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OPINIÃO OPINION 895

A propriedade, o espaço e o lugar do sujeito

The subject’s propriety, space, and place

Jorge de Campos Valadares 1

1 Departamento de Abstract This article deals with the “scenery”, ”horizons”, and perspectives constituting the sub-
Saneamento e Saúde
ject’s place and situation from the psychoanalyst’s limited perspective. Moving away from the
Ambiental, Escola
Nacional de Saúde Pública, body and its “em-bodiments” and places, many of which are institutionalized, including lan-
Fundação Oswaldo Cruz. guage itself, we look into such matters as velocity and other “con-jectures” associated with tech-
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
nique. In addition, we also consider the body and nature as a whole as sites of action and pre-
5 o andar, Rio de Janeiro, RJ
21045-900, Brasil. sentations, which in several scenes lead to representations of the world in view of the peculiari-
jorge@ensp.fiocruz.br ties in the subject’s experiences. All virtualities, together with the “disembodiment of physical
presence”, add one more variable to our thoughts. Recent endeavors like the feminist and home-
less movements have shed new light on our understanding of the desire to possess and govern a
territory. Art (and here drama plays an essential role) seems to be the perfect system towards
which perceptions and syntheses are directed in search of new concepts and directions for under-
standing (which, in turn, has recently undergone an unprecedented crisis). Still, we should point
out that the latter issue, not dealt with in this article, will be discussed at a suitable opportunity.
Key words Personal Space; Human Body; Philosophy

Resumo Partindo da limitação que impõe o lugar de fala do psicanalista, abordamos as


questões relativas ao “cenário”, dos “horizontes” e das “perspectivas” para o lugar, a Situação do
Sujeito. Saltando do corpo, das “incorporações” e de seus espaços, muitos deles institucionaliza-
dos, incluindo aí o espaço da linguagem, chegamos, em nossas procuras, à situação das veloci-
dades e outras armações (Gestell) da técnica. Nessa trajetória, pensamos o corpo e toda a “na-
tureza” como sítios de presença e apresentações que, nos cenários diversos, dirigem-se para as
representações de mundo, com base nas singularidades das vivências. As virtualidades, com a
“descorporificação das presenças”, trazem mais uma variável para a nossa reflexão. As novas lu-
tas, como, por exemplo, a luta pela terra, a luta feminista, etc., têm trazido novas luzes para a
compreensão do desejo de posse e de governo dos territórios. A arte, e, aqui, o teatro deve ocupar
um lugar de destaque, parece ser o lugar ideal para onde todas as percepções e sínteses se dirigem
em busca de novas elaborações e de uma nova direção para o entendimento, tendo este atingido
uma crise sem precedentes. Mas esse último tema é assunto para ser mais desenvolvido em outra
ocasião.
Palavras-chave Espaço Pessoal; Corpo Humano; Filosofia

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A propriedade, o espaço spuren (Freud, 1972), que ficam como sinto-


e o lugar do sujeito mas engastados na própria carne.
Com base, então, em uma “naturalidade”,
Um psicanalista nunca deve se contentar em se em um “bios”, uma vida, uma pulsação, uma
dirigir ao outro sem, ao mesmo tempo, consi- continuidade estranha ao caminho tortuoso
derá-lo profundamente. Deve, por isso, se per- e cheio de lapsos da Cultura, à qual chegará,
guntar duas vezes ao abrir uma discussão pú- ela, essa carne, vive uma descontinuidade,
blica. Habituado à penumbra, onde as ques- um lapso, um vacilo, diante do mundo, que a
tões se apresentam timidamente, principal- faz tremer ante o pensar. Nessa pulsação estão
mente quando são mais pertinentes, diante de o amor próprio, o sentimento do si mesmo
luzes em profusão, corre o risco de omitir refe- (Selbstgefühl – Freud, 1974a) e o sentimento do
rências ao que não vê, ofuscado que está, pelo mundo. Ante o fato de dever encarar com in-
excesso de iluminação e, assim, optar por aqui- venções, teorias, esse lapso do saber/sabor
lo que mais brilha. Trabalhamos com incerte- (Barthes, 1977). É nesse sentido que Niestszche
zas e estamos sempre incertos. Assim, propo- (1974:211) nos lembra Turenne, que diz: “car-
nho-me a abordar o tema da propriedade, pro- caça tu tremes, pois tremerias mais ainda se
curando deixar, de início, o mais claro possível, soubesses onde vou te levar”. O pensamento não
que apenas tento apontar indícios. São peque- se liberta da força da vitalidade da vida (Pina-
nas pistas que procurei seguir pelo meu traba- Prata, 1962). Isso quer dizer que a carne passa
lho de psicanalista e, como pesquisador, tam- as suas pulsações para a energia do pensamen-
bém na Instituição Pública de Saúde, na tese to, o qual também vacila ou se impõe ante às
de doutoramento e pela minha própria expe- determinações dela, da carne. E pode até con-
riência de homem profundamente ligado à tinuar, como matéria, como carne no pensa-
terra, por ter nascido na roça, e que tem, para mento, agindo como um rolo compressor. A
se destacar das paixões que o campo produz, violência, as “explosões”, as invasões, o assédio
que percorrer um caminho onde a Natureza de toda espécie, os comportamentos comuns
teima muito ao abraçar a Cultura. Não pode- na atualidade, como situa Caporali (1999) e ou-
mos fugir de nós mesmos, como nos ensinou tros, são o testemunho disso.
Freud (1976), e é a partir daí que devemos sem- Não se trata, pois, com o que quero dizer,
pre re-começar. de fazer um discurso puramente teórico. É o vi-
Apesar da consciência de tanta complexi- vido, por isso irrepresentável, e em dois senti-
dade, tenho, paradoxalmente, o sentimento de dos: pela dupla experiência com os espaços ur-
falar sobre o óbvio, embora me alente a certeza bano e rural e pelo acompanhamento de perto,
de que as verdadeiras questões, aí, no óbvio, se da dura realidade que as comunidades têm en-
escondem. Na realidade, o que a minha expe- frentado, com as mudanças nas geografias des-
riência, situada entre o roceiro e o urbano, pro- ses espaços. Falo, aqui, de uma escrita no terri-
duz, é o sentimento e uma lógica muito fortes, tório – refiro-me ao território como o campo
a consistência mesmo, de algo muito pensado do biológico, estudado na sua condição de es-
na psicanálise, de que o humano é constituído pacialidade, estando o corpo humano, à frente
por um exílio fundador, um afastamento radi- – como prolongamentos espaciais de sintomas.
cal de raízes, que, paradoxalmente, estão finca- Somente, portanto, falando das marcas da
das numa terra da qual nunca saímos. Penso, memória, inscritas pelo percurso do corpo, nas
com Robert Jay Lifton (Lifton, 1989), que esses diversas dimensões do espaço é que produzi-
compromissos, essas paixões – tão naturais mos uma cultura viva. É nesse sentido que essa
mas, ao mesmo tempo, tão simples e tão com- fantástica mulher do cinema italiano, Liliana
plexas, na medida que são continuamente re- Cavani, nos diz que uma língua viva é aquela
visitadas, ao contrário do que diz um pensa- que é produzida por poetas vivos.
mento pretensamente científico – nos autori- Não pretendo fazer ciência aqui, não so-
zam, de uma maneira especial a falar, pois uma mente por impropriedade (penso que a ciência
razão, um pensar que delas, dessas paixões, é deve ser somente feita em laboratórios), mas
livre, só existiria como letra morta. A carne de- também por achá-la inútil ao todo do tema.
ve ser triturada e transformada nas tintas que Inútil ao con-junto (Suzammenhang – Freud,
escrevem o saber, com letras que devem sem- 1947) dos temas do viver humano. Não é o me-
pre nos co-mover, nos emocionar, pois a vida é lhor, para a vida humana como um todo, supe-
movimento, co-moção com o que ficou perdi- restimarmos detalhes. Penso que o poema, seu
do, e com o que está aí, e não nos deixa esque- trabalho, sua produção, são mais propícios. E
cê-lo. Paixões por vivências abandonadas, por sabemos que a técnica, Tekné, e a produção
percursos, rastros de recordações, Erinnerung- poética do mundo, a Poiesis, até Platão, entre

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os gregos, eram a mesma coisa (Heidegger, O problema aparece quando essas incorpo-
1990). Depois o homem foi obrigado a ir, cada rações, ao invés de evoluírem para a constitui-
vez mais velozmente, se fragmentando, para ção do sujeito, servem para a sua devoração,
tentar viver e desfrutar do que a natureza, a pois o aprisionam em corporações. As identifi-
physis, lhe oferece. Sabemos, com a maturida- cações, as incorporações, são trabalhos do so-
de de nosso poeta maior, que “o mundo é maior nho, feitos pelo sujeito, no seio do seu grupo.
que o nosso coração”. A produção poética é, en- Um grupo assim está mais interessado em fun-
tão, mais apropriada para falar da vida e de tu- dações de contínuas mitologias que nas “ins-
do que lhe está ligado, sobretudo para dizer al- tâncias práticas” com descobriu a análise insti-
go sobre este palco, que é a terra, central para a tucional, sobretudo a partir do trabalho de Re-
cena humana, o seu des-envolvimento, os des- né Lourau (Lourau, 1975) com as instituições.
novelamentos das paixões. O saber e a cultura são o que nos permitem
Gostaria, para isso, de ser um poeta, mas estar juntos e, mesmo, poder olhar sempre no-
como não o sou, tentarei, como posso, talvez vamente, um para o outro, isto é, respeitar-nos.
como um sonhador e leitor apaixonado dos “O saber é sabor”, nos disse Roland Barthes
poetas, desencumbir-me dessa tarefa à qual (Barthes, 1977), e deve haver algum destino ou
me proponho. Entretanto, não nos esqueça- mesmo um desígnio, pelo qual a língua, este
mos que, aqui também, estamos sonhando. órgão cheio de voraz sideração, de desejo (de-
Calderán De La Barca (1992), com seu príncipe sider-io) pela degustação do mundo, seja ao
enjaulado, e Sigmund Freud (Freud, 1974b), mesmo tempo, carne e letra. A sabedoria ini-
com o que mostra da cultura como lugar do cial do bebê sabe que tudo deve ser levado à
Mal Estar, não nos deixam dúvidas de que a vi- boca, e o saber e nos mostra como isso, conti-
da é sonho. E se o sonho se realiza em veloci- nuamente, se faz, isto é, como aprendemos o
dades, a realidade somente é vivida na lentidão mundo, e como são nossas apreensões. Todo
(Santos, 1996). O sonho passa a ser pesadelo aprendizado exige o abandono de seguranças
quando há urgência em sua realização; quando inventadas para o suporte do passado, e a fre-
esquecemos de que a vida também é sintoma. qüentação do desamparo, da percepção de que
É nesse sentido que a sabedoria popular diz nosso passado está dentro de nós, desmancha-
que o pobre vive de teimoso. O tema é árduo e do em sinais, rastros de recordações de algo
está ligado a um caminho árduo que é o da cul- que lembra o nosso lugar como um espaço va-
tura. Não adianta pressa. zio, como despedaçamento nas perdições do e
O corpo, como dizia, não podendo ek-sistir, no mundo. É lá, onde ele, o passado fracassou,
estar fora da sua natureza, deve, então, fazer que nós nasceremos. Quando nos disseram que
um percurso para se fazer cultura. Não há “De- criança deve se afastar da conversa de adultos,
sejo” sem o seu fundamento no “Interesse do esqueceram-se, em seus sintomas, de que é a
Ego” (Freud, 1974a), como não há corpo huma- criança que pulsa em toda a des-organização
no sem a língua, sem a letra, sem a cultura. De- do adulto. São infinitas as formas de organi-
vemos nos afastar dessa cisão atual, que nos zar o mundo. E a criança não tem preconceito
coloca diante da escolha impossível entre al- contra nenhuma delas. Essa criança insubor-
mas penadas e corpos pelados. Não podemos dinada que está sempre dentro de nós procu-
conhecer, explicar, “dar satisfação” de des-ca- ra, incessantemente, falar de prazeres, gostos
minhos dos corpos, em sua procura a respeito que experienciou e aos quais confere valor, e
do desejo. O Desejo existe às expensas do risco, ainda não viu reconhecidos, legitimados pela
e vive de escuridões. Mas porque não os co- cultura.
nhecemos, a esses des-caminhos, não pode- Estou dizendo tudo isso para falar de fun-
mos dizer que não sejam um dia palmilháveis damentos. Uma vez que nos acertamos aqui,
por algum saber. E parece ser esta uma posição nos fundamentos, o resto corre redondo. De-
da sabedoria: reconhecer a precariedade de pois nos dispersaremos de novo. Mas como em
nossos saberes, sem abandonar os sonhos. A uma “mesa redonda”, estejamos juntos por al-
pulsão de domínio, os “impulsos de empreen- gum momento. A história, aprendemos com
dimento”, a impetuosidade, às vezes, nos fa- Merleau Ponty (Ponty, 1984), somente pode ser
zem escorregar, sobretudo quando se trata dos apreciada da lacuna escancarada do presente,
domínios do saber. Não há saber imparcial, fo- do prazer do convívio, das presenças. Depois é
ra do domínio da corporalidade, do Interesse, que se transforma em representação, em temas
que é o que funda o ego e suas “apreensões”, para as bibliotecas, para a arqueologia e para
sem o que seríamos almas penadas, sem “in- museologia. “O passado, que contemplo, foi di-
corporações”, identificações e, portanto, sem vidido, foi presente. A ordem do saber não é úni-
ideais (Freud, 1974a). ca, não se fecha sobre si mesma e leva consigo,

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pelo menos, uma lacuna escancarada do pre- olhá-la de forma maniqueísta. Desde sempre
sente. A história inteira é ação, e só a ação histó- ela foi constitutiva da vida emocional, como
ria” (Ponty, 1984:31). descreve Winnicott, quando trata de seu con-
Queremos dizer que, do ponto de vista da ceito de impiedade (ruthlessness – Winnicott,
emoção, a questão da terra é fundamental. É 1975).
histórica, para a cultura e para o sujeito. Os O arquiteto Heberto Lira, cabeça do extinto
dois nascem juntos nesse palco, nessa cena. É Serviço Federal de Habitação e Urbanismo,
uma questão vital e, se ela não evolui, nada desconfiando das velocidades e do globalismo,
evolui. E, como acontece nas infinitas questões mostra-nos que o Movimento dos Trabalhado-
do homem com a mulher, com quem contrace- res Rurais Sem Terra é o único movimento so-
na mais de perto, se as intermináveis relações cial atualmente no Brasil. Os governos tentam
entre o homem e seu cenário não evoluem, não fugir da impotência, e o “Social Welfare” das
evolui a cultura. E sabemos como é duro o co- nações “em vias de desenvolvimento” luta para
tidiano dos casais. É prazeroso mas é difícil. não somente se preocupar com a tarefa neces-
Há, então, um casamento do homem com sária, mas inglória, de apenas distribuir pratos
as espacialidades. As velocidades e a globaliza- de comida para famintos.
ção, com seus des-caminhos, têm nos levado a O Movimento dos Trabalhadores Rurais
crer num homem virtual, como se o corpo não Sem Terra brasileiro não está preocupado, nos
precisasse de espaços para seu movimento e a fundamentos mais profundos de seu projeto
alma não precisasse do des-envolver-se em de gestão, com o fato de poder possuir terras.
suas paixões. A técnica, o fazer humano, exige Está preocupado com “um novo projeto de ges-
uma contínua transformação do natural. É a tão da Sociedade”. Todo o seu trabalho de For-
busca de conforto pela diminuição do dispên- mação, que é como situam a educacão, é, cu-
dio de esforço. Essa busca, o homem irá jamais riosamente, como o nosso, na psicanálise. É
abandonar. Dizemos, com Ortega y Gasset um exercício, uma tentativa contínua de inven-
(1963), que não existe um homem pré-técnico, ção de um colorido para as espacialidades da
uma vez que a técnica para o homem é uma tá- vida, com tintas de sangue, com as quais va-
tica de vida. A técnica nasce com a primeira mos compondo um novo quadro, uma “bil-
distensão do corpo em direção ao mundo. dung”, como quer o pensamento ligado ao ro-
“A terra é do Homem. Não é de Deus nem do mantismo, pois a vida tensiona o corpo que,
Diabo”, lembrou-nos, depois de muitos outros, uma vez distendido, “compreende” o mundo.
nosso grande cineasta Glauber Rocha, no seu Não se trata de uma inteligência, uma leitura,
filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. E não an- que vai nos dizer o que é o mundo. Mas consi-
damos um passo, depois da carta do cacique dero aqui, esta “compreensão”, como na língua
americano, que se colocava perplexo diante da inglesa, com uma posição de domínio, de
proposta de compra das suas “propriedades”. A abrangência.
seiva das árvores, por onde ele representava a Ninguém se coloca diante do mundo sem
“vitalidade da vida”, para empregar a expressão uma curiosidade, uma vontade de degustação,
de Ortega, e que para o cacique Seattle era im- de saber, de domínio, de apreensão com e do
pensável vender, pois continha o sangue de mundo, portanto. Por isso, as questões do ter-
seus antepassados, descrevendo, nas planta- ritório não são questões simplificáveis. É um
ções, sua cultura, passa a ser, com a própria lugar do sujeito, espaço de seu passe, de seus
carta, ou com as suas letras, agora uma seiva da rituais de passagem e de acesso ao direito e à
terra, a que todos estamos interessados em lei, pela forma com que nele opera, trabalha,
acompanhar. A voracidade do consumo, e do obra, constrói, até mesmo seu próprio corpo.
consumo de saber como mais consumir, leva- O “body building”, por exemplo, é uma arm-
nos à vontade de posse das folhas e das raízes, ação, para empregar o termo de Heidegger
antes mesmo de podermos degustar dos frutos, (1990), um desvio de percurso, e um corpo de
para “conhecermos”, com as possibilidades de “academia” é uma simulação, um mimetismo,
uma outra genética, o maior volume possível diante de um corpo de um operário. Devemos
de “venda”. Essa é a nova árvore do conheci- entretanto pensar as arm-ações como técnica
mento. Ela mostra seu avesso enquanto mostra um “truque para gozar” (Garcia, 1987), algo ne-
o avesso do homem. Uma representação que cessário à construção do sonho e da fantasia, e
dê conta disso não é construída de maneira portanto, ao surgimento do sujeito.
simples. Sabemos que a agressividade e a von- Há, pois, uma produção dos corpos na cul-
tade de poder são constitutivas do psiquismo, tura, onde as arm-ações, a Ge-stell, como si-
que aumenta com o desenvolvimento da civili- tuou Heidegger (1990), os truques, são, entre-
zação (Freud, 1974b) e que por isso não cabe tanto, atos centrais na geração da técnica apro-

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priada. Tanto a técnica de uma ocupação, de sejos para os quais os objetos são lugares de si-
um assentamento, no habitat, como as técni- tuação, de ações situadas desenvolvidas pelo
cas de exclusão são arm-ações, truques. A pa- sujeito.
lavra “ocupação” (Besetzung), usada por Freud, Os tempos de nossa ação no mundo são re-
de origem militar, foi em português traduzida juntados nos espaços, que, como lugares de
como “investimento”. O sonho, o fantasma e a memória, produzem o que nos fica como remi-
fantasia são truques, técnicas de gozo, a partir niscências. Le Corbusier (1971) fala da estrada
do investimento/ocupação em/com imagens, de pedra, do aqueduto, da muralha e do moi-
representações. O mimetismo, no corpo e no nho de vento, como sendo ruínas comoventes.
ambiente, também é uma tática, um “truque Vivemos delas, dessas memórias, tanto quanto
para gozar”. Por isso, é inútil toda a tentativa de de nossos projetos, em espaços ao mesmo
se ver as questões da propriedade como algo tempo internos e externos. Não encontramos
simplificável. nada. Apenas reencontramos. Mas para nos re-
Enjaulado em uma cidade, como as atuais, encontrarmos, para a volta àquilo que é perdi-
o cidadão nos mostra os caminhos tortuosos do e sempre lembrado, pelo simples fato de
para a cidadania. Isso tem levado os geógrafos nossa atenção estar situada no gesto cotidiano,
a inventarem uma “geografia de lugar-nenhum” precisamos do espaço do presente onde nos
(Benko, 1994), situada em aeroportos, auto-es- encontramos (Sami-Ali, 1974). Para irmos com-
tradas, motéis, etc., onde os descuidos do con- preendendo o mundo, para representá-lo, pre-
trole pelo instituído permitem, paradoxalmen- cisamos de nos apresentar a ele, nele, e de nos
te, as armações que são necessárias para o sur- movimentar em nossas paixões, tecer os tem-
gimento do sujeito, como alguém que constrói pos, re-unindo fazeres perdidos em nossa vida.
seu nome a partir de seu próprio gesto. Estando ligados às coisas deste mundo, sabe-
O habitat, a habitação humana, lugar – re- mos que há uma diferença entre tomar e incor-
servo o termo lugar, para o espaço por onde o porar. Essa é a angústia em que nos colocamos
sujeito ensaia seus passos de não assujeita- desde a infância: comer o bolo ou olhá-lo todo,
mento – por onde podem aparecer sujeitos, os inteiro, sem poder desfrutá-lo (Fairbairn, 1940).
não assujeitados, é toda uma outra coisa. É um Viver o mundo é poder destruí-lo e reconstruí-
lugar de relaxamento, de distensão, onde além lo continuamente. E isso parece ser da ordem
dessa procura e possibilidade de transgressão da tragédia, do destino, tal como é visto tam-
há um legitimação de desejos singulares. Os bém por Freud. A apreensão diante da vida é,
próprios “Sem Terra”, com todas as preocupa- paradoxalmente, o seu objetivo. Destruímo-la
ções e os cuidados, vêem o Jeca Tatu, no seu e reconstruímo-la sempre. Não há computador
descanso, e também aquele que é o corrompido que possa armazenar as técnicas dos fazeres
pela droga do consumo, o chamado “lumpem”, humanos, pois o central, pelo que tem de dis-
no seu desbaratamento motor e de pensamen- ruptivo, em seu exílio, deve ser esquecido pelo
to, como definitivamente excluídos de suas téc- homem, para ser relembrado com a cultura.
nicas de inclusão. Seriam irrecuperáveis. E quem não relembra, repete. E repete de
O sujeito, o grupo e seus espaços se fun- uma forma em que o sistema motor substitui o
dam, excluindo. E sempre deverá haver uma pensamento. Essa parece ser a história dos fa-
luta de inclusão. zendeiros que fazem churrascos, verdadeiros
Como continuar essa luta? Contra o asilo banquetes totêmicos, para comemorar o assas-
onde o homem pode ser “normalizado” e o exí- sinato de um líder no campo, ou que ainda, co-
lio impossível e necessário da condição vital, locam a prêmio cabeças de outros líderes, pelo
se é aí que o homem se funda. Nessa fundação, preço de uma refeição, em um restaurante
joga o outro no lugar daquilo a ser conservado qualquer. As religiões e a arte tentam ritualísti-
como o mais estranho. O domínio do território, cas e espacialidades, por onde essa repetição
como é feito pelo animal, é interditado ao ho- se dê, de forma cada vez menos dolorosa.
mem. O sujeito tem que lidar com o desejo de Mas parece ser inútil um pensamento que
poder do outro e com o seu próprio. E sabe- se pretenda livre delas, dessas trágicas repeti-
mos, também, das lutas assassinas, mais fortes ções. Estamos sempre repetindo. Como em um
ainda entre irmãos, como aquela imortalizada ensaio tentamos nossa situação no mundo.
por Schiller (1968) em sua peça “Os Arruacei- Quem participa da luta pelo ambiente nesses
ros”, em que dois irmãos se digladiam até a últimos trinta anos sabe disso. O que, além dis-
morte por uma herança. so, podemos acrescentar? Talvez, timidamente,
Por isso a consciência é uma consciência que podemos estar diante dos textos, como
possível, como disse Rosa de Luxemburgo. A quem vai ao teatro assistir a uma cena estra-
propriedade e a apropriação dependem de de- nha, sem ter a plena noção, o quanto, dela, é

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parte. Não podemos esquecer, entretanto, que,


por isso mesmo, se trata de uma tragédia. On-
de o central da tragédia, nos mostrou White-
head (Hardin, 1968), é a distância sem remorso
com que o ator se desloca na cena. Assim nos
colocamos diante do ambiente e da “explora-
ção” de seus recursos e do outro que necessita
desses recursos para o ensaio do seu fazer e fa-
zer-se. Com isso, termino o que queria dizer e
faço a minha homenagem a Augusto Boal,
mestre da representação e dos ensaios por on-
de, com a sua presença, a vida pode, então, se
manifestar. Essa homenagem é uma coisa que
queria fazer há muito tempo.

Referências

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