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MÁRCIA JORGE ALIVERTI

“Uma Visão Sobre a Interpretação das


Canções Amazônicas de
Waldemar Henrique”

Dissertação apresentada à
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música,
sob a orientação do Professor Doutor Marco Antônio Ramos.

SÃO PAULO - SP
2003
II

“Onde quer que eu esteja,


Rio de Janeiro, Nova York, ou Lisboa,
sou um amazônida,
perseguido por visões mitológicas,
pelo veneno da selva,
pelo mistério ainda indesvendado
destas fortes e benfazejas chuvas,
pelo doce chamado dessa minha gente...”

WALDEMAR HENRIQUE
III

MÁRCIA JORGE ALIVERTI

“Uma Visão Sobre a Interpretação das


Canções Amazônicas de
Waldemar Henrique”

Dissertação apresentada à
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música,
sob a orientação do Professor Doutor Marco Antônio Ramos.

SÃO PAULO - SP
2003
IV

SÃO PAULO, de de 2003.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

________________________________________

________________________________________
V

AGRADECIMENTOS

A Deus, meu Pai, pelas oportunidades de crescimento que a realização deste

trabalho oferece para minha vida.

Aos meus anjos da guarda, pela paciência e perseverança em manterem no

caminho reto uma alma tão difícil como a minha.

À minha mãe e meu pai queridos, pelo incentivo e apoio fundamentais para a

realização deste trabalho.

Ao meu amado marido, revisor, desenhista, diagramador, etc., pela força

constante, incentivo, amor e pela mão forte com a qual eu sempre posso contar em

qualquer dificuldade.

Aos meus filhos, pela compreensão de ter uma mãezinha tão ocupada por tanto

tempo.

À Mavilda, minha querida irmã mais velha, por cumprir tão bem o seu papel

lembrando-me de todas as datas, trabalhos, deveres, etc.

À UFPA, que nos propiciou a chance desse aprendizado.

À SEDUC, pela minha liberação remunerada.

Aos meus chefes diretos Celson Gomes e Felipe Silva, pela liberação de carga

horária para a realização deste.

Ao meu orientador, Prof. Marco Antônio Ramos, pela sua orientação

competente, dedicação, cuidado e por ter apostado em mim.

Aos meus professores de pós-graduação: Régis Duprat, Sérgio Cascapera,

Flávia Toni, José Eduardo Martins, Lorenzo Mammi, Rubens Russomano e Marco A,

Ramos, pelo conhecimento repassado e pela boa disposição e carinho com que o fizeram.

À Profª Lenora, pelo auxílio constante e sempre bem disposto.

À Profª Lia Braga, que lutou com afinco para que este mestrado se realizasse.
VI

À Profª Selma Chaves, por colocar gentilmente seus conhecimentos à nossa

disposição.

Aos Professores Ana Maria Peixoto e Vanildo Monteiro, pelo precioso

material de pesquisa colocado à nossa disposição.

Aos Professores Jaqueline e Barry Ford, pelo auxílio gentil e emergencial que

nos deram no último minuto da conclusão deste trabalho.

A Maria de Belém e Ruth Menezes, pela ajuda tão bem disposta que nos

deram.

Às minhas colegas Maria José Pereira, Margarida Camargo, Lúcia Uchoa e

Lenora Brito, pelo companheirismo e lições de vida, dadas - muitas vezes sem saber - nos

nossos quatro meses de convivência em São Paulo.

À Judie Ibrahim, pela acolhida essencial e carinhosa.

Aos meus alunos, pela compreensão e espera.

A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização

deste trabalho.

A Deus, novamente, por me ajudar através de tantas mãos amigas.


VII

A Waldemar Henrique,

inspirador deste humilde trabalho,

grande exemplo de arte, talento e

humanidade.
VIII

RESUMO

N
a produção científica voltada para a análise musicológica, são poucos

os escritos sobre interpretação voltados para a música regional da

Amazônia. Trabalhando diretamente na formação de intérpretes populares e eruditos,

sentimos a necessidade de iniciar o registro de nossas observações sobre o assunto, com o

intuito de incrementar os estudos de questões interpretativas nesse campo.

Escolhemos dirigir o foco de nosso trabalho para algumas das obras de caráter

mais regional, compostas por Waldemar Henrique, compositor paraense de maior

relevância, que mereceu o reconhecimento da crítica especializada pela alta qualidade de

suas composições e pela maneira tão sensível com que retratou a Amazônia.

Procuraremos mostrar como chegamos às conclusões sobre nossa visão

interpretativa das canções amazônicas de Waldemar Henrique, através da análise de sete

canções: “Foi Bôto, Sinhá!”, “Cobra-Grande”, “Tamba-Tajá”, “Matintaperêra”,

“Uirapuru”, “Curupira” e “Manha-nungára”.


IX

ABSTRACT

In terms of scholarly research, there is little written about performance

practice of vocal music from the Amazon region. The education of

performers in this area being a major concern of the author provoked an interest in the

necessity of documenting ideas and practices with the finality of providing the performer

with a means of resolving questions of interpretation.

The focus of the work will be centered entirely on works of Waldemar

Henrique a composer from the Brazilian state of Pará. His works are almost entirely based

on Amazonian folk lore, and, as such, more clearly represent the region in the opinion of

the author.
X

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01

CAPÍTULO 1 – MERGULHANDO NO CONTEXTO AMAZÔNICO 05

1. O ISOLAMENTO 06

2. A VIDA RIBEIRINHA 09

3. O UNIVERSO IMAGINÁRIO: A SEGUNDA REALIDADE 12

CAPÍTULO 2 – BIOGRAFIA DE WALDEMAR HENRIQUE 15

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DAS CANÇÕES AMAZÔNICAS 32

1. “FOI BÔTO, SINHÁ!” 38

2. “COBRA-GRANDE” 51

3. “TAMBA-TAJÁ” 61

4. “MATINTAPERÊRA” 71

5. “UIRAPURU” 81

6. “CURUPIRA” 91

7. “MANHA-NUNGÁRA” 99

CONCLUSÃO 109

BIBLIOGRAFIA 114

ANEXOS 120

 PARECERES SOBRE WALDEMAR HENRIQUE E

SUA OBRA

 PARTITURAS
XI

INTRODUÇÃO
XII

A
música de Waldemar Henrique sempre foi ativamente executada no

Pará, tanto no meio musical erudito, quanto no popular. Tivemos

contato com ela desde nossa iniciação musical na infância, em nossa prática discente como

aluna de piano e violino do Conservatório Carlos Gomes, e como espectadora das inúmeras

manifestações culturais de nossa cidade (Belém). Também tivemos contato direto com o

próprio Waldemar Henrique, a partir de nossa formatura em violino no Conservatório,

quando o maestro foi patrono de nossa turma.

Anos mais tarde, quando o canto lírico passou a ser nosso instrumento

principal, nossa relação com a obra de Waldemar Henrique passou a ser mais estreita,

diária, constante. Amadurecemos nossa percepção a partir desse contato intenso

proporcionado tanto por nossa prática artística ativa como cantora lírica, quanto por nossa

atividade didática como professora de canto e violino há mais de 19 anos. Foi dessa

vivência que trouxemos todo o material básico para a realização desta dissertação. Não

falamos somente das partituras editadas, que já faziam parte de nosso acervo particular há

vários anos, mas da observação aprofundada em anos de trabalho como intérprete e

formadora de intérpretes.

P ara a escolha do material composicional selecionado, consultamos o

acervo das bibliotecas da Fundação Carlos Gomes, do Museu Emílio

Goeldi, da Universidade Federal do Pará – UFPA, da Universidade da Amazônia –

UNAMA (Belém) e da biblioteca da ECA – USP (São Paulo). A descrição de nossa

abordagem analítica é feita com detalhes no Capítulo 3 deste trabalho.

Quanto à seleção das Lendas Amazônicas, especificamente, deve-se a uma

profunda impressão guardada dos tempos de criança. Percebemos que trazíamos na

memória, junto com as personagens fantásticas das histórias contadas por nossas avós, as

melodias e batuques das canções de Waldemar Henrique. Cada personagem ficou


XIII

embalada em nossas lembranças por um tema, um motivo musical do maestro. Foi a

percepção desse fato que nos levou a escolher as Lendas Amazônicas:

 “Foi Bôto, Sinhá!”

 “Cobra-Grande”

 Tamba-Tajá”

 “Matintaperêra”

 “Uirapuru”

 “Curupira”

 “Manha-Nungára”

Não se encontram aqui todas as lendas compostas por Waldemar Henrique. Há

originais de outras como: “A Lenda da Vitória Régia”, “Naiá”, “Japiim”, e a “Lenda da

Uiara”, que se encontram em poder da Secretaria Executiva de Cultura do Pará - SECULT,

aguardando por restauração desde antes do falecimento do autor. Não há nenhuma partitura

ou manuscrito a que pudéssemos ter acesso para completar nossa dissertação. Optamos

então por trabalhar com as obras que foram editadas.

W aldemar Henrique, após o início de seus estudos de música, chegou a

freqüentar o Conservatório Carlos Gomes por vários anos,

incentivado, pelo maestro italiano Ettore Bòsio, seu professor de composição e harmonia.

Sua vida de muitas viagens interrompeu-lhe o estudo formal, mas lhe permitiu ter outros

mestres de renome como Barroso Neto (piano), Arthur Bossman (estética e regência),

Newton Pádua (harmonia, contraponto e fuga) e Lorenzo Fernandes (composição). Seu

cabedal de conhecimento era respeitável e lhe valeu a honra de ser chamado pelo próprio

Villa-Lobos para ser seu assistente no Conservatório de Canto Orfeônico.É o compositor

paraense de maior fôlego. Sua obra conta com mais de 200 canções, além de peças para
XIV

orquestra, solos instrumentais, trilhas sonoras para peças teatrais e filmes. É reconhecido

nacionalmente como um preciso registrador da realidade amazônica. Foi a admiração pela

obra e pela figura humana desse compositor que nos moveu na escolha da temática deste

trabalho.

N
os quatro capítulos que compõem esta dissertação, faremos inicialmente

uma contextualização da realidade amazônica para que o leitor se sinta

mais próximo dos temas e possa entender algumas de suas peculiaridades. Em seguida,

trataremos do universo imaginário que está presente de maneira quase tangível para os

nativos da região Norte (Cap.1). Procuraremos mostrar a relevância de Waldemar

Henrique para o Brasil e para nossa região (Cap.2), fazendo um resumo de sua biografia.

Por fim, faremos a análise das canções escolhidas (Cap.3), valendo-nos, para tais análises,

do Referencial de Análise presente Dissertação de Mestrado do Professor Marco Antônio

Ramos1, como base para o levantamento de dados. Após isso, selecionamos as informações

pertinentes que, mescladas à nossa própria experiência como intérprete, levaram-nos às

conclusões que apresentamos nos textos deste trabalho.

S
entimos segurança e interesse crescente por nosso objeto de estudo, que

consolida as bases de nossa práxis. Parece-nos importante registrar nossa

visão sobre a interpretação das canções amazônicas para incentivar o estudo da prática

interpretativa e divulgar as particularidades da nossa música regional. Assim os novos

executantes e os interessados na obra de Waldemar Henrique, poderam encontrar subsídios

para escolher seu caminho interpretativo com coerência. Foi esse motivo que nos levou a

irecionar nossa pesquisa para as questões interpretativas, uma vez que identificamos

grande carência de material relativo à execução da música regional da Amazônia.

1
Canto Coral: do repertório temático à construção do programa – ECA-USP (ver bibliografia).
XV

CAPÍTULO 1

MERGULHANDO NO

CONTEXTO AMAZÔNICO
XVI

1. O ISOLAMENTO

“Com esta fúria contínua das águas e dos ventos, que são
ordinariamente as brisas violentas, a costa deste estado não é praticamente
nunca navegada...”
Vieira, Padre Antônio – Relação da Missão da Serra de Ibiapaba

A Amazônia sofreu, durante muitos anos, um isolamento muito grande em

relação ao resto do Brasil. Isso não se deveu apenas à imensa distância que separa o Norte

e o Sul do nosso país. O maior obstáculo para essa aproximação foi a floresta tropical

Amazônica, que com sua vegetação cerrada, umidade e temperaturas muito altas cria, além

da dificuldade de acesso, um ambiente altamente endêmico, onde facilmente proliferam

doenças. A maioria dessas doenças é provocada pelos insetos, que se apresentam na selva

em grande variedade e quantidade, havendo muitos deles que sequer existem em outras

partes do mundo. Proliferam-se rapidamente no ambiente quente e úmido e muitos dos

males transmitidos por eles não têm cura até hoje. Já é muita coisa para justificar nossa

reclusão, mas existem outros fatores.

Este ambiente hostil poderia ser evitado, se fosse possível chegar facilmente de

barco às maiores cidades, que estão nas margens mais largas dos muitos rios da região.

Mas, parece que a natureza conspirou para preservar a mata, pois também aí temos

problemas. A navegação por mar, no sentido Pará-Maranhão, excetuando poucos meses do

ano, no inverno, é muito difícil. Segundo recentes pesquisas oceanográficas já foram

encontradas mais de 250 carcaças de navios naufragados entre 1536 e 1983, somente no

Parcel de Manoel Luís2. Outro rio de acesso, o rio Gurupi3, após percorrer 719 Km, era

navegável apenas na sua metade inferior, interceptado por 32 cachoeiras. Esse rio também

2
Localizado a 0o45’ de latitude e 44o15’ de longitude da costa Maranhense.
3
Rio que separa o Pará do Maranhão
XVII

era povoado em ambos os lados, por indígenas arredios e guerreiros4, outro obstáculo ao

acesso.

O rio Tocantins5 também não se consolidou como forma de penetração, pois

além de ter pedras e corredeiras em um grande trecho, teve sua navegação proibida no

início do séc. XVIII, quando se descobriu ouro nas suas nascentes e a coroa portuguesa

temia que o metal fosse vendido no norte a contrabandistas estrangeiros, ao invés de ser

enviado ao Rio de Janeiro. A navegação só foi reaberta no final do séc. XVIII, mas a

decadência da mineração na área arrefecera o interesse de penetração por esse rio.

No tocante à ocupação da Amazônia Andina, na encosta leste, foi muito

rarefeita. A mata, sempre muito densa, além do alto índice pluviométrico, dos insetos, da

umidade excessiva, das pragas e epidemias, também contava com a proteção dos índios

Jívaros, caçadores de cabeça, o que desencorajou muito a penetração. A floresta tornou-se

assim um elo de separação mais do que de ligação até para os seus próprios extremos.

Como exemplo da gravidade do fator isolamento para a unidade do Norte e Sul

desse Brasil tão grande, informamos que a notícia do fim da Guerra do Paraguai só chegou

ao Pará um ano após o acontecimento.

A Amazônia desenvolveu-se e cresceu praticamente sem que o resto do Brasil

soubesse disso. Tínhamos mais contato com Portugal, do que com o resto do nosso país,

pois a colônia portuguesa é muito grande aqui. Construímos teatros de ópera na época de

ouro da borracha6, para onde as companhias vinham diretamente da Europa para se

apresentarem apenas em Belém e Manaus, sem pensar em passar pelo Rio de Janeiro ou

São Paulo. Nossa arquitetura colonial, na parte antiga das cidades, herança dos

4
Tribos Urubús, Guajás, Amanagés e Gaviões.
5
Nasce em Goiás e corta o Pará no sentido sul-norte até desaguar próximo da foz do Amazonas.
6
A extração da borracha na Amazônia teve seu apogeu no séc. XIX, quando foram construídos os teatros
Amazonas (Manaus) e de Nossa Senhora da Paz (Belém).
XVIII

portugueses, ainda causa surpresa na maioria dos turistas, mesmo os brasileiros, que

esperam da Amazônia somente selva e animais exóticos.

O rompimento do isolamento da região Norte começou de maneira

economicamente limitada, com o desenvolvimento da aviação comercial no século XX e

de maneira mais ampla em 1961, com a construção da rodovia Belém-Brasília, que deu

início a uma nova era de industrialização, imigração e enriquecimento.


XIX

2. A Vida Ribeirinha

“Esse rio é minha rua!”

Barata, Paulo André – Poema

Apesar do rompimento do isolamento das grandes cidades da região amazônica,

existem muitos agrupamentos humanos (vilas, arraiais) que sofrem com o distanciamento

natural, fruto das condições geográficas. Estão localizados, em grande parte, nas margens

de rios e igarapés, mas também nos ramais7 da floresta. Nesses agrupamentos, vivem os

homens do campo da Amazônia: os caboclos ribeirinhos.

Os caboclos amazônicos são conhecidos regionalmente como cabôcos8, e são

resultantes da miscigenação básica do índio com o branco, onde o elemento nordestino se

fez muito presente. Também têm mistura com o elemento africano, pois os escravos

também participaram da ocupação do território. Os cabôcos constituem número muito

elevado da população regional e vivem no interior em condições simples. Suas casas são

de madeira e, quando localizadas à beira dos rios, palafitas. Seu grau de instrução é

mínimo: semianalfabetos e analfabetos, na maioria. A escolaridade, a assistência médica e

a infra-estrutura de transportes e comunicação são ainda insuficientes e de difícil controle

administrativo. O meio de transporte básico é o fluvial, e o cabôco o utiliza

incessantemente, pois precisa dele até para falar com um vizinho. Por causa disso, é muito

comum na região ver-se crianças menores de cinco anos manejando sozinhas e com

mestria as pequenas embarcações que pululam os rios. Tal fato não impressionaria tanto, se

os rios da região fossem córregos estreitos e mansos. Mas os rios amazônicos são muito

largos, profundos e cheios de correntezas, não sendo possível enxergar a olho nu os

7
Ramais – estradas rudimentares abertas a partir das grandes rodovias asfaltadas.
8
Cabôco: corruptela da palavra “caboclo”, que significa “vindo do mato”.
XX

contornos da margem oposta dos rios principais. É isso o que faz ser tão especial ver os

pequenos barcos a remo sendo manejados por mãos tão delicadas.

Sendo o elo de ligação entre o homem branco e o índio, o cabôco detém

profundos conhecimentos sobre a fauna e a flora regionais. Extrai da natureza farta seu

alimento e seus remédios. Muitos se mudam constantemente, por não possuírem uma terra

sua, vivendo quase sempre como posseiros e agregados. Na sua simplicidade e ignorância,

explicam os fatos da vida através do mundo imaginário. Os mitos e as lendas são para eles

fonte de sabedoria repassada para as gerações futuras através das narrativas orais,

conhecidas como “contos de cabôco”.

Vivendo na beira do rio, dentro da mata, ou na beira da estrada, esse homem

típico da Amazônia vive em paz com a floresta e seus perigos, resolvendo seus problemas

de sobrevivência, amparado pela fartura e pela facilidade climática. Isso lhe faz ser moroso

e muitas vezes privo de ambição. Para comer, muitos só precisam sentar no batente da

porta de casa e jogar a linha de pesca. A espera do peixe é o grande trabalho. Também,

muitas vezes, o cabôco não constrói quatro paredes na sua moradia, porque se um dos

lados não pega chuva – “para que gastar material?”. Por aí vai a linha de pensamento do

homem rural da Amazônia, que tem fama de preguiçoso, mas que na verdade é somente

fruto das benesses sem fim do seu habitat natural.

2.1. Hidrografia do Pará

Para exemplificação do quanto o rio é importante e presente na vida dos

habitantes da região Amazônica, basta dizer que remonta a aproximadamente 14 mil o

número de cursos d’água que banham a região Norte. Mostramos aqui apenas a rede fluvial
XXI

principal que banha o Pará. Lembramos que ligados a ela existem milhares de córregos,

igarapés, nascentes e braços de rio que não estão presentes nesse mapa.

Fig. 1 – Mapa do Pará – Rede hidrográfica principal


XXII

3. O UNIVERSO IMAGINÁRIO:
A SEGUNDA REALIDADE

3.1. A Presença Invisível

"Vogando no rio, treze horas – “Eu gosto desta solidão abundante do


rio. Nada me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio no pleno dia deserto. É
extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis
por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio”.
p. 76. Andrade, Mário de – “O Turista Aprendiz” – 2a ed. – São Paulo-
SP: Livraria Duas Cidades, 1983. 381 p. il.

Existe uma grande diferença que observamos no contato com o mundo

selvagem e o civilizado. Temos a companhia isoladora dos grandes centros urbanos, que

faz um homem se sentir “só na multidão”. E temos o estranho isolamento acompanhado da

mata.

É costume ouvir muitos relatos sobre a estranha sensação que envolve aqueles

que adentram nas matas. Sensação de “olhos que se voltam sobre nós”, de estarmos sendo

observados por estranhas presenças, por forças ocultas que estão à nossa volta, mas não se

deixam ver. É de se pensar que o romantismo e o excesso de imaginação sejam geradores

dessa impressão, mas é fato histórico que os imigrantes que vieram do sul do Brasil para o

sul do Pará, não suportam esse olhar constante. Tomam como primeira providência,

durante sua instalação, desmatar completamente muitos metros de floresta em volta de sua

nova morada. Não fazem isso com o intuito de plantar os gêneros de primeira necessidade,

ou coisa parecida, pois o solo é mantido varrido e a descoberto, para dificultar o

nascimento de qualquer vegetação. O importante para os recém–chegados é poder dormir e

viver sem a terrível impressão de que alguém os segue o tempo todo. É assim mesmo. É

marcante, impressionante.
XXIII

Como cantora lírica ligada ao “Projeto de Interiorização do Ensino da

Música”, da “Fundação Carlos Gomes” (Belém), já realizamos inúmeros recitais pelo

interior e já tivemos a oportunidade de sentir a mesma coisa. Muitas vezes, aquecendo a

voz perto do mato, do lado de fora dos locais onde nos apresentamos, tivemos a nítida

impressão de que alguém havia chegado, respirado, pisado nos galhos do chão ou estava

sorrateiramente nos espiando cantar. Nunca vimos ninguém. Os cabôcos nos disseram:

“Não ligue não, que é o mato”.

3.2. As Lendas e sua Função Social

As culturas: indígena, negra e branca se fundiram para formar a cultura

amazônica. Baseada em relações profundas do homem com a floresta, nela se fundem, em

alguns pontos, os três reinos da natureza. Temos homens que se transformam em animais,

como o bôto e plantas que reagem humanamente, como os tajás, que serão descritos mais

detalhadamente nas análises das canções. Existem até seres que são meio animais, meio

plantas, como o terrível bicho folharal, figura folclórica de monstro em forma de imenso

aglomerado de folhas, que caminha pela floresta e devora os que dele se aproximam,

envolvendo-os e sufocando-os com sua folhagem.

Esses personagens lendários, em um momento distante na história, saíram do

mundo imaginário e vieram participar do dia-a-dia do cabôco, ajudando-o a resolver

problemas sociais sérios da civilização e justificar as verdades e os fatos da vida para os

quais ele não tem explicação, ou com os quais tem forçosamente que conviver, pois fazem

parte de sua realidade. Talvez tenha sido a saída encontrada para estabelecer uma ordem

social para aqueles que viviam longe das autoridades e longe da lei, enfrentando situações

que exigem regularização legal como a adoção, as relações extraconjugais e seus frutos, o
XXIV

incesto, as uniões entre parentes próximos e toda a sorte de problemas de relacionamento

humano que se resolvem através de longos e complicados processos judiciais. Esses

problemas que poderiam trazer traumas e desajustes psicológicos para nós, filhos da cidade

grande, são por eles resolvidos com explicações fantásticas, que apaziguam os ânimos e

colocam todos os envolvidos em situações confortáveis perante a sociedade. Assim é que a

mãe que não possui filhos pede para criar o filho de uma parenta que tenha muitos e se

torna rna manha-nungára; aquele que não tem pai pode ser encantado, pois é filho do bôto

e assim sucessivamente.

É digno de nota que essas crendices não são usadas para resolver outras

questões além das que envolvem as relações humanas. Não se misturam as crenças com os

bens materiais, como as questões de terra, por exemplo. Esse universo imaginário foi

criado num tempo em que terra não era problema, pois havia muita e não pertencia a

ninguém, ou mesmo que pertencesse, ninguém a queria. As populações ribeirinhas até hoje

sofrem menos diretamente esse problema, pois vivem mais da pesca e da extração das

plantas da floresta, sendo suas plantações muito restritas e, em geral, de subsistência.

Hoje em dia, essas crenças estão fadadas a desaparecer, mas ainda se mantêm

vivas até na cidade grande e, enquanto o progresso não chega, o cabôco continua a ver

maravilha nas coisas.


XXV

CAPÍTULO 2

BIOGRAFIA DE

WALDEMAR HENRIQUE
XXVI

W aldemar Henrique da Costa Pereira nasceu em Belém do Pará, em 15

de fevereiro de 1905, na residência de seus pais: Thiago Joaquim

Pereira e Joana da Costa Pereira. Sua data natalícia é, por coincidência, a mesma do

aniversário de inauguração do Teatro da Paz 9, para o qual ele dedicaria no futuro 15 anos

de extremada dedicação. Um ano após seu nascimento ficou órfão de mãe, tendo seu pai

casado pela segunda vez com Estefânia Rosa da Costa, sua tia. Ela foi seu referencial de

mãe. Por ela teve grande apreço toda vida, chegando a compor para ela a canção “Manha

Nungára”, que quer dizer: mãe de criação (dialeto indígena).

Aos seis anos, foi levado para Portugal. Fez seu curso primário na cidade do

Porto e cedo adquiriu miopia, doença que fazia dele uma espécie de menino “leso”,

sempre a esbarrar em mesas e cadeiras. Zito, como era chamado na intimidade, retornou

a Belém aos doze anos, trazido pelos rumores da Primeira Guerra Mundial. Chegou

ansioso por voltar a sua terra, pois em Portugal teve de aprender a “sonhar, sofrer e

calar” 10.

Dono de uma inclinação musical precoce, Waldemar teve contra si a proibição

do pai, que lhe dizia - “Piano é para moça”. Então, escondido, punha-se a praticar no

piano Dorner de sua casa. Em 1918, ainda sem o conhecimento do pai, começou a ter

aulas de piano com a professora Sinhá Moura Palha, tia-avó de Fafá de Belém.

Posteriormente passou a estudar com a professora Ana Andrade. Foi iniciado em

composição e harmonia por Doris e Phillys Chase, duas jovens da sociedade paraense que

haviam estudado na Alemanha. Eram boas musicistas e o levaram a conhecer um vasto

repertório de canto e dança. Com elas, aprendeu a acompanhar ao piano, a transpor,

copiar e escrever as primeiras canções.

9
Teatro Nossa Senhora da Paz – construído em 1874, no período econômico da borracha, que fez do Norte a
região mais rica do Brasil. Foi erguido para receber as companhias de ópera que vinham da Europa
diretamente para Belém, Manaus e Recife.
10
Carta de Waldemar Henrique a Vicente Salles.Campina Grande (Paraíba), 17 de julho de 1974.
XXVII

Entre 1923 e 1924 divulgou suas primeiras composições, dentre as quais,

“Valsinha do Marajó” e “Minha Terra”. A segunda, composta quando tinha apenas

dezessete anos, seria seu maior sucesso nacional. Mais tarde conheceu Ettore Bòsio,

maestro italiano radicado em Belém, com quem estudou harmonia e composição e foi

incentivado a ingressar no Conservatório Carlos Gomes, o que fez em 1929. Passou a

estudar com as professoras Beatriz Simões e Filomena Brandão, além do próprio maestro

Bòsio. Além do piano, estudou violino, violão, canto, harmonia e composição.

Um fato importante marcou sua mocidade. Apesar da acentuada miopia, de

não enxergar nada sem óculos, conseguiu entrar para o exército como recruta e aderiu à
11
Revolta Tenentista de 1924 , chefiada no Pará por Assis de Vasconcelos. A derrota do

levante lançou o jovem Waldemar no porão imundo de um navio, onde padeceu como

prisioneiro dos militares legalistas, chegando até a pensar em suicídio. Foi expulso do
12
exército e solto na véspera do Círio de Nazaré , o que considerou uma bênção da

Virgem. Após isso, considerou a farda um equívoco e empregou-se no banco Moreira

Gomes.

Após esse fato, retomou sua vida normal, saindo aos sábados para tocar com o

violinista Mário Rocha, acompanhando-o ao piano nas tertúlias residenciais que faziam

da Belém de então, uma cidade alegre e festiva.

Em 1930, viajou para o Rio de Janeiro, onde, continuando seus estudos teve a

oportunidade de ver que suas primeiras composições despertavam o interesse de pessoas

que não pertenciam a sua região. Sentiu que poderia mudar o rumo de sua vida

transferindo-se para o Rio. Mesmo assim, ainda não foi desta vez que fixou residência no

Estado da Guanabara.

11
Revolta armada que fez parte do movimento nacional liderado pelos tenentes, em apoio às reformas de
Getúlio Vargas.
12
Círio de Nazaré – procissão centenária de Belém, considerada pelos paraenses a data mais importante do
calendário religioso, sendo comum se dizer que “o Círio é o Natal dos paraenses”.
XXVIII

Voltou a Belém em 1931, para assumir a direção artística da Rádio Clube do

Pará (PRC – 5) e, em 15 de agosto de 1933, promoveu a “Noite da Canção Paraense”, no

Palace Teatro, onde foram apresentadas suas obras para canto, piano e orquestra,

obtendo grande sucesso de público e de crítica.

Em outubro de 1933, Waldemar compôs a parte musical da revista teatral “Na

Casa da Viúva Costa”, com texto de Antônio Tavernard e Fernando de Castro e, em

novembro, mudou-se para o Rio de Janeiro com sua irmã e melhor intérprete, Mara, nome

artístico de Idália da Costa Pereira.

Sua sede de conhecimentos musicais o levou a buscar o que não tinha

conseguido realizar dentro dos muros do conservatório. Passou a freqüentar aulas estudar

particulares de regência no Rio. Infelizmente, sua miopia crescente tornou-se um sério

obstáculo a sua atuação como regente.

Assinou contrato de exclusividade com a Rádio Phillips em 1934 e apresentou-

se em recitais com Mara no Automóvel Clube, no Estúdio “Nicolas” e no Instituto

Nacional de Música. Teve suas canções amazônicas gravadas pela Victor, com Gastão

Formenti e, pela Odeon, com Jorge Fernandes. A cantora Alda Verona ganhou o “Prêmio

do Disco Victor” com sua canção “Exaltação”. Suas canções “Minha Terra” e “Meu

Último Luar” alcançaram os maiores recordes de venda em disco e suas obras foram

publicadas pelas editoras “Irmãos Vitale” e “Vicente Mangione”.

Também em 1934, escreveu letra e música para a peça infantil “O Sapo

Dourado”, a pedido de Hekel Tavares, mas a gravação trazia o nome do compositor como

Waldemar Pereira, que nunca foi seu nome artístico. Ainda nesse ano, ocorreu um fato

singular e histórico: Waldemar foi o primeiro compositor brasileiro a ter música

encomendada para o cinema. O filme “Maré Baixa”, do diretor Mário Peixoto não chegou

a ser rodado, mas o convite mereceu de Waldemar muito empenho e pesquisa em


XXIX

Mangaratiba, Angra dos Reis, Ilha Grande, Sepetiba e Restinga de Marambaia, onde o

compositor anotou suas impressões para compor os leitmotiv que deveriam apoiar as

cenas do filme.

Sua estada no Rio foi importante para o desenvolvimento de muitos artistas

jovens na época, como Dorival Caymmi e João Gilberto. Colocou muita música na pauta

para compositores que dela não entendiam o suficiente, como Joubert de Carvalho, Ary

barroso e Hekel Tavares. Em seus programas radiofônicos, sempre dava oportunidade a

principiantes, como Johnny Alf, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, Luizinho Eça, Ed

Lincoln entre outros. Indiretamente, também ajudou os calouros de rádio. Sobre seu

sucesso como compositor, disse certa vez Luís Gonzaga que, na fase do lançamento

nacional de “Minha Terra” na voz de Chico Viola, esse era o “hino” que todos os

calouros queriam cantar na busca da premiação.

Fez sua primeira excursão artística a São Paulo em 1935 e tornou-se amigo de

Mário de Andrade, que o orientou na harmonização de temas folclóricos. Voltou ao Rio e

continuou seus estudos de harmonia, contraponto e fuga com Newton Pádua e composição

com Oscar Lorenzo Fernandez.

Após uma audição realizada na casa de Vera Janacópulos, onde foi cantada a

canção “Tamba-Tajá”, dedicada à anfitriã, foi convidado por Barroso Neto para ser seu

último aluno de piano. Em seguida, assinou contrato com a Rádio Tupi e, ao final do ano,

realizou um concerto no Instituto Nacional de Música, também com sua irmã Mara.

Fez várias apresentações no Copacabana Palace, em 1936, e seu sucesso só era

suplantado por Carmem Miranda, A Pequena Notável. Suas apresentações não perdiam o

brilho diante de atrações internacionais, como os cancionistas franceses Maurice Chevalier

e Charles Trenet. Ainda nesse ano, realizou uma excursão ao Nordeste e ao Norte do
XXX

Brasil: Recife, Pará e Amazonas. Retornou em maio a Belém para nova apresentação no

Teatro da Paz..

De volta ao Rio, escreveu a canção tema do filme “Cidade Mulher”, que teve a

participação de Mara. Em junho, venceu o concurso musical “Melodias de Junho” - criado

pelo jornal “A Noite” - com a canção folclórica “Meu Boi Vai-se Embora”, conquistando o

prêmio de honra.

Escreveu e apresentou com Mara, Bando-da-Lua e ritmistas, a suíte folclórica

“Cena Dramática dos Congos”, durante o programa especial de comemoração do 1o

aniversário da Rádio Tupi. Obteve tal êxito, que o programa foi repetido em horário de

gala, ao mesmo tempo em que se apresentavam pela primeira vez no Brasil, os “Meninos

Cantores de Viena”.

Estudou estética e regência com Arthur Bossman durante os anos de 1937 e 38.

Nesse período, também compôs o tema musical da peça “Para Além da Vida”, do poeta

português Alberto Rebello de Almeida e foi convidado para ser Diretor de Arte do Círculo

de Alunos da Escola de Teatro do Rio de Janeiro. Para os alunos do Círculo escreveu a

peça “Prelúdio”, que não chegou a ser representada.

O duo Mara e Waldemar excursionou à Bahia em 1939 e, realizar além as

apresentações, Waldemar pesquisou temas folclóricos sob a orientação de Carlos

Chiacchio, dos irmãos José e Clarival Valadares, Silva Campos e do pai-de-santo

Joãozinho da Goméa. Ainda em 39, retornaram ao Rio de Janeiro e Mara casou-se com

Jayme Ferraz.

Waldemar lamentou o afastamento da intérprete querida, mas não parou sua


13
produção musical, apresentando-se com Ascenso Ferreira na ABI , em um recital

13
ABI – Associação Brasileira de Intérpretes – entidade que promovia eventos culturais.
XXXI

poético-musical. Após isso, seguiu para Belo Horizonte onde lançou o Quarteto Brasil,

grupo vocal que obteve grande sucesso.

Passou a apresentar-se com a então iniciante, mas talentosa Maria Lúcia Godoy e

levou sua suíte folclórica à Rádio Nacional, durante o programa do maestro Radamés

Gnattali, com o cantor Jorge Fernandes e orquestra.

Transferiu-se para São Paulo ainda em 39 e iniciou estudos de artes plásticas.

Ciceroneado por Mário de Andrade conheceu os ateliês de Brecheret, Bruno Giorgio, Anita

Malfatti, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Laurindo Galante e Di Cavalcanti.

Em 1940 já se relacionava com grandes nomes da nossa música como Guiomar

Novaes, Sousa Lima, Camargo Guarnieri, Antonieta Rudge, Magdalena Lébeis, Oswald de

Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Fez excursões

pelo interior de São Paulo acompanhando o cantor Antônio Marino Gouveia. Em

dezembro, despediu-se da capital paulista com um recital no Salão do “Esplanada Hotel”,

novamente com Mara.

Foi indicado por Villa-Lobos para apresentar-se com Mara em Buenos Aires em

um evento do governo brasileiro e tornou-se, a partir daí, grande amigo do consagrado

maestro, que se declarava admirador do seu trabalho e o indicou para ser seu assistente no

Conservatório de Canto Orfeônico, ao lado de Iberê Lemos. Infelizmente, Waldemar não

pôde assumir o cargo proposto por Villa-Lobos, devido ao baixo estipêndio oferecido pelo

governo, seguindo em julho de 1940 para Buenos Aires com Mara.

Obtendo sempre muito sucesso, Mara e Waldemar percorreram várias cidades,

agenciados pelo empresário Alfonso Weissman, do grupo Quesada-Hurok. O empresário,

entusiasmado com o sucesso da dupla, contratou a ambos para uma tournée pela América

Latina e EUA. Lastimavelmente, a Segunda Guerra Mundial não permitiu a realização

dessas viagens, mas o compositor continuou sua carreira fechando contrato editorial com a
XXXII

Ricordi e seguindo em excursão por Porto Alegre, Montevidéo, Florianópolis, Curitiba e

São Paulo. Também se apresentou nas temporadas dos cassinos de Santos, Poços de Caldas

e Pampulha (Belo Horizonte).

Passou a dar aulas de solfejo e piano no Rio de Janeiro e fez programas de rádio

para emissoras locais. Ficou no Rio até 1943, quando foi nomeado diretor da divisão de

cultura artística do Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo do Pará (DEIP).

Promoveu recitais e concertos no Teatro da Paz. O falecimento de um ente querido

motivou-o a retornar ao Rio de Janeiro.

De volta ao Rio, fundou, juntamente com outros artistas, a Sociedade Brasileira

de Autores, Compositores e Editores de Música (SBACEM), cujo presidente eleito foi Ary

Barroso. Waldemar também se dedicou à pesquisa de frevos e maracatus, viajando para

Recife com esse fim.

Quando Waldemar voltou a apresentar suas composições com Mara no auditório

da ABI em 1948, a imprensa carioca classificou o evento como um dos três maiores

acontecimentos artísticos do ano, que foram: a estréia da peça “Madalena”, de Heitor

Villa-Lobos, na Broadway; a volta triunfal de Waldemar Henrique e Mara e a exposição

individual de Faiga Ostrower.

Em 1949, o governador do Pará ofereceu a Waldemar a direção do Conservatório

Carlos Gomes, mas o compositor recusou o oferecimento, pois havia recebido um convite

do governo português para se apresentar com Mara em Portugal. Assim sendo, o Itamaraty

oficializou uma excursão do duo pela Europa. Em Portugal, foram considerados

“verdadeiros embaixadores da canção brasileira”, segundo artigo do Diário Popular de

Lisboa14. Apresentaram-se em Lisboa e no Porto.

14
Citado no livro “Waldemar Henrique: o Canto da Amazônia”, de Cláver Filho.
XXXIII

Em Madri, além da apresentação, receberam homenagem, no dia 17 de junho,

com recepção e diploma assinado por S.M. a Princesa da Baviera, os Infantes de Espanha,

D. Luís da Baviera y Bourbon, José da Baviera, os compositores Muñoz Molleda e Alfredo

Romero, a cantora Lola de Aragon, a harpista Lea Bach, os pianistas Gonzallo Soriano e

Javier Afonso e os críticos Regino Sainz de la Maza e Espinós Orlando – “A los grandes

artistas cuyo recuerdo quedará imborrable, como testimonio de admiración por su fino arte

y sua simpatia”15.

Em Paris, o recital foi patrocinado pela UNESCO. A ele compareceram Pierre

Scize, diretor do jornal “Le Figaro”, o compositor Darius Milhaud, a cantora Madalena

Gray e os críticos Raymond Charpentier e Wladimir Janklewitch.

Retornando da Europa, o duo preparou uma longa turnê pelo Brasil, que iniciou

em 29 de abril de 1951. A turnê começou no Amapá e foi para Belém (Teatro da Paz), São

Luís (Teatro Arthur Azevedo), Fortaleza (Teatro José de Alencar), Natal (Teatro Alberto

Maranhão) e Recife, onde o duo participou da programação inaugural da Rádio

Tamandaré.

Waldemar voltou ao Rio de Janeiro e foi contratado para reger a orquestra da

Companhia Teatral Folclórica Brasiliana e partiu com ela para Buenos Aires, onde se

apresentou no Teatro Astral, dia 19 de outubro. Em novembro, seguiram para Montevidéo

(Uruguai) e se apresentaram – ele e Mara – no Teatro Artigas e na Faculdade de

Humanidade del Uruguay, para estudantes de folclore.

Foi nomeado para a Rádio Roquette Pinto em 1952 e não tardou a assumir a

direção do setor de música orquestral, onde organizou e produziu diversos programas.

Mais tarde, a convite de Murilo Miranda, transferiu-se para o departamento de cultura,

onde promoveu conferências, concursos e festivais de música brasileira.

15
Citado no livro “Waldemar Henrique: o Canto da Amazônia”, de Cláver Filho.
XXXIV

Em 1954, excursionou com o cantor Jorge Fernandes em missão do Itamaraty. O

duo apresentou-se no Teatro Solis, em Montevidéo (Uruguai), no Paraguai (Teatro

Municipal de Assunción) e em Buenos Aires e Rosário (Argentina). O suicídio do então

presidente Vargas interrompeu a turnê do duo, que retornou ao Rio de janeiro.

Waldemar voltou à Europa novamente em 1955, em missão pelo Itamaraty. Teve

como intérprete e discípula a cantora Maria D’Apparecida e, sob o patrocínio das

embaixadas locais, o duo apresentou-se em Lisboa, Madri e Paris. No Teatro Monumental

de Lisboa, participaram de um concerto beneficente promovido por S.A. Infanta D. Maria

Adelaide de Bragança e foram ouvidos pelo rei Humberto de Savoia, pelos reis da

Bulgária, príncipes da França e Espanha, condes de Paris e Barcelona e todo o corpo

diplomático sediado naquela capital.

Em Paris, Waldemar gravou suas canções com as empresas fonográficas Decca

(com Maria D’Apparecida) e Chants du Monde (com Alice Ribeiro). O inverno rigoroso de

1955 fez com que Waldemar declinasse do convite para apresentar-se em Londres e

retornasse para o Brasil, onde retomou suas atividades na Rádio Roquette Pinto.

Em 1958, ganhou a medalha de bronze “Jornal do Comércio” (Rio), com a

melodia-tema da peça de João Cabral de Melo Neto “Morte e Vida Severina”. Ainda nesse

ano, a peça também foi encenada em Recife, para onde Waldemar seguiu a fim de orientar

os ensaios.

Também em 1958, foi indicado por Radamés Gnattali para ocupar a cadeira nº 49

da Academia de Música Popular do Rio de Janeiro e foi considerado pela folclorista

Mariza Lira como “um dos melhores compositores populares e, quiçá, o melhor

compositor regional”16.

16
Diário de Notícias, Rio, 27 de Julho de 1958.
XXXV

Como reconhecimento por seu trabalho, recebeu, no ano seguinte, a medalha

“Roquette Pinto”. Em 1966, acompanhou a cantora Nísia Jovita em recitais no Rio de

Janeiro e Petrópolis, com programa de música brasileira e composições suas, passando a

colaborar com Mariza Lira num programa de folclore da rádio Roquette Pinto.

Waldemar escreveu nove números musicais para a peça de Martins Pena “O

Namorador”, que estreou em Belém em 1961. Ainda nesse ano, teve algumas obras suas

cantadas em Buenos Aires, durante uma conferência-concerto sobre música brasileira.

Passou dois anos em Belém, de 1962 a 1964, contratado pela Universidade Federal do

Pará para trabalhar com o Coral Ettore Bòsio, tendo se apresentado duas vezes com o

coral no auditório da SAI17.

Em 1963, Waldemar apresentou suas composições em recital no salão do Hotel

Nacional de Brasília, a convite de Paschoal Carlos Magno, do Ministério da Educação

e Cultura. Teve como intérpretes Vanda Oiticica e Roberto Galeno.

Sempre requisitado Waldemar partiu para Sergipe em janeiro de 1964, a chamado do

governador Seixas Dória, para organizar um coral. Em março desse ano, já havia

retornado ao Rio de Janeiro e, como a Revolução o inquietava, decidiu voltar a Belém.

Escreveu para Augusto Meira Filho, manifestando este seu desejo. Nesse ínterim,

Murillo Miranda o convidou a transferir-se da Rádio Roquette Pinto para o Teatro

Municipal. Sem respostas de Belém, Waldemar aceitou a oferta e foi para o Teatro em

abril de 1965. Recebeu a medalha “Carlos Gomes”, honraria do Teatro Municipal e

em setembro desse ano recebeu convite do governo do Pará para assumir a

coordenação do Serviço de Teatro da Universidade Federal do Pará, podendo,

finalmente voltar à sua cidade natal.

SAI – Sociedade Artística Internacional – instituição sem fins lucrativos que organizava eventos musicais.
17

Era presidida na época pelo Dr. Augusto Meira.


XXXVI

Recebido de braços abertos, foi agraciado pela prefeitura com a “Medalha

Comemorativa dos 350 Anos de Belém”. Iniciou um trabalho junto ao grupo de teatro

da UFPA, que ganharia muitos prêmios pelo Brasil e, em setembro desse ano, foi

nomeado diretor do Teatro da Paz.

Em 1967, viajou a convite do Departamento de Relações Exteriores dos Estados Unidos

para conhecer algumas universidades americanas, entre elas Tulane University,

Juilliard, Stanford University e Columbia University, tendo encontrado os amigos

Eleazar de Carvalho, Darius Millhaud e Henryk Szering.

De volta ao Brasil, presidiu em 1968 o júri do I Concurso de Música Popular da Casa

da Juventude. Também iniciou o trabalho de composição da trilha sonora dom filme

“Um Diamante e Cinco Balas”, do cineasta paraense Líbero Luxardo e recebeu a

Medalha “Olavo Bilac”, da SECDET, por sua luta para reestruturar o Teatro da Paz.

Em 1969, excursionou com o Coral Ettore Bósio pelo nordeste, apresentando-se sempre

com sucesso. Recebeu as premiações “Palma Universitária” da UFPA e a “Medalha

Comemorativa do 20o Aniversário da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e

Atuáreis do Pará”. Teve também algumas de suas composições incluídas no LP “O

Canto da Amazônia”, lançado pelo Museu da Imagem e do Som do Pará.

O ano de 1970 foi marcante e movimentado para o compositor. Participou da comissão

julgadora do concurso de pintura promovido pelo Banco Lar Brasileiro, participou do

“VII Festival do Folclore”, em Brasília, realizando palestra com o tema “O Folclore

na Música Brasileira”, a convite do Departamento de Turismo do Distrito Federal,

presidiu o 1o. Festival de Música Popular do Baixo Amazonas e foi ao Rio de janeiro

para a apresentação da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará no Festival

de Teatro de Estudantes de Arcozelo, promovido por Paschoal Carlos Magno. Recebeu

as medalhas comemorativas do cinqüentenário da “Faculdade de Medicina do Pará” e


XXXVII

da “Escola de Química do Pará”, medalha “Paulino de Brito” (Conselho Estadual de

Cultura) e medalha “Silvio Romero” (Governo da Guanabara), além do “Cartão de

Prata” oferecido pelo Conservatório Carlos Gomes por sua conferência intitulada

“Por que Beethoven?”, durante as apresentações do Ciclo Beethoveniano.

Em segunda participação no Festival de Teatro de Arcozelo (Rio), em 1971, conquistou

12 prêmios com a peça de Jorge Andrade “Vereda da Salvação”, encenada pela Escola

de Teatro da UFPA, com música de sua autoria. Em agosto desse ano, pronunciou

conferência sobre “O Fascínio do Bôto no Folclore Amazônico” em Brasília, durante o

curso de Folclore realizado pelo DETUR. Em novembro, excursionou com o Coral

Ettore Bòsio ao Rio de janeiro, tendo sido entrevistado pelo maestro Isaac

Karabtchewsky no seu programa sobre música na TV Globo, gravado na Sala Cecília

Meirelles.

Voltou a Portugal em 1972, atendendo ao convite do embaixador Antônio da Gama e

Silva, para realizar dois recitais com suas composições no Palácio da Foz. Teve como

intérpretes Tereza da Silva Carvalho, Ana Maria Martins e Terezinha Reis. A viagem

foi patrocinada pelo Itamaraty, pela UFPA e pela Fundação Cultural do Estado do

Pará.

Retornando a Belém, retomou suas atividades na coordenação do Serviço de

Teatro da UFPA, e na direção do Teatro da Paz. Canções de sua autoria foram gravadas no

Brasil e no exterior: França, Estados Unidos, União Soviética, Argentina e Inglaterra (BBC

de Londres). Foi inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil como compositor e professor de

piano e matérias complementares. Manteve também contratos editoriais com Esteban

Mangione, Irmãos Vitale e Ricordi Americana.


XXXVIII

Foi designado pelo Governo do Pará como representante do Estado na reunião

convocada pelo ministro de Educação e Cultura, para tratar dos assuntos relativos ao VII

Congresso Brasileiro de Folclore e do 1o. Festival Nacional de Folclore.

Waldemar completou 50 anos de vida artística em 1973 e foi largamente

homenageado. Entre essas homenagens, o Diploma de Honra ao Mérito, conferido pela

Câmara Municipal de Belém, em reconhecimento pelo seu trabalho. Foi nesse ano que teve

início o movimento para que as autoridades locais investissem na gravação de um LP com

as obras do maestro. Pena que tal fato só tenha vindo a se concretizar em 1976. Mas a vida

musical de Waldemar não parou nem por essa demora, nem pelo seu problema de visão,

que piorava a cada dia. Sempre envolvido com o teatro, levou o Grupo de Teatro da UFPA

a participar de dois festivais. No I Festival de Teatro Amador de Goiânia, obteve o prêmio

de “Melhor Música” pela partitura de “Coronel Macambira”, e no 1º Festival Nacional de

Teatro Universitário de Campina Grande, entre outros prêmios, novamente “Melhor

Música” pelas melodias compostas para a peça “A Incelença”. Também teve o prazer de

ver sua canção mais famosa, “Minha terra”, ser cantada pelo Coral Acadêmico XI de

Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de São Paulo para o presidente

Médici, no Palácio do Planalto, em Brasília. Por essa época o maestro contava com a visão

de apenas um dos olhos e, mesmo assim, com o auxílio de grossa lente.

No ano seguinte, 1974, mais premiações esperavam pelo maestro Waldemar.

Recebeu as medalhas: “Professor Augusto Meira” e do “Sesquicentenário da Adesão do

Pará à Independência do Brasil”, ambas concedidas pelo Conselho Estadual de Cultura.

Também foi agraciado com a Comenda e Troféu “Personalidades” – 74, oferecida pelo

jornal “O Liberal”.

Deixou a coordenação do Serviço de teatro da UFPA em 1975, mantendo-se

apenas como diretor do Teatro da Paz. Passou a lecionar no Centro de Letras e Artes da
XXXIX

UFPA e a fazer parte da tesouraria do Conselho Regional da Ordem dos Músicos do Brasil,

do qual fora presidente em exercício anterior. Concedeu uma entrevista sobre sua vida e

obra ao jornal “A Província do Pará”. Essa entrevista foi fixada nos anais da Assembléia

Legislativa, por proposta do deputado Antônio Teixeira. Também em 1975, uma dura

notícia entristeceu Waldemar: morreu no Rio de Janeiro, Idália Mara da Costa Pereira, sua

irmã e companheira de muitos anos de carreira.

Dedicou-se de modo crescente ao Teatro da Paz, a ponto de transformá-lo em

moradia para poder tomar conta do prédio durante a noite, pois as autoridades não

reconheciam a necessidade de vigilância constante de um patrimônio tão importante para o

Estado.

Em março de 1976, foi finalmente lançado o LP esperado desde 1972. O LP

intitulado “Canções de Waldemar Henrique” fez parte das comemorações do 1o ano de

governo de Aloysio Chaves e teve na voz de Maria Helena Coelho Cardoso uma

interpretação muito sensível e fiel.

Em maio do mesmo ano, foi homenageado no Teatro Amazonas (Manaus), por

ocasião do lançamento do LP “Tamba-Tajá”, da cantora Fafá de Belém, que cantava em

uma das faixas do disco uma das canções preferidas do maestro. Ainda em maio, foi

designado pelo Governador do Pará como membro do Conselho Estadual de Cultura.

Participou do II Encontro Nacional de Compositores da Fundação Cultural do Distrito

Federal e do III Encontro de Artes da UFPA. Também tomou posse na Academia Paraense

de Letras, ocupando a cadeira cujo titular foi Domingos Antônio Rayol, o Barão de

Guajará, sendo recebido com um belo e detalhadíssimo discurso proferido pelo acadêmico

Augusto Meira Filho.

Apesar de sua produtividade já não ser mais a mesma devido ao problema da

visão, participou, em 1977, do I Simpósio Internacional de Música Contemporânea, em


XL

São Bernardo do Campo, e do III Encontro Nacional de Compositores da Fundação

Cultural do Distrito Federal.

O ano de 1978 trouxe ao maestro grandes alegrias e uma grande tristeza. A

EMBRAFILME divulgou um documentário sobre sua vida e obra, feito no ano anterior e

foi convidado para a entrega da “Coruja de Ouro”, em São Paulo, preparando para essa

ocasião um recital de obras suas com a cantora Maria Lúcia Godoy. Mas o ano foi marcado

pelo imperdoável esquecimento do governo paraense por ocasião das comemorações do

centenário do Teatro da Paz. A placa comemorativa do centenário não mencionava o nome

do seu abnegado diretor. A movimentação de protestos e críticas foi enorme e a correção

da injusta omissão da parte do Governo foi feita com a nomeação do mais novo teatro da

cidade na época como “Teatro Experimental Waldemar Henrique”. O Teatro, situado no

belo prédio da antiga Caixa Econômica Federal, foi reformado para dar lugar a atividades

culturais. Apesar da justa homenagem, os artistas e intelectuais paraenses não perdoaram a

falha do governo e providenciaram a confecção de outra placa com os dizeres: “Ao Teatro

da Paz pelo seu 1º Centenário e ao seu ilustre Diretor Maestro Waldemar Henrique esta

Homenagem do Povo do Pará, 15-2-1978”. Essa placa foi colocada ao lado da placa

comemorativa confeccionada pelo Governo.

Waldemar deixou a direção do Teatro da Paz em 1980. A evolução do seu

problema de visão já não lhe permitia mais trabalhar. Seu campo visual se reduziu a um

pequeno orifício por onde, dizia ele, “com meus óculos posso enxergar tudo com perfeição,

mas é um campo de visão tão pequeno que me dificulta toda e qualquer atividade que

dependa da vista”18. A idade avançada já não lhe permitia a atividade que tanto o

estimulava. Ainda foi alvo de grandes homenagens em vida, como o desfile, em 1987,

18
Depoimento que nos foi feito em uma conversa particular nos bastidores do Teatro da Paz.
XLI

como destaque da escola de samba “Império do Samba Quem São Eles”, escola de cuja ala

de compositores fazia parte desde 1974. Contudo, sua saúde claudicava.

Tantas homenagens, “imortalidades” e fama não lhe renderam fortuna alguma.

Waldemar sempre teve vida modesta. O afastamento do trabalho, a dificuldade de visão

e outros pequenos males da velhice minaram pouco a pouco a saúde do “cantor da

Amazônia”, que faleceu em Belém, no dia 27 de março de 1994, Dia Mundial do

Teatro.

Seu corpo foi velado no hall do Teatro da Paz. Durante o velório, vários artistas

paraenses, entre os quais tivemos a honra de estar, prestaram-lhe homenagens cantando

suas músicas. Momento inesquecível para quem dele participou, esse último recital na

presença do maestro reuniu lágrimas e música em forma de prece. Seu corpo foi levado por

um caminhão do Corpo de Bombeiros e desfilou pelo centro da cidade, antes de se dirigir

para o cemitério de Santa Isabel, onde foi enterrado. No trajeto, o povo pelas ruas parava e

levantava as mãos, num último adeus. Muitos carros seguiam atrás, buzinando em coro

com a sirene dos bombeiros. Ao chegar ao cemitério, amigos, artistas, familiares,

jornalistas e o povo em geral seguiam o cortejo fúnebre, sempre cantando suas canções.

Sempre amado pelo público e pelos intérpretes eruditos e populares, Waldemar

Henrique escreveu seu nome na história da música do Pará e do Brasil, com seu talento,

simplicidade, doçura e sua dedicação integral à música, com a qual se declarava “casado”.
XLII

CAPÍTULO 3

ANÁLISE DAS CANÇÕES


XLIII

1. ASPECTOS GERAIS

A) SOBRE A APRESENTAÇÃO DAS ANÁLISES

Achamos necessário narrar cada uma das lendas abordadas pelas canções antes

de apresentarmos o texto e a análise. Nosso intuito é o de fornecer informações

importantes a quem não conhece as histórias, introduzindo o leitor no entendimento do

contexto poético sobre o qual foi concebida cada peça. Também comentaremos cada lenda,

acrescentando mais alguns dados que nos pareceram importantes para esse entendimento

preparatório.

B) SOBRE A ABORDAGEM DO TEXTO

Apresentaremos os textos sempre com a ortografia original das edições

escolhidas para este trabalho.

A análise do texto será feita do ponto de vista do seu teor regional e do valor

intrínseco do seu conteúdo semântico para sociedade a qual se reporta. Dessa maneira

informamos sobre a importância da mensagem para as pessoas que vivem, ou viveram

aquela realidade. Esse conhecimento é fundamental para nós, intérpretes, pois nos ajuda a

imprimir força dramática ao que cantamos. É assim que, para interpretar uma canção que

fala do suicídio romântico, por exemplo, devemos nos inteirar da força expressiva que essa

idéia tinha na sociedade européia do séc. XVIII pois, para os nossos dias, ela é absurda.

Sem essa informação, não conseguiremos ser fiéis à nossa arte, nem conseguiremos tocar o

público atual, convencendo-o de que essa idéia é muito forte e verdadeira para a

“personagem” que encarnamos durante nossa atuação.


XLIV

Se o intérprete não convencer o público quanto à verdade dramática da sua

mensagem, o exercício emocional que surge do envolvimento do público com a obra de

arte não se dará. Sem carga emocional que baste para a realização desse processo, esvai-se

o sentido da arte.

C) SOBRE O FOCO ANALÍTICO

A análise das peças será sempre voltada para a interpretação. Cada item

mencionado será correlacionado com suas implicações interpretativas, pois esse é o foco

central do nosso trabalho.

As canções que iremos analisar são sete canções sobre temas do imaginário

amazônico. Todas elas têm tema e arranjo do próprio compositor e foram escritas

originalmente para canto e piano. São elas:

1. “Foi Bôto, Sinhá”!

2. “Cobra Grande”

3. “Tamba-Tajá”

4. “Matintaperêra.

5. “Uirapuru”

6. “Curupira”

7. “Manha-Nungára”

Dessas canções, apenas a última não trata de uma lenda específica, pois Manha-

Nungára significa simplesmente “mãe adotiva” na língua indígena. A canção fala sobre a

lenda do bôto, já retratada anteriormente, mas com abordagem completamente diferente e

com ênfase para o papel dessa figura muito forte na região Norte do Brasil.
XLV

D) SOBRE AS EDIÇÕES

As canções aqui analisadas, com exceção de “Matintaperêra”, têm suas

partituras retiradas da última edição da obra de Waldemar Henrique feita em Belém. Esta

edição data de 1995, e foi feita pela Fundação Carlos Gomes e pela Imprensa Oficial do

Estado do Pará. As obras foram compiladas em um álbum intitulado “Canções”, que

contém 63 peças.

As obras do álbum “Canções” foram revisadas por Paulo José Campos de

Mello, Augusto Teixeira, Felipe Andrade Silva e Jorge Santos de Souza. Os revisores

tiveram acesso aos manuscritos originais. Foram mantidas as datas e dedicatórias dos

originais (quando havia) e os “erros” ortográficos intencionais, presentes em alguns versos

com a intenção de imitar o falar característico da região de onde os temas foram recolhidos

ou inspirados.

Algumas letras estavam colocadas sob a linha melódica do canto, sem, no

entanto, trazer a divisão silábica, tarefa realizada pelos revisores.

Não há comentários sobre as anotações de andamentos e expressão, o que nos

leva a crer que sejam do próprio autor, já que todas as informações foram retiradas dos

manuscritos originais.

A escrita tradicional da linha do canto, que mantém todas as notas separadas

entre si, foi substituída pela escrita instrumental moderna, tal como fazem grandes editoras

nacionais e internacionais como Marx Eschig (Paris) e Vitale (São Paulo).

Quanto à canção “Matintaperêra”, que não foi incluída na compilação paraense,

tem como editor E. S. Mangione (único autorizado), na edição “A Melodia” de São Paulo e
XLVI

Rio de Janeiro. Vem com o número de série: ESM1356, do ano de 1933 e tem escrita

tradicional na linha do canto.

E) SOBRE OS AUTORES DAS LETRAS

As sete canções selecionadas para este trabalho têm letras de Antônio

Tavernard, poeta paraense de grande expressão, e do próprio Waldemar Henrique.

Antônio Tavernard - escreveu as poesias que foram usadas por Waldemar

Henrique nas canções “Foi Bôto, Sinhá!” e “Matintaperêra”. O autor não as escreveu para

uma melodia já pronta. Waldemar Henrique as musicou posteriormente.

Tavernard é paraense nascido em 10/10/1908, em Icoaracy, na época vila e

hoje, bairro de Belém. Morreu em 02/05/1936, vítima de hanseníase. Foi grande amigo de

Waldemar Henrique. No final da vida, por causa da doença que o vitimou, passou a morar

isolado em um sítio da família chamado “Rancho Fundo”, mantendo sempre contato com o

compositor por telefone e cartas.

Waldemar Henrique - Waldemar Henrique escreveu muitas letras para suas

canções. Sua veia poética lhe valeu o reconhecimento dos literatos de Belém, que o

elegeram para a Academia Paraense de Letras. Muito consciencioso, os erros de prosódia

são muito raros na sua obra, quer os versos sejam seus ou não.

F) SOBRE NOSSA ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA

Pedimos aqui uma licença acadêmica para utilizar algumas palavras, expressões

e maneiras de dirigir o discurso, características da região Norte. Com isso, não

pretendemos alterar o cunho científico deste trabalho, mas tornar conhecida uma parte da
XLVII

maneira de ser do povo amazônico, que vive ainda meio na terra, meio no mundo

imaginário, na fronteira entre o homem civilizado e o índio. Quando nos reportarmos ao

amazônida típico, usaremos sempre o termo “cabôco”19, pois é assim que eles se

autodenominam e são conhecidos na região. Também trataremos o mamífero bôto como

peixe, pois é assim que ele é denominado pelas pessoas da região.

19
Cabôco – corruptela da palavra “caboclo”, que significa vindo do mato.
XLVIII

“FOI BÔTO, SINHÁ!”


XLIX
L

A) A LENDA DO BÔTO

Diz a lenda que, em noite de festa à beira do rio, o bôto se transforma em um

belo rapaz, que se veste todo de branco e usa sempre um chapéu, também branco, na

cabeça. Esse chapéu nunca é retirado, pois serve para esconder o orifício que o bôto,

enquanto peixe, tem na testa e usa para respirar. Não se sabe por que esse orifício não

desaparece na sua transformação quase perfeita. Bonito, elegante e bem vestido, é bom

dançador e bebedor. Conquista facilmente as moças jovens e bonitas, casadas ou não. Na

festa dança, conversa e namora. Depois, convida a namorada para um passeio, onde faz de

tudo para seduzi-la. Seu poder de sedução é incrível, hipnótico. Muitas de suas vítimas

foram “salvas” no último momento porque alguém gritou, fez barulho e as tirou do transe.

Após o envolvimento sensual, o bôto se atira no rio e volta à sua forma animal. A

namorada, encantada, fica triste. Muitas vezes adoece e finda por se atirar no rio à procura

do seu amado. As que resistem ao suicídio acabam por parir uma criança que pode ser

bôto, já nascer na forma de peixe ou ser normal. Muitas são as histórias de parteiras que

viram nascer peixes do ventre dessas jovens. Se nascer uma criança, a mãe a banha no rio

para ver se o filho se transforma ou não em bôto. Também há os casos de crianças que, se

colocadas no rio, já saem nadando.

O bôto também é atraído pelo cheiro da menstruação feminina, que ele percebe

dentro d’água, mesmo estando longe. Mulheres que se atrevem a andar de canoa durante o

período menstrual, ou se banhar no rio nesse estado, correm o risco de ter suas canoas

viradas e serem seduzidas dentro do rio.

Diz-se que, quando alguém consegue ferir o bôto enquanto o bicho está

transformado em homem, ele logo procura jogar-se no rio para refazer suas forças. Depois,

é só esperar, que ele vai aparecer em forma de peixe ferido ou morto nas redondezas.

Existem muitas histórias de gente que atirou ou feriu de morte, com faca ou arpão, o moço
LI

de branco e no dia seguinte achou um peixe morto, com os mesmos ferimentos que foram

feitos no dia anterior.

Independente da lenda, o bôto, enquanto está em sua forma animal, é um amigo

do homem e o protege sempre. Ajuda o náufrago a salvar-se, empurrando-o com o focinho

para a margem do rio; ampara as canoas em banzeiros20 e temporais; enxota cardumes para

as margens, a fim de que fiquem ao alcance dos pescadores e, zeloso, acompanha, as

embarcações em que viajem mulheres grávidas.

O bôto também tem sua versão feminina, mas essa não se transforma em

mulher. A sedução se dá dentro d’água, quando os homens vão se banhar. A “bôta”21 os

seduz até ser possuída, levando-os para o fundo do rio. Dizem que o órgão sexual da bôta

proporciona tanto prazer, que quando um homem é encontrado durante o ato sexual com o

animal, só sai de lá “a peso de chicote”.

A.1) Comentário

O bôto é um mamífero aquático da família dos delfinídeos, que na Amazônia é

encontrado nas cores branca, preta e cor-de-rosa. O mais comum é o bôto tucuxi, o preto.

Os cabôcos não matam nem arpoam esse peixe para comer. Sua pesca só se dá para fins de

magia. Para isso, dele são extraídos os olhos e os órgãos sexuais, que se assemelham aos

órgãos humanos e servem como amuleto ou atrativo para as questões amorosas. É claro

que tais apetrechos têm que ser preparados de acordo com os processos da pajelança

amazônica. Tanto os olhos quanto os órgãos sexuais são de um poder atrativo fantástico,

dizem os vendedores do mercado do Ver-o-Peso em Belém. Os olhos são vendidos secos e

devem ser usados dentro de um recipiente que permita que se enxergue através dele e

20
Banzeiros – movimento das águas, que provoca ondulações.
21
Bôta – termo usado pelos cabôcos para o bôto fêmea.
LII

assim, olhar para a pessoa que se quer seduzir. Quer seja homem, quer seja mulher, aquele

que for visto através do recipiente onde o olho esteja será magicamente atraído. Já o órgão

sexual, também seco, tem que ter um pedaço retirado e colocado dentro do vidro de

perfume usado diariamente. Se for homem, usar o sexo do bôto macho e se for mulher, o

do bôto fêmea. Nesse caso, todas as pessoas que sentirem o perfume serão atraídas.

Socialmente perfeito, o mito “bôto” se mantém vivo até hoje por resolver

inúmeros problemas da sociedade ribeirinha. Qualquer mulher, casada ou solteira que

engravide de um filho sem pai não é vista como pecadora, mas como vítima. O homem que

engravidou a virgem ou a mulher de outro não será jamais procurado e se houver um

marido, este não foi traído. E o mais especial de tudo: ninguém fala de violência sexual!

Nunca ouvimos ou lemos nada a respeito. Tudo é sempre muito bom, irresistível, mágico e

ainda mais: acontece nos cenários paradisíacos das margens maravilhosas dos rios. Quanta

sabedoria! Sendo assim, se uma filha ou esposa tiver uma noite de prazer irresistível, com

um homem maravilhoso, perder a virgindade e engravidar, não há crime social, não há

sentimento de culpa, não há criminoso, não existem traídos e, logo, não existe vergonha.

Todos os envolvidos no acontecido têm um álibi social perfeito: foram vítimas das forças

da natureza. É a sabedoria do cabôco, que aceita os fatos da vida, tão comuns e tão

humanos, como algo normal. Mágico, como é a atração dos corpos, mas normal.
LIII

B) TEXTO

“Foi Bôto, Sinhá!”


(Versos de Antônio Tavernard)

1. Tajá-Panema chorou no terreiro,


2. E a virgem morena fugiu no costeiro. (bis)

3. Foi Bôto, Sinhá...


4. Foi Bôto, Sinhô!
5. Que veio tentá
6. E a moça levou

7. No tar dansará,
8. Aquele doutô,
9. Foi Bôto, Sinhá...
10. Foi Bôto, Sinhô!

11.

12. Tajá-Panema se poz a chorá.


13. Quem tem filha moça é bom vigiá!(bis)

14. O Bôto não dorme


15. No fundo do rio
16. Seu dom é enorme
17. Quem quer que o viu
18. Que diga, que informe
19. Se lhe resistiu
20. O Bôto não dorme
21. No fundo do rio...

Obs: foi mantida a ortografia da edição.


LIV

B.1) Análise do texto

O texto é baseado em um mito fortíssimo da região amazônica. Inúmeras são as

histórias contadas com a veracidade característica dos cabôcos22. O Bôto é saída social

para as moças que engravidam sem casar. Desculpa fundamental que desvia a jovem do

papel de pecadora para o de vítima. O mito também serve muito bem para o rapaz que

engravidou a jovem, que não será procurado, nem identificado, nem responsabilizado.

Resolvendo tantos “desconfortos”, o Bôto se mantém como mito socialmente perfeito,

sendo talvez esta a razão que o mantém tão vivo até hoje.

O texto tem palavras de uso regional que precisam ser identificadas e ter seu

significado conhecido. São elas:

 Tajá-Panema (1º verso) – tajá: planta de folhas grandes e sem flor, muito

comum e variada na Amazônia; panema: palavra indígena para tristeza. O Tajá-

Panema é uma variedade de Tajá que “chora”, pois expele gotas de líquido de

suas folhas. É dito pelo povo da região que esse fenômeno se dá como

prenúncio de uma desgraça ou acontecimento triste.

 Costeiro (2º verso) – orla do rio.

 Tar (7º verso) – tal. Escrito com r no final para imitar a maneira cabôca de

falar. É comum a troca do l pelo r no final de palavras.

 Dansará (7º verso) – dançaral, local descampado, reservado às festas

ribeirinhas. É onde o Bôto costuma aparecer para seduzir as moças.

 Dom (15º verso) – referente ao poder de encantamento do Bôto e/ou ao

membro viril.

22
A UFPA tem um vasto trabalho de pesquisa e recolhimento dessas histórias (bibl. SIMÕES, Mª do
Socorro)
LV

O texto marca a presença de características do falar da região amazônica, o que

também deve ser observado pelo intérprete. São elas:

 Corte do r final das palavras: doutô e Sinhô;

 A troca do s pelo r na palavra: tar.

 Corte do r final dos verbos no infinitivo: tentá (tentar), chorá (chorar) e

vigiá (vigiar).

 Colocação do u no lugar do o em final de palavras: rio = riu, que rima com

resistiu.

 O uso do pronome pessoal reto tu.

Mais uma característica que devemos observar: o uso do s chiado. Na região

norte o s só é sibilante no começo de palavra. Ao final nunca, pois isso é para os falantes

da Amazônia uma característica de outras regiões. Ex: mas = mach, mesmo = mechmo,

lesma = lechma.

Não há variação de foco narrativo no texto. Mesmo assim, o contador da

história se dirige a pessoas diferentes (Sinhá e Sinhô), o que ajuda nos ajuda no

direcionamento cênico.

C) ASPECTOS MUSICAIS

A canção “Foi Bôto, Sinhá!” foi composta em 1933 e dura 2’25’’ ca.

Seu texto é completamente silábico. Foi escrita originalmente em Ré menor

(tonalidade muito utilizada pelo autor) e possui tessitura muito confortável: uma oitava a

partir do Ré central do piano23. Tecnicamente não oferece dificuldades de espécie alguma.

Esse conjunto de características facilita a boa pronúncia do cantor e, conseqüentemente,

23
Talvez por beneficiar o registro vocal de sua principal intérprete Idália da Costa Pereira, sua irmã, cujo
nome artístico era Mara.
LVI

uma melhor compreensão do texto por parte do ouvinte. Porém, essa facilidade exige mais

de nossa dicção, pois o texto precisa ser bem pronunciado, sem artificialismos que

dificultem sua compreensão. O texto é soberano quando se conta uma história e, no caso de

Waldemar Henrique, o texto é tratado com mestria, pois o compositor coloca toda a

partitura a seu serviço, como veremos a seguir. É preciso analisar o teor do texto e se

informar sobre sua contextualização regional para não corramos o risco de despir a canção

da sua dramaticidade.

A canção traz como tema uma lenda cuja importância para a sociedade

ribeirinha24 é, ainda hoje, altamente pertinente, porque ainda é viva. O conhecimento desse

fato é fundamental para a compreensão do caráter dramático da narração, o que pode nos

ajudar a escolher a linha de condução da música.

A canção não apresenta mudança de tonalidade no decorrer da obra, mas traz

alterações na mão direita (compassos: 9, 11, 13 e 15), que funcionam como cromatismos

expressivos:

24
Ver introdução e primeiro capítulo deste trabalho.
LVII

Essas alterações dão o clima de sensualidade e mistério que envolve o sumiço

da virgem (ver texto poético e lenda).

“Foi Bôto, Sinhá!” é uma canção estrófica dividida da seguinte forma:

 Introdução: o 1º compasso, repetido por três vezes, tem a função de preparar

o ouvinte para o discurso. Aqui, já devemos estar com nossa expressão facial preparada, e

podemos conduzir gestos e olhares para chamar a atenção do público para a gravidade da

narração que irá iniciar.

 Seção A: do compasso 4 ao 9 com repetição. Como toda repetição, pede

uma diferenciação de execução do trecho, que pode ser feita através da exploração das

nuances interpretativas, de timbre e/ou dinâmica, para levar o público a ouvir com

interesse a mesma mensagem em uma nova “roupagem”.

 Seção B: do compasso 9 (casa 2) ao compasso 17. A melodia se torna mais

sensual com a figuração rítmica mais fluida e com os cromatismos, e a canção atinge seu

clímax com a constatação do fato de que foi o Bôto quem seduziu e levou a moça. Essa

seção merece um destaque especial que pode ser dado pela dinâmica e que ponha em

relevo o clímax da narrativa, onde o compositor apresenta dramaticamente à constatação

da fatalidade.

 Coda – Casa 1: da metade do primeiro tempo do compasso 17 ao primeiro

tempo do compasso 21. Aí temos um Da Capo para que a segunda estrofe possa ser levada

com a melodia da seção A. Saímos lentamente do clímax e diminuímos a intensidade

sonora e a densidade interpretativa, para iniciar novamente a caminhada tensa da segunda

parte do discurso.

 Casa 2: do segundo tempo do compasso 21 ao fim. Aqui, não estamos mais

emitindo nenhum som, mas a interpretação continua e não podemos deixar morrer a

dramaticidade da nossa expressão, pois a canção ainda não acabou. Nossa postura e face
LVIII

devem manter-se dentro do contexto grave da peça, até que a última nota do piano

desapareça.

A estrutura da canção é muito simples, mas causa impressão marcante. Na linha

melódica, predominam os intervalos de 2ª e 3ª (compassos 2 ao 5, 7 ao 9, 11 ao 22),

aparecendo apenas um salto de 4ª no compasso 10 e um de 6ª no compasso 6.

Os intervalos menores se mantêm na maioria dos compassos, mas a tônica

insistente, constante, aparece em quase todos os acordes do baixo, com exceção do

segundo tempo dos compassos 3, 5 e 6 e do compasso 7:

Apesar da tônica não estar presente nesses momentos, a célula rítmica:

e sua variante:

que vemos nos compassos 2, 4, 8, 9, 11 e 13, não desaparecem em nenhum

momento. Essa “batida” é como um toque de tambor solene e constante, como o de uma

marcha fúnebre. Isso faz com que se crie a atmosfera pesada e densa da música, que nos

guiará na escolha do andamento, que não é indicado pelo compositor. Podemos considerar

essa repetição rítmica como um gesto musical descritivo.


LIX

A acentuação dessa “batida” está presente em muitas danças características da

região, notadamente na parte lenta da dança do “siriá”25. As acentuações da dança e a da

canção são iguais:

CANÇÃO

SIRIÁ

Isso marca a relação entre a tragédia e a sensualidade. Não podemos deixar

nenhum desses dois aspectos de lado. A marcha fúnebre aqui tem seu “gingado”, como

quase tudo na vida do cabôco.

A estrutura musical está em contato constante com a estrutura do texto. Os

elementos musicais reforçam nitidamente aspectos da poesia. Os silêncios (pausas) foram

usados sempre na sua função construtiva26. Têm função temporal na construção da célula

rítmica constante em toda a peça na mão esquerda e função rítmica ao anteceder a melodia

da mão direita do piano nos compassos de 9 a 15. Neste trecho (9 a 15), também

encontramos gestos musicais dramáticos integrados à narração dos fatos.

Na seção B, que funciona como refrão, o texto confirma a atuação do Bôto

sobre a jovem e as figuras se aceleram, aparecem as melodias na mão direita do piano,

marcando a sensualidade e o aumento de tensão. Essa tensão terminará por diluir-se com o

fatalismo das repetições constantes do intervalo de terça do compasso 17 até o fim, no

canto e no acompanhamento. Temos também a indicação de accelerando (compasso 17) e

rallentando (compasso 20), que nos reportam a nuances dessa tensão. O intérprete poderá

25
Dança sensual de origem negra, da cidade de Cametá. Foi assim denominada em alusão à atividade de
captura da grande quantidade de siris do lugar.
26
Fazendo parte de maneira indissociável do pensamento musical, ao nível da estrutura, dos procedimentos
de composição e de instrumentação.
LX

envolver completamente seu público se tirar partido desse jogo de tensões, traduzindo-o

para a sua linguagem vocal, gestual e timbrística.

Como já dissemos antes, o intérprete não deve deixar morrer a dramaticidade

até a última nota. O som decresce, mas o caráter permanece.

O compositor nos dá várias indicações de intensidade e alterações de

andamento na partitura. São elas:

 Crescendo (sinal) – compassos 1 e 13;

 Diminuendo (sinal) – compassos 1, 7, 9, 10, 11, 14, 15, 18, 19 e 23;

 Diminuindo (escrito em português) – compasso 7;

 Accelerando – compasso 17;

 Morrendo (escrito em português) – compassos 19 e 22;

 Rallentando – compasso 20.

 Fermata – compasso 24.

Temos também a indicação expressiva: Lamentoso, no compasso 10. Todas

essas indicações são coerentes, porque foram colocadas pelo compositor de acordo com a

tensão e relaxamento harmônicos e/ou do texto, auxiliando a música a caminhar de acordo

com o conteúdo do texto. Servem de base para a construção da nossa interpretação.


LXI

“COBRA GRANDE”
LXII
LXIII

A) A LENDA DA COBRA-GRANDE

A Cobra-Grande, Boiúna ou Boiaçu27 é uma cobra de proporções gigantescas.

Pode ser escura, ou, segundo alguns, ter as cores: vermelha, preta e amarela. Seus olhos,

fora da água, têm uma luz própria, forte e brilhante, que hipnotiza e paralisa suas vítimas e

desnorteia os navegantes. Do seu rastro fundo no chão surgem os rios e igarapés.

De apetite voraz, além de atacar em terra, faz virar canoas e até barcos grandes,

a fim de devorar seus passageiros e tripulantes. Matá-la atrai desgraça e ruína. Quem a vê

fica cego, quem a ouve fica surdo e quem a segue fica louco. Muitos que a viram voltaram

mudos, com febre e assombrados. Não existe nela nada da sensualidade de tantos outros

mitos. Não se transforma em homem ou mulher, não seduz, não ajuda. Ataca sempre para

matar.

A Cobra-Grande também é mágica. Transforma-se em navio, vapor ou canoa, e

quando sente a aproximação de outra embarcação, voa e desaparece. Pode fazer o barulho

de um motor de barco ou ser silenciosa como todo réptil. Nas águas, parece um imenso

tronco de árvore a boiar na superfície.

A.1) Comentário

A Boiúna é uma lenda que reina na Amazônia sem equivalente em outras

regiões. É baseada em fatos reais e vivos até hoje. A fauna amazônica é rica em espécies

de ofídios e muitos deles alcançam grandes proporções quando adultos. Dessa maneira, é

comum ainda hoje se ouvir histórias reais sobre pessoas e animais devorados inteiros por.

É comum nas fazendas de gado de beira de rio, muita rês desaparecer, ficando apenas a

cabeça que as cobras degolam por causa do chifre. Nos povoados ribeirinhos não há

27
Do Tupi: Mboi-cobra + una - preta, ou Mboi – cobra + açu - grande. Também escrita como está no verso
da canção: Boi-Úna, palavra composta.
LXIV

energia elétrica, não existem armas possantes, o meio de transporte é uma pequena canoa e

todas as construções são frágeis tramas de madeira, na maioria palafitas. É perfeitamente

compreensível o quanto a população se sente à mercê desses bichos. Assim nasceu o mito

da Boiuna ou Cobra-Grande.

Em várias cidades, vilas e povoados da Amazônia existe a crença de que os

mesmos foram erigidos sobre a morada de uma Cobra-Grande. Quando a cobra se mexe, a

cidade treme. Durante o tremor de terra de 12 de janeiro de 1970, em Belém, muitas

pessoas disseram que era a cobra que se revirava, pois é sabido que ela tem sua cabeça

enterrada sob o altar da Igreja do Carmo e a cauda sob a Igreja de Nossa Senhora de

Nazaré.

A cidade de Barcarena, próxima a Belém, tem como curiosa atração turística o

lugar conhecido como “Buraco da Cobra-Grande”, que não se sabe até hoje se é ou já foi

moradia da cobra, pois ninguém do lugar tem coragem para entrar e conferir. Mesmo

assim, é religiosamente mostrado a todos os turistas que visitam a cidade.


LXV

B) TEXTO

“Cobra-Grande”

(Letra de Waldemar Henrique)

1. Crédo! Cruz!

2. Lá vem a Cobra-Grande,

3. Lá vem a Boi-Una de prata!

4. A danada vem rente à beira do rio...

5. E o vento grita alto no meio da mata!

6. Crédo! Cruz!

7. Cunhantã te esconde

8. Lá vem a Cobra-Grande

9. Á-á...

10. Faz depressa uma oração

11. P’ra ela não te pegar

12. Á-á...

13. A floresta tremeu quando ela saiu...

14. Quem estava lá perto de medo fugiu

15. E a Boi-Una passou logo tão depressa,

16. Que somente o clarão foi que se viu...

17. Cunhantã te esconde, etc...

18. A noiva Cunhantã está dormindo medrosa,

19. Agarrada com força no punho da rêde,

20. E o luar faz mortalha em cima dela,


LXVI

21. Pela fresta quebrada da janela...

22. Êh Cobra-grande

23. Lá vai ela...

Obs: foi mantida a ortografia da edição.

B.1) Análise do Texto

O texto narra sinteticamente uma história dramática. A cobra-grande, boiúna ou

boiaçu, apesar de ser uma lenda, é um mito baseado em fatos reais, como já dissemos

anteriormente. O medo é, portanto, muito menos fantasioso do que se pensa e devemos

estar conscientes disso.

Esse medo está marcado desde o início nos versos 1 e 6 , quando o narrador

esconjura a cobra; no verso 7, quando exorta a moça a fugir; nos versos 10 e 11, quando o

narrador aconselha que seja pedida a proteção divina; no verso 14, que diz que todos

fugiram de medo; e, finalmente, no verso 17, pois a moça não dormia em paz. Não

podemos esquecer dos versos 9 e 12, que só trazem o á-á, aqui usada como expressão de

temor.

A sensação de impotência contra a fera é clara, pois até a “floresta tremeu

quando ela saiu” (verso 13) e o luar, que, clareando a figura da jovem, revela à cobra onde

está a presa, é considerado como uma mortalha. Não há como escapar da fatalidade.

A boi-úna tem muitas armas. É rápida (verso 15) e ainda pior: é silenciosa

(verso 16). O clarão mencionado nesse verso é a luz hipnótica que sai dos olhos da cobra e

que paralisa suas vítimas.

Apesar de ser muito regional como tema, há nos versos apenas duas palavras

regionais:

 Cunhantã (7º e 17º versos) – moça.


LXVII

 Boiúna (3º e 15º versos) – cobra-grande.

Como características do falar cabôco do Norte, temos:

 O uso corrente das palavras de origem indígena (cunhantã e boiúna);

 O uso da palavra composta: cobra-grande, para referimento à boiúna;

 O uso do pronome pessoal reto tu.

Há uma variação de foco narrativo no texto, quando o narrador se dirige à

cunhantã e nós podemos tirar partido dele para uma alteração de timbre, dinâmica ou

direcionamento corporal. Também podemos considerar que o narrador fala ora para si

mesmo, ora para um ouvinte da história (ex: verso 22). Cabe-nos decidir se isso será

relevante para nossa concepção cênica.

C) ASPECTOS MUSICAIS

A canção “Cobra-Grande”, de 1934, dura ca. de 2’ e traz indicação de

andamento Lento. Foi escrita em Ré menor e é harmonicamente mais elaborada que a

canção anterior. O compositor inicia a peça com um compasso introdutório no qual, apesar

da tônica sustentada na mão esquerda, temos uma poli-tonalidade na mão direita. O efeito

sonoro é interessante e mostra logo o caráter da peça, tendo o compositor escrito na

partitura misteriosamente (compasso 1) e com temôr (pausa que antecede a entrada do

canto). Essas indicações e a harmonia sugestiva nos dão uma boa base para a concepção

interpretativa. Temos ainda outras indicações do compositor sobre expressão:

 Brusco - compassos 3 e 25;

 Assombrado - compasso 11;

 Com expressão – compasso 14;


LXVIII

Todas as indicações são altamente coerentes com a mensagem do texto e o

compositor nos dá o direcionamento da interpretação.

Também contamos com muitas indicações de dinâmica, igualmente coerentes,

embora não haja dinâmica escrita no primeiro compasso:

 Crescendo (sinal)- compassos 2, 4, 9, 12, 15-16, 17 e 18.

 Decrescendo (sinal) – compassos 2, 5, 13 e 21 (duas vezes).

 Forte (sinal) – compassos 7, 9 e 25.

 Piano (sinal)- compasso 9.

O compositor também faz alterações significativas de andamento para explorar

ainda mais a expressividade da mensagem:

 Rallentando – compassos 9 e 20.

 Allargando - compassos 12 e 18.

 Fermatas - compassos 2, 6, 11, 14, 18, 20, 22, 23, 24, 25 e 26.

Temos assim, vários sinais expressivos a seguir. Essas indicações, aliadas aos

desvios do foco narrativo nos ajudam a explorar diferentes timbres vocais.

O texto, predominantemente silábico, apresenta outra ocasião boa para

diferenciação de timbre no compasso 12, que se repete quatro vezes na execução da obra e

tem uma pequena vocalização sobre duas notas com a vogal a. Não devemos fazê-la sem

pensar na sua ligação com o texto, pois é uma clara expressão de temor e uma

característica do falar do cabôco amazônico.

Encontramos um cromatismo no compasso 19, de ordem expressiva. Contudo,

nos compassos 1, 3 e 25, o uso da poli-tonalidade na mão direita do pianista nos dá

impressão cromática interessante. Um recurso que soa exótico aos nossos ouvidos e

transmite sensação de mistério e medo, como queria o compositor.


LXIX

A canção é estrófica e está assim dividida:

 Introdução: do compasso 1 à metade do 11. Aqui, o texto descreve a

paisagem e prepara o público para a cena dramática. O texto é claramente descritivo e

podemos tirar muito partido disso.

 Seção A: metade do compasso 11 à metade do compasso 14. O foco

narrativo se desvia para a vítima da cobra-grande, a cunhantã. Temos novamente a

oportunidade de redirecionar nossa gestualidade.

 Seção B: metade do compasso 14 até o 23. Outra mudança de foco

narrativo, com uma descrição grandiosa do cenário. A cada mudança de foco, novas

oportunidades de enriquecimento interpretativo se abrem para nós.

 Coda: compasso 24 ao 26. O intérprete não pode deixar de causar impacto

no público com esse final profundamente teatral, pensado e medido para amedrontar.

Toda a estrutura da obra mantém sabiamente um profundo contato com a

estrutura do texto. Cada seção da música corresponde a partes distintas do texto. O

compositor usa muitos elementos estruturais para reforçar esses aspectos. A poli-

tonalidade que é usada na introdução volta triunfal no último compasso; a harmonia se

adensa nos momentos de maior dramaticidade, como nos compassos 9, 10, e 19 a 24. Há

uma economia de saltos na linha do canto que facilita a clareza da narrativa. Muitas

fermatas ajudam a manter o clima de suspense e mistério da canção e os movimentos

bruscos que se seguem a elas, indicados pelo autor, dão um movimento assustador à

melodia.

A mencionada economia de saltos da linha melódica tem como salto máximo

uma 7ª, que acontece apenas uma vez (antes da coda). O salto de 6ª também acontece

apenas uma vez (compasso15 p/ 16). Já o de 5ª, cinco vezes (compassos 3 p/ 4, 6 p/ 7, 9 p/

10, 11 e 12 p/ 13. O restante todo é feito de saltos de 2ª, e 3ª.


LXX

A extensão é a mesma da canção anteriormente analisada “Foi Bôto, Sinhá!”.

Uma oitava a partir do Ré central do piano. Muito confortável e, desta vez, o compositor

reservou a nota mais aguda para o final. Que maravilha para nós, podermos executar, no

final de nossa performance uma nota que parecerá tão aguda, mas será feita com toda a

tranqüilidade! Eis aqui uma ótima oportunidade para a exibir de dotes vocais sem nenhum

perigo.

Não existem dificuldades de emissão, extensão, ritmo ou saltos. Mas é preciso

conhecer muito bem o teor do texto e “contar” a história com veemência e excelente

dicção, sem arroubos líricos que dificultem a compreensão do texto para dar o devido

caráter à peça. Existe uma íntima relação do texto com a maneira sincera e viva com que os

cabôcos contam suas histórias. Muitos gestos, olhares e direcionamento cênico podem ser

utilizados, sempre aliados ao bom gosto, é claro.

Nesta canção, o som e o silêncio têm igual importância. Existem muitos

silêncios preparatórios que, se respeitados, imprimem especial suspense à peça. Podemos

observá-los nos compassos 2, 4, 5 (com marcação especial na parte do piano), 19, 20 e 23 e

24 (após as fermatas). No compasso 10, a pausa tem função transformadora, pois auxilia o

discurso a sair da descrição da cena para a conjuração pessoal do interlocutor. Os sons

descrevem paisagem, emoções, sensações, e estão perfeitamente ligados à narrativa dos

fatos.
LXXI

“TAMBA-TAJÁ”
LXXII
LXXIII

A) A LENDA DO TAMBA-TAJÁ

Na tribo dos índios macuxys havia um índio que, por muito amar sua esposa,

levava-a sempre consigo para todo lugar, fosse para caçar, pescar ou lutar. Certa vez, o

índio teve que ir para a guerra, mas a esposa ficou doente, sem poder andar. Não querendo

separar-se de sua amada, ele fez um saco com folhas de bananeira, para poder carregá-la

nas costas. Durante o combate, sua amada foi ferida e morreu. O índio, desesperado de

amor, enterrou-se junto com ela. No lugar onde jaziam seus corpos, nasceu um tajá28

diferente, pois atrás de cada grande folha verde da planta nascia grudada uma pequena

folha de forma vaginal. Renasciam assim os amantes, unidos novamente para sempre.

A.1) Comentário

Inúmeros são os tipos de tajás e inúmeras são suas atribuições talismânicas. Sua

origem mitológica está ligada aos índios macuxys, que viviam ao sabor das hordas

inimigas, sem pouso certo. Até que o chefe Pakalamoka recebeu da Mãe-do-Mato os tajás

que davam saúde, paz, amor e felicidade e os levou para seu povo.

No caso do tamba-tajá, conta-se que quem o possuir tem assegurado o amor do

ser amado. Para isso, deve mantê-lo a salvo de todos os olhares ou, segundo alguns, expô-

lo o mais que possa, para ativar sua força mágica. Pode-se pedir a ele proteção para o

relacionamento e para a conquista.

Na Amazônia, para todos os males físicos ou morais existem remédios, banhos,

simpatias e perfumes conhecidos dos pajés e das curandeiras entendidas em ervas. Eles

são, ainda hoje, os médicos, as parteiras e os psicólogos dos lugares ainda sem acesso fácil.

28
Planta sem flor, com folhas em forma de coração. Contam em grande variedade na Amazônia. É conhecida
em outras regiões como tinhorão.
LXXIV

São hoje na região, o que eram as bruxas na Europa das idades Antiga e Média. Tendem a

extinguir-se com a chegada da civilização e o desmatamento crescente.


LXXV

B) TEXTO

“Tamba-Tajá”

(Versos de Waldemar Henrique)

1. Tamba-Tajá

2. Me faz feliz,

3. Que meu amor me queira bem...

4. Que seu amor seja só meu,

5. De mais ninguém,

6. Que seja meu,

7. Todinho meu,

8. De mais ninguém...

9. Tamba-Tajá,

10. Me faz feliz

11. Assim o índio carregou sua “macuxy”

12. Para o roçado, para a guerra, para a morte...

13. Assim carregue o nosso amor a boa sorte...

14. Tamba-Tajá...

15. Tamba-Tajá,

16. Me faz feliz,

17. Que mais ninguém possa beijar o que beijei,

18. Que mais ninguém escute aquilo que escutei

19. Nem possa olhar dentro dos olhos que olhei

20. Tamba-Tajá...

Obs: foi mantida a ortografia da edição.


LXXVI

B.1) Análise do Texto

O texto foi escrito especialmente para a peça e trata de um mito amazônico: o

Tajá. As plantas têm, na Amazônia poderes curativos e mágicos, conhecidos pelos pajés e

feiticeiros. O Tamba-Tajá tem a propriedade especial de proteger os amantes. É por isso

que a pessoa que canta se dirige a ele fazendo um pedido, uma espécie de prece pagã, que

não é menos desprovida de fé que uma prece religiosa, pois os cabôcos acreditam piamente

no poder das plantas. Desse modo, devemos revestir de uma certa religiosidade sua

execução.

Existem no texto poucas palavras de uso regional:

 Tamba-tajá (1º, 9º, 14º, 15º, 16º, 21º e 22º versos) – de tambá - concha e

tajá - planta também conhecida em outras regiões como tinhorão. O Tamba-tajá

é constituído de grandes folhas em forma de coração, que têm cor verde escura

e com uma pequena folha em forma vaginal grudada atrás de cada uma das

folhas grandes.

 Macuxi (11º verso) – mulher da tribo dos índios macuxys.

No texto, há pouca presença de características do falar da região. Temos:

 Uso do pronome pessoal reto tu;

 Pronúncia do s chiado no final das palavras,

Fica assim o regionalismo do texto mais por conta da atitude descrita nos versos

que pelo falar regional reproduzido.

Não há variação de foco narrativo no texto, no qual o narrador dirige-se todo o

tempo ao tamba-tajá, e devemos estar atentos para esse fato, para não adotarmos desvios de

postura e gestualidade fora do contexto.


LXXVII

C) ASPECTOS MUSICAIS

“Tamba-Tajá” era uma das canções preferidas de Waldemar Henrique. Foi

escrita em 1934, na tonalidade de Lá b Maior e tem duração de aproximadamente 3’. Sua

extensão é confortável e vai do Dó central ao Ré, uma oitava acima. Seu texto é totalmente

silábico.

Essa canção tem uma característica muito especial: toda a linha do canto, na

primeira parte (compassos de 5 a 12), é feita sobre duas notas (Mí e Fá). Isso valeu a

Waldemar Henrique o comentário de Cláver Filho:

“Será que uma música como Tamba-Tajá, cuja primeira parte é tão

horizontal e a segunda é que se mexe, não foi a origem de, entre outras, o

Samba de uma nota só?...Compare-se a pequena tessitura de boa quantidade

de trechos de bossa-nova, e talvez coincida com a tessitura das músicas do

músico do Pará. Além disso, tirando-se as dissonâncias e certas estilizações,

vai sobrar a batida da bossa.”

p. 75. Cláver Filho, José - “Waldemar Henrique: O canto da Amazônia” – Rio

de Janeiro, FUNARTE, 1978. P.il. (Coleção MPB, 2)

Não nos deteremos na análise dessa conjectura – pois não é o nosso objetivo

neste trabalho – mas é interessante pensar sobre ela.

A primeira parte, pela sua simplicidade e singeleza, corre o risco de ficar

desinteressante nas mãos de um intérprete descuidado. Apesar da economia de elementos, é

rica em mensagem, e o acompanhamento do piano “tempera” muito bem a melodia. Como

sempre simples, mas com balanço, com ginga.


LXXVIII

Além das segundas, temos pouquíssimos saltos:

 Saltos de 6ª - no compasso 12 p/ 13, quando passamos da primeira à

segunda parte;

 Saltos de 3ª - nos compassos 15 e de 17 a 20.

Essa economia de variação melódica denota a importância de bem dizer o texto,

pois o cantor não tem como fugir dele. Não há dificuldade técnica de extensão, emissão,

ritmo, saltos etc. Mas a simplicidade e a transparência solicitadas pela peça exigem critério

e bom gosto para que não deixemos deformar a pureza de intenção da obra.

O próprio tema já nos leva a essa conclusão, pois é uma prece à planta tamba-

tajá, que protege os amantes. Ora, é preciso um coração muito simples e puro para

acreditar nisso e é exatamente assim que são até hoje as pessoas que inspiraram o

compositor. Os cabôcos são capazes de acreditar piamente em coisas fantásticas e não

acreditar em fatos científicos como a ida do homem à lua, por exemplo. Sobre esse fato nós

mesmos já tivemos a oportunidade de ouvir acirrada discussão entre cabôcos e citadinos,

cujo argumento mais forte em contrário era que, se o homem tinha ido à lua, porque não

viu São Jorge e o dragão?29

Nosso desvio analítico é apenas para mostrar que estamos nos defrontando com

outro nível de relação homem-natureza e devemos ter isso em mente, para auxiliar a canção

a manter sua atmosfera de inocência.

O compositor não nos dá indicação de andamento inicial, mas anota na partitura

com embalo30, o que nos sugere um ritmo suave e sem arroubos, mais para o lento, dolente.

Essa indicação nos reporta a um gesto musical narrativo inflexional, pois nos reporta a uma

29
Depoimento dado durante conversa informal entre o Prof. Paulo José Campos de Mello (atual
superintendente da Fundação Carlos Gomes-Belém) e sua velha babá.
30
O embalo da Amazônia é o embalo de rede. É muito mais dentro da nossa realidade nortista uma
rede para embalar, do que uma cadeira. As mães, por exemplo, até na capital preocupam-se em pôr
uma rede no quarto das crianças, pois é muito mais fácil faze-las adormecer.
LXXIX

sensação induzida pelo jogo dos tempos fortes e fracos na acentuação do

acompanhamento. Dá-se o mesmo com o tenuto do compasso 19.

Outras indicações de expressão e andamento podem nos ajudar em nossa

concepção musical:

 Calmo – compassos 5 e 21;

 Animando – compasso 9;

 Rallentando – compassos 11, 14, e 22;

 Exaltado – compasso 13;

 Tenuto – compasso 19;

 Avivando – compasso 17;

 Fermata – penúltimo e último compassos.

Podemos ver que a música começa em um plano, segue para um ápice e

retorna para o mesmo plano. Torna-se mais viva quando o discurso é mais

apaixonado e mais calma, quando retoma o tom de súplica (compassos de 5 a 8 e de

21 ao fim). Tudo muito de acordo com o texto. Ao exaltado, animando e avivando

segue-se sempre um rallentando, o que denota alteração de emoção, ora ansioso, ora

abandonado à própria sorte.

Apesar de não haver indicação de dinâmica inicial, temos outras

indicações durante a peça que nos dão a idéia de qual será a mais apropriada para o

início:

 Crescendo (sinal) – compassos 6 p/ 7, 10, 14 e 17;

 Decrescendo (sinal) – compassos 8, 11, 15,18 e 22;

 Forte – compasso 25;

 Diminuendo – compassos 18 e 23;

 Piano – último compasso.


LXXX

Existem alguns cromatismos no decorrer da obra. Nos compassos 10, 14,16 e

18, aparece um pequeno grupo cromático de três notas de caráter ornamental e expressivo

que, ao mesmo tempo em que “enfeitam” a música e contribuem para amenizar o salto de

5a, dando fluidez à melodia.

A canção tem duas seções que se repetem duas vezes e está dividida em:

 Introdução: compasso 1 ao 4.

 Seção A: compasso 5 ao 12.

 Seção B: compasso 13 ao 20.

 Coda: compasso 21 ao 25.

Os elementos estruturais reforçam aspectos do texto. É visível a divisão do

texto acompanhando a divisão da peça em seções. O acompanhamento é suave na primeira

seção, quando a linha do canto é quase falada e o texto apresenta um pedido ainda contido.

Já na segunda parte, quando o texto fica mais dramático, a estrutura é mais densa sem, no

entanto, ofender o caráter delicado da peça.

A harmonia é repetitiva, mas os acordes usados não são triviais. O

comportamento harmônico da obra tem ligação com o conteúdo semântico do texto, pois

nos reporta o tempo todo ao ambiente da mensagem poética.

A figuração rítmica preponderante na mão esquerda do piano é:

e só muda nos compassos 11, 13, 14 e19, o que mantém

o “balanço” da peça quase que constantemente. Essa figuração não tem clara ligação com

ritmos característicos da região, mas tem um perfil que se enquadra na realidade regional

pela sensação de movimento sugerida.

Na melodia, temos como figuração preponderante quatro semicolcheias

seguidas, o que nos sugere fluidez ao falar, naturalidade.


LXXXI

“MATINTAPERÊRA”
LXXXII
LXXXIII

A) A LENDA DA MATINTAPERÊRA

A Matintaperêra ou Matinta31 é a velha feiticeira má da Amazônia. Assombra

crianças e adultos. Segundo alguns, transforma-se no pássaro rasga mortalha32 e quando

canta sobre a casa de alguém, prenuncia uma desgraça, geralmente de morte na família.

Quando está na forma humana, apresenta-se como uma velha maltrapilha e, por vezes, traz

uma rasga mortalha no ombro.

A velha Matinta caminha pelas ruas depois do cair da tarde, para pedir fumo ou

comida aos transeuntes ou aos moradores das casas da vila ou cidade. É feia, usa os

cabelos desgrenhados jogados sobre o rosto, se veste com farrapos e à noite amarra uma

lamparina na cabeça, o que lhe confere uma aparência sobrenatural. Sendo capaz de voar,

corta os ares para ir em busca dos que lhe negam um pedido. Quando os encontra,

assombra-os, amaldiçoa-os e os faz adoecer ou sumir. Não pode abraçar uma criança, pois

a mesma desaparecerá para sempre sob seus andrajos.

Quando a Matintaperêra sente que vai morrer, pergunta a todo mundo – “Quem

quer? Quem quer?” E se alguma mulher mais afoita disser “eu quero”, pensando se tratar

de algum presente receberá, na verdade, a sina de “virar” Matintaperêra.

Há fórmulas mágicas que permitem prender a Matinta. Uma delas exige uma

tesoura virgem, uma chave e um terço. À meia noite, abre-se a tesoura e enterra-se no

chão, coloca-se sobre ela a chave e o terço. Assim, a velha bruxa ficará presa ao local até

que alguém mexa nos objetos da magia.

31
Também conhecida como: Matinta Pereira, Mati-Taperê, Mat-Taperê, Matim-Taperê, Titinta-Pereira.
32
Espécie de coruja conhecida como: “coruja-das-torres”.
LXXXIV

A.1) Comentário

Não temos registro de como teria surgido essa lenda singular, mas como todo

lugar que se preza tem sua bruxa, a Amazônia, terra de tanta mitologia, não poderia ficar

do lado de fora.

Tivemos a oportunidade de ouvir recentemente a narração de uma aparição da

Matintaperêra em Belém em plena virada do século XXI. Foi-nos narrada pelo Prof.

Augusto Costa, do Centro Cultural Brasil Estados Unidos (Belém). O professor Augusto

foi procurado por um aluno desesperado que confidenciou ao professor ter visto uma velha

voando diante da janela do seu quarto e dizendo ser a Matintaperêra que o viera buscar.

Era a mesma velha que havia passado na rua enquanto o garoto lavava o carro do pai de

manhã, e na qual ele havia jogado água com a mangueira para se divertir. O curioso da

narrativa, é que o garoto queria saber do professor o que era Matintaperêra, pois, como

adolescente da geração “computador” não conhecia a lenda. Envergonhado do feito, não

tivera coragem de perguntar aos pais. Como podemos observar, ainda há resquícios da

lenda sobrevivendo na cidade grande.


LXXXV

B) TEXTO

“Matintaperêra”

(Versos de Antônio Tavernard)

1. Matintaperêra

2. Chegou na clareira

3. E logo silvou...

4. No fundo do quarto

5. Manduca Torquato

6. De mêdo gelou.

7. Matinta quer fumo,

8. Quer fumo migado,

9. Melôso, melado,

10. Que dê muito sumo.

11. Torquato não pita,

12. Não masca, nem cheira,

13. Matintaperêra

14. Vai tê-la bonita.

15. Matintaperêra de tardinha vem buscar

16. O tabaco que hontem à noite eu prometi.

17. Queira Deus ela não venha me agoirar...(bis)

18. Ah! Matinta, Preta velha, mãi maluca, Pé de pato,

19. Queira Deus ela não venha me agoirar...


LXXXVI

20. Matintaperêra

21. Chegou na clareira

22. E logo silvou...

23. No fundo do quarto

24. Manduca Torquato

25. De mêdo gelou.

26. Que noite infernal,

27. Soaram gemidos,

28. Resmungos, bulidos

29. Do gênio do mal

30. E até de manhã,

31. Bem perto da choça

32. A fúnebre troça

33. Dum vesgo acáuan!

Obs: foi mantida a grafia da partitura.

B.1) Análise do Texto

Essa lenda nada tem de sensual. É cercada apenas de medo e da sensação de

impotência diante de uma força maléfica superior.

O autor da poesia, Antônio Tavernard, usou penas uma palavra do vocabulário

regional: Matintaperêra (ou Matinta) – a velha feiticeira que é tema da canção.

Temos também algumas palavras e expressões que não são regionais, mas

colocamos aqui porque já quase não são usadas hoje em dia e nós devemos conhecer cada

palavra do texto que cantamos. São elas:


LXXXVII

 Silvou – verso 3 - assobiou;

 “Fumo migado,/Melôso, melado, que dê muito sumo” – versos 8, 9, e 10

– tabaco cortado em pedacinhos que, quando mastigado, não seja seco e

tenha sumo farto.

 “Não pita,/Não masca, nem cheira”- versos 11 e 12 – não fuma, não

mastiga nem cheira o tabaco (hábitos comuns antigamente).

 “Vai tê-la bonita” – verso 14 - vai levar a melhor;

 Agoirar – verso 17 e 19 – agourar, desejar ou promover o mal.

 Choça – verso 31 – choupana, palhoça.

 Troça – verso 32 – zombar, rir-se de.

 Acáuan - verso 33 – espécie de gavião predador de cobras, cuja

presença, segundo uma crença indígena, prenuncia a chegada de um

hóspede.

O autor não usou nenhum recurso para caracterizar o falar da região.

Lembramos apenas que o s chiado no final das palavras é o s usado na Amazônia.

Como já fizemos anteriormente o comentário do texto ligado à divisão das

seções da canção, vamos nos abster de repeti-lo.

C) ASPECTOS MUSICAIS

A canção “Matintaperêra” foi escrita em 1933, em Ré menor e sua extensão vai

do Dó # central ao Ré uma oitava acima. Mais uma vez, a escrita confortável do

compositor favorecerá a articulação do discurso.


LXXXVIII

Nessa canção, curiosamente, foi utilizado largamente o modo dórico na célula:

Esta célula se repete com freqüência em toda a peça (compassos 1, 2, 3, 4, 6,

14, 26, 33, 34 e 35). É um gesto musical descritivo e mimético, pois imita o assobio da

Matinta, marcando assim a presença funesta e indiscutível da entidade. Como gesto

musical, também se encontra integrado à representação teatral, uma vez que ajuda à

caracterização da personagem Matintaperêra.

O acompanhamento é altamente inflexional e confere ao discurso musical uma

extrema proximidade com o discurso falado, uma característica que já notamos antes em

todas as canções aqui analisadas. Isso nos ajudará a imprimir veracidade à nossa atuação,

bastando para isso tirarmos partido da naturalidade.

Temos nessa canção um uso maior de intervalos de quarta, quinta e sexta

(compassos 8, 11p/ 12, 12, 12 p/ 13, 20, 28 e 32). Mesmo assim, não constituem nenhuma

dificuldade de execução.

Novamente o compositor marcou a fatalidade do drama com muitas linhas

melódicas descendentes, que aparecem no canto e, mais ainda, no acompanhamento, com

cromatismos expressivos nos compassos: 7, 13, 15 e 23 que aumentam o caráter de funesto

da peça. Mais uma observação que podemos utilizar a nosso favor na concepção

interpretativa.

A divisão da peça é a seguinte:

 Introdução: do compasso 1, à metade do compasso 4, ouvimos repetidas

vezes o assobio que anuncia a chegada da Matinta. Já deveremos posicionar nosso olhar e
LXXXIX

nosso corpo de maneira a deixar transparecer o medo e a angústia de quem sabe que vai se

encontrar com esse gênio do mal.

 Seção A: da metade do compasso 4, à fermata do compasso 12. O cantor

narra o drama que se desenrolará a seguir. Vale a pena lembrar que, quando se conta uma

história de cabôcos, deve-se dar vida aos fatos narrados para envolver o ouvinte na

atmosfera da história.

 Seção B: da anacruse do compasso 13 à fermata do compasso 24. Aí temos

uma importante mudança de foco narrativo. Quem fala nesse momento é Torquato, a

vítima da Matinta, que num primeiro momento está conversando coma entidade, depois, a

sós, manifesta o seu medo da velha, depois a amaldiçoa num lampejo de revolta, para logo

depois ceder ao medo outra vez. Podemos tirar partido cênico dessa observação. O próprio

compositor nos diz ser lamentoso o começo do discurso evoluindo para um rallentando

(submissão). Depois. segue num animando e crescendo (medo), que caem num brusco

(amaldiçoando), com novas alterações de expressão e andamento (volta ao medo). As

informações do compositor são precisas e altamente coerentes com o texto.

 Repetição da Seção A: da anacruse do compasso 25 até a metade do

compasso 33 a música retorna com versos diferentes (à partir do compasso 28), mas tem

finalização diferente da 1ª parte (compassos 32), pois desta vez o tema se conclui e volta à

tônica (compasso 33). A história termina assim, de modo trágico, evocando um clima

místico de fatalidade e assombramento. Material excelente para a interpretação, que poderá

atingir muito facilmente o público, se conseguirmos imprimir a ele a veracidade necessária.

 Codetta: do compasso 33 ao 36, o compositor retoma os assobios da Matinta

feitos pelo piano e seguidos pelo canto, para marcar a vitória da velha feiticeira sobre o

pobre Manduca Torquato, como para nos dizer da fatalidade do acontecido. Não devemos

perder de vista a importância da manutenção desse clima até o último som do piano,
XC

diminuindo o volume do seu discurso sonoro, mas sem perder minimamente a

expressividade do corpo e da face.

Na parte harmônica, pois o compositor utilizou uma gama maior de acordes em

relação às canções anteriores e, embora ainda mantenha o acorde de tônica em compassos

seguidos, utiliza-o menos intensamente. Isso se deve às alterações de foco narrativo e

emocional do texto, que pedem diferenciações e servem para corroborar a mensagem

falada.

Podemos observar também a preponderância da figura rítmica das tercinas

seguidas na linha do canto, que é estritamente silábico. Isso nos remete à fluência de

emissão do texto e à acentuação poética, que devemos observar sempre.


XCI

“UIRAPURU”
XCII
XCIII

A) A LENDA DO UIRAPURU

Havia, no sul do Brasil, uma tribo de índios cujo cacique era amado por duas

jovens muito bonitas. Não sabendo qual delas escolher para esposa, o jovem cacique

prometeu que casaria com aquela que tivesse melhor pontaria. Assim sendo, fez-se uma

competição e as duas jovens atiraram suas flechas, mas só uma delas acertou o alvo e

casou-se com o cacique. A jovem que perdeu a prova se chamava Oribicy. Ela chorou

tanto por ter perdido seu amado, que suas lágrimas formaram um córrego. Sua tristeza era

tanta, que pediu a Tupã que a transformasse num passarinho para que ela pudesse visitar

seu amado sem ser reconhecida. Tupã realizou o desejo da moça e Oribicy, com sua nova

forma, voou até o amado. Para sua grande tristeza, constatou na visita que o cacique vivia

muito feliz com sua jovem esposa. Oribicy resolveu ir embora e voou para o Norte. Tupã,

para consolá-la, deu-lhe um canto especial, que a faria esquecer sua dor enquanto o

entoasse e atrairia quem quer que o escutasse. Assim, a jovem não ficaria solitária.

É por isso que o uirapuru, o pássaro que não é pássaro, vive a cantar e a atrair

com seu canto todos os que o ouvem. Esse fenômeno acontece realmente. Na floresta,

mesmo quando todos os pássaros estão a cantar enchendo o ar de melodias e gritos

diversos, quando o pequeno e cinzento uirapuru inicia seu canto, todos os outros silenciam

e, o que é ainda mais interessante: vêm depositar aos seus pés oferendas: sementes, galhos,

alimento.
XCIV

A.1) Comentário

O uirapuru é um passarinho pequeno. Pode ser verde com a cauda avermelhada,

ou todo cinzento, com uma mancha branca em forma de estrela nas costas, que só aparece

quando suas asas estão abertas.

É considerado, pelo efeito que seu canto provoca nos outros pássaros, o artista

da floresta. Aqui, vale para nós uma observação: deve realmente haver algo especial, pois

nosso artista recebe homenagens de um público muito “especializado”.

A ele, atribui-se grande poder de atração. Quem possuir um uirapuru

“preparado” por um pajé, atrairá para si fortuna, sorte no amor e na vida, além de ter

sempre a atenção das pessoas que o cercam. Para isso, basta que o afortunado possuidor

desse talismã o traga no bolso, ou o enterre diante de sua casa.

Seu canto alterna sons muito agudos com sons graves, com diferença de duas

oitavas, e com uma velocidade espantosa. Não constrói propriamente, uma melodia de

beleza inigualável, mas surpreende grandemente pela estranheza da sua construção.


XCV

B) TEXTO

“Uirapurú”

(Versos de Waldemar Henrique)

1. Certa vez de “montaria”

2. Eu descia um “paraná”

3. O caboclo que remava

4. Não parava de falá (r)

5. Á, á...Não parava de falá (r)

6. Á, á...Que cabôclo falador !

7. Me contou do “lobisomi”

8. Da mãi-d’água, do tajá,

9. Disse do jurutahy

10. Que se ri pro luar

11. Á, á... Que se ri pro luar

12. Á, á...Que cabôclo falador !

13. Que mangava de visagem

14. Que matou surucucú

15. E jurou com pavulagem

16. Que pegou uirapurú

17. Á, á...Que pegou uirapurú

18. Á, á...Que cabôclo tentador !

19. Cabôclinho meu amor,

20. Arranja um pra mim

21. Ando “rôxa” prá pegar


XCVI

22. “Um zinho” assim;

23. diabo foi-se embora

24. Não quiz me dar

25. Vou juntar meu dinheirinho

26. Prá poder comprar.

27. Mas, no dia que eu comprar

28. O caboclo vai sofrer

29. Eu vou desassocêgar

30. O seu bem-querer

31. Á, á...O seu bem-querer

32. Á, á...Ora deixa ele prá lá...

Obs: foi mantida a grafia da partitura.

B.1) Análise do Texto

Nesse texto, feito especialmente para a música, aparecem muitas palavras de

uso regional e algumas que estão fora do vocabulário usual de hoje:

 “Montaria” – verso 1 – canoa ligeira feita de um só bloco de madeira.

 “Paraná” – verso 2 – braço de rio.

 “Lobisomi”- verso 7 – lobisomem.

 Mãi-d’água – verso 8 – figura lendária de bela mulher que mora no fundo do

rio e encanta aqueles que a vêem ou ouvem sua voz, levando-os para as águas

profundas de onde não retornam nunca mais33.

33
Também é figura mitológica da Amazônia, correspondente da “sereia” européia.
XCVII

 Tajá – verso 8 – planta de grandes folhas verdes, sem flor, de muita

variedade na Amazônia e à qual se atribuem poderes mágicos.

 Jurutahy – verso 9 – pássaro que possui um canto triste.

 Visagem – verso 13 – fantasma, aparição.

 Surucucú – verso 14 – cobra de grandes proporções e das mais venenosas da

Amazônia.

 Pavulagem – verso 15 – gabolice, fanfarronada.

 Uirapurú - verso 16 – passarinho da Amazônia de canto especial,

considerado o artista da floresta.

 “Rôxa” – verso 21 – roxa de vontade, com muita vontade.

 “Um zinho” – verso 22 – só um, apenas um.

Como características do falar regional temos:

 Versos 4 e 5 - a sugestão da supressão do r final da palavra falar, que está

entre parênteses, para imitar o falar cabôco.

Sempre lembramos que o s do final das palavras deve ser chiado para ser

característico do falar amazônico.

Já dissemos antes, na análise musical, que o foco narrativo se desloca nos

versos 19 e 23 e que podemos nos valer disso para incrementar nossa performance, mas

gostaríamos de fazer mais uma observação sobre isso: o narrador é uma mulher, como

vemos no verso 21 (“ando rôxa prá pegar...”). Isso é muito importante quando

selecionamos repertório, pois, uma canção com texto escrito no feminino, nem sempre fica

bem se for cantada por um homem, e vice-versa.


XCVIII

C)ASPECTOS MUSICAIS

A canção Uirapuru foi escrita em 1934 e dura aproximadamente 1’50”. Tem

tessitura de uma oitava a partir do Ré central e, como já nos parece de praxe do

compositor, não oferece dificuldades técnicas para o executante.

Embora seja uma canção alegre, foi escrita em tonalidade menor (Ré menor),

não se alterando durante toda a peça. É até interessante notar que o compositor não escreve

nenhuma nota fora da escala escolhida para a peça, embora tenha feito uma modulação

temporária nos compassos 17. 18 e 19. Na linha do piano não há cromatismos, nem

acidentes ocorrentes. No solo do canto, aparece apenas um acidente no último tempo do

compasso 17 que não marca especialmente a melodia.

Nessa canção, observamos a preocupação do compositor com a boa emissão do

cantor, pois pede um quasi falado logo no primeiro compasso do solo do canto. Devemos

nos esmerar para não deformar as palavras com uma impostação exagerada. A voz deve ser

bem colocada, mas sem parecer artificial, pois a presença constante da figuração rítmica:

na parte do canto nos mostra que o texto tem primazia sobre a melodia.

Apesar de ser extremamente silábica, essa canção traz um tímido, mas

expressivo vocalise sobre duas notas nos compassos: 10 p/ 11, 12 p/ 13, 28 p/ 29 e 30 p/

31. Ele se repete oito vezes na canção e nos dá oportunidade de mostrar diferentes timbres

e/ou entonações para um mesmo trecho, de maneira que as repetições não se tornem

monótonas para o público.

A estrutura da obra mantém um contato estrito com a estrutura do texto, de

maneira que, quando o foco narrativo se altera (segunda parte - compasso 16), a melodia se

modifica. Para observar melhor essa alteração, vejamos como a canção está dividida:
XCIX

 Introdução: os cinco primeiros compassos trazem a notação saltitante e a

dinâmica crescendo (sinal) e têm ao final do 5º compasso um acorde tenuto, preparam o

ambiente para a narração dos feitos do cabôco. A introdução, como já dissemos, nos serve

para preparar nossa postura e expressão corporal e facial.

 Seção A: do compasso 6 ao 1º tempo do compasso 16, com três repetições.

As repetições servem para o compositor apresentar a história e toda a narração dos feitos

do cabôco falador e gabola. Temos três textos diferentes para a mesma melodia. É muito

importante usarmos recursos cênicos e vocais para “colorir” essa passagem. As repetições

apresentam, sutilmente escondida, uma mudança no grau de interesse do narrador, que é

mulher, pelas façanhas do cabôco. Devemos ler nas entrelinhas do texto para entender essa

sutileza e dela tirar partido. Podemos ainda aproveitar expressivamente os rallentando do

compasso 13 para imprimir nova intenção à frase que se repete.

 Seção B: do 2º tempo do compasso 16 ao fim. O foco narrativo desvia-se

duas vezes. A primeira, quando o narrador que antes falava para o público ou para si

mesmo, passa a dirigir-se diretamente ao cabôco para pedir-lhe um uirapuru (2º tempo do

compasso 16 ao 1º tempo do 19); a segunda, quando o cabôco vai-se embora sem atender o

pedido e o narrador volta-se novamente para o público ou para si mesmo (2º tempo do

compasso 19 até o fim). Podemos usar muitos recursos como o direcionamento corporal, a

mudança de entonação, de timbre, para enriquecer nossa performance.

Os silêncios dessa canção são muito eloqüentes. Após as fermatas dos

compassos 6, 14, 15, 16 e 31, são preparadores da continuação do discurso. Nos compassos

16 e 31, o silêncio também é transformador, enquanto que nos demais (compassos 6, 14 e

15) serve de ponte entre as partes. Nos compassos 10, 12, 28 e 30 e, discretamente, nos

compassos 22 (após o tenuto) e 24 (após o rallentando), podem reunir transformação e

separação ou ponte. Todos podem ser usados na sua função construtiva se utilizados
C

estruturalmente, acrescentando muito mais significado ao texto poético e musical. Cabe-

nos estudá-los, analisá-los e explorá-los.

A parte harmônica é muito simples e poucos acordes se repetem

alternadamente. Logo, o cantor é o foco central das atenções do público e isso nos dá

ampla autonomia para sua conduzir nossa interpretação.

A linha melódica é simples e toda construída com intervalos de 2ª, 3ª, e 4ª, onde

apenas um intervalo diferente (7ª), aparece no compasso 16, marcando a segunda parte.

Muitas linhas melódicas ascendentes emprestam à música uma feição alegre e brejeira e

que tem grande apelo junto ao público, coisa muito importante a considerar quando se

escolhe um repertório.

Com essa feição alegre e saltitante, torna-se fácil escolher um andamento, pois

o compositor não o sugeriu na partitura. Também não há registro de dinâmica feito pelo

autor, além dos sinais de crescendo e decrescendo nos compassos 2, 3, 21 e 22.

Embora não haja indicação de que se trata de uma dança, existe uma relação

entre a figuração rítmica preponderante do acompanhamento do piano (a partir do

compasso 7) e o ritmo regional do xote bragantino34:

CANÇÃO

O acorde da mão direita do piano, na 2ª metade do segundo tempo do compasso

marca um dos acentos da célula. Assim, vemos mais uma vez a necessidade aquela “ginga”

que caracteriza a regionalidade da peça.

34
Dança regional que se fixou com maior força nos arredores da cidade de Bragança.
CI

“CURUPIRA”
CII
CIII

A) A LENDA DO CURUPIRA

O Curupira é o grande defensor da floresta. É um ser de forma humana,

pequeno, esverdeado, com os cabelos cor de laranja, que tem os pés virados para trás e

vaga pela mata zelando pelas árvores e animais. Volta-se contra qualquer um que queira

caçar apenas por prazer, ou desmatar a floresta sem propósito. Por outro lado, é amigo dos

que vivem na mata sem agredi-la, caçando apenas para alimentar-se e respeitando a flora.

Para atrapalhar os que não agem com boas intenções ecológicas, o curupira tem muitas

artimanhas. Pode assombrá-los com seus gritos agudos, açoitá-los, tornar-se invisível e

aparecer em vários lugares, até fazer com que aqueles que tentam contra a vida na floresta

percam o rumo. Também faz com que o bicho encurralado pelo caçador, vire meuã, que

significa portar-se de repente como gente, fazendo gestos para implorar piedade. Assim, o

caçador fica assombrado, não consegue mais fazer pontaria e foge apavorado. Diz-se que

muitos caçadores, depois de terem visto a caça virar meuã, nunca mais se atreveram a

caçar.

A.1) Comentário

Versão latina do duende europeu, o curupira também é pequeno. O nome

curupira tem origem nos vocábulos indígenas curu, que significa criança e pira, que

significa corpo. Na Amazônia, possui feições indígenas, mas pode ser descrito como tendo

cabelos vermelhos, ou calvo ou com o corpo coberto de pêlos, dependendo da região onde

tenha sido visto.Curiosamente, não é um ser mitológico existente somente no Brasil. Sobre

ele foram colhidos muitos relatos em quase todos os países da América Latina. Suas

características físicas variam, mas sua função é sempre a de proteção da floresta.


CIV

B) TEXTO

“Curupíra”
(Versos de Waldemar Henrique)

1. Já andei três dias e três noites

2. Pelo mato sem parar

3. E no meu caminho não encontrei

4. Nem uma caça prá matar.

5. Só escuto pela frente, pelo lado

6. O Curupíra me chamar,

7. Ora aquí, ora alí se escondendo

8. Sem parar num só lugar...

9. Por êsse danádo muitas vezes

10. Me perdí na caminhada

11. E nem Padre-Nosso me livrou

12. Desse malvado da estrada.

13. Curupíra feiticeiro!

14. Sai de traz do castanheiro,

15. Pula prá frente,

16. Defronta com a gente,

17. Negrinho, covarde, matreiro.

18. Deixa o cabôclo passar!

Obs: foi mantida a ortografia da edição.


CV

B.1) Análise do Texto

O texto foi escrito especialmente pelo compositor para a canção. Tem como

tema a lenda do curupira, que não é exclusiva da região Norte, possuindo características

diferentes em cada região.

O texto narra as dificuldades de um caçador que teve a má sorte de encontrar o

curupira no seu caminho. Este ser mitológico não pode ser atingido por armas, nem pela

prece mais poderosa do cabôco, o Padre-Nosso. Sendo assim, só restou ao caçador o

pedido do verso 18 - “Deixa o cabôclo passar”.

O uso dos versos junto à melodia é totalmente silábico e o texto possui uma

mudança de foco narrativo no verso 13. Aqui, o narrador deixa de falar das suas

dificuldades para si mesmo, como num desabafo, e passa a dirigir-se diretamente à

entidade mágica que o persegue.

Apesar do cunho regional dos versos da canção, não temos palavras

desconhecidas dos falantes de outras regiões. Insistimos sobre o s chiado do final das

palavras, que é uma característica marcante do falar amazônico.

C) ASPECTOS MUSICAIS

É de 1936 a canção “Curupira”. Das canções analisadas aqui, é a de maior

extensão, indo do Si central, ao Mi uma oitava acima. É também a mais curta, pois dura

aproximadamente 1’.

Foi escrita em Mi b Maior, mas tem sua introdução na tonalidade de Fá m. Tem

texto do próprio Waldemar Henrique e traz o andamento marcado com precisão: Moderato
CVI

! = 84. Não há nenhuma anotação de dinâmica até o 6º compasso, o que dá certa liberdade

de escolha ao executante.

Apresenta muitos cromatismos. Temos um cromatismo ornamental no compasso

16 (mão direita do piano) e um cromatismo estrutural muito interessante no baixo do piano

que surge logo na introdução. São quatro notas em escala descendente que aparecem seis

vezes em toda a canção (compassos 1, 3, 5, 7, 9, 11 e 13), acompanhando o primeiro foco

narrativo do texto e a primeira parte da peça.

A canção foi escrita na forma binária simples e está dividida em:

 Introdução: compassos 1 e 2. As escalas ascendentes e descendentes da mão

direita do piano imprimem um gosto de corrida, que culmina com acordes saltados e

precedidos de apoggiaturas. Podemos ter aqui um gesto musical mimético e descritivo da

corrida e dos saltos do curupira, que “ora aqui, ora ali” é ouvido pelo caçador. Já nessa

introdução deveremos imprimir ao rosto e ao corpo a atitude de quem está em meio a

agitação sugerida pela música.

 Seção A: do compasso 2 a 14. Dvevmos dar atenção ao fato de que o

caçador - que é quem narra a história -, após três dias de caçada infrutífera, já deverá estar

cansado da presença do curupira. Talvez já esteja irritado, talvez com fome, ou preocupado

por não ter o que levar de alimento para quem ficou em casa. Essa compreensão do texto e

da agitação da música servirá de base para a construção da nossa postura e gestualidade

corporal e facial. Há muito texto para ser dito em muitas notas seguidas durante toda a

canção, pois a figuração rítmica preponderante na linha do canto é: .

Devemos dar muita atenção à dicção e ao andamento, que se for maior que o pedido pelo

autor, pode prejudicar a compreensão das palavras.


CVII

 Seção B: do compasso 15 ao 20. Aqui, temos uma mudança de foco

narrativo do texto, que também é sabiamente acompanhada por uma mudança no

acompanhamento. Esse fato nos oferece uma oportunidade para mudança de postura em

geral. O caçador se dirige, a partir desse momento, diretamente ao curupira e sabe onde ele

está - “sai de traz do castanheiro”. Desafia-o e o achincalha com uma notação de

apressando (compasso 17), que pode nos ajudar a imprimir ainda mais veemência e

expressão ao discurso. No final desta parte - após uma fermata que traz um silêncio

preparador do discurso que está por vir e, ao mesmo tempo, transforma o tom desse

discurso - antes agressivo - em um pedido, uma queixa. Esse pedido final, rallentando, faz

um contraste com o apressando anterior e oferece uma excelente oportunidade para que se

mostre versatilidade de timbre e performance.

Enquanto a última nota está sendo cantada, o piano encerra a peça com outra

série de acordes precedidos de apoggiaturas, sob os quais o compositor anotou um original

fugindo, que só pudemos interpretar como a fuga do curupira. Logo, o compositor estava

imbuído da intenção de escrever descritivamente e integrado à narrativa dos fatos.

Mais uma vez, observamos que a estrutura do texto e da música caminham lado

a lado. As escalas agitadas que marcaram a primeira parte da canção - quando o texto

apresenta o problema sem solução do caçador - dão lugar às notas mais tranqüilas do

ritardando (compassos 15 e 16), que aparece no momento em que o homem pára e

enfrenta seu adversário. Uma aceleração progressiva, aliada a um ritmo mais pausado na

pronúncia do canto nos compassos 17 e 18, dá mais veracidade ao discurso irritado e

cansado da vítima do curupira. No final (compasso 19 e 20), o andamento cede

completamente na linha do canto, que nos remete ao discurso cansado do caçador. No

piano, o cedendo se desfaz somente no último compasso onde, como já dissemos

anteriormente, o curupira “foge”, ou se afasta, deixando o cabôco passar.


CVIII

Nessa canção, talvez porque seja posterior a todas as outras, temos muito mais

intervalos de 4ª, 5ª e 6ª na melodia. Apesar disso, ainda temos o predomínio de intervalos

menores e não vemos maiores dificuldades técnicas que possam prejudicar um intérprete,

ainda que iniciante. O “bem dizer” o texto, com veracidade e espontaneidade, continuam

sendo os desafios desta peça.


CIX

“MANHA-NUNGÁRA”
CX
CXI

A) A MANHA-NUNGÁRA

“Manha-Nungára” significa “mãe de criação”. Foi escrita em homenagem à

mãe de criação de Waldemar Henrique, Estefânia Rosa da Costa35. Não sendo uma lenda,

está incluída na classificação das canções de Waldemar Henrique como Lenda Amazônica

por abordar a lenda do bôto sob novo enfoque. Nesta canção, o autor nos fala de uma

figura muito comum na região Norte: a mãe adotiva, ou mãe de criação. Os processos de

adoção ou delegação de custódia não passam, muitas vezes, pelos trâmites legais. O cabôco

não pensa como as pessoas da cidade e, se lhe apraz por qualquer motivo, dar um filho seu

para um parente, ou criar o filho de alguém próximo, faz isso sem maldade e sem

burocracia. É comum ver a irmã que tem filhos dar um deles para a que não tem, seja por

pobreza, seja por piedade. A madrasta também é considerada como mãe adotiva, como no

caso do próprio compositor que, por muito considerá-la, dedicou-lhe a canção.

Pedimos aqui uma licença científica para narrar na primeira pessoa uma história

de nossa própria família, para ilustrar como é vista a adoção pelo nortista.

Minha avó paterna, que deu à luz dezesseis rebentos, apiedou-se de sua melhor

amiga e empregada de confiança, Dona Domicília, que não podia ter filhos e deu a ela seu

último filho homem, meu pai. O ato foi simples e feito sem nenhuma dificuldade, ficando

ambas as partes satisfeitas com a prova de amizade. Assim foi criado meu pai, sabendo que

tinha duas mães - porque também não se usa esconder essa verdade - e vendo tudo como

coisa normal - essas coisas são assim no Norte. Em casa, sempre o ouvimos dizer em tom

de confidência que, se um dia estivesse em uma situação de perigo e só pudesse salvar uma

das mães, não pensaria duas vezes e salvaria sua velha Nega, apelido carinhoso de

Domicília, sua Manha-Nungára.

35
Tendo perdido sua mãe verdadeira, Joana da Costa, com um ano de idade e tendo seu pai casado com a
cunhada, sua tia Estefânia foi a mãe que Waldemar conheceu e amou devotadamente por toda a vida.
CXII

Abrimos esse parêntese porque sabemos o quão absurdo pode parecer

atualmente esse tipo de relação ainda tão comum na Amazônia. Esse caso esclarece sobre a

simplicidade com que a adoção acontece. Não existem traumas ou segredos. A manha-

nungára da canção pode ou não ser parente, mas é mãe igualmente querida.

A.1) Comentário

Não teceremos aqui um comentário sobre a lenda, pois não estamos tratando de

uma lenda específica. Falaremos sobre a distorção da lenda do bôto. Como dissemos

anteriormente, o bôto é um mito que não está ligado à violência sexual de nenhuma sorte,

seduzindo sempre suas vítimas, que cedem de bom grado aos seus apelos, encantadas

como estão. Nessa canção, que tem letra escrita pelo próprio Waldemar Henrique, há a

insinuação de que a virgem se desagrada de sua condição de enfeitiçada e pede socorro à

sua manha-nungára. Não sabemos o porque desse fato. Não encontramos nenhum registro

da lenda sob esse enfoque, nem alguma justificativa do compositor para ele. Sabemos que

Waldemar era profundo conhecedor do folclore da região e nos parece que esse novo

enfoque foi dado para ressaltar a figura da manha-nungára, que aparece como aquela a

quem se recorre em momentos de aflição. Foi para a sua manha-nungára que ele dedicou a

peça. Seria possível que a lenda do bôto tenha sido usada apenas como pretexto, como

mote para a glosa de uma canção de enaltecimento à figura materna? Não pudemos

responder a essa pergunta que muito nos instigou durante a pesquisa, pois a busca de

elementos para saciar nossa curiosidade nos desviaria dos nossos objetivos. Resignamo-

nos apenas a deixar aqui registradas nossas observações.


CXIII

B) TEXTO

“Manha-Nungára”
(Versos de Waldemar Henrique)

1. Do alto palmar d’uma jussára,

2. Vem o triste piar da iumára.

3. Os tajás pelo terreiro estão chorando

4. E no rio, resfolegando

5. Bôto branco boiou!...Ô...ô...

6. Sentada na rêde, cunhã está rezando

7. A réza que Manha-Nungára ensinou...

8. - Tupan, quem foi que me enfeitiçou?

9. -Manha-Nungára!

10. O grito rolou pela caiçara,

11. Mãi-velha se espantou.

12. Embaixo, na treva do rio,

13. Dois corpos em cio,

14. Lutando enxergou.

15. E pelo barranco

16. De novo soou

17. O grito de angústia

18. Que a cria soltou:

19. -Manha-Nungára!

Obs: foi mantida a grafia da partitura.


CXIV

B.1) Análise do Texto

O texto dessa canção traz novamente a lenda do bôto como tema. Dessa vez,

temos uma descrição mais detalhada do cenário e da vítima, que pede socorro.

No cenário descrito, tão verdadeiramente amazônico, temos algumas palavras de

uso regional:

 Jussára – 1º verso - palmeira do açaí.

 Iumára – 2º verso - passarinho de canto muito triste.

 Cunhã – 6º verso – o mesmo que cunhãtan: moça.

 Caiçara – 10º verso – cerca de pau-a-pique em redor de uma roça.

Além das palavras nativas não temos no texto a presença do falar da região.

Lembramos mais uma vez que o s depois de vogal deve ser chiado para ter apelo regional.

O texto tem desvios de foco narrativo nos versos 9, 10 e 20, quando é a cunhã

quem fala. No restante, é o narrador quem descreve a cena.

C) ASPECTOS MUSICAIS

A canção “Manha-Nungára”, de 1935, tem letra do próprio Waldemar

Henrique. Apresenta uma poli-tonalidade onde a tonalidade básica de Sol M, convive

simultaneamente durante a peça com sua tonalidade relativa Si Menor.

Vejamos como está dividida a canção:

 Introdução: 1o compasso. Curtíssima, essa introdução termina em uma

fermata, que é um gesto musical preparatório para a narrativa do canto. O piano apresenta

o motivo principal do acompanhamento, que se repetirá várias vezes por toda a canção.

Lembramos mais uma vez que a introdução já é a música e que já devemos estar com
CXV

postura expressiva totalmente pronta para oferecer mais elementos para o público entrar no

ambiente da canção.

 Seção A: do compasso 2 à metade do último tempo do compasso 11. Aqui,

o narrador descreve uma paisagem triste, que nos deixa à espera do que está por vir.

Embora tenhamos chamado esta parte de seção A, ela nos parece auditivamente uma

segunda grande introdução. Não traz um tema que guardemos na memória e, embora

termine na tônica, não sentimos que a melodia descansa aí, pois a repetição da dominante

Ré na mão esquerda do piano pede novamente a presença da tônica para se resolver.

 O compositor cria assim, uma atmosfera de tensão, ainda que muito leve.

Mais de expectativa do que de dramaticidade. Devemos manter essa leve atmosfera de

suspense, traduzindo-a em expressão corporal, trabalhando com gestos, olhares e expressão

facial. A parte que vem a seguir ainda se encontra na mesma atmosfera.

 Seção B: da metade do último tempo do compasso 11 à metade do

compasso 18. Novamente temos a sensação de que a música não concluiu sua idéia. O

texto termina em uma pergunta que fica sem resposta. A melodia, ainda mais. Um acorde

de 6ª invertida é o responsável por essa sensação de não conclusão. Podemos tirar partido

dos recursos timbrísticos para o falado quasi (metade do último tempo do compasso 16, até

a metade do compasso 18). Uma notação de brusco no piano antecede a pergunta

angustiada da cunhã, que culminará com um grito, um pedido de socorro. Deve ser feito

com muita veracidade e expressão, podendo ser até realmente falado, sem risco de parecer

fora de estilo.

 Coda: metade do compasso 18 à metade do último tempo do compasso 19.

Eis o clímax e a resolução das duas seções anteriores. Toda a carga dramática contida no

texto e na música culmina com esse final. É o repouso harmônico, poético e expressivo da

canção. Assim deve ser também na nossa atuação. Toda a atmosfera de suspense criada na
CXVI

peça se diluirá nesse apelo desesperado. É também o clímax da dinâmica, que crescerá

rapidamente e se diluirá em seguida, como uma onda.

 Seção C: da metade do último tempo do compasso 19 à metade do 3º tempo

do compasso 25 (para o canto) ou metade exata do compasso 25 (para o piano).

Retomamos a descrição, a não conclusão harmônica e o clima de expectativa, que inicia

com um precipitando (compasso 20), que aumenta o grau de dramaticidade do discurso

lítero-musical. A partir daí, tudo caminhará para o allargando com crescendo dos

compassos 24 e 25, em uma frase ascendente que culmina em mais um grito de angústia na

metade do compasso 25 e 26, a segunda Coda da canção.

O processo de composição poli-tonal empresta à canção muitos momentos

alternados de tensão e relaxamento. A dinâmica deve ser dosada com sabedoria para que o

clímax da peça (1º tempo do compasso 26) receba todo o seu potencial vocal e expressivo.

O morrendo que vem em seguida, traz consigo a fatalidade, a confirmação de que a cunhã

não conseguiu fugir à sedução do bôto. Seu apelo foi em vão, pois Manha-Nungára não

conseguiu salvá-la. É muito significado para pouca música. Buscaremos usar todos os

recursos cênicos e musicais ao nosso alcance para dar a esse final tão curto, o peso da

resolução de todas as tensões da peça. Atenção: que não se entenda fazer coisas demais.

Queremos dizer que é preciso escolher o gesto, a dinâmica e as formas de expressão mais

adequadas, para traduzir a mensagem do texto poético e musical. O intérprete precisa

pesquisar, procurar no seu universo vocal, gestual, facial e de postura, a melhor maneira de

expressar o conteúdo semântico do texto cantado.

Não há repetição de texto nem música, excetuando a coda, que aparece duas

vezes, sempre com caráter conclusivo.


CXVII

Cada seção da canção está separada da anterior por silêncios que desempenham

função separadora e, ao mesmo tempo, transformadora de uma seção para a outra, ou

mudam as imagens descritas ou mudam as emoções do narrador.

A estrutura da obra acompanha fielmente a estrutura dos versos, reforçando

com a harmonia todas as nuances do texto poético.

A melodia foi construída com predominância de graus conjuntos. Poucos

intervalos de 4ª aparecem nos compassos 5, 5 p/ 6, 12, 19, 23 e 26, apenas um de 6ª no

compasso 18 e um de 7ª no compasso 9. Os intervalos maiores não servem para marcar

especialmente nenhuma passagem.

Com duração de aproximadamente 1’50”, possui andamento fixado pelo

compositor: Calmo: ! = 72 e tessitura que vai do Ré central ao Mi oitava acima. Não

oferece dificuldades técnicas para o cantor, mas o desempenho artístico é fundamental, ou

a canção será empobrecida na força da sua expressão.

O texto é silábico, mas uma pequena vocalização nos compassos de 10 para 11

aparece com a função de descrever o movimento do bôto na água, vindo à tona e

submergindo novamente. Temos aí um claro gesto musical descritivo integrado à narrativa.

É um momento único na peça. Merece destaque.

As linhas melódicas descendentes que marcam a canção do início ao fim

emprestam dramaticidade à peça e descrevem a fatalidade e a angústia da cunhã, que não

pode resistir à magia do bôto.

As figurações rítmicas da parte do canto estão colocadas de maneira a

impulsionar o discurso de acordo com as alterações emocionais do texto, que coincidem

com as variações de andamento descritas na partitura.

Essa canção apresenta uma característica inovadora, com relação às outras. Tem

uma concepção contemporânea, com uma divisão que não obedece a padrões tradicionais.
CXVIII

A linha melódica pouco variada fica muito próxima da fala, o que lhe confere um certo ar

de recitativo. Como sabemos, o recitativo é o momento de movimento cênico na ópera.

Opõe-se à ária que, por falar de sentimentos, é mais estática. Nessa canção, Waldemar faz

uma nítida opção por movimento teatral, só que coloca isso em um gênero estático como é

o da canção de câmera.
CXIX

“CONCLUSÃO”
CXX

C
onferindo os resultados de nossa análise, observamos que a música

regional de Waldemar Henrique é resultado de uma concepção

composicional que não tem por objetivo um produto final de aparência grandiosa. Sua

maneira de retratar sua terra é simples e direta, embora sempre impregnada de poesia. Por

esse motivo, ele é considerado tão fiel no seu registro. Apesar de retratar motivos regionais

nas suas lendas amazônicas, Waldemar usou sempre temas próprios e, mesmo valendo-se

de muitas figurações rítmicas regionais, utilizou-as sem exageros.

Na escrita musical do maestro há uma grande economia de elementos. Na linha

melódica, ele utilizava poucos saltos e quase nenhuma vocalização. Optou por uma

extensão confortável e central, de maneira que a melodia não interferisse no entendimento

do texto com notas excessivamente altas. Nada em sua escrita oferece ao executante

dificuldades de ordem técnica.

Sua escrita harmônica não se baseia em grande variação de acordes, mas

percebe-se que ele utiliza com mestria os recursos harmônicos, escrevendo dessa maneira

as canções amazônicas para manter o padrão de simplicidade que permeia sua visão da

música regional. Mesmo seguindo esse padrão de simplicidade, consegue efeitos que

fazem sua música parecer exótica, mas agradável aos ouvidos.

Por vezes, sua música mantém algumas “batidas” (padrões repetidos de células

rítmicas) por longos períodos, mas isso foi feito com o intuito de conservar por mais tempo

uma mesma atmosfera descritiva. Não vemos figurações complexas, ou de difícil

execução, que exijam maior tempo para serem assimiladas.

Quanto à prosódia, Waldemar Henrique é exemplar. Não detectamos nenhum

erro nesse aspecto. Para ele, o texto é soberano e determinante de todas as diretrizes da sua

criação musical. É notável a maneira como todos os elementos da música estão a serviço

do texto, não só no sentido da métrica, mas também na compreensão da mensagem e de


CXXI

seu contexto. Tudo o que é colocado na partitura é feito de maneira a auxiliar o ouvinte a

compreender a palavra, a mensagem. Os textos são utilizados quase que totalmente de

maneira silábica e os vocalizes que aparecem raramente são muito curtos, apenas extensões

de sílaba. É do texto que o executante poderá tirar maior partido no incremento da sua

performance, e isso exige boa dicção e uma emissão sem artificialismos que prejudiquem a

compreensão da mensagem, como a impostação operística, por exemplo. Tudo isso denota

grande cuidado com o entendimento da mensagem por parte do compositor.

Waldemar gosta de preparar a entrada do canto com introdução. Entretanto, nas

Lendas Amazônicas elas são sempre curtas e não expõem o talento virtuosístico do

pianista. Na sua abordagem dos temas regionais, as introduções são uma preparação rápida

do público para a recepção da mensagem, feitas de maneira discreta para não roubar as

atenções devidas ao solista, o narrador das histórias.

O acompanhamento das peças está sempre apoiando o canto discretamente,

nunca em primeiro plano. Dá a justa carga dramática exigida pelo conteúdo poético e

acrescenta ou diminui a quantidade de notas dos acordes coerentemente. Mais agitação,

mais veemência por parte do texto merecem mais notas na partitura, pois o cantor estará

dando maior volume sonoro nesses momentos e vice-versa. Assim, o compositor contribui

para que o solista não seja suplantado pelo acompanhamento. É claro que, apesar dessas

providências cuidadosas, o cantor pode contar com um pianista de toque mais pesado ou

solista, que pode suplantá-lo em sonoridade. Entretanto, relativamente aos processos

composicionais, o maestro tomou todas as providências para evitar essa possibilidade.

O ponto que nos parece mais interessante na nossa pesquisa é a constatação de

que Waldemar Henrique tem uma visão teatral da performance do cantor. Ele utiliza sua

música como recurso que reforça e auxilia o tempo todo essa performance, contribuindo

para sua veracidade. Escreve sempre o acompanhamento de maneira altamente gestual e


CXXII

usa com muita freqüência silêncios construtivos para acrescentar mais significado à

música. A música tem a função de dar inflexão, pontuação, entonação e maior

expressividade ao texto que está sendo “narrado” pelo cantor. O compositor chega ao

requinte de, por vezes, colocar na partitura do piano os efeitos que caberiam ao sonoplasta

do teatro. Para cada novo foco narrativo são acrescidos novos elementos, no intuito de

evidenciá-lo. Assim, ele cria texturas, ambientação, paisagens e intervenções sonoras.

Essa característica acentuada de movimento foi explorada intensamente na

canção “Manha-Nungára!”. Foi isso o que nos motivou a optar por deixá-la para nossa

última análise. É o coroamento da concepção teatral de Waldemar Henrique.

Essa mescla de características narrativas e dramáticas nos remonta ao estilo

concitato, de Cláudio Monteverdi. Nele, os executantes devem dar igual importância à

música, ao drama e à cena. Esse estilo transforma a música em drama com o propósito de

“mover o espírito”36. Da mesma forma, Waldemar Henrique, utiliza os elementos da

música para obter o envolvimento do público com suas canções.

Não podemos saber se Waldemar Henrique tinha consciência de estar

compondo segundo as premissas de Cláudio Monteverdi ou se exclusivamente tentava

registrar a maneira especial com que o cabôco conta suas histórias. O contador de histórias

do Norte é quase um artista de teatro. Utiliza olhares, gestos largos, alterações de timbre de

voz e, é claro, alguns exageros, que ajudam a impressionar os ouvintes. Essa segunda

hipótese nos parece mais lógica, pois, como temos a oportunidade de ouvir de perto essas

estórias, contadas pelas pessoas nativas da região, identificamos na suave condução da

interpretação que Waldemar registrou na partitura, sua aproximação, consciente ou não, da

narrativa cabôca.

36
Ver bibliogafia, IGAYARA, Susana Cecília.
CXXIII

Nós, que já tivemos a oportunidade de vivenciar essa “teatralidade narrativa” no

seio da família e em nossas andanças pelo interior da Amazônia, identificamos em suas

notações de expressividade na partitura e na sua condução musical como um todo, a

tentativa de levar o intérprete a envolver-se ao máximo com o texto falado mais que com a

própria melodia. Sua escrita dá margem a uma boa movimentação cênica, facilitando o

envolvimento do público com o intérprete. Isso é altamente intencional. Ele direciona o

cantor, guia-o para uma interpretação mais espontânea.

Também já tivemos a oportunidade de cantar várias vezes essas canções para

algumas comunidades ribeirinhas que ainda vivenciam essas lendas. São locais ainda

dentro da realidade da floresta, aonde as pessoas vêm assistir ao recital de barco e deixam

seus chinelos à soleira da porta. Descalços e respeitosos como se estivessem em um

templo, sentam para nos assistir sem se importar com os sapos e pássaros que fazem

“fundo para a nossa música”. Essa gente vibra com as lendas de uma maneira especial,

impressionante. Ao final das apresentações, algumas pessoas vêm nos contar outras

histórias e vemos outra vez o maravilhoso universo descrito por Waldemar se expor diante

dos nossos olhos. A diferença é que não há música nessas narrativas. Essa contribuição nós

devemos a Waldemar Henrique.

Como fecho quase obrigatório para essa visão sobre a obra de Waldemar

Henrique e da trajetória que percorremos na realização da presente dissertação, estaremos

efetivando, no momento da defesa, um recital onde nossa visão analítico-interpretativa das

obras escolhidas ganhará, no palco, sua forma final.


CXXIV

“BIBLIOGRAFIA”
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CXXXI

ANEXOS
CXXXII

PARECERES SOBRE

WALDEMAR HENRIQUE E SUA OBRA

“Quem foi ao Pará parou, ouviu Mara e Waldemar ficou” – Mário de Andrade.

“Waldemar é que devia e podia escrever o verdadeiro “lied” brasileiro” –

Renato Almeida – comentário público citado no livro “Waldemar Henrique – O Canto da

Amazônia”, de Cláver Filho.

“Um dos melhores compositores populares e quiçá o melhor compositor

regional”. – Mariza Lira.

“Grande riqueza rítmica, intensidade dramática e manejo vocal” – Vasco

Mariz (ao ouvir os pontos rituais “Aba-Logum”, “Abaluaiê” e “No Jardim de Oeira”).

“Quem conseguir o disco “Canções de Waldemar Henrique”, interpretadas

por Maria Helena Coelho Cardoso, terá a oportunidade de descobrir, com maior

profundidade, o extraordinário compositor que é esse Waldemar Henrique, que tanta

gente só conhece ligado ao “Tamba-Tajá” – José Ramos Tinhorão.

“Waldemar Henrique inscreveu seu nome entre os mais importantes

compositores criadores de canções” – Vicente Salles.

“...sua música nos dá de presente , o melhor da alma e do povo brasileiro” –

Paschoal Carlos Magno, 1963.

“Na minha opinião é o mais notável compositor dentro do seu gênero.

Waldemar tem tudo: Talento Imaginação musical e técnica” – Èrico Veríssimo.

“As melodias e ritmos do Brasil do Norte chegaram até nós na arte de

Waldemar Henrique... Como é lindo esse Brasil incorrigivelmente lírico. E ele se encontra

com o Brasil do sul, que o esperava como um namorado espera o seu amor” - Menotti del

Picchia.
CXXXIII

“Sua obra tem a vocação da fertilidade como se fosse irmã gêmea das florestas

do Pará. Exuberante, surpreendente e ao mesmo tempo singela, discreta, sem

subterfúgios” – Turíbio Santos.

“...Waldemar Henrique, glória da música brasileira...” – Maestro Eleazar de

Carvalho – 1971, dedicatória em cartão postal.

“... você está diante do maior músico do Brasil... O que há na música

brasileira é Waldemar Henrique” – Paschoal Carlos Magno.

“Waldemar Henrique me revela a alma brasileira que venho procurando”. –

Cassiano Ricardo, 1935.

“É um excepcional criador de beleza que honra a sua pátria e a projeta por

esses mundos afora” – F.C. Pires de Lima – Madri, Espanha.

“...verdadeiros embaixadores da canção brasileira... deliciaram positivamente

os convidados do Círculo Eça de Queirós... triunfaram em absoluto... Foi um cosmorama

autêntico da paisagem étnica e sentimental do grande povo... Assim,apresentada e tratada

com amoroso e consciente carinho por quem sente a sua imensa riqueza e valor, constitui

um primor artístico e mais um elo a prender e a aumentar o amor das coisas brasileiras”

– sobre as apresentações de Mara e Waldemar em Lisboa e Porto - citado no boletim da

SBACEM, No.2, janeiro de 1950, pp. 10 e 28.

“Que interessante compositor e que magnífico acompanhante” – J. Espiñós

Orlando, “Diário de la Noche” – Madri, Espanha.

“Waldemar Henrique e Mara são verdadeiros embaixadores da canção

brasileira” – Diário Popular de Lisboa, 1933.

“Waldemar Henrique sem querer nos ensinar, ensinava. Com a clareza dos

deuses e a sutileza dos bons” – Ronaldo Miranda.


CXXXIV

“Waldemar, enquanto você estiver na terra, falta um anjo no céu!” – Luís da

Câmara Cascudo.

“Supondo que fôssemos mapear musicalmente o Brasil, identificando-o por

capitanias de ritmos, cores e cheiros, eu não teria a menor dúvida de apontar quatro

arquitetos sonoros que conseguiram identificar a nossa identidade cafuza e pluri,

traduzindo-a com sonoridades raras. Falo de Dorival Caymmi, Luís Gonzaga, Capiba e

desse genial paraense Waldemar Henrique, que há mais de trinta anos freqüenta minha

casa coração” – Hermínio Bello de Carvalho.

“Waldemar Henrique com sua fina sensibilidade e sua emoção criadora, nos

fez uma surpreendente descoberta, enriquecendo a nossa música” – Renato de Almeida,

1940.

“Waldemar Henrique é um caso raro no nosso panorama artístico. O Brasil

que vem saberá encontrar na obra do artista paraense um padrão de beleza, de

superioridade, de honrado sucesso, exemplo que poucos contam em sua geração”. –

Marques Rebello – nota em um programa de recital, 1948.

“...há uma injustiça a menos na história: Waldemar Henrique já tem sua vida

contada, a sua obra estudada em livro.” – Ary Vasconcellos – apresentação do livro “O

Canto da Amazônia”, de Cláver Filho, Rio de Janeiro, Prêmio FUNARTE, 1978.

“Ele provou com sua música que, quanto mais perto da origem, mais universal

é o artista” – Márika Gidali.

“Waldemar Henrique é o nosso curió humano... Compõe com inaudita

facilidade. Tenho mesmo a impressão de que lhe basta correr os olhos pelo teclado para

que o motivo desejado cresça e se desenvolva, espontâneo, justo, tradução em sons do seu

pensamento.” – poeta paraense Antônio Tavernard - revista “A Semana”, Belém-PA,

29/7/1933.
CXXXV

“Waldemar Henrique – um victorioso da música regional... transfundiu em

quanto brota de sua arte, como cascata de ouro sonora, toda essa esplendente natureza

que o cerca e que seus olhos, desde menino, se acostumaram a querer bem... tão simples,

tão elegantemente simples ...” – jornalista paraense Fernando Tasso – jornal “O Estado do

Pará”, Belém-PA, 18/08/1933.

“...estamos plasmando agora os legítimos motivos de uma arte definida e

característica; temos na música e na poesia , fortemente individuais do compositor de

“Suave Spleen”, um autêntico valor nacional” – Bruno de Menezes, poeta paraense –

jornal “O Estado do Pará”, Belém-PA, 18/08/1933.

“...fiquei encantado com sua música, toda emocional, transparecendo essa

sentimentalidade aguda de nossa raça, essa paixão de poeta, que nem sempre se extravasa

em versos.” – jornalista paraense Theodoro Brazão e Silva – crítica no jornal “A Folha do

Norte”, coluna Artes e Artistas, Belém-PA, 18/08/1933.

“...procurou fixar a expressão genuinamente popular, não erudita e nem

popularesca, de suas explêndidas composições – Abelardo Santos – comentário da

contracapa do disco “Canções de Waldemar Henrique”. DEX-9-15-404-001, de 1976.

“Waldemar – à guisa de sons e notas, poesias e músicas – pinta, esculpe,

canta, recita, compõe ao mesmo tempo em um só lance e inspiração admirável, a sua

imensa contribuição artística que conhecemos e aplaudimos”. – Augusto Meira Filho,

1976.

“A música de Waldemar Henrique é doce música primitiva, música daquelas

gentes do norte, música encharcada de lendas e angústias...” - Joel Silveira, músico

paraense.

“O paraense diante de quem os franceses caíram de joelhos não é outro senão

o nosso Waldemar Henrique” – Lindanor Celina, poetisa paraense.


CXXXVI

“Waldemar Henrique é o canto da Amazônia. Aquele que deu corpo musical às

suas lendas. O que vestiu de canção nossos mitos. Deu sentido aos sons da terra. Som ao

sentido flutuante dos rios. Som e sentido ao mistério das terras-do-sem-fim” – João de

Jesus Paes Loureiro, poeta paraense.

“Em sua carreira vitoriosa, correu mundo, mas não se cosmopolitizou.

Conserva, conscientemente, as marcas da sua origem. É um amazônida. Mais ainda: é um

paraense” – Maria Anunciada Chaves.

“Música do nosso peito, brotando na terra onde a matinta pede fumo pro

caboclo, com a sua tragédia, as sua queixas e os seus deuses com que ilude a sua

esperança e o seu destino” – Dalcídio Jurandir, poeta paraense.

“Se houvesse no Brasil um órgão dedicado ao nosso patrimônio cultural

humano com funções de tombar pessoas, ele já teria, certamente, tombado a figura ímpar

e singular de Waldemar Henrique, o nosso querido e simples Waldemar Henrique, o nosso

maestro” – Donato Mello Júnior.

“Waldemar Henrique foi para mim, num momento importante e decisivo da

minha vida, um elo entre a minha formação musical e a coragem de seguir a vida

artística” – Ed Lincoln.

“Temos a nítida impressão de que a natureza, em sua sabedoria, ao criar a

Amazônia e seu canto, não esqueceu também de criar o seu cantor e seu intérprete” –

Altino Pimenta, compositor paraense.

“Toda a sua inspiração converge para os motivos simples que nascem do povo

e crescem na sua arte, na sua música, no estilo imutável e profundo, dando as coisas

fisionomia própria” – Augusto Meira Filho, literato paraense.

“Waldemar Henrique é um compositor POP completo. Ele pegou a essência do

som regional, as imagens, as palavras, o sentimentalismo da alma porosa e húmida do


CXXXVII

nortista e adicionou seus conhecimentos técnicos, colocando seu talento nesta combinação

única a dar ao resultado o sucesso eterno” – Edgar Augusto Proença, literato paraense.

“Waldemar Henrique é a grande fonte de inspiração dos compositores e

intérpretes, que de alguma forma tem ligação com essa misteriosa e fantástica região que

é a Amazônia” – Paulo José Campos de Mello, superintendente da Fundação Carlos

Gomes. Belém, 1996.

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