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Viveiros de Castro, Eduardo. “Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena.

In. Viveiros de Castro, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de


antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2002.

INTRODUÇÃO

- o autor começa explicando a temática específica que será abordada como objeto de
reflexão ao longo do texto: a qualidade perspectiva do pensamento ameríndio, ou
relatividade perspectiva:

“trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o


mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não
humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (: 347)

- não se reduz ao conceito de “relativismo”, como oposição ao “universalismo: o


perspectivismo se dispõe de modo ortogonal à tal oposição

- aqui entra em cheque a distinção clássica entre Natureza e Cultura, que “não pode ser
utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais
sem passar antes por um crítica etnológica rigorosa” (: 348)

{
Todos esses predicados
devem ser dissociados e NATUREZA CULTURA
redistribuídos, no que o UNIVERSAL PARTICULAR
OBJETIVO SUBJETIVO
autor denomina um FÍSICO MORAL
“reembaralhamento das FATO VALOR
cartas conceituais” para DADO CONSTRUÍDO
NECESSIDADE ESPONTANEIDADE
uma justa compreensão IMANÊNCIA TRANSCENDÊNCIA
a respeito do CORPO ESPÍRITO
ANIMALIDADE HUMANIDADE
pensamento ameríndio
- Multinaturalismo: traço contrastivo do pensamento ameríndio em relação às
cosmologias “multiculturalistas” modernas

UNIVERSAL ----- CULTURA

PARTICULAR ----- NATUREZA

- os multiculturalistas definem uma natureza una, sua unicidade de caráter universal, e


culturas múltiplas, cada qual com sua particularidade. O multinaturalismo inverte as
cartas

- As ideias de Natureza e Cultura no pensamento ameríndio assinalam configurações


relacionais, perspectivas móveis e pontos de vista

- a crítica do autor a respeito da distinção entre natureza/cultura não argumenta a favor


de uma inexistência desta distinção, mas sim no sentido de colocar tal contraste em
perspectiva de forma colocá-lo em relação com os próprios contrastes operantes na
perspectiva ameríndia

PERSPECTIVISMO

- diferentes subjetividades que povoam o universo, incluindo os seres humanos,


animais, deuses, espíritos, mortos, plantas, fenômenos meteorológicos, objetos,
artefatos, etc.

- tais subjetividades, na concepção indígena, são vistas de modos diferentes para cada
um desses seres

“Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como


humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres
usualmente invisíveis é um signo seguro de que as ‘condições’ não são normais.
Os animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os humanos como
animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como
espíritos ou como animais predadores. [...] Vendo-nos como não humanos, é a si
mesmos que os animais e espíritos veem como humanos. Eles se apreendem
como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou
aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da
cultura: veem seu alimento como alimento humano (os jaguares veem o sangue
como cauim, os mortos veem os grilos como peixes, os urubus veem os vermes
da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem,
plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seus sistema
social como organizado identicamente às instituições humanas (com chefes,
xamãs, ritos, regras de casamento etc.). [...] os xamãs, mestres do esquematismo
cósmico (Taussig 1987: 462-63) dedicados a comunicar e administrar as
perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou
inteligíveis as intuições” (: 350-51)

- aqui o que se considera, nesse sentido, é uma distinção entre uma essência
antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal
variável, característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma
roupa trocável e descartável

- noção de roupa: metamorfose, principalmente no tocante aos xamãs

- os animais se veem como pessoas de intencionalidade e subjetividade idênticas à


consciência humana

- o esquema corporal humano está oculto à máscara animal

- economia geral da alteridade: pontos de vista não humanos e a natureza relacional das
categorias cosmológicas

- o perspectivismo se aplica principalmente sobre as presas, predadores e carniceiros

- inversões perspectivas: estatutos relativos e relacionais de predador e presa

- ou seja, o perspectivismo está diretamente ligado ao contexto de predação

- “personitude” e “perspectividade”: capacidade de ocupar um ponto de vista

 Questão de grau e de situação


 A experiência pessoal é mais decisiva que qualquer dogma cosmológico
substantivo
- campo intersubjetivo humano-animal

- há ainda os espíritos “donos” dos animais, dotados de intencionalidade análoga à


humana

- o que aparentemente seja um bicho, sob seu aspecto visível, pode ser um disfarce de
um espírito de natureza completamente diferente

- noção universal no pensamento ameríndio: na origem, humanos e animais não se


distinguem, conforme atestam as narrativas míticas

“As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento
misturam inextricavelmente atributos humanos e não-humanos, em um contexto
comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano
atual. O perspectivismo ameríndio conhece então no mito um lugar, geométrico
por assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo
anulada e exacerbada. Nesse discurso absoluto, cada espécie de ser aparece aos
outros seres como aparece para si mesma – como humana -, e entretanto age
como se manifestando sua natureza distintiva e definitiva de animal, planta ou
espírito. [...] Ponto de fuga universal do perspectivismo, o mito fala de um
estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se
interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo.
Meio cujo fim, justamente, a mitologia se propõe a contar” (: 354-55)

- tal fim consiste na diferenciação entre cultura e natureza conforme pontuada por Lévi-
Strauss, por exemplo

- contudo a mitologia ameríndia não fala de uma diferenciação do humano a partir do


animal, conforme afirma a mitologia evolucionista ocidental, uma vez que “a condição
original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade [...] os
animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais” (: 355)

- a humanidade é a forma originária de virtualmente tudo

“Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre os


alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido
‘completamente’ animais, permanecemos, ‘no fundo’, animais -, o pensamento
indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e
outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo não
evidente” (: 356)

- distinção entre espécie e condição humanas

- o referencial comum a todos os seres é o homem enquanto condição: as roupagens


animais que escondem uma essência humano-espiritual comum

XAMANISMO

- caça e xamanismo são características das populações amazônicas intrinsecamente


associadas ao perspectivismo

- valor simbólico da caça e importância do xamanismo

- intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas próprias

- animal: protótipo extra-humano do Outro

- a ideologia de caçadores é também uma ideologia de xamãs

- xamanismo: habilidade em cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva de


outras subjetividades, administrando as relações entre humanos e não humanos

- xamã: interlocutor ativo no diálogo transespecífico

- intercambio de perspectivas: arte política ou diplomacia

“Se o ‘multiculturalismo’ ocidental é o relativismo como política pública, o


perspectivismo xamânico ameríndio é o multinaturalismo como política
cósmica” (: 358)

- pensamento ocidental: conhecer é dessubjetivar, ou objetivar o Outro; isto é, a


capacidade de ver “de fora” o objeto cognoscente como “isso”, “coisa”, o próprio
processo de objetivação
- xamanismo ameríndio é guiado pelo ideal inverso: conhecer é personificar, tomar o
ponto de vista daquilo (daquele) que deve ser conhecido

- o conhecimento xamânico visa um algo que é alguém, um outro sujeito ou agente

- a forma do Outro como “coisa” (ocidental) ou “pessoa” (ameríndio)

OCIDENTAL AMERÍNDIO
CIÊNCIA XAMANISMO
OBJETIVAÇÃO SUBJETIVIAÇÃO
(DESSUBJETIVAÇÃO)
COISA PESSOA (PERSONIFICAR)

- o pensamento ameríndio pressupõe uma universalização da intencionalidade: não se


trata de reduzir a intencionalidade à zero para uma representação objetiva do mundo,
mas de uma revelação de um máximo de intencionalidade a partir de uma interpretação
xamânica sobre os estados ou predicados intencionais de algum agente

- a interpretação bem sucedida corresponde à ordem de intencionalidade que se


consegue atribuir ao objeto-agente

- o referente que não se presta à subjetivação é insignificante ao conhecimento


xamânico

“Uma explicação cientifica exaustiva do mundo deve poder reduzir toda ação a
uma cadeia de eventos causais, e estes a interações materialmente densas (nada
de ‘ação’ à distância)” (: 360)

- entre sujeito/objeto, está a interpretação/análise; personificação/objetivação

- no pensamento ameríndio “é preciso personificar para saber” (: 360)

- a cultura é traduzida para o mundo de subjetividades extra-humanas, agência social


que pode ser “abduzida” a partir da redefinição dos vários eventos e objetos “naturais”

- ambiguidade inerente ao pensamento ameríndio: um objeto (fato bruto) do ponto de


vista humano, aponta “necessariamente para um sujeito, pois são como ações
congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não material (Gell 1998: 16-
18, 67). E assim, o que uns chamam de ‘natureza’ pode bem ser ‘cultura’ dos outros.” (:
361)

- deste modo o sangue pode ser a cerveja do jaguar; um barreiro lamacento a grande
casa cerimonial das antas, etc.

ANIMISMO

- aqui o autor evoca a noção de animismo segundo Descola

- no animismo a distinção natureza/cultura é interna ao mundo social, dado o mesmo


meio sociocósmico no qual humanos e animais estão inseridos

- ou seja, as categorias elementares da vida social organizam as relações entre os


humanos e não humanos

- continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e cultura, fundada na atribuição de


disposições humanas e características sociais aos seres naturais

- a natureza é parte de uma socialidade englobante

- o animismo se ocupa em pensar a mistura de cultura e natureza presente nos animais, e


não a combinação de humanidade e animalidade que constitui os seres humanos, como
pensam os naturalistas (ocidentais)

- sociomorfismo universal a partir do qual se diferencia a natureza

- o animismo como uma projeção da sociedade sobre a natureza, um modelo


sociocêntrico: o universo é mapeado a partir das categorias e relações intra-humanas

- o autor argumenta evocando Ingold quando critica a reflexão sobre o animismo que,
mesmo escapando do reducionismo naturalista cai no dualismo natureza/cultura, dada a
distinção entre uma natureza “realmente natural” e uma natureza “culturalmente
construída”

- socialidade comum que liga os humanos aos animais


- até que ponto o perspectivismo, ao definir que os animais são pessoas, seria a
expressão de um antropocentrismo?

- diversas questões que tangenciam as relações entre o animismo e o perspectivismo:

 Se os animais são essencialmente humanos, qual a diferença entre os dois?


 Se os animais são gente, porque não nos veem como gente?
 Oposição entre aparência e essência: formas corporais contingentes (as
“roupas”)

- oposição Natureza/Cultura no pensamento ameríndio é problematizada: existe ou não


existe?

ETNOCENTRISMO

- investigações sobre a humanidade do Outro

- sobre a concepção de “humanos verdadeiros” proclamada pelos ameríndios:


fechamento sobre si ou abertura ao Outro?

- a humanidade sob a concepção ameríndia denota a condição humana, e não espécie


humana

- falar em “humanos verdadeiros” corresponde a uma funcionalidade mais de pronome


que substantiva, indicando a posição do sujeito, um marcador enunciativo, não um
nome

- a visão ameríndia vai do substantivo ao perspectivo, numa clara marcação contrastiva


e contextual

- designações que significam “pessoas”, não “membros da espécie humana”, registrando


o ponto de vista do sujeito que está falando

- onde está o ponto de vista está a posição de sujeito

“Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em


posição de sujeito, apreende-se sob a espécie da humanidade. A forma corporal
humana e a cultura [...] são atributos pronominais do mesmo tipo que as
autodesignações acima discutidas” (: 374)

- um agente apreende a si mesmo como humano, sendo um atributo imanente ao ponto


de vista e que se desloca com ele

- a Cultura é a natureza do Sujeito, a forma pela qual todo agente experimenta sua
própria natureza. A humanidade é a forma geral do Sujeito

- a humanidade é a condição comum entre humanos e animais, e não a animalidade

- o pensamento ameríndio é muito mais antropomórfico que antropocêntrico: pois, se


os seres da natureza possuem humanidade, nós humanos não somos tão especiais assim

- antropomorfismo: qualquer animal pode ser humano e possui mais Ser (alma) do que
parece

- os humanos que podem ser qualquer animal, e que temos mais Ser que qualquer outra
espécie, aí está o antropocentrismo

MULTINATURALISMO

- multiplicidade de posições subjetivas

- as perspectivas devem ser mantidas separadas, e apenas os xamãs podem fazê-las


comunicar, sob condições especiais e controladas

- no perspectivismo, todos os seres veem (representam) o mundo da mesma maneira – o


que muda é o mundo que eles veem

- diferentes tipos de seres veem coisas diferentes da mesma maneira

“O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O


relativismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de
representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una
e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto: uma
unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada
indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só ‘cultura’, múltiplas
‘naturezas’; epistemologia constante, ontologia variável – o perspectivismo é um
multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação” (: 379)

- representações são propriedades do espírito, enquanto o ponto de vista está no corpo

- a alma é idêntica através das espécies, enxergando a mesma coisa em toda parte

- a diferença está na especificidade dos corpos: “os animais veem da mesma forma que
nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos” (: 380,
grifos do autor)

- o autor se refere ao corpo não enquanto fisiologia distintiva, mas como um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus

- a alteridade é apreendida através dos corpos

“se a Cultura é a natureza do Sujeito, a Natureza é a forma do Outro enquanto corpo,


isto é, enquanto algo para outrem” (: 381)

- entre alma e corpo, o caráter diacrítico da diferença para os ameríndios reside no


segundo, enquanto para os ocidentais, na primeira

“não há pontos de vista sobre as coisas – as coisas e os seres é que são pontos de
vista (Deleuze 1969: 203). A questão aqui, portanto, não é saber ‘como os
macacos veem o mundo’ (Cheney & Seyfarth 1990), mas que mundo se exprime
através dos macacos, de que mundo eles são o ponto de vista” (: 385)

- o perspectivismo tem uma relação estreita com a troca: trata-se de uma reciprocidade
de perspectivas

- ontologia relacional

- relativismo cultural e universalismo natural

- na ontologia anímico-perspectiva ameríndia não existem fatos naturais autônomos,


pois a “natureza” de uns é a “cultura” de outros
- o perspectivismo advoga um universalismo cultural cuja contrapartida é um
relativismo natural

- divergência face à ideia ocidental da natureza universal e da cultura particular: isso é o


multinaturalismo

- resumindo: mesmas representações, outros objetos; sentido único, referências


múltiplas

O CORPO SELVAGEM

- corpo: grande diferenciador nas cosmologias amazônicas

- o corpo une os seres na medida em que os distingue de outros

- fundamento cosmológico para a importância da corporalidade nas sociedades


amazônicas

- a identidade, por exemplo, se expressa por meio de idiomas corporais, como a


alimentação e a decoração corporal

- o conjunto de maneiras e processos que constituem os corpos é o lugar de emergência


da diferença

- a ênfase ameríndia na construção social do corpo não pode ser tomada como
culturalização de um substrato natural, e sim como produção de um corpo
distintivamente humano, entenda-se, naturalmente humano

- o corpo como lugar da perspectiva diferenciante é diferenciado para exprimi-la


completamente

- o modelo do espírito é o espírito humano, mas o modelo do corpo são os corpos


animais

- o modelo do corpo são os corpos animais porque não há exemplos de animais


vestindo-se de humanos, mas sempre o inverso

- o corpo não é um fato, mas um feito: métodos de fabricação contínua do corpo


- caráter performado mais que dado do corpo: diferenciação “natural” e metamorfose
interespecífica

- a noção de metamorfose está diretamente ligada à doutrina das roupas animais

- ativar os poderes de um corpo outro, mais do que ocultar a essência humana sob uma
aparência animal

- os corpos são descartáveis e trocáveis, estando ocultas atrás deles subjetividades


formalmente idênticas à humana

- a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na equivalência subjetiva dos


espíritos, não se tratando de uma mera oposição entre aparência e essência

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