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Resenhas

ESTUDOS AVANÇADOS 35 (101), 2021 287


DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35101.018

O programa científico do Antropoceno


Ricardo Soares 1 e Wilson Machado II
O
N Química2000
o ano , o Prêmio Nobel de
Paul Crutzen e o liminolo-
tuir no reconhecimento de um novo pa-
radigma, e se esta Época poderia formal-
gista Eugene Stoermer publicaram na mente fazer parte da Escala de Tempo
Newsletter do International Geosphere- Geológica internacional (Silva; Arbilla,
-Biosphere Programme (IGBP) a hi- 2018; Silva et al., 2020).
pótese na qual a atual Época geológica Como pode ser observada na Figura
do planeta Terra, o Holoceno, havia se 1, após a obtenção de um consenso de,
encerrado e em seu lugar se iniciara o no mínimo, 60% dos membros do GTA
que viria a ser reconhecido como o “An- a proposta do Antropoceno deverá ser
tropoceno” (Crutzen; Stoermer, 2000). posta à aprovação da Subcomissão de
Dessa forma, conceituaram a nova uni- Estratigrafia do Quaternário. Caso acei-
dade cronoestatigráfica como resultado te os argumentos científicos apresenta-
direto das mudanças ambientais globais dos, essa subcomissão fará a recomen-
proporcionadas pelas ações da humani- dação à Comissão de Estratigrafia para
dade a partir da Revolução Industrial, que, caso também aprove o conjunto de
iniciada no século XVIII com o adven- evidências e argumentos científicos apre-
to da máquina a vapor de James Watt. sentados nas etapas anteriores, consolide
Logo, teve início a formalização que a a proposta para a aprovação pelo Comitê
humanidade teria se convertido em uma Executivo da IUGS. Esse Comitê será o
força geológica poderosa e capaz de al- responsável por atualizar a Escala Geoló-
terar irreversivelmente o futuro do pla- gica de Tempo, constando o Antropoce-
neta. no como a Época mais recente na histó-
Mesmo que o Antropoceno apre- ria da Terra. Era previsto, inicialmente,
sente certo caráter polêmico e não seja que a Subcomissão de Estratigrafia do
ainda um consenso absoluto nas geoci- Quaternário apresentaria a sua decisão
ências, nem tampouco nas ciências hu- durante ao 36ª Congresso Geológico
manas, devido a grande repercussão na Mundial que seria realizado em mar-
comunidade científica internacional e a ço de 2020. Infelizmente, em razão da
um aumento exponencial do interesse pandemia do Covid-19, esse congresso
na discussão sobre a validade ontológi- teve que ser adiado para novembro de
ca e epistemológica (Crutzen, 2002), a 2020, fazendo que todo o processo de
Subcomissão de Estratigrafia do Quater- ratificação do reconhecimento formal
nário (órgão da União Internacional de do Antropoceno como Época geológica
Ciências Geológicas - IUGS) considerou continue em andamento (Figura 1).
que o conceito possuía “mérito estrati- O conjunto de dados obtidos e hipó-
gráfico” o suficiente para a sua forma- teses levantadas ao longo de uma década
lização e criou, em 2009, o Grupo de pelo GTA têm sido apresentado de ma-
Trabalho do Antropoceno (GTA), cuja neira crítica e coerente em uma grande
finalidade é avaliar se o atual cenário de variedade de livros e artigos científicos
exploração científica poderia se consti- internacionais, assim como foram expos-

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tos no 35o Congresso Geológico Inter- zante entre diferentes ramos da Ciência,
nacional, em 2016 (Silva et al., 2018), como pode ser observado em “[...] esta
sendo posteriormente compilados e su- definição não exclui outras diferentes in-
marizados no livro The Anthropocene as terpretações do Antropoceno que apare-
a Geological Time Unit: A Guide to the ceram nos anos recentes entre outras co-
Scientific Evidence and Current Debate, munidades acadêmicas, particularmente
editdo pelos pesquisadores Jan Zalsiewi- nas ciências humanas” (p.1), mas sem
cz, Colin Waters, Mark Williams e Colin tergiversar em seu rígido caráter cientí-
Summerhayes (Alasiewicz et al., 2019). fico ”[Antropoceno] não tem significân-
O livro se divide em sete capítulos cia particular ou caráter simbólico [...] é
e conta com a contribuição de 38 dos um fenômeno geológico de um planeta
mais renomados cientistas internacio- profundamente impactado pelos seres
nais atuantes na teoria do Antropoceno. humanos” (p.15).
Contudo, embora se observe um gran- No segundo capítulo, “Assinaturas
de esforço em proporcionar uma leitura estratigráficas do Antropoceno”, são
acessível, pelo caráter multidisciplinar apresentadas as evidências científicas que
e bastante específico do tema, pode se baseiam o Antropoceno, com especial
constituir num grande desafio a leito- ênfase no uso dos distintos marcadores
res não familiarizados com a linguagem estratigráficos estocados em diferentes
científica em geral, e com conceitos geo- compartimentos ambientais, que são
lógicos em particular. elegíveis a serem reconhecidos como
O primeiro capítulo, “História e de- o registro geológico definitivo (golden
senvolvimento do Antropoceno como spike) do início da ação antropogênica
um conceito estratigráfico”, expõe sincrônica e global do Antropoceno. As
como a hipótese do Antropoceno des- Terras Pretas de Índio (TPI) da Região
pertou profundo interesse da comuni- Amazônica são destacadas como possí-
dade científica internacional, principal- veis golden spikes, mesmo apresentando
mente quando foi mais bem elaborada características pedológicas que as defi-
e divulgada na renomada revista Nature nam apenas como interessante marcador
(Crutzen, 2002). da presença antrópica da Bacía Amazô-
Os autores destacam que as ciências nica (Soares et al., 2018).
naturais foram aquelas que, informal- O terceiro capítulo, intitulado “A as-
mente, mais utilizaram o Antropoceno sinatura bioestratigráfica do Antropoce-
para abordar diferentes assuntos ineren- no”, apresenta como os fósseis podem
tes ao Sistema Terra tais como, mudan- fornecer informações fundamentais nas
ças climáticas globais, extinção das espé- alterações das composições das espécies
cies, acidificação dos oceanos, alteração durante as mudanças sofridas no Sistema
dos ciclos biogeoquímicos, acumulação Terra ao longo das Eras geológicas. As
de tecnofósseis entre outros (Silva; Ar- evidências apontam que a humanidade
billa, 2018). Além disso, enfatiza-se poderá, e com razão, ser responsabiliza-
constantemente que o objetivo do livro da pela atual sexta extinção em massa de
é descrever o Antropoceno somente de diferentes espécies ao redor do globo.
um ponto de vista geológico, mas sem Ao longo do quarto capítulo, “A
adotar um caráter excludente ou polari- tecnosfera e seu registro estratigráfico”,

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Fonte: Modificado de Silva et al. (2020).
Figura 1 – Processo de avaliação formal para o reconhecimento oficial da proposta do
Antropoceno como Época geológica.

os autores apresentam a relação desse massiva a partir da década de 1950, em


novo nicho de construção humana com um período histórico, informalmente,
o Antropoceno, com especial ênfase nos reconhecido como “A Grande Acelera-
artefatos que podem servir de registros ção” (Silva et al., 2020).
geocronológicos das atividades antró- O quinto capítulo, “Quimioestrati-
picas no Sistema Terra. Contudo, ao grafia do Antropoceno”, elucida como
considerarem os diferentes candidatos à a combinação da geoquímica com a es-
tecnofósseis, os autores se limitaram, in- tratigrafia pode ser usada para avaliar a
justificadamente, a descrever quase que variação das substâncias químicas através
exclusivamente os plásticos, pois “[Plás- dos tempos, assim como “[...] definir
ticos] providenciam um registro físico padrões de alteração da composição quí-
distintivo da evolução da tecnosfera du- mica ao longo do tempo que podem for-
rante o século XX e início do século XXI” necer marcadores para o Antropoceno
(p.155). Embora o plástico possua uma como nova Época geológica” (p.158).
indiscutível importância e seja emblemá- Todavia, ao contrário do capítulo ante-
tico como potencial tecnofóssil, não se rior, os autores se preocuparam em expor
deveria omitir ou diminuir a importância adequadamente os diferentes possíveis
do concreto, do alumínio elementar ou marcadores do início do Antropoceno
dos materiais eletroeletrônicos que apre- e a tendência sugerida, timidamente, é
sentam a mesma tendência de produção que seja escolhido futuramente o fallout

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dos radionuclídeos gerados pelas deto- ram em consideração que as mudanças
nações atmosféricas das armas nuclea- climáticas globais constituem um dos
res, no período da guerra fria, como o principais Limites Planetários (espaço
marcador mais preciso dessa nova Época operacional seguro) para o desenvolvi-
geológica. mento da Humanidade com respeito ao
Embora tenha sido propositalmente funcionamento do Sistema Terra (Silva;
omitido pelos autores, caso realmente Arbilla, 2018).
os radionuclídeos espalhados ao redor Finalmente, o capítulo “O limite es-
do planeta pelas explosões nucleares at- tratigráfico do Antropoceno” serve de
mosféricas sejam futuramente escolhidos epílogo, sumariza e critica as diversas
como definitivos Golden Spikes, isso po- propostas de origem sugeridas pela co-
derá acarretar em severas e significativas munidade científica internacional: “Pa-
implicações aos estudos das ciências hu- leoAntropoceno”, “Antropoceno preco-
manas e sociais sobre o tema, que teriam ce”, hipótese “Orbis Spike”, “Revolução
que passar a considerar, também, a con- Industrial”, “Grande Aceleração” entre
tribuição do Socialismo (socialismo real, outras. Além disso, os autores reforçam
socialismo com características chinesas que, independentemente da hipótese a
etc.), além do sistema capitalista para o ser reconhecida, o GTA trabalha somen-
surgimento da Época do Antropoceno te com o “[...] ‘Antropoceno geológico’
no Sistema Terra ao longo do século XX. essencialmente como originalmente pre-
De forma correta, é constantemente tendido, e não a outras interpretações”
enfatizado na obra que o Antropoceno (p.286).
não deve ser simplesmente confundido Em 2019, foi divulgado que 88% dos
ou ter seu estatuto científico reduzido membros do GTA ratificou a proposta
ao mero aumento das concentrações dos que o Antropoceno fosse formalmente
gases de efeito estufa (GEE), de origem reconhecido como uma nova unidade
antrópica, e que estão remodelando e cronoestatigráfica com início a partir da
afetando o atual estado de equilíbrio década de 1950, cabendo à Subcomissão
termodinâmico do planeta. Contudo, de Estratigrafia do Quaternário decidir
no sexto capítulo, “Mudanças climáticas se apresentaria essa proposta à União
e o Antropoceno”, os autores elucidam Internacional de Ciências Geológicas no
a questão das mudanças climáticas glo- 36o Congresso Geológico Internacional,
bais com um enfoque paleoclimático, a ser realizado em 2020, na cidade de
descrevendo o estado da arte dos me- Nova Délhi – Índia (Silva et al., 2020),
canismos e processos biogeoquímicos como dito anteriormente. Contudo, de-
naturais, desde o início da formação da vido à grave pandemia de Covid-19, até
atmosfera primitiva do planeta até a pro- fevereiro de 2020 nem a Comissão de
jeção de cenários futuros com seus res- Estratigrafia, nem o Comitê Executivo
pectivos impactos ambientais negativos da IUGS iniciaram as suas respectivas
ao equilíbrio térmico do Sistema Terra etapas de análise para a oficialização do
(derretimento de geleiras, aumento do Antropoceno como Época geológica.
nível do mar, acidificação dos oceanos Logo, esse livro que representa o esforço
etc.). Surpreendentemente, os autores, de mais de dez anos de coleta de dados
ao abordarem esse capítulo, não leva- e evidências científicas deveria possuir

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um caráter mais conclusivo de como e ZALASIEWICZ, J. et al. (Ed.) The An-
quando se iniciou o Antropoceno, e não thropocene as a Geological Time Unit: A
ser uma mera tentativa de resposta àque- Guide to the Scientific Evidence and Cur-
les que criticam, acertadamente, que o rent Debate. Cambridge: Cambridge Uni-
GTA não dispunha de um corpus teórico versity Press. 2019. 361p.
robusto e baseado suficientemente no
peso das evidências de forma que atenda
ao rigor do método científico.
O livro The Anthropocene as a Geolo-
gical Time Unit: A Guide to the Scienti-
fic Evidence and Current Debate repre-
senta uma contribuição imprescindível
para a compreensão científica da evolu-
ção epistemológica sistemática da teoria
relativa ao Antropoceno e, como dito
antes, embora possa se constituir como
desafiador ao público leigo torna-se pri-
mordial àqueles que queiram estar fami-
liarizados com os debates mais recentes
a respeito da “Época da Humanidade”.

Referências
CRUTZEN, P. J. Geology of mankind.
Nature, v.415, n.3, p.23, 2002.
CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F.
The Anthropocene. IGBP Global Change
Newsletter, n.41, p.17-18, 2000. Ricardo Soares é professor do Programa de
SILVA, C. M.; ARBILLA, G. Antropoce- Pós-Graduação em Geoquímica, Ins- ti-
no: os desafios de um novo mundo. Revis- tuto de Química, Universidade Fede- ral
Fluminense, e do Instituto Estadual do
ta Virtual de Química, v.10, n.6, p.1619-
Ambiente, Rio de Janeiro.
47, 2018.
@ – ricardosoaresuff@gmail.com /
SILVA, C. et al. A nova Idade Megha- http://orcid.org/0000-0002-0353-3174.
layan: o que isso significa para a Época do
Wilson Machado é professor do Programa
Antropoceno? Revista Virtual de Quími-
de Pós-Graduação em Geoquímica, Ins-
ca, v.10, n.6, p.1648-58, 2018.
tituto de Química, Universidade Federal
SILVA, C. M. et al.. Radionuclídeos como Fluminense. @ – wmachado@geoq.uff.br
marcadores de um novo tempo: o Antro- https://orcid.org/0000-0003-3117-8584.
poceno. Química Nova, v.43, n.4, p.506-
Recebido em 4.4.2020 e aceito em
14, 2020.
9.4.2020.
SOARES, R. et al. O Papel das Terras
Pretas de Índio no Antropoceno. Revista Universidade Federal Fluminense, Ins-
I, II

Virtual de Química, v.10, n.6, p.1659-92, tituto de Química, Niterói, Rio de Janeiro,
2018. Brasil.

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