M. W. e GASKELL, G. (orgs.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual prático. São Paulo: Vozes, 2002, pp. 64-89.
Entrevistas qualitativas e trabalho de campo
O professor britânico de psicologia social George Gaskell, em seus mais de 25 anos
de atuação, apresenta em “Entrevistas individuais e grupais” diretrizes prático-teóricas fundamentais para a realização de uma pesquisa qualitativa. Neste capítulo do livro “Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático”, organizado em parceria com o também psicólogo social britânico Martin Bauer, Gaskell discute especificamente sobre a dimensão das entrevistas no trabalho de campo, que são classificadas como entrevista em profundidade, quando realizada com uma única pessoa, e o grupo focal, que consiste em uma entrevista com um grupo de pessoas da cultura que se está estudando. As entrevistas qualitativas permitem que o pesquisador tome contato com a diversidade de pontos de vista sobre uma dada realidade, quando os membros de uma cultura específica, cada qual com sua interpretação pessoal e subjetiva sobre o mundo em que estão inseridos, constroem e modificam ativamente este mundo. A dinâmica das relações sociais pode ser, assim, compreendida segundo um grau de profundidade que alcance as motivações que levam as pessoas a se comportarem de determinadas formas em contextos específicos. Nesse sentido, as entrevistas devem ser preparadas e planejadas de acordo com um referencial teórico que guie a investigação na direção do tema e objetivos da pesquisa. O formato das entrevistas abertas semiestruturadas consiste no delineamento de um "tópico guia”, que se refere ao conteúdo das perguntas - “o que perguntar?” - direcionadas a entrevistados - “a quem perguntar?” - que devem ser selecionados segundo critérios específicos. Deste modo, para além da familiaridade com a literatura especializada sobre o tema de pesquisa, o entrevistador deve ter um reconhecimento prévio de campo para a preparação de seu empreendimento. A entrevista não deve se limitar ao tópico guia, assumindo antes o tom de uma conversa natural que permita ao entrevistado exercer certa autonomia e liberdade ao que está sendo discutido, podendo surgir na maioria dos casos assuntos relevantes que não constam no tópico guia, que consiste mais em um lembrete, um referencial para que a entrevista não se desvie dos objetivos da investigação. Do mesmo modo, temas considerados a princípio centrais na fase de planejamento das entrevistas podem se tornar irrelevantes quando o entrevistado não demonstra interesse em tais temas. É importante que se registre, então, todo o processo no qual se desenvolveram as entrevistas, desde o planejamento, passando pelas técnicas empreendidas para a sua realização, incluindo por fim as relações entre as expectativas iniciais do que o pesquisador encontraria em seu desenrolar e os resultados obtidos. A análise destes resultados iniciais permite a formulação de hipóteses que podem ser confirmadas ou não mediante a realização de novas entrevistas, conformando uma figuração cíclica que se retroalimenta e se solidifica a cada nova empreitada ou investida realizada pelo pesquisador em busca de novas informações. Neste caso, às entrevistas podem se somar outros métodos de pesquisa qualitativa, como a observação participante, por exemplo, quando o pesquisador pode presenciar fatos do cotidiano - corriqueiros ou não - que podem extrapolar o âmbito do discurso entre um “Eu” e um “Outro”. Diferentemente das generalizações que são encontradas nas “amostragens” estatísticas das pesquisas quantitativas, as pesquisas qualitativas buscam estabelecer uma “seleção” a partir de um número reduzido de casos concretos que exploram pontos de vista distintos sobre uma realidade aparentemente homogênea. Do mesmo modo, diferentes entrevistas podem revelar percepções compartilhadas sobre certos aspectos da vida social, o que demonstra o rico potencial que este método de investigação possui de, mais do que captar a base social comum, compreender as dimensões da relação que incide entre membros de um determinado grupo em contextos e situações específicos de acordo ou desacordo entre si. Da entrevista individual, sendo uma relação de interação um-a-um entre um “Eu” pesquisador e um “Outro” interlocutor em que se desenrola um processo dialógico de produção de conhecimento, o grupo focal consiste em uma interação entre um “Eu” pesquisador e um “Nós” pensado enquanto identidade compartilhada de uma “unidade social mínima”. O social adquire aí grande relevância, quando as manifestações individuais sobre a realidade se revelam mediante às negociações com outros membros do grupo a respeito das expectativas que exercem entre si no tocante aos valores sociais comuns que pretendem sublinhar com maior ou menor ênfase. Os participantes de um grupo focal estabelecem, então, uma interação social que é catalisada na figura do pesquisador, o responsável por conduzir e direcionar a conversa de acordo com os objetivos da investigação, podendo se apropriar de diversas técnicas e recursos utilizados para estimular o debate, como imagens, fotografias e até mesmo dramatizações. Nesse caso, consensos e divergências a respeito da vida social podem aparecer de modo bastante notável em um grupo focal, tendo em vista as subjetividades que dialogam entre si. No caso das entrevistas individuais, tais consensos e divergências podem ser encontrados quando se compara diferentes entrevistas. Por outro lado, se o grupo focal pode revelar a formação de lideranças comunitárias localizadas nas pessoas que apresentam maior influência de decisão em meio ao encontro, as entrevistas individuais permitem que as vozes mais tímidas que não se manifestam em uma conversa coletiva de um grupo focal possam se expressar. Por fim, Gaskell ressalta a relevância de se incorporar na análise das entrevistas mais do que simplesmente as narrativas registradas durante a sua realização, mas também o tom emocional e o ambiente em que ocorreu o encontro entre o pesquisador e o seu interlocutor. O autor considera, contudo, que a observação participante possa ser um parâmetro sob o qual se julgue outros métodos de pesquisa qualitativa que não sejam capazes de captar com tamanha abrangência determinados aspectos da vida social, geralmente escamoteados e manipulados durante entrevistas em razão de interesses pessoais de interlocutores que apresentam ao pesquisador uma realidade distorcida.