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COSMOVISÃO INDÍGENA E

AFRICANA
AULA 2

Prof. Awaju Poty


CONVERSA INICIAL
Neste segundo momento do nosso estudo, sobre a cosmovisão
indígena, vamos abordar a maneira como as culturas primevas estratificam o
cosmo; como compreendem a realidade e, que nível de consciência possuem
do mundo que as cerca. Também veremos que, dentro delas, há homens e
mulheres que fazem viagens a outros reinos. Isso tudo tendo em vista
entender como tratam a dor e a cura.

Veremos que as culturas indígenas brasileiras e africanas partem de


concepções específicas sobre o que existe e sobre o modo como acontecem
as coisas. Assim, fazem uso da música, da dança e de ervas propícias que são
auxiliares na compreensão e interação com os problemas que têm para
resolver ou decifrar.

Também vamos tomar contato com conceitos contemporâneos que


buscam uma integração com os princípios naturais, estes inspirados nas
culturas indígenas e africanas. Tais conceitos nos aproximam destas culturas
antigas.

CONTEXTUALIZANDO
Ao longo dos milênios, um dos principais anseios do ser humano tem
sido vencer a doença e a dor. Na busca pela saúde, tem-se recorrido a rituais,
poções, compostos químicos e tecnologias das mais diversas. Muitas
técnicas indígenas reaparecem na vida contemporânea revestidas de
cientificismo. Pode ser que as coisas aconteçam, como afirma Said, com
relação ao ressurgimento do passado no presente, sobre novas vestimentas.
“A incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste,
mesmo que talvez sob outras formas” (SAID, 1995, p. 11). Como se
mudássemos as máscaras sobre uma mesma face.

Em torno deste tema, a editora da revista “Mente Cérebro”, abre a edição


de novembro de 2016 afirmando que “por milhares de anos, o crânio de
pacientes foi furado com o objetivo de libertar os maus espíritos que, segundo

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se acreditava, eram responsáveis por patologias como esquizofrenia,
depressão e enxaqueca. Hoje, a intervenção ainda é usada para evitar lesões
neurológicas, aliviando a pressão intracraniana, particularmente após alguns
tipos de traumatismos.” (LEAL, 2016, editorial).

Muitos métodos antigos são revividos com outras justificativas, com


diferentes linguagens e vestimentas, mas tratando-se de um mesmo elemento.
Muitos fitoterápicos tradicionais são transformados em sínteses químicas e
envelopados, neste caso distanciando-se da sua natureza, mas, sendo
utilizado para o mesmo fim: aliviar a dor e curar a doença.

Foi por isso que na nossa aula anterior chamei a atenção para o fato de
que a cosmovisão indígena não esta distante do nosso cotidiano, lembram-se:
“Essa realidade entra em nossas vidas quando tomamos um chazinho para
ajudar na digestão”.

TEMA 1: NÍVEIS DO COSMO


‘Níveis do Cosmo’, talvez, se possa entender como uma metáfora para a
diversidade do reino dos espíritos. Acreditando que os espíritos existem – mas
num reino diferente – e que entram em contato com o nosso mundo para nos
afetar a saúde e o abastecimento de alimentos, concluir-se-á que com ele
temos que dialogar.

Se considerarmos os espíritos como a essência das coisas que nos


rodeiam, este reino, então, não se distinguirá geograficamente. Ocupará o
mesmo espaço que nós, mas será acessível somente a alguns de nós, e
apenas em certas ocasiões. Tal acesso só será possível com grande esforço e
habilidade, e mesmo assim, para viajantes experimentados.

O espaço é uma forma de exprimir a diferença e a separação, mas a


jornada do “viajante” representa a possibilidade de regresso em conjunto com
um espírito. O abismo no espaço representa, todavia, uma diferença de ser. Os
espíritos – sejam eles de pessoas que morreram, sejam eles de forças da
natureza – não existem aqui, mas em qualquer outro lado.

O reino separado dos espíritos nem sempre tem de se situar noutros


níveis cosmológicos. Localiza-se num determinado local da terra. São mundos
que coexistem e que se perpassam. A diversidade do reino é salientada pela

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inacessibilidade dos tabus que rodeiam o local, que pode ser um estranho
afloramento rochoso ou uma caverna no interior de uma montanha.

A atividade do xamã se baseia em ideias de espaço, e, embora o mundo


de todos os dias seja acessível aos espíritos, há ainda outros domínios da
realidade por onde os xamãs têm de viajar. Recordando que os espíritos
existem – porque aparecem em nossos sonhos – e acreditando que entram em
contato com o nosso mundo, para nos afetar a saúde e o abastecimento de
alimentos, concluir-se-á que, quando estes aspectos da realidade se alteram,
alguém terá de viajar até o reino dos espíritos para pedir que se comportem de
outro modo.

Esta maneira de compreender o espaço é diametralmente oposta à


maneira ocidental, pois, para a mentalidade comum ocidental, dois corpos não
podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Porém, para os povos indígenas, até
mesmo infinitos corpos podem estar no mesmo espaço, como, por exemplo, a
região demarcada por uma montanha. Ela apresenta-se como montanha em
diversas dimensões, por assim dizer, que estão ali mesmo localizadas, e
moradores de diversos mundos podem, simultaneamente, estar ali alocados.

Esta concepção, aparentemente contraditória, é possível porque, para


os africanos, o universo é sincrônico e não linear. Por outra volta, contrapondo
ocidentais a africanos, atestamos que os primeiros acreditam em uma
linearidade evolutiva, num mundo compartimentado em opostos, onde os
observados e os observadores não interagem. Estão em direções bifurcadas
como se não fizessem parte de um mesmo contexto, onde apenas um tem
consciência do outro, como se o observado fosse necessariamente passivo.

Os africanos, diferentemente do entendimento ocidental, porém com


grande similaridade com os demais povos indígenas espalhados pelos ermos
de nosso planeta, são portadores do “pensamento sincronístico” que guarda
“uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos
estados subjetivos (psíquicos) do observador ou, observadores”. (JUNG, 1970
citado por RIBEIRO, 1996, p. 42).

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TEMA 2: NÍVEIS DE REALIDADE
Há varias formas de exprimir a diferença entre o mundo das essências e
o mundo habitual de fenômenos ou impressões. O mundo dos espíritos contém
e exprime a verdadeira causa das coisas que sucedem no mundo. Os dois
reinos estão ligados de tal forma que os acontecimentos do mundo dos
espíritos produzem efeitos neste mundo. Os espíritos representam a natureza
essencial das coisas e são as causas reais dos acontecimentos no mundo da
percepção comum.

Seja qual for o modo como às pessoas concebam sua existência e


procedam a vida no seu ambiente normal, está sempre presente a dimensão
do espírito, porém escondida, não por exprimir a natureza superficial das
coisas, mas sim a sua natureza íntima.

Assim, na cosmovisão indígena, a realidade é mais vasta do que é dado


perceber aos olhos e aos sentidos, e, especialmente, no que se refere à
consciência que dela temos. Assim, para Vitebsky, escrevendo sobre os
Nanamiútes, “pode considerar-se o espírito de um objeto como a força
existente fundamental desse objeto. Sem o espírito, o objeto continua a ocupar
espaço e a ter peso, mas não teria significado nem existência real. Quando um
objeto é dotado de uma alma, representa uma parte da natureza, de que
tomamos consciência” (VITEBSKY, 2001, p.18).

Para o reconhecimento das coisas que se ocultam e manifestam outros


sentidos, estão envolvidos, além dos habituais e cotidianos, a percepção das
múltiplas realidades, a qual exige uma predisposição para perceber. Embora as
denominações dos fenômenos sejam distintas e sua discrição só aconteça, ou
melhor, só seja possível por analogias e metáforas, em suma indígenas do
Brasil e da África, se expressam por uma mesma poética. E, se há um lado
para pender, esse tende a ser o do espírito, ou do que não esta para os olhos
comuns.

Para o africano, “o visível constitui manifestação do invisível. Para além


das aparências, encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das
aparências se manifesta.” (RIBEIRO, 1996, p. 39) Tudo quanto podemos
perceber: coisas visíveis e invisíveis, manifestadas ou não manifestas; segundo
a cosmovisão africana, fazem parte do universo.

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Ronilda Ribeiro, com respeito ao universo africano, diz que: “não se
pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está
ligado a tudo, solidária cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma
unidade”. (RIBEIRO, 1996, p. 41).

Ribeiro elucida este tema com a narrativa do grande Deus Maa Ngala,
nos diz:

Não havia nada, senão um Ser. Este Ser era um vazio vivo a incubar
potencialmente todas as existências possíveis. O Tempo Infinito era a
morada desse Ser-Um. O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-
Ngala.Então, ele criou ‘FanUm ovo maravilhoso com nove divisões no
qual introduziu os nove estados fundamentais da existência. Quando
o Ovo Primordial chocou dele nasceram vinte seres fabulosos que
constituíram a totalidade do universo, a soma total das formas
existentes de conhecimento possível. Mas, ai! Nenhuma dessas vinte
primeiras criaturas reve-lou-se apta a ser o interlocutor que Maa-
Ngala havia desejado para si. Então, tomando uma parcela de cada
uma dessas vinte criaturas misturou-as. E, insuflando na mistura uma
centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem
deu parte de seu próprio nome: Maa. Assim, esse novo ser, por seu
nome e pela centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio
Maa-Ngala. (RIBEIRO, 1996, p. 40-41).

Esta narrativa descreve esta relação simbiótica da humanidade com o


mundo físico e com o mundo metafísico. Ou seja, a humanidade é um
microcosmo, é a microsíntese do universo.

Esta unidade delicada nos chama a atenção para o cuidado que temos
que ter com este tecido, isto porque, um mínimo toque descuidado pode
romper a sua harmonia e instaurar o caos. Temos, por isso, que cuidar com o
carinho do lugar onde vivemos (terra), onde nossos pés estão cravados,
embora nossas asas anseiem por voar para casa, como fazem as aves nas
estações, pois nossa morada é o infinito.

TEMA 3: TIPOS DE CONSCIÊNCIA


Qualquer que seja o modo como as pessoas de fora considerem o
estado psicossocial de uma comunidade indígena, as sociedades envolvidas
por uma cosmovisão comum veem uma continuidade entre o estado alterado
de um xamã, o de um paciente em tratamento e o da sua sociedade, como um
todo. As doenças de um indivíduo são, de fato, episódios no seu
desenvolvimento pessoal geral.

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As culturas indígenas partem de concepções específicas sobre o que
existe (ontologia) e sobre o modo como acontecem as coisas (causalidade). E,
na busca de decifração destes significantes, se empenham com extrema
concentração que os coloca em estados que não são comuns, seja com o uso
da música, da dança ou de ervas propícias, que os auxiliam na obtenção deste
estado de consciência alterado.

Segundo Walsh, “As experiências dos xamãs são coerentes e


perfeitamente organizadas de acordo com o propósito da jornada e as imagens
que uma sociedade usa”. (in Vitebsky, 2001, p.148)

Por outro lado, as sociedades africanas têm a sua tomada de


consciência relacionada com a noção de tempo. O Africano percebe que: “A
noite é separada do dia e este é dividido em partes, relacionando-se as
atividades à altura do sol.” (RIBEIRO, 1996, p. 60) As horas são demarcadas
por eventos cotidianos: “Em Burundi, por exemplo, amakana é a hora da
ordenha (sete horas); maturuka é a hora de saída dos rebanhos (oito horas);
kuasase, hora em que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol
se espalha sobre as colinas (10 horas)...” (RIBEIRO, 1996, p. 60).

“O relógio – diz RIBEIRO (1996, p. 60) - tem lugar [apenas] como objeto
de adorno”. Vivem num tempo determinado pelos eventos cotidianos e seu
entrelaçamento com o movimento natural dos seres que interagem, seja
decorrente do trabalho com os animais domésticos, como na ordenha do
rebanho, seja na decorrência da posição do sol, seja pelos pássaros que se
manifestam sempre no mesmo momento.

E, para o que se convencionou acreditar: que o africano vive no passado


sendo prisioneiro de um tempo que não apresenta perspectiva de futuro, que o
faz ser acomodado a uma situação que não se altera; fica a afirmativa de
Ronilda Ribeiro de que: “Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é
prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo
desenvolvimento de sua energia vital.” (RIBEIRO, 1996, p. 63).

Convencionou-se acreditar que a consciência ocidental esta na contra


mão do pensar indígena ou africano. Assim, podemos concordar, de maneira
genérica, na mediada em que a destruição do planeta é fruto de uma iniciativa
ocidental. Porém, há uma minoria que sempre alertou para uma
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conscientização maior do ocidente, e, essa voz, foi clamada principalmente
pelos artistas, mas também por cientistas como, por exemplo, Jung. Jung se
expressou nos seguintes termos: “Às vezes, me sinto como se estivera
esparramado na paisagem e dentro das coisas, vivendo em cada arvore, nas
espumas das ondas, nas nuvens e nos animais que vem e vão, na procissão
das estações. Não há nada ao qual não me encontre unido.” (JUNG, 1961, p.
225).

Este sentimento de pertença, este tipo de consciência expressa por Jung


esta em acorde com a consciência indígena e africana, e é o que garante a
vida plena em seus habitats. Então, não é por falta de alertas ou de
esclarecimentos que a sociedade ocidental esta destruindo os seus habitats.
Mas, talvez, seja por uma projeção de alguma patologia. Porém, muitas
pesquisas, bem recentes, apontam para uma luz no fim do túnel da cultura
ocidental.

El biólogo Rupert Sheldrake, em su libro ‘La Presencia Del Passado’


assegura que la naturaleza tiene memória y que esta memória se
propaga por médio de um processo de conexión no material llamado
resonancia mórfica, mediante el cual formas y conductas de
organismos pasados influyen en organismos presentes. (in
DOMINGUEZ, 2016, p. 37)

Posturas, como a de Sheldrake, abrem a possibilidade de uma nova


conscientização dos limites que temos que ultrapassar como cultura centrada
em fundamentos ainda muito conservadores. Novas posturas científicas podem
possibilitar uma nova consciência, do tipo, talvez, que já alcançaram povos
como os indígenas e os africanos.

TEMA 4: VIAGENS E OUTROS REINOS


A lógica xamânica parte do princípio de que a alma pode abandonar o
corpo. É o que sucede a toda gente no momento da morte, mas considera-se
que a experiência dos sonhos demonstra que a alma pode vaguear
independentemente do corpo e a ele regressar, sem causar a morte. As
sociedades xamânicas consideram a saída da alma do corpo, durante o transe,
como um tipo controlado de sonho, no qual os xamãs assumem controle sobre
uma forma involuntária da experiência humana.

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No contexto africano, a relação simbiótica com a natureza (mundo
natural) e com o próprio Deus (mundo sobrenatural) compõe a própria essência
do Homem, que, por sua vez, divide sua essência particular com a totalidade
do universo. Dito de outra forma: o Homem é a microsíntese de todos os
elementos que compõem o universo. Ele é um microcosmo. E, sendo assim, a
viagem do xamã africano pelos muitos mundos é uma viagem em si mesmo, ou
seja, uma viagem em seu mundo interior é, também, uma viagem pelo mundo
exterior, pois uma e outra são expressões de uma realidade totalizante que se
refletem como espelhamentos de uma mesma face justaposta.
Contemporaneamente, alguns conceitos da Ecopsicologia, como o de
“dinamismo de alteridade” e de “dinamismo cósmico”, aproximam o
pensamento ocidental do pensamento indígena, apenas que considerando a
viagem a outros reinos como uma viagem de retorno ao seu próprio reino, ao
reino da sua própria natureza e, por conseguinte, da cura da sua psique.

Los estados emocionales más propícios para la expresión de la


alteridade son la fe, la esperanza, la caridad, la amorosidad de
intercambio, La búsqueda del encuentro fructifero para ambos, la
búsqueda de significados simbólicos plenos, el éxtasis de la plenitude
y la autorrealización simbólica, y la amorosidad hacia toda expresión
de partes em conflito. (Dominguez, 2016, p.45).

Este sentimento que a alteridade propícia também permite outros


arroubos, como a viagem para os reinos da natureza, por meio da sua
manifestação nos sonhos e nos devaneios. Além disso, devemos considerar
que têm acontecido nos divãs das psicoterapias. O sentir-se no lugar do outro,
em por momentos ser outro. Já que em nossa bagagem genética temos todos
os outros reinos pelos quais passamos em nosso trajeto, desde a origem até o
momento presente.

Sem nos esquecermos do conceito de “Dinamismo Cósmico”, que auxilia


muito na condução das viagens parta outros reinos conduzidos por meio da
indução, técnicas que foram absorvidas a partir da experiência apreciada nas
culturas primevas.

En el acercamiento a la naturaleza desde este dinamismo (Cósmico o


de Totalidad), se despierta em nossotros la possibilidad de la
transcendência, puesto que los símbolos de la naturaleza aportam
sobre todo símbolo de totalidad, una totalidad que es mayor que
nossotros. Los árboles, lãs nubes y lãs estrellas ya estaban antes de
que naciéramos y seguirán estando cuando nos hayamos ido.
(DOMINGUEZ, 2016, p. 46).
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Desta maneira, a viagem ao seu próprio mundo, tomar consciência dele,
é a grande questão para o ocidental. Esta desconexão, na qual vive a maioria
da população dita ‘civilizada’, esta levando nosso planeta à destruição. Muito
necessária é a viagem de reconexão. A cultura ocidental esta dissociada da
sua inserção na ecologia, e não conecta a poluição e a degradação ambiental
com os aspectos mais profundos do ser.

Então, dentro deste contexto apresentado, a viagem a outros reinos não


é um desvario, uma ilusão de povos supersticiosos, mas um aporte que esta
ajudando na cura da dissociação, como a descrita por Ralph Metzner: “Para ser
espirituales y obtener el cielo o la iluminación, debemos superar nuetros bajos
instintos animales y pasiones corporales”. (METZNER), assim reza o
catecismo.

Esta claro que dando um passo a mais, começamos a controlar,


também, o nosso entorno. Assim, não é difícil de verificarmos o resultado da
devastação que foi causada. Ao buscarmos moldar o mundo a essa imagem,
buscando submeter à natureza ao nosso controle e a nossa forma de conceber
e controlar a tudo que nos cerca, começando com a submissão do nosso
corpo, do nosso planeta, com o preço da destruição deste e da psique que se
dissociou, do espírito que se perdeu em suas pretensões onipotentes, isso tudo
para superar nossos baixos instintos animais e paixões corporais. Agora, para
sanar, precisamos fazer a viagem de retorno, resgatando nossos instintos
aprisionados nas teias da opressão e libertar nossas paixões corporais presas
nos grilhões da repressão.

Todas estas técnicas contemporâneas de cura eram bem conhecidas dos


povos antigos e, por isso, desfrutavam de sanidade, a qual contribui para
manter suas terras limpas, o ar puro e a água cristalina. E assim continuam
sendo até a chegada de alguma companhia destruidora vinda do mundo
desconhecido, do mundo dos sem alma (dos desalmados destruidores da
terra).

TEMA 5: A DOR E A CURA

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A percepção indígena do bem-estar não abrange apenas a saúde física,
num sentido médico, nem se restringe à saúde mental, num sentido
psiquiátrico. Compreende a boa nutrição, a boa amizade, a prosperidade, os
negócios e a guerra bem-sucedidos.

Todas estas coisas dependem de ideias de balanço, de equilíbrio e de


fluxo no ambiente e da ideia de dar e receber, de amor e cólera e de motivação
e intenção entre os espíritos que animam este ambiente.

A compreensão africana não é muito diferente no que se refere à doença


e à saúde, e no que diz respeito ao meio ambiente. Basta dizer que quanto às
questões relacionadas com a vida e com a morte, com a saúde e com a
doença, a visão do povo é mais sistêmica e harmônica do que a visão
ocidental. Os fenômenos de doença/saúde não estão dissociados de todo um
contexto social. As doenças não são apenas anomia do corpo, mas são,
também, desequilíbrios da realidade social, política, econômica e cultural. A
relação com as divindades responsáveis pelo manejo de ervas que curam
(principalmente Obaluaiê ou Omolu), mostra bem esta relação: se você
reverencia a divindade, mostrando respeito e temor, você é agraciado por seus
poderes; mas, se você mostra desprezo e descaso para este orixá, sofrerá as
agruras do infortúnio advindos da ira do orixá. Note que o plano da
doença/saúde não está retificado apenas nas relações com o próprio corpo,
mas extrapola este plano e interage com os outros constitutivos de seu
horizonte cultural. A questão do meio ambiente, da ecologia, não é um
problema que está ligado apenas ao ambiente natural. O problema ecológico
atinge todas as esferas da vida humana e de seu mundo. Com efeito, podemos
falar em uma ecologia ambiental, mental e social. Ou seja, a esfera da ecologia
toca transversalmente todas as outras esferas do planeta, e, como elas, estão
interligadas, seus efeitos se comunicam, seja positiva ou negativamente.
É importante ressaltar que, quando falamos em integração, não é
possível falar de uma espécie de elevação de um elemento como o mais
importante. Não é porque Ogum abre o xirê que ele é o mais importante, isto é,
não é porque Ogum está relacionado com as atividades da guerra, da
metalurgia, da tecnologia, que estes elementos são os mais importantes. Tudo
é importante na medida em que tudo está interligado com o todo. O conjunto é
importante e não o particular. O organismo é importante, e não a parte. Melhor

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dizendo, a parte é importante justamente e na medida em que ela é integrante
do todo.

Para entender a saúde e a cura dentro da cosmovisão africana temos


que considerar que o “axé”, a força vital, é a energia que movimenta a
realidade. Aumentar a força vital é saúde, prosperidade, fertilidade, ética etc.
Diminuir a força vital é doença, corrupção, miséria, guerra. Sendo energia a
matéria que compõe as artérias do real, as interações entre os seres no tecido
social são mais dinâmicas e baseadas em relações de troca, dádiva e
reciprocidade.

SÍNTESE
Vimos, neste segundo momento do nosso estudo, sobre a cosmovisão
indígena: como as culturas ancestrais estratificam o cosmo, como
compreendem a realidade e que níveis de consciência têm do mundo que os
cerca. Também aprendemos que algumas pessoas, dentre esses povos, fazem
viagens a outros reinos; tudo isso tendo em vista saber como tratam a dor e a
cura.

Compreendemos que “níveis do cosmo” talvez possam ser entendidos


como uma metáfora para a diversidade do reino dos espíritos. Isso porque os
espíritos – sejam eles de pessoas que morreram, sejam eles de forças da
natureza – não existe aqui, mas em qualquer outro lado.

Na realidade, para os povos indígenas, o mundo dos espíritos contém e


exprime a verdadeira causa das coisas que se sucedem. A realidade é mais
vasta do que é dado perceber aos olhos e aos sentidos, e, especialmente, no
que se refere à consciência que dela temos.

Também aprendemos que estados alterados de consciência, isto é


percebido por pessoas que estão alheias a uma determinada realidade. Porque
“as experiências dos xamãs são coerentes e perfeitamente organizadas de
acordo com o propósito da jornada e as imagens que uma sociedade usa.” (in
Vitebsky, p. 148)

Muito importante, por outro lado, é termos a noção de que a percepção


indígena do bem-estar não abrange apenas a saúde física, num sentido

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médico; nem se restringe a saúde mental, num sentido psiquiátrico.
Compreende a boa nutrição, a boa amizade, a prosperidade, os negócios e a
guerra bem sucedidos.

E, com relação ao mundo africano, vimos que a questão do meio


ambiente, da ecologia, não é um problema que está ligado apenas ao ambiente
natural. O problema ecológico atinge todas as esferas da vida humana e de
seu mundo. Com efeito, podemos falar em uma ecologia ambiental, mental e
social. Ou seja, a esfera da ecologia toca, transversalmente, todas as outras
esferas do planeta, e como elas estão interligadas, seus efeitos se comunicam,
seja positiva ou negativamente.

Por isso, para entender a saúde e a cura dentro da cosmovisão africana


temos que considerar que o “axé”, a força vital, é a energia que movimenta a
realidade. Aumentar a força vital é saúde, prosperidade, fertilidade, ética etc.
Diminuir a força vital é doença, corrupção, miséria, guerra. Sendo energia a
matéria que compõe as artérias do real, as interações entre os seres no tecido
social são mais dinâmicas e baseadas em relações de troca, dádiva e
reciprocidade.

REFERÊNCIAS
DOMINGUEZ, Teresita. Así como adxentro, afuera. Psicolibros: Montevideo,
2016.

JUNG, C.G. Memorias, Sueños y Reflexiones. Random Hause: New York,


1961.

LEAL, Gláucia. Mente Cérebro. Ed. Segmento: São Paulo, 2016.

MANDER, Jerry. Guerra de Paradigmas. Ed. Mander: Califórnia, 2002.

VITEBSKY, Piers. O Xamã. Ed. Evergreen: Koln, 2001.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Cia das Letras: São Paulo, 1995.

WASH in VITEBSKY, Piers. O Xamã. Ed. Evergreen: Koln, 2001.

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