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prê-lógica" não nos dava uma abertura para o que hâ de irredutível nas culturas
ditas arcaicasquando confrontadascom a nossa,visto que as congelavaem uma
diferençaintransponível.Das duas maneiras a escolafrancesafalhava no acesso
ao outro que, não obstante, é a própria definição da sociologia. Como
compreendero outro sem sacrificá-loà nossalógicae sem sacrificâ-laaele?As-
similando muito depressao real a nossasidéias ou, então, declarando-oimper-
meável, a sociologia falava como se pudessesobrevoarseu objeto e o sociólogo
era um observadorabsoluto.2 Faltava uma penetraçãopacienteno objeto e a
comunicaçãocom ele.
Marcel Mauss, ao contrário, praticou-as instintivamente.Seu ensino e sua
obra não polemizam com os princípios da escola francesa.Sobrinho e colabo-
rador de Durkheim, tinha todos os motivos para fazer-lhejustiça. A diferença
explode na sua maneira de entrar em contato com o social. No estudo da magia,
dizia ele, as variações concomitantes e as correlações deixam um resíduo qtueê
preciso descrever,pois nele se encontramas razõesprofundasda crença.Era pre-
ciso, então,penetrarno fenômenopelo pensamento,lê-lo ou decifrálo. E estalei-
tura consiste sempre em aprender o modo de troca que se constitui entre os ho-
mens por meio da instituição, as conexões e equivalências que estabelece,a
maneira sistemáticacomo regula o empregodos utensílios,dos produtos manufa-
turados ou alimentícios,das Íórmulas mágicas, dos ornamentos,cantos, danças,
elementosmíticos, como a língua regula o empregodos fonemas,morfemas,voca-
bulario e sintaxe. Esse fato social, que jâ não é uma regularidade compacta, mas
um sistemaefrcazde símbolosou uma rede de valores simbólicos,vai inserir-seno
individual mais profundo. Contudo, a regulaçãoque circunscreveo indiúduo não
o suprime.Não há mais que escolherentre o individual e o coletivo. "O verdadei-
ro", escreveMauss,"não é a precenem o direito, mas o melanésiode tal ou tal
ilha, Roma, Atenas." Assim, também não há mais o simplesabsoluto,nem a pu-
ra soma,mas em toda parte,totalidadesou conjuntosarticuladosmais ou menos
ricos. No pretensosincretismoda mentalidadeprimitiva, Mauss observouoposi-
ções tão importantes para elequanto as famosas"participações".3 Concebendo
2 Cf. a mesmacrítica do "pensamentode sobrevôo"e do "espectadorabsoluto" ín O Olho e o Espírito,"O
metaÍisicono homem" e "A linguagemindiretae asvozesdo silêncio".(N. do T.)
3 Em La PenséeSauvage,Lévi-Strauss,continuandoa linhagemde Mausse da etnologiade Morgane Boas,
tambémrecusaa "mentalidadeprê-l6gicaz'eo "pensamentopor participação" que Lévy-Bruhl atribuía aos
"primitivos". No capítulo 1.o,denominado"A Ciência do Concreto", Lévi-Strausscritica o pressuposto
daquelaatribuição,qual seja,a incapacidadedo "primitivo" para alcançaro pensamentoabstrato.Para dar
uma idéia do nível de abstraçãoa que o "primitivo" pode chegar,Lévi-Straussfornecedois exemplos:"A
proposição:o homemmalvadomatou a pobrecriança,em Chinook seexprimeda seguintemaneira:a malda-
de do homemmâtou a pobrezada criança.E para dizer que uma mulher utiliza um cestomuito pequenodiz-
se: coloca raízesna pequenezde um cestopara conchas".E mais adiante,o antropólogoafirma: "Como nas
línguasdos oficios, a proliferaçãoconceitualcorrespondea uma atençãomais detida sobreas propriedades
do real, a um interessemais despertopara as distirrçõesque se possamfazer. Estegosto pelo conhecimento
objetivo constitui um dos aspectosmais esquecidosdo pensamentodos que chamamosde 'primitivos'. Se
raras vezessedirige para realidadesdo mesmonível em que se movea ciênciamoderna,supõeaSes intelec-
tuais e métodosde observaçãocomparáveis.Nos dois casos,ô universoé objeto de pensamentotanto quanto
meio para satisfazernecessidades". O pensamento"primitivó" rrãoê pré-lógico- é uma lógicado concreto
cuja peculiaridadeé "situar-sea meio caminho entreos preceitose os conceitos",e esteintervalo é a região
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por uma certa distância entre ele-e os outros signos e não pela evocação de uma
significação positiva - tornava patente a unidade da língua abaixo da significa-
ção explícita, uma sistematizaçãoque se realiza nela antes que seu princípio
ideal lhe seja conhecido.Para a antropologia social, a sociedadeé feita de siste-
mas destegênero: sistema do parentescoe da filiação (com todas as regras conve-
nientesdo casamento),sistemada troca lingüística, sistemada troca econômica,
da arte, do mito e do ritual. A própria sociedadeé a totalidade dessessistemas
em interação.Dizendo que são estruturas,pode-sedistingui-los das "idéias cris-
talizadas" da antiga filosofia social. Os sujeitosque vivem numa sociedadenão
têm necessariamente conhecimentodo princípio da troca que os governa, assim
como o sujeito falante não precisa,paÍa.falar, passar pela análise lingüística de
sua língua. A estrutura é, antes,praticada por eles como óbvia. Por assim dizer,
ela "os tem" mais do que eles a têm, se a compararmoscom a linguagem,tanto
no uso vivo da fala quanto em seu uso poético, onde as palavras parecemfalar
por si mesmase tornar-seseres.a
Como Janus,a estrutura tem duas caras: de um lado, organiza os elementos
que nela entram de acordo com um princípio interior, é sentido. Porêm, este senti-
do que caÍÍega é, por assim dizer, um sentido pesado.Portanto, quando o sábio
formula e flxa conceitualmenteestruturas e constrói modelos com cujo auÍlio
um outro pensamento,o limite do nosso: a impossibilidade nua de pensar aquí\o". (M. Foucault, Les Mots
et les Choses, Prefácio, ed. Gallimard.) Para Merleau-Ponty, a etnologia criava aquilo que Foucault revela
como impossível: um espaço do encontro. O espaço toÍnou-se a-tópico e a linguagem, afásica. Se na leitura
merleaupontyana a etnologia pôde surgir como um subsolo das ciências humanas e como instrumento para
a apreensão de uma racionalidade alargada, torna-se estranho perceber que este mesmo papel lhe é conferido
por Foucault no final de Les Mots et les Choses, onde, ao lado da psicanáúise e da lingiüsüca, a etnologia
constituiria a base do "triedro do saber", fornecendo "a unidade de uma estrutura cujas transformações for-
mais liberariam a diversidade das narrativas".
É possível, no entanto, marcar a distância entre M.-Ponty e Foucault. Para o primeiro, a etnologia levava a
um alargamento da racionalidade porque desembocava numa ontologia. Com efeito, superando a dicotomia
sujeito-objeto, a estrutura revelada pelo etnólogo e generalizada pelas outras ciências, deixava claro que não
hâ dados nem essências, isto é, pontos fixos e completos a serem meramente explicitados, mas que o real (vín-
culo sujeito-objeto) se conÍìgura num processo conúnuo de reestruturação, contendo nele mesmo a possibili-
dade de sua transformação e um devir do sentido, isto é, uma história, O papel conferido à antropologia
estrutural decorria do fato de que a partir dela a historicidade como produção dos objetos e das significa@es
anulava a tradição clássica que tomava o real como exterioridade acabada e que iria sendo explícitadatú-
rica e praticamente, e não como sendo efetuada. Ora, quando Foucault privilegia a etnologia, ele o faz em
nome doformalismo inconsciente qve ela revelaria; portanto, em nome de ínvariantes Jìxos que as narrativas
(e as sociedades que as produziram) apenas explicitam. Para M.-Ponty o alargamento da racionalidade mos-
trava que a história não trabalha com alargamento porque ê advento do sentido, ísto ê, produção do mundo
pelos homens em situações determinadas. Ao passar do sentido para os invariantes formaís Foucault perdeu,
juntamente com os estruturalistas, aquilo que a noção de estrutura teria permitido alcançar. (N. do T.)
' Seria interessanteanalisar o que teria tornado possível filmes como "Um Hdmem Chamado Cavalo" e "O
Pequeno Grande Homem". (N. do T.)
10 Merleau-Ponty se refere tanto às críticas dos etnólogos às informações de sacerdotes, empenhados na ta-
refa"evangelizadora", isto é, colonialista, quanto às confissõesde alguns etnólogos, movidos pela má cons
ciência do colonizador frente aos colonizados. (N. do T.)
" Eis por que Lévi-Strauss considerou dispensávelexplicar a dediçatória de La PenséeSauvage. Para uma
avaliação rigorosa da contribuição de Merleau-Ponty para aquela obra, confira os dois primeiros capítulos
do referido livro - "A lógica do concreto" e "A lógica das classifica$es totêmicas" -, especialmente o uso
da figura do Bricoleur. (N. do T.)
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degradado, não ê mais uma interpretação do mito de Édipo, mas uma de suas
variantes.13
Mais profundamente:para uma antropologia,não se trata de dar arazão do
primitivo ou de lhe dar razão contra nós, e sim de instalar-se num terreno onde
sejamosouns e outros, inteligíveis,sem redução nem transposiçãotemerária.Este
espaço comum emergequando se vê na função simbólica a fonte de toda razão e
de toda irrazáo, porque o número e a riqueza das significações de que o homem
dispõe sempre excedem o círculo de objetos definidos que mereçam o nome de
significados,porque a função simbólica devesempreestarem avanço com relação
ao seu objeto e só encontra o real adiantando-o no imaginário. A tarcfa é, pois,
alargar nossa razão para torná-la capaz de compreender aquilo que em nós e nos
outros precedee excedearazão.I4
para além das cohdi$es imediatasde uso, ú podemsurgir na "ordem simbólica" ou "ordem humana".Esta
se caracterizapor uma relaçãocom o possívele com o porvir. Nela emergea dialéticapropriamentedita, pois
a açãoê mais do que interaçãocom o meio ou adaptaçãoa ele: é uma dupla transformaçãoque incidesobre
a nat:uÍezae sobreo agente,que se negamreciprocamente.A açãonegadorada naturezaproduz os objetos
de uso (vestuário,móveis,pomares)e os objetosculturais(linguagem,livro, música),constituindoo meio hu-
mano propriamentedito. Somentecom a emergênciada funçãosimbólicae, portanto,da relaçãocom o possí-
v el, comoau se nte ,po de mem er gir odes ejo, ot r abalhoealin g u a g e m . " S e m d ú v i d a , o v e s t u á r i o , a c a s a
vem para nos protegerdo frio, a linguagemajuda o trabalho coletivo e a análisedo'úlido inorgânico'.Mas
o ato de se vestir torna-seo ato de enfeitee também o do pudor e revela uma nova atitude para conSigo
mesmoe parâcom o outro.Somenteos homensvêemque estãonus.Na casaqueconstróipara si, o homem
projeta e realiza seusvalorespreferidos.O ato da palavra exprime,enÍìm,que deixa de aderir imediatamente
ao meio, eleva-oà condiçãode espetáculo,e apossa-sedele mentalmentepelo conhecimentopropriamente
dito. (. . .) O quedefineo homemnão é a capacidade paracriaruma segundanatureza - econômica, social,
cultural - para além da naturezabiológica,mas antes,a capacidadepara ultrapassaras estruturascriadas
e criar outras.(. . . ) O sentidodo trabalho está,pois, no reconhecimento,para além do mundo atual,de um
mundo visível para cada Eu sob uma pluralidadede aspectos,a apropriaçõode um espaçoe de um tempo
indefinidos,e mostraríamosfacilmenteque a significaçãoda linguagem,do suicídioe do ato revolucionário
tambémé esta.Os atosda dialéticahumanarevelama capacidade para orientar-se com relaçãoao possível,
ao mediato,e não com relaçãoa um meio limitado. E a dialética humanaé ambígua:manifesta-seinicial-
menteem estruturassociaise culturais que faz aparecere nas quais se aprisiona.Mas seusobjetosde uso e
seusobjetosculturaisnão seriamo que são se a atividadeque osfaz aparecernão tivessecoma sentidonegá-
los e ultrapassó-los. " (Merleau-Ponty,Za Structuredu Comportement,pp. 188/I90, ed. P.U.F.).Eis por que
a descobertada função simbólicanuma antropologíaestruturalnão significa,para Merleau-Pontyo a recusa
da hisória, mas, pelo contrário, leva inevitavelmenteà posiçãode uma história estrutural,como será dito
logo abaixo,(N. do T.)
1 6 Em francês: membrure.Em português:membrurae membura.Em francêso mesmovocábulorecobreo
sentidodos dois portugueses.Membrura:a qualidadeou constituiçãodo conjunto de membrosde uma pes-
soa.Membura:o conjuntodos membrosde um navio,cadauma dasvigastransversais presasà quilha,que
sustentamo flanco e sobreas quais estãofixadosos barrotesda ponte.Cada uma das vigas que constituem
os exterioreslateraisde umajangada.Preferimosusar "membura" em vez de "membrura" porqueo texto su-
geremenosos membrosou partesque constituemo mundo,e mais as categoriascomplementares e, portanto,
incompatíveise inseparáveisque,como as vigastransversaise extremasdo navio, sustentamo todo. Semdú-
vida, "membrura"tambêmseriacorreto,pois,assimcomoem "O filósofoe suasombra"Merleau-Ponty usa
um vocábuloanatômico(lacis) pan descrevera coisa fisica sensível,atribuindolhe "cârne", tambémaqui, o
vocábuloem sua acepçãoanatômicadaria ao mundo a espessura de um organismo.(N. do T.)
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histórica imporá a distinção entre uma cultura que proíbe absolutamenteo inces-
to, sendo a negação simples,direta ou imediata da natureza, e uma cultura -
aquela que está na origem dos sistemasde parentescocontemporâneos- que
joga ardilosamentecom a naturezae algumasvezesrodeia a proibição do incesto.
Precisamenteeste tipo de cultura mostrou-secapaz de enfrentar um "corpo-a-
corpo com a natuteza", criar a ciência, a dominação técnica do homem e aquilo
que se denominahistória acumulativa.Assim, do ponto de vista dos modernossis-
temas de parentesco e das sociedadeshistóricas, a troca como negação direta ou
imediata danatureza aparececomo caso limite de uma relaçãomais geral da alte-
ridade. Somente aqui está definitivamente concluído o sentido último das primei-
ras pesquisasde Lévi-Strauss,a naturezaprofunda da troca e da função simbó-
lica. No nível das estruturas elementares,as leis da troca, que envolvem
completamenteas condutas,são suscetíveisde um estudoestáticoe o homem, sem
mesrnoformulá-las numa teoria indígena,obedece-asquasecomo o átomo obser-
va a lei de distribuição que o define.No outro extremodo campo da antropologia,
em certos sistemascomplexos,as estruturasexplodeme, no que concerneà deter-
minação do cônjuge, abrem-se para motivações "hisóricas". Aqui, a troca, a
iunção simbólica, a sociedadenão funcionam mais como uma segundanatuÍeza
tão imperiosa quanto a outra e que a apaga.Cada um é convidado a definir seu
próprio sistemade troca; por essavia, as fronteiras entre as culturas.seesfumam,
e, pela primeira vez, sem dúvida, uma civilização mundial está na ordem do dia.
A relação dessahumanidadecomplexa com a naturezae com a vida não é sim-
ples, nem nítida: a psicologia animal e a etnologia desvendamna animalidade,
não, certamente,a origem da humanidade,mas esboços,prefiguraçõesparciais e
como que caricaturasantecipadas.O homem e a sociedadenão estãoexatamente
fora da natuÍeza e do biológico - distinguem-sedeles mais por neunirem as
"apostaso' da natureza, arriscando-as todas juntas. Essa reviravolta significa
imensosganhos,possibilidadesinteiramentenovas, como, ademais,perdasque é
preciso saber medir, riscos que começamosa constatar.A troca, a função simbó-
lica perdem sua rigidez, mas também sua beleza hierática; a razão e o método
substituem a mitologia e o ritual, e inauguram um uso profano da vida, acompa-
nhado de pequenosmitos compensatóriossem profundidade.Levando tudo isso
em conta, a antropologia social caminha para um balanço do espírito humano e
para urna visão do que ele é e pode ser. . .
Assim, a investigação nutre-se com fatos que inicialmente lhe pareciam
estranhos; progredindo, adquire novas dimensões,reinterpreta seus primeiros
resultados com novas pesquisassuscitadaspor elespróprios. A extensãodo domí-
nio coberto e a compreensãoprecisados fatos crescemsimultaneamente. Por estes
sinais reconhece-seuma grande tentativa intelectual.