Você está na página 1de 54

C oleção

ANTROPOLOGIA

2
Orientação de:
R o b e rto A u g u s to da M a tta

e
Luiz de C a s tro F a r ia

FICHA CATALOGRAFICA
( Preparada pelo Centro de Cataloçaçáona-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, GB)

Radclilfe-Brown, Alfred Beginald, 1881-


R12e Estrutura e função na sociedade primitiva; trad.
de Nathanael C. Caixeiro. Petrópolls, Vozes, 1973.
272p. (Antropologia, 2).
Bibliografia.
1. Antropologia social. I. Titulo. II. Série.
O
73-0055 CDD-301.2
ESTRUTURA E FUNÇÃO
NA SOCIEDADE
PRIMITIVA

A. R. RADCLIFFE-BROW N
Professor Emérito
da Universidade de Oxford

Prefácio dos Professores:


E. E. Evans-Pritchard
Professor de Antropologia Social
na Universidade de Oxford

Fred Eggan
Professor de Antropologia
na Universidade de Chicago

Tradução de
Nathanael C. Caixeiro

P e tr ó p o lis
EDITORA VOZES LTD A.
0° 1973
O ♦
0 m useu r

5 «BUOTECA ^
a * q . h is t. •
Introdução

T oda a m a té r ia aqui r e im p r e s s a é de c ir c u n s tâ n c ia ,
no mais pleno sentido do termo; cada um dos ensaios
foi escrito para circunstâncias especiais. Apesar disto,
conservam certo grau de unidade visto que foram ela­
borados de determinado ponto de vista teórico.
Entendemos por teoria um esquema de interpretação
aplicável, ou supostamente aplicável à compreensão de
fenômenos de determinada espécie. Uma teoria consiste
de um conjunto de conceitos analíticos, que devem ser
claramente definidos em relação com a realidade con­
creta e conservar uma mútua conexão lógica. Propo­
nho-me, portanto, a dar definições de certos conceitos
que emprego para fins de análise dos fenômenos so­
ciais, à guisa de introdução a estes ensaios diversos.
Deve-se ter em mente que poucas vezes concordam en­
tre si os antropólogos quanto a conceitos e expressões
que empregam, de modo que esta Introdução e os es­
critos que se seguem devem ser considerados como ex­
posição de uma teoria particular, e não teoria aceita de
modo geral.

HISTÓRIA E TEORIA

A diferença entre o estudo histórico das instituições so­


ciais e o estudo teórico pode ser facilmente percebida,
comparando-se a história econômica e a economia teó-

9
rica, ou a história do direito com a jurisprudência teó­
rica. Na antropologia, porém, sempre houve e persiste
ainda muita confusão através de discussões em que ter­
mos icomo «história», «ciência» e «teoria» são empre­
gados pelos contendores nos mais diferentes sentidos.
Tais confusões poderiam ser evitadas em considerável
grau pelo emprego de termos aceitos de lógica e meto­
dologia e pela diferenciação entre pesquisas idiográficas
e nomotéticas.
Numa pesquisa idiográfica o propósito é estabelecer
como admissíveis determinadas proposições ou certos
enunciados factuais. Uma pesquisa namotética, pelo con­
trário, tem por escopo chegar a proposições gerais ad­
missíveis. Definimos a natureza de uma pesquisa pelo
tipo de conclusões a que se propõe.
A história, como de modo geral é entendida, é o es­
tudo dos registros e monumentos com o fito de pro­
porcionar conhecimento sobre as condições e fatos do
passado, inclusive as investigações relacionadas com o
passado mais recente. E’ evidente que a história con­
siste sobretudo de pesquisas idiográficas. No século pas­
sado houve uma polêmica, a famosa Methodenstreit,
quanto a se os historiadores deviam aceitar considera­
ções teóricas em seu trabalho ou lidar com generaliza­
ções. Não poucos historiadores aceitaram o parecer de
que as pesquisas nomotéticas não deviam fazer parte
dos estudos históricos, que deviam restringir-se a nos
dizer o que aconteceu e como aconteceu. Pesquisas teó­
ricas ou nomotéticas deveriam ficar a cargo da socio­
logia. Mas historiadores há que pensam poder, e mesmo
dever, incluir interpretações teóricas em seu relato do
passado. A controvérsia nesta questão, bem como na re­
lação entre história e sociologia, persiste ainda, decor­
ridos sessenta anos. Há, sem dúvida, escritos de cer­
tos historiadores que devem ser reconhecidos não apenas
como relatos idiográficos dos fatos do passado, mas co­
mo contendo interpretações teóricas (nomotéticas) da­
queles fatos. A tradição nos estudos históricos france­
ses de Fustel de Coulanges e seus seguidores, tais como
Gustave Glotz, ilustra este tipo de combinação. Alguns

10
escritores modernos a designam por história sociológica
ou sociologia histórica.
Na antropologia, entendendo por isto o estudo dos
chamados povos primitivos ou atrasados, o termo etno­
grafia aplica-se ao que é especificamente um modo de
pesquisa idiográfica, cujo objetivo é dar explicação acei­
tável desses povos e sua vida social. A_jetnografia difere
da^ história pelo fato de que o etnógrafo adquire conhe­
cimento, ou pelo menos parte fundamental dele, a par­
tir da observação ou contato diretos com o povo sobre
o qual escreve, e não, como o historiador, a partir de
"registros escritos. A arqueologia pré-histórica, que é ou­
tro ramo da antropologia, é estudo nitidamente idio-
gráfico, cujo escopo é o de nos proporcionar conheci­
mento factual sobre o passado pré-histórico.
O estudo teórico das instituições sociais em geral é
comumente mencionado como sociologia, mas como este
nome pode ser amplamente empregado referindo-se a
muitas espécies diferentes de escritos sobre a sociedade,
podemos falar mais especificamente de sociologia teórica
ou comparada. Quando Frazer deu sua Aula Inaugural
como primeiro professor de Antropologia Social, em
1908, definiu antropologia social como o ramo da socio­
logia que trata das sociedades primitivas.
Certas confusões entre os antropólogos resultam do
fato de não saberem distinguir entre elucidação histórica
e compreensão teórica das instituições. Se indagamos
o porquê da existência de certas instituições em determi­
nada sociedade, a resposta adequada será um relato his­
tórico quanto a suas origens. Para explicar por que os
Estados Unidos têm uma constituição política com Pre­
sidente, duas Casas do Congresso, Departamento de
Estado, Corte Suprema, recorremos á história da Amé­
rica do Norte. Trata-se de elucidação histórica no sen­
tido próprio do termo. A existência de certa instituição 7
é, portanto, explicada pela referência a uma seqüência \
complexa de acontecimentos que constituem uma cadeia
causal de que ela é conseqüência.
A aceitação da elucidação histórica depende da pleni­
tude e idoneidade da fonte histórica. Nas sociedades

11
primitivas estudadas pela antropologia social não há
quaisquer registros históricos. Não temos, por exemplo,
conhecimento de espécie alguma quanto à evolução das
instituições sociais dos aborígines australianos. Os an­
tropólogos, supondo ser seu estudo uma espécie de es­
tudo histórico, recorrem a conjectura e imaginação, e
inventam explicações «pseudo-históricas» ou «pseudo-
causais». Temos tido, por exemplo, inúmeros relatos
pseudo-históricos e as vezes contraditórios quanto à ori­
gem e evolução das instituições totêmicas dos aborígines
australianos. Nos trabalhos constantes deste volume men­
cionamos algumas dessas especulações pseudo-históricas.
O parecer que mantemos aqui é que tais especulações
são não apenas destituídas de valor, mas ainda pior
que isto. Isto não implica de modo algum a rejeição da
elucidação histórica, muito pelo contrário.
A sociologia comparada, da qual a antropologia-so­
cial é ramo, é concebida aqui como estudo teórico ou
nomotético cujo objetivo é proporcionar generalizações
admissíveis. A compreensão teórica de determinada ins­
tituição é sua interpretação à luz de tais generalizações.

PROCESSO SOCIAL

Ao pretendermos formular uma teoria sistemática da so­


ciologia comparada, a primeira pergunta que surge é
esta: qual.a realidade fenomênica concreta e observável
pela qual a teoria deve interessar-se. Alguns antropólo­
gos diriam que a realidade consiste de «sociedades» con­
cebidas, nym sentido ou noutro, como entidades reais
distintas. Outros, porém, descrevem a realidade a ser
estudada como realidade feita de «culturas», em que
cada qual é, de novo, concebida como uma espécie de
entidade distinta. Outros ainda parecem ver a questão
na relação com ambos os tipos de entidades, «socieda­
des» e «culturas», de modo que a relação entre uma
outra apresenta então um problema.
Meu ponto de vista pessoal é que a realidade con­
creta que o antropólogo social está interessado em ob-

12
servar, descrever, comparar e classificar não é uma
"espécie de entidade, mas um processo, o processo da
vídásocial. A unidade da investigação é a vida social
de alguma região determinada da terra, durante certo
período de tempo. O processo em si mesmo consiste nu­
ma enorme multidão de ações e interações de seres
humanos, agindo como indivíduos em combinação ou
grupos. Em meio à diversidade dos fatos particulares
existem regularidades que possibilitam demonstrar e des­
crever certos aspectos gerais da vida social de uma re­
gião escolhida. O levantamento desses aspectos gerais
significativos do processo de vida social constitui des­
crição do que pode ser chamado forma de vida social.
Minha concepção de antropologia social constitui estudo-'
teórico comparado das formas de vida social dos povos (
primitivos. ^
A forma de vida social de certo conjunto de seres
humanos pode permanecer aproximadamente a mesma
por dado período. Mas durante determinado tempo so­
fre ela transformações ou modificações. Por essa razão,
embora possamos considerar os fatos da vida social co­
mo constitutivos de um processo, há além disso o pro­
cesso de mudança na forma de vida social. Numa des­
crição sincrônica, demos um apanhado de uma forma
de vida social tal como existe em determinado tempo,
abstraindo tanto quanto possível das transformações que
possam estar ocorrendo em suas linhas essenciais. Uma
visão diacrônica, por outro lado, há de registrar tais
mudanças através de um período. Na sociologia com­
parada temos que tratar teoricamente da continuidade
das formas de vida social e das transformações que ne­
la se dão.

CULTURA

Os antropólogos empregam a palavra «cultura» com sen­


tidos diferentes. Parece-me que alguns a empregam como
equivalente ao que designo por forma de vida social.
No sentido corrente na «cultura» inglesa, que é mais
ou menos a idéia de cultivo, refere-se a um processo,

13
e podemos defini-lo como o meio pelo qual uma pes­
soa adquire conhecimento, especialidade, idéias, crenças,
gostos e sentimentos, mediante contato com outras pes-
^oaá, ou pelo trato com outras coisas, tais como livros
ou obras de arte. Em dada sociedade podemos discernir
processos de tradição cultural, empregando a palavra
tradição no sentido literal de herdar ou legar. A com­
preensão e emprego da linguagem transmitem-se por um
processo de tradição cultural neste sentido. Graças a
ela um inglês aprende a compreender e empregar a lín­
gua inglesa, mas em alguns setores da sociedade pode
vir também a aprender latim, ou grego, francês ou o
dialeto celta dos galeses. Nas complexas sociedades mo­
dernas há grande número de distintas tradições cultu­
rais. Graças a uma delas o indivíduo pode vir a ser
médico ou cirurgião, ou aprender engenharia ou arqui­
tetura, e desempenhar essas profissões. Nas formas de
vida social mais elementares, o número de tradições cul­
turais distintas pode reduzir-se a dois, uma tradição para
os homens e outra para as mulheres.
Se tratamos a realidade social que estamos investi­
gando, não como entidade, mas como processo, neste
caso cultura e tradição cultural são nomes para deter­
minados aspectos identificáveis daquele processo, mas
não, evidentemente, de todo o processo. Os termos são
modos convenientes para designar certos aspectos da
vida social humana. E’ em razão da existência de cul­
tura e tradições culturais que a vida social humana di­
fere muito marcantemente da vida social de outras, es­
pécies animais. A transmissão dos modos aprendidos de
pensar, sentir e atuar constitui o processo cultural, que
é aspecto específico da vida social humana. E’, eviden­
temente, parte daquele processo de interação entre pes­
soas, aqui definido como o processo social, concebido
como a realidade social. Sendo a continuidade e mu­
dança nas formas de vida social os* temas de investigação
da sociologia comparada, a continuidade das tradições
culturais e a das mudanças naquelas tradições contam-se
entre as coisas que devem ser tomadas em consideração.

14
SISTEMA SOCIAL

Foi Montesquieu que, em meados do século XVIII, lan­


çou os fundamentos da sociologia comparada e dessa
forma formulou e empregou uma concepção que foi e
pode ser designada como sistema social. Sua teoria, «a
primeira lei da estática social», como mais tarde será
denominada por Comte, afirmava que, em determinada
forma de vida social, existem relações de interconexão
e interdependência, ou, na expressão de Comte, rela­
ções de solidariedade entre os vários aspectos. A idéia
de um sistema natural ou fenomênico supõe um con­
junto de relações entre os fatos, tal como um sistema
lógico (p. ex., a geometria de Euclides) é um conjunto
de relações entre as sentenças, ou um sistema ético é
um conjunto de relações entre juízos de ordem ética.
Quando falamos de «sistema bancário» da Inglaterra
referimo-nos ao fato de que há considerável volume de
atividades, interações e transações, tais como, por exem­
plo, pagamentos por meio de cheque assinado e sacado
contra certo banco, atividades essas que se relacionam
de modo a constituir em sua totalidade um processo do
qual podemos fazer descrição analítica que mostrará
como estão inter-relacionadas e constituindo assim um
sistema. E estamos, evidentemente, diante de um proces­
so, de uma parte complexa do processo social total da
vida social na Inglaterra.
Nestes ensaios falo de «sistemas de parentesco». En­
tendo que em dada sociedade podemos isolar teorica­
mente, se não na realidade, certo conjunto de ações e
interações entre as pessoas; essas ações e interações
nascem das relações de parentesco ou casamento; e en­
tendo também que em certa sociedade tais ações estão
inter-relacionadas de modo que podemos dar uma des­
crição analítica geral delas como partes integrantes de
um sistema. A importância teórica dessa noção de sis­
temas resume-se no seguinte: nosso primeiro passo no
sentido de compreender uma feição comum de uma for­
ma de vida social, tal como o uso de cheques, ou o
costume pelo qual um homem deve evitar contato social

15
com a sogra, é descobrir o lugar dessa feição no sis­
tema do qual ela constitui parte.
A( teoria de Montesquieu, porém, é o que podemos
chamar de teoria do sistema social total, de acordo com
a qual todos os aspectos da vida social estão unifica­
dos num todo coerente. Como estudioso da jurisprudên­
cia, Montesquieu estava sobretudo interessado em leis,
e procurava mostrar que as leis de certa sociedade estão
relacionadas com a constituição política, vida econômica,
religião, clima, volume da população, usos e costumes,
e aquilo que ele chamava de espírito geral (esprit gé-
néral) — que mais tarde os escritores chamaram de
«ethos» da sociedade. Uma lei teórica, como esta «lei
fundamental da estática social», não é a mesma coisa
que lei empírica, mas um guia para a investigação. Acho
que podemos avançar nossa compreensão das sociedades
humanas se investigarmos sistematicamente as inter-rela-
ções entre os aspectos da vida social.

ESTÁTICA E DINÂMICA

Comte assinalou que em sociologia, como em outras es­


pécies de ciência, há duas séries de problemas, aos quais
chamava de problemas de estática e dinâmica. Na está­
tica, tentamos descobrir e definir condições de existência
e de coexistência; na dinâmica, empenhamo-nos em des­
cobrir condições de transformação. As condições de exis­
tência de moléculas ou de organismos são questões de
estática, e, analogamente, as condições de existência das
sociedades, sistemas sociais, ou formas de vida social
são questões de estática social. Já os problemas de di­
nâmica social referem-se às condições de mudança das
formas de vida social.
A base da ciência é a classificação sistemática. Cons­
titui primeira tarefa da estática social empenhar-se no
sentido de comparar formas de vida social, a fim de
chegar a classificações. Mas formas de vida social não
podem ser classificadas em espécies e gêneros tal como
classificamos as formas da vida orgânica; a classificação

16
não pode ser específica, mas deve ser tipológica, e isto
é um modo mais complicado de investigação. Esta clas­
sificação só pode ser conseguida por meio do estabeleci­
mento de tipologias para aspectos da vida social ou os
complexos de aspectos que são dados em sistemas so­
ciais parciais. A tarefa é complexa e tem sido também
desprezada, em vista da noção de que o método da
antropologia deve ser o histórico.
Não obstante os estudos tipológicos serem parte im­
portante da estática social, outra tarefa se apresenta: a
de formular generalizações sobre as condições de exis­
tência de sistemas sociais, ou de formas da vida social.
A chamada primeira lei da estática social é uma gene­
ralização que declara só poder persistir ou continuar a
forma de vida social cujos vários aspectos exibam cer­
ta espécie ou grau de coerência ou consistência; mas
isto apenas define o problema da estática social, que
consiste em investigar a natureza dessa coerência.
O estudo da dinâmica social ocupa-se em estabelecer
generalizações sobre como os sistemas se transformam.
A hipótese da correlação sistemática de aspectos da vi­
da social tem como corolário que as transformações em
alguns aspectos devem provavelmente ensejar mudanças
em outros aspectos.

EVOLUÇÃO SOCIAL

A teoria da evolução, social foi enunciada por Herbert


Spencer como parte de sua formulação da teoria geral
da evolução. De acordo com aquela teoria o desenvolvi­
mento da vida na terra constitui um único processo ao
qual Spencer aplicava o termo «evolução». A teoria da
evolução orgânica e superorgânica (social) pode ser re­
duzida a duas proposições fundamentais: 1) Que tanto
na evolução das formas da vida orgânica como na evo­
lução das formas de vida social humana houve um pro­
cesso de diversificação pelo qual muitas formas diferentes
de vida orgânica ou vida social desenvolveram-se a par­
tir de um número muito menor de formas originais. 2)

17
\

Que houve uma tendência geral de evolução pela qual


as formas mais complexas de estrutura e organização
(orgânica e social) surgiram de formas mais simples. A
aceitação da teoria da evolução exige apenas a aceitação
dessas proposições dando-nos um esquema de interpreta­
ção aplicável ao estudo da vida orgânica e social. Mas
deve-se ter em mente que alguns antropólogos rejeitam
a hipótese da evolução. Podemos aceitar provisoriamen­
te a teoria fundamental de Spencer, embora rejeitemos
as diversas pseudo-especulações que ele acrescentou, e
essa aceitação nos proporciona certos conceitos que po­
dem ser úteis como instrumentos de análise.

ADAPTAÇÃO

A adaptação é um conceito-chave da teoria da evolu­


ção. E’, ou pode ser, aplicado tanto ao estudo das for­
mas de vida orgânica como a formas de vida social
entre seres humanos. Um organismo vivo só existe e
continua existindo se for ao mesmo tempo interna e
externamente adaptado. A adaptação interna depende do
ajustamento dos vários órgãos e suas atividades, de
modo que os diversos processos fisiológicos constituam
um sistema de funcionamento continuado pelo qual a
vida do organismo se mantenha. A adaptação externa
é a do organismo ao meio no qual vive. A diferenciação
de adaptação externa e interna é simplesmente um modQ
de distinguir dois aspectos do sistema adaptacional que
é o mesmo para os organismos de uma única espécie.
Quando tratamos da vida social dos animais, depara­
mos um outro tipo de adaptação. A existência de uma
colônia de abelhas depende da combinação das ativida­
des das abelhas operárias individualmente em colher o
mel e o pólen, da fabricação da cera, da construção das
colmeias, da postura de ovos e larvas bem como da
alimentação destas, da proteção* do armazenamento de
mel contra os ladrões, da ventilação dos favos por meio
da vibração de suas asas, e da conservação da tempe­
ratura no inverno pela aglomeração de todas. Spencer

18
emprega o termo «cooperação» para designar este as­
pecto da vida social. Vida social e adaptação social
implicam, portanto, o ajustamento da conduta de orga­
nismos individuais às exigências do processo pelo qual
a vida social continua.
Ao examinarmos uma forma de vida social entre seres
humanos como sistema adaptacional, é útil distinguir três
aspectos do sistema total. Há um modo pelo qual a vida
social é ajustada ao ambiente físico, e podemos, se
quisermos, falar dele como adaptação ecológica. Em se­
gundo lugar, há disposições institucionais pelas quais
uma vida social ordenada se mantém, de modo que se
dá o que Spencer chama de cooperação e o conflito é
reduzido ou regulado. A isto podemos chamar, se qui­
sermos, o aspecto institucional da adaptação social. Em
terceiro lugar, há o processo social pelo qual o indiví­
duo adquire hábitos- e características mentais que o
adaptam para um lugar na vida social e o habilitam a
participar em suas atividades. Isto poderíamos chamar
de adaptação cultural, de acordo com a prévia defini­
ção de tradição cultural como processo. O que se deve
ressaltar é que esses modos de adaptação são apenas
aspectos diferentes dos quais o sistema adaptacional to­
tal pode ser considerado por conveniência da análise
e comparação.
A teoria da evolução social constitui, pois, parte de
nosso esquema de interpretação de sistemas sociais para
examinar qualquer sistema dado como um sistema adap­
tacional. A estabilidade do sistema e, portanto, sua con­
tinuidade por certo período, depende da eficácia da
adaptação.

ESTRUTURA SOCIAL

A teoria da evolução afirma uma tendência de desen­


volvimento em que os tipos mais complexos de estru­
tura vêm a existir a partir de tipos menos complexos.
Inclui-se neste volume uma conferência sobre a Estru­
tura Social, mas como foi feita em época de guerra e
foi publicada de modo resumido não está tão clara co­

19
mo deveria. Quando empregamos o termo estrutura, es­
tamos nos referindo a certa espécie de ajuste ordenado
das partes ou dos componentes. Uma composição mu­
sical tem uma estrutura, do mesmo modo que uma frase.
Um edifício tem uma estrutura, do mesmo modo que
uma molécula ou animal. Os componentes ou unidades
da estrutura social são pessoas, e uma pessoa é um ser
humano considerado não como um organismo, mas co­
mo ocupando posição numa estrutura social.
Um dos problemas teóricos fundamentais da sociolo­
gia é o que se refere à natureza da continuidade social.
A continuidade em formas de vida social depende da
continuidade estrutural, isto é, de uma espécie de con­
tinuidade no ajustamento das pessoas umas com as ou­
tras. Atualmente existe um ajustamento das pessoas em
nações, e o fato de que por setenta anos eu pertença
à nação inglesa, embora tenha passado grande parte
de minha vida em outras nações, é um fato de estru­
tura social. Uma nação, uma tribo, um clã, um orga­
nismo como a Academia Francesa, ou como a Igreja
Católica, podem continuar a existir como ajustamento
de pessoas, embora o conjunto das pessoas, as unidades
de que cada um se compõe, mudem vez por outra. Exis­
te continuidade da estrutura, tal como um corpo hu­
mano, do qual os componentes são moléculas e esta
continuidade permanece, embora as moléculas que cons­
tituem o corpo estejam continuamente em mudança. Na
estrutura política dos Estados Unidos deve haver sem­
pre um Presidente; por certo tempo é Herbert Hoover,
em outro período é Franklin Roosevelt, mas a estrutura
permanece contínua como um ajustamento.
As relações sociais, das quais a rede contínua cons­
titui a estrutura social, não são conjunções acidentais de
indivíduos, mas são determinadas pelo processo social,
e qualquer relação é aqueía em que a conduta das pes­
soas em suas interações com as deqjais é controlada por
normas, regras ou padrões. Assim sendo, em qualquer
relação no seio de uma estrutura social a pessoa sabe
que se deve conduzir de acordo com essas normas e
tem razão em esperar que outras pessoas façam o mes­

20
mo. Çostuma-se chamar instituições as normas de con­
duta estabelecidas de determinada forma de vida social.
Instituição é_uma norma estabelecida de conduta reco-
Uíhêcida como tal por um grupo social ou classe iden­
tificáveis; a norma lhes serve, pois, de instituição. As
instituições designam um tipo ou classe discernível de
relações ou interações sociais. Assim, em determinada
sociedade regionalmente definida, descobrimos que há
normas aceitas quanto ao modo pelo qual o homem
deve agir em relação à sua mulher e filhos. A relação
das instituições para com a estrutura social é, portanto,
dupla. Por um lado, há a estrutura social, tal como a
família no presente exemplo, para cujas relações consti­
tuintes as instituições proporcionam as normas; por ou­
tro lado, há o grupo, a sociedade local neste exemplo,
na qual a norma é estabelecida pelo reconhecimento ge­
ral dela como a que determina a conduta adequada. As
instituições, se este termo é empregado para designar o
ordenamento da sociedade das interações das pessoas
nas relações sociais, apresenta esta dupla conexão com
a estrutura, com um grupo ou classe da qual se pode
afirmar ser uma instituição, e com aquelas relações no
seio do sistema estrutural ao qual as normas se aplicam.
Num sistema social pode haver instituições que estabe­
leçam normas de conduta para um rei, para juizes quan­
to ao cumprimento dos deveres de seu ofício, para os
policiais, para os chefes de família, e assim por diante,
como também normas de conduta referentes a pessoas
que venham a entrar em contato dentro da vida social.
Devemos mencionar ligeiramente o termo organização.
O conceito está evidentemente em estreita relação com
o conceito de estrutura social, mas é aconselhável não
tratar ambos os termos como sinônimos. Emprego ade­
quado, que não parte do emprego comum em inglês, é
definir a estrutura social como um ajustamento de pes­
soas em relações controladas ou definidas institucional-
mente, como a relação de rei e súdito, ou de marido e
mulher, e empregar organização como designando um
ajustamento de atividades. A organização de uma fá­
brica é um ajustamento das diversas atividades de ad­

21
ministração, da chefia, dos operários dentro da atividade
total da fábrica. A estrutura de uma família, compreen­
dendo pais, filhos e empregados, é institucionalmente con­
trolada. As atividades dos diversos membros da casa
serão provavelmente sujeitas a certo ajustamento regu­
lar e a organização da vida do lar neste sentido pode
ser diferente em diversas famílias na mesma sociedade.
A estrutura de um exército moderno consiste, em pri­
meiro lugar, de um ajustamento em grupos — regi­
mentos, divisões, brigadas, etc., e em segundo lugar um
ajustamento hierárquico — generais, coronéis, majores,
capitães, etc. A organização do exército consiste do
ajustamento das atividades de seu pessoal na paz e na
guerra. No seio de uma organização cada pessoa tem
uma função. Podemos, pois, dizer que quando estamos
tratando de um sistema estrutural estamos interessados
num sistema de posições sociais, ao passo que numa
organização tratamos de um sistema de funções.

FUNÇAO SOCIAL

O termo função tem grande variedade de significados,,


dependendo do contexto. Na matemática, conforme apre­
sentada por Euler no século XVIII, a palavra refere-se
a uma expressão ou símbolo que pode ser escrita no
papel como «log. x», e não tem qualquer relação com
a palavra tal qual é empregada numa ciência como a
fisiologia. Na fisiologia o conceito de função é de fun­
damental importância para capacitar-nos a tratar da in­
separável relação de estrutura e processo da vida orgâ­
nica. Um organismo complexo, tal como o corpo hu­
mano, tem a estrutura como uma disposição de órgãos,
tecidos e fluidos. Mesmo um organismo que consista
de uma única célula tem certa estrutura como um ajus­
tamento de moléculas. O organismo tem também vida,
e esta designamos por processo. O conceito de função
orgânica é aquele que empregantos para designar a cor­
relação entre a estrutura de um organismo e o processo
vital desse organismo. Os processos que transcorrem

22
dentro de um corpo humano enquanto vivo dependem
da estrutura orgânica. E’ função do coração bombear
sangue através do corpo. A estrutura orgânica, como
estrutura viva, para sua continuidade depende do pro­
cesso que constitui todo o processo vital. Se o coração
cessar de executar sua função, o processo vital termina
e a estrutura como estrutura viva também acaba. Assim,
o processo depende da estrutura, e a continuidade da
estrutura depende do processo.
Com referência aos sistemas sociais e sua compreen­
são teórica, um dos meios de empregar o conceito de
função é idêntico ao emprego científico feito em fisiolo­
gia. Pode ser empregado para designar a interconexão
ènFre a estrutura social e o processo de vida social. E’
o emprego da palavra função que me parece neste sen­
tido útil em sociologia comparada. Os três conceitos:
processo, estrutura e função são, pois, componentes de
uma única teoria ou esquema de interpretação de sis­
temas sociais humanos. Os três conceitos estão logica­
mente inter-relacionados, visto que «função» é usado
Jara designar as relações de processo e estrutura. Teo­
ria é o que podemos aplicar ao estudo tanto da conti­
nuidade em formas de vida social como também ao
processo de transformação nessas formas.
Se consideramos determinado aspecto da vida social
como o castigo do crime, ou, em outras palavras, a
aplicação, mediante certo procedimento organizado, de
sanções penais quanto a certos tipos de conduta, c inda­
gamos qual é sua função social, temos um problema
fundamental de sociologia comparada para o qual uma
das primeiras contribuições foi a de Durkheim em sua
Division da Travail Social. Um problema geral muito
amplo se coloca quando indagamos qual é a função
social da religião. Como foi assinalado em um dos en­
saios deste volume, o estudo deste problema exige a
consideração de grande número de problemas mais res­
tritos, tal como a função social da adoração dos ante­
passados naquelas sociedades em que isto se verifica.
Mas nessas investigações mais limitadas, no caso da
teoria aqui esboçada ser aceita, o procedimento tem de

23
ser o exame da correlação entre os aspectos estrutu­
rais da vida social e o correspondente processo social,
na medida em que ambos estejam implicados num sis­
tema contínuo.
O primeiro ensaio desta coleção pode servir para
ilustrar estas idéias teóricas. Trata ele da instituição
pela qual o filho da irmã tem familiaridade privilegiada
permitida em sua conduta para com o irmão de sua
mãe. O costume é conhecido em tribos da América do
Norte como os Winnebago e outros, nos povos da Oceâ-
nia, tais como os habitantes de Fiji e Tonga, e em al­
gumas tribos da África. Minhas observações pessoais
dessa instituição foram feitas em Tonga e Fiji, mas co­
mo o trabalho destinava-se a público sul-africano, pa­
receu-me preferível referir-me a um único exemplo
sul-africano, visto que uma análise comparativa mais
ampla demandaria ensaio mais longo. O modo usual
de tratar desta instituição, tanto na Oceânia como na
África, foi proporcionar uma explicação pseudo-histórica
tendente a demonstrar que se tratava de sobrevivência
numa sociedade patrilinear a partir de uma antiga con­
dição de matriarcado.
O método alternativo de tratar desta instituição é
procurar uma compreensão teórica dela como parte de
um sistema de parentesco de certo tipo, no seio do qual
ela tenha uma função discernível. Não dispomos ainda
de uma tipologia geral sistemática de sistemas de pa­
rentesco, pois a elaboração dessa tipologia é uma taref^
laboriosa. Mencionei alguns resultados parciais e pro­
visórios dessa tentativa de determinar tipos numa recente
publicação sob a forma de Introdução a um livro sobre
Sistemas de Parentesco e Casamento Africanos. Em
meio a imensa diversidade de sistemas de parentesco
podemos, penso, reconhecer um tipo do que podemos
chamar patriarcado, e outro de matriarcado. Em ambos
esses tipos a estrutura do parentesco baseia-se em li­
nhagens com ênfase máxima lias relações de linhagem.
No matriarcado a linhagem é matrilinear, em que um
filho pertence à linhagem da mãe. Praticamente todas as
relações de direito de um homem são com sua linhagem

24
matrilinear e seus membros, e, portanto, depende ele am­
plamente dos irmãos de sua mãe, que exercem auto­
ridade e controle sobre sua pessoa e a quem ele pro­
cura no caso de proteção e de herança da propriedade.
Num sistema de patriarcado, por outro lado, o homem
depende amplamente de sua linhagem patrilinear e por­
tanto de seu pai e irmãos de seu pai, que exercem au­
toridade e controle sobre ele, enquanto que é a eles que
tem de recorrer para obter proteção e herança. 0 pa­
triarcado é representado pelo sistema de patria potestas
da Roma antiga, e há sistemas que se aproximam mais
ou menos intimamente do tipo encontrável na África e
alhures. Podemos considerar os Bathonga como tal
aproximação. O matriarcado é representado pelos sis­
temas dos Nayar de Malabar e os Menangkubau da
Malaia, e também nesse caso encontramos.sistemas apro­
ximados deste tipo em outras partes.
A questão tratada no ensaio sobre o irmão da mãe
pode ser considerada contrastante com a explicação pe­
la pseudo-história, cuja interpretação dessa instituição a
ela se refere como tendo uma função num sistema de
parentesco com certo tipo de estrutura. Se tivéssemos
de reescrever o ensaio trinta anos depois, teríamos, sem
dúvida, que modificá-lo e ampliá-lo. Mas foi-me suge­
rido que o ensaio poderia ter certo interesse histórico
menor em relação com o desenvolvimento do pensamen­
to em antropologia e é, portanto, reimpresso quase tal
como foi escrito, exceto alterações mínimas.
Qualquer interesse que este volume possa ter decor­
rerá provavelmente de ser a exposição de uma teoria,
no sentido em que a palavra teoria é aqui empregada
como esquema de interpretação aplicável à compreen­
são de uma classe de fenômenos. A teoria pode ser
enunciada por meio de três conceitos fundamentais e
relacionados de «processo», «estrutura» e «função». De­
corre de escritores antigos como Montesquieu, Comte,
Spencer, Durkheim, e pertence, deste modo, a uma tra­
dição cultural de duzentos anos. Esta introdução con­

25
tém uma reformulação na qual certos termos são em
pregados diferentemente do modo como o foram no
antigos ensaios agora reimpressos. Por exemplo, no
primeiros ensaios escritos há vinte ou mais anos, a pa
lavra «cultura» é empregada com o significado admitid'
daquela época como termo geral designativo de um mo
do de vida, inclusive o modo de pensar, de determinad'
grupo social localmente definido.

26
Capítulo IX

Sobre o Conceito de Função


em Ciências Sociais’
j 0 CONCEITO DE F U NÇÃO APLICADO A SOCIEDADES HUMANAS 1
' baseia-se na analogia entre vida social e vida orgânica. /
' O reconhecimento da anaíogia e de algumáT~"3<T~stras
implicações não é novo. No século. XIX, analogia, con­
ceito de função e a própria palavra aparecem freqüen­
temente na filosofia social e na sociologia. Tanto qüanto
sei, a primeira formulação sistemática aplicada ao es­
tudo estritamente científico da sociedade foi a de Emile
Durkheim, em 1895 (Règles de la Méthode Sociologique).
Na definição de Durkheim a «função* de uma insti­
tuição social é a correspondência entre ela e as neces­
sidades (besoins, em francês) da organização social.
Esta definição exige alguma precaução. Em primeiro lu­
gar, para evitar possivel ambiguidade e, em particular,
a possibilidade de uma interpretação teleológica, gosta­
ria de substituir o termo «necessidades» pelo termo
«condições necessárias de existência», ou, se empregar­
mos o termo «necessidade», que tenha o significado que
proponho. Pode-se notar aqui, como ponto a que volta­
remos, que toda tentativa de aplicar este conceito de
função em ciências sociais implica a suposição de que
há condições necessárias de existência para as socieda­
des humanas, do mesmo modo que as há para orga-
4

1 Este trabalho, que se baseia nos comentirios que (iz 4 conferência


do Dr. Lesser na American Anthropological Association, t reimpresso con­
forme o American Anthropologist, Vol. XXXVII, p. 3, 1935, onde era
acompanhado do trabalho do Dr. Lesser.

220
nismos animais, e que elas podem ser descobertas pela
pesquisa científica adequada.
Para maior elucidação do conceito é conveniente em­
pregarmos a analogia entre vida social e vida orgânica.
Como todas as analogias isto deve ser feito com cautela.
O organismo animal é uma aglomeração de células e
fluidos intersticiais dispostos uns em relação com outros
não como um agregado, mas como um todo vivo inte­
grado. Para o bioquímico, trata-se de um sistema com-
plexamente integrado de moléculas complexas. O sistema
de relações pelo qual essas unidades se relacionam é a
estrutura orgânica. Tal como os termos são empregados
aqui, o organismo não é em si a estrutura; é um acú­
mulo de unidades (células e moléculas) dispostas numa
estrutura, isto é, numa série de relações; o organismo
tem uma estrutura. Dois animais adultos da mesma es­
pécie e de mesmo sexo compõem-se de unidades seme­
lhantes combinadas numa estrutura semelhante. A es­
trutura deve pois ser definida como uma série de rela­
ções entre entidades. (A estrutura de uma célula é, no
mesmo sentido, uma série de relações entre moléculas
complexas, e a estrutura de um átomo é uma série de
relações entre elétrons e prótons). Na medida em que
vive, o organismo mantém certa identidade de suas par­
tes constituintes. Perde algumas de suas moléculas pela
respiração ou excreção; obtém outras pela respiração e
absorção alimentar. Durante certo tempo suas células
constituintes não permanecem as mesmas. Mas a dispo­
sição estrutural das unidades integrantes continua o
mesmo. O processo pelo qual se mantém esta continui­
dade estrutural do organismo chama-se vida. O proces­
so vital consiste das atividades e interações das unida­
des constituintes do organismo: as células e os órgãos
nos quais as células estão unidas.
Como a palavra função está sendo empregada aqui,
a vida do organismo é concebida como o funcionamento
de sua estrutura. E’ mediante a continuidade do fun­
cionamento que a continuidade da estrutura se mantém.
Se considerarmos qualquer parte cíclica do processo vi­
tal, tal como a respiração, digestão etc., sua função é

221
o papel desempenhado, a contribuição dada à vida de
todo o organismo. Tal como os termos estão sendo em­
pregados aqui, uma célula ou órgão tem atividade e essa
atividade tem uma função. E’ certo que em geral fala­
mos da secreção do suco gástrico como «função» do
estômago. No sentido que damos às palavras aqui, de­
veríamos dizer que isso é «atividade» do estômago, cuja
«função» é mudar as proteínas do alimento numa forma
em que estas sejam absorvidas e distribuídas aos teci­
dos pelo sangue.J Podemos observar que a função de
um processo fisiológico cíclico é assim uma correspon­
dência entre ele e as necessidades (isto é, condições
necessárias de existência) do organismo.
Se empreendemos uma investigação sistemática da
natureza dos organismos e da vida orgânica, três séries
de problemas se nos apresentam. (Há, em acréscimo,
outras séries de problemas referentes _a aspectos ou ca­
racterísticas da vida orgânica pelos quais não nos in­
teressamos aqui). O primeiro é de morfologia: que es­
pécies de estruturas orgânicas há? Que semelhanças e
variações mostram? E como podem ser classificadas?
Em segundo lugar há problemas de fisiologia: como,
em geral, funcionam as estruturas orgânicas e qual por­
tanto a natureza do processo vital? Finalmente, proble­
mas de evolução ou desenvolvimento: como vêm à
existência novos tipos de organismos?
Deixando a vida orgânica e voltando à vida social,
se examinarmos uma comunidade como a tribo africana
ou australiana, podemos reconhecer a existência de uma
estrutura social. Os seres humanos individuais, unidades
essenciais neste caso, estão relacionados por uma série
definida de relações sociais num todo integrado. A con­
tinuidade da estrutura social, como a da estrutura orgâ­
nica, não é destruída pelas mudanças nas unidades. Os
indivíduos podem deixar a sociedade, por morte ou de
outro modo; outros podem entrar nela. A continuidade
da estrutura é mantida pelo processo da vida social,
* A insistência nesta forma rigorosa de terminologia é apenas em vista
da analogia a ser feita. N io fazemos objeção alguma ao emprego do
termo função em fisiologia para designar tanto a atividade de um órgão
como os resultados da atividade na manutenção da vida.

222
que consiste de atividades e interações dos seres huma­
nos como indivíduos, e dos grupos organizados nos
quais estão unidos. A vida social da comunidade é de-
íinida aqui como o funcionamento da estrutura social.
A função de qualquer atividade periódica, tal como a
punição de um crime, ou uma cerimônia fúnebre, é a
parte que ela desempenha na vida social como um todo
e, portanto, a contribuição que faz para a manutenção
da continuidade estrutural.
O conceito de função tal como é aqui definido implica,
pois, a noção de uma estrutura constituída de uma sé­
rie de relações entre entidades unidades, sendo mantida
a continuidade da estrutura por um processo vital cons­
tituído das atividades das unidades integrantes.
Se empreendermos um estudo sistemático da natureza
da sociedade humana e da vida social, tendo em mente
esses conceitos, teremos diante de nós três séries de pro­
blemas: em primeiro lugar, problemas de morfologia
social — a existência de estruturas sociais, suas se­
melhanças e diferenças, e modo pelo qual possam ser
classificadas. Em segundo lugar, problemas de fisiologia
social: como funcionam as estruturas sociais? E, por
último, problemas de desenvolvimento: como vêm a exis­
tir novos tipos de estrutura social?
/ Devemos notar duas importantes questões onde cessa
analogia entre organismo e sociedadç/Num organis­
mo social é possível observar a estrutura orgânica, até
certo ponto independentemente de seu funcionamento. E’,
portanto, possível organizar uma morfologia independen­
te da fisiologia. Mas na sociedade humana a estrutura
social como um todo só pode ser observada em seu
funcionamento. Alguns dos aspectos da estrutura social,
tais como a distribuição geográfica dos indivíduos e
grupos, podem ser observados diretamente, mas a maior
parte das relações sociais que na totalidade constituem
a estrutura, tais como as relações de pai e filho, com­
prador e vendedor, governador e governado, não podem
ser observados, a não ser nas atividades sociais nas
quais as relações estão funcionando. Segue-se disto que

223
não se pode estabelecer uma morfologia social indepen­
dentemente de uma fisiologia social.
A segunda questão é que o organismo animal não mu­
da seu tipo estrutural no curso da vida. O porco não
se transforma em hipopótamo. (A evolução do animal
desde a fecundação até a maturidade não é uma altera­
ção de tipo, visto que o processo em todos os seus es­
tádios é típico para a espécie). Por outro lado, a so­
ciedade no curso de sua história pode e de fato muda
seu tipo estrutural sem qualquer quebra de continuidade.
Pela definição aqui dada, «função» é a contribuição
que determinada atividade proporciona à atividade total
da qual é parte. função de determinado costume social
é a contribuição que este oferece à vida social total
como o funcionamento do sistema social total. TaT mo­
do de ver implica que certo sistema_social (toda a es­
trutura social de uma sociedade juntamente com á To­
talidade dos costumes sociais nas quais aquelã~estrutura
aparece, e da qüàl depende para sua existênciá'conti-
nuada) tem certo tipo de unidade a que podemos cha­
mar de unidade funcional. Podemos defini-lo como con­
dição pela qual todas as partes do sistema social atuam
juntas com suficiente grau de harmonia ou consistência
interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que
nem podem ser solucionados nem controlados. *
Esta idéia de unidade funcional do sistema social é,
evidentemente, uma hipótese. Mas é de molde a que,
para o funcionalista, vale a pena ser experimentada por
exame sistemático dos fatos.
Há outro aspecto da teoria funcional que deve ser
brevemente mencionado. Voltando à analogia da vida
social e vida orgânica, reconhecemos que um organis­
mo pode atuar mais ou menos eficazmente, e desse modo
estabelecemos uma ciência especial da patologia para
tratar de todos os fenômenos de disfunção. Distingui­
mos num organismo o que chamamos saúde e doença.
Os gregos do século V antes de Cristo pensavam que
se podia aplicar a mesma noção %. sociedade, à cidade-
* Oposição, isto é, antagonismo organizado e regulado, é, evidente­
mente, aspecto essencial de todo sistema social.

224
estado, distinguindo condições de eunomia (boa ordem,
saúde social) de dysnomia (desordem, doença social).
No século passado, Durkheim em sua aplicação da no­
ção de função procurou lançar os alicercespara uma
patologia social científica, com base na morfologia e
fisiologia.4 Em seus trabalhos, sobretudo sobre o sui­
cídio e a divisão do trabalho, empenhou-se em achar
critérios objetivos mediante os quais pudesse julgar se
dada sociedade em certo tempo é normal ou patológica,
eunômica ou disnômica. Por exemplo, procurou mostrar
que o aumento da taxa de suicídio em muitos países
durante parte do século XIX é sintomático de condição
social disnômica ou, em sua terminologia, anômica. Não
haverá talvez sociólogo que sustente tenha Durkheim si­
do bem sucedido no estabelecimento de base objetiva
para a ciênciada patologia social. *
Com relação às estruturas orgânicas podemos achar
critérios estritamente objetivos mediante os quais distin­
guir doença de saúde, patológico de normal, porque do­
ença é aquilo que ou ameaça de morte o organismo
(dissolução de sua estrutura) ou interfere nas atividades
características do tipo orgânico. As sociedades não mor­
rem no mesmo sentido que os animais, e, portanto, não
podemos definir disnomia como o que leva, se não con­
trolado, à morte de uma sociedade. Ademais, uma so­
ciedade difere do organismo no sentido de que altera
seu tipo estrutural, ou pode ser absorvida como parte
integral de uma sociedade mais vasta. Por conseguinte,
não podemos definir disnomia como perturbação das
atividades usuais de um tipo social (como Durkheim
tentou fazer).
Voltemos, por um instante, aos gregos. Concebiam
eles a saúde do organismo e a eunomia da sociedade
como sendo, em cada caso, condição da atuação con-

*Correspondendo ao que aqui chamamos dysnomia Durkheim empregava


o termo anomia (anomle, em francts). Este termo i , a meu ver. Inade­
quado. Saúde e doença, eunomia e disnomia sJo, fundamentalmente, ter­
mos relativos.
' Pessoalmente concordo com o principal da critica de Roger Lacombe
(La Mithode Socloloelque de Darkheim, 1926, cap. IV) sobre a teoria
erai de Durkheim da patologia social, e com a critica do enfoque de
g‘urkhelm sobre suicídio, apresentada por Halbwachs em Lei Caates da
Suicide.

Estrutura e . . . E 2318 — 8
junta e harmoniosa de suas partes.* Ora, isto, no que
diz respeito à sociedade, é idêntico ao que há pouco
consideramos como unidade funcional ou consistência
interna de um sistema social, e sugeríamos que, quanto
ao grau de unidade funcional de determinada sociedade,
talvez seja possível estabelecer um critério puramente
objetivo. Sem dúvida, isto não pode ser feito no mo­
mento; mas a ciência da sociedade humana mal saiu do
berço. De modo que talvez possamos dizer que, enquan­
to um organismo atacado por doença virulenta reagi­
rá, e se a reação falhar, morrerá, uma sociedade jque
seja arrastada à condição de desunidade ou inconsis­
tência funcionais (o que chamamos provisoriamente dé
disnomia) não morrerá, exceto em casos relativamente-
raros (como uma tribo australiana subjugada pela força
destrutiva do homem branco), mas continuará a lutar
no sentido de uma espécie de eunomia, algo como a
saúde social, e poderá, enquanto isto", alterar seu tipo
estrutural. Ao que parece, o «funcionalista» tem amplas
oportunidades de observar este fato atualmente, nos
povos nativos sujeitos à dominação das nações civili­
zadas, e nestas nações mesmas. ’
O espaço não nos permitirá discutir aqui outro as­
pecto da teoria funcional, a saber, a questão sobre se
a mudança de tipo social é dependente ou não da fun­
ção, isto é, das leis da fisiologia social. A meu ver, esta
dependência existe e sua natureza poderia ser estudada
na evolução das instituições legais e políticas, dos sis­
temas econômicos e religiões da Europa nos últimos vin­
te e cinco séculos. Quanto às sociedades incultas de
que se ocupa a antropologia, não é possível estudar as
minúcias do longo processo de mudança do tipo. A única
espécie de mudança que o antropólogo pode observar
é a desintegração das estruturas sociais. Mesmo neste
* Veja-se, por exemplo, o Livro IV da República de Platão.
' Para evitar mal-entendido deve-se talvez observar que esta distinção
de condiçSes sociais eunOmicas e dlsnflmicas não nos dá uma avaliação
dessas sociedades como “boas” ou “ más". t?ma tribo selvagem que pra­
tique poligamia, canibalismo e bruxaria pode, quiçá, mostrar mais elevado
grau de unidade ou consistência funcionais que os Estados Unidos de
1935. Este julgamento objetivo, porque assim tem de ser se quiser in­
titular-se cientifico, é algo multo diferente de qualquer julgamento so­
bre quais sistemas sociais são melhores, mais desejáveis ou aprováveis.

226
caso, porém, podemos observar e comparar movimentos
espontâneos no sentido da reintegração. Temos, por
exemplo, na África e Oceânia, bem como na América o
surgimento de novas religiões que podem ser interpre­
tadas mediante hipótese funcional como tentativas de
aliviar certa condição de disnomia social ocasionada pe­
la rápida modificação da vida social através do con­
tacto com a civilização branca.
(O conceito de função tal como o definimos há pouco
constitui uma «hipótese de trabalho» Dela qual certos
problemas são formulados para estudo.} Nenhum traba­
lho cientifico é possível sem a formulação de hipóteses
de trabalho. Duas observações se impõem aqui. Uma
é que ^ hipótese não precisa ser assertiva dogmática
de que tudo na vida de toda comunidade tenha função)
(Exige apenas a pressuposição de que pode ter uma, e
que vale a pena investigá-la.) A segunda é que^o que
parece ser o mesmo costume social em duas sociedades
pode ter funções diferentes nas duas.) Assim, a prática
do celibato na Igreja Católica Romana de hoje tem fun­
ções muito diferentes em relação ao celibato na primi­
tiva Igreja Cristã. Em outras palavras, a fim de defi­
nir determinado costume social, e, portanto, a fim de'
tornar válidas as comparações entre os costumes de di­
ferentes povos ou épocas, é necessário considerar não
apenas a forma de costume, mas também sua funçâoJ
Nesta base, por exemplo, a crença num Ser Supremo
na sociedade simples é algo diferente de crença seme­
lhante na comunidade civilizada moderna.
A aceitação da hipótese ou ponto de vista funcional
acima esboçados resulta no reconhecimento de grande
número de problemas para cuja solução se impõem am­
plos estudos comparados das sociedades dos tipos mais
diversos bem como estudos de tantas sociedades em par­
ticular quanto possível. Nos estudos de campo dos povos
mais simples a hipótese leva, antes de tudo, a um exame
direto da vida social da comunidade como ao funciona­
mento da estrutura, e disto temos vários exemplos na bi­
bliografia recente. (Considerando que a função de uma ati­
vidade social deve ser achada pelo exame de seus efeitos
sobre os indivíduos, estes são estudados, no indivíduo
ou indivíduos médios e excepcionais^ Ademais, a hipó­
tese leva a tentativas no sentido de investigar direta­
mente a consistência funcional ou unidade de um sistema
social bem como a determinar, tanto quanto possível
em cada caso, a natureza dessa unidade. Tal estudo de
campo será obviamente diferente sob muitos aspectos
dos estudos efetuados a partir de outros pontos de vis­
ta, por exemplo, da perspectiva etnológica que dá ênfase
à difusão. Não nos cabe dizer se esse ponto de vista
é melhor que o outro, mas apenas que são diferentes,
e que qualquer trabalho deve ser julgado com referência
aos fins a que se propõe.
Se o ponto de vista aqui esboçado for tomado como
certa forma de «funcionalismo», será lícito fazer algumas
considerações sobre o ensaio do Dr. Lesser. Menciona
ele a diferença de «conteúdo» em antropologia funcio­
nal e não-funcional. Do ponto de vista aqui apresen­
tado, o «conteúdo» ou objeto da antropologia social é
toda a vida social de um povo, considerada sob todos
os seus aspectos. Por questão de conveniência é sempre
necessário dedicar especial atenção a determinada parte
í ou aspecto da vida social, mas se o funcionalismo de
/ fato significa alguma coisa, deveria ser um empenho
; em perceber a vida social de um povo como um todo,
Vcomo unidade funcional.
O Dr. Lesser fala do funcionalista como aquele que
ressalta «os aspectos psicológicos da cultura», e pre­
sumo que ele se refere, no caso, ao reconhecimento do
funcionalista de que (os costumes de uma sociedade
atuam ou «funcionam» apenas através de seus efeitos
na vida, isto é, nos pensamentos, sentimentos e atos dos
indivíduos.'
O pontó de vista «funcionalista» aqui apresentado im­
plica, portanto, que tenhamos de investigar o mais com­
pletamente possível todos os a$pectos da vida social,
considerando-os uns em relação com os outros, e que
parte fundamental da tarefa é a investigação do indiví­
duo e do modo pelo qual ele é modelado pela vida so­
cial ou ajustado a ela.

228
Indo do conteúdo ao método o Dr. Lesser parece des­
cobrir algum conflito entre o ponto de vista funcional e
o histórico. Isto é reminiscência das tentativas feitas an­
tigamente no sentido de perceber um conflito entre so­
ciologia e história. Não há conflito algum, mas diferença.
Não há, nem pode haver conflito algum entre a hi­
pótese funcional e o parecer de que qualquer cultura,
qualquer sistema social, sejam o resultado final de uma
série peculiar de acidentes históricos. O processo da evo­
lução da raça cavalar a partir de seu antepassado de
cinco artelhos foi uma série peculiar de acidentes histó­
ricos. Isto não conflita com a opinião do fisiologista
de que o cavalo de hoje e todas as formas anteceden­
tes se conformem ou se se tenham conformado às leis
fisiológicas, isto é, às condições necessárias de existên­
cia orgânica. A paleontologia e a fisiologia não estão
em conflito. A «explicação» para o cavalo puro-sangue
deve ser procurada na história — como e onde ele veio
a ser o que é. Outra «explicação» totalmente indepen­
dente é mostrar como o cavalo vem a ser exemplificação
especial de leis fisiológicas. Analogamente, uma «expli­
cação» de determinado sistema social será sua história,
se soubermos o relato minucioso de como e onde ele
veio a ser o que é. Outra «explicação» do mesmo sis­
tema obtém-se mostrando (como os funcionalistas ten­
tam fazer) que ele é uma ilustração especial das leis
(da fisiologia social ou do funcionamento social. Os dois
tipos de explanação não conflitam, mas suplementam-se
reciprocamente. *
A hipótese funcional está em conflito com duas posi­
ções sustentadas por alguns etnólogos, e provavelmente
estas, sustentadas quase sempre sem formulação rigo­
rosa, são a causa do antagonismo em relação àquele

* Nlo vejo razSo alguma por que os dois tipos de estudo — o his­
tórico e o funcional — n lo possam ser efetuados paralelamente em
perfeita harmonia. Oe fato, por catorze anos tenho ensinado tanto o
estudo histórico como geográfico de povos sob o titulo de etnologia, cm
intima associação com arqueologia, e o estudo funcional do* sistemas
sociais sob o mesmo titulo de antropologia social. Nlo acho que haja
muitas desvantagens em misturar os dois assuntos e confundi-los. Veja-
se “The Methods of Ethnolofy and Social Anthropologjr” {Sonlh African
Journal ol Science, 1923, pp. 124-47).

229
enfoque. Uma é a teoria «retalhos e remendos» da cul­
tura, nome tomado de uma frase do Prof. Lowie * quan­
do fala daquela «caótica mistura exótica, aquela coisa
mais parecida com retalhos e remendos chamada civi­
lização». A concentração da atenção naquilo que é cha­
mado «difusão dos traços culturais» tende a ensejar uma
concepção de cultura como uma coletânea de entidades
díspares (os chamados traços) reunidos por puro aci­
dente histórico e mantendo apenas relações acidentais
uns para com os outros. A concepção raramente é for­
mulada e mantida com rigor, mas como ponto de vista
meio inconsciente parece, de fato, dirigir o pensamento
de muitos etnólogos. Está, evidentemente, em conflito
aberto com a hipótese da unidade funcional dos siste­
mas. sociais.
A segunda opinião que está em conflito aberto com
a hipótese funcional é a de que não há leis sociológi­
cas importantes a descobrir, tais como os funcionalistas
estão procurando. Sei que dois ou três etnólogos de­
claram sustentar esta opinião, mas achei impossível sa­
ber o que querem dizer, ou que tipo dc prova (racional
ou empírica) serviria de base ao que pretendem. As
'generalizações sobre qualquer espécie de assunto são de
Idois tipos: generalizações da opinião comum, e gene-
1ralizações que foram verificadas ou demonstradas por
rigorosas observações efetuadas sistematicamente. Gene­
ralizações deste último tipo são chamadas leis cientí­
ficas. Os que afirmam não haver leis da sociedade hu­
mana não podem sustentar que não há generalizações
sobre a sociedade humana, porque eles mesmos susten­

* Primitive Soctety, p. 441. Um enunciado conciso deste ponto de


vista acha-se na seguinte passagem da Dra. Ruth Benedict em “The
Concept of the Guardian Spirit in North\ America" (Memoirs, American
Anthropological Association, 29, 1923), p* 84; “Tanto quanto sabemos,
é fatc decisivo da natureza humana que o homem elabora sua cultura
a partir de elementos esparsos, combinando-os e recomblnando-os; e ate
que abandonemos a superstição de que o resultado é um organismo fun­
cionalmente Inter-relaclonado seremos Incapazes de perceber nossa vida
cultural objetivamente, ou de controlar suas manifestações” . Penso que
provavelmente nem o Prof. Lowie nem a Dra. Benedict manteriam,
atualmente, esta opinião quanto i cultura humana.

230
tam tais generalizações e até formulam as suas próprias.
Devem, portanto, sustentar que no campo dos fenôme­
nos sociais, distintamente dos fenômenos físicos e bio­
lógicos, qualquer empenho em verificar sistematicamente
as generalizações existentes ou no sentido de descobrir
e verificar novas será, por algum motivo inexplicado,
fútil, ou, como diz o Dr. Radin, «pregar no deserto».
Argumentar contra tal pretensão não traz proveito al­
gum, ou é mesmo impossível.

231
Capítulo X

Sobre a Estrutura Social ‘

A lg u n s a m ig o s s u g e r ir a m - m e que a p r o v e ita s s e e s ta
ocasião para fazer observações sobre minha própria po­
sição em antropologia social; e visto que desde que co­
mecei a ensinar, primeiro em Cambridge e na London
School of Economics há trinta anos, tenho sempre res­
saltado a importância do estudo da estrutura social, a
sugestão feita a mim foi de que eu dissesse alguma
coisa sobre este assunto.
Espero ser perdoado se começo com uma nota de
explicação pessoal. Mais de uma vez tenho sido consi­
derado como pertencente a algo chamado Escola Fun­
cional de Antropologia Social, e até mesmo como sendo
seu chefe, ou um de seus chefes. Esta Escola Funcional
na realidade não existe; é um mito inventado pelo Prof.
Malinowski. Ele explicou como, para citar suas pró­
prias palavras, «o magnífico titulo da Escola Funcional
de Antropologia foi atribuido por mim mesmo, de certo
modo a mim mesmo, e em grande grau fora de meu
próprio senso de irresponsabilidade». A irresponsabili­
dade do Prof. Malinowski tem tido desastrosos resul­
tados, visto que espalhou pela antropologia uma densa
neblina de discussão sobre «funcionalismo». O Prof.
Lowie anunciou que o principal, não o único, expoen­
te do funcionalismo no século XIX foi o Prof. Franz
Boas. Não acho que haja qualquer sentido, além do pu-
1 Discurso como presidente do Rayal Anthropologlcal Institute. Ex­
traído do fournal of the Royat Anthropotogical Institute, Vol. LXX, 1940.

232
ramente cronológico, em dizer-se que sou ou seguidor
do Prof. Boas ou predecessor do Prof. Malinowski. Di­
zer que eu sou «funcionalista» parece-me nada signifi­
car claramente.
Não há lugar para «escolas», neste sentido, nas ci­
ências natural^ e considero a antropologia social como
um^amo-tfcssas_aencias. Cada cientista começa a par­
tir do trabalho de seus predecessores, encontra proble­
mas que acredita significativos, e pela observação e ra­
ciocínio esforça-se em dar alguma contribuição para o
crescimento da teoria. A cooperação entre os cientistas
resulta do fato de que trabalham nos mesmos problemas
ou problemas aparentados. Tal cooperação não resulta
na formação de escolas, no sentido em que há escolas
de filosofia ou de pintura. Não há lugar para ortodo-
xias e heterodoxias na ciência. Nada é mais pernicioso
na ciência do que tentativas de estabelecer adesões a
doutrinas. Tudo o que um professor pode fazer é aju­
dar o estudante a compreender e utilizar o método ci­
entífico. Não cabe a ele fazer discípulos.
(Concebo a antropologia social como a ciência teórico-
natural da sociedade humana, isto é, a investigação dos
fenômenos sociais por métodos essencialmente semelhan­
tes aos empregados nas ciências físicas e biológicas.
De bom grado chamaria ao assunto de «sociologia com­
parada» se alguém quisesse^ E’ o assunto em si, e não
o nome, que é importante. Como os senhores sabem,
há etnólogos ou antropólogos que afirmam não ser pos­
sível, ou pelo menos proveitoso, aplicar aos fenômenos
sociais os métodos teóricos das ciências naturais.. Para
essas pessoas a antropologia social, tal como a defini,
é algo que não existe e nunca existirá. Para eles, evi­
dentemente, minhas observações não terão valor algum,
ou pelo menos o significado que pretendo.
Embora tenha eu definido antropologia social como o
estudo da sociedade humana, alguns há que a definem
como o estudo da cultura. Poder-se-ia pensar que esta
diferença de definição é de mínima importância. Na
realidade ela leva a duas espécies diferentes • de. estudo,

233
entre os quais é dificilmente possível obter acordo na
formulação de problemas.
^ a r a uma definição preliminar de fenômenos sociais
parece-me suficientemente claro que temos de lidar com
relações de associação entre organismos individuais?)
Numa colônia de abelhas existem as relações de asso^
ciação da rainha, as operárias e os zangões. Há asso­
ciação de animais num rebanho, de uma gata e seus
filhotes. Trata-se de fenômenos sociais; acho que nin­
guém os chamará de fenômenos culturais. Em antropo­
logia, evidentemente interessamo-nos apenas por seres
humanos, e na antropologia social, conforme a defini, o
que temos de investigar são as formas de associação
que se encontram entre os seres humanos.
Consideremos o que são fatos observáveis e concretos
de que se ocupa a antropologia social. Se decidimos
estudar, por exemplo, os habitantes aborígines de uma
parte da Austrália, achamos certo número, de indivíduos
humanos em determinado meio natural, podemos obser­
var a conduta desses indivíduos, inclusive, evidentemente,
seu modo de falar e os produtos materiais de suas ati­
vidades passadas. Não observamos uma «cultura», vis­
to que essa palavra denota não uma realidade concreta,
mas uma abstração, e é, em geral, empregada como
vaga abstração. Mas a observação direta não nos re­
vela que esses seres humanos estão relacionados por
uma complexa rede de relações sociais. Emprego o ter­
mo «estrutura social» para desjgnar esta rede de rela­
ções realmente existente. Isto é o que considero meu
dever estudar se estiver trabalhando, não como etnólogo
ou psicólogo, mas como antropólogo social. Não quero
dizer que o estudo da estrutura social seja tudo na
antropologia social, mas considero, em sentido muito
importante, a parte fundamental dessa ciência.
Meu parecer sobre ciência natural é que ela é a in­
vestigação sistemática da estrutura do universo tal qual
nos é revelado através dos sentidos. Há certos ramos
distintos e importantes da ciência, cada um dos quais
trata de certa classe ou espécie de estruturas, com o
objetivo de descobrir as características de todas as es-

234
truturas daquela espécie. Assim é que a física nuclear
trata da estrutura dos átomos; a química da estrutura
das moléculas; a cristalografia e a química coloidal tra­
tam dos cristais e colóides, e a anatomia e fisiologia,
das estruturas do organismo. Existe, portanto, segundo
penso, lugar para um ramo da ciência natural que tenha
por primeira tarefa o descobrimento das características
gerais dessas estruturas sociais cujas unidades consti­
tuintes são seres humanos.
(Os fenômenos sociais constituem uma classe distinta
de fenômenos naturais. São todos, de um modo ou ou­
tro, relacionados com a existência de estruturas sociais,
neles implicados ou resultantes deles. As estruturas so­
ciais são tão reais quanto os organismos individuais)
O organismo complexo é um conjunto de células vivas
e fluidos intersticiais dispostos em certa estrutura; e a
célula viva é analogamente uma disposição estrutural de
moléculas complexas. Os fenômenos fisiológicos e psi­
cológicos que observamos nas vidas dos organismos não
são apenas resultado da natureza das moléculas cons­
tituintes ou átomos de que o organismo é feito, mas re­
sultado da estrutura na qual estão unidos. [Também os
fenômenos sociais que observamos em qualquer socie­
dade humana não são resultado imediato da natureza
dos seres humanos tomados individualmente, mas con­
seqüência da estrutura social pela qual estão unidos}
Observe-se que dizer que estamos estudando estru­
turas sociais não significa a mesma coisa que dizer que
estudamos relações sociais, tal como alguns sociólogos
definem sua matéria. Determinada relação social entre
duas pessoas (a menos que sejam Adão e Eva no Jar- *
dim do Éden) só existe como parte de ampla rede de '
relações sociais, implicando muitas outras pessoas, e é /
esta rede que considero objeto de investigações.
Estou ciente, com efeito, de que o termo «estrutura
social» é empregado em muitos sentidos diferentes, al­
guns deles muito vagos. Isto é infelizmente verdade
quanto a muitos outros termos em geral usados pelos
antropólogos. A escolha dos termos e suas definições
é questão de conveniência científica, mas uma das ca-

235
racterísticás de certa ciência, tão logo ultrapasse o pe­
ríodo de formação, ê a existência de termos técnicos
que são empregados no mesmo sentido rigoroso por to­
dos i os estudiosos dessa ciência. Segundo este critério,
lamento dizer, a antropologia social revela-se ainda ima­
tura. Tem-se, portanto, que escolher para si mesmo, para
certos termos, definições que pareçam as mais conve­
nientes para fins de análise científica.
Alguns antropólogos empregam o termo «estrutura so­
cial» para designar apenas grupos sociais duráveis,'cõ-
mo ,naçõisT lri5õs~T clãs, que mantenham continüidãcfe— '
e identidade como grupos individuais, a despeito~~3e^'
transformações no seu seio. O Dr. Evans-Pritchard,
recente e admirável livro sobre os nueres, prefere tomar
o termo «estrutura social» neste sentido. De fato, a
existência desses grupos sociais duráveis é aspecto im­
portantíssimo da estrutura. Mas acho mais proveitoso
incluir sob esse termo bem mais do que isto.
|Em primeiro lugar, considero como parte da estrutura
social todas as relações de pessoa a pessoa.^Por exem­
plo, a estrutura do parentesco de qualquer sociedade
consiste de uma quantidade dessas relações diádicas,
como entre pai e filho, ou irmão da mãe e filho da irmã.
Numa tribo australiana toda a estrutura social baseia-
se numa rede de tais relações de pessoa a pessoa, es­
tabelecida através de conexões genealógicas.
Em segundo lugar, incluo sob estrutura social a di­
ferenciação de indivíduos e classes por seu desempenho
social. ]Ás posições sociais diferenciadoras de homens e
mulheres, chefes e comunitários, empregadores e empre­
gados, são outros tantos determinantes das relações so­
ciais na medida em que pertencendo a diferentes clãs
ou nações.
No estudo da estrutura social a realidade concreta de
que estamos tratando é uma série de relações realmente
existentes, em dado lapso de terapo, que agrupa certos
seres humanos. E’ nisto que podemos fazer observações
diretas. Mas não é isto que pretendo descrever em sua
particularidade. A ciência (diferentemente da história ou
da biografia) não se interessa pelo particular, peculiar,

236
mas apenas pelo geral, pelas espécies, pelos fatos que
se repetem. As relações concretas de Antônio, João e
Pedro, ou a conduta de Manuel e José podem ser lan­
çadas em nossos apontamentos e servir de exemplifica­
ção para uma descrição geral. Mas o que precisamos
para fins científicos é um balanço da forma da estru­
tura. Por exemplo, se numa tribo australiana observo
muitos casos de procedimento das pessoas entre si que
estejam em posição de irmão da mãe e filho da irmã, é
a fim de que possa registrar o mais rigorosamente pos­
sível a forma geral ou normal deste relacionamento,
abstraída das variações de casos particulares, embora
levando em consideração aquelas variantes.
Esta importante distinção entre estrutura e realidade
concreta existente, a ser observada diretamente, e forma
estrutural, como o que o pesquisador de campo descreve,
,pode ser esclarecida talvez pela consideração da conti-
inuidade da estrutura através do tempo, continuidade
'esta que não é estática como a de um edifício, mas di­
nâmica, como a estrutura orgânica do corpo vivo. Por
toda a vida de um organismo sua estrutura está sendo
sempre renovada; e de modo idêntico a(,vida social cons­
tantemente renova sua estrutura!) Assim, as relações con­
cretas de pessoas e grupos de pessoas mudam de ano
a ano, ou mesmo de dia a dia. Novos membros inte­
gram a comunidade pelo nascimento ou imigração; ou­
tros saem por morte ou emigração. Há casamentos e
divórcios. Amigos podem tornar-se inimigos, ou inimi­
gos podem fazer a paz e converter-se em amigos. (Mas
enquanto a estrutura social muda deste modo, a for­
ma estrutural geral pode permanecer relativamente cons­
tante por período de tempo maior ou menor^ Assim,
se visito uma comunidade relativamente estável e a re-
visito após dez anos, verificarei que muitos de seus
membros morreram e que outros nasceram; os membros
ainda vivos ficaram dez anos mais velhos e suas rela­
ções para com os outros mudaram de muitos modos.
Contudo, observo que as espécies de relações que posso
constatar são pouquíssimo diferentes das vistas dez anos
antes. A forma estrutural mudou pouco.

237
Mas, por outro lado, a forma estrutural pode mudar,
às vezes gradualmente,. _e_outras vezes, com relativa ra­
pidez, como no caso das revoluções e conquistas mijj-
tares. Mas mesmo nas trãnsTõfmações mais revolucioná­
rias 1mantém-se alguma continuidade estrutural.
Devo dizer algumas palavras sobre o aspecto espacial
da estrutura social. E’ raro que encontremos uma co­
munidade absolutamente isolada, que não tenha contacto
com o exterior. No presente momento da história, a
rede de relações sociais espalha-se por todo o mundo,
sem absoluta solução de continuidade em parte alguma.
Acho que isto suscita uma dificuldade que os sociólogos
não enfrentam: a dificuldade de definir o que quer dizer
«sociedade». Eles em geral falam de sociedades como se
fossem distinguíveis entidades discretas, quando, por
exemplo, nos falam que a sociedade é um organismo.
Será o Império Britânico uma sociedade ou um conjunto
de sociedades? Será sociedade uma aldeia chinesa ou
meramente fragmento da República da China?
Se declaramos que nosso assunto é o estudo e compa­
ração das sociedades humanas, devemos ser capazes de
dizer quais são as entidades unitárias de que tratamos.
Sc tomamos determinada localidade conveniente e de
tamanho apropriado, podemos estudar o sistema estru­
tural tal como aparece na região, isto é, a rede de re­
lações que liga os habitantes entre si e com o povo de
outras regiões. Podemos assim observar, descrever e
comparar os sistemas de estrutura social de tantas lo­
calidades quantas desejarmos. Para ilustrar o que estou
afirmando, posso mencionar dois estudos recentes da
Universidade de Chicago, um de uma aldeia japonesa,
Suye Mura, pelo Dr. John Embree, e o outro de uma
comunidade franco-canadense, St. Denis, pelo Dr. Ho-
race Miner.
Intimamente relacionada com esta concepção de es­
trutura social está a concepção de «personalidade so­
cial» como posição ocupada por um ser humano numa
estrutura social, o complexo formado por todas as suas
relações sociais com outros. Todo ser humano que viva
numa sociedade é duas coisas: indivíduo e pessoa. Co­

238
mo indivíduo, é um organismo biológico, aglomerado de
imenso número de moléculas organizadas numa estru­
tura complexa, dentro da qual, durante o tempo que
persista, ocorrem ações e reações fisiológicas e psicoló­
gicas, processos e transformações. Os seres humanos
como indivíduos são objeto de estudo dos fisiólogos e
psicólogos.' O ser humano como pessoa é um complexo
de relacionamentos sociais.; E’ cidadão da Inglaterra,
marido e pai, pedreiro, membro de determinada congre­
gação metodista, votante em determinado partido, mem­
bro de seu sindicato, adepto do Partido Trabalhista etc.
Note-se que cada uma dessas descrições refere-se a um
relacionamento social, ou a certo lugar na estrutura so­
cial. Note-se também que personalidade social é algo
que muda durante o cursò da vida da pessoa.) Como
pessoa, o ser humano é objeto de estudo do antropó­
logo social. ;Não podemos estudar pessoas a não ser nas
condições de estrutura social, nem podemos estudar a
estrutura social exceto em termos de pessoas que são
as unidades de que ela se compõe. ^
Se me redarguirem que indivíduo e pessoa são, afi­
nal de contas, a mesma coisa, lembrarei que o credo
cristão faz a distinção: Deus são três pessoas, mas di­
zer que Ele são três indivíduos é ser réu de heresia
pela qual muitos homens foram condenados à morte.
Contudo, errar na diferenciação de indivíduo e pessoa
não é apenas heresia em religião; pior que isto: fonte
de confusão na ciência.
Espero termos já definido suficientemente a matéria
que considero ramo sumamente importante da antropo­
logia social. O método a ser adotado segue-se imedia­
tamente desta definição. ^Deve combinar um profundo
estudo das sociedades simples (isto é, os sistemas es­
truturais observáveis em determinadas comunidades) com
a comparação sistemática de muitas sociedades (ou sis­
temas estruturais de tipos diferentes). A comparação é
indispensável. O estudo de uma sociedade única pode
fornecer materiais para estudo comparado, ou ensejar
hipóteses que então precisam ser verificadas por refe­

239
rência a outras sociedadesp não pode dar resultados de­
monstráveis.
Nossa primeira tarefa, evidentemente, é saber o má­
ximo possível sobre as variedades, ou diversidades de
sistemas estruturais. Isto exige pesquisa de campo. Mui­
tos autores de descrições etnográficas não tentam dar-
nos qualquer balanço sistemático da estrutura social.
Mas uns poucos antropólogos sociais, aqui e na Amé­
rica, reconhecem a importância de tais dados e seu
trabalho é dar-nos um acervo crescente de material para
nosso estudo. Ademais, suas pesquisas já não mais se
confinam ao que são chamadas «sociedades primitivas»,
mas estendem-se a comunidades em regiões como a
Sicília, Irlanda, Japão, Canadá e Estados Unidos.
Se porém precisarmos de uma concreta morfologia
comparativa das sociedades, devemos ter em mente al­
guma espécie de classificação dos tipos de sistemas es­
truturais. Isto é tarefa complexa e difícil, à qual eu mes­
mo dei atenção por trinta anos. E’ o tipo de tarefa que
exige cooperação de muitos estudiosos e acho que posso
contar nos^dedos os que no momento se interessam pelo
assunto. Todavia, creio que se faz algum progresso.
Este trabalho, no entanto, não produz resultados espe­
taculares e um livro sobre o assunto certamente não
seria êxito de livraria.
Devo lembrar que a quimica e a biologia não se tor­
naram ciências plenamente constituídas até que conside­
rável progresso ocorresse na classificação sistemática
das coisas de que tratavam, substâncias num caso e
plantas e animais no outro.
Além deste estudo morfológico, que consiste na de­
finição, comparação e classificação dos diversos siste­
mas estruturais, há um estudo fisiológico. ^0 problema
no caso é: como persistem os sistemas estruturais?
Quais os mecanismos que mantêm viva uma rede de
relações sociais, e como atuam?^Ao empregar os ter­
mos morfologia e fisiologia, posso dar a impressão de
estar voltando à analogia entre sociedade e organismo,
que era tão comum aos filósofos medievais, retomada
e tantas vezes mal utilizada pelos sociólogos do século

240
passado e completamente rejeitada por muitos autores
modernos. Mas as analogias, adequadamente feitas, são
ajuda importante ao pensamento cientifico e íexiste real
e significativa analogia entre a estrutura orgânica e
a social.
Portanto, o que aqui chamo de „fisiologia social trata
não apenas da estrutura social, mas de toda espécie de
fenômeno social. Morai, direito, boas maneiras, religião,
governo, e educação, tudo isto são partes do complexo
mecanismo pelo qual uma estrutura social existe e per-
durãTSe assumimos o ponto de vista estruturalista, es­
tudamos essas coisas não abstrata ou isoladamente, mas
em relações diretas e indiretas com a estrutura social,
isto é, com referência ao modo pelo qual dependem das
relações sociais entre pessoas e grupos de pessoas ou
as afetem.
Aqui nada mais posso fazer senão dar ligeira ilustra­
ção do que isto significa.
Consideremos em primeiro lugar o estudo da lingua­
gem. Linguagem é uma série conexa de modos de falar
observados no seio de determinada comunidade. A exis­
tência de comunidades de fala bem como suas dimensões
são aspectos da estrutura social. Há, portanto, certa re­
lação muito geral entre estrutura social e linguagem.
Mas se considerarmos as características especiais de de­
terminada linguagem — sua fonologia, morfologia e
mesmo, em grande grau, seu vocabulário — não ha­
verá conexão direta de determinação unilateral ou mú­
tua entre essas e as características especiais da estrutura
social da comunidade no seio da qual a língua é falada.
Podemos facilmente conceber que duas sociedades pos­
sam ter formas muito semelhantes de estrutura social e
tipos de língua muito diferentes, ou vice-versa. A coin­
cidência de determinada forma de estrutura social e cer­
ta linguagem em dada comunidade é sempre resultado
de acaso histórico. Pode haver, evidentemente, intera­
ções indiretas e remotas entre a estrutura social e a
linguagem, mas isto seria de menor importância. Assim,
o estudo comparado geral das linguagens pode ser
proveitosamente empreendido como ramo relativamente

241
independente da ciência, na qual á linguagem é consi­
derada abstratamente a partir da estrutura social da
comunidade na qual é falada.
Por outro lado, há aspectos da história lingüística
especificamente relacionados com a estrutura social. Co­
mo fenômeno estrutural pode-se tomar como exemplo o
processo pelo qual o latim, que era a língua da pequena
região do Lácio, veio a ser a língua de imensa parte
da Europa, deslocando as demais línguas itálicas,
etruscas e muitas línguas célticas; e o subseqüente pro­
cesso inverso pelo qual o latim se fragmentou em nu­
merosas formas locais de fala, que em última instância
converteram-se nas diversas línguas românticas de hoje.
Desse modo pois a difusão da linguagem, a unifica­
ção de comunidades separadas em comunidades de lín­
gua única e o processo inverso de subdivisão em comu­
nidades de línguas diferentes, são fenômenos de estrutura
social. No mesmo caso estão as sociedades que possuem
estrutura de classe e modos de falar diferentes confor­
me as classes.
Consideramos em primeiro lugar a língua, porque a
lingüística é, segundo penso, o ramo da antropologia
social que mais proveitosamente pode ser estudado sem
referência à estrutura social. Há uma razão para isto.
A série de modos de falar que constituem uma lingua­
gem forma de fato um sistema, e os sistemas deste
tipo podem ser comparados a fim de descobrir-se seus
caracteres comuns gerais ou abstratos, cuja determina­
ção pode proporcionar-nos leis, as quais serão especi­
ficamente leis da lingüística.
Consideremos muito brevemente outros ramos da an­
tropologia social e sua relação com o estudo da estru­
tura social. Se tomamos a vida social de certa comuni­
dade local por determinado período, digamos, um ano,
podemos observar uma soma total de atividades efetua­
das por pessoas que a compõem. Podemos também
verificar certa atribuição dessas atividades a determi­
nadas pessoas que fazem umas coisas enquanto outras
pessoas fazem outras. Esta repartição de atividades,
equivalente ao que às vezes se chama divisão do tra­

242
balho, é aspecto importante da estrutura social. Ora, as
atividades são efetuadas porque proporcionam certa es­
pécie de «prazer», conforme sugiro que se chame, e o
aspecto característico da vida social é que as atividades
das pessoas proporcionem prazer a outras pessoas.
Vejamos um caso simples: quando o nativo australiano
vai à caça, busca a carne não apenas para si mesmo,
mas também para a esposa, os filhos, os parentes, aos
quais é de seu dever dar carne quando a tem. Assim,
em toda sociedade há não apenas atribuição de ativi­
dades, mas também de prazer delas resultante, e uma
espécie de maquinaria social, relativamente simples ou,
às vezes, altamente complexa, pela qual o sistema atua.
E’ esta maquinaria, ou certos aspectos dela, que cons­
titui o tema especial estudado pelos economistas. In-
teressam-se eles pelos tipos e quantidades de bens
produzidos, como são distribuídos (isto é, o fluxo de
pessoa a pessoa, ou de região a região), e o modo pelo
qual dispõem deles. Desse modo, as chamadas institui­
ções econômicas são estudadas mais ou menos em com­
pleta abstração do restante do sistema social. Este mé­
todo proporciona, sem dúvida, proveitosos resultados,
sobretudo no estudo das sociedades complexas moder­
nas. A fragilidade do método aparece quando tentamos
aplicá-lo ao intercâmbio de bens nas chamadas socie­
dades primitivas.
O mecanismo de determinada sociedade aparece sob
luz inteiramente nova se estudado em relação com a es­
trutura social. O intercâmbio de bens e serviços depen­
de — é resultado e ao mesmo tempo meio de manter
certa estrutura — de uma rede de relações entre pes­
soas e grupos de pessoas. Para os economistas e polí­
ticos do Canadá o potlatch dos índios do noroeste da
América era simplesmente desperdício tolo e foi por isso
proibido. Para o antropólogo era o mecanismo para ma­
nutenção da estrutura social de linhagens, clãs e meta­
des, com o qual se combinava uma ordem hierárquica
definida por privilégios.
" A plena compreensão das instituições econômicas das
sociedades humanas exige seu estudo sob dois ângulos.

243
De um deles o sistema econômico é encarado como o
mecanismo pelo qual os bens de várias espécies e
em diversas quantidades são produzidos, transportados,
transferidos e utilizados. Do outro ângulo o sistema eco­
nômico é uma série de relações entre pessoas e grupos
que mantém, e é mantido, pelo intercâmbio ou circula­
ção de bens e serviços. Deste último ponto de vista o
estudo da vida econômica das sociedades assume o lu­
gar como parte do estudo geral da estrutura social.
I As relações sociais só são observadas, e só podem ser
descritas em relação à conduta recíproca das pessoas
em jogo. A forma de uma estrutura social tem de ser
descrita, portanto, pelos padrões de corçduta seguidos
pelos indivíduos e grupos no trato mútuo.(ÍEstes padrões
são parcialmente formulados em normas 'que em nossa
própria sociedade distinguimos das regras de boas ma­
neiras, moral e direito. As normas, evidentemente, só
existem no reconhecimento que delas têm os membros
da sociedade; seja no reconhecimento escrito, quando
se estabelecem como normas, ou quando cumpridas na
práticay Esses dois modos de reconhecimento, como todo
pesquisador de campo sabe, não são a mesma coisa e
ambos têm de ser tomados em consideração.
Sc declaro que em toda sociedade as normas de boas
maneiras, moral e direito são parte do mecanismo pelo
qual certas relações sociais são mantidas vivas, tal de­
claração, suponho, será recebida como truísmo. Mas é
um daqueles truísmos que muitos escritores sobre a so­
ciedade humana aceitam verbalmente e contudo igno­
ram nas discussões teóricas, ou em suas análises des­
critivas. A questão não é a existência da norma em toda
sociedade, mas o que precisamos saber para uma com­
preensão científica é precisamente como essas coisas
atuam em casos gerais e particulares.
Consideremos, por exemplo, o estudo do direito. Se
examinarmos a bibliografia sobre jurisprudência veremos
que as instituições legais são estudadas quase sempre
mais ou menos abstratamente ení relação ao restante
do sistema social a que pertencem. Isto é sem dúvida
o método mais conveniente para os advogados em seus

244
estudos profissionais. Mas para a pesquisa científica da
natureza do direito é insuficiente. Os dados com que
deve lidar o cientista são eventos que ocorrem e podem
ser observados. No campo do direito, os fatos que o
cientista social pode observar e admitir como dados são
os efeitos que tramitam nas cortes de justiça. São eles
a realidade, e para o antropólogo social são o mecanis­
mo ou processo pelo qual se restauram, se mantêm ou
se modificam certas relações sociais definíveis entre pes­
soas e grupos. A lei é a parte da,maquinaria pela qual
se mantém certa estrutura social. O sistema de leis de
determinada sociedade só pode ser plenamente compre­
endido se estudado em relação com a estrutura social,
e reciprocamente a compreensão da estrutura social exi­
ge, entre outras coisas, um estudo sistemático das ins­
tituições legais.)
Venho falando de relações sociais, porém até agora
não dei uma definição rigorosa. Existe relação social
entre dois ou mais organismos individualmente quando
há certo ajuste de seus respectivos interesses, pela con­
vergência de interesse, ou pela limitação de conflitos
que possam surgir da divergência de interesses. Em­
prego o termo «interesse» aqui no sentido mais amplo
possível, para designar toda conduta que consideremos
proposital. Faiar dc um interesse implica um sujeito
e um objeto, bem como certa relação entre eles. Sempre
que declaramos que um sujeito tem certo interesse em
determinado objeto podemos declarar a mesma coisa
afirmando que o objeto tem certo valor para o sujeito.
Interesse e valor são termos correlatos, que se referem
a dois aspectos de uma relação assimétrica.
Desta maneira, o estudo da estrutura social leva ime­
diatamente ao estudo de interesses ou valores como de­
terminantes das relações sociais. A relação social não
resulta da semelhança de interesses, mas repousa ou
no interesse mútuo de pessoas em outra, ou em um ou
mais interesses comuns, ou ainda numa combinação de
ambos os modos. A mais elementar forma de solidarie­
dade social verifica-se quando duas pessoas estão in­
teressadas em produzir certo resultado e cooperam para

245
este fim. Quando duas ou mais pessoas têm um interesse
comum em certo objeto, pode-se dizer que esse objeto
tem um valor social para as pessoas assim associadas.
\/ Se, então, praticamente todos os membros de dada so-
yíd ciedade têm interesse no cumprimento das leis, podemos
dizer que a lei tem valor social. O estudo dos valores
sociais neste sentido é, pois, parte do estudo da estru­
tura social.^
Foi deste ponto de vista que em estudo anterior enfo­
quei o que se pode chamar pertinentemente de valores
rituais, isto é, os valores expressos nos ritos e mitos.
E ’ talvez, de novo, truísmo afirmar que a religião é o
cimento que amalgama a sociedade. Mas para uma com­
preensão científica precisamos saber exatamente como tal
acontece, e isto constitui assunto para extensas investi­
gações em muitas formas diferentes de sociedade.
Como último exemplo, permitam-me mencionar o es­
tudo da magia e bruxaria, sobre o que existe extensa
bibliografia antropológica. Indicaria a obra do Dr.
Evans-Pritchard sobre os Zande como exemplo esclare­
cedor do que pode ser feito quando essas coisas são
sistematicamente investigadas, quanto ao papel que de­
sempenham nas relações sociais dos membros de dada
comunidade.
As instituições sociais, do ponto de vista que tentei
resumidamente expor, no sentido de modos padroniza­
dos de conduta, constituem o maquinismo pelo qual a
estrutura social, que é uma rede de relações sõcTaisT
mantém a existência e continuidade próprias. Hesito em
empregar o termo «função», que nos últimos anos tem
sido usado e do qual se abusa, com inúmeros significa­
dos, vagos muitos deles. Ao invés de ser empregado para
estabelecer diferenças, como devem ser os termos cien­
tíficos, é empregado agora para confundir as coisas que
devem ser esclarecidas. Porque é freqüentemente empre­
gado em lugar de palavras mais comuns como «uso»,
«propósito» e «significado». Parece-me mais apropriado
e prático, bem como mais erudito, falar do uso ou usos

246
de um machado ou escavadeira, do significado de certa
palavra ou símbolo do propósito de um decreto legis­
lativo, em vez de empregar a palavra função para tudo.
«Função» tem sido termo técnico muito fecundo em fi­
siologia e por analogia com seu emprego naquela ciên­
cia seria meio muito conveniente de exprimir importante
conceito nas ciências sociais. Como estou acostumado
a empregar a palavra, seguindo Durkheim e outros, de­
finiria eu a função social de certo modo socialmen-.
te padronizado de agir ou pensar como relacionado
com a estrutura social e para cuja existência e conti­
nuidade contribui. Analogamente, num organismo vivo, a
função fisiológica das batidas do coração, ou a secre­
ção de suco gástrico, está relacionada com a estrutura
orgânica para cuja existência ou continuidade contribui.
E’ neste sentido que estou interessado em coisas como
a função social do castigo do crime, ou a função social
dos ritos totêmicos das tribos australianas, ou dos ritos
fúnebres dos insulares de Andaman. Mas não é isto que
tanto o Prof. Malinowski ou o Prof. Lowie entendem
por antropologia funcional.
Além dessas duas divisões do estudo da estrutura so­
cial a que chamei de morfologia e fisiologia social, há
uma terceira, que é a investigação dos processos pelos
quais as estruturas sociais se transformam, de como no­
vas formas de estruturas surgem. Os estudos da trans­
formação social nas sociedades incultas têm quase que
exclusivamente se limitado a um processo especial de
mudança, a modificação da vida social sob a influência
ou dominação de invasores ou conquistadores europeus.
Tornou-se moda recentemente entre alguns antropó­
logos tratar as transformações deste tipo sob o título
de «contacto cultural». Pelo termo podemos entender os
efeitos unilaterais ou bilaterais de interação entre duas
sociedades, grupos, classes ou regiões com diferentes
formas de vida social, diferentes instituições, usos e
idéias. Assim é que no século XVIII houve importante
intercâmbio de idéias entre a França e a Inglaterra, e
no século XIX assinalada influência do pensamento ale­

247
mão tanto na França como na Inglaterra. Essas intera­
ções são, evidentemente, aspecto constante da vida so­
cial, mas não implicam obrigatoriamente qualquer mu­
dança sensível de estrutura social.
As transformações que estão ocorrendo entre os povos
incultos da África são de tipo muito diferente. Conside­
remos uma colônia ou possessão africana de uma nação
européia. Há uma região que foi anteriormente habitada
por africanos com sua estrutura social própria. Os eu­
ropeus, por meios pacíficos ou violentos, estabeleceram
controle sobre a região, sob o que chamamos de regime
«colonial». Nova estrutura social surge e depois passa a
desenvolver-se. A população agora inclui certo número
de europeus — funcionários do governo, missionários,
comerciantes e, em alguns casos, colonos. A vida social
da região não é mais simplesmente um processo depen­
dente das relações e interações dos povos nativos. Er­
gue-se ali nova estrutura política e econômica na qual
os europeus, embora poucos em número, exercem influ­
ência dominadora. Europeus e africanos constituem clas­
ses diferentes no seio da nova estrutura, com línguas
diferentes, diferentes costumes e modos de vida, bem
como padrões de idéias e valores diferentes. Termo con­
veniente para sociedades deste tipo seria «sociedades
compósitas»; foi também sugerido o termo «sociedades
plurais». Exemplo complexo de sociedade compósita é
dado pela União Sul-Africana com sua única estrutura
política e econômica e uma população que engloba po­
vos de fala inglesa e fala africana, povos de descendên­
cia européia, os chamados «homens de cor» da provín­
cia do Cabo, progénie de holandeses e hotentotes, os
hotentotes remanescentes, os «malaios» da Cidade do
Cabo, descendentes de pessoas do arquipélago malaio,
hindus e maometanos da índia e seus descendentes, e
certas tribos bantos que constituem a maioria da popu­
lação da União tomada como um todo.
O estudo das sociedades compó&itas, descrição e aná­
lise dos processos de mudança que nelas ocorrem é ta­
refa difícil e complicada. A tentativa de simplificá-lo,
considerando o processo como único no qual duas ou

248
mais «culturas» estão em interação (método sugerido
por Maiinowski em sua Introdução ao Memorandum XV
do International Institute of African Language and Cul-
ture sobre «Métodos de Estudo da Cultura de Contacto
na África», 1938), é simplesmente um meio de fugir à
realidade. Porque o que está acontecendo na África do
Sul, por exemplo, não é a interação da cultura inglesa,
africana (ou boer), hotentote, várias culturas bantos e
indiana, mas a interação de indivíduos e grupos dentro
de uma estrutura social que está em si mesma em pro­
cesso de transformação. O que está acontecendo numa
tribo transkeiana, por exemplo, só pode ser descrito pelo
reconhecimento de que essa tribo foi incorporada num
amplo sistema estrutural político e econômico.
Faltam-nos quase completamente dados históricos au­
tênticos para o estudo científico de sociedades primitivas
em condições isentas 'do domínio por sociedades mais
evoluídas que resultam nessas sociedades compósitas.
Não podemos estudar, mas tão-somente especular sobre
os processos de mudança que ocorreram no passado de
que não temos registros. Os antropólogos especulam so­
bre transformações antigas nas sociedades dos aborígi­
nes australianos, ou dos habitantes da Melanésia, mas
tais especulações não são história e não têm valor para
a ciência. Para o estudo da transformação social nas
sociedades que não sejam compósitas a que aludimos
temos que contar com o trabalho de historiadores que
lidem com documentos autênticos.
Sabemos que em certos círculos de antropologia o
termo «antropólogo evolucionista» é quase ofensivo, sen­
do porém aplicado sem maiores discriminações. Assim,
Lewis Morgan é chamado de evolucionista, embora re­
jeitasse a teoria da evolução orgânica e quanto à so­
ciedade acreditasse, não em evolução, mas em desen­
volvimento, que ele concebia como o constante aperfei­
çoamento material e moral da humanidade a partir de
implementos de pedra bruta e promiscuidade sexual até
as máquinas a vapor e casamento monogâmíco de Ro-
chester, Nova Iorque. Mas até antievolucionistas como
Boas acreditam no progresso.

249
\ Penso ser conveniente empregar o termo «progresso»
para o processo pelo qual os seres humanos adquirem
maior controle sobre o meio físico mediante o aumento
de conhecimento e aperfeiçoamento da técnica pelas in-
vençèes e descobrimentos\ O modo pelo qual hoje somos
capazes de destruir consideráveis porções de cidades por
bombardeios aéreos é um dos mais recentes e impres­
sionantes resultados do progresso. "Ç) progresso não é
a mesma coisa que evolução social, mas está muito in­
timamente relacionado com elàu)
A evolução, tal como entendo o termo, refere-se es­
pecificamente ao processo de surgimento de novas for­
mas de estrutura. A evolução orgânica tem dois aspec­
tos importantes: 1) no curso dela pequeno número de
espécies de organismos enseja número muito maior de
espécies; 2) mais complexas formas de estrutura orgâ­
nica vêm à existência pelo desenvolvimento a partir de
formas mais simples. Embora me sinta incapaz de ligar
qualquer sentido definido a frases como «evolução da
cultura» ou «evolução da linguagem», penso que a evo­
lução social é uma realidade que o antropólogo social
deve reconhecer e estudar. Como a evolução orgânica,
ela pode ser definida por dois aspectòsrHouve um pro-
cesso pelo qual, a partir de pequeno número de formas,
de estrutura social, muitas formas diferentes surgiram.,
no curso da história; isto é, houve um processo de d i­
versificação. Em segundo lugar, através deste processo—
mais complexas formas de estruturas sociais surgiram^
ou substituíram as formas mais simples.
Se os sistemas estruturais devem ser classificados de
acordo com sua maior ou menor complexidade é pro­
blema que requer exame. Mas há evidência de visível
correlação íntima entre complexidade e outro aspecto
dos sistemas estruturais, a saber, a extensão do campo
das relações sociais. Num sistema estrutural com limi­
tado campo social total, uma pessoa média ou típica é
posta em relações sociais diretas e indiretas com ape­
nas pequeno número de outras pessoas. Em sistemas
deste tipo podemos encontrar a comunidade lingüística
— o corpo de pessoas que falam uma língua — de 250

250
a 500, enquanto a comunidade política é ainda menor,
e as relações econômicas pela troca de bens e serviços
estendem-se apenas por limitada amplitude. À parte a di­
ferenciação por sexo e idade, há pouca diferenciação de
posição social entre pessoas ou classes. Podemos con­
trastar com isto os sistemas de estrutura social que ve­
rificamos hoje na Inglaterra ou nos Estados Unidos.
Deste modo, o processo de história humana que se po­
deria chamar de evolução social, a meu ver apropria­
damente, poderia ser definido como o processo pelo qual
sistemas de grande amplitude de estrutura social engen­
draram ou substituíram sistemas menores. Aceitável ou
não este parecer, sugiro que o conceito de evolução so-
cjal seja aquele que exige ser definido em termos de
estrutura social.
Não dispomos de tempo nesta oportunidade para ana­
lisar a relação do estudo da estrutura social com o es­
tudo da cultura. Para uma interessante tentativa de reu­
nir os dois estudos, mencionaria o livro de Gregory
Bateson Naven. Não me empenhei de modo algum em
tratar da antropologia social como uma totalidade e de
todos os seus ramos e divisões. Esforcei-me apenas em
dar-lhes uma idéia muito geral do tipo de estudo ao
qual achei cientificamente proveitoso dedicar considerá­
vel e sempre crescente parcela do meu tempo e energia.
A única recompensa que busquei, penso que em certo
grau obtive: algo como uma penetração na natureza do
mundo do qual somos parte, que só paciente aplicação
do método das ciências naturais pode proporcionar.

251

Você também pode gostar