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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA


Aluno Francisco Savoi de Araujo
Disciplina Natureza, cultura e política
Prof. Thiago Cardoso
2018.2

Ontologias possíveis em Bruno Latour


Charles Darwin revolucionou a humanidade quando constatou o homo sapiens como
a espécie mais evoluída dentre todos os seres que habitam a Terra. Dentre as habilidades
específicas exclusivas ao ser-humano que o permitem que ocupe tal posição figuram-se a
razão, a consciência, a linguagem, o domínio sobre os elementos da natureza, a capacidade
de organização sociocultural, etc. Nesse sentido, o homo sapiens é amplamente aceito como
a única espécie do reino animal capaz de controlar os seus instintos através da razão,
capacidade que lhe confere o status de um “animal racional”, mais do que um mero “animal”
- palavra utilizada de modo pejorativo, em muitos casos, na intenção de se ofender uma
pessoa que tenha agido de maneira “inconsciente”, “sem pensar”.
Embalado pelos efeitos da efervescência cultural que ocorria na Europa pós-medieval,
Darwin ajudou a legitimar o humanismo na visão de mundo ocidental (leia-se: europeia) que
“iluminou” as trevas em que se encontrava uma mentalidade coletiva subjugada pela
autoridade da religião católica e seus dogmas. Agora, o valor maior incide sobre a supremacia
do ser-humano no mundo enquanto espécie dominante sobre os outros seres da natureza,
dotado de livre-arbítrio e capacidade individual de agir e arcar com as consequências de seus
atos.
Senhor de si, o ser-humano é também senhor da natureza, detendo o controle e
hegemonia sobre ela (a natureza). Nesse caso, a dicotomia entre uma natureza pura e virgem
face ao mundo da humanidade tornou-se comum; aos efeitos da ação antrópica sobre o
planeta Terra, sobre o clima e os ecossistemas, tendo em vista a longa crise ambiental que já
vem ocorrendo devido à exploração inadequada e abusiva dos recursos naturais, designou-
se Antropoceno, a era geológica que vivemos atualmente.
Para aquelas pessoas educadas na tradição de pensamento ocidental, o que foi
apresentado acima pode ser lugar-comum. Essas pessoas podem tomar como “dado”, ou
“fato” a exclusividade do homem como um animal racional, e por isso a sua capacidade de
controlar a natureza que o rodeia, utilizando-a como matéria prima para a fabricação de
objetos e artefatos. Do mesmo modo, não seria questionável que a crise ambiental global seja
efeito das ações humanas sobre o planeta.
Por outro lado, Bruno Latour, em seu livro “Facing Gaia”, procura desconstruir
radicalmente o imaginário do paradigma ocidental, questionando a separação e a própria
existência de “natureza” e “cultura”. Nesse caso, o Antropoceno seria um argumento
geológico eurocentrado marcado pelo dualismo natureza/cultura, cuja pretensão global
consideraria a Terra como um espaço unificado que não leva em conta as diferentes formas
locais de se sentir as mudanças climáticas. O Antropoceno só pode ser explicado no plural,
tendo em vista as disputas de narrativas sobre as formas de ser e estar no mundo dentre as
diversas ontologias possíveis existentes.
Para Latour, a ontologia ocidental considera que a existência da natureza implica o
mundo estar como está, retirando-se a agência e des-animando as coisas do mundo em
benefício da hegemonia do ser-humano nos espaços que ocupa; nesse sentido, o que anima
(no sentido de dar vida) as coisas da natureza é a sua antropomorfização. O pensamento
ocidental, com todo seu embasamento científico, seria apenas mais uma ontologia possível
dentre as possibilidades de mundos sempre plurais.
Latour considera o mundo, então, enquanto zonas metamórficas de interpenetração
de agências. Os agenciamentos são balizados por outros discursos e questões ontológicas que
não os ocidentais. Se natureza e cultura deixam de existir para Latour, quem seria o
responsável pela crise ambiental? E por que a ecologia nos perturba tanto? Entre natureza e
naturezas, de que natureza somos nós, os humanos? O discurso ocidental se apresenta nas
polaridades entre natureza/cultura, contudo na prática aparecem os híbridos.
A solução de Latour é dar um reset na modernidade, trabalhando as mudanças
climáticas do Antropoceno a partir dos híbridos, não mais usando a dicotomia
Natureza/Cultura. O acordo ontológico de Latour propõe um conjunto de redes,
interconexões e agência de cada ente; o actante significa o mundo a partir da agência. Entre
ação e reação Latour localiza e situa a ideia de natureza/cultura para falar das redes, ao
contrário do pensamento moderno que pega os entes da rede e coloca em caixinhas
natureza/cultura.
O mundo são zonas metamórficas de actantes, existindo uma figuração não no sentido
ontológico, mas sim para falar das agencialidades. Com a intrusão dos híbridos, a natureza
questionada por Latour dá lugar à Gaia, que se constitui como uma ação, uma figuração para
as ações múltiplas. Trata-se, antes de tudo, de mundear os processos da vida através da
intercambialidade e compartilhamento de agências. Nas redes que constituem o mundo, as
entidades interligadas por meio de agenciamentos são fases – processos de mundeação que
coloca em cheque a noção de representação social e construção simbólica do mundo
material.
Entre categorias de representação e redes de agenciamento, diferentes narrativas
estão em jogo, em um pluriverso onde cada ontologia é uma realidade, um mundo paralelo.
Trata-se de uma negociação de múltiplas realidades que estão em jogo: por um lado a
construção da modernidade que separa e purifica natureza/cultura (natureza só existe em
função da cultura); de outro está o fim da natureza, em que pese a mundeação que constitui
processos de múltiplas agências onde os substantivos se transformam em verbo.
Latour substitui o conceito de cultura pelo de ontologia, num cenário marcado pela
anti-representação e anti-discurso. Trata-se de uma rede composta de diversos entes os quais
são dotados de agenciamentos específicos que incidem uns sobre os outros. Considerando a
existência de múltiplas ontologias, a ontologia humanista – naturalista considera que os
animais não têm epistemes, agindo por instinto. Por outro lado, Gaia é potência, fenômeno
que aparece sob várias formas. O que faz a Terra ser viva?A agênncia de micro-atores é o que
vai definir o balanço da vida na Terra.
Nesse sentido, as ações humanas afetando a Terra saem do “centro”, o que gera uma
Inversão do Antropoceno. O sistema de Latour não é o dos engenheiros que buscam uma
totalidade geral, mas sim uma totalidade de pequenas coisas que agem entre elas,
questionando-se a ideia de totalidade em favor das singularidades (micro-relações). O
Antropoceno é entendido então não como totalidade, mas como relações entre micro-atores
com agenciamentos diferenciados - não existe um “nós” antropos.
Latour romper ainda com a ideia de adaptação, quando defende que a natureza não
está dada, mas sim é o jogo de construção do ambiente (micro relações) o que vai definir o
ambiente. Gaia nos convida a pensar os agenciamentos como solução para os dualismos
ocidentais entre Natureza/Cultura, a partir da noção de mundeação, quando as coisas agem
e são verbo. Todo ser vivo é construtor de seu ambiente, e diferentes percepções sobre a
realidade consideram as tradições ontológicas específicas (confito ontológico) as quais cada
pessoa foi educada.

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