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• Artigo publicado no livro Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade

da Terra, Vol. 1, organizado por Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de


Castro e Rafael Saldanha. Rio de Janeiro: Machado, 2022.

LOCALIZANDO A HISTÓRIA DO ANTROPOCENO: O CASO DO BRASIL 1

José Augusto Pádua (Instituto de História – UFRJ)

SITUAR O ANTROPOCENO NO TEMPO E NO ESPAÇO

Ninguém pode controlar o destino das novas palavras e conceitos que aparecem
na história, seja de maneira anônima ou autoral. A vida vivida não respeita esse tipo de
“propriedade”. A forte expansão do uso social de uma palavra, aliás, deve ser observado
com toda atenção, pois costuma indicar que ela se articula com alguns dos anseios,
perguntas e dilemas fundamentais que estão sendo vividos em determinado momento. Ela
pode se transformar em uma das “palavras-chave”, como analisou Raymond Willians
(1976), que catalisam as elaborações e disputas relacionadas ao nosso entendimento do
mundo. É o caso, por exemplo, da longa e caleidoscópica história dos múltiplos usos da
palavra “ecologia”. Criada em meados do século XIX, no âmbito da zoologia, apenas no
início do século XX outras disciplinas científicas começaram a utilizá-la e, décadas mais
tarde, a partir de 1960, seu uso público explodiu, saindo dos muros da academia para
penetrar nos debates políticos, nas relações internacionais, nas mudanças
comportamentais, na indústria cultural etc 2. Um ecólogo profissional poderá considerar
espúrios todos os usos dessa palavra que não sejam situados na ciência biológica, ou pelo
menos em alguma disciplina científica. Mas os agentes históricos não pedem licença para
se apropriar, ou mesmo ressignificar, as palavras e conceitos.
A palavra “Antropoceno” vem sofrendo uma rápida ampliação no seu uso social,
adquirindo novas dimensões e ocupando novos espaços que não são necessariamente
incompatíveis com a proposta original de seus criadores. Essa proposta, de fato, já

1
No presente artigo, utilizei alguns materiais de outro artigo sobre o mesmo tema que foi publicado em
inglês (Pádua 2017). Mas não se trata de uma tradução. O texto atual apresenta novas questões, reflexões,
referências e dados que surgiram a partir de estudos posteriores.
2
Bowler 1992; Worster 1994.

1
continha algumas ambiguidades. Como se sabe, o marco público de sua divulgação foi
um pequeno artigo escrito pelo ecólogo lacustre Eugene Stoermer e pelo geoquímico Paul
Crutzen, ganhador do prêmio Nobel. Mas o texto não saiu em um periódico científico e
sim em um boletim de divulgação chamado Global Change Newsletter. Apenas dois anos
depois, Crutzen formalizou a proposta na revista Nature3. Esse ponto não é apenas um
detalhe. Penso que a proposta não foi divulgada inicialmente no contexto de um debate
técnico sobre estratigrafia geológica. Ela representou muito mais um chamado ao debate
público sobre as novas dimensões das mudanças ambientais globais.
A grande repercussão do conceito, no entanto, fez com que ele fosse incorporado
na institucionalidade científica da Comissão Internacional de Estratigrafia da União
Internacional de Ciências Geológicas. Ou seja, tornou-se objeto de uma investigação
sobre as provas objetivas de que ocorreu uma mudança de época na escala de tempo
geológico do planeta, passando do Holoceno ao Antropoceno. Essa discussão segue seu
caminho próprio, com rigor e prudência. É preciso considerar, no entanto, que existem
questionamentos sobre a legitimidade da geologia para definir a “verdade objetiva” do
Antropoceno, já que grande parte das mudanças globais se referem ao mundo vivo e às
transformações na biodiversidade planetária. O Grupo de Trabalho do Antropoceno,
criado no âmbito da Comissão Internacional de Estratigrafia, vem demonstrando uma
notável abertura disciplinar, incluindo, por exemplo, especialistas em Ecologia, Filosofia
e História. Mas, no fim das contas, o julgamento terá que ser feito pela União
Internacional de Ciências Geológicas.
Mas o ponto que quero enfatizar aqui vai em outra direção. Penso que,
independente do julgamento a ser feito no âmbito da Geologia, a ideia de Antropoceno já
adquiriu uma realidade autônoma enquanto designação de um novo momento na história
humana, e vem seguindo um caminho próprio no campo das ciências sociais e no debate
político. Esse movimento paralelo, no espirito do que escrevi acima, não pede licença aos
geólogos para se manifestar. Mas é claro que os vários espaços de discussão do
Antropoceno não estão isolados uns dos outros; ao contrário, fazem parte de um mesmo
contexto histórico.
O aumento no uso do termo Antropoceno no debate histórico e social possui uma
lógica própria. Ele responde a um certo vácuo conceitual no entendimento do mundo
contemporâneo, na medida em que conceitos fundamentais como “modernidade” e

3
Trischler 2016, 310.

2
“globalização” já não tem sido suficientes para dar conta de uma transformação radical
ocorrida no século XX: a absorção do planeta na história humana e da história humana
na dinâmica do planeta. Essa mudança histórica já está bem documentada e não depende
necessariamente da decisão formal sobre uma nova época geológica.
Note-se que aqui se está falando de “planeta”, não de “natureza”. As interações
entre as sociedades humanas e o mundo biofísico, ou melhor, a construção de sociedades
humanas através do mundo biofísico do qual elas fazem parte, é uma dimensão
fundamental da história, podendo ocorrer em diferentes escalas. As sociedades humanas
sempre existiram em espaços específicos do planeta, interagindo com conjuntos
particulares de sua ecologia. Elas se reproduziram através da apropriação e manejo de
frações relativamente pequenas dos fluxos de matéria e energia existentes na Terra.
Mesmo quando determinados padrões de produção e consumo provocaram desastres
ambientais a nível regional – especialmente a partir do surgimento, nos últimos seis mil
anos, de sociedades dotadas de estruturas estatais e forte estratificação social – a ação
humana não chegou a tocar intensamente nas macroestruturas do chamado “Sistema
Terra”. A grande novidade do Antropoceno, portanto, seria a transformação do próprio
planeta no locus onde se pode medir o impacto mais profundo da presença humana. Em
outras palavras, a ação humana, vista de forma muito agregada, passou a adquirir o peso
de um agente geofísico global4.
Esse viés radicalmente integrativo e planetário vem marcando o debate sobre o
Antropoceno. É importante entender o seu contexto tecnológico e científico específico: o
momento em que se tornou possível produzir e agregar uma grande quantidade de dados
sob a forma de indicadores planetários, seja de mudanças ambientais ou de movimentos
socioeconômicos. A capacidade tecnológica de armazenamento e compartilhamento
desses dados, através de computadores, é um aspecto constitutivo dessa história. A
genealogia imediata do conceito, de fato, está relacionada com projetos coletivos de
análise de dados globais estabelecidos no final do século XX, incluindo o Programa
Internacional de Geosfera-Biosfera (IGBP), criado em 19875. Foi na “Global Change
Newsletter” do IGBP, por sinal, que Crutzen e Stoermer divulgaram o termo no ano 2000.
A introdução no debate socioambiental de um volume significativo e confiável de
dados empíricos globais permitiu conceber, de maneira quantitativa, a ideia da
humanidade enquanto uma totalidade, afirmando, a partir de vários indicadores, a tese de

4
Steffen, Grinevald, Crutzen e McNeill 2011.
5
Quenet 2017, 310.

3
que teria ocorrido uma mudança na escala da presença humana no planeta. Clive
Hamilton e Jacques Grinevald (2015) chegaram a argumentar que não se pode falar de
fato em precursores intelectuais do conceito de Antropoceno, pois antes de existirem os
dados coletados pelos projetos mencionados acima, especialmente pelo IGBP, a visão de
humanidade no planeta era abstrata e especulativa. A avaliação dos impactos ambientais
da ação humana, por sua vez, era baseada em intervenções na superfície do planeta, e não
no sistema Terra.6
De toda forma, foi a partir do final do século XX que começou a construção de
gráficos que comparavam, em longa duração, indicadores agregados da ação humana
(como o aumento da população e do consumo de energia) e indicadores de mudanças no
sistema Terra (como a perda de biodiversidade e a concentração de CO2 na atmosfera).
Esses gráficos revelaram um crescimento acentuado nas curvas de cada variável a partir
do século XIX e um crescimento extraordinário, uma verdadeira verticalização das
curvas, a partir de 1945 7. O tema voltará na discussão sobre periodização. Por ora, é
importante enfatizar que os fundamentos da ideia inicial de Antropoceno são globais e
quantitativos (apesar de não ser difícil refletir sobre as suas profundas implicações sociais
e culturais). Ainda hoje, a maior parte do debate ocorre em um plano altamente agregado.
O foco está nas relações entre a humanidade enquanto tal e o planeta enquanto tal.
Um ponto crucial, ao meu ver, é que essa visão radicalmente integrativa constitui
ao mesmo tempo a grande força e a principal fraqueza das leituras dominantes sobre o
Antropoceno. O ponto de partida deste questionamento é facilmente perceptível: se um
lado, é necessário reconhecer a dimensão integrativa do problema – o impacto agregado
da ação humana tornou-se uma força geofísica –, por outro saltam aos olhos as enormes
diferenças presentes na humanidade atual em termos de padrões de consumo, classes,
culturas, contextos geográficos etc. De fato, as duas perspectivas não são totalmente
antagônicas. São diferentes dimensões de uma mesma realidade. A base de informações
sobre as consequências globais das atividades humanas é bastante robusta. É uma
dimensão que unifica, em certo sentido, o conjunto da humanidade. Em outro sentido, a
desigualdade é visceral, de tal maneira que leituras homogêneas e unificadoras do ponto
de vista apenas quantitativo podem ser ilusórias e altamente enganosas.
A abordagem global, sem dúvida, ajuda a ampliar nossa compreensão de uma

6
Para uma ótima análise crítica da Ciência do Sistema Terra (ESS), que, aliás, está longe de ser
consensual e livre de controvérsias, ver Veiga 2019.
7
Steffen et al. 2015.

4
série de aspectos da história ambiental contemporânea. A partir do final da década de
1960, por exemplo, começaram a aumentar de forma acelerada, em diferentes regiões do
planeta, denuncias e conflitos relacionados com os chamados “problemas ambientais”.
No inicio, esses problemas foram entendidos de maneira fragmentada e pontual. Eram
externalidades, disfunções ou acidentes da modernização urbano-industrial. É iluminador
pensar os inúmeros “problemas ambientais” das últimas décadas como sintomas e sinais
de uma mudança histórica mais profunda, uma “grande transformação” na trajetória da
humanidade. 8
Do ponto de vista da análise histórica do Antropoceno, porém, falar de uma
grande transformação global não é suficiente. Apesar de ser possível reconhecer a
relevância das análises globais, logo aparecem importantes problemas em relação 1) à
abrangência social concreta dessas análises; 2) à validade das periodizações propostas
para esses processos globais e 3) à participação de diferentes atores sociais – nos níveis
local, regional, nacional e internacional – na constituição desses mesmos processos. Tais
problemas dão origem à necessidade premente de localizar a história do Antropoceno. Na
perspectiva das ciências sociais, não é suficiente trabalhar com os grandes números e com
os dados globais. A principal contribuição dessas ciências, de fato, poderá ser a de tornar
visíveis os dinamismos políticos, sociais, ecológicos e territoriais que existem por trás
dos grandes números, incluindo os conflitos, sofrimentos e resistências que aparecem nas
diferentes sociedades e grupos de cada sociedade. Como disseram Bonneuil e Fressoz,
“uma história menos indiferenciada e mais explicativa do Antropoceno” precisa “deslocar
o foco do estudo dos ambientes atingidos e dos ciclos biogeoquímicos perturbados para
os atores, instituições e decisões que produziram esses atingimentos e essas
perturbações”9.
Alguém poderia argumentar que uma perspectiva que não esteja centrada nos
grandes números e na visão global da interação da humanidade com o planeta estará
abandonando a discussão sobre o Antropoceno e apenas retomando a história usual das
sociedades. Mas não se trata de abandonar a visão global. O fio da navalha está em pensar
ao mesmo tempo a macrovisão do Antropoceno e a concretude diversificada da história
humana. Ao invés de negar o debate sobre o Antropoceno, esse exercício pode fazer

8 Usando, em sentido mais amplo, o termo cunhado por Karl Polanyi (1944) para expressar a magnitude
do processo de industrialização e de mercantilização da natureza e do trabalho na Europa a partir do século
XVIII.

9
Bonneuil e Fressoz 2013, 86-87.

5
avançar o nosso entendimento sobre a historicidade dessa grande transformação, saindo
do plano excessivamente abstrato em que sua análise hoje se encontra (ao menos em
grande parte do debate).
Nesta chave, é possível qualificar melhor o que se entende pela abrangência social
da análise do Antropoceno. É evidente que os componentes históricos que vêm sendo
utilizados para definir a sua gênese não estão disseminados de maneira equitativa pelo
conjunto da humanidade. Tampouco são derivados de processos automáticos e quase
“naturais”. As grandes mudanças na história das sociedades, sejam endógenas ou por
difusão exógena, nunca se dão de forma automática. Elas sempre envolvem fricções,
disputas, justificativas, resistências, imposições etc. Apesar disso, grande parte do debate
sobre o Antropoceno ocorre como se a “humanidade” houvesse entrado de maneira
necessária, completa e espontânea nas diferentes etapas que serão discutidas adiante.
Pode-se dizer que existe um certo consenso sobre alguns dos componentes
históricos do modelo que conduziu várias sociedades humanas para a construção
coletiva do Antropoceno: a) uma forte elevação agregada, mesmo que internamente
desigual, nos níveis de consumo material; b) o uso massivo de combustíveis fósseis; c)
o forte aumento na taxa de urbanização e no grau de industrialização da economia; d) o
aumento na emissão de CO2; e) a intensa disseminação de uma cultura política fundada
no desejo de crescimento. Ou seja, existe um certo modelo dominante de produção,
consumo e padrão cultural que está associado à constituição histórica do Antropoceno.
A constituição desse modelo foi especialmente forte em alguns espaços geográficos do
planeta – tendo a Europa ocidental como origem –, difundindo-se posteriormente, de
forma muito desigual e com intensidades variáveis, pelas outras regiões. Existem, de
fato, sociedades no mundo atual que participam pouco desse modelo (cuja presença,
entretanto, é muitas vezes sentida através de dolorosas pressões externas). 10

Mas aqui aparece a diferença entre fazer história comparada no estilo clássico e
discutir historicamente as mudanças ambientais globais. Ao lidarmos com os
macroprocessos que modificam o ambiente global, temos um tipo novo de abrangência

10 Essa apresentação, um tanto dualista e simplificada, da presença ativa ou passiva de diferentes sociedades

no modelo histórico do Antropoceno, foi escrita para facilitar um entendimento inicial do problema. Estou
consciente de que o mundo contemporâneo é bem mais complexo e entrelaçado. Como afirmaram
Danowski e Viveiros de Castro (2014, 113), a “distinção entre culpados e vitimas” é mais clara
historicamente no plano societário do que no da ação individual, na medida em que “somos, hoje, muitos
de nós (nós humanos e os vários não-humanos que escravizamos ou colonizamos) culpados e vítimas ao
mesmo tempo, em cada ato que praticamos”.

6
na participação no Antropoceno. Este ponto foi bem sintetizado por Dipesh Chakrabarty
ao argumentar, de maneira instigante, que as mudanças no ambiente planetário, como no
caso do clima, vão além da história do capitalismo. Elas colocam uma questão mais
profunda: “a questão de uma coletividade humana, um nós, apontando para a figura de
um universal que foge à nossa capacidade de experimentar o mundo. É mais como um
universal que surge de um sentimento compartilhado de catástrofe”.11 Pode-se
argumentar que esse “nós” assume uma concretude inédita, na medida em que ninguém
pode estar fora dessa nova condição planetária.
Uma leitura histórica palpável do Antropoceno, em segundo lugar, coloca o
problema da periodização. Uma proposta muito influente foi divulgada em 2007, sendo
depois utilizada em inúmeras ocasiões. O ponto de partida dessa periodização está na
definição de três grandes etapas em um sentido altamente agregado 12.
A primeira etapa do Antropoceno seria a formação da era industrial, entre 1800
e 1945. O uso dos combustíveis fósseis na produção econômica, especialmente do
carvão mineral e do petróleo, representou o grande diferencial a ser levado em conta.
Esse uso permitiu uma enorme expansão das forças produtivas, favorecendo um grande
incremento das estruturas urbano-industriais e do consumo dos recursos naturais. É claro
que essa nova base energética, por si só, não seria capaz de definir o período. A
disseminação dos combustíveis fosseis não pode ser divorciada das mudanças
tecnológicas, socioeconômicas, institucionais e culturais que vêm sendo destacadas por
tantos analistas da modernidade13. Mas também é verdade que sem a existência de uma
fonte de energia tão abundante e, ao mesmo tempo, da extração e do transporte viáveis
apenas no contexto dos meios técnicos disponíveis a partir do século XVIII, seria
impensável um crescimento tão notável na economia de várias regiões.
A segunda etapa do Antropoceno teria começado por volta de 1945 e ainda estaria
em vigência. Em meados da primeira década do século XXI, o renomado historiador
ambiental John McNeill, em conjunto com outros pesquisadores, começou a utilizar o
termo “Grande Aceleração” para identificar esse momento, diretamente inspirado na
“Grande Transformação” de Polanyi 14. Apesar da entrada em cena de novas fontes
energéticas – como grandes hidrelétricas e usinas nucleares –, os combustíveis fósseis,

11
Chakrabarty 2009, 221.
12
Steffen, McNeill e Crutzen 2007.
13
E.g. Kumar 1986.
14
Steffen et al. 2015, 2.

7
muito especialmente o petróleo, continuaram a ser o seu principal alicerce material. O
que ocorreu, de fato, foi uma enorme expansão quantitativa. É como se os ventos
produzidos pelas revoluções industriais – que já representavam uma grande ruptura com
os ritmos e escalas pré-industriais de produção e consumo – se desdobrassem em furacões
capazes de multiplicar radicalmente as consequências ambientais da ação humana. A
Grande Aceleração foi gestada historicamente no contexto do pós-guerra, quando a
disponibilidade de petróleo abundante e barato – associada com os novos países
produtores do Oriente Médio – interagiu de maneira sinérgica com a difusão de
tecnologias inovadoras que catalisaram uma explosão no consumo de massa (telefones
fixos, automóveis, TVs etc). Posteriormente, novas ondas tecnológicas continuaram
contribuindo para ampliar ainda mais o consumo em grande escala, como no caso dos
computadores e dos telefones celulares. É preciso considerar, para ter uma visão mais
realista dos desafios políticos envolvidos na questão do Antropoceno, que esse
crescimento elevou de maneira inédita as expectativas e os padrões de consumo material
das populações trabalhadoras, especialmente nos países de vanguarda no processo de
industrialização. A Grande Aceleração é também o mundo da social-democracia
histórica, onde políticas de distribuição de riquezas e oportunidades – distribuição, não
redistribuição – permitiram elevar o consumo dos trabalhadores sem diminuir o
superconsumo dos ricos15. As consequências vêm se dando, em grande parte, através do
aumento na desigualdade entre as diversas regiões do mundo e na pressão destrutiva sobre
a ecologia planetária.
Uma terceira possível etapa vem aparecendo na literatura. No texto de 2007,
mencionado acima, ela foi identificada através de uma pergunta: “stewards of the Earth
System”? [guardiões do Sistema Terra?”] 16. Em síntese, seria o momento em que a
humanidade, reconhecendo os riscos inerente à sua nova inserção planetária, buscaria de
forma consciente a própria sustentabilidade. A disseminação de novas premissas éticas,
novas políticas e instituições, novas tecnologias e novas configurações socioeconômicas
permitiriam uma transição consciente para alcançar esse objetivo. É claro que uma
terceira etapa com essas premissas representa mais que tudo uma vontade, ou talvez uma
possibilidade. Em termos concretos, ainda estamos vivendo a Grande Aceleração. O
volume total de materiais transportados pelos oceanos, por exemplo, cresceu de 2,6

15
Przeworski 1986.
16
Steffen, McNeill e Crutzen 2007, 617.

8
bilhões de toneladas, em 1970, para 11,07 bilhões, em 2019!17 Essa terceira etapa, no
entanto, no que ela possa ter de realidade, está sendo gestada nos inumeráveis encontros,
estudos e debates que se multiplicam ao redor do planeta na busca por um futuro
sustentável. E também nos incontáveis conflitos e experimentos sociais contra o avanço
da devastação ambiental e em favor de formas sustentáveis de vida e trabalho. Não se
pode desprezar o volume e a qualidade de toda essa mobilização social. Mas ainda é cedo
para avaliar suas possíveis consequências no futuro.
É claro que essa periodização tão agregada e genérica foi bastante criticada por
historiadores. Não pretendo aprofundar o tema aqui, mencionando as diferentes
propostas que foram feitas para o início do Antropoceno etc. A questão de fundo, ao
meu ver, passa por um problema teórico e metodológico que está longe de ser resolvido:
ao contrário da pesquisa sobre estratigrafia geológica, que exige uma sincronia
planetária para ser aceita como legítima – no sentido de que o planeta não pode entrar
em uma nova época geológica por partes, mas sim como uma totalidade –, a análise
histórica costuma ser feita com base em diferentes escalas de abrangência geográfica.
Mesmo quando se trabalha com conceitos muito abrangentes, como capitalismo ou
globalização, não se supõe que esses processos históricos começaram ao mesmo tempo
em toda parte, ou que pelo menos se difundiram de uma maneira equitativa18. O próprio
John McNeill, em um trabalho de 2015, diferenciou um Antropoceno climático e
geológico de um Antropoceno histórico. No último caso, existiria uma diversidade de
situações concretas, sendo que algumas regiões podem ter entrado no padrão do
Antropoceno antes de 1750 e outras, muito mais tarde19. O debate vai ao encontro da
distinção que levantei acima entre uma participação “ativa” ou “passiva” nas mudanças
planetárias. Todos sofrem as consequências das mudanças globais, pois essas possuem
uma considerável sincronia geológica, climática e ecológica. Mas nem todos participam
ativamente das transformações nos modos de vida e nos padrões produtivos-
tecnológicos que provocaram essas mudanças globais.

17
UNCTAD 2020, 4.
18
Quenet 2017, 173.
19
McNeill 2015, 51-53.

9
Para o exercício que quero delinear no presente artigo, porém, a cronologia em
três etapas sintetizada acima é bastante útil. É verdade que ela tem o seu eixo no
Antropoceno geológico, climático e ecológico (aspectos que, efetivamente, vêm
dominando a caracterização geral do conceito). Ou seja, o critério básico dessa
periodização são as transformações produtivas e tecnológicas que ocasionaram as
mudanças globais quantificadas na discussão sobre o Antropoceno. Por outro lado, ela
também adota uma posição genérica e desterritorializada, como se toda a humanidade
estivesse automaticamente passando pelas etapas mencionadas
No entanto, uma das formas possíveis de localizar a história do Antropoceno é
justamente cotejar essa periodização global com realidades sociais e geográficas
concretas, analisando o grau da sua participação ou não, seja ativa ou passiva, na macro
transformação histórica que está ocorrendo. A proposta que pretendo delinear aqui é
pensar a participação de um país específico na história do Antropoceno. Por certo,
existem outras opções de localização. Mas trabalhar em termos de países faz sentido
diante da realidade política contemporânea. Apesar das muitas profecias sociológicas
sobre o enfraquecimento dos estados nacionais por conta das dinâmicas da globalização
– algo que em certo nível está acontecendo –, vemos que grande parte das decisões
políticas e econômicas a respeito de problemas socioambientais continuam a ser
tomadas nos espaços nacionais. Ou então a partir de articulações diplomáticas entre
países que geraram acordos e organizações ao nível macrorregional ou global. Nenhuma
delas, porém, com capacidade para neutralizar a relevância das disputas políticas ao
nível nacional. Não se trata de ignorar as inúmeras dinâmicas e atores sociais que se
movimentam em uma chave local ou transnacional. Mas o fato é que a lógica dos estados
nacionais, inclusive no plano econômico, vem demonstrando um resiliência
considerável. A história e o futuro do Antropoceno, portanto, também requerem análises
no contexto de cada país.

O BRASIL NO PRIMEIRO MOMENTO DO ANTROPOCENO

De maneira geral, para localizar a história do Antropoceno no contexto de


formações nacionais, é preciso partir do principio de que sua participação ativa deve ser
avaliada em pelo menos três níveis: 1) o grau de participação das sociedades nacionais
nos padrões de produção e consumo que produziram o fenômeno global do Antropoceno;

10
2) o papel de determinadas economias nacionais enquanto fornecedoras de recursos
naturais e humanos para que outros países e regiões construam esses padrões de produção
e consumo; 3) o lugar de cada sociedade nacional na formulação e/ou absorção de
ideologias e padrões de pensamento que estão construindo uma “cultura do
Antropoceno”.
Com base nessa qualificação, o Brasil apresenta um caso bastante adequado para
o tipo de análise que está sendo proposto. Sua história revela que a entrada de diferentes
países nos marcos do Antropoceno não pode ser vista de maneira homogênea. Existem
diferenças acentuadas em termos de timing histórico e de modo de inserção. É verdade
que o caso brasileiro possui algumas peculiaridades que o distinguem da situação
histórica mediana dos países contemporâneos. A sua enorme dimensão territorial e,
especialmente, os conteúdos ecológicos do seu território, colocam-no num lugar
proeminente dentro da discussão sobre o destino do ambiente planetário. Mas a percepção
dessa dimensão planetária do território só ganhou maior visibilidade a partir do final do
século XX, pari passu com a velocidade das transformações socioeconômicas e
ambientais vivenciadas pelo país no contexto da Grande Aceleração.
No quadro mais amplo da história dos últimos séculos, contudo, a imagem de um
“enorme território” pode ser enganosa.20 No Brasil do século XIX, assim como nos três
séculos anteriores da América Portuguesa, as áreas sob efetivo domínio euro-
descendente, colonial ou pós-colonial, formavam um “arquipélago” de manchas regionais
de ocupação territorial dotadas de diferentes tamanhos e densidades demográficas. Essas
manchas, dominadas por elites locais e baseadas na exploração de diferentes recursos do
mundo natural, se concentravam na Mata Atlântica, na proximidade do litoral, com
ocupações bem menos densas na Caatinga, no Cerrado, no Pantanal, na Pampa e ao longo
do Rio Amazonas. Do ponto de vista espacial, pode-se dizer que essas manchas eram
relativamente pequenas diante dos vastos sertões que as cercavam. A maior parte do
território incluído no mapa do Brasil, portanto, era composta por espaços com pouca
presença euro-descendente e grande densidade de flora e fauna, onde populações
indígenas continuavam existindo de maneira relativamente autônoma. Do ponto de vista
demográfico, por outro lado, diante da magnitude formal do território, a população total
era relativamente pequena, ao menos até meados do século XX. Ela estava na casa dos
4,6 milhões de pessoas, em 1822, inicio da construção do país independente, e 17 milhões,

20
Para um desenvolvimento mais detalhado e referências bibliográficas sobre o que será tratado nos
próximos dois parágrafos, ver Pádua 2018.

11
em 1900. Neste último ano, para efeito comparativo, os Estados Unidos já contavam com
mais de 76 milhões de habitantes. É verdade que esses números não incluem grande parte
das sociedades indígenas que, mesmo habitando o território que o mundo moderno
reconhecia como “Brasil”, não estavam inseridas no país enquanto entidade política. É
claro que várias sociedades indígenas haviam sido subjugadas ao longo dos séculos,
sofrendo uma enorme queda demográfica e sendo forçadas a se fixar de maneira
subalterna nas áreas articuladas ao domínio euro-descendente. Mas outras habitavam os
amplos espaços do território praticamente sem presença desse domínio.
Vale lembrar, por fim, que essas manchas de ocupação não devem ser entendidas
como ilhas isoladas. Existiam, em primeiro lugar, os traços culturais comuns, como o
catolicismo e a língua portuguesa. Por outro lado, dependendo da realidade de cada
região, existiam fluxos de intercâmbio em diferentes níveis de intensidade, sejam de
produtos, pessoas ou praticas culturais. Os padrões sociais e culturais do antigo regime
português, assim como vários aspectos da sua civilização material, foram se reproduzindo
e se adaptando aos novos contextos ecológicos, e se mesclavam, muitas vezes, com
técnicas e práticas culturais de origem indígena ou trazidas pelos africanos. Assim, um
conjunto de regiões culturalmente hibridas, mas dominadas por oligarquias regionais e
pela lógica do escravismo, vieram moldando o que no século XIX passou a ser chamado
de Brasil.
Como avaliar a contribuição desse conjunto social e geográfico para a “grande
transformação” europeia que deu início à construção do Antropoceno? Em primeiro
lugar, o Brasil se insere no processo mais amplo de construção colonial das Américas. De
uma maneira geral, todo o destino histórico da Europa e do processo de globalização está
diretamente relacionado com os trágicos desdobramentos dessa expansão colonial. As
linhas daí derivadas, objetivas e subjetivas, são inúmeras e complexas. A experiência
colonial na região, por exemplo, teve importância basilar na construção do próprio
modelo ocidental de ciência, com sua pretensão de produzir um saber universal e uma
visão global do “progresso” da humanidade21. Esse mesmo processo colonial pode
também ser conectado com o próprio ambiente planetário. Simon Lewis e Mark Maslin ,
por exemplo, defendem o ano de 1610 como o marco mais antigo para se pensar o
Antropoceno a partir de indicadores geológicos, pois é possível perceber, no gelo
Antártico, uma queda pronunciada no nível de dióxido de carbono na atmosfera 22. Essa

21
Safier 2008.
22
Lewis e Maslin 2018, 13.

12
queda estaria relacionada com a morte de milhões de habitantes nativos das atuais
Américas – ocasionando o abandono e reflorestamento espontâneo das suas antigas áreas
de cultivo – por conta do choque epidemiológico e da violência provocados pela
conquista europeia.
Em uma visão de mais longo prazo, ocorreu uma constante apropriação e
transferência de riquezas naturais e culturais das Américas para a Europa, com suas
evidentes consequências ambientais. Já em 1501 – em uma lista apresentada pela coroa
espanhola ao navegador Vicente Yáñez Pizon, relacionada com os preparativos de sua
viagem ao atual rio Amazonas –, fica claro que a busca por riquezas naturais era um dos
elementos centrais da conquista: “tanto ouro como prata, cobre ou qualquer outro metal,
perolas e pedras preciosas, drogas, especiarias e quaisquer outras coisas de animais,
pescados, aves, árvores e ervas e outras coisas de qualquer natureza ou qualidade” 23.
Note-se que existia uma clara hierarquia de desejos econômicos: minerais preciosos,
materiais orgânicos cuja exploração pudesse gerar lucros e, por fim, tudo de
surpreendente e valioso que pudesse existir em um continente ainda quase desconhecido.
Eduardo Galeano difundiu, na década de 1970, a poderosa imagem das “veias
abertas” da América Latina. A exploração predatória, associada à transferência para fora
das riquezas extraídas da região, seria a causa principal da sua história de pobreza e
indigência política24. Existe uma parte de verdade nessa percepção. Mas uma produção
historiográfica mais rigorosa e minuciosa vem mostrando que o processo colonial foi bem
mais complexo do que a mera montagem de mecanismos de transferência de riquezas
primárias. Além de existir toda uma economia voltada para o mercado interno, fatores
como cultura, poder e status, em seu dinamismo endógeno, foram fundamentais para
entender a construção das sociedades profundamente hierárquicas que marcaram a região.
Por outro lado, é válido retomar, na perspectiva da história ambiental, a diferença
estabelecida por Wallerstein (1989) entre preciosities e bulk commodities. No mundo
anterior aos combustíveis fosseis, onde a navegação a vela estabelecia fortes limites para
a quantidade e o peso dos materiais que podiam ser transportados no comércio
transoceânico, a transferência das riquezas naturais das Américas centrava-se em
produtos que possuíam alto valor de troca em quantidades relativamente pequenas (como
açúcar, ouro, madeiras nobres etc). Só a partir do século XIX, com seus navios a vapor e
ferrovias – e mais tarde, no século XX, com seus enormes navios de carga –, o comércio

23
Ribeiro e Moreira Neto 1993, 75.
24
Galeano 1971.

13
internacional passou a promover um gigantesco fluxo material de bulk commodities,
como o petróleo e o ferro, que entram no próprio metabolismo das economias. É possível
dizer, ironicamente, que a verdadeira abertura das veias da América Latina está ocorrendo
agora, no século XXI, muito mais do que no período colonial sugerido por Galeano.
Em todo caso, de um ponto de vista mais especifico e rigoroso, não é tão fácil
estabelecer vínculos diretos de causalidade entre a história colonial, ou mesmo pós-
colonial, do Brasil e a “primeira etapa” do Antropoceno. De forma indireta, correlações
podem ser feitas através de grandes narrativas. O estabelecimento de plantações e
engenhos de açúcar, a partir do século XVI, foi fundamental para a invenção do modelo
de produção primária voltada para o mercado internacional, as chamadas commodity
chains, que na sequência tiveram um papel efetivo na formação do capitalismo urbano-
industrial25. No sentido mais direto, porém, a participação do Brasil na formação inicial
do mundo industrial foi modesta, com maior relevância pontual no fornecimento de
alguns produtos naturais que tiveram relevo em revoluções industriais fora do país.
Existe toda uma nova literatura sobre a revolução industrial da Inglaterra do
século XVIII, aliás, que vem ao encontro do argumento sobre a necessidade de localizar
os grandes processos de transformação socioambiental. Como defendido acima, as
mudanças históricas nunca são automáticas ou independentes de fatores e disputas
concretas em ambientes geográficos e sociais específicos. A ideia de uma adesão
evidente, heroica e prometéica ao mundo da industrialização e da abundância energética
trazida pelos combustíveis fósseis, por exemplo, está sendo questionada por estudos
bastante minuciosos. Entre os pontos enfatizados, aparecem as dificuldades práticas de
se extrair carvão mineral, o qual foi adotado de maneira tardia, fazendo com que os limites
materiais à continuidade do crescimento capitalista, por exemplo em termos do uso de
água e animais, se tornassem dramáticos; as condições para a inovação tecnológica
endógena, em especial as sinergias entre mercados e ciência aplicada; a instabilidade na
oferta de energia hidráulica por conta de variações naturais e secas; o uso de máquinas a
vapor nos conflitos entre empresários e trabalhadores pelo número de horas diárias de
trabalho etc26. No contexto desse conjunto de fatores, que deve incluir também problemas
de poupança interna e mecanismos de financiamento, é que aparece uma presença mais
bem documentada do Brasil na gênese do processo histórico que produziu o Antropoceno:
a intensa relação comercial da Inglaterra com Portugal, que permitiu que grande parte do

25
Topik, Marichal e Frank 2006.
26
Jonsson 2012 e Malm 2016.

14
ouro extraído do Brasil no século XVIII fosse absorvido pelo setor bancário inglês,
alavancando o crédito para as atividades industriais e para a conversão ao uso de
combustíveis fósseis27.
Mais tarde, já no contexto de um país independente, dois produtos primários
retirados do território brasileiro tiveram relevância na continuidade do avanço industrial
no século XIX. O primeiro deles foi o café, quase todo produzido em uma região
específica, o vale do rio Paraíba do Sul, que sofreu fortes problemas ambientais por conta
dessa produção. As cadeias de pequenas montanhas do vale tiveram suas encostas
desmatadas a ferro e fogo a partir da década de 1820. O plantio dos cafezais em linhas
verticais ao longo das encostas, para facilitar a vigilância sobre o trabalho extenuante dos
escravos, foi um importante fator para a perda do solo. No final do século XIX, o
desmatamento generalizado contribuiu para um débâcle econômico nas fazendas da
região, influenciando o fim da escravidão, a proclamação da República e a migração da
produção cafeeira para novas fronteiras no oeste do estado de São Paulo 28.
A relevância do café para o modo de vida urbano-industrial é considerável. Trata-
se de uma das soft drugs da modernidade industrial, um energético para sobreviver ao seu
intenso e historicamente inédito ritmo de vida29. A produção brasileira foi crucial na sua
disseminação. Nas palavras de Topik e Wells, “os brasileiros estimularam e
transformaram o lugar do café em restaurantes e residências no exterior” 30. De fato, o país
foi responsável por cerca de 80% da expansão da produção de café no século XIX,
provocando o seu barateamento e popularização. Com tecnologias de produção agrícola
rudimentares, a queima desenfreada de abundantes florestas tropicais e a exploração
extenuante de escravizados foram os dois lados perversos da moeda gerada por essa
expansão.
O segundo produto, baseado no extrativismo e não na agricultura, foi o boom de
extração da borracha na Amazônia na virada do século XIX para o XX. Um novo sistema
de interações socioambientais emergiu naquela grande floresta quando a borracha das
seringueiras (Hevea brasiliensis) começou a ser utilizada em processos de
industrialização fora do Brasil, especialmente na fabricação de pneumáticos para a
emergente indústria de automóveis e bicicletas. O novo sistema conectou extensas áreas

27
Villela 2011, 9-13.
28
Dean 1995, cap. 8; Brannstrom 2000.
29
Mintz 1985.
30
Topik e Wells 2012, 222-224.

15
do interior da floresta, divididas em domínios privados denominados “seringais”, com
setores de ponta do capitalismo mundial. Esse fluxo se realizava através de uma cadeia
de trocas – na verdade uma cadeia de dívidas – que passava por casas de comércio
internacional nas cidades, companhias internacionais de navegação, agentes comerciais
locais que penetravam nos rios trocando borracha por bens de consumo, proprietários dos
seringais, seus funcionários e, no final da cadeia, os trabalhadores seringueiros
espalhados pela floresta sem proteção legal e fortemente explorados pelos patrões, que
pagavam pouco pela borracha extraída e cobravam muito pelas mercadorias que
complementavam a sobrevivência das comunidades31.
Do ponto de vista do desflorestamento, no entanto, os resultados de todo esse
processo foram relativamente reduzidos. Não por qualquer intenção de cuidado
ambiental, mas sim pela agência histórica da própria árvore. A extração da borracha das
seringueiras não demandava a sua derrubada. Ao contrário, para ser reproduzida por um
tempo razoável, a extração diária do látex exigia a manutenção não apenas das
seringueiras como também das paisagens florestais que serviam de suporte ecológico para
a continuação da sua capacidade biológica. Apesar do rápido crescimento de algumas
cidades, como Manaus e Belém, com a rápida queda da exportação, a partir de 1915, as
consequências ambientais diluíram-se mais ainda. No início da década de 1970, quando
começa um ciclo de intenso desmatamento, a Floresta Amazônica brasileira ainda detinha
cerca de 99% da sua cobertura original32.
No caso da borracha estamos diante de um produto que entrava no metabolismo
da produção industrial de ponta. Mas é bastante óbvio que a oferta com base na extração
de árvores nativas dispersas na floresta só seria possível em um momento muito inicial e
incipiente da indústria automobilística. A sua conversão em agricultura apresentava-se
como opção diante da escala futura da demanda. É verdade que existem sérios problemas
ecológicos para o plantio das seringueiras na Amazônia. A domesticação agrícola nos
trópicos asiáticos, sendo a seringueira uma planta exótica, permitiu que estivesse livre
das pragas que se manifestavam em seu lugar de origem. Mesmo assim, a acomodação e
a alienação da elite local impediram que esforços mais intensos de pesquisa e plantio
fossem realizados no próprio território brasileiro 33.

31
Weinstein 1983.
32
Pádua 2000.
33
Dean 1987.

16
O balanço da presença do Brasil na primeira etapa do Antropoceno, portanto, é
relativamente modesto. Como fornecedor de matérias-primas para a industrialização, sua
importância foi limitada e pontual. Nada que se compare, por exemplo, com o guano do
Peru, fertilizante natural rico em fosfato que se tornou essencial para o avanço da
agricultura capitalista no século XIX e para a própria invenção da indústria agroquímica.
Cushman chegou a sugerir que o ano de 1830, início da exportação de guano para a
Europa, fosse considerado o início do Antropoceno34.
Por outro lado, do ponto de vista da participação ativa nos padrões de produção e
consumo que iniciaram o Antropoceno, o papel do Brasil foi quase irrelevante. Até as
primeiras décadas do século XX, o país esteve distante do mundo dos combustíveis
fósseis e da vanguarda do processo de industrialização. Em 1915, por exemplo, o Brasil
importava apenas 0,14% da produção mundial de carvão mineral e 0,6% da produção
mundial de petróleo35. A fonte básica de energia era a lenha e o carvão vegetal. Ainda em
1941, cerca de 73% do consumo de energia primária no Brasil provinha da madeira36. A
produção nacional de carvão mineral começou a ter algum crescimento apenas a partir da
década de 1920, após a descoberta de reservas no Sul do país. A hidroeletricidade também
começou a avançar na primeira metade do século XX, mas lentamente.
É necessário ao menos delinear aqui o contexto sociocultural dessa distância
diante do mundo emergente dos combustíveis fósseis. O Brasil era um país extremamente
desigual e elitista, onde uma fração muito pequena da sociedade vivia segundo os padrões
de consumo das elites europeias e se distinguia de uma população pobre e analfabeta,
essencialmente rural, quase sem direitos e oportunidades no mercado formal. Uma
população, porém, que estava construindo culturas populares vibrantes no contexto das
diferentes regiões, interagindo com a rica diversidade ecológica de um território ainda
ocupado por uma notável densidade de flora e fauna nativas. No nível regional, as elites
baseavam sua riqueza em produtos agrícolas voltados para o mercado interno, como carne
e leite, ou na exportação de algodão, tabaco, cacau, açúcar, café e borracha (fontes das
maiores fortunas). Já os bens de consumo manufaturados eram quase todos importados e
consumidos de maneira elitista, diferenciando-se do artesanato orgânico produzido pelas
mãos do povo.

34
Cushman 2013, 345.
35
Leite 2014, 58-61.
36
Wilberg 1974.

17
É importante observar que a economia não-industrial era elogiada pelas vozes
culturais dominantes, sendo apresentada como ideal diante das condições territoriais do
país. As demandas intelectuais e políticas em favor da industrialização, que começaram
a crescer lentamente no século XIX, chocavam-se com a ideologia dominante da
“vocação rural” do Brasil37. Mesmo importantes autores abolicionistas, reformistas e
nacionalistas defendiam que o país não priorizasse a industrialização. A contra-imagem
das cidades industriais europeias, poluídas e habitadas por um proletariado miserável, foi
usada com esse objetivo. As propostas reformistas mais ousadas se centravam na
modernização da agricultura, com propriedades menores e trabalho livre 38.
Assim, até as primeiras décadas do século XX o Brasil era em grande parte uma
extensão do modelo socioeconômico consolidado no século XIX. É verdade que algumas
mudanças significativas ocorreram, especialmente o fim da escravidão em 1888. Mas os
trabalhadores rurais continuavam pobres e sem direitos, muitas vezes trabalhando de
graça para os proprietários em troca do direito de habitar e fazer pequenos cultivos
próprios nas franjas dos latifúndios. Os espaços urbanos, por outro lado, começaram a
crescer de maneira mais pronunciada. Mesmo assim, por volta de 1940, apenas o Rio de
Janeiro e São Paulo possuíam populações com mais de 1 milhão de habitantes. Foi no
contexto do mundo urbano, porém, que começaram a ser gestadas as bases culturais e
políticas que levariam a uma profunda transformação do país no século XX.

O BRASIL NA GRANDE ACELERAÇÃO E NO FUTURO DO ANTROPOCENO

A população brasileira se multiplicou por dez entre 1900 e 2000 (quando atingiu a
faixa de 170 milhões de pessoas). Mas a grande transformação na realidade social e
ambiental do país começou a ocorrer a partir de 1945. Em 1950, o Brasil tinha 51,9
milhões de habitantes. A taxa de urbanização estava em 36,2% e a de analfabetismo em
50,6%. Os mesmos indicadores, em 2020, revelam a velocidade da transformação na rede
socioterritorial do país: 210 milhões de habitantes, 84,4% de taxa de urbanização e 6,6%
de analfabetismo.39 A percentagem da população economicamente ativa no setor
primário, por sua vez, era de 62,5% em 1940 e caiu para 8% em 2018 40. Já o consumo de

37
Luz 1975.
38
Pádua 2002, cap. 5.
39
Informações retiradas do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
40
Pochmann 2019, 92 e 95.

18
energia pulou de 15 para 288 milhões de toneladas equivalentes de petróleo entre 1950 e
2018, sendo que 52,7% da energia é atualmente oriunda de combustíveis fósseis 41.
É possível notar, a partir desses indicadores, a adequação forte da história recente
do Brasil ao padrão da “segunda etapa” do Antropoceno, a Grande Aceleração, com
consequências importantes para o ambiente planetário. Mas é óbvio que este horizonte
conceitual não estava presente nos debates e disputas que impulsionaram as primeiras
décadas desse processo histórico. Uma perspectiva internacional, porém, estava na ordem
do dia através do tema do “desenvolvimento”. A questão ambiental, além disso, começou
a aparecer de maneira episódica, algumas vezes de forma bastante surpreendente para o
senso comum atual. Antoine Acker, por exemplo, demonstrou que, para vários
intelectuais e técnicos comprometidos com a busca de petróleo no Brasil na primeira
metade do século XX, um dos argumentos centrais era a defesa das florestas. A transição
energética através do petróleo era vista como uma superação da herança colonial de uso
predatório e imprevidente da riqueza vegetal do território. Já os enormes problemas
ambientais inerentes ao uso do petróleo só começaram a ficar evidentes, ao menos para a
opinião pública, na década de 1970, apesar de graves acidentes terem acontecido desde a
década de 193042.
Esse exemplo reforça a necessidade de entender que a Grande Aceleração ocorreu
através de histórias nacionais específicas, com atores, disputas e discussões dotados de
características endógenas. A articulação dessas histórias particulares à narrativa do
Antropoceno é uma elaboração posterior que, na melhor das hipóteses, deveria estimular
sua releitura em uma chave global.
Nas histórias nacionais é possível perceber com mais clareza a presença de atores
sociais concretos. Nas primeiras décadas do século XX, o desejo de modernização tornou-
se marcante em setores das novas classes médias urbanas, do empresariado, das forças
armadas e dos intelectuais no Brasil. As práticas culturais e científicas ganham maior
vivacidade, com vibrantes inovações artísticas e debates políticos que expunham a
acomodação egoísta das oligarquias rurais. Essa crítica ganhou maior força com a grande
crise da exportação de café no início da década de 1930, relacionada com a crise
financeira internacional de 1929. Tal episódio, assim como situações anteriores de
superprodução do café e queda nos preços internacionais, evidenciou a vulnerabilidade
de uma economia dependente de monoculturas de exportação. Uma revolução política

41
Tolmasquim, Guerreiro e Gorini 2007, 50; EPE 2019, 7 e 18.
42
Acker 2020, 197 e 206.

19
ocorrida em 1930, com forte presença militar, gerou uma ação mais forte e centralizada
do estado nacional em favor do crescimento urbano-industrial. Mas o avanço foi
relativamente lento até meados do século. Apesar de possuir grandes reservas de ferro, a
siderurgia baseada em altos fornos e alimentada por carvão mineral só foi inaugurada no
país em 1946, através de uma companhia estatal.
Foi a partir do final da segunda guerra – mesmo levando em conta as oscilações
conjunturais, inclusive com momentos de forte inflação ou estagnação – que o Brasil
entrou de cabeça no mundo da Grande Aceleração. O aumento na disponibilidade de
crédito externo e de petróleo para importar atraiu políticos de direita, centro e esquerda
para o sonho do “desenvolvimentismo”. O slogan do presidente Juscelino Kubitscheck,
que governou entre 1955 e 1960, resume com perfeição a sedução ideológica da época:
“avançar cinquenta anos em cinco!” O Brasil possuía recursos naturais, um mercado de
consumo em crescimento (especialmente nas cidades), abundância de mão de obra barata
e um espaço continental interno a ser “conquistado”. A vinda de empresas transnacionais,
em associação com empresas nacionais e programas estatais, veio catalisando um
processo de crescimento bastante intenso. No contexto do regime militar que vigorou
entre 1964 e 1984, com a autoritarismo tecnocrático abafando conflitos sociais e políticos,
o “desenvolvimento” atingiu os seus níveis quantitativos mais elevados. Ao longo das
décadas, a economia cresceu anualmente em taxas médias da ordem de 7% (1942/1962),
10,9% (1967/1973) e 3,52% (2003/2013)43.
A velocidade do crescimento, porém, ocorreu no contexto de uma sociedade
muito desigual e que detinha um grande percentual de população miserável e distante dos
direitos básicos de cidadania. As instituições e os órgãos governamentais, por sua vez,
estavam marcados pelo elitismo presente na formação do país. Pode-se deduzir os
impactos e os conflitos sociais e ambientais gerados por vários processos ocorridos a
partir da década de 1950: a) inchamento das cidades e remodelação das paisagens
urbanas, com aumento da poluição e da degradação ambiental, destruição de complexos
arquitetônicos tradicionais, derrubada de habitações populares e expansão de
assentamentos informais e precários; b) expansão de grandes projetos de infraestrutura,
especialmente rodovias e usinas hidrelétricas; c) expansão de áreas industriais, complexos
de mineração e depósitos de contaminantes; d) abertura de novas fronteiras de
agropecuária em regiões cobertas por densas florestas e outros ecossistemas nativos,

43
Droulers 2001, 254; Gomes e Cruz 2015, 41.

20
muitas vezes ocupadas por populações indígenas; e) conversão de antigas áreas de
agricultura camponesa em estabelecimentos de agronegócio em grande escala, baseados
no uso de máquinas e agrotóxicos.
A Grande Aceleração no Brasil foi dolorosa e desequilibrada. As consequências
foram em grande parte dramáticas. Os casos de injustiça ambiental se multiplicaram, com
industrias e depósitos contaminantes concentrando-se nas áreas de moradia de populações
pobres. Enormes projetos de agronegócio, mineração e barragens atacaram e despojaram
populações indígenas e camponesas. O grande êxodo rural, provocado principalmente
pela industrialização da agricultura, não foi acompanhado por políticas direcionadas para
receber no mundo urbano, de maneira minimamente decente, a massa de pessoas que se
deslocaram para ele. O resultado lógico foi o crescimento de favelas nas encostas, nos
mangues e em outros espaços vulneráveis e não valorizados das cidades. Todo esse
processo, além disso, foi muito marcado no Brasil por uma dimensão de “auto-conquista”
territorial, de ocupação dos sertões “vazios”. A “marcha para o oeste”, que já vinha sendo
um dos grandes objetivos do estado nacional a partir de 1930, ganhou um estimulo
poderoso com a inauguração de Brasília em 1960. A nova capital no coração do Cerrado,
uma enorme savana arbórea, ajudou a transformar aquele bioma em uma fronteira
mundial do agronegócio. O avanço devastador na direção da Floresta Amazônica,
especialmente a partir da década de 1970, fez com que ela se tornasse um dos ícones do
debate ambiental global. Em algumas décadas, o Cerrado perdeu cerca de 50% de sua
cobertura original e a Floresta Amazônica brasileira, cerca de 20%44.
Ao contrário da primeira etapa do Antropoceno, a inserção do Brasil na Grande
Aceleração não se resumiu ao fornecimento de produtos primários para outras regiões do
planeta. Houve também uma forte transformação nos padrões internos de produção e
consumo. Para dar apenas um indicador, muito representativo, o número de veículos
automotores cresceu de 650.000 em 1960 para 44,8 milhões em 2018 45. Esse tipo de
crescimento, no entanto, tendeu a reforçar o padrão de desigualdade tradicional do país,
com a grande maioria dependente de transportes coletivos tendo que trafegar por cidades
expandidas, poluídas e congestionadas.
Por outro lado, muitas das mudanças na paisagem produtiva do Brasil seguem
fortemente vinculadas ao seu papel histórico de exportador de produtos primários. Dois
deles se destacam hoje nas exportações brasileiras: o ferro e os grãos, especialmente a

44
Pádua 2018.
45
SINDIPEÇAS 2019.

21
soja, que fazem parte do que a UNCTAD define como os cinco main bulk (ferro, grãos,
carvão mineral, bauxita/alumínio e fosfato) 46. Esses produtos, junto com os combustíveis
fósseis e os produtos químicos, são responsáveis pelo grosso do fluxo material através
dos oceanos.
A produção de minério de ferro no Brasil pulou de 9 para 400 milhões de
toneladas entre 1950 e 2014 (das quais 344 milhões são exportadas). A produção de aço,
por sua vez, também pulou de 788 mil para 33,9 milhões de toneladas entre 1950 e 2014
(com um consumo interno atual de cerca de 28,5 milhões de toneladas)47. A produção de
grãos, especialmente de soja, aumentou de 39,4 para 206,34 milhões de toneladas entre
1975 e 2015. É verdade que esse crescimento vem se tornando menos horizontal e mais
vertical ou tecnológico, já que a área plantada cresceu em menor proporção no mesmo
período, de 32,9 para 57,9 milhões de hectares 48. Em uma compensação trágica, o Brasil
tornou-se o maior consumidor mundial de agrotóxicos em termos absolutos, com um
consumo próximo de 1 milhão de toneladas por ano 49.
De toda forma, existem claros sinais de que o aspecto provedor de recursos
naturais voltou a ganhar especial relevância, abrindo espaço para o que vários
especialistas consideram uma “reprimarização” da economia brasileira. O crescimento da
demanda externa para produtos primários e semimanufaturados, especialmente por parte
de países na Ásia, tem se revelado muito mais constante do que as oscilações observadas
no mercado interno ou na demanda externa por produtos manufaturados. Esses últimos,
que representavam 57,3% do total exportado pelo país em 1994, caíram para apenas 35%
em 2018. Já o mercado internacional para produtos primários do Brasil, como minério de
ferro, petróleo, ouro, nióbio, celulose, etanol, soja e carnes, continua crescendo, mesmo
diante da forte crise na economia internacional contemporânea 50.
A intensificação do papel de exportador primário pode amplificar uma série de
violências, desequilíbrios e conflitos socioambientais já existentes. Tal intensificação
pode, por exemplo, provocar um avanço ainda mais desmedido sobre o Cerrado e a
Floresta Amazônica, gerando consequências climáticas e ecológicas de dimensão global
e reações geopolíticas imprevisíveis. Além disso, como foi dito acima, é preciso ir além
dos grandes números e perceber as consequências concretas do extrativismo na

46
UNCTAD 2020, 4.
47
IBRAM 2015; Instituto Aço Brasil 2015.
48
Contini et al. 2010; CONAB 2015.
49
Rigoto et al. 2014.
50
Gomes e Cruz 2015, 12-14; Banco Central 2019.

22
materialidade biofísica do território e na vida das sociedades. Os números do crescimento
da mineração não revelam de imediato a multiplicação de conflitos e desastres que com
eles se relacionam. Basta lembrar o enorme desastre ocorrido no final de 2015, com o
rompimento de uma barragem de resíduos em Mariana, Minas Gerais, que provocou um
impacto devastador na região do Rio Doce. Ou então o desastre igualmente devastador
acontecido em Brumadinho, também em Minas Gerais, em 1919. O impacto deste
desastre é mencionado pelas próprias vozes do setor de mineração para justificar a queda
da produção de ferro no Brasil entre 2018 e 2019, de 450 para cerca de 410 milhões de
toneladas51.
O futuro do Antropoceno, obviamente, está envolto em muitas incertezas. A
própria ideia de uma “terceira etapa”, mais consciente e cuidadosa, existe apenas
enquanto uma possibilidade ou, mais realisticamente, um desejo. É possível pensar a
situação de cada país nesse contexto histórico, mas não de maneira isolada. A dinâmica
global, inclusive no aspecto das inovações tecnológicas, vai influenciar em grande parte
os limites, possibilidades e estrangulamentos do Brasil nas próximas décadas. O quadro
atual não é promissor no sentido de uma verdadeira transição para a sustentabilidade, seja
no Brasil ou no cenário internacional. No caso do Brasil, o espantoso retrocesso político
trazido pelo governo de Jair Bolsonaro, a partir de 2019, chega a ser desesperador. Em
um momento crucial para a tomada de decisões complexas, a visão ambiental do governo
federal retrocedeu ao padrão simplista e destrutivo que era dominante no período anterior
à década de 1970.
Mas existem desafios ainda maiores em escala global. Algumas análises, por
exemplo, indicam um possível fim da Grande Aceleração, na medida em que a capacidade
de produção e ocupação do ambiente planetário vem chegando ao limite. As taxas de
expansão observadas nas décadas anteriores, de maneira geral, não estão mais sendo
replicadas no momento atual – mesmo considerados os fatores conjunturais, as mudanças
nos eixos geográficos do crescimento econômico e, principalmente, a velha lição de que
o futuro é sempre imprevisível. De toda forma, existem projeções sobre o fim da Grande
Aceleração, que é diferente do fim do Antropoceno, e sobre a possibilidade de que tal
inflexão estimule ajustes na direção de novos modos de vida, mais condizentes com a

51
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/ibram-producao-de-minerio-em-2019-caiu-mas-
faturamento-
cresceu#:~:text=Segundo%20a%20entidade%2C%20a%20produ%C3%A7%C3%A3o,rompimento%20d
a%20barragem%20em%20Brumadinho. Acesso em 20 jan. 2021.

23
realidade de uma única Terra52. Por outro lado, o esgotamento apenas quantitativo da
Grande Aceleração pode também provocar uma explosão de violentos conflitos
socioambientais distributivos e redistributivos, inclusive conflitos militares pelos
recursos disponíveis.
Na metodologia que calcula a relação entre biocapacidade e pegada ecológica, o
Brasil é um dos poucos países que ainda apresenta uma biocapacidade per capita três
vezes maior do que sua pegada ecológica per capita. No entanto, essa biocapacidade já
caiu mais de 50% entre 1960 e 2017, como consequência da intensa devastação dos
biomas nativos 53. É preciso considerar, além disso, que os cálculos agregados de consumo
ambiental no Brasil são muito enganosos por conta da enorme desigualdade de renda.
Mesmo assim, pode-se dizer que o Brasil ainda possui uma certa margem de manobra
ecológica que a maioria dos países já não possui.
Por esse mesmo motivo, existe a possibilidade de que o país seja levado a
participar de um processo, frustrado por antecipação, de salvamento a qualquer custo do
padrão vigente na Grande Aceleração. Ou seja, o aumento nos ganhos de curto prazo com
a exportação de recursos primários, mesmo que por um setor muito minoritário da
sociedade, pode elevar a intensidade da pressão destrutiva e degradadora sobre o território
e as populações. Tal distopia, que pode ganhar substância no futuro não tão distante,
aumentaria radicalmente os conflitos socioambientais e o autoritarismo das elites,
reduzindo o espaço para a busca de alternativas sustentáveis e democráticas no contexto
da margem de manobra ecológica mencionada acima. No fim das contas, portanto, além
das complexas interações internacionais, o futuro vai depender dos embates políticos
internos sobre que tipo de país a sociedade brasileira conseguirá construir – se é que vai
existir esse espaço de autonomia – no encadeamento de uma humanidade e de um planeta
em tempos de Antropoceno.

REFERÊNCIAS

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(1930-1975)”. Past and Present, n. 249, 2020.

52
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53
GFN 2021.

24
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Determinantes, Estudos Especiais do Banco Central, n. 38/ 2019.

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