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Dissertação apresentada à
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música,
sob a orientação do Professor Doutor Marco Antônio Ramos.
SÃO PAULO - SP
2003
II
WALDEMAR HENRIQUE
III
Dissertação apresentada à
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música,
sob a orientação do Professor Doutor Marco Antônio Ramos.
SÃO PAULO - SP
2003
IV
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
________________________________________
________________________________________
V
AGRADECIMENTOS
À minha mãe e meu pai queridos, pelo incentivo e apoio fundamentais para a
constante, incentivo, amor e pela mão forte com a qual eu sempre posso contar em
qualquer dificuldade.
Aos meus filhos, pela compreensão de ter uma mãezinha tão ocupada por tanto
tempo.
À Mavilda, minha querida irmã mais velha, por cumprir tão bem o seu papel
Aos meus chefes diretos Celson Gomes e Felipe Silva, pela liberação de carga
Flávia Toni, José Eduardo Martins, Lorenzo Mammi, Rubens Russomano e Marco A,
Ramos, pelo conhecimento repassado e pela boa disposição e carinho com que o fizeram.
À Profª Lia Braga, que lutou com afinco para que este mestrado se realizasse.
VI
disposição.
Aos Professores Jaqueline e Barry Ford, pelo auxílio gentil e emergencial que
A Maria de Belém e Ruth Menezes, pela ajuda tão bem disposta que nos
deram.
Lenora Brito, pelo companheirismo e lições de vida, dadas - muitas vezes sem saber - nos
deste trabalho.
A Waldemar Henrique,
humanidade.
VIII
RESUMO
N
a produção científica voltada para a análise musicológica, são poucos
Escolhemos dirigir o foco de nosso trabalho para algumas das obras de caráter
suas composições e pela maneira tão sensível com que retratou a Amazônia.
ABSTRACT
performers in this area being a major concern of the author provoked an interest in the
necessity of documenting ideas and practices with the finality of providing the performer
Henrique a composer from the Brazilian state of Pará. His works are almost entirely based
on Amazonian folk lore, and, as such, more clearly represent the region in the opinion of
the author.
X
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01
1. O ISOLAMENTO 06
2. A VIDA RIBEIRINHA 09
2. “COBRA-GRANDE” 51
3. “TAMBA-TAJÁ” 61
4. “MATINTAPERÊRA” 71
5. “UIRAPURU” 81
6. “CURUPIRA” 91
7. “MANHA-NUNGÁRA” 99
CONCLUSÃO 109
BIBLIOGRAFIA 114
ANEXOS 120
SUA OBRA
PARTITURAS
XI
INTRODUÇÃO
XII
A
música de Waldemar Henrique sempre foi ativamente executada no
contato com ela desde nossa iniciação musical na infância, em nossa prática discente como
aluna de piano e violino do Conservatório Carlos Gomes, e como espectadora das inúmeras
manifestações culturais de nossa cidade (Belém). Também tivemos contato direto com o
Anos mais tarde, quando o canto lírico passou a ser nosso instrumento
principal, nossa relação com a obra de Waldemar Henrique passou a ser mais estreita,
proporcionado tanto por nossa prática artística ativa como cantora lírica, quanto por nossa
atividade didática como professora de canto e violino há mais de 19 anos. Foi dessa
vivência que trouxemos todo o material básico para a realização desta dissertação. Não
falamos somente das partituras editadas, que já faziam parte de nosso acervo particular há
formadora de intérpretes.
memória, junto com as personagens fantásticas das histórias contadas por nossas avós, as
“Cobra-Grande”
Tamba-Tajá”
“Matintaperêra”
“Uirapuru”
“Curupira”
“Manha-Nungára”
aguardando por restauração desde antes do falecimento do autor. Não há nenhuma partitura
ou manuscrito a que pudéssemos ter acesso para completar nossa dissertação. Optamos
incentivado, pelo maestro italiano Ettore Bòsio, seu professor de composição e harmonia.
Sua vida de muitas viagens interrompeu-lhe o estudo formal, mas lhe permitiu ter outros
mestres de renome como Barroso Neto (piano), Arthur Bossman (estética e regência),
cabedal de conhecimento era respeitável e lhe valeu a honra de ser chamado pelo próprio
paraense de maior fôlego. Sua obra conta com mais de 200 canções, além de peças para
XIV
orquestra, solos instrumentais, trilhas sonoras para peças teatrais e filmes. É reconhecido
obra e pela figura humana desse compositor que nos moveu na escolha da temática deste
trabalho.
N
os quatro capítulos que compõem esta dissertação, faremos inicialmente
mais próximo dos temas e possa entender algumas de suas peculiaridades. Em seguida,
trataremos do universo imaginário que está presente de maneira quase tangível para os
Henrique para o Brasil e para nossa região (Cap.2), fazendo um resumo de sua biografia.
Por fim, faremos a análise das canções escolhidas (Cap.3), valendo-nos, para tais análises,
Ramos1, como base para o levantamento de dados. Após isso, selecionamos as informações
S
entimos segurança e interesse crescente por nosso objeto de estudo, que
visão sobre a interpretação das canções amazônicas para incentivar o estudo da prática
para escolher seu caminho interpretativo com coerência. Foi esse motivo que nos levou a
irecionar nossa pesquisa para as questões interpretativas, uma vez que identificamos
1
Canto Coral: do repertório temático à construção do programa – ECA-USP (ver bibliografia).
XV
CAPÍTULO 1
MERGULHANDO NO
CONTEXTO AMAZÔNICO
XVI
1. O ISOLAMENTO
“Com esta fúria contínua das águas e dos ventos, que são
ordinariamente as brisas violentas, a costa deste estado não é praticamente
nunca navegada...”
Vieira, Padre Antônio – Relação da Missão da Serra de Ibiapaba
relação ao resto do Brasil. Isso não se deveu apenas à imensa distância que separa o Norte
e o Sul do nosso país. O maior obstáculo para essa aproximação foi a floresta tropical
Amazônica, que com sua vegetação cerrada, umidade e temperaturas muito altas cria, além
doenças. A maioria dessas doenças é provocada pelos insetos, que se apresentam na selva
em grande variedade e quantidade, havendo muitos deles que sequer existem em outras
males transmitidos por eles não têm cura até hoje. Já é muita coisa para justificar nossa
Este ambiente hostil poderia ser evitado, se fosse possível chegar facilmente de
barco às maiores cidades, que estão nas margens mais largas dos muitos rios da região.
Mas, parece que a natureza conspirou para preservar a mata, pois também aí temos
encontradas mais de 250 carcaças de navios naufragados entre 1536 e 1983, somente no
Parcel de Manoel Luís2. Outro rio de acesso, o rio Gurupi3, após percorrer 719 Km, era
navegável apenas na sua metade inferior, interceptado por 32 cachoeiras. Esse rio também
2
Localizado a 0o45’ de latitude e 44o15’ de longitude da costa Maranhense.
3
Rio que separa o Pará do Maranhão
XVII
era povoado em ambos os lados, por indígenas arredios e guerreiros4, outro obstáculo ao
acesso.
além de ter pedras e corredeiras em um grande trecho, teve sua navegação proibida no
início do séc. XVIII, quando se descobriu ouro nas suas nascentes e a coroa portuguesa
temia que o metal fosse vendido no norte a contrabandistas estrangeiros, ao invés de ser
enviado ao Rio de Janeiro. A navegação só foi reaberta no final do séc. XVIII, mas a
rarefeita. A mata, sempre muito densa, além do alto índice pluviométrico, dos insetos, da
umidade excessiva, das pragas e epidemias, também contava com a proteção dos índios
assim um elo de separação mais do que de ligação até para os seus próprios extremos.
desse Brasil tão grande, informamos que a notícia do fim da Guerra do Paraguai só chegou
soubesse disso. Tínhamos mais contato com Portugal, do que com o resto do nosso país,
pois a colônia portuguesa é muito grande aqui. Construímos teatros de ópera na época de
apresentarem apenas em Belém e Manaus, sem pensar em passar pelo Rio de Janeiro ou
São Paulo. Nossa arquitetura colonial, na parte antiga das cidades, herança dos
4
Tribos Urubús, Guajás, Amanagés e Gaviões.
5
Nasce em Goiás e corta o Pará no sentido sul-norte até desaguar próximo da foz do Amazonas.
6
A extração da borracha na Amazônia teve seu apogeu no séc. XIX, quando foram construídos os teatros
Amazonas (Manaus) e de Nossa Senhora da Paz (Belém).
XVIII
portugueses, ainda causa surpresa na maioria dos turistas, mesmo os brasileiros, que
de maneira mais ampla em 1961, com a construção da rodovia Belém-Brasília, que deu
2. A Vida Ribeirinha
existem muitos agrupamentos humanos (vilas, arraiais) que sofrem com o distanciamento
natural, fruto das condições geográficas. Estão localizados, em grande parte, nas margens
de rios e igarapés, mas também nos ramais7 da floresta. Nesses agrupamentos, vivem os
fez muito presente. Também têm mistura com o elemento africano, pois os escravos
elevado da população regional e vivem no interior em condições simples. Suas casas são
de madeira e, quando localizadas à beira dos rios, palafitas. Seu grau de instrução é
incessantemente, pois precisa dele até para falar com um vizinho. Por causa disso, é muito
comum na região ver-se crianças menores de cinco anos manejando sozinhas e com
mestria as pequenas embarcações que pululam os rios. Tal fato não impressionaria tanto, se
os rios da região fossem córregos estreitos e mansos. Mas os rios amazônicos são muito
7
Ramais – estradas rudimentares abertas a partir das grandes rodovias asfaltadas.
8
Cabôco: corruptela da palavra “caboclo”, que significa “vindo do mato”.
XX
contornos da margem oposta dos rios principais. É isso o que faz ser tão especial ver os
profundos conhecimentos sobre a fauna e a flora regionais. Extrai da natureza farta seu
alimento e seus remédios. Muitos se mudam constantemente, por não possuírem uma terra
sua, vivendo quase sempre como posseiros e agregados. Na sua simplicidade e ignorância,
explicam os fatos da vida através do mundo imaginário. Os mitos e as lendas são para eles
fonte de sabedoria repassada para as gerações futuras através das narrativas orais,
típico da Amazônia vive em paz com a floresta e seus perigos, resolvendo seus problemas
de sobrevivência, amparado pela fartura e pela facilidade climática. Isso lhe faz ser moroso
e muitas vezes privo de ambição. Para comer, muitos só precisam sentar no batente da
porta de casa e jogar a linha de pesca. A espera do peixe é o grande trabalho. Também,
muitas vezes, o cabôco não constrói quatro paredes na sua moradia, porque se um dos
lados não pega chuva – “para que gastar material?”. Por aí vai a linha de pensamento do
homem rural da Amazônia, que tem fama de preguiçoso, mas que na verdade é somente
número de cursos d’água que banham a região Norte. Mostramos aqui apenas a rede fluvial
XXI
principal que banha o Pará. Lembramos que ligados a ela existem milhares de córregos,
igarapés, nascentes e braços de rio que não estão presentes nesse mapa.
3. O UNIVERSO IMAGINÁRIO:
A SEGUNDA REALIDADE
selvagem e o civilizado. Temos a companhia isoladora dos grandes centros urbanos, que
mata.
É costume ouvir muitos relatos sobre a estranha sensação que envolve aqueles
que adentram nas matas. Sensação de “olhos que se voltam sobre nós”, de estarmos sendo
observados por estranhas presenças, por forças ocultas que estão à nossa volta, mas não se
dessa impressão, mas é fato histórico que os imigrantes que vieram do sul do Brasil para o
sul do Pará, não suportam esse olhar constante. Tomam como primeira providência,
durante sua instalação, desmatar completamente muitos metros de floresta em volta de sua
nova morada. Não fazem isso com o intuito de plantar os gêneros de primeira necessidade,
viver sem a terrível impressão de que alguém os segue o tempo todo. É assim mesmo. É
marcante, impressionante.
XXIII
voz perto do mato, do lado de fora dos locais onde nos apresentamos, tivemos a nítida
impressão de que alguém havia chegado, respirado, pisado nos galhos do chão ou estava
sorrateiramente nos espiando cantar. Nunca vimos ninguém. Os cabôcos nos disseram:
alguns pontos, os três reinos da natureza. Temos homens que se transformam em animais,
como o bôto e plantas que reagem humanamente, como os tajás, que serão descritos mais
detalhadamente nas análises das canções. Existem até seres que são meio animais, meio
plantas, como o terrível bicho folharal, figura folclórica de monstro em forma de imenso
aglomerado de folhas, que caminha pela floresta e devora os que dele se aproximam,
quais ele não tem explicação, ou com os quais tem forçosamente que conviver, pois fazem
parte de sua realidade. Talvez tenha sido a saída encontrada para estabelecer uma ordem
social para aqueles que viviam longe das autoridades e longe da lei, enfrentando situações
que exigem regularização legal como a adoção, as relações extraconjugais e seus frutos, o
XXIV
problemas que poderiam trazer traumas e desajustes psicológicos para nós, filhos da cidade
grande, são por eles resolvidos com explicações fantásticas, que apaziguam os ânimos e
mãe que não possui filhos pede para criar o filho de uma parenta que tenha muitos e se
torna rna manha-nungára; aquele que não tem pai pode ser encantado, pois é filho do bôto
e assim sucessivamente.
É digno de nota que essas crendices não são usadas para resolver outras
questões além das que envolvem as relações humanas. Não se misturam as crenças com os
bens materiais, como as questões de terra, por exemplo. Esse universo imaginário foi
criado num tempo em que terra não era problema, pois havia muita e não pertencia a
ninguém, ou mesmo que pertencesse, ninguém a queria. As populações ribeirinhas até hoje
sofrem menos diretamente esse problema, pois vivem mais da pesca e da extração das
Hoje em dia, essas crenças estão fadadas a desaparecer, mas ainda se mantêm
vivas até na cidade grande e, enquanto o progresso não chega, o cabôco continua a ver
CAPÍTULO 2
BIOGRAFIA DE
WALDEMAR HENRIQUE
XXVI
Pereira e Joana da Costa Pereira. Sua data natalícia é, por coincidência, a mesma do
aniversário de inauguração do Teatro da Paz 9, para o qual ele dedicaria no futuro 15 anos
de extremada dedicação. Um ano após seu nascimento ficou órfão de mãe, tendo seu pai
casado pela segunda vez com Estefânia Rosa da Costa, sua tia. Ela foi seu referencial de
mãe. Por ela teve grande apreço toda vida, chegando a compor para ela a canção “Manha
Aos seis anos, foi levado para Portugal. Fez seu curso primário na cidade do
Porto e cedo adquiriu miopia, doença que fazia dele uma espécie de menino “leso”,
sempre a esbarrar em mesas e cadeiras. Zito, como era chamado na intimidade, retornou
a Belém aos doze anos, trazido pelos rumores da Primeira Guerra Mundial. Chegou
ansioso por voltar a sua terra, pois em Portugal teve de aprender a “sonhar, sofrer e
calar” 10.
do pai, que lhe dizia - “Piano é para moça”. Então, escondido, punha-se a praticar no
piano Dorner de sua casa. Em 1918, ainda sem o conhecimento do pai, começou a ter
aulas de piano com a professora Sinhá Moura Palha, tia-avó de Fafá de Belém.
composição e harmonia por Doris e Phillys Chase, duas jovens da sociedade paraense que
9
Teatro Nossa Senhora da Paz – construído em 1874, no período econômico da borracha, que fez do Norte a
região mais rica do Brasil. Foi erguido para receber as companhias de ópera que vinham da Europa
diretamente para Belém, Manaus e Recife.
10
Carta de Waldemar Henrique a Vicente Salles.Campina Grande (Paraíba), 17 de julho de 1974.
XXVII
dezessete anos, seria seu maior sucesso nacional. Mais tarde conheceu Ettore Bòsio,
maestro italiano radicado em Belém, com quem estudou harmonia e composição e foi
estudar com as professoras Beatriz Simões e Filomena Brandão, além do próprio maestro
não enxergar nada sem óculos, conseguiu entrar para o exército como recruta e aderiu à
11
Revolta Tenentista de 1924 , chefiada no Pará por Assis de Vasconcelos. A derrota do
levante lançou o jovem Waldemar no porão imundo de um navio, onde padeceu como
prisioneiro dos militares legalistas, chegando até a pensar em suicídio. Foi expulso do
12
exército e solto na véspera do Círio de Nazaré , o que considerou uma bênção da
Gomes.
Após esse fato, retomou sua vida normal, saindo aos sábados para tocar com o
violinista Mário Rocha, acompanhando-o ao piano nas tertúlias residenciais que faziam
Em 1930, viajou para o Rio de Janeiro, onde, continuando seus estudos teve a
que não pertenciam a sua região. Sentiu que poderia mudar o rumo de sua vida
transferindo-se para o Rio. Mesmo assim, ainda não foi desta vez que fixou residência no
Estado da Guanabara.
11
Revolta armada que fez parte do movimento nacional liderado pelos tenentes, em apoio às reformas de
Getúlio Vargas.
12
Círio de Nazaré – procissão centenária de Belém, considerada pelos paraenses a data mais importante do
calendário religioso, sendo comum se dizer que “o Círio é o Natal dos paraenses”.
XXVIII
Palace Teatro, onde foram apresentadas suas obras para canto, piano e orquestra,
novembro, mudou-se para o Rio de Janeiro com sua irmã e melhor intérprete, Mara, nome
conseguido realizar dentro dos muros do conservatório. Passou a freqüentar aulas estudar
Nacional de Música. Teve suas canções amazônicas gravadas pela Victor, com Gastão
Formenti e, pela Odeon, com Jorge Fernandes. A cantora Alda Verona ganhou o “Prêmio
do Disco Victor” com sua canção “Exaltação”. Suas canções “Minha Terra” e “Meu
Último Luar” alcançaram os maiores recordes de venda em disco e suas obras foram
Dourado”, a pedido de Hekel Tavares, mas a gravação trazia o nome do compositor como
Waldemar Pereira, que nunca foi seu nome artístico. Ainda nesse ano, ocorreu um fato
encomendada para o cinema. O filme “Maré Baixa”, do diretor Mário Peixoto não chegou
Mangaratiba, Angra dos Reis, Ilha Grande, Sepetiba e Restinga de Marambaia, onde o
compositor anotou suas impressões para compor os leitmotiv que deveriam apoiar as
cenas do filme.
jovens na época, como Dorival Caymmi e João Gilberto. Colocou muita música na pauta
para compositores que dela não entendiam o suficiente, como Joubert de Carvalho, Ary
principiantes, como Johnny Alf, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, Luizinho Eça, Ed
Lincoln entre outros. Indiretamente, também ajudou os calouros de rádio. Sobre seu
sucesso como compositor, disse certa vez Luís Gonzaga que, na fase do lançamento
nacional de “Minha Terra” na voz de Chico Viola, esse era o “hino” que todos os
Fez sua primeira excursão artística a São Paulo em 1935 e tornou-se amigo de
continuou seus estudos de harmonia, contraponto e fuga com Newton Pádua e composição
Após uma audição realizada na casa de Vera Janacópulos, onde foi cantada a
canção “Tamba-Tajá”, dedicada à anfitriã, foi convidado por Barroso Neto para ser seu
último aluno de piano. Em seguida, assinou contrato com a Rádio Tupi e, ao final do ano,
realizou um concerto no Instituto Nacional de Música, também com sua irmã Mara.
suplantado por Carmem Miranda, A Pequena Notável. Suas apresentações não perdiam o
e Charles Trenet. Ainda nesse ano, realizou uma excursão ao Nordeste e ao Norte do
XXX
Brasil: Recife, Pará e Amazonas. Retornou em maio a Belém para nova apresentação no
Teatro da Paz..
De volta ao Rio, escreveu a canção tema do filme “Cidade Mulher”, que teve a
pelo jornal “A Noite” - com a canção folclórica “Meu Boi Vai-se Embora”, conquistando o
prêmio de honra.
aniversário da Rádio Tupi. Obteve tal êxito, que o programa foi repetido em horário de
gala, ao mesmo tempo em que se apresentavam pela primeira vez no Brasil, os “Meninos
Cantores de Viena”.
Estudou estética e regência com Arthur Bossman durante os anos de 1937 e 38.
Nesse período, também compôs o tema musical da peça “Para Além da Vida”, do poeta
português Alberto Rebello de Almeida e foi convidado para ser Diretor de Arte do Círculo
Joãozinho da Goméa. Ainda em 39, retornaram ao Rio de Janeiro e Mara casou-se com
Jayme Ferraz.
13
ABI – Associação Brasileira de Intérpretes – entidade que promovia eventos culturais.
XXXI
poético-musical. Após isso, seguiu para Belo Horizonte onde lançou o Quarteto Brasil,
Passou a apresentar-se com a então iniciante, mas talentosa Maria Lúcia Godoy e
levou sua suíte folclórica à Rádio Nacional, durante o programa do maestro Radamés
Ciceroneado por Mário de Andrade conheceu os ateliês de Brecheret, Bruno Giorgio, Anita
Novaes, Sousa Lima, Camargo Guarnieri, Antonieta Rudge, Magdalena Lébeis, Oswald de
Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Fez excursões
Foi indicado por Villa-Lobos para apresentar-se com Mara em Buenos Aires em
maestro, que se declarava admirador do seu trabalho e o indicou para ser seu assistente no
pôde assumir o cargo proposto por Villa-Lobos, devido ao baixo estipêndio oferecido pelo
entusiasmado com o sucesso da dupla, contratou a ambos para uma tournée pela América
dessas viagens, mas o compositor continuou sua carreira fechando contrato editorial com a
XXXII
São Paulo. Também se apresentou nas temporadas dos cassinos de Santos, Poços de Caldas
Passou a dar aulas de solfejo e piano no Rio de Janeiro e fez programas de rádio
para emissoras locais. Ficou no Rio até 1943, quando foi nomeado diretor da divisão de
de Autores, Compositores e Editores de Música (SBACEM), cujo presidente eleito foi Ary
da ABI em 1948, a imprensa carioca classificou o evento como um dos três maiores
Carlos Gomes, mas o compositor recusou o oferecimento, pois havia recebido um convite
do governo português para se apresentar com Mara em Portugal. Assim sendo, o Itamaraty
14
Citado no livro “Waldemar Henrique: o Canto da Amazônia”, de Cláver Filho.
XXXIII
com recepção e diploma assinado por S.M. a Princesa da Baviera, os Infantes de Espanha,
Romero, a cantora Lola de Aragon, a harpista Lea Bach, os pianistas Gonzallo Soriano e
Javier Afonso e os críticos Regino Sainz de la Maza e Espinós Orlando – “A los grandes
artistas cuyo recuerdo quedará imborrable, como testimonio de admiración por su fino arte
y sua simpatia”15.
Scize, diretor do jornal “Le Figaro”, o compositor Darius Milhaud, a cantora Madalena
Retornando da Europa, o duo preparou uma longa turnê pelo Brasil, que iniciou
em 29 de abril de 1951. A turnê começou no Amapá e foi para Belém (Teatro da Paz), São
Luís (Teatro Arthur Azevedo), Fortaleza (Teatro José de Alencar), Natal (Teatro Alberto
Tamandaré.
Companhia Teatral Folclórica Brasiliana e partiu com ela para Buenos Aires, onde se
Foi nomeado para a Rádio Roquette Pinto em 1952 e não tardou a assumir a
15
Citado no livro “Waldemar Henrique: o Canto da Amazônia”, de Cláver Filho.
XXXIV
Adelaide de Bragança e foram ouvidos pelo rei Humberto de Savoia, pelos reis da
(com Maria D’Apparecida) e Chants du Monde (com Alice Ribeiro). O inverno rigoroso de
1955 fez com que Waldemar declinasse do convite para apresentar-se em Londres e
retornasse para o Brasil, onde retomou suas atividades na Rádio Roquette Pinto.
melodia-tema da peça de João Cabral de Melo Neto “Morte e Vida Severina”. Ainda nesse
ano, a peça também foi encenada em Recife, para onde Waldemar seguiu a fim de orientar
os ensaios.
Também em 1958, foi indicado por Radamés Gnattali para ocupar a cadeira nº 49
Mariza Lira como “um dos melhores compositores populares e, quiçá, o melhor
compositor regional”16.
16
Diário de Notícias, Rio, 27 de Julho de 1958.
XXXV
colaborar com Mariza Lira num programa de folclore da rádio Roquette Pinto.
Namorador”, que estreou em Belém em 1961. Ainda nesse ano, teve algumas obras suas
Passou dois anos em Belém, de 1962 a 1964, contratado pela Universidade Federal do
Pará para trabalhar com o Coral Ettore Bòsio, tendo se apresentado duas vezes com o
governador Seixas Dória, para organizar um coral. Em março desse ano, já havia
Escreveu para Augusto Meira Filho, manifestando este seu desejo. Nesse ínterim,
Municipal. Sem respostas de Belém, Waldemar aceitou a oferta e foi para o Teatro em
SAI – Sociedade Artística Internacional – instituição sem fins lucrativos que organizava eventos musicais.
17
Comemorativa dos 350 Anos de Belém”. Iniciou um trabalho junto ao grupo de teatro
da UFPA, que ganharia muitos prêmios pelo Brasil e, em setembro desse ano, foi
Medalha “Olavo Bilac”, da SECDET, por sua luta para reestruturar o Teatro da Paz.
Em 1969, excursionou com o Coral Ettore Bósio pelo nordeste, apresentando-se sempre
presidiu o 1o. Festival de Música Popular do Baixo Amazonas e foi ao Rio de janeiro
Prata” oferecido pelo Conservatório Carlos Gomes por sua conferência intitulada
12 prêmios com a peça de Jorge Andrade “Vereda da Salvação”, encenada pela Escola
de Teatro da UFPA, com música de sua autoria. Em agosto desse ano, pronunciou
Ettore Bòsio ao Rio de janeiro, tendo sido entrevistado pelo maestro Isaac
Meirelles.
Silva, para realizar dois recitais com suas composições no Palácio da Foz. Teve como
intérpretes Tereza da Silva Carvalho, Ana Maria Martins e Terezinha Reis. A viagem
foi patrocinada pelo Itamaraty, pela UFPA e pela Fundação Cultural do Estado do
Pará.
Teatro da UFPA, e na direção do Teatro da Paz. Canções de sua autoria foram gravadas no
Brasil e no exterior: França, Estados Unidos, União Soviética, Argentina e Inglaterra (BBC
de Londres). Foi inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil como compositor e professor de
convocada pelo ministro de Educação e Cultura, para tratar dos assuntos relativos ao VII
Câmara Municipal de Belém, em reconhecimento pelo seu trabalho. Foi nesse ano que teve
as obras do maestro. Pena que tal fato só tenha vindo a se concretizar em 1976. Mas a vida
musical de Waldemar não parou nem por essa demora, nem pelo seu problema de visão,
que piorava a cada dia. Sempre envolvido com o teatro, levou o Grupo de Teatro da UFPA
Música” pelas melodias compostas para a peça “A Incelença”. Também teve o prazer de
ver sua canção mais famosa, “Minha terra”, ser cantada pelo Coral Acadêmico XI de
Médici, no Palácio do Planalto, em Brasília. Por essa época o maestro contava com a visão
Também foi agraciado com a Comenda e Troféu “Personalidades” – 74, oferecida pelo
jornal “O Liberal”.
apenas como diretor do Teatro da Paz. Passou a lecionar no Centro de Letras e Artes da
XXXIX
UFPA e a fazer parte da tesouraria do Conselho Regional da Ordem dos Músicos do Brasil,
do qual fora presidente em exercício anterior. Concedeu uma entrevista sobre sua vida e
obra ao jornal “A Província do Pará”. Essa entrevista foi fixada nos anais da Assembléia
Legislativa, por proposta do deputado Antônio Teixeira. Também em 1975, uma dura
notícia entristeceu Waldemar: morreu no Rio de Janeiro, Idália Mara da Costa Pereira, sua
moradia para poder tomar conta do prédio durante a noite, pois as autoridades não
Estado.
governo de Aloysio Chaves e teve na voz de Maria Helena Coelho Cardoso uma
uma das faixas do disco uma das canções preferidas do maestro. Ainda em maio, foi
Federal e do III Encontro de Artes da UFPA. Também tomou posse na Academia Paraense
de Letras, ocupando a cadeira cujo titular foi Domingos Antônio Rayol, o Barão de
Guajará, sendo recebido com um belo e detalhadíssimo discurso proferido pelo acadêmico
EMBRAFILME divulgou um documentário sobre sua vida e obra, feito no ano anterior e
foi convidado para a entrega da “Coruja de Ouro”, em São Paulo, preparando para essa
ocasião um recital de obras suas com a cantora Maria Lúcia Godoy. Mas o ano foi marcado
da injusta omissão da parte do Governo foi feita com a nomeação do mais novo teatro da
belo prédio da antiga Caixa Econômica Federal, foi reformado para dar lugar a atividades
falha do governo e providenciaram a confecção de outra placa com os dizeres: “Ao Teatro
da Paz pelo seu 1º Centenário e ao seu ilustre Diretor Maestro Waldemar Henrique esta
Homenagem do Povo do Pará, 15-2-1978”. Essa placa foi colocada ao lado da placa
problema de visão já não lhe permitia mais trabalhar. Seu campo visual se reduziu a um
pequeno orifício por onde, dizia ele, “com meus óculos posso enxergar tudo com perfeição,
mas é um campo de visão tão pequeno que me dificulta toda e qualquer atividade que
dependa da vista”18. A idade avançada já não lhe permitia a atividade que tanto o
estimulava. Ainda foi alvo de grandes homenagens em vida, como o desfile, em 1987,
18
Depoimento que nos foi feito em uma conversa particular nos bastidores do Teatro da Paz.
XLI
como destaque da escola de samba “Império do Samba Quem São Eles”, escola de cuja ala
Teatro.
Seu corpo foi velado no hall do Teatro da Paz. Durante o velório, vários artistas
suas músicas. Momento inesquecível para quem dele participou, esse último recital na
presença do maestro reuniu lágrimas e música em forma de prece. Seu corpo foi levado por
para o cemitério de Santa Isabel, onde foi enterrado. No trajeto, o povo pelas ruas parava e
levantava as mãos, num último adeus. Muitos carros seguiam atrás, buzinando em coro
jornalistas e o povo em geral seguiam o cortejo fúnebre, sempre cantando suas canções.
Henrique escreveu seu nome na história da música do Pará e do Brasil, com seu talento,
simplicidade, doçura e sua dedicação integral à música, com a qual se declarava “casado”.
XLII
CAPÍTULO 3
1. ASPECTOS GERAIS
Achamos necessário narrar cada uma das lendas abordadas pelas canções antes
contexto poético sobre o qual foi concebida cada peça. Também comentaremos cada lenda,
acrescentando mais alguns dados que nos pareceram importantes para esse entendimento
preparatório.
A análise do texto será feita do ponto de vista do seu teor regional e do valor
intrínseco do seu conteúdo semântico para sociedade a qual se reporta. Dessa maneira
aquela realidade. Esse conhecimento é fundamental para nós, intérpretes, pois nos ajuda a
imprimir força dramática ao que cantamos. É assim que, para interpretar uma canção que
fala do suicídio romântico, por exemplo, devemos nos inteirar da força expressiva que essa
idéia tinha na sociedade européia do séc. XVIII pois, para os nossos dias, ela é absurda.
Sem essa informação, não conseguiremos ser fiéis à nossa arte, nem conseguiremos tocar o
público atual, convencendo-o de que essa idéia é muito forte e verdadeira para a
arte não se dará. Sem carga emocional que baste para a realização desse processo, esvai-se
o sentido da arte.
A análise das peças será sempre voltada para a interpretação. Cada item
mencionado será correlacionado com suas implicações interpretativas, pois esse é o foco
As canções que iremos analisar são sete canções sobre temas do imaginário
amazônico. Todas elas têm tema e arranjo do próprio compositor e foram escritas
2. “Cobra Grande”
3. “Tamba-Tajá”
4. “Matintaperêra.
5. “Uirapuru”
6. “Curupira”
7. “Manha-Nungára”
Dessas canções, apenas a última não trata de uma lenda específica, pois Manha-
Nungára significa simplesmente “mãe adotiva” na língua indígena. A canção fala sobre a
com ênfase para o papel dessa figura muito forte na região Norte do Brasil.
XLV
D) SOBRE AS EDIÇÕES
partituras retiradas da última edição da obra de Waldemar Henrique feita em Belém. Esta
edição data de 1995, e foi feita pela Fundação Carlos Gomes e pela Imprensa Oficial do
contém 63 peças.
Mello, Augusto Teixeira, Felipe Andrade Silva e Jorge Santos de Souza. Os revisores
tiveram acesso aos manuscritos originais. Foram mantidas as datas e dedicatórias dos
com a intenção de imitar o falar característico da região de onde os temas foram recolhidos
ou inspirados.
leva a crer que sejam do próprio autor, já que todas as informações foram retiradas dos
manuscritos originais.
entre si, foi substituída pela escrita instrumental moderna, tal como fazem grandes editoras
tem como editor E. S. Mangione (único autorizado), na edição “A Melodia” de São Paulo e
XLVI
Rio de Janeiro. Vem com o número de série: ESM1356, do ano de 1933 e tem escrita
Henrique nas canções “Foi Bôto, Sinhá!” e “Matintaperêra”. O autor não as escreveu para
hoje, bairro de Belém. Morreu em 02/05/1936, vítima de hanseníase. Foi grande amigo de
Waldemar Henrique. No final da vida, por causa da doença que o vitimou, passou a morar
isolado em um sítio da família chamado “Rancho Fundo”, mantendo sempre contato com o
canções. Sua veia poética lhe valeu o reconhecimento dos literatos de Belém, que o
são muito raros na sua obra, quer os versos sejam seus ou não.
Pedimos aqui uma licença acadêmica para utilizar algumas palavras, expressões
pretendemos alterar o cunho científico deste trabalho, mas tornar conhecida uma parte da
XLVII
maneira de ser do povo amazônico, que vive ainda meio na terra, meio no mundo
amazônida típico, usaremos sempre o termo “cabôco”19, pois é assim que eles se
19
Cabôco – corruptela da palavra “caboclo”, que significa vindo do mato.
XLVIII
A) A LENDA DO BÔTO
belo rapaz, que se veste todo de branco e usa sempre um chapéu, também branco, na
cabeça. Esse chapéu nunca é retirado, pois serve para esconder o orifício que o bôto,
enquanto peixe, tem na testa e usa para respirar. Não se sabe por que esse orifício não
desaparece na sua transformação quase perfeita. Bonito, elegante e bem vestido, é bom
festa dança, conversa e namora. Depois, convida a namorada para um passeio, onde faz de
tudo para seduzi-la. Seu poder de sedução é incrível, hipnótico. Muitas de suas vítimas
foram “salvas” no último momento porque alguém gritou, fez barulho e as tirou do transe.
Após o envolvimento sensual, o bôto se atira no rio e volta à sua forma animal. A
namorada, encantada, fica triste. Muitas vezes adoece e finda por se atirar no rio à procura
do seu amado. As que resistem ao suicídio acabam por parir uma criança que pode ser
bôto, já nascer na forma de peixe ou ser normal. Muitas são as histórias de parteiras que
viram nascer peixes do ventre dessas jovens. Se nascer uma criança, a mãe a banha no rio
para ver se o filho se transforma ou não em bôto. Também há os casos de crianças que, se
O bôto também é atraído pelo cheiro da menstruação feminina, que ele percebe
dentro d’água, mesmo estando longe. Mulheres que se atrevem a andar de canoa durante o
período menstrual, ou se banhar no rio nesse estado, correm o risco de ter suas canoas
Diz-se que, quando alguém consegue ferir o bôto enquanto o bicho está
transformado em homem, ele logo procura jogar-se no rio para refazer suas forças. Depois,
é só esperar, que ele vai aparecer em forma de peixe ferido ou morto nas redondezas.
Existem muitas histórias de gente que atirou ou feriu de morte, com faca ou arpão, o moço
LI
de branco e no dia seguinte achou um peixe morto, com os mesmos ferimentos que foram
para a margem do rio; ampara as canoas em banzeiros20 e temporais; enxota cardumes para
O bôto também tem sua versão feminina, mas essa não se transforma em
seduz até ser possuída, levando-os para o fundo do rio. Dizem que o órgão sexual da bôta
proporciona tanto prazer, que quando um homem é encontrado durante o ato sexual com o
A.1) Comentário
encontrado nas cores branca, preta e cor-de-rosa. O mais comum é o bôto tucuxi, o preto.
Os cabôcos não matam nem arpoam esse peixe para comer. Sua pesca só se dá para fins de
magia. Para isso, dele são extraídos os olhos e os órgãos sexuais, que se assemelham aos
órgãos humanos e servem como amuleto ou atrativo para as questões amorosas. É claro
que tais apetrechos têm que ser preparados de acordo com os processos da pajelança
amazônica. Tanto os olhos quanto os órgãos sexuais são de um poder atrativo fantástico,
devem ser usados dentro de um recipiente que permita que se enxergue através dele e
20
Banzeiros – movimento das águas, que provoca ondulações.
21
Bôta – termo usado pelos cabôcos para o bôto fêmea.
LII
assim, olhar para a pessoa que se quer seduzir. Quer seja homem, quer seja mulher, aquele
que for visto através do recipiente onde o olho esteja será magicamente atraído. Já o órgão
sexual, também seco, tem que ter um pedaço retirado e colocado dentro do vidro de
perfume usado diariamente. Se for homem, usar o sexo do bôto macho e se for mulher, o
do bôto fêmea. Nesse caso, todas as pessoas que sentirem o perfume serão atraídas.
Socialmente perfeito, o mito “bôto” se mantém vivo até hoje por resolver
engravide de um filho sem pai não é vista como pecadora, mas como vítima. O homem que
marido, este não foi traído. E o mais especial de tudo: ninguém fala de violência sexual!
Nunca ouvimos ou lemos nada a respeito. Tudo é sempre muito bom, irresistível, mágico e
ainda mais: acontece nos cenários paradisíacos das margens maravilhosas dos rios. Quanta
sabedoria! Sendo assim, se uma filha ou esposa tiver uma noite de prazer irresistível, com
sentimento de culpa, não há criminoso, não existem traídos e, logo, não existe vergonha.
Todos os envolvidos no acontecido têm um álibi social perfeito: foram vítimas das forças
da natureza. É a sabedoria do cabôco, que aceita os fatos da vida, tão comuns e tão
humanos, como algo normal. Mágico, como é a atração dos corpos, mas normal.
LIII
B) TEXTO
7. No tar dansará,
8. Aquele doutô,
9. Foi Bôto, Sinhá...
10. Foi Bôto, Sinhô!
11.
histórias contadas com a veracidade característica dos cabôcos22. O Bôto é saída social
para as moças que engravidam sem casar. Desculpa fundamental que desvia a jovem do
papel de pecadora para o de vítima. O mito também serve muito bem para o rapaz que
engravidou a jovem, que não será procurado, nem identificado, nem responsabilizado.
sendo talvez esta a razão que o mantém tão vivo até hoje.
O texto tem palavras de uso regional que precisam ser identificadas e ter seu
Tajá-Panema (1º verso) – tajá: planta de folhas grandes e sem flor, muito
Panema é uma variedade de Tajá que “chora”, pois expele gotas de líquido de
suas folhas. É dito pelo povo da região que esse fenômeno se dá como
Tar (7º verso) – tal. Escrito com r no final para imitar a maneira cabôca de
membro viril.
22
A UFPA tem um vasto trabalho de pesquisa e recolhimento dessas histórias (bibl. SIMÕES, Mª do
Socorro)
LV
vigiá (vigiar).
resistiu.
norte o s só é sibilante no começo de palavra. Ao final nunca, pois isso é para os falantes
da Amazônia uma característica de outras regiões. Ex: mas = mach, mesmo = mechmo,
lesma = lechma.
história se dirige a pessoas diferentes (Sinhá e Sinhô), o que ajuda nos ajuda no
direcionamento cênico.
C) ASPECTOS MUSICAIS
A canção “Foi Bôto, Sinhá!” foi composta em 1933 e dura 2’25’’ ca.
(tonalidade muito utilizada pelo autor) e possui tessitura muito confortável: uma oitava a
23
Talvez por beneficiar o registro vocal de sua principal intérprete Idália da Costa Pereira, sua irmã, cujo
nome artístico era Mara.
LVI
uma melhor compreensão do texto por parte do ouvinte. Porém, essa facilidade exige mais
de nossa dicção, pois o texto precisa ser bem pronunciado, sem artificialismos que
dificultem sua compreensão. O texto é soberano quando se conta uma história e, no caso de
Waldemar Henrique, o texto é tratado com mestria, pois o compositor coloca toda a
partitura a seu serviço, como veremos a seguir. É preciso analisar o teor do texto e se
informar sobre sua contextualização regional para não corramos o risco de despir a canção
da sua dramaticidade.
A canção traz como tema uma lenda cuja importância para a sociedade
ribeirinha24 é, ainda hoje, altamente pertinente, porque ainda é viva. O conhecimento desse
fato é fundamental para a compreensão do caráter dramático da narração, o que pode nos
alterações na mão direita (compassos: 9, 11, 13 e 15), que funcionam como cromatismos
expressivos:
24
Ver introdução e primeiro capítulo deste trabalho.
LVII
o ouvinte para o discurso. Aqui, já devemos estar com nossa expressão facial preparada, e
podemos conduzir gestos e olhares para chamar a atenção do público para a gravidade da
uma diferenciação de execução do trecho, que pode ser feita através da exploração das
nuances interpretativas, de timbre e/ou dinâmica, para levar o público a ouvir com
sensual com a figuração rítmica mais fluida e com os cromatismos, e a canção atinge seu
clímax com a constatação do fato de que foi o Bôto quem seduziu e levou a moça. Essa
seção merece um destaque especial que pode ser dado pela dinâmica e que ponha em
da fatalidade.
tempo do compasso 21. Aí temos um Da Capo para que a segunda estrofe possa ser levada
parte do discurso.
emitindo nenhum som, mas a interpretação continua e não podemos deixar morrer a
dramaticidade da nossa expressão, pois a canção ainda não acabou. Nossa postura e face
LVIII
devem manter-se dentro do contexto grave da peça, até que a última nota do piano
desapareça.
e sua variante:
momento. Essa “batida” é como um toque de tambor solene e constante, como o de uma
marcha fúnebre. Isso faz com que se crie a atmosfera pesada e densa da música, que nos
guiará na escolha do andamento, que não é indicado pelo compositor. Podemos considerar
CANÇÃO
SIRIÁ
nenhum desses dois aspectos de lado. A marcha fúnebre aqui tem seu “gingado”, como
usados sempre na sua função construtiva26. Têm função temporal na construção da célula
rítmica constante em toda a peça na mão esquerda e função rítmica ao anteceder a melodia
da mão direita do piano nos compassos de 9 a 15. Neste trecho (9 a 15), também
marcando a sensualidade e o aumento de tensão. Essa tensão terminará por diluir-se com o
rallentando (compasso 20), que nos reportam a nuances dessa tensão. O intérprete poderá
25
Dança sensual de origem negra, da cidade de Cametá. Foi assim denominada em alusão à atividade de
captura da grande quantidade de siris do lugar.
26
Fazendo parte de maneira indissociável do pensamento musical, ao nível da estrutura, dos procedimentos
de composição e de instrumentação.
LX
envolver completamente seu público se tirar partido desse jogo de tensões, traduzindo-o
essas indicações são coerentes, porque foram colocadas pelo compositor de acordo com a
“COBRA GRANDE”
LXII
LXIII
A) A LENDA DA COBRA-GRANDE
Pode ser escura, ou, segundo alguns, ter as cores: vermelha, preta e amarela. Seus olhos,
fora da água, têm uma luz própria, forte e brilhante, que hipnotiza e paralisa suas vítimas e
De apetite voraz, além de atacar em terra, faz virar canoas e até barcos grandes,
a fim de devorar seus passageiros e tripulantes. Matá-la atrai desgraça e ruína. Quem a vê
fica cego, quem a ouve fica surdo e quem a segue fica louco. Muitos que a viram voltaram
mudos, com febre e assombrados. Não existe nela nada da sensualidade de tantos outros
mitos. Não se transforma em homem ou mulher, não seduz, não ajuda. Ataca sempre para
matar.
quando sente a aproximação de outra embarcação, voa e desaparece. Pode fazer o barulho
de um motor de barco ou ser silenciosa como todo réptil. Nas águas, parece um imenso
A.1) Comentário
regiões. É baseada em fatos reais e vivos até hoje. A fauna amazônica é rica em espécies
de ofídios e muitos deles alcançam grandes proporções quando adultos. Dessa maneira, é
comum ainda hoje se ouvir histórias reais sobre pessoas e animais devorados inteiros por.
É comum nas fazendas de gado de beira de rio, muita rês desaparecer, ficando apenas a
cabeça que as cobras degolam por causa do chifre. Nos povoados ribeirinhos não há
27
Do Tupi: Mboi-cobra + una - preta, ou Mboi – cobra + açu - grande. Também escrita como está no verso
da canção: Boi-Úna, palavra composta.
LXIV
energia elétrica, não existem armas possantes, o meio de transporte é uma pequena canoa e
compreensível o quanto a população se sente à mercê desses bichos. Assim nasceu o mito
da Boiuna ou Cobra-Grande.
mesmos foram erigidos sobre a morada de uma Cobra-Grande. Quando a cobra se mexe, a
pessoas disseram que era a cobra que se revirava, pois é sabido que ela tem sua cabeça
enterrada sob o altar da Igreja do Carmo e a cauda sob a Igreja de Nossa Senhora de
Nazaré.
lugar conhecido como “Buraco da Cobra-Grande”, que não se sabe até hoje se é ou já foi
moradia da cobra, pois ninguém do lugar tem coragem para entrar e conferir. Mesmo
B) TEXTO
“Cobra-Grande”
1. Crédo! Cruz!
2. Lá vem a Cobra-Grande,
6. Crédo! Cruz!
7. Cunhantã te esconde
8. Lá vem a Cobra-Grande
9. Á-á...
12. Á-á...
22. Êh Cobra-grande
boiaçu, apesar de ser uma lenda, é um mito baseado em fatos reais, como já dissemos
Esse medo está marcado desde o início nos versos 1 e 6 , quando o narrador
esconjura a cobra; no verso 7, quando exorta a moça a fugir; nos versos 10 e 11, quando o
narrador aconselha que seja pedida a proteção divina; no verso 14, que diz que todos
fugiram de medo; e, finalmente, no verso 17, pois a moça não dormia em paz. Não
podemos esquecer dos versos 9 e 12, que só trazem o á-á, aqui usada como expressão de
temor.
quando ela saiu” (verso 13) e o luar, que, clareando a figura da jovem, revela à cobra onde
está a presa, é considerado como uma mortalha. Não há como escapar da fatalidade.
A boi-úna tem muitas armas. É rápida (verso 15) e ainda pior: é silenciosa
(verso 16). O clarão mencionado nesse verso é a luz hipnótica que sai dos olhos da cobra e
Apesar de ser muito regional como tema, há nos versos apenas duas palavras
regionais:
cunhantã e nós podemos tirar partido dele para uma alteração de timbre, dinâmica ou
direcionamento corporal. Também podemos considerar que o narrador fala ora para si
mesmo, ora para um ouvinte da história (ex: verso 22). Cabe-nos decidir se isso será
C) ASPECTOS MUSICAIS
canção anterior. O compositor inicia a peça com um compasso introdutório no qual, apesar
da tônica sustentada na mão esquerda, temos uma poli-tonalidade na mão direita. O efeito
canto). Essas indicações e a harmonia sugestiva nos dão uma boa base para a concepção
Fermatas - compassos 2, 6, 11, 14, 18, 20, 22, 23, 24, 25 e 26.
Temos assim, vários sinais expressivos a seguir. Essas indicações, aliadas aos
diferenciação de timbre no compasso 12, que se repete quatro vezes na execução da obra e
tem uma pequena vocalização sobre duas notas com a vogal a. Não devemos fazê-la sem
pensar na sua ligação com o texto, pois é uma clara expressão de temor e uma
impressão cromática interessante. Um recurso que soa exótico aos nossos ouvidos e
narrativo, com uma descrição grandiosa do cenário. A cada mudança de foco, novas
no público com esse final profundamente teatral, pensado e medido para amedrontar.
compositor usa muitos elementos estruturais para reforçar esses aspectos. A poli-
adensa nos momentos de maior dramaticidade, como nos compassos 9, 10, e 19 a 24. Há
uma economia de saltos na linha do canto que facilita a clareza da narrativa. Muitas
bruscos que se seguem a elas, indicados pelo autor, dão um movimento assustador à
melodia.
uma 7ª, que acontece apenas uma vez (antes da coda). O salto de 6ª também acontece
Uma oitava a partir do Ré central do piano. Muito confortável e, desta vez, o compositor
reservou a nota mais aguda para o final. Que maravilha para nós, podermos executar, no
final de nossa performance uma nota que parecerá tão aguda, mas será feita com toda a
tranqüilidade! Eis aqui uma ótima oportunidade para a exibir de dotes vocais sem nenhum
perigo.
conhecer muito bem o teor do texto e “contar” a história com veemência e excelente
dicção, sem arroubos líricos que dificultem a compreensão do texto para dar o devido
caráter à peça. Existe uma íntima relação do texto com a maneira sincera e viva com que os
cabôcos contam suas histórias. Muitos gestos, olhares e direcionamento cênico podem ser
24 (após as fermatas). No compasso 10, a pausa tem função transformadora, pois auxilia o
fatos.
LXXI
“TAMBA-TAJÁ”
LXXII
LXXIII
A) A LENDA DO TAMBA-TAJÁ
Na tribo dos índios macuxys havia um índio que, por muito amar sua esposa,
levava-a sempre consigo para todo lugar, fosse para caçar, pescar ou lutar. Certa vez, o
índio teve que ir para a guerra, mas a esposa ficou doente, sem poder andar. Não querendo
separar-se de sua amada, ele fez um saco com folhas de bananeira, para poder carregá-la
nas costas. Durante o combate, sua amada foi ferida e morreu. O índio, desesperado de
amor, enterrou-se junto com ela. No lugar onde jaziam seus corpos, nasceu um tajá28
diferente, pois atrás de cada grande folha verde da planta nascia grudada uma pequena
folha de forma vaginal. Renasciam assim os amantes, unidos novamente para sempre.
A.1) Comentário
Inúmeros são os tipos de tajás e inúmeras são suas atribuições talismânicas. Sua
origem mitológica está ligada aos índios macuxys, que viviam ao sabor das hordas
inimigas, sem pouso certo. Até que o chefe Pakalamoka recebeu da Mãe-do-Mato os tajás
que davam saúde, paz, amor e felicidade e os levou para seu povo.
ser amado. Para isso, deve mantê-lo a salvo de todos os olhares ou, segundo alguns, expô-
lo o mais que possa, para ativar sua força mágica. Pode-se pedir a ele proteção para o
simpatias e perfumes conhecidos dos pajés e das curandeiras entendidas em ervas. Eles
são, ainda hoje, os médicos, as parteiras e os psicólogos dos lugares ainda sem acesso fácil.
28
Planta sem flor, com folhas em forma de coração. Contam em grande variedade na Amazônia. É conhecida
em outras regiões como tinhorão.
LXXIV
São hoje na região, o que eram as bruxas na Europa das idades Antiga e Média. Tendem a
B) TEXTO
“Tamba-Tajá”
1. Tamba-Tajá
2. Me faz feliz,
5. De mais ninguém,
7. Todinho meu,
8. De mais ninguém...
9. Tamba-Tajá,
14. Tamba-Tajá...
15. Tamba-Tajá,
20. Tamba-Tajá...
Tajá. As plantas têm, na Amazônia poderes curativos e mágicos, conhecidos pelos pajés e
que a pessoa que canta se dirige a ele fazendo um pedido, uma espécie de prece pagã, que
não é menos desprovida de fé que uma prece religiosa, pois os cabôcos acreditam piamente
no poder das plantas. Desse modo, devemos revestir de uma certa religiosidade sua
execução.
Tamba-tajá (1º, 9º, 14º, 15º, 16º, 21º e 22º versos) – de tambá - concha e
é constituído de grandes folhas em forma de coração, que têm cor verde escura
e com uma pequena folha em forma vaginal grudada atrás de cada uma das
folhas grandes.
Fica assim o regionalismo do texto mais por conta da atitude descrita nos versos
tempo ao tamba-tajá, e devemos estar atentos para esse fato, para não adotarmos desvios de
C) ASPECTOS MUSICAIS
extensão é confortável e vai do Dó central ao Ré, uma oitava acima. Seu texto é totalmente
silábico.
Essa canção tem uma característica muito especial: toda a linha do canto, na
primeira parte (compassos de 5 a 12), é feita sobre duas notas (Mí e Fá). Isso valeu a
“Será que uma música como Tamba-Tajá, cuja primeira parte é tão
horizontal e a segunda é que se mexe, não foi a origem de, entre outras, o
Não nos deteremos na análise dessa conjectura – pois não é o nosso objetivo
segunda parte;
pois o cantor não tem como fugir dele. Não há dificuldade técnica de extensão, emissão,
ritmo, saltos etc. Mas a simplicidade e a transparência solicitadas pela peça exigem critério
e bom gosto para que não deixemos deformar a pureza de intenção da obra.
O próprio tema já nos leva a essa conclusão, pois é uma prece à planta tamba-
tajá, que protege os amantes. Ora, é preciso um coração muito simples e puro para
acreditar nisso e é exatamente assim que são até hoje as pessoas que inspiraram o
acreditar em fatos científicos como a ida do homem à lua, por exemplo. Sobre esse fato nós
cujo argumento mais forte em contrário era que, se o homem tinha ido à lua, porque não
Nosso desvio analítico é apenas para mostrar que estamos nos defrontando com
outro nível de relação homem-natureza e devemos ter isso em mente, para auxiliar a canção
com embalo30, o que nos sugere um ritmo suave e sem arroubos, mais para o lento, dolente.
Essa indicação nos reporta a um gesto musical narrativo inflexional, pois nos reporta a uma
29
Depoimento dado durante conversa informal entre o Prof. Paulo José Campos de Mello (atual
superintendente da Fundação Carlos Gomes-Belém) e sua velha babá.
30
O embalo da Amazônia é o embalo de rede. É muito mais dentro da nossa realidade nortista uma
rede para embalar, do que uma cadeira. As mães, por exemplo, até na capital preocupam-se em pôr
uma rede no quarto das crianças, pois é muito mais fácil faze-las adormecer.
LXXIX
concepção musical:
Animando – compasso 9;
retorna para o mesmo plano. Torna-se mais viva quando o discurso é mais
segue-se sempre um rallentando, o que denota alteração de emoção, ora ansioso, ora
indicações durante a peça que nos dão a idéia de qual será a mais apropriada para o
início:
18, aparece um pequeno grupo cromático de três notas de caráter ornamental e expressivo
que, ao mesmo tempo em que “enfeitam” a música e contribuem para amenizar o salto de
A canção tem duas seções que se repetem duas vezes e está dividida em:
Introdução: compasso 1 ao 4.
seção, quando a linha do canto é quase falada e o texto apresenta um pedido ainda contido.
Já na segunda parte, quando o texto fica mais dramático, a estrutura é mais densa sem, no
comportamento harmônico da obra tem ligação com o conteúdo semântico do texto, pois
o “balanço” da peça quase que constantemente. Essa figuração não tem clara ligação com
ritmos característicos da região, mas tem um perfil que se enquadra na realidade regional
“MATINTAPERÊRA”
LXXXII
LXXXIII
A) A LENDA DA MATINTAPERÊRA
canta sobre a casa de alguém, prenuncia uma desgraça, geralmente de morte na família.
Quando está na forma humana, apresenta-se como uma velha maltrapilha e, por vezes, traz
A velha Matinta caminha pelas ruas depois do cair da tarde, para pedir fumo ou
comida aos transeuntes ou aos moradores das casas da vila ou cidade. É feia, usa os
cabelos desgrenhados jogados sobre o rosto, se veste com farrapos e à noite amarra uma
lamparina na cabeça, o que lhe confere uma aparência sobrenatural. Sendo capaz de voar,
corta os ares para ir em busca dos que lhe negam um pedido. Quando os encontra,
assombra-os, amaldiçoa-os e os faz adoecer ou sumir. Não pode abraçar uma criança, pois
Quando a Matintaperêra sente que vai morrer, pergunta a todo mundo – “Quem
quer? Quem quer?” E se alguma mulher mais afoita disser “eu quero”, pensando se tratar
Há fórmulas mágicas que permitem prender a Matinta. Uma delas exige uma
tesoura virgem, uma chave e um terço. À meia noite, abre-se a tesoura e enterra-se no
chão, coloca-se sobre ela a chave e o terço. Assim, a velha bruxa ficará presa ao local até
31
Também conhecida como: Matinta Pereira, Mati-Taperê, Mat-Taperê, Matim-Taperê, Titinta-Pereira.
32
Espécie de coruja conhecida como: “coruja-das-torres”.
LXXXIV
A.1) Comentário
Não temos registro de como teria surgido essa lenda singular, mas como todo
lugar que se preza tem sua bruxa, a Amazônia, terra de tanta mitologia, não poderia ficar
do lado de fora.
Matintaperêra em Belém em plena virada do século XXI. Foi-nos narrada pelo Prof.
Augusto Costa, do Centro Cultural Brasil Estados Unidos (Belém). O professor Augusto
foi procurado por um aluno desesperado que confidenciou ao professor ter visto uma velha
voando diante da janela do seu quarto e dizendo ser a Matintaperêra que o viera buscar.
Era a mesma velha que havia passado na rua enquanto o garoto lavava o carro do pai de
manhã, e na qual ele havia jogado água com a mangueira para se divertir. O curioso da
narrativa, é que o garoto queria saber do professor o que era Matintaperêra, pois, como
tivera coragem de perguntar aos pais. Como podemos observar, ainda há resquícios da
B) TEXTO
“Matintaperêra”
1. Matintaperêra
2. Chegou na clareira
3. E logo silvou...
4. No fundo do quarto
5. Manduca Torquato
6. De mêdo gelou.
9. Melôso, melado,
13. Matintaperêra
20. Matintaperêra
Temos também algumas palavras e expressões que não são regionais, mas
colocamos aqui porque já quase não são usadas hoje em dia e nós devemos conhecer cada
hóspede.
C) ASPECTOS MUSICAIS
14, 26, 33, 34 e 35). É um gesto musical descritivo e mimético, pois imita o assobio da
musical, também se encontra integrado à representação teatral, uma vez que ajuda à
extrema proximidade com o discurso falado, uma característica que já notamos antes em
todas as canções aqui analisadas. Isso nos ajudará a imprimir veracidade à nossa atuação,
(compassos 8, 11p/ 12, 12, 12 p/ 13, 20, 28 e 32). Mesmo assim, não constituem nenhuma
dificuldade de execução.
da peça. Mais uma observação que podemos utilizar a nosso favor na concepção
interpretativa.
vezes o assobio que anuncia a chegada da Matinta. Já deveremos posicionar nosso olhar e
LXXXIX
nosso corpo de maneira a deixar transparecer o medo e a angústia de quem sabe que vai se
narra o drama que se desenrolará a seguir. Vale a pena lembrar que, quando se conta uma
história de cabôcos, deve-se dar vida aos fatos narrados para envolver o ouvinte na
atmosfera da história.
uma importante mudança de foco narrativo. Quem fala nesse momento é Torquato, a
vítima da Matinta, que num primeiro momento está conversando coma entidade, depois, a
sós, manifesta o seu medo da velha, depois a amaldiçoa num lampejo de revolta, para logo
depois ceder ao medo outra vez. Podemos tirar partido cênico dessa observação. O próprio
compositor nos diz ser lamentoso o começo do discurso evoluindo para um rallentando
(submissão). Depois. segue num animando e crescendo (medo), que caem num brusco
compasso 33 a música retorna com versos diferentes (à partir do compasso 28), mas tem
finalização diferente da 1ª parte (compassos 32), pois desta vez o tema se conclui e volta à
tônica (compasso 33). A história termina assim, de modo trágico, evocando um clima
feitos pelo piano e seguidos pelo canto, para marcar a vitória da velha feiticeira sobre o
pobre Manduca Torquato, como para nos dizer da fatalidade do acontecido. Não devemos
perder de vista a importância da manutenção desse clima até o último som do piano,
XC
falada.
seguidas na linha do canto, que é estritamente silábico. Isso nos remete à fluência de
“UIRAPURU”
XCII
XCIII
A) A LENDA DO UIRAPURU
Havia, no sul do Brasil, uma tribo de índios cujo cacique era amado por duas
jovens muito bonitas. Não sabendo qual delas escolher para esposa, o jovem cacique
prometeu que casaria com aquela que tivesse melhor pontaria. Assim sendo, fez-se uma
competição e as duas jovens atiraram suas flechas, mas só uma delas acertou o alvo e
casou-se com o cacique. A jovem que perdeu a prova se chamava Oribicy. Ela chorou
tanto por ter perdido seu amado, que suas lágrimas formaram um córrego. Sua tristeza era
tanta, que pediu a Tupã que a transformasse num passarinho para que ela pudesse visitar
seu amado sem ser reconhecida. Tupã realizou o desejo da moça e Oribicy, com sua nova
forma, voou até o amado. Para sua grande tristeza, constatou na visita que o cacique vivia
muito feliz com sua jovem esposa. Oribicy resolveu ir embora e voou para o Norte. Tupã,
para consolá-la, deu-lhe um canto especial, que a faria esquecer sua dor enquanto o
entoasse e atrairia quem quer que o escutasse. Assim, a jovem não ficaria solitária.
É por isso que o uirapuru, o pássaro que não é pássaro, vive a cantar e a atrair
com seu canto todos os que o ouvem. Esse fenômeno acontece realmente. Na floresta,
diversos, quando o pequeno e cinzento uirapuru inicia seu canto, todos os outros silenciam
e, o que é ainda mais interessante: vêm depositar aos seus pés oferendas: sementes, galhos,
alimento.
XCIV
A.1) Comentário
ou todo cinzento, com uma mancha branca em forma de estrela nas costas, que só aparece
É considerado, pelo efeito que seu canto provoca nos outros pássaros, o artista
da floresta. Aqui, vale para nós uma observação: deve realmente haver algo especial, pois
“preparado” por um pajé, atrairá para si fortuna, sorte no amor e na vida, além de ter
sempre a atenção das pessoas que o cercam. Para isso, basta que o afortunado possuidor
Seu canto alterna sons muito agudos com sons graves, com diferença de duas
oitavas, e com uma velocidade espantosa. Não constrói propriamente, uma melodia de
B) TEXTO
“Uirapurú”
2. Eu descia um “paraná”
7. Me contou do “lobisomi”
8. Da mãi-d’água, do tajá,
9. Disse do jurutahy
rio e encanta aqueles que a vêem ou ouvem sua voz, levando-os para as águas
33
Também é figura mitológica da Amazônia, correspondente da “sereia” européia.
XCVII
Amazônia.
Sempre lembramos que o s do final das palavras deve ser chiado para ser
versos 19 e 23 e que podemos nos valer disso para incrementar nossa performance, mas
gostaríamos de fazer mais uma observação sobre isso: o narrador é uma mulher, como
vemos no verso 21 (“ando rôxa prá pegar...”). Isso é muito importante quando
selecionamos repertório, pois, uma canção com texto escrito no feminino, nem sempre fica
C)ASPECTOS MUSICAIS
Embora seja uma canção alegre, foi escrita em tonalidade menor (Ré menor),
não se alterando durante toda a peça. É até interessante notar que o compositor não escreve
nenhuma nota fora da escala escolhida para a peça, embora tenha feito uma modulação
temporária nos compassos 17. 18 e 19. Na linha do piano não há cromatismos, nem
cantor, pois pede um quasi falado logo no primeiro compasso do solo do canto. Devemos
nos esmerar para não deformar as palavras com uma impostação exagerada. A voz deve ser
bem colocada, mas sem parecer artificial, pois a presença constante da figuração rítmica:
na parte do canto nos mostra que o texto tem primazia sobre a melodia.
31. Ele se repete oito vezes na canção e nos dá oportunidade de mostrar diferentes timbres
e/ou entonações para um mesmo trecho, de maneira que as repetições não se tornem
maneira que, quando o foco narrativo se altera (segunda parte - compasso 16), a melodia se
modifica. Para observar melhor essa alteração, vejamos como a canção está dividida:
XCIX
ambiente para a narração dos feitos do cabôco. A introdução, como já dissemos, nos serve
As repetições servem para o compositor apresentar a história e toda a narração dos feitos
do cabôco falador e gabola. Temos três textos diferentes para a mesma melodia. É muito
importante usarmos recursos cênicos e vocais para “colorir” essa passagem. As repetições
mulher, pelas façanhas do cabôco. Devemos ler nas entrelinhas do texto para entender essa
duas vezes. A primeira, quando o narrador que antes falava para o público ou para si
mesmo, passa a dirigir-se diretamente ao cabôco para pedir-lhe um uirapuru (2º tempo do
compasso 16 ao 1º tempo do 19); a segunda, quando o cabôco vai-se embora sem atender o
pedido e o narrador volta-se novamente para o público ou para si mesmo (2º tempo do
compasso 19 até o fim). Podemos usar muitos recursos como o direcionamento corporal, a
compassos 6, 14, 15, 16 e 31, são preparadores da continuação do discurso. Nos compassos
15) serve de ponte entre as partes. Nos compassos 10, 12, 28 e 30 e, discretamente, nos
separação ou ponte. Todos podem ser usados na sua função construtiva se utilizados
C
alternadamente. Logo, o cantor é o foco central das atenções do público e isso nos dá
A linha melódica é simples e toda construída com intervalos de 2ª, 3ª, e 4ª, onde
apenas um intervalo diferente (7ª), aparece no compasso 16, marcando a segunda parte.
Muitas linhas melódicas ascendentes emprestam à música uma feição alegre e brejeira e
que tem grande apelo junto ao público, coisa muito importante a considerar quando se
escolhe um repertório.
Com essa feição alegre e saltitante, torna-se fácil escolher um andamento, pois
o compositor não o sugeriu na partitura. Também não há registro de dinâmica feito pelo
Embora não haja indicação de que se trata de uma dança, existe uma relação
CANÇÃO
marca um dos acentos da célula. Assim, vemos mais uma vez a necessidade aquela “ginga”
34
Dança regional que se fixou com maior força nos arredores da cidade de Bragança.
CI
“CURUPIRA”
CII
CIII
A) A LENDA DO CURUPIRA
pequeno, esverdeado, com os cabelos cor de laranja, que tem os pés virados para trás e
vaga pela mata zelando pelas árvores e animais. Volta-se contra qualquer um que queira
caçar apenas por prazer, ou desmatar a floresta sem propósito. Por outro lado, é amigo dos
que vivem na mata sem agredi-la, caçando apenas para alimentar-se e respeitando a flora.
Para atrapalhar os que não agem com boas intenções ecológicas, o curupira tem muitas
artimanhas. Pode assombrá-los com seus gritos agudos, açoitá-los, tornar-se invisível e
aparecer em vários lugares, até fazer com que aqueles que tentam contra a vida na floresta
percam o rumo. Também faz com que o bicho encurralado pelo caçador, vire meuã, que
significa portar-se de repente como gente, fazendo gestos para implorar piedade. Assim, o
caçador fica assombrado, não consegue mais fazer pontaria e foge apavorado. Diz-se que
muitos caçadores, depois de terem visto a caça virar meuã, nunca mais se atreveram a
caçar.
A.1) Comentário
curupira tem origem nos vocábulos indígenas curu, que significa criança e pira, que
significa corpo. Na Amazônia, possui feições indígenas, mas pode ser descrito como tendo
cabelos vermelhos, ou calvo ou com o corpo coberto de pêlos, dependendo da região onde
tenha sido visto.Curiosamente, não é um ser mitológico existente somente no Brasil. Sobre
ele foram colhidos muitos relatos em quase todos os países da América Latina. Suas
B) TEXTO
“Curupíra”
(Versos de Waldemar Henrique)
6. O Curupíra me chamar,
O texto foi escrito especialmente pelo compositor para a canção. Tem como
tema a lenda do curupira, que não é exclusiva da região Norte, possuindo características
curupira no seu caminho. Este ser mitológico não pode ser atingido por armas, nem pela
O uso dos versos junto à melodia é totalmente silábico e o texto possui uma
mudança de foco narrativo no verso 13. Aqui, o narrador deixa de falar das suas
desconhecidas dos falantes de outras regiões. Insistimos sobre o s chiado do final das
C) ASPECTOS MUSICAIS
extensão, indo do Si central, ao Mi uma oitava acima. É também a mais curta, pois dura
aproximadamente 1’.
texto do próprio Waldemar Henrique e traz o andamento marcado com precisão: Moderato
CVI
! = 84. Não há nenhuma anotação de dinâmica até o 6º compasso, o que dá certa liberdade
de escolha ao executante.
que surge logo na introdução. São quatro notas em escala descendente que aparecem seis
direita do piano imprimem um gosto de corrida, que culmina com acordes saltados e
corrida e dos saltos do curupira, que “ora aqui, ora ali” é ouvido pelo caçador. Já nessa
caçador - que é quem narra a história -, após três dias de caçada infrutífera, já deverá estar
cansado da presença do curupira. Talvez já esteja irritado, talvez com fome, ou preocupado
por não ter o que levar de alimento para quem ficou em casa. Essa compreensão do texto e
corporal e facial. Há muito texto para ser dito em muitas notas seguidas durante toda a
Devemos dar muita atenção à dicção e ao andamento, que se for maior que o pedido pelo
acompanhamento. Esse fato nos oferece uma oportunidade para mudança de postura em
geral. O caçador se dirige, a partir desse momento, diretamente ao curupira e sabe onde ele
apressando (compasso 17), que pode nos ajudar a imprimir ainda mais veemência e
expressão ao discurso. No final desta parte - após uma fermata que traz um silêncio
preparador do discurso que está por vir e, ao mesmo tempo, transforma o tom desse
discurso - antes agressivo - em um pedido, uma queixa. Esse pedido final, rallentando, faz
um contraste com o apressando anterior e oferece uma excelente oportunidade para que se
Enquanto a última nota está sendo cantada, o piano encerra a peça com outra
fugindo, que só pudemos interpretar como a fuga do curupira. Logo, o compositor estava
Mais uma vez, observamos que a estrutura do texto e da música caminham lado
a lado. As escalas agitadas que marcaram a primeira parte da canção - quando o texto
apresenta o problema sem solução do caçador - dão lugar às notas mais tranqüilas do
enfrenta seu adversário. Uma aceleração progressiva, aliada a um ritmo mais pausado na
Nessa canção, talvez porque seja posterior a todas as outras, temos muito mais
menores e não vemos maiores dificuldades técnicas que possam prejudicar um intérprete,
ainda que iniciante. O “bem dizer” o texto, com veracidade e espontaneidade, continuam
“MANHA-NUNGÁRA”
CX
CXI
A) A MANHA-NUNGÁRA
mãe de criação de Waldemar Henrique, Estefânia Rosa da Costa35. Não sendo uma lenda,
está incluída na classificação das canções de Waldemar Henrique como Lenda Amazônica
por abordar a lenda do bôto sob novo enfoque. Nesta canção, o autor nos fala de uma
figura muito comum na região Norte: a mãe adotiva, ou mãe de criação. Os processos de
adoção ou delegação de custódia não passam, muitas vezes, pelos trâmites legais. O cabôco
não pensa como as pessoas da cidade e, se lhe apraz por qualquer motivo, dar um filho seu
para um parente, ou criar o filho de alguém próximo, faz isso sem maldade e sem
burocracia. É comum ver a irmã que tem filhos dar um deles para a que não tem, seja por
pobreza, seja por piedade. A madrasta também é considerada como mãe adotiva, como no
Pedimos aqui uma licença científica para narrar na primeira pessoa uma história
de nossa própria família, para ilustrar como é vista a adoção pelo nortista.
Minha avó paterna, que deu à luz dezesseis rebentos, apiedou-se de sua melhor
amiga e empregada de confiança, Dona Domicília, que não podia ter filhos e deu a ela seu
último filho homem, meu pai. O ato foi simples e feito sem nenhuma dificuldade, ficando
ambas as partes satisfeitas com a prova de amizade. Assim foi criado meu pai, sabendo que
tinha duas mães - porque também não se usa esconder essa verdade - e vendo tudo como
coisa normal - essas coisas são assim no Norte. Em casa, sempre o ouvimos dizer em tom
de confidência que, se um dia estivesse em uma situação de perigo e só pudesse salvar uma
das mães, não pensaria duas vezes e salvaria sua velha Nega, apelido carinhoso de
35
Tendo perdido sua mãe verdadeira, Joana da Costa, com um ano de idade e tendo seu pai casado com a
cunhada, sua tia Estefânia foi a mãe que Waldemar conheceu e amou devotadamente por toda a vida.
CXII
atualmente esse tipo de relação ainda tão comum na Amazônia. Esse caso esclarece sobre a
simplicidade com que a adoção acontece. Não existem traumas ou segredos. A manha-
nungára da canção pode ou não ser parente, mas é mãe igualmente querida.
A.1) Comentário
Não teceremos aqui um comentário sobre a lenda, pois não estamos tratando de
uma lenda específica. Falaremos sobre a distorção da lenda do bôto. Como dissemos
anteriormente, o bôto é um mito que não está ligado à violência sexual de nenhuma sorte,
seduzindo sempre suas vítimas, que cedem de bom grado aos seus apelos, encantadas
como estão. Nessa canção, que tem letra escrita pelo próprio Waldemar Henrique, há a
sua manha-nungára. Não sabemos o porque desse fato. Não encontramos nenhum registro
da lenda sob esse enfoque, nem alguma justificativa do compositor para ele. Sabemos que
Waldemar era profundo conhecedor do folclore da região e nos parece que esse novo
enfoque foi dado para ressaltar a figura da manha-nungára, que aparece como aquela a
quem se recorre em momentos de aflição. Foi para a sua manha-nungára que ele dedicou a
peça. Seria possível que a lenda do bôto tenha sido usada apenas como pretexto, como
mote para a glosa de uma canção de enaltecimento à figura materna? Não pudemos
responder a essa pergunta que muito nos instigou durante a pesquisa, pois a busca de
elementos para saciar nossa curiosidade nos desviaria dos nossos objetivos. Resignamo-
B) TEXTO
“Manha-Nungára”
(Versos de Waldemar Henrique)
4. E no rio, resfolegando
9. -Manha-Nungára!
19. -Manha-Nungára!
O texto dessa canção traz novamente a lenda do bôto como tema. Dessa vez,
temos uma descrição mais detalhada do cenário e da vítima, que pede socorro.
uso regional:
Além das palavras nativas não temos no texto a presença do falar da região.
Lembramos mais uma vez que o s depois de vogal deve ser chiado para ter apelo regional.
O texto tem desvios de foco narrativo nos versos 9, 10 e 20, quando é a cunhã
C) ASPECTOS MUSICAIS
fermata, que é um gesto musical preparatório para a narrativa do canto. O piano apresenta
o motivo principal do acompanhamento, que se repetirá várias vezes por toda a canção.
Lembramos mais uma vez que a introdução já é a música e que já devemos estar com
CXV
postura expressiva totalmente pronta para oferecer mais elementos para o público entrar no
ambiente da canção.
o narrador descreve uma paisagem triste, que nos deixa à espera do que está por vir.
Embora tenhamos chamado esta parte de seção A, ela nos parece auditivamente uma
segunda grande introdução. Não traz um tema que guardemos na memória e, embora
termine na tônica, não sentimos que a melodia descansa aí, pois a repetição da dominante
O compositor cria assim, uma atmosfera de tensão, ainda que muito leve.
compasso 18. Novamente temos a sensação de que a música não concluiu sua idéia. O
texto termina em uma pergunta que fica sem resposta. A melodia, ainda mais. Um acorde
de 6ª invertida é o responsável por essa sensação de não conclusão. Podemos tirar partido
dos recursos timbrísticos para o falado quasi (metade do último tempo do compasso 16, até
angustiada da cunhã, que culminará com um grito, um pedido de socorro. Deve ser feito
com muita veracidade e expressão, podendo ser até realmente falado, sem risco de parecer
fora de estilo.
Eis o clímax e a resolução das duas seções anteriores. Toda a carga dramática contida no
texto e na música culmina com esse final. É o repouso harmônico, poético e expressivo da
canção. Assim deve ser também na nossa atuação. Toda a atmosfera de suspense criada na
CXVI
peça se diluirá nesse apelo desesperado. É também o clímax da dinâmica, que crescerá
lítero-musical. A partir daí, tudo caminhará para o allargando com crescendo dos
compassos 24 e 25, em uma frase ascendente que culmina em mais um grito de angústia na
alternados de tensão e relaxamento. A dinâmica deve ser dosada com sabedoria para que o
clímax da peça (1º tempo do compasso 26) receba todo o seu potencial vocal e expressivo.
O morrendo que vem em seguida, traz consigo a fatalidade, a confirmação de que a cunhã
não conseguiu fugir à sedução do bôto. Seu apelo foi em vão, pois Manha-Nungára não
conseguiu salvá-la. É muito significado para pouca música. Buscaremos usar todos os
recursos cênicos e musicais ao nosso alcance para dar a esse final tão curto, o peso da
resolução de todas as tensões da peça. Atenção: que não se entenda fazer coisas demais.
Queremos dizer que é preciso escolher o gesto, a dinâmica e as formas de expressão mais
pesquisar, procurar no seu universo vocal, gestual, facial e de postura, a melhor maneira de
Não há repetição de texto nem música, excetuando a coda, que aparece duas
Cada seção da canção está separada da anterior por silêncios que desempenham
Essa canção apresenta uma característica inovadora, com relação às outras. Tem
uma concepção contemporânea, com uma divisão que não obedece a padrões tradicionais.
CXVIII
A linha melódica pouco variada fica muito próxima da fala, o que lhe confere um certo ar
Opõe-se à ária que, por falar de sentimentos, é mais estática. Nessa canção, Waldemar faz
uma nítida opção por movimento teatral, só que coloca isso em um gênero estático como é
o da canção de câmera.
CXIX
“CONCLUSÃO”
CXX
C
onferindo os resultados de nossa análise, observamos que a música
composicional que não tem por objetivo um produto final de aparência grandiosa. Sua
maneira de retratar sua terra é simples e direta, embora sempre impregnada de poesia. Por
esse motivo, ele é considerado tão fiel no seu registro. Apesar de retratar motivos regionais
nas suas lendas amazônicas, Waldemar usou sempre temas próprios e, mesmo valendo-se
melódica, ele utilizava poucos saltos e quase nenhuma vocalização. Optou por uma
do texto com notas excessivamente altas. Nada em sua escrita oferece ao executante
percebe-se que ele utiliza com mestria os recursos harmônicos, escrevendo dessa maneira
as canções amazônicas para manter o padrão de simplicidade que permeia sua visão da
música regional. Mesmo seguindo esse padrão de simplicidade, consegue efeitos que
Por vezes, sua música mantém algumas “batidas” (padrões repetidos de células
rítmicas) por longos períodos, mas isso foi feito com o intuito de conservar por mais tempo
erro nesse aspecto. Para ele, o texto é soberano e determinante de todas as diretrizes da sua
criação musical. É notável a maneira como todos os elementos da música estão a serviço
seu contexto. Tudo o que é colocado na partitura é feito de maneira a auxiliar o ouvinte a
maneira silábica e os vocalizes que aparecem raramente são muito curtos, apenas extensões
de sílaba. É do texto que o executante poderá tirar maior partido no incremento da sua
performance, e isso exige boa dicção e uma emissão sem artificialismos que prejudiquem a
compreensão da mensagem, como a impostação operística, por exemplo. Tudo isso denota
Lendas Amazônicas elas são sempre curtas e não expõem o talento virtuosístico do
pianista. Na sua abordagem dos temas regionais, as introduções são uma preparação rápida
do público para a recepção da mensagem, feitas de maneira discreta para não roubar as
nunca em primeiro plano. Dá a justa carga dramática exigida pelo conteúdo poético e
mais veemência por parte do texto merecem mais notas na partitura, pois o cantor estará
dando maior volume sonoro nesses momentos e vice-versa. Assim, o compositor contribui
para que o solista não seja suplantado pelo acompanhamento. É claro que, apesar dessas
providências cuidadosas, o cantor pode contar com um pianista de toque mais pesado ou
que Waldemar Henrique tem uma visão teatral da performance do cantor. Ele utiliza sua
música como recurso que reforça e auxilia o tempo todo essa performance, contribuindo
usa com muita freqüência silêncios construtivos para acrescentar mais significado à
expressividade ao texto que está sendo “narrado” pelo cantor. O compositor chega ao
requinte de, por vezes, colocar na partitura do piano os efeitos que caberiam ao sonoplasta
do teatro. Para cada novo foco narrativo são acrescidos novos elementos, no intuito de
canção “Manha-Nungára!”. Foi isso o que nos motivou a optar por deixá-la para nossa
música, ao drama e à cena. Esse estilo transforma a música em drama com o propósito de
registrar a maneira especial com que o cabôco conta suas histórias. O contador de histórias
do Norte é quase um artista de teatro. Utiliza olhares, gestos largos, alterações de timbre de
voz e, é claro, alguns exageros, que ajudam a impressionar os ouvintes. Essa segunda
hipótese nos parece mais lógica, pois, como temos a oportunidade de ouvir de perto essas
narrativa cabôca.
36
Ver bibliogafia, IGAYARA, Susana Cecília.
CXXIII
tentativa de levar o intérprete a envolver-se ao máximo com o texto falado mais que com a
própria melodia. Sua escrita dá margem a uma boa movimentação cênica, facilitando o
algumas comunidades ribeirinhas que ainda vivenciam essas lendas. São locais ainda
dentro da realidade da floresta, aonde as pessoas vêm assistir ao recital de barco e deixam
templo, sentam para nos assistir sem se importar com os sapos e pássaros que fazem
“fundo para a nossa música”. Essa gente vibra com as lendas de uma maneira especial,
impressionante. Ao final das apresentações, algumas pessoas vêm nos contar outras
histórias e vemos outra vez o maravilhoso universo descrito por Waldemar se expor diante
dos nossos olhos. A diferença é que não há música nessas narrativas. Essa contribuição nós
Como fecho quase obrigatório para essa visão sobre a obra de Waldemar
“BIBLIOGRAFIA”
CXXV
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WERNER, David – Onde não há Médico – 11a ed. rev. – S.Paulo - SP: Ed. Paulinas, 1989.
ANEXOS
CXXXII
PARECERES SOBRE
“Quem foi ao Pará parou, ouviu Mara e Waldemar ficou” – Mário de Andrade.
Mariz (ao ouvir os pontos rituais “Aba-Logum”, “Abaluaiê” e “No Jardim de Oeira”).
por Maria Helena Coelho Cardoso, terá a oportunidade de descobrir, com maior
Waldemar Henrique... Como é lindo esse Brasil incorrigivelmente lírico. E ele se encontra
com o Brasil do sul, que o esperava como um namorado espera o seu amor” - Menotti del
Picchia.
CXXXIII
“Sua obra tem a vocação da fertilidade como se fosse irmã gêmea das florestas
com amoroso e consciente carinho por quem sente a sua imensa riqueza e valor, constitui
um primor artístico e mais um elo a prender e a aumentar o amor das coisas brasileiras”
“Waldemar Henrique sem querer nos ensinar, ensinava. Com a clareza dos
Câmara Cascudo.
capitanias de ritmos, cores e cheiros, eu não teria a menor dúvida de apontar quatro
traduzindo-a com sonoridades raras. Falo de Dorival Caymmi, Luís Gonzaga, Capiba e
desse genial paraense Waldemar Henrique, que há mais de trinta anos freqüenta minha
“Waldemar Henrique com sua fina sensibilidade e sua emoção criadora, nos
1940.
“...há uma injustiça a menos na história: Waldemar Henrique já tem sua vida
“Ele provou com sua música que, quanto mais perto da origem, mais universal
facilidade. Tenho mesmo a impressão de que lhe basta correr os olhos pelo teclado para
que o motivo desejado cresça e se desenvolva, espontâneo, justo, tradução em sons do seu
29/7/1933.
CXXXV
quanto brota de sua arte, como cascata de ouro sonora, toda essa esplendente natureza
que o cerca e que seus olhos, desde menino, se acostumaram a querer bem... tão simples,
tão elegantemente simples ...” – jornalista paraense Fernando Tasso – jornal “O Estado do
sentimentalidade aguda de nossa raça, essa paixão de poeta, que nem sempre se extravasa
1976.
paraense.
suas lendas. O que vestiu de canção nossos mitos. Deu sentido aos sons da terra. Som ao
sentido flutuante dos rios. Som e sentido ao mistério das terras-do-sem-fim” – João de
“Música do nosso peito, brotando na terra onde a matinta pede fumo pro
caboclo, com a sua tragédia, as sua queixas e os seus deuses com que ilude a sua
humano com funções de tombar pessoas, ele já teria, certamente, tombado a figura ímpar
minha vida, um elo entre a minha formação musical e a coragem de seguir a vida
artística” – Ed Lincoln.
Amazônia e seu canto, não esqueceu também de criar o seu cantor e seu intérprete” –
“Toda a sua inspiração converge para os motivos simples que nascem do povo
e crescem na sua arte, na sua música, no estilo imutável e profundo, dando as coisas
nortista e adicionou seus conhecimentos técnicos, colocando seu talento nesta combinação
única a dar ao resultado o sucesso eterno” – Edgar Augusto Proença, literato paraense.
intérpretes, que de alguma forma tem ligação com essa misteriosa e fantástica região que