha um poema na boca”. Isso que hoje são memórias e ontem se achava
que era um poema fazem parte disso que virou memória, poema, carta, manifesto, confissão,
promessa. Escrevendo-se enquanto se repensa, sendo o repensamento o processo mesmo de
escrita, essas promessas, entretanto, se rasuram na afirmação do “eu juro” (“eu juro que
anteontem mesmo eu falava essas palavras de esperança e revolução e várias mulheres ouviam
e concordavam que somos revolução e eu juro, não, ‘quem jura mente’...”) como se fosse um
esforço de se distanciar daquela velha promessa falsa e vã como tantos políticos diante de uma
352

assembleia, ou daquela velha verdade falsa e vã diante de um tribunal. Inscrevendo-se na


desconfiança do dito, no dito que se repensa, se rasura, colocando a afirmação por cima do
juramento (“Eu afirmo que ontem mesmo eu vivi esse tipo de tortura, de violência, de
silenciamento. Ontem mesmo eu perdi amigos, familiares, parentes, ancestrais...”), é um
testemunho quem fala, não como quem jura, mas como quem afirma, como quem sustenta, sem
se armar da garantia fixa do juramento da lei diante de Deus ou da “verdade nada mais que a
verdade”. Rasurando o juramento e inscrevendo a afirmação, como quem não está nem diante
de um tribunal nem de uma assembleia, mas como quem está diante de um tribunal e de uma
assembleia se comportando diferentemente do esperado, o testemunho faz ponte então à
promessa, à carta de amor, à promessa enquanto carta de amor: “E eu prometo, pela minha vida,
que hoje mesmo.../ – me abraça, meu amor, dorme tranquila”. Essa promessa se diz em seu
atravessamento: “– me abraça, meu amor, dorme tranquila”. A fala amorosa é o que ao mesmo
tempo atravessa e dá corpo à promessa, fazendo com que essa promessa não seja uma promessa
como outras, dita como outras. É esse atravessamento, “– me abraça, meu amor, dorme
tranquila”, que faz com que essa promessa seja essa e não outra. E, nessa promessa de amor, a
democracia: “Eu prometo que hoje mesmo a gente vai falar palavras de democracia./ Eu
prometo, meu amor, que hoje mesmo a gente vai fazer acreditar novamente”. Entrelaçadas ao
amor, não vindo senão de um endereçamento amoroso, à pessoa amada insone, temos “palavras
de democracia” colocadas em cena na escrita, não só prometidas, mas realizadas: “a escolha de
ser um corpo manifesto na cidade” se reafirma nos versos que exercem “palavras de
democracia”: “Ser/ Essa multidão” (“A gente vai fazer,/ Viver,/ Acreditar,/ Ser/ Essa
multidão”). Não o corpo normativo, mas “essa multidão” que cabe nesse corpo democrático,
nesse “corpo manifesto na cidade”.
Do peso dos corpos vamos à “Gravidade”, poema seguinte ao que foi citado. Nele,
lemos: “– sou carne, derme, pelo, verme, flor e espírito/ Sou também suor/ Suor que se derrama
de ti e de mim e pelo qual deslizas em meus poros,/ mistura nossas carnes,/ confunde nossas
cores” (BRITO, 2019, p.15). Da derme ao verme, da superfície deslizante ao ver, ao verme, ao
verso, “sou” é palavra que está em “suor”: “sou” passa a ser isso que é justamente deslizante,
isso que desliza, isso que também se compõe de partículas que o corpo expele, isso que é fluido,
que, no corpo, na pele, na derme, expõe o corpo ao contato com o fora. O poema é uma
“Gravidade” enquanto superfície deslizante: o peso dele é o peso do maior tecido do corpo, a
pele. Ele pesa enquanto atrita, ou é um peso enquanto atrito. Esse ser deslizante (“Sou suor”)
não é senão passagem, poros, caminho para o encontro, para a mistura.
353

Os poemas em Antes que seja tarde para se falar de poesia não têm um mesmo tema,
não são divididos em partes em que uma apenas abarcaria os poemas de amor e outra abarcaria
apenas poemas explicitamente políticos. No livro, todos eles são parte de uma mesma
constelação, cada um é ponte para outro, cada um é passagem ao outro, mostrando que essa
composição é feita assim, como um deslizamento, uma passagem. “Gravidade” pode ser uma
ponte para “Um novo lar para meninos poetas pretos periféricos viados que se suicidam (ou a
busca da cura) para Daniel Marques”, que é um trabalho de luto: “Vê aquele cometa? É Daniel
que acabou de chegar e encontrou tudo que também buscava. Dancemos” (BRITO, 2019, p.22).
Tudo é muito grave nesse livro, ele trata de coisas muito graves, mas em um deslizamento tal
que do luto desse último poema vamos imediatamente a “Hoje ‘Eu e ela, ela e eu (e o amor)’”,
verso do poema seguinte que se chama “Barreira acústica”: “Que haja um quarto escuro nessa
sociedade emudecida com paredes reforçadas em proteção acústica/ Onde eles não nos ouçam/
Já estamos cansadas de gritar/ Hoje ‘Eu e ela, ela e eu (e o amor)’/ vamos apenas gemer”
(BRITO, 2019, p.23). Em um giro de página, em que a página mesma é barreira e passagem,
vamos do luto ao amor.
Em A poesia não é um luxo, Audre Lorde fala da poesia como “destilação de
experiências” ao contrário de um “estéril jogo de palavras” (LORDE, 2019, s/p). Penso que
esse ser deslizante (“sou suor’) que Letícia nos traz é um destilador de experiências. A
propósito, o epílogo desta tese tratou disso que se destila, e Letícia é uma das poetas
propagadoras dessa “destilação de experiências” ao explanar o conceito de “cuírlombismo” de
Tatiana Nascimento quando o coloca como título de um de seus poemas. Antes que seja tarde
para se falar de poesia é uma pele arrepiada e suada que mostra a poesia como uma “destilação
de experiências”.
É possível que os livros destacados nesta tese possam ser todos compreendidos como
uma “destilação de experiências”, experiências de viver em condições precárias em diversos
âmbitos. Essas experiências não são transmitidas como Benjamin entendia a “experiência”
[Erfahrung] como aquilo que se transmitia de geração a geração: a “experiência” [Erfahrung]
estaria relacionada à acumulação de dados inconscientes que consistiria em matéria da tradição,
por ter na narração a transmissão integrada dos acontecimentos que perpassava a vida coletiva.
Enquanto essa corresponderia ao sujeito integrado em uma comunidade, acumulando-a ao
longo do tempo e transmitindo-a, narrando-a, dando continuidade a uma tradição, a “vivência”
[Erlebnis] corresponderia à “perda da experiência”, à impossibilidade de narrar e transmitir,
submetida a dados isolados, e não acumulados (BENJAMIN, 1989, p.108-126). Assim, vejo os
poemas contemporâneos muito mais como uma resposta imediata às catástrofes do que uma
354

transmissão de experiência no sentido benjaminiano. Penso que a “destilação de experiências”


de Lorde tem lugar justamente na impossibilidade da “experiência” de que Benjamin fala.
Destiladas e não transmitidas, gotejadas, vertidas, em um processo que é composto de
incompletude, de interrupção, de evaporação, de perdas.
Como quem acende um poema no outro, um livro no outro, vamos destilando essas
experiências como conversas de um telefone sem-fio, em um “disse me disse” que vai se
disseminando em uma grande comunidade tricotada por fofocas. Talvez, do amor ao horror,
esse estudo tenha terminado, como apontará o pós-escrito, indicando um componente a mais, a
amizade, como uma possibilidade que pode ser desdobrada e desenvolvida em outra pesquisa
em que eu possa me debruçar com mais profundidade nos conceitos que o tema irá convocar,
como “segredo”, “amizade”, “responsabilidade”100, por exemplo, bem como tecer um
mapeamento maior de poemas e poetas cujas escritas possam ser consideradas reescritas da
história que devem ser destiladas, isto é, “fofocas”.
Termino esta tese com o desejo de um tempo a mais para tecer uma leitura do livro de
Letícia Brito em que amor, política, luto, deslizam um no outro, às vezes no mesmo poema, às
vezes de um poema para outro. Termino com o desejo de poder estender essa leitura em outro
momento, dando continuidade a esse estudo, com o desejo de desdobrar e incluir nesse estudo
uma leitura cruzada dos poemas escritos com os poemas apresentados em performances de
Slam, em uma análise friccionada entre letra e corpo, nos modos como um interfere e altera o
outro, sendo ambos uma forma de inscrição. Como atentam Julia Klien e Heloisa Buarque de
Hollanda, o Slam põe “o corpo em combate” (HOLLANDA, 2018, s/p). Nesse sentido, é
interessante notar que quem executa o corte do verso, por exemplo, é o corpo, são os gestos das
poetas. Em uma poesia falada que se quer mais narrativa, mais direta e mais dicursiva, será
importante estudar esse retorno do oral,101 pensando nas estruturas do verso como isso que passa
a ser executado pelo corpo, pelas marcações dos gestos.
Além de o meu contato com o Slam ter começado no momento final desta tese, a prática
de publicar livros de poemas de poetas slammers não é recorrente. Os livros de Valeska e Letícia
foram o meu primeiro contato com uma compilação escrita de seus poemas que, até então, eram
publicados dispersos em zines e/ou não saíam do campo da apresentação oral. O Slam das

100
Penso em alguns livros, como “Dar a morte” e “Políticas da Amizade”, de Derrida, e “Duas palavras para o
feminino: Hospitalidade e Responsabilidade”, de Carla Rodrigues, como leituras importantes para esse futuro
debate.
101
Como diz Luiza Romão no livro de Heloisa Buarque de Hollanda, “para analisar fielmente a trajetória e o
desenvolvimento do spoken word, talvez precisássemos nos aproximar dos gregos e da origem da poesia ocidental
(como Homero, Sófocles e outros)”(HOLLANDA, 2018, s/p).
355

Minas tem sido uma linha de força das mais importantes e necessárias na poesia brasileira e,
como o tema da pobreza e da periferia são centrais, interessa-me ver como o amor e o horror
aparecem entrelaçados nesses poemas, preferencialmente, em uma leitura cruzada entre poema
escrito e apresentação oral, entre o suporte impresso e o da fala, entre livro e performance. Os
livros de Valeska e de Letícia são apenas um exemplo e um desejo de que isso possa ser feito,
e um desejo de que haja mais livros de poetas slammers a serem publicados.
Tentando não fazer desta conclusão apenas uma abertura a novos trabalhos, mas
pensando também, retrospectivamente, sobre escrita desta tese, ela se deu por um pensamento
sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea buscando tecer conjunções e
disjunções entre amor e horror. O percurso dessa escrita começou mostrando que, desde tempos
remotos, com a tartaruga que originou a lira no mito a Hermes, a poesia é associada a uma
instância amável, isto é, erótica. Seja com o jogo de Hermes com a lira, seja com o jogo presente
na poesia trovadoresca que via o verso como um joi d’amour, a dimensão do jogo atrelada ao
gozo se passa também pela compreensão do verso como um lance, um lance como o amor se
apresenta para Lacan e um lance como Mallarmé expôs em Un coup de dés, em que lemos coup
como jogo e golpe, além de lance. Vimos também que “amável” [aimable] é o mesmo adjetivo
usado por Derrida para se referir aos fantasmas, no caso, aos fantasmas de Sócrates e Platão,
sobre os quais ele tece uma abordagem também amorosa, erótica.
Nesse aspecto, a nossa abordagem de Eros abrangeu desde a tartaruga de Hermes que
deu origem à lira, à lírica, à poesia, desde Eros como gênio em O Banquete, desde o verso para
os trovadores, desde Derrida em O Cartão-Postal – em que o endereçamento amoroso entre o
eu autobiográfico ou ficcional e a amante é atravessado pela abordagem erótica em que Platão
obsidia Sócrates –, em Che cos’è la poesia?, com o “demônio do coração”, até o
comparecimento de Eros como gênio em Agamben e como daimon em Arendt – aquele que
aparece pelas costas, por sobre os ombros.
Tecer essa abordagem, aproximando, por exemplo, Che cos’è la poesia? com O
Banquete, na primeira parte, e, na segunda parte, aproximando pontos da concepção do espaço
político em Arendt –, que ela mesma associa ao daimon –, com o gesto em Agamben –, em que
ambos pressupõem um princípio do que se mostra, se exibe, se expõe –, além de entrelaçar o
modo como Derrida vai ao que queima ao modo como Agamben vai ao tempo, ao modo como
Benjamin vai ao tempo, ao modo como Hannah Arendt falou da História, ao modo como Lacan
falou do amor, ao modo como Agamben falou da cesura e do enjambement, enfim, tecer essa
abordagem associada e entrelaçada são modos de colocar em relação, de convocar,
anacronicamente, esses pensadores à mesa.
356

Na primeira parte da tese, podemos dizer que predominou uma teoria do verso, que
perpassou, porém, como um pano de fundo, a segunda parte. Na primeira, a escrita de Derrida
que se abre como um duplo gesto (indo ao que queima como quem vai aos mortos e como quem
vai ao amor), o pensamento sobre o contemporâneo de Agamben, o pensamento sobre o
enjambement e a cesura também de Agamben, a compreensão do verso como um lance a partir
de Um Lance de dados de Mallarmé, a compreensão do amor como um lance por Lacan, a tese
que traz o anjo da história de Benjamin, a compreensão do “tempo-de-agora” de Benjamin,
juntamente com outras discussões, me permitiram um modo de tentar pensar o verso tocando
em pontos que compõem alguns modos como alguns pensadores abordam o tempo, o poema e
outras questões como o amor, o testemunho e os gestos como nos movemos nos limites do
tempo, pensando a estrutura do verso, com o enjambement e a cesura, em sua desarticulação,
como condição de possibilidade do pensamento, do comparecimento do corpo no que escapa à
lógica do discurso e, ainda, do espanto.
Localizar-se no tempo requer localizar-se em sua vértebra, mais precisamente, na fratura
da vértebra, na quebra do eixo que sustenta e que torna o tempo, assim, insuportável. Suportar
o insuportável é o paradoxo de chegarmos ao nosso tempo não de outra forma senão
comparecendo em sua disjunção, no ponto que o desarticula, o que não é possível sem alguma
vertigem. Diante disso, vimos que há algo em comum entre a vida humana, o tempo e o verso:
as vértebras. Mais especificamente, as quebras. Verso, vértebra e vertigem se ligam
etimologicamente, indicando que o ponto da quebra também é onde se localiza o espanto, a
capacidade de se espantar diante do horror e, ao mesmo tempo, expor a falta de palavras
enquanto se tenta dizer.
Nesse sentido, as noções de corte, desencaixe, disjunção, interrupção, suspensão,
constituíram o princípio em comum dessas abordagens, que foram articuladas com o objetivo
de estabelecer aproximações a um pensamento sobre o verso. A abordagem do verso pelo
conflito se mostrou desde a acepção inicial como “crise”, “crise de nervos”, em Mallarmé,
“íntima discórdia”, em Agamben, “mal-entendido”, em Baudelaire, “contradição”,
“dissimulação” ou “equívoco”, em Derrida, até a abordagem final, discorrida no ensaio sobre o
livro de Valeska Torres, pela quebra do pacto civilizatório democrático com a “não pacificação”
de que falaram Kiffer e Giorgi. O princípio do corte também apareceu como fratura, como
fissura e como figura do sacrifício, ora em sentido ambíguo, como aquilo que separa e une, ora
como o que indicia uma animalização do humano, se mostrando como um reenvio do sacrifício
ritual ao sacrifício humano que deixa de ser um sacrifício e passa a ser um crime não passível
de culpabilização, o que Agamben chama de Homo Sacer. Como disse Fernanda Bernardo, a
357

partir do sacrifício animal do carneiro no Antigo Testamento, sobre o qual Derrida faz
referência, o sacrifício é um corte, uma interrupção, que, porém, tem função de mediação, de
uma distância necessária para que a aproximação aconteça: “sacrifício quer dizer, para Derrida,
‘aproximação’” (BERNARDO in DERRIDA, 2008, p.102). Mas, no último caso, o corte não
faz laço, não separa e une ao mesmo tempo, não tem na interrupção a condição de possibilidade
da aproximação, como a disjunção do amor na acepção lacaniana, por exemplo, ou como a
abordagem erótica que foi tecida sobre o enjambement e a cesura. Nesse caso, o corte é o
irreparável da barbárie, como indicam poemas de Bruna Mitrano e Valeska Torres,
especificamente, em que o sacrifício ritual, devido ao contexto dos outros poemas, pode ser lido
apontando sempre para uma animalização do humano que é abatido como um animal. Também
nesse sentido, a dívida aparece em diferentes configurações na primeira e na segunda parte: na
abordagem de Derrida, o estado de dívida aparece como uma ética para com o outro, em que o
eu está sempre em uma dívida insaldável, em uma pendência constitutiva da relação de
chegança ao outro. Estar em falta é parte inerente de estar em direção (vers) ao outro, ao qual
se deve se dirigir na distância, no diferimento, que o faz completamente outro. Melhor dizendo,
esse estado de dívida se aproximaria daquilo que Derrida fala de Lévinas: “uma culpabilidade
sem falta e sem dívida, na verdade, uma responsabilidade” (DERRIDA, 2015, p.22, grifo do
autor). Ao lado da ética desse suposto estado de dívida que pode ser dito como
“responsabilidade”, vimos a dívida como condição do neoliberalismo, que não está em relação
ao outro como justiça, pelo contrário, nada mais faz do que gerar a barbárie, a pobreza, a
exclusão.
Se, na primeira parte, a barbárie se ligou, pelos “Envios” de Derrida, mais a figurações
do holocausto e à catástrofe de uma forma mais generalizada, na segunda parte, uma das
figurações da barbárie que mais compareceu foi a pobreza. Isso mostra que uma das formas
mais latentes que as situações-limite do tempo atual coloca à realidade brasileira é a pobreza.
Ao menos, é o que alguma poesia brasileira contemporânea indicou, isto é, que a pobreza – que
pouco compareceu ou compareceu indiretamente na primeira parte (sobretudo, quando Derrida,
em Espectros de Marx, traz a imagem do demitido, do deportado, do desajustado) em que
prevalece um pensamento europeu –, é incontornável se se quer falar do horror dos tempos
atuais no Brasil e da produção mais recente da poesia brasileira.
Os livros de Bruna Mitrano, Tatiana Pequeno e Valeska Torres foram tomados como
possibilidades de livros de poemas que trazem o amor e o horror na composição dos livros, seja
em um mesmo poema, seja de um poema para outro. Possibilidades que, porém, não se
restringem a si mesmas, indicando, em suas singularidades, uma abertura à possível recorrência
358

desse modo de composição em outros livros, o que demandaria uma continuidade ao exercício
de leitura de outras produções de poesia publicadas. Em Bruna Mitrano, vimos uma ética que
se passa pelos extremos do corpo, pelos excrementos, pelos excretas, se instaurando como uma
política outra em relação aos extremos da política em que vivemos no estado de exceção. Em
Tatiana Pequeno, uma linhagem dos Silva, dos que portam a selva, linhagem que se abre aos
demitidos da história, dos que vivem na perda, na carência, dirigindo-se a eles e a elas como
quem se dirige a protestos, à poesia, à crítica, ao ensino, à pessoa amada. Em Valeska Torres,
entre ínguas e mínguas, a linguagem foi coiceada como um ataque ou uma “crise de nervos”,
ao que se somou outra configuração da crise, complementando o sentido de horror que recai na
palavra “crise” –, decorrente do capitalismo e do neoliberalismo, dessa máquina de produzir
pobres, endividados, excluídos e excluídas –, enunciado na primeira parte da tese. Em uma
ênfase em uma abordagem pelo conflito, pelo litígio, pela separação que propulsiona novos
laços, pelo “mal-entendido”, essa abordagem se encontrau com um dos modos como o verso
foi abordado no começo desta tese. Além disso, termos que foram empregados ao longo da tese,
como “precariedade” e “economia”, foram aprofundados, tornando explícito que condições de
precariedade relacionam essas três poetas. Nisso que é precário como “uma gota incólume”,
como “conchas” e como “grão de purpurina” como rastros de“furos de tatuí” no fim do
carnaval, incide um desencaixe no tempo, em que o brilho já aponta paras as suas cinzas.
Estando em relação com a primeira parte de modo descontínuo, não consonante, muitas
vezes essa segunda parte apresentou outro ponto de vista sobre o mesmo conceito que foi
abordado na primeira parte, indo a um mesmo conceito também pelo procedimento de um duplo
gesto que foi abordado ao longo da tese. Na parte que abrange a leitura de poemas, a pobreza
ou a penúria, por exemplo, que constitui Eros em seu mito grego de nascimento, cuja falta
constitutiva é o que o move, não é a mesma que se apresenta nessa constelação de poemas, isto
é, não é a mesma de uma condição precária produzida pelo Estado. Essa carência, ao contrário
da de Eros, não move, apenas produz danos.
Além da pobreza, o horror tomou forma de misoginia, de machismo, de feminicídio, de
gordofobia, de racismo, de preconceitos de gênero, formas em que as pessoas expostas a isso
partilham de uma condição precária que as aproximam em uma luta lá onde elas aparentemente
não se aproximariam. A precariedade, portanto, que também apareceu como prece, como
oração, é o comum que esses corpos expostos ou matáveis têm entre si. Assim, essas várias
condições de precariedade também fazem desses livros e dessas três poetas um “nós”.
Essa segunda parte, pois, sem o objetivo de ser uma ilustração da primeira, intentou ser
um desdobramento e um modo de pôr a teoria à prova da poesia. Dessa provação, a pobreza
359

trazida na poesia certamente é um aspecto que atrita o pensamento majoritariamente europeu


trazido na primeira parte, não se identificando com esse. Seria preciso pensar, nesse sentido,
como esse pensamento se transforma nessa, com essa e por essa poesia, como ele pode ser
afetado e friccionado por poemas do subúrbio do Rio de Janeiro. Sem conseguir responder a
essa tarefa, afirmo, por ora, que parece haver uma relação de apagamento e de realce, em que
alguns pontos se rasuram e dão lugar a outras conotações e outros pontos se fortalecem
conforme o engendramento do poema. Por exemplo, vimos que ir ao tempo-limite é ir aos
extremos e esses extremos foram compreendidos como amor e como horror, mas também como
falta e excesso. As noções de falta e excesso compareceram na primeira parte, mas não
longamente no sentido econômico como também compareceram com os poemas, na segunda
parte, pela via da necessidade, por exemplo. Dessas noções, a herança que compareceu com os
poemas se pôs ao lado do conceito “portar” de Derrida, como uma volta a mais na compreensão.
Em Tatiana Pequeno, por exemplo, essa herança se deu de várias formas, inclusive, da maneira
mais simples, concreta, frágil e precária como conchas. Outro exemplo foi como a abordagem
da gestação na primeira parte, ligada a Eros como gênio e como o “portar” de Derrida, se
transformou consideravelmente na segunda parte: do gesto ao indigesto, a herança foi
relacionada também ao que não chegou a ser, ao que não chegou a nascer, ao que ficou
interrompido, impedido, atravessado, sendo mais ressaltado o sentido do luto que também se
abre em “portar”. Com isso, a teoria platônica da passagem do não-ser ao ser como o que define
a poesia, no Banquete, foi problematizada ao ser confrontada com a experiência da pobreza nos
poemas, que não dá passagem, mas interrompe, impede, obstrui, fazendo dos poemas aquilo
que gesta ou porta o indigesto, o que fica atravessado.
Acredito, portanto, que os poemas tanto deram formas a conceitos que apareceram na
primeira parte como deram uma volta outra nas questões abordadas, não concorrendo com elas,
mas se justapondo a elas. Havendo o relampejo de algumas questões de uma parte na outra,
acredito que as duas partes interferem uma na outra, ora tocando em pontos de contato, ora
atritando-se. Antes do fim, ainda a respeito da relação de apagamento e de realce, creio que essa
relação se reitera entre dizer não e fazer brilhar com purpurina, entre o apagamento pelo horror
e o destaque pelo glitter, pelo júbilo, pelo amor.
Por fim, é preciso lembrar que essa pesquisa começou em 2016, ano do golpe, quando
Dilma sofreu impeachment, passou pelo governo Temer, pela prisão de Lula, pelo assassinato
de Marielle Franco, pelo incêndio do Museu Nacional, pelo incêndio na Amazônia, pelo
incêndio no Pantanal, pela eleição de Bolsonaro, pelo desmonte da Cultura, da Educação, da
Saúde, pela Reforma da Previdência, pelo rompimento das barragens em Mariana e
360

Brumadinho, pela chacina em Divinópolis, por quatro indígenas mortos em um mês e meio, por
sete mulheres estupradas a cada hora no Brasil, por um jovem negro assassinato a casa vinte e
três minutos no Brasil, por perdas dolorosas de familiares e amigos decorrentes da violência
física e psíquica dos tempos, por incêndios que extrapolam a dimensão nacional, por inúmeras
perdas que não cabem aqui e por inúmeros registros de atentado a vidas, ao país e ao mundo
que não cabem aqui. Felizmente, termino esta tese podendo dizer que Lula está livre. Porém,
diante da recém-nascida e já finda democracia, ou diante do que alguns chamam de “pós-
democracia”, a luta será longa para reparar os erros e ainda mais longa para reparar o retrocesso
causado pela destruição dos acertos. Neste tempo, esta tese é destinada, como uma carta, ao
nosso tempo, intempestivamente, contra o tempo, ao tempo que nos resta, ao tempo que a cada
momento nos é tirado, ao tempo a mais que fazemos caber nas palavras, ao irreparável do nosso
tempo, ao trabalho de luto diário dos que vivem na perda, à luta pelo trabalho de luto aos que e
às que não estão mais aqui, e àquelas e àqueles que ainda estão aqui, matáveis, tão somente
amáveis, sobreviventes.
361

PÓS-ESCRITO

Do segredo à fofoca: Mulheres que reescrevem a história

não me ensinaram
como sobreviver
numa terra devastada.

não me ensinaram
que a palavra civilização
significa: invasão e barbárie.

não me ensinaram
como arrancar da boca
essa língua que não me diz nada.

não me ensinaram
qual meu país
de origem,
o meu caminho
pra casa.

não me ensinaram.

eu mesma inventei
a minha história.
(Lubi Prates, sem título) 102

Em O coice da égua, de Valeska Torres, há um poema intitulado “Reino dos bichos e


dos animais não é o meu nome”. Ele tem dedicatória “para Stella do Patrocínio” e alguns
versos dele dizem assim:

[...]

havia uma barata entre meus lençóis quando criança


dessas cascudas que só se encontra no mato
rastejou até o meu ouvido
zunindo coisas que só no reino dos bichos se podem ouvir

“não quero” disse abafando o travesseiro contra o inseto

desde o assassinato
recebo os bichos para executá-los

102
Poema inédito em livro, postado no facebook no dia 24 de outubro de 2019. Disponível em
https://www.facebook.com/search/top/?q=lubi%20prates%20civiliza%C3%A7%C3%A3o%20e%20barb%C3%
A1rie&epa=SEARCH_BOX Acesso em 24/10/2019.
362

me dizem fofocas
esgueirando-se na mortadela na comida estragada
as patinhas miúdas fungando a merda
o reino dos bichos e dos animais não é o meu nome

mosca parruda que pousa na manga


jorrando o verme
seus filhinhos miúdos espeto na grelha
labareda lambendo asas finas
o corpo mole

nas autópsias que fiz


rasguei de uma só vez os colhões dos bichos
sussurrei a profana das mulheres

o maçarico
queima queima queima
o torresmo que como nessa manhã.

reino dos bichos e animais é o meu nome


(TORRES, 2019, p.51-52, grifo da autora)

O último verso do poema é uma contradição do título. Rasurando-o, ele afirma como
nome, como identidade, aquilo de que tentou se livrar a vida inteira. Desde criança, porém, o
sujeito do poema recebe a visita hostil dessas criaturas indesejadas, asquerosas, rastejantes,
estranhas. Desde criança, escuta coisas que os bichos contam e que só “no reino dos bichos se
podem ouvir” (“rastejou até o meu ouvido/ zunindo coisas que só no reino dos bichos se podem
ouvir’). O último verso, então, expõe o paradoxo de uma hostilidade que se mostra como
hospitalidade à revelia da vontade, de um distanciamento que se mostra como uma proximidade
mais forte que nunca de uma pessoa que sempre escutou aquilo que aparentemente nenhuma
pessoa conseguiria ouvir: zunidos, coisas que os bichos contam, fofocas: “me dizem fofocas”.
Ao longo do tempo, parece que, isso a que se sempre quis tomar distância, foi aquilo de que
mais se ocupou, como se obsediada por isso que chega rastejando até o ouvido sem pedir
licença, como uma obsessão, foi sabendo das patas, das asas e, inclusive, do que sai de dentro
desses seres abjetos, em uma meticulosa observação como quem manipula certas coisas como
se fosse bruxaria: “mosca parruda que pousa na manga/ jorrando o verme/ seus filhinhos miúdos
espeto na grelha/ labareda lambendo asas finas/ o corpo mole// nas autópsias que fiz/ rasguei
de uma só vez os colhões dos bichos/ sussurrei a profana das mulheres”. Parece que a
profanação não veio senão de muita escuta de fofoca ao longo da vida, escuta que agora faz
parte dessa voz em primeira pessoa, a constitui suficientemente para dizer “é o meu nome”.
Dito isso, hoje eu vou contar uma história para vocês. Não vou dizer que é segredo,
porque o segredo a Deus pertence. Vou chamar de fofoca, porque fofoca é isso que a gente
363

espalha. Na verdade, há alguns motivos pelos quais eu não quero chamar de segredo. Um deles
é que a minha leitura de um texto de Jacques Derrida me faz pensar que segredo é uma coisa
entre homens. Explico: em A literatura em segredo: uma filiação impossível, em tradução
inédita de Piero Eyben, Derrida lê a literatura por um segredo inaugural, o segredo entre Deus
e Abraão. Vocês devem saber que Deus exigiu a Abraão o sacrifício do filho de Abraão com
Sara, Isaac. E Abraão não contou esse segredo para ninguém, nem mesmo para Sara (“Do
chamado e da ordem singulares de Deus, Abraão não diz nada a ninguém. Nem a Sara, nem
aos seus, nem aos homens em geral” (DERRIDA, 1999, s/p)). Sabemos que, no final das contas,
Abraão não sacrificou Isaac: na iminência do sacrifício, com a faca em punho e a mão estendida,
Abraão é surpreendido pelo Anjo do Senhor: "Não toque no rapaz", disse o Anjo. "Não lhe
faça nada. Agora sei que você teme a Deus, porque não me negou seu filho, o seu único filho"
(Gênesis 22:11,12)103. Deus queria a prova de que Abraão o temia, de que Abraão o obedecia.
O segredo entre Deus e Abraão sela, portanto, a obediência e o temor de Abraão a Deus. Ora,
não é a esse segredo que eu vincularia a literatura, ou, no mínimo, uma certa literatura. E se
contássemos a história do ponto de vista de Isaac, que viu seu pai empunhar a faca, mas
permaneceu em silêncio? E se contássemos a história do ponto de vista de Sara, que morreu
sem saber que seu filho seria sacrificado pelo seu próprio marido em nome de uma obediência?
A História não admitiria essas outras versões. Tampouco a Filosofia, que relegaria essas
“historinhas” aos sofistas como uma prática de invenções. Mas deve haver quem conte essas
outras versões, como há quem reconte a Odisseia pelo ponto de vista de Penélope, como há
quem reconte a Ilíada pelo ponto de vista de Helena. Há quem diga que isso não passa de fofoca.
Bem, não é de hoje que a história relega as mulheres ao lugar da fofoca.
Relegadas aos cantos, ao fora da política, ao fora do espaço público, aos confins
subterrâneos da casa, ao silêncio, é claro que as mulheres burlavam esse silêncio do modo como
podiam. O que a história oficial não sabia é que isso que por muito tempo foi chamado de fofoca
iria se transformar em uma reescrita da história. Por que então estou usando um termo
pejorativo? Porque acredito que um novo uso a ele desativa a carga pejorativa pela qual as
mulheres foram capturadas por ele e o afirma de outra forma. Torcendo ao limite o sentido
dessa palavra, confere-se a ela uma positividade de um lugar de invenção. Assim, mais do que
ir contra, pois ir contra é ainda preservar, reativamente, aquilo contra o qual se vai, dar um novo
uso é desativar o sentido a que o termo estava preso, liberando as mulheres dessa relação de

103
Disponível em https://www.bibliaonline.com.br/nvi/gn/22 Acesso em 05/11/2019.
364

captura ao transformar a posição depreciativa, subterrânea, preterida, rejeitada, renegada,


banida, secundária, obscura, esquecida, em um lugar de invenção.
Silvia Federici, em Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva,
menciona a palavra fofoca (gossip), nos dizendo que, na Idade Média, essa palavra significava
“amiga”, e que, no período da Inquisição, na chamada “caça às bruxas”, essa palavra “mudou
de significado, adquirindo uma conotação depreciativa” (FEDERICI, 2017, p.335). Como
continua Federici, isso foi “mais um sinal do grau a que foram solapados o poder das mulheres
e os laços comunais” (FEDERICI, 2017, p.335). Em A história oculta da fofoca, texto traduzido
por Heci Regina Candiani, publicado como um minilivro pela editora Boitempo como parte do
livro Mulheres e caça às bruxas (Boitempo, 2019), Federici diz que, por meio dessa palavra,
gossip [fofoca],

podemos acompanhar dois séculos de ataques contra as mulheres no


nascimento da Inglaterra moderna, quando uma expressão que usualmente
aludia a uma amiga próxima se transformou em um termo que significava uma
conversa fútil, maledicente, isto é, uma conversa que provavelmente semearia
a discórdia, o oposto da solidariedade que a amizade entre mulheres implica e
produz. Imputar um sentido depreciativo a uma palavra que indicava amizade
entre as mulheres ajudou a destruir a sociabilidade feminina que prevaleceu
na Idade Média, quando a maioria das atividades executadas pelas mulheres
era de natureza coletiva e, ao menos nas classes baixas, as mulheres formavam
uma comunidade coesa que era a causa de uma força sem-par na era moderna
(FEDERICI, 2019, p.3).

Transformar o sentido da palavra “fofoca” é, então, também voltar ao significado que a


atrelava a laços comunais, à ideia de comunidade, de uma comunidade de mulheres não definida
senão pelo vínculo que as unia, a amizade. A importância sobre a recuperação desse sentido
recai ainda mais no fato de que a ênfase dessa aliança é dada a comunidades de mulheres de
classes baixas, essas que, no século XVI, irão sofrer os maiores ataques por acusações de
bruxaria e desobediência aos maridos (FEDERICI, 2019, p.7). Ao comentar sobre o livro,
Federici atualiza essa violência na contemporaneidade ao se referir a ataques contra mulheres,
especialmente negras, pobres, proletárias, e à “política de encarceramento em massa que o
governo dos Estados Unidos pratica internamente e em todo o mundo” (FEDERICI, 2019,
p.14). Um dos aspectos desses ataques “é dirigido contra possíveis mães de uma juventude
rebelde” (FEDERICI, 2019, p.14), diz Federici, o que leva a essas mulheres serem diretamente
relacionadas à rebeldia, à desobediência, tal como eram as mulheres satirizadas pelo termo
gossip. No século XVI, o fortalecimento patriarcal aliado ao poder da Igreja pregou a
obediência como “a primeira obrigação da esposa”, imposta não só pela Igreja, mas pelo direito,
365

pela opinião pública “e, em última análise, pelas punições cruéis que foram introduzidas contra
as ‘rabugentas’, como o scold’s bridle [rédea ou freio das rabugentas], também chamado de
branks, engenhoca sádica de metal e couro que rasgaria a língua da mulher se ela tentasse falar”
(FEDERICI, 2019, p.8), instrumento de tortura também usado em pessoas escravizadas durante
a escravidão moderna, “foi criado como castigo para as mulheres das classes baixas
consideradas ‘importunas’ ou ‘rabugentas’ ou ‘subversivas’, sempre suspeitas de bruxaria”
(FEDERICI, 2019, p.9).
Diante de tudo que foi dito, recuperar a “fofoca” é, antes de tudo, restituir a língua às
mulheres, sobretudo, às mulheres historicamente oprimidas e violentadas, como as mulheres
pobres e negras. Além disso, a violação do segredo pela fofoca implica em três proposições: 1)
violar a linhagem paterna. Se, no texto em questão de Derrida, o segredo se relaciona com uma
linhagem paterna, violar o segredo com a fofoca é violar a linhagem paterna; 2) violar o centro
e a figura da centralidade, Deus. Violar o centro é, pois, deslocar a atenção do centro para o
canto, ou seja, de Deus para as mulheres; 3) violar a verticalidade das relações. Enquanto o
masculino é caracterizado pela verticalidade da relação com o divino, o feminino é
caracterizado pela horizontalidade das relações comunais. Além disso, é ao caráter inventivo
que se atrela à fofoca e não ao segredo que eu gostaria de me ater aqui, já que a fofoca pode ser
toda construída em cima de mentiras, pode ser pura especulação, pura invenção. Pouco me
importa, portanto, se alguns disserem que a história que eu vou contar é mentira. A questão é
que, ao contrário das fake news, há nessa história uma responsabilidade. Ou melhor, uma justiça
(e sabemos que as fake news, ao contrário, não têm nenhum compromisso com a justiça). Há
nessas histórias uma justiça que nem a História foi capaz de fazer. Elas, para mim, são outra
versão da história, da história que não foi contada. Dissemino, então, essa versão que, para mim,
é a reescrita da história e a escrita da justiça.
De julho a setembro deste ano de 2019, Grada Kilomba, autora de Memórias da
plantação: episódios de racismo cotidiano (2019), apresentou na Pinacoteca de São Paulo a
exposição Desobediências poéticas, composta por duas videoinstalações, cada uma constituída
de dois vídeos, correspondendo ao primeiro volume da obra intitulada Illusions, composta pelos
subtítulos “Narciso e Eco” (Narcissus and Echo (2017)) e “Édipo” (Oedipus (2018)). Nesses
vídeos, Grada reconta de outro modo dois mitos fundadores da cultura ocidental. Grada
reescreve a história. Em “Narciso e Eco”, escutamos o narcisismo da branquitude. Em “Édipo”,
escutamos, no mito fundador do desejo, que poder não saber é um privilégio que mata. Na
história do desejo, escutamos pela primeira vez a ênfase no genocídio daqueles e daquelas que
são mortos às custas desse não-saber. Rasurando a história da família real, Grada inscreve a
366

história dos que são mortos. No mito fundador do desejo escutamos não o desejo, mas a
violência do não saber que faz do mito fundador do desejo uma história, sobretudo, de
genocídio. Rasurando a história da família real, rasurando o mito fundador do desejo pela
psicanálise, Grada rasura, também, o motor que move a filosofia desde tempos remotos, o “não-
saber” socrático pelo qual se constrói o saber. É certo que esse “não-saber” teve e tem sua
função propulsora ao pensamento, mas o que o ponto de vista de Grada atenta é que só
privilegiados podiam construir um saber em cima de um “não-saber”. Aqueles e aquelas que
não pertenciam ao domínio público, as mulheres, por exemplo, estavam excluídas desse “não-
saber” que, na filosofia grega, feita por homens, era a porta de entrada do conhecimento.
Em Cuírlombismo Literário, Tatiana Nascimento nos conta uma das mitologias de
orixás africanos que comumente não é contada nem mesmo pelas pessoas que têm religião de
matriz africana. A partir de um itan, nome em iorubá de histórias que são transmitidas de
geração a geração, como mitos e lendas que vão compondo o imaginário coletivo como uma
história em que se acredita, não tendo o caráter falso ou distanciado da vida, mas sendo e
determinando a vida, Tatiana nos diz o que não nos disseram da história da Oxum: segundo o
itan, a relação entre Oxum e o rio vem de um envolvimento sexual de Oxum com Iansã
(NASCIMENTO, 2019, p.6). Ou seja, é um mito lésbico que fundamenta a identificação de
Oxum com a água doce. Tatiana diz: “como intelectual negra sapatão, me é indispensável contar
essa história dessa forma, uma explanação óbvia e inegavelmente lesbiana da natureza sagrada
de uma das mais amadas e importantes Orixás na diáspora” (NASCIMENTO, 2019, p.7).
Sabemos que a colonização “é projeto civilizatório étnico-racial excludente de
civilizações outras [...]; mantenedor da supremacia econômica, heteronormativa, cisgênera”
(NASCIMENTO, 2019, p.11). A história que nós conhecemos, portanto, vem de uma difusão
predominantemente hétero, cis, normativa, e “essa difusão predominantemente htcisnormativa
se dá porque a história da colonização é uma de heterocissexualização. daí ser imprescindível
recontar, recriar – ou requeerar, nas palavras do poeta bicha preta pedro ivo – transformadora,
anticolonialmente” (NASCIMENTO, 2019, p.9-10). Assim, Tatiana aponta a importância de
“entender o remontar-se/recriar-se pelas palavras como um fazer mítico-político”
(NASCIMENTO, 2019, p.13).
Recriar-se pelas palavras significa, também, permitir-se outra história, uma história,
inclusive, que possibilite não se fixar no “paradigma da dor”, transformando esse paradigma
pela “afirmação do direito ao devaneio” (“o paradigma da dor tem sido transformado pela
afirmação do direito ao devaneio” (NASCIMENTO, 2019, p.21)) que faz “pensar literatura
negra lgbtqi como espaço da experimentação, da criatividade, do inusitado/inesperado”
367

(NASCIMENTO, 2019, p.25). Não basta denunciar, é preciso anunciar, é preciso não fazer do
“paradigma da dor” o destino da história, mas criar outros fios que rompam com essa linha com
a qual os colonizadores fiaram a história. Por isso, se faz necessário, por exemplo, recontar a
história dos quilombos não os vendo como “grupo de escravos fugidos”, como atentou Beatriz
Nascimento, em que Tatiana Nascimento se baseia, mas como “sistemas organizacionais
complexos, de produção cultural, convivência inter-racial, troca de saberes, sistemas decisórios
diversos” (NASCIMENTO, 2019, p.16-17).
Tatiana adverte: “como artistas, temos nos acostumado com o dever da denúncia (que
rende inteligibilidade imediata, legitimidade, reconhecimento) e por vezes nos esquecemos do
direito – humano – ao devaneio – vocação da arte” (NASCIMENTO, 2019, p.19). Assim, uma
outra história se faz possível quando mais de uma pessoa começa a difundir uma reescrita, uma
invenção, de modo que uma leitura produz uma escuta que, por sua vez, produz outra escuta, e
assim, como um telefone sem fio, essas histórias vão se difundindo e se espalhando, denotando
que uma outra história só se faz possível com uma construção de laços, com uma escuta coletiva
produzida entre conversas de escritas e leituras. É nesse sentido que Tatiana diz: “lendo lésbicas
negras aprendi a urgência de criar palavras próprias, retomar ancestrais” (NASCIMENTO,
2019, p.12). Nessa escuta coletiva que propicia uma escrita inovadora da história, Tatiana
Nascimento, com base nas leituras de dois Nascimentos, Beatriz Nascimento e Abdias do
Nascimento, produziu um terceiro nascimento: o conceito de cuírlombismo (NASCIMENTO,
2019, p.15-18), uma aliança, uma junção transformadora, uma invenção que provém da
“parecença entre queer e quilombo” (NASCIMENTO, 2019, p.4, grifos da autora). Criações
como essa, portanto, não apenas desconstroem a história colonizadora, mas significam um
movimento de refazimento da história, não apenas de sua deposição, tampouco de um
apagamento, mas de uma recriação, de uma “re-feitura” (NASCIMENTO, 2019, p.20), de uma
possibilidade de construir outra narrativa, reivindicando o direito à literatura como uma
possibilidade de invenção de uma outra história fundada em outro dizer: “literatura é dessas
artes com as quais inventamos mundos novos, im ou possíveis, utópicos, diz-tópicos: fundamos
lugar no dizer” (NASCIMENTO, 2019, p.24). Prova disso é que Letícia Brito também fez disso
uma aliança, uma rede de explanação, ao disseminar essa invenção: em seu primeiro livro de
poemas, Antes que seja tarde para se falar de poesia, a poeta e slammer tem um poema
chamado “Aldeia Cuírlombola de Escrevivências”, aliando o termo de Tatiana Nascimento
(“cuírlombola”) ao de Conceição Evaristo (“escrevivências”). Um trecho do poema diz:

[...]
368

Somos Cuír
Porque nossos corpxs estranhos não seguem teus padrões estéticos.
E antes de imporem tuas famílias, tuas medidas, teus cidadãos de bem, tua
[moral e tua ordem, aqui já estávamos.
Pois somos a poeira das estrelas e brilhamos bem antes de tentarem nos reduzir
a pó.
Não cabemos na estética binária de tua língua normativa.
Somos cada corpx possível, somos plural.
Somos quilombo
(BRITO, 2019, p.71)

De “Somos Cuír” a “Somos quilombo” não temos senão uma ponte em cujo termo “cuír”
opera como um transporte coletivo, isto é, como um termo que transporta em si uma
coletividade. Em Corpos em aliança, Judith Butler diz que “o termo queer não designa
identidade, mas aliança, e é um bom termo para ser invocado quando fazemos alianças difíceis
e imprevisíveis na luta por justiça social, política e econômica” (BUTLER, 2018, p.79). O
próprio termo queer foi usado por Tatiana Nascimento como uma aliança com “quilombo” e,
por sua vez, essa aliança composta e disseminada por Letícia Brito em “Aldeia Cuírlombola de
Escrevivências”. Fazendo do termo uma ligação, um elo, um envio que se lança de si para além
de si, que transporta, carrega ou reenvia a um outro, Letícia deu continuidade, passando a diante,
a essa reconfiguração do termo que não perdeu a aliança que o caracteriza, pelo contrário,
explicitando a pluralidade (“somos plural”) a que ele faz ponte, “cuírlombismo” se constitui
como uma aliança (entre luta negra e luta de gênero) ainda mais potencializada.
Em 13 de abril de 2018, foi publicado na Revista Escamandro o poema A Mulher de
Lot de Assionara Souza, poeta nascida no Rio Grande do Norte e radicada em Curitiba, que
infelizmente faleceu cedo demais, em 21 de maio de 2018, vítima de um câncer. Menos de um
mês antes de seu falecimento, sem saber da doença que ia tirá-la de nós, eu lia esse poema no
site da revista.104 O poema reescreve o episódio bíblico da mulher de Lot, condenada a virar
uma estátua de sal por transgredir a ordem de Iavé de não olhar para trás:

104
No dia de sua morte, o poeta Carlito Azevedo fez a seguinte postagem no facebook: “Sempre achei formidável
que duas mulheres, a russa Anna Akhmátova e a polonesa Wislawa Szymborska, tivessem escrito poemas que
desconstruíam o episódio bíblico da mulher de Lot, condenada a virar uma estátua de sal por transgredir a ordem
de YHVH de não olhar para trás, para a cidade natal, destruída. Por isso fiquei muito feliz quando outra poeta,
brasileira e contemporânea, Assionara Souza, veio se somar a esse coro de poderosas solistas com um poema
extraordinário sobre o tema. Uma russa, uma polonesa, uma brasileira, e se pesquisar bem deve dar para montar
uma antologia mundial de poemas sobre a mulher de Lot. Reproduzo aqui os três poemas em homenagem a
Assionara Souza, de cuja morte tão precoce acabo de ter notícia. Descanse em paz. No meu céu, que existe sob a
forma de poemas prediletos, com elas você estará”. Apesar de não me deter aqui aos poemas de Akmátoma e
Szymborska, gostaria de fazer eco a essa composição de mulheres que Carlito atentou, dando ênfase a esse trio de
poetas e de poemas que pode e deve ser estudado, aumentado e desdobrado. O poema de Akhmátova, traduzido
por Lauro Machado Coelho, pode ser encontrado aqui http://substantivoplural.com.br/a-mulher-de-lot/ e o de
Szymborska, traduzido por Regina Prsybycien, pode ser encontrado aqui https://www.escritas.org/pt/t/47865/a-
mulher-de-lot.
369

Um passo atrás
Enquanto a cidade desaba
Todos correndo
Um tumulto dos diabos
O filho, a filha, o marido
A vizinha da frente — com quem o infeliz tem fornicado
Há mais de cinco anos embaixo de seu nariz
Como se ela não soubesse
Como se ela não tivesse visto de tudo nessa vida
Ele perguntando se a camisa vermelha
— Aquela com um só bolso no lado direito?
— Sim. Essa mesma.
Se a camisa vermelha não estava limpa e bem passada
E o filho indo no mesmo caminho
Tratando-a feito lixo
— A mãe não sabe pronunciar a palavra “estultícia”. Tenta, mãe!
Estúpidos todos
Até a filha, que ela tanto ensinou
Agora andava com um centurião
Um centurião!
Maior desgosto para uma mãe
E depois dessa correria toda
Quando arrumassem pouso
Adivinhem quem prepararia o jantar?
Não teve a menor dúvida
Mirou a cidade em chamas
Uma sensação incrível
Deixar de ser uma mulher de pedra
Seu corpo inteiro puro sal rebrilhando ao sol
(SOUZA, 2018, s/p)

No mito está implicado um gesto de se voltar para trás. A primeira coisa que me veio à
mente quando li esse poema foi uma associação desse gesto com o gesto do anjo da história, de
Walter Benjamin, presente na nona tese Sobre o conceito de história.105 Como um corpo que
vira pedra ao olhar para trás, como um olho cujo corpo se transforma em pedra ao fitar a cabeça
da Medusa, o corpo do anjo da história é impelido para frente, com os olhos, porém, presos à
catástrofe que se acumula atrás (BENJAMIN, 1987, p.226). Penso o gesto da mulher de Lot
como o gesto do anjo da história, esse gesto que se volta para o horror, para a barbárie, esse
gesto que mira a catástrofe e, por isso mesmo, a História. Detendo-me ao poema de Assionara,

105
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo
que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele
vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria
de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em
suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que
chamamos progresso” (BENJAMIN, 1987, p.222-232).
370

penso esse gesto de se virar para trás como um gesto, agora, feito por uma mulher. Voltada para
a catástrofe, a mulher de Lot não está voltada senão para a história. É ela, portanto, por uma
desobediência, quem vê, quem enxerga a história.
Mas o poema também nos dá outro ponto de vista: ele transforma uma história de
catástrofe em uma história de libertação da mulher. Lá onde o mito diz que a mulher de Lot
virou pedra, o poema nos diz que pedra é o que ela era antes, e mirar a cidade em chamas não
foi senão o seu momento de brilhar, de ter uma “sensação incrível”, como diz o poema. Com
isso, o gesto dessa mulher escrito por Assionara passa a ser uma dupla desobediência: uma
desobediência a Lot e uma desobediência a uma certa escrita da história, instaurando uma outra
escrita, uma outra versão da história. Nessa subversão, essa mulher, que até então não era, que
até então era a mulher de Lot, que até então existia enquanto mulher do marido, essa mulher
que, enquanto mulher de Lot, sofria como mulher de Lot, nessa subversão, essa mulher deixa
de ser a mulher de Lot e passa, finalmente, a ser. Essa subversão confere, portanto, o estatuto
de ser à mulher que até então não passava de ser a mulher de Lot.
Precisamos escrever um poema cujo título seja o nome que nunca foi dado à mulher de
Lot. Segundo fontes duvidosas, “ela não é nomeada na Bíblia, mas é chamada de Ado ou Edith
em algumas tradições judaicas”. Precisamos dar nome ao inominado. De algum modo eu
concordo com um pensamento que se faz pela rasura do ser. Mas o que precisamos atentar é
que, historicamente, as mulheres nunca tiveram o estatuto de ser. As mulheres nunca foram, as
mulheres sempre foram essa pobreza de ser, sempre foram ao rés do ser. Então, se há todo um
esforço teórico que pode desconstruir o ser, é porque, primeiro, houve a existência desse ser.
Há uma frase de Macabéa – mulher, pobre, nordestina – em A hora de estrela que diz “Que é
que eu faço para conseguir ser possível?” (LISPECTOR, 1998, p.48). É essa pergunta que,
historicamente, muitas mulheres devem ter feito. Ser possível significa existir enquanto
possibilidade. Não em um ser enrijecido, não em um ser que não tenha uma brecha para um
não-ser, não em um ser que não seja ao mesmo tempo um não-ser, mas um ser que se faça
enquanto possibilidade de existência. Fazer ser possível é começar pelo nome, não como quem
domina, não como o homem que deu nome às plantas e aos animais para dominar, mas como
quem nunca pôde ser, como quem nunca foi possível. Como seria então se hoje a história fosse
escrita pelo ponto de vista de Ado ou Edith?
A poeta Mônica de Aquino, por exemplo, no livro Fundo Falso (2018), disse aquilo que
a História não nos contou de Penélope:

Penélope mentirosa
371

De noite desfaz, obediente


a fera que a carne abriga
e regressa à partida: a espera indefinida.

De dia, é outro o desejo


tece a mortalha com o silêncio
de ter de casar-se outra vez

(presa entre duas promessas)

mas Penélope mente: o que quer é a solidão.

A fidelidade é um cão.
(AQUINO, 2018, p.21)

Penélope certamente cochichou no ouvido de Mônica, que, com a escuta aberta aos
nossos mortos, como todo e toda poeta devem ter, começou a disseminar, a partir da escrita de
um poema, essa fofoca, começou a disseminar a reescrita da história, a escrita de uma outra
história, a história que Penélope nunca teve mas deveria ter dito. É por isso que eu digo que
escrever um poema é reescrever a história, é dar à história a possibilidade de um novo começo.
Escrever um poema, portanto, é começar de novo.
As mulheres nunca puderam começar. Quem sempre pôde agir, quem sempre pôde
discursar, quem sempre pôde começar foram os homens. Na Grécia Clássica, a pólis era o
âmbito estritamente político em que discurso era sinônimo de ação: aqueles que podiam
discursar eram aqueles que podiam agir. Agir e discursar eram praticamente a mesma coisa, e
significavam, como nos diz Hannah Arendt, em O que é política (2002), poder começar. As
mulheres, as crianças, os escravos, os bárbaros não podiam começar. Só os homens livres
podiam começar. Mulheres nunca foram livres. Nunca puderam começar. A história das
mulheres faz parte da história de quem nunca pôde começar. As mulheres sempre estiveram ao
rés do ser, isso que sempre esteve mais próximo à condição animal de que compartilhavam
escravos, crianças, bárbaros. Segundo Aristóteles, em A Política, esses e essas apenas falavam,
mas não discursavam, apenas tinham voz como um som que dá sinal de dor ou prazer, mas não
tinham linguagem, porque estavam mais próximos à animalidade, mais presos à necessidade
imediata de sobrevivência (ARISTÓTELES, 2009, 1253a). Assim, esses e essas estavam mais
distante da política onde pertenciam aqueles que tinham a faculdade da linguagem articulada
do discurso e não de um mero som sem sentido e inarticulado como um ruído, como um
cochicho, como um balbucio, um gaguejo, um rosnado, um rugido, um ruído de uma fofoca.
Tecendo esse ruído sem sentido, Mônica destece o mito de Penélope. Destecendo a espera, a
372

poeta inscreve um agora, um começo: rasura a obediência e tece uma “Penélope mentirosa”,
uma Penélope ardilosa que faz da espera um meio de desobedecer, um meio de ser, um meio
de brincar/gozar/enganar. É nesse engano, nessa mentira, que Penélope é, que Penélope assume
o estatuto de ser, porque é aí que ela deseja. Ser, portanto (no final do primeiro poema, ela diz:
“Ulisses, agora, sou eu” (AQUINO, 2018, p.20)), não diz de uma essência, mas de uma
possibilidade de desejar.
“Ulisses, agora, sou eu” traz uma ambivalência: Penélope passa a ser Ulisses, aquele
que pode agir, discursar, começar, se aventurar, ou então Penélope dizendo para Ulisses “agora,
sou eu”, “agora, é a minha vez”, “agora, não é só você que é; agora, eu sou”. Como diz o último
verso de “Penélope Mentirosa”, “A fidelidade é um cão”, se lembrarmos de Argos, o cão fiel
de Ulisses, é como se Penélope dissesse “não sou Argos, não sou seu cão, não sou um cão, não
sou um animal; agora, eu sou”. Também podemos ler esse verso no sentido pejorativo que a
palavra “cão” assume quando associada a representação do diabo. Nesse sentido, é como se
Penélope perjurasse a própria ideia de fidelidade, contrapondo-se a ela. Em ambos os sentidos,
na traição da fidelidade, afirma-se uma outra existência à Penélope.
Os versos que antecedem o verso “Ulisses, agora, sou eu”, do primeiro poema do livro
(“Penélope Insone”) são: “[Penélope] “recusa o passado seus retalhos/ prefere o que ainda não
aconteceu” (AQUINO, 2018, p.20). 106 Em uma passagem de Poética, em tradução de Eudoro
de Souza, Aristóteles diferencia o ofício do poeta e do historiador ao dizer: “não é ofício de
poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que
é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (ARISTÓTELES, 1992, 1451b). Na
mesma passagem, ele continua: “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem
verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por
isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que
diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder” (ARISTÓTELES, 1992,
1451b). Ora, segundo Aristóteles, a história é a narrativa do acontecido e, a poesia,
diferentemente dessa, é a possibilidade do que poderia acontecer. A poesia, portanto, é a

106
Penélope insone: “Completar a urdidura do dia/ saber do manto o desenho exato// saciar toda fome de geometria/
conhecer o trabalho, no limite dos olhos.// Recriar-se inexata sem simetria/ até terminar o diagrama de escolhas.//
Só então destruir, com agulha e tesoura/ cada amor imaginado.// Conservar apenas a memória das mãos/ sobre o
tecido, o percurso do fio/ a desfazer o possível antes da aurora.// Penélope dissolve-se na hipótese:/ quer conhecer,
em detalhes, o manto/ que a separa do outro.// Tece o pano como quem toca/ o corpo de um homem, de cem
homens// desfaz a mortalha como se destruísse um véu. // Fere a carne do pano, fere o dedo na pressa/ e mancha,
com sangue, a colcha de promessas.// Mas ante isso: recusa o passado seus retalhos/ prefere o que ainda não
aconteceu// enquanto pensa: Ulisses, agora, sou eu” (AQUINO, 2018, p.19-20).
373

potência. Escrever a potência, o que poderia ter acontecido, o que poderia acontecer, escrever
a possibilidade é, pois, escrever o que ainda não aconteceu, como diz Penélope no poema.
Diferentemente de Aristóteles, penso, porém, o ofício do e da poeta como uma reescrita da
história, justamente por eles e elas darem à história a verossimilhança e a necessidade que a
história não deu e que não vem do passado ou não só do passado, mas, sobretudo, do presente.
A verossimilhança, ou seja, a capacidade de ser crível, de se acreditar, e a necessidade, isso que
se passa pela responsabilidade e pela justiça, é a poesia, pelo que parece, que pode dar à história.
Uma história que se pretende justa, portanto, deve recorrer à poesia, porque só a poesia escreve
a possibilidade, isto é, escreve a possibilidade de escrita de um novo começo, escreve a
possibilidade de escrita do começo que é necessário e (por que não?) crível. Dizendo de outro
modo, só a poesia escreve a possibilidade do impossível, só a poesia transforma o impossível
em possibilidade.
Aristóteles chamaria isso de “impossível crível”. Mais à frente na Poética ele dirá: “Às
coisas possíveis, mas incríveis, deve-se preferir as impossíveis, mas críveis” (ARISTÓTELES,
1992, 1460a). É essa escrita do impossível (crível) que a poesia faz ser possível como escrita
de uma nova história. E quando ela é mais justa do que a própria história, isso significa que a
história ainda precisa muito da poesia – e a História Antiga, da qual sabemos, sobretudo, pelo
mito, pela poesia, pela literatura, ainda precisa muito da poesia contemporânea, dessa poesia
por onde passa aquilo que é dito subversivamente como um cochicho que se propaga, como
uma fofoca que se espalha e da qual já não se pode controlar. Incontrolável, dissemina-se a
escrita do necessário, do justo e da possibilidade de ser àquelas e àqueles que nunca tiveram o
estatuto de ser. Se a história se quer justa e necessária, ela não pode não escutar o que se passa
ao largo da história: as fofocas.
Assim como os poemas anteriores, o poema a seguir, de Helena Zelic, presente no livro
Durante um terremoto (2018) trabalha a partir de um tema, como diz o próprio título, clássico.
Não apenas isso: como os outros, ele trata igualmente de uma releitura dos gregos. Neste caso
específico, de uma releitura que concerne a Safo:

os clássicos

quem sabe quais seriam


as palavras de Safo
censuradas pelo tempo
[pela igreja católica]
abarcadas como ilhas mudas
pelos colchetes e chaves da história?
374

quantos beijos na boca


quantas bocas
[quantas? como?]
a despeito de covardes
bibliotecários da moral?

o que sussurravam as mulheres


nos ouvidos?
um mundo em festa.

os fragmentos das letras


são lacunas do encontro
entre uns corpos e outros.

há amores como há embarcações


e somem no mediterrâneo,
enormes e invisíveis.
[um mundo em festa!]
mais que ilhados,
subaquáticos.
(ZELIC, 2018, p.32)

Se, cronologicamente, vivemos em um momento derivado da história cristã do mundo,


fazendo com que tal determinação molde, de modo imediato e majoritário, o nosso olhar sobre
os gregos, o poema se compromete a fazer uma leitura outra, trazendo justamente aquilo que a
tradição cristã censurou. Nesse sentido, ir a Safo, contemporaneamente, é ir a uma Safo não
cristã, ou seja, não censurada, em busca de uma outra possibilidade da poeta de Lesbos. Que
Safo seria essa que uniria o contemporâneo a uma outra possibilidade da antiguidade? O que,
de Safo, a História emudeceu? As “chaves da história” operam para abrir ou fechar a
interpretação? O que se encontra perdido pelos muitos colchetes abertos para além da perda dos
fragmentos? O que, de Safo, foi perdido pelas peripécias do tempo e o que, de seus poemas, o
cristianismo rasurou? Eis a pergunta que o poema se propõe responder. Se, no que restou de
Safo, os colchetes indicam o que falta, o que não chegou ao nosso tempo, em Helena, os
colchetes indicam o problema, a pergunta e a resposta: enquanto, na primeira estrofe, o que
aparece é o motivo da censura (“[pela igreja católica]”), ou melhor, quem estabeleceu a censura
de Safo e, de modo geral, dos gregos, provocando uma interpretação demasiadamente
interessada, na segunda e na última estrofes, aprece, mesmo que em forma de interrogação
(“[quantas? como?]”), a resposta, “[um mundo em festa!]”, como réplica da resposta à pergunta
“o que sussurravam as mulheres/ nos ouvidos?/ um mundo em festa”. A festa provém daquilo
que é sussurrado, cochichado. Como fofoca, esse poema é, portanto, a disseminação da festa
que os “covardes/ bibliotecários da moral” censuraram, a divulgação do detalhe que o
cristianismo gostaria que fosse ignorado.
375

Em um dicionário etimológico encontramos que a fofoca é a “divulgação de detalhe da


vida alheia que o outro gostaria que fosse ignorado”.107 No livro A influência africana na
cultura brasileira, vemos que “fofoca” tem origem africana, do banto, e que o étimo da palavra
é discutível: “alguns etimologistas admitem ser do quimbundo fuka, revolver; outros, do bundo
fwafoca, invólucro vazio" (SARAIVA, 2016, p.48). Fazendo com que palavras incertas, de
verdades tão somente desconfiadas, sem fundamento, possam circular sem ancoragem,
propiciando que outras histórias sejam contadas, “invólucro vazio” é isso que não deixa
apreender uma determinação, qualquer seja, de verdade única, totalizante, exclusiva. Sendo o
“invólucro vazio” a sua força-motriz, a fofoca como isso que não provém de uma origem e de
um centro fixados é, incessantemente, o revolvimento de camadas segmentadas e cristalizadas
da história. Daí que fofocar é revolver a história. E fazer outras perguntas a ela, e buscar novas
respostas. Assim podemos ler a segunda metade do poema de Helena como uma resposta ao
que foi colocado na primeira metade: a estrofe “o que sussurravam as mulheres/ nos ouvidos?/
um mundo em festa”, estrofe que contém uma pergunta e uma resposta, passa a ser então um
divisor de águas no próprio poema, a partir daí ele se faz como uma resposta às perguntas das
primeiras estrofes, e essa resposta é “o que sussurravam as mulheres”.
Da épica vamos à tragédia. No livro Onde estão as bombas, de Tatiana Pequeno, há um
poema que se chama “silva antígona”108:

primeiro a poesia foi solapada por


um desenho errado que fizeram
dela. foi exposta entre os gentios
de uma biblioteca eminente sabia
mente iluminada ao cifrão mais
vantajoso da república quando
disseram — ainda tolos — que era
engenho ou arte ou descendência
a moeda da sua larga circulação.
depois a poesia não chegou ao que
era o seu destino, a distância, e o
que seria munição transformou-se
naquilo que o poder engendra na
psicologia da servidão voluntária:
dor, bicheira, melancolia, exílios,
enforcamentos, bactérias, prisão.

107
“de provável origem banta, radicado no quimbundo fuka, revolver, remexer. A origem banta é afirmada em
estudo publicado pela Faculdade de Letras de Lubumbashi, no Zaire, de autoria da professora baiana Yeda A.
Pessoa de Castro, doutora em Etnolingüística e uma das fundadoras da Universidade de Ifé, na Nigéria, com
décadas de pesquisa sobre a influência de línguas africanas no português do Brasil. A fofoca é quase sempre um
dito maldoso, divulgação de detalhe da vida alheia que o outro gostaria que fosse ignorado”. Disponível em:
https://www.dicionarioetimologico.com.br/fofoca/ Acesso em 05/11/2019.
108
Gostaria de retomar, nesse momento, a releitura do poema “silva antígona” já analisado nesta tese (ver página
231). Considero a presença dele relevante também na composição deste texto.
376

agora a poesia tem companhia tem


um número incontável de letras tem
esses nomes que evocam o seu dia
mais ancestral de artesanato e saída.
ela então migrou daquela região grave
e grega onde hoje se deve os fundos da
terra e troca a guarda bem ao nosso lado
entre apertos de mão, palavras sobre crise
(acenos, claro, porque implicar-se é um
gesto permitido pelas normas da saúde)
e ensaios e mais ensaios que jogo ao mar
quando encaro os terminais próximos
do trabalho que não é de libra e recordo
que este é, afinal, o novo antropoceno e
boa será mesmo a poesia que apenas
indique nos seus versos mais rupestres os
caminhos que tenham levado a sabedoria
lírica os rios as violetas e os humanos
mais sensíveis à sua completa extinção.
(PEQUENO, 2019, p.14-15)

Com suas assonâncias e aliterações em algumas rimas esparsadas em /ia/ e /ão/,


estaríamos quase lendo um canto, mas, de cara, nos deparamos com a estranheza do título. Seria
o poema uma tragédia? Seria a escrita do poema a inscrição de uma tragédia? Seria o poema a
escrita de uma nova tragédia cuja personagem principal é a poesia, agora como “silva
antígona”? No poema, a ancestralidade vem em dois nomes, ou em dois sobrenomes, ou na
estranha justaposição de um sobrenome atual a um nome arcaico, ou na antecedência do
sobrenome ao nome, antecedência do sobrenome atual ao nome arcaico. Colocando o
sobrenome no lugar do nome e o nome no lugar do sobrenome, o atual antecede e, ao mesmo
tempo, fica ao lado do mais antigo. Ambos passam a compor, nessa inversão, um nome e um
sobrenome, isso que é matéria de transmissão, de linhagem. Sabemos que Antígona é aquela
que lutou pelo luto proibido pela lei, aquela que tentou, contra a lei, cuidar de seu morto, dar
um funeral digno a quem amava. A respeito da curiosa junção que compõe o título, outro poema
do livro nos dá uma pista. O primeiro verso de “cantilena da outra ponta da praia” diz “meu pai
era pequeno além de silva” (PEQUENO, 2019, p.35).
Silva é um dos sobrenomes mais comuns nos brasileiros e brasileiras. Silva também é
uma palavra latina que significa mata, floresta, selva, selvagem. Silva são os que podem ser
presos. Silva são os que podem ser mortos. A poeta porta essa herança, ela carrega esse
sobrenome. Aliás, ela também carrega o adjetivo transformado em sobrenome. Tatiana Pequeno
da Silva traz em si os pequenos e os silvas, os pequenos silvas – ou os “silva’s”, como intitula
377

um poema presente no livro anterior, Aceno (PEQUENO, 2014, p.11), cuja apóstrofe não é o
plural, mas, em inglês, diz o que é dos Silva –, traz a selva, a selvageria, o não domesticado.
A junção entre Silva e Antígona, entre Brasil e Grécia, entre gregos, latinos e brasileiros, entre
atual e arcaico, entre o mais comum e o mais incomum, entre o sobrenome e o nome, entre os
que morrem e os que têm o desejo de enterrar os mortos, entre uma linhagem e aquela que teve
a linhagem interrompida, entre os que são mortos e aquela que não deveria ter nascido, essa
junção traz uma ancestralidade fundante da contemporaneidade. Ancestralidade essa que
também surge pela afronta à lei, a lei que impede de enterrar os mortos e a lei que chancela a
matança dos/das Silvas – como diz a famosa letra do funk: “era só mais um silva que a estrela
não brilha”. “[S]ilva antígona” tece um começo, uma linhagem, linhagem essa que parece ser
da própria poesia. Nessa assinatura – “silva antígona” – lemos uma genealogia, uma história da
poesia: “primeiro a poesia foi solapada por/ um desenho errado que fizeram/ dela”. Não
furtando o olhar à extinção, o poema não só conta o começo da poesia como entrevê o futuro
dela, e nesse futuro a “boa poesia” será aquela cuja selvageria nos versos indique, mostre, acene
o caminho da extinção de uma matéria que sempre foi tradicionalmente cara à poesia. Os versos
finais do poema dizem: “boa mesmo será a poesia que apenas/ indique nos seus versos mais
rupestres os/ caminhos que tenham levado a sabedoria/ lírica os rios as violetas e os humanos/
mais sensíveis à sua completa extinção”.
Há, em “silva antígona”, uma refundação da poesia que passa por uma reescrita da
história da poesia em que quem encara o mar é uma poeta mulher que, dirigindo-se ao trabalho,
e não comandando caravelas, invadindo, colonizando, anuncia o que será, no futuro, a poesia.
E o que essa poeta mulher decolonial anuncia é, desde o tempo-de-agora, uma poesia-
testemunho, uma poesia que seja as marcas de uma ausência, que indique, em si, os caminhos
da extinção. Seja uma poesia que acene para a morte de uma certa poesia, seja uma poesia que
acene para a morte de tudo que é vivo, seja os dois, “silva antígona” escreve uma história da
poesia em que o futuro da poesia é o trabalho de luto, anunciado do desejo de uma poeta mulher
que se dirige ao trabalho e vincula a gestação de um novo começo, de um “novo antropoceno”,
à poesia por vir.
Se a poesia agora se caracteriza por apertos de mão, palavras sobre crise, acenos, ensaios
jogados ao mar, a relação dela com o “novo antropoceno” é intermediada pelo “trabalho que
não é de libra”,109 pela economia que não move o país, mas por outra economia, que não é do

109
A referência vem de outro poema presente no livro, intitulado “campo de libra” (PEQUENO, 2019, p.10).
Campo de Libra é o nome que se dá a uma das maiores descobertas já realizadas no pré-sal brasileiro. Ou seja,
378

ganho, do acúmulo, do lucro, do progresso, mas de um dispêndio que é um envio errante. Como
há mares implicados no poema, seja pela referência direta à Grécia, seja, indiretamente, ao
Brasil e a Portugal, se nos atermos aos estilos literários cifrados no poema, podemos pensar que
um ensaio jogado ao mar finalmente cumpriria o destino não cumprido da poesia, isto é, a
distância. Como uma garrafa com uma mensagem lançada ao mar, esse lance seria um puro
endereçamento, e a poesia reescreveria a história dos descobrimentos, inscrevendo uma outra
história: não a história dos descobrimentos, mas uma história de envios inseparável de uma
história de luto.
Em resenha na Revista Odara, a poeta, ensaísta e co-fundadora da iniciativa Mulheres
que escrevem, Taís Bravo, diz sobre o livro O Martelo (2017), de Adelaide Ivánova: “Ao
escrever aquilo que testemunham, as poetas [...] [c]olocam em palavras saberes que sempre
foram cochichados. Convocam diálogos, filiações, respostas. Expandem possibilidades dentro
de um campo que (assim como todos os outros em nossa sociedade patriarcal) ainda precisa ser
disputado” (BRAVO, 2019, p.124). É também sob o estímulo dessa colocação que escrevo este
texto, como tentativa de afirmar e desdobrar esse cochicho que Taís traz. Atrelar o testemunho
ao cochicho é justamente relacionar a precariedade do discurso do testemunho a essas que nunca
puderam discursar. Trazer o cochicho ao lugar de saber é radicalizar o cochicho como uma nova
forma de escrita, como um saber que não é do discurso, mas do cochicho, isto é, do testemunho.
Escrever esses cochichos, disseminá-los, dizê-los em voz alta, é uma forma de abalar os
discursos e de tornar públicos os testemunhos. Como diz Derrida, “testemunhar, declarar,
bearing witness, é sempre tornar público” (DERRIDA, 2015, p.39).
A poeta Catia Cernov é essa que fala na língua do testemunho. “Um testemunho se faz
sempre em primeira pessoa”, diz Derrida (DERRIDA, 2015, p.47), seja na primeira pessoa do
singular, seja na primeira pessoa do plural. É falando em primeira pessoa que Catia diz, porém,
de Helena. O título do poema é “Helenikas”:

Páris
Qe tanto amava minha buceta
Glorificava minhas tetas tatuadas
Me pedia pra empinar a bunda
Fabricou um arco
E me fez cativa

Como se isso provasse amor

isso que movimenta a maior economia do país não representa senão a agressão do dinheiro, da exploração, do
capitalismo, do acúmulo que não deixa restos.
379

A gente trepava a tardetoda


Desavergonhados
No centro de Ágora
Lá fora o exército ouvia nossos gemidos&súplicas
E parecia explodir
Como nosso-gozo

Rastejavamos entre suor&lama&sêmen


Me ensinou a ejacular como umamulher
Logo eu,
Tão fina dama predestinada ao rei
Tão delicada flor clássica
Urrava e jorrava na cara dele

Depois
Com seu pênis flácido&cansado
Ele passava horas alisando o arco
Como qem alisa minhas coxas
Como se tudo fosse amor
Aqele amor secreto à minha buceta

Mas havia uma promessa dguerra pros homens


Qe lá fora escutava mas não gozava
E queria tbm explodir

Por isso me fez cativa


Traiu nossa intimidade absurda
Nosso jogo d amantes
Nossas pernas trançadas&cúmplices
Nossos brilhantes olhos ddiamantes

Eu ainda dei pra ele


Por mais duas luas
Páris me amava
Me possuía
Me fazia implorar
Ele mesmo implorava
Nos olhavamos e kopulavamos
Com toda permissão ds deuses
E a testemunha ds exércitos
Qe lá fora esperava e não gozava

Até qe as moscas passaram a sentar


Sobre seu pênis grudento e caído
Enqanto ele fabricava uma flecha

Qando ele fez a flecha


380

Pra dar vingança aos exércitos qe ouviam e não gozavam


Minha buceta sofreu d solidão
Sabe o qe é se arrastar e pedir o qe deveria ser sincero?
Vcs sabem o qe significa pruma mulher ser carne dguerra?
Alguem faz ideia do qe sente um corpo qe goza intenso
D repente ter d se tornar apenas troféu?

Dói dói dói


Dói meus joelhos sem toque
Eu me agarro a eles e desespero
Como qem revive o toqe e chora pra apagar lembranças

Páris conduzindo exércitos


Lá fora
Aqi dentro
Eu
Qe aprendi a ser puta
Bem safada
Trepar só se for um monte
D repente cinza
Mito
Helenika
É cruel

Então eu fugi
E dei pro primeiro soldado faminto qe encontrei
(CERNOV, 2019, p.60)

“Helenikas” nos conta uma história que não foi bem aquela história de amor que nos foi
contada... Nesse vínculo do arcaico com o atual, temos a atualização de Helena. Catia mostra
que reescrever uma história de amor e de guerra que coincide com um dos começos da cultura
ocidental é reescrever a história sem papas na língua, é, também, trazer à cena o obsceno, aquilo
que ficou de fora da cena. Nas imagens de “tetas”, “bunda” e “arcos”, não temos senão uma
forma arqueada que liga amor e guerra, Eros e Áries. O poema todo é uma oscilação entre Eros
e Áries, o erotismo, figurado nos amantes Helena e Páris, e a guerra, figurada no exército que
“esperava e não gozava”. O amor comparece no poema como um gesto de transgressão: contra
o destino de Helena a Menelau, o rei, (“Logo eu,/ Tão fina dama predestinada ao rei/ Tão
delicada flor clássica”), ela transgride o destino sendo amante de Páris. Depois, quando Páris
vai para a guerra lutar com Menelau, a mulher abandonada continua respondendo ao desejo
erótico e realiza outro gesto de transgressão: “Então eu fugi/ E dei pro primeiro soldado faminto
qe encontrei”. Nem o rei nem o príncipe, mas o soldado, o anônimo. Tem-se então o privilégio
de Eros sobre áries em Helena. O que permanece é o erotismo, é a esse que ela irá responder,
381

transgredindo o destino. “Então eu fugi” transgride, também, o nome próprio de Helena,


desamarrando-a mais uma vez de seu destino: aquela que era destinada a ser capturada, fugiu
(CASSIN, 2005, s/p).110
Catia Cernov leva a crer que recontar a história de Helena é atualizá-la em um dizer
diferente e, na radicalização desse dizer outro, encontramos transgressões na língua, como
quem muda um pouco a grafia, suprime algumas letras, contrai algumas palavras, junta uma
palavra na outra, subvertendo a norma, escrevendo como quem manda um tuíte, por exemplo,
reescrevendo a história como quem escreve um tuíte e torna público para uma comunidade de
leitores e leitoras que, de repente, irão viralizar a mensagem, passando-a adiante. A única
intervenção que encontramos de pontuação é onde o ponto de interrogação se torna
indispensável: “Sabe o qe é se arrastar e pedir o qe deveria ser sincero?/ Vcs sabem o qe
significa pruma mulher ser carne dguerra?/ Alguem faz ideia do qe sente um corpo qe goza
intenso/ D repente ter d se tornar apenas troféu?”. Na reescrita da história de Helena, novas
perguntas são colocadas a uma coletividade: ela se dirige a “Vcs”. Nessa história, dizer “eu” é
dizer “ela”, uma primeira pessoa ficcional: o “eu” que escreve é o “eu” de Helena e o “eu” que
lê. Nessa voz de uma mulher que diz “eu” escutamos um “ela” que é, também, um “você,
mulher”. Catia Cernov não diz “a Helena”, ela diz “eu”. Como se estivesse lá, como se fosse
ela mesma, como se fosse Helena, como se fosse testemunha, como se, nessa potência, nessa
possibilidade, “à maneira da ficção (‘como se’)” (DERRIDA, 2015, p.71), Catia diz, porém,
“eu”, essa voz em primeira pessoa que geralmente não se alia à ficção, mas ao vivido, ao
testemunho.
Atentando para a constituição de ficção no testemunho, Derrida atenta, igualmente, para
a constituição de real na ficção quando diz:

sem a possibilidade dessa ficção, sem a virtualidade espectral desse simulacro


e em seguida dessa mentira ou dessa fragmentação do verdadeiro, nenhum
testemunho veraz enquanto tal será possível. Por consequência, a
possibilidade de ficção literária é assombrada, como sua própria possibilidade,
pelo testemunho dito veraz, responsável, sério, real (DERRIDA, 2015, p.81-
82, grifo do autor).

110
Em Ver Helena em toda mulher (2005) de tradução de Fernando Santoro, Barbara Cassin nos diz: "O que eu
faço não é ortodoxo: se forem consultar, por exemplo, o excelente ‘Dictionnaire Etymologique de la Langue
Grecque’, de Chantraine (Klincksieck, 1990), vocês saberão que, ‘qualquer que seja a interpretação tentada pelos
historiadores da religião [...], é vão procurar uma etimologia’ para ‘Helena’. Dito isso, há uma pletora de
etimologias, nas quais toda a Grécia acreditou. Por exemplo, ‘Helena’ vem de ‘helein’, infinitivo passado do verbo
‘haireo’, ‘tomo, rapto, capturo’: aí está, dizem todos os gregos, uma boa eponímia, conforme ao ‘etymon’ no
sentido verdadeiro, no sentido etimo-lógico da palavra”. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1707200506.htm. Acesso em 16/11/2019.
382

Em outras palavras, se a possibilidade do testemunho se passa necessariamente pela


ficção, a ficção só é possível se traz em si a possibilidade do testemunho, a possibilidade da
carga real, séria, responsável e veraz do testemunho. Quando o poema de Catia Cernov fala em
primeira pessoa, é ela, é Helena, sou eu quem fala. Estive lá, estivemos lá para testemunhar a
história que não foi contada. Cada uma de nós pode ser testemunha dessa história e, assim, cada
uma de nós pode reescrever a história de Helena, porque reescrever a história de Helena
significa reescrever a história de cada uma de nós.
Pela História oculta da fofoca, vemos que essa reescrita da história já começou há muito
tempo. Federici resgata um relato contado por Thomas Wright em A History of Domestic
Manners and Sentiments in England during the Middle Ages [Uma história de costumes e
sentimentos domésticos na Inglaterra durante a Idade Média], de 1862 (FEDERICI, 2019, p.4).
Esse relato diz de um “mistério”, como era chamado um dos dramas religiosos no teatro
medieval que representa passagens bíblicas. Nesse mistério que “representa Noé exortando
pessoas e animais a entrar na arca, a esposa é apresentada sentada em uma taverna com
suas gossips, recusando-se a sair dali quando o marido a chama, mesmo com as águas
subindo, ‘a menos que ela tenha permissão de levar as gossips consigo’ (WRIGHT apud
FEDERICI, 2019, p.5). A história é reescrita desde, no mínimo, a Idade Média, quando se
recria a narrativa do dilúvio na Gênesis, em uma recriação em que a mulher desobedece
ao homem e muda a história ao exigir que essa história não se reduza a um homem e a
uma mulher e contenha uma comunidade de mulheres, suas amigas, suas comadres.111
Uma reescrita da história se passa por inventar a história e por reescrever as narrativas
dominantes. Essas narrativas não estão restritas aos livros de História, mas devem ser
entendidas no campo mais amplo de uma construção de narrativas que se passa por mitologias,
filmes, jornais, revistas, televisão, conversas, redes sociais, enfim, tudo o que faz parte da
linguagem (LUDMER, 2010, p.12). É assim que o livro Mulher correndo entre ciprestes
(Urutau, 2019), da poeta Carolina Pazos, poderia ser, em sua maior parte, uma reescrita, uma
refilmagem, uma reencenação de diversos filmes que compõem a história do cinema. Como

111
Sobre o significado do termo ao longo da história, Federici nos diz: “Derivada dos termos ingleses arcaicos
God [Deus] e sibb [aparentado], gossip significava, originalmente, god parent [padrinho ou madrinha], pessoa que
mantém uma relação espiritual com a criança a ser batizada. Com o tempo, entretanto, o termo passou a ser usado
em sentido mais amplo. Na Inglaterra do início da era moderna, gossip se referia às companhias no momento do
parto, não se limitando à parteira. Também se tornou um termo para amigas mulheres, sem conotação
necessariamente derrogatória1. Em todo caso, a palavra tinha fortes conotações emocionais. Reconhecemos isso
quando observamos a palavra em ação, denotando os laços a unir as mulheres na sociedade inglesa pré-moderna”
(FEDERICI, 2019, p.3-4).
383

seriam essas histórias contadas de outro ponto de vista? Mais ainda: do ponto de vista de uma
mulher? Mais ainda: do ponto de vista de uma mulher que está sob risco?
Os poemas deste livro, porém, não são uma representação dos filmes que são aludidos
nos títulos. Ao ultrapassar os títulos, vemos que há um acontecimento outro. Os filmes são fios
que a poeta puxa como ponto de partida que, assumindo todos os riscos, ela risca para encenar
aquilo que nunca foi encenado, dando lugar a uma cena que nunca teve lugar na história. “Os
homens que não amavam as mulheres”, “Terra Fria”, “Kill Bill”, “O Silêncio dos Inocentes”,
“Amelie Poulin”, “Árvore da vida”, “A vida dos outros”, “A sociedade dos poetas mortos”,
“Que horas ela volta?”, “Mandacaru Vermelho” e tantos outros filmes clássicos ou não da
história do cinema nacional e internacional vão se transformando na película onde a história de
uma mulher é escrita. Vejamos, por exemplo, o que diz uma sinopse de um dos filmes cujo
título compõe um poema presente no livro de Carolina, “The witch: a New-England Folktale",
traduzido como “A bruxa”, lançado no Brasil em 2016: “Em uma fazenda no século XVII, uma
histeria religiosa toma conta de uma família que acusa a filha mais velha pelo desaparecimento
do seu irmão ainda bebê” (NETO, 2018, s/p). Os primeiros versos do poema de mesmo título
dizem: “Sonhei que descobriam meus pecados/ acordei com sangue na garganta/ faz tanto
tempo desde a inquisição?” (PAZOS, 2019, p.8):

THE WITCH: A NEW-ENGLAND FOLKTALE

Sonhei que descobriam meus pecados


acordei com sangue na garganta
faz tanto tempo desde a inquisição?
não faz tanto desde Ravensbrück
os incêndios nas fábricas de tecelãs
os estupros em Willbrook
são nódoas nesse tecido
minha pele presa
nas correntes
do Tapeka State Hospital

Gisella Perl, as crianças te perdoam


por salvar as grávidas das tropas
Nísia Floresta talvez fizesse o mesmo

Eu apenas murmuro
“não desejo crianças”
da sala para a cozinha
da cozinha para a sala
a frase de Leila Diniz
“transo de manhã, de tarde e de noite”
mas de madrugada eu ainda sonho
a descoberta dos pecados.
384

(PAZOS, 2019, p.8)

No poema, justapostas à menção à Inquisição encontramos a ginecologista judia que


ajudou centenas de mulheres no campo de concentração, Gisella Perl, encontramos também a
educadora feminista Nísia Floresta (“Gisella Perl, as crianças te perdoam/ por salvar as grávidas
das tropas/ Nísia Floresta talvez fizesse o mesmo” (PAZOS, 2019, p.8)), encontramos, ainda, a
atriz brasileira feminista Leila Diniz: “Eu apenas murmuro/ “não desejo crianças”/ da sala para
a cozinha/ da cozinha para a sala/ a frase de Leila Diniz/ “transo de manhã, de tarde e de noite”/
mas de madrugada eu ainda sonho/ a descoberta dos pecados” (PAZOS, 2019, p.8). O filme,
portanto, é apenas um fio que se puxa para convocar mulheres de diferentes épocas, de modo
que todas elas passam, agora, a ser protagonistas dessa história que gira em torno de uma
inquisição remissiva para além de uma época histórica.
Uma pele muito fina e delicada cobre uma história para dar lugar a outra, às vezes
remanescendo uma cena da história inicial, um pequeno detalhe, uma palavra, de onde se
desdobra toda uma nova cena. Como um palimpsesto, no risco é que se dá lugar a outro. Cada
poema que se inscreve no risco de uma película é a História contada e escrita de outro modo,
de outro ponto de vista: do da pele de uma mulher sob risco. Sob tantos riscos, as histórias que
são reescritas não inscrevem senão a história de uma mulher que se traça também na abertura
de um risco que faz surgir muitas histórias, muitos nomes, muitas mulheres. Dessa mulher
singular que se abre a tantas mulheres, dessa singularidade que se abre a uma pluralidade, o
“eu” feminino autobiográfico/autoficcional se torna a personagem principal, protagonista
dessas histórias que agora passam a ser suas. Esse sujeito do poema, de uma voz de mulher, diz
respeito à mulher que escreve, mas também à mulher que lê. A indeterminação entre o “eu” que
escreve e o “eu” que lê inscreve, pois, a partir da temática do filme, a sua/a minha história.
Agora, essas histórias tomam novos riscos, novos contornos, novas personagens ao serem
contadas de novo: contar de novo, recontar é, portanto, contar diferente. Reescrever a história
é, a um só tempo, escrevê-la de novo e escrever diferente. Ao escrevê-la de novo, não a repete,
escreve-se diferente. Ao recontar a história desses filmes, a mulher que escreve conta a sua
história e a entrelaça com outras mulheres de agora e de outros tempos. Assim, o livro de
Carolina nos leva a crer que, para que uma mulher transforme a história, ela precisa começar
inscrevendo a sua, e a de muitas, sob um olhar a partir do qual nós, mulheres, determinamos
como e qual história queremos contar, porque nós sempre estivemos sob o risco da história que
é contada por nós.
385

Imagino que algumas pessoas devam estar se perguntando: Mas reescrever a história é
um poder “dizer tudo”? Em Essa estranha instituição chamada literatura, Derrida aliou a
literatura à democracia pelo “dizer tudo”. Ele diz: “Mas o dizer tudo do literário tem a ver com
o advento da democracia moderna, espaço de maior liberdade e de possibilidade infinita de
relações entre os indivíduos” (DERRIDA, 2014, p.21). Se Derrida estivesse vivo hoje,
certamente ele faria, no mínimo, algumas notas explicativas ressaltando que o “dizer tudo” da
literatura sempre tem a responsabilidade como limite. Isso significa que o “dizer tudo” da
literatura não é o “dizer tudo” em que estamos vivendo atualmente que mata a democracia, uma
vez que esse “dizer tudo” se exime de qualquer responsabilidade e de justiça (esse “dizer tudo”
é o que permite o atual presidente do Brasil evocar o nome do maior torturador em rede nacional
pública, é o que permite um deputado federal ameaçar a volta do AI-5 e é o que permite ele
dizer que ser processado por isso é que já é o AI-5...). Esse “dizer tudo” que se exime de
responsabilidade e de justiça, esse “dizer tudo” que mata, todos os dias, a democracia, é um
“vale tudo”. “Vale tudo”: assim foi nomeada a experiência dos campos de concentração.
“Hannah Arendt definiu um dia a experiência final dos campos como o princípio do ‘tudo é
possível’ (AGAMBEN, 1995, s/p). Quando tudo se torna possível, não estamos falando de
democracia, mas de campos de concentração.
Acredito que A literatura em segredo seja um contraponto a Essa estranha instituição
chamada literatura. Não seria mera especulação, já que o primeiro foi publicado em 1999 e, o
segundo, em 1992. Como um movimento posterior, parece-me que A literatura em segredo quis
dizer algo mais que a entrevista não disse. Se, nessa entrevista, Derrida diz que a literatura pode
“dizer tudo”, no outro texto, como quem complementa a posteriori, Derrida diz: “há coisas que
a literatura não diz”. Em contrapartida ao “dizer tudo”, ele alia a literatura à expressão “perdão
por não querer dizer”, ele alia a literatura ao segredo. Nem um “dizer tudo” nem um “segredo”,
eu não chamaria essas reescritas da história de um “dizer tudo”, mas de um dizer outro, porém,
justo. O que se diz nessas histórias que vimos é um dizer, que não é todo, é um dizer que é, na
verdade, um dizer outro que contradiz, com justiça e responsabilidade, o tudo que a história
disse. Diferentemente do Direito, que busca a verdade em prol de um julgamento, e da História,
que não busca a verdade, mas busca dar sentido aos discursos (ou narrativa ao acontecido), a
literatura não se define nem pela verdade nem pelo sentido, mas pelo que incessantemente
dificulta uma categorização, ou seja, a literatura é muito mais os foras que a atravessam do que
uma instância determinada. Inapreensível, ela é isso que a todo momento desafia a captura, ela
é sempre outra coisa, ou é sempre muitas coisas. Coordenada e não subordinada, inserida em
uma articulação infindável de adição, sendo isso e aquilo, sua existência democrática se
386

comporta por acolher a coexistência de dois contrários, por acolher o paradoxo, por acolher a
contradição, e não por os subtrair do pensamento. Acolher o equívoco, a falta de sentido e a
indecidibilidade entre o ficcional e o não-ficcional é uma das formas mais dignas que a literatura
se alia não à história dos vencedores, mas à história dos vencidos. É nesse sentido que leio a
importante colocação de Flavia Trocoli e Carla Rodrigues no livro Demorar, a respeito de uma
citação de Derrida112: “Portanto, eis o ponto em que a ficção, por ser inapropriável, não
totalitária, poderá, num jogo sempre arriscado, se fazer passar por testemunho e fazer (uma
pequena) justiça literária aos mortos” (TROCOLI; RODRIGUES in DERRIDA, 2015, p.15).
Em outros textos, como Paixões, de Derrida (1995) e “Perdão por não querer dizer…”:
o segredo da literatura de Abraão a Derrida, de Fernanda Bernardo (2015), vemos que, para
Derrida, o segredo não pressupõe uma verdade por trás, é sempre um resto que remanesce em
qualquer palavra. Todavia, se Derrida confere a essa característica do segredo a condição de
possibilidade da linguagem, a minha visão é menos uma discordância desse aspecto do segredo
e mais uma discordância da relação entre literatura e segredo a partir, especificamente, do texto
A literatura em segredo, pelos motivos que foram discorridos ao longo desse texto. Acredito
que minha proposição não deixa de ser uma desconstrução da desconstrução, por assim dizer,
partindo de Derrida para traí-lo sob uma urgência histórica que faz com que seja necessário
mudar as palavras e, com elas, a direção do olhar e da história.
Se pensarmos que o mais importante do segredo entre Deus e Abraão não era o conteúdo
do segredo, mas a aliança entre eles, se pensarmos, pois, que o mais importante do segredo
entre duas pessoas é o pacto que as une, ligando uma a outra irrestritamente, aqui, no nosso
caso, podemos dizer que essa literatura, ao contrário da literatura de que Derrida disse, escolhe
se aliar não com o Deus-todo-poderoso, mas com Sara, a mãe que teve o filho na iminência de
ser sacrificado, e com Isaac, a criança que esteve na iminência de ser sacrificada. O que quero
dizer é que, se o que mais importa no segredo é a aliança que ele estabelece entre os envolvidos,
e se Derrida lê a literatura por esse segredo inaugural, a literatura que aqui afirmo é outra, é
aquela que se alia com os sacrificados. E, para isso, talvez ela não possa contar com os segredos
da história, porque os segredos da história, como vimos nesse segredo inaugural, não implica
as mulheres, não implica as mães que, por esse segredo, estão prestes a perder um filho. A
literatura que se alia com os que são passíveis de serem sacrificados e com os que estão passíveis
de estarem na perda é uma literatura que precisa, a cada dia, rasurar os segredos da história,
revolver as camadas segmentadas da história e reinventar, a cada dia, uma outra história, uma

112
“[...] a literatura não é, não existe, não se demora na identidade de uma natureza ou ainda de um ser histórico
idêntico a ele mesmo” (DERRIDA, 2015, p.37).
387

história de desobediências, de possibilidades, de começos. Alguém já começou a propagar essa


fofoca. Não sei quem começou, mas é com essa comunidade que eu me alio e faço coro, porque
é da fala e não do falo que as mulheres gozam (CASSIN, 2005, s/p)113, então, é com essa
comunidade que eu me alio e faço eco tal como a expressão “quem conta um conto, aumenta
um ponto” e, por isso, eu não peço perdão.

113
Refiro-me aqui à discussão de Barbara Cassin com Lacan: “’O gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem
não chega a gozar do corpo da mulher, precisamente porque isso de que ele goza é o gozo do órgão’. É porque ele
não goza dela, mas de si. Em suma, é para ele que seria preciso dizer que a anatomia é o destino”. Ao gozo feminino
da fala em contraposição ao gozo masculino do falo [termos de Fernando Santoro], Cassin continua, citando Lacan:
“O ser sexuado dessas mulheres nem-todas ‘não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica
na fala’” (CASSIN, 2005, s/p).
388

ANEXO

Capa da edição francesa (1980) do livro O Cartão-Postal, de Jacques Derrida. Detalhe do postal
em que Platão aparece atrás de Sócrates ou Sócrates escrevendo de costas para Platão.
389

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Biblioteca digital
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/

Dicionário on-line
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Exposição artística
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