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Capítulo 13 – Livro: Psicologia Fenomenologia: existencial fundamentos filosóficos e

campos de atuação

Democratizar a pesquisa significa explorar outras formas de investigar. Assim, pesquisas de


base fenomenológica que questionam metodológica e procedimentalmente aspectos já
engessados em nosso modo de pensar tradicional e ocidental acabam por nos aproximar das
questões complexas de nossa sociedade e nos possibilitam experiências significativas de
inserção em campo. Esse movimento desencadeia o que chamamos de “efeitos emancipadores”2
do processo investigativo. Esperamos, ao longo deste capítulo, demonstrar alguns deles, tais
como a construção de problema de pesquisa em conjunto com atores parceiros; a valorização
das narrativas e suas perspectivas; o acolhimento da experiência do(a) participante e do(a)
pesquisador(a); a inserção da primeira pessoa na escrita do texto; a aproximação da ciência de
outras linguagens e a busca de sentidos e reflexões sobre ações transformadoras.

Muitos(as) de nós desaprendemos a olhar com curiosidade para os processos da vida, somos
desvalorizados(as) nesse movimento; sabemos que uma sociedade menos questionadora
incomoda menos e atrapalha menos,

Na perspectiva fenomenológica, portanto, o pesquisador homem e branco deverá praticar a


consciência de que seu olhar para o fenômeno acontece do lugar que ocupa. Seu texto nunca
poderá ser elevado a algo universal. Esse não é aquele que ocupa uma mulher, por exemplo –
que traz consigo outras múltiplas vivências. A mesma coisa em relação à discussão racial:
admitir o racismo estrutural,6 por exemplo, é fundamental para um trabalho consistente.
Admitir o lugar de privilégio também. Vale sempre uma reflexão, interseccionada com essas
anteriores, de que a academia é historicamente elitista e descolada das questões sociais, por isso
a tradição de pesquisa, no âmbito acadêmico, traz desafios para pensar pesquisas que tematizem
questões sociais e de desigualdades

Para que essa disposição ocorra é preciso tomar conhecimento daquilo que já sabemos e
sentimos sobre o fenômeno a ser estudado. O que sabemos vem de nossos estudos e da literatura
produzida sobre o tema, e o que sentimos refere-se a nossas crenças, valores e avaliações
subjetivas sobre o que pretendemos investigar. Isso significa que já temos uma pré-compreensão
sobre o tema. Ter em mente nossa pré-compreensão nos torna alertas para não enviesar nossos
procedimentos de pesquisa em direção ao que antecipadamente desejamos. Isso é parte do rigor:

“Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão
um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido
somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de
um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse
projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do
texto. [...] a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais
adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de
compreender e interpretar (Gadamer, 2002, p.75).5”

Entrevista reflexiva

A escuta deve envolver o respeito pelas pessoas entrevistadas e por seus saberes, o desejo de
compreender e de construir um conhecimento comum.

Isso significa refletir o que chegava até nós, possibilitar à pessoa entrevistada ouvir como sua
narrativa se configurou para nós e abrir a possibilidade de esclarecimento ou a confirmação

Refletir significa curvar-se novamente sobre o que foi dito, considerar o que a outra pessoa
falou e tornar explícito o que foi compreendido. Para fazer isso, é necessário ter muita atenção e
respeito para o que é dito. Assim, o caráter dialógico permaneceu, e enfatizou-se seu aspecto
compreensivo. É muito frequente ouvirmos as pessoas dizerem depois da entrevista que se
sentiram ouvidas e que isso foi muito bom.

A condução da entrevista

Expressão livre do pensamento

Uma vez lançada a questão desencadeadora, é importante que o(a) entrevistado(a) possa
discorrer livremente e trazer suas ideias e experiências sobre o tema. Este é um momento-chave
para que o(a) participante comece a organizar sua narrativa. Muitas vezes sua própria
compreensão se dá nessa ocasião.

A construção da compreensão

Aos poucos, ao longo da entrevista, são feitas algumas questões com a finalidade de verificação
se quem está entrevistando compreende o que diz a outra pessoa. Se reflete sobre o que ela diz,
se realiza um movimento reflexivo, de curvar-se atentamente sobre o que foi dito e compartilhar
com o(a) interlocutor(a). Compreender aqui é tido como assumir um caráter descritivo e não
avaliativo e pode ser definido como “relação dialogal que nada reduz a objeto e exige do
intérprete empatia, capacidade de se colocar no lugar”.16 São indagações que visam à
compreensão: questões de síntese, questões de esclarecimento, questões de focalização e
questões de aprofundamento.

Questões de síntese

Depois de algum tempo pode-se fazer uma breve síntese do que o(a) participante falou: “Veja se
eu compreendi direito o que você disse: ...”. É importante nessa síntese respeitar o vocabulário
do(a) interlocutor(a) e não introduzir nenhuma interpretação ou avaliação do que foi dito. Pode
acontecer da outra pessoa não concordar com o(a) entrevistador(a) ou preferir dizer as coisas de
outro modo e mudar sua narrativa. Aceitaremos sua mudança. Se a professora discorre como as
crianças não aprenderam nada no ensino a distância, a síntese pode ser: “Entendi que na sua
experiência com ensino a distância não houve aprendizagem por parte das crianças”. A
professora pode reformular dizendo: “Não que ninguém tenha aprendido, algumas crianças até
que aproveitaram; as que tinham apoio dos pais, por exemplo. Mas a maioria rendeu pouco ou
quase nada”.

Questões de esclarecimento

Pode acontecer de o(a) entrevistador(a) não ter acompanhado o raciocínio do(a) participante ou
alguma situação descrita, e aí caberia uma pergunta para esclarecê-la. É muito importante que a
atitude de quem entrevista seja muito respeitosa e não avaliativa nesse momento. Exemplo de
uma situação que demandou um pedido de esclarecimento: em uma pesquisa sobre significado
de família, em dado momento a pesquisadora não conseguiu entender a composição da família
de uma das participantes, que, segundo sua descrição, envolvia relações de sangue, de
compadrio, de amizade e adoções. Só depois de algum tempo e muitas explicações foi possível
esclarecer para a pesquisadora qual era a composição daquela família.17

Questões de aprofundamento

De certa forma, todas as questões anteriores levam a um aprofundamento, possibilitam novas


articulações da narrativa e trazem novas facetas do fenômeno que estudamos, sem nos
afastarmos dos objetivos da pesquisa e da entrevista. As questões de aprofundamento podem ser
utilizadas quando o(a) participante toca superficialmente em um aspecto que consideramos
importante ser investigado. Um modo de se aprofundar em algum aspecto do que estudamos é
solicitar comparações considerando outros tempos, contextos, personagens ou possibilidades.15
Por exemplo, na pesquisa com professoras e sua atuação na pandemia, poderíamos perguntar:
“Houve alguma mudança no seu modo de ensinar durante a pandemia?”; “Como é seu modo de
ensinar neste momento comparado a outras professoras que você conhece?”.

Questões de focalização

Como esta se trata de uma entrevista semidirigida, essas questões são utilizadas quando o(a)
participante se alonga em digressões que se afastam dos objetivos da pesquisa. Caso a pessoa
entrevistada não se disponha a voltar para o foco, respeitaremos sua escolha. É interessante em
nossa análise observar que tipo de digressão ocorreu, em que momento e como a pessoa reagiu
quando voltamos à questão desencadeadora.15 Em nosso exemplo da pesquisa sobre a docência
com a professora durante a pandemia, caso ela se alongue falando sobre sua formação, podemos
perguntar: “E o que você pode utilizar durante a pandemia de tudo o que aprendeu durante seus
anos de formação?”.

A sugestão de diferentes tipos de questões possíveis de serem feitas durante a entrevista


reflexiva tem a finalidade de desvelar várias facetas do fenômeno que estudamos e ampliar
nossa compreensão. Se o(a) pesquisador(a) faz parte de um grupo de pesquisa, é muito
enriquecedor partilhar o processo de planejamento da entrevista, em especial a construção
coletiva da questão geradora. Outra sugestão: para pesquisadores(as) iniciantes é desejável
praticar a entrevista antes e realizar uma entrevista piloto.

A devolutiva

Esta é uma fase especialmente importante na entrevista reflexiva porque se trata da apresentação
à pessoa entrevistada daquilo que foi compreendido de sua narrativa por quem a entrevistou.
Depois da entrevista realizada e transcrita é feita uma pré-análise e esta é apresentada à pessoa
entrevistada. Pode-se deixar disponibilizada igualmente a transcrição para consideração do(a)
participante. Caso seja solicitada a exclusão de alguma informação, essa solicitação deverá ser
respeitada. O(a) participante poderá, durante a devolutiva, acrescentar ou modificar informações
dadas inicialmente e que serão incorporadas à análise da entrevista. Nem sempre, entretanto, é
possível realizar esse momento da entrevista, mas, se possível sua realização, ampliará
sensivelmente a compreensão do fenômeno estudado.

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