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2 | Felipe Negreiros

Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 3

FELIPE NEGREIROS

SOU PEDRO...,
O IMPERADOR DO BRASIL

Versão E-book
2ª Edição

EDITORA NORAT
João Pessoa
2022
4 | Felipe Negreiros

ISBN 978-65-86183-05-4
© 2022 by Felipe Augusto Forte de Negreiros Deodato
© 2022 by Editora Norat
1ª ed. 2019 (Eduepb). 2ª ed. agosto de 2022 (Ed. Norat).

Diretor editorial: Markus Samuel Leite Norat


Arte e diagramação: Markus Samuel Leite Norat

Dados de Catalogação na Publicação


D822s Deodato, Felipe Augusto Forte de Negreiros
Sou Pedro..., o imperador do Brasil / Felipe Augusto
Forte de Negreiros Deodato. 2. ed. –João Pessoa: Editora
Norat, 2022. [1,79mb - E-book]
378 p.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86183-05-4

1. Romance; ficção e História do Brasil


2. Brasil Império I. Título.

CDU- B869-3

Índices para catálogo sistemático:


1. Romance; ficção e História do Brasil B869-3
2. Brasil Império B869-3

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. É proibida a cópia total ou parcial desta obra, por
qualquer forma ou qualquer meio. A violação dos direitos autorais é crime tipificado na
Lei n. 9.610/98 e artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

EDITORA NORAT
Editora Norat - CNPJ 34.158.837/0001-85
www.editoranorat.com.br
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Aos meus pais


Nelson e Marlene.
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“Faça do meu filho o rei que não consegui ser para o Brasil”
De Pedro I a José Bonifácio
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Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 9

SUMÁRIO

NOTA DO AUTOR ............................................................... 013

PREFÁCIO – QUANDO UMA BIOGRAFIA É


ETIMOLOGICAMENTE SIGNIFICATIVA ................................. 019

PARTE I
OS PEDROS...

CAPÍTULO I
POIS É... ............................................................................ 027

CAPÍTULO II
BRASIL BRASILEIRO... ........................................................ 055

CAPÍTULO III
MAIOR REPUBLICANO... ..................................................... 078

CAPÍTULO IV
SUA FAMÍLIA... ................................................................... 103
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PARTE II
FUGIRAM...

CAPÍTULO V
SEM QUERER, A AMÉRICA ................................................. 123

CAPÍTULO VI
...MORRER PELO BRASIL ..................................................... 148

PARTE III
CUMPRIMENTE...

CAPÍTULO VII
EDUCAR O PRÍNCIPE? ......................................................... 179

CAPÍTULO VIII
COMEÇOU... ...................................................................... 210
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PARTE IV
SALVE...

CAPÍTULO IX
SEUS ANOS DOURADOS .................................................... 247

CAPÍTULO X
A PAIXÃO DE PEDRO... ...................................................... 264

PARTE V
O FIM...

CAPÍTULO XI
CIDADÃO DO MUNDO........................................................ 297

CAPÍTULO XII
TRAGAM-NO DE VOLTA... .................................................. 338

BIBLIOGRAFIA ................................................................... 375


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NOTA DO AUTOR

Sempre gostei de ouvir ou, até mesmo, refletir em


meu íntimo sobre a poderosa frase bíblica registrada no
capítulo 4 da segunda carta de São Paulo a Timóteo:
“Combati o bom combate, terminei a minha carreira,
guardei a fé”. Mais do que compor uma expressão de
impacto, tais palavras, acredito, traduzem uma lição de
como alguém deve se portar na vida.
Existe algo mais profundo e forte do que qualquer
decepção e, realmente, se não cremos hoje, perante todas
as vicissitudes que assombram a cena política do Brasil,
podemos dizer, tendo em mente o ensinamento de Paulo:
não cremos ainda!
É verdade que o Brasil não é mais o país do futuro;
envergonha-nos no presente. Todavia, existiram aqui
homens como Pedro II, responsáveis por nos encher de
orgulho até hoje.
Foi sobre Pedro que falei em uma palestra
proferida no Zarinha Centro de Cultura, em João Pessoa,
Paraíba. Na ocasião, recordo-me poderia ter me reportado
a respeito de qualquer outro personagem de qualquer
outro país, como, por exemplo, Churchill ou César. Mas,
não! Quis abordar a vida de um brasileiro e daí partiu a
ideia de escrever esta biografia em si.
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Muitos me disseram que remei contra a maré, o


que é uma verdade, todavia fiz isso imbuído pelo espírito
daqueles que reconhecem que, por décadas, “parte da
mídia e das escolas nos passaram a ideia errada de que
somos um povo fadado ao fracasso, sem virtudes. Como
professor, sei que isso provocou um dano enorme a jovens
que hoje estão perdidos, sem norte e sem referências.
Hegel costumava dizer que, na América, não existe
História, e, de um certo modo, fez-se sempre em nosso
país, e na América Latina, de uma maneira geral, a
apologia da natureza e não das pessoas, que, com os seus
sacrifícios, deram os passos, para lá do que imaginávamos
ser possível.
Em meio a isso tudo, como não falar de Pedro II?
Ele faz e deve fazer parte do nosso imaginário popular e da
nossa cultura, especialmente, quando dimensionamos
cultura como um conjunto de bens intelectuais
acumulados durante o passar dos anos.
Por isso, logo percebi que a história deste
brasileiro, de Pedro II, deve ser passada adiante. Ela
reforçará o senso da retaguarda das nossas próprias vidas,
da nossa origem. Sem as histórias de homens como Pedro,
estaremos perdidos no espaço e no tempo.
E, assim, feita a palestra para a qual escrevi toda
uma narrativa, resolvi adaptá-la a um livro. Ao escrevê-lo,
aproveitei o que vi de melhor em nossa literatura sobre as
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histórias de Pedro II e da sua família, dinamizando a


maneira como os fatos são descritos ao leitor, algo até
fácil, confesso, tratando-se desse personagem.
Sabemos que Pedro II não morreu no Brasil, mas
sim em Paris a 5 de dezembro de 1891. Fato com um
significado relevante, até porque não há brasileiro vivo que
não sonhe em conhecer a capital francesa e até se
belisque, quando percorre pela primeira vez as suas mais
lindas e importantes avenidas. Em outras palavras, se
Pedro II faleceu longe de seu país, faleceu no canto mais
próximo aos nossos desejos e aos nossos sonhos. Mais um
motivo, para chamar nossa atenção, já tão suscetível a
acompanhar e a se deliciar com a vida de um príncipe.
Aproveitei justamente a sua estada em Paris para,
ao menos nas primeiras páginas, caminhar ao seu lado por
alguns dias e fazer com que ele mesmo conte e comente a
sua história, que nos fale do menino, do marido e do
homem idoso, cuja vitalidade, consciência, orgulho e
simplicidade foram características tão marcantes na vida
de uma geração de brasileiros que viveu e morreu, sem
conhecer outra realidade que não a de ter Pedro II como o
seu monarca.
Se exagerei em alguns pontos, disse a verdade na
maioria das vezes; sempre usando as colocações mais
memoráveis dos autores dos vários textos escritos sobre a
sua vida, por exemplo, as de José Murilo de Carvalho, de
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ser Pedro um Habsburgo perdido nos trópicos, ou, ainda,


de ter sido ele, com a educação que recebeu, uma
máquina de governar.
No entanto, confesso que embora muito do que se
encontre aqui neste livro seja de segunda ou de terceira
mão, ele não está livre das inevitáveis simplificações de
que, infelizmente, ressentir-se-á o estudioso, assim como
também se ressente o próprio autor. Daí ter decidido por
fornecer uma bibliografia ao final, como um guia de
estudo, para quem queira algo mais detalhado ou mesmo
mais aprofundado.
Registro também como valeu apena escrever sobre
este homem, Pedro II, um personagem, até pelo muito que
falei, tão singular!
Permiti-me, autorizado pela liberdade que a
narrativa literária confere expor, de uma maneira clara, o
que para mim esteve subentendido nas cartas e nos
comentários que ele e os seus familiares trocaram ao
longo das suas vidas.
Abordei a sua franqueza, a maneira simples de ver
os fatos, a vivacidade de suas emoções e a forma como ele
as manifestava; a sinceridade que lhe conferia o dom
singular de impressionar quem quer que com ele
dialogasse, o seu charme e o seu ímpeto em se saber
alguém para quem a dissimulação era algo impossível,
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quer em relação àqueles que o cercavam, quer em relação


a ele mesmo.
Daí se demonstra, com exatidão, quanto esse
personagem é encantador e também quão dinâmico é o
nosso país, tão cheio de altos e baixos e de um curso
democrático tantas vezes interrompido por regimes
autoritários que deixaram marcas profundas em muitas
gerações de brasileiros.
Apesar dos contratempos, estamos abertos a novos
desdobramentos, e, se sempre acontece na vida algo
surpreendente, tais eventos serão eternamente capazes
de nos renovar como povo.
Convenhamos, não é só bonito, mas é até
encorajador, verificar em estudos como este, que, ao
longo de nossa trajetória, aconteceram coisas que
ninguém esperava: guerras, líderes como Osório, Paraná,
Caxias, Rio branco, viagens incríveis – citadas pelo
Presidente americano, Barack Obama –, amores outonais,
dignos de um Dickens ou Dumas. Isso, por si só, é capaz de
nos fazer sentir vivos e cheios de novas possibilidades.
Mais do que nos mostrar de onde viemos, isso nos mostra
até onde podemos ir.
Não há como não nos sentirmos orgulhosos ao
vermos que, se o século XIX foi a época de Bismarck,
Vitória, Sissi, Disraeli, Lincoln, Grant, Victor Hugo, Sherman
ou Salisbury, foi também a de Pedro de Alcântara, um
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brasileiro que era reconhecido e admirado por todos esses


personagens.
Sem mais, desejo a todos uma proveitosa leitura!
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PREFÁCIO

QUANDO UMA BIOGRAFIA


É ETIMOLOGICAMENTE SIGNIFICATIVA

Adianto que este é um livro instigante, visto que


retrata os últimos momentos de uma figura histórica de
relevância nacional, Dom Pedro II – nosso derradeiro e
mais ilustre imperador –, ao mesmo tempo que é
intrigante, pois usa um viés literário e criativo, para fazer
do próprio personagem narrador de suas experiências,
enquanto dialoga com convivas e amigos igualmente
interessantes – afinal, Pedro se encontrava com
pensadores, artistas e inventores de sua época, como
Alfred Nobel, Louis Pasteur, Victor Hugo, Machado de
Assis, Richard Wagner, Jean-Martin Charcot, Friedrich
Krupp e muitos outros.
Vale salientar que o trio de qualificativos
assonânticos não é mero recurso de estilo ou de lisonja
vulgar, uma vez que, particularmente, não nutro apreço
por biografias – em geral, classifico-as em três categorias
jocosas: maçantes, panfletárias e maniqueístas. A ojeriza
não é desmotivada, pois escritores desse gênero
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habituaram-se a personagens classificáveis: assertivos ou


controversos, resolutos ou inseguros, operosos ou
negligentes, visionários ou acanhados... Além de simplificar
fatos, para o entendimento do bronco leitor mediano,
apequenam-se os protagonistas, que se tornam
prisioneiros previsíveis da própria história, descrita em
realidade hiperbólica de relevância quase ontológica. São
recursos que me desconfortam, mas, infelizmente, usados
e abusados pelas editoras, em recorrentes apelos
comerciais desse filão de vendas cujo único rival é a
autoajuda. Basta adentrar em grandes livrarias, que me
deparo com rostos e poses de celebridades (Che Guevara,
Steve Jobs, Oprah, Roberto Marinho, Tim Maia, Antônio
Ermírio de Moraes, Napoleão, Nelson Mandela, Juscelino
Kubitscheck, Anita e tantos outros) ou com títulos que
induzem a autossatisfação estética ou financeira.
Não obstante, há certas narrativas biográficas que
se apartam da rigorosidade histórica e da “frialdade
inorgânica da terra” – se me permitem a paráfrase –, em
busca da humanização dos feitos e da comoção das
circunstâncias, dando à luz a expressão subjetiva de
momentos encadeados: aquilo que leigos chamam de vida.
Essa mescla de fatos e ficção encanta o leitor, e Felipe
Negreiros a conseguiu nesta obra, quando, mui
sabiamente, escolhera expor, amiúde, a vida de Pedro de
Alcântara, em narrativa de sua própria lavra. Longe das
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caquéticas ilustrações escolares, representantes-mor do


período colonial, com seus dotes e sua fartura de
prenomes e sobrenomes, o homem retratado aqui está
vivo, é saudoso, gentil, carinhoso e melancólico com suas
experiências, pois lhes são significativas. Similar a
Epimeteu, sente-se a apreensão tardia de Pedro em
reinterpretar os fatos que o levaram ao exílio e à
proclamação da República tupiniquim. Também nos
sensibiliza seu patente apreço à terra natal, em meio às
conversas com Isabel, sua filha. O filósofo madrilenho José
Ortega y Gasset refere-se à tentativa de esclarecimento de
vida como sendo “o homem mergulhado na história que
procura intensamente compreender-se”, uma descrição
crível e cabível ao reflexivo e acabrunhado ex-imperador,
que preterira os palacetes dos parentes europeus, para se
recolher em modesto hotel parisiense, até a sua morte, em
1891.
Em meio às copiosas referências (nomes, datas e
lugares), com didática e sensibilidade, o texto apresenta
uma narrativa tão vívida, que, por vezes, fica-se inseguro
em distinguir os recortes históricos dos ficcionais. O
protagonista detém a pena e o coro e, à moda de
Bentinho, faz prosa pessoal e exegética, porém longe de
ser rude ou (avidamente) parcial – aliás, postura
condizente com o perfil biográfico daquele que não
aceitara arcar com uma guerra civil, para defender seu
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trono. Adrede o autor explora esse fato e oportuniza ao


personagem a expressão de anseios, desafetos e ensaios
explicativos em relação às personalidades que lhe legaram
memórias, como Irineu Evangelista de Sousa (o visconde
de Mauá), José Bonifácio de Andrada e Silva e até seu avô
D. João VI. Outrossim, explanações de fatos de época, ora
vindas do autor-personagem, ora do autor de fato,
elucidam saberes de época, como a teoria psicanalítica, a
independência do Uruguai e a hegemonia político-
financeira britânica, conjunturas que delinearam a
geopolítica da primeira metade do século XX.
Conquanto haja fartas digressões, por certo,
visando a garantir o caráter educativo da obra, essas lições
se harmonizam em um fluxo de ensino, através das quais,
potencializa-se a assimilação dos dados históricos e se
instiga o encadeamento entre os supostos fatos objetivos
e as vivências particulares de Pedro e de outros membros
da Casa dos Orleans e Bragança. Ajuda, por óbvio, o bom
augúrio do ex-monarca, uma vez que, além de vitorioso em
conflitos bélicos, a exemplo da Guerra do Uruguai (1864-
65) e da Guerra do Paraguai (1864-70), era conhecido
admirador das engenharias, das artes e das ciências, como
geografia, biologia e história, bem como dos saberes
recém-estruturados, como sociologia, antropologia e
psicologia.
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Quanto dessa narrativa está consagrado pela


História? Decerto, muito, visto a ampla pesquisa
bibliográfica promovida pelo autor, entretanto ouso
asseverar que, a esse trabalho, cabe o título louvável e
agradabilíssimo de ingresso à vida de um ícone nacional.
Afinal, o polêmico Friedrich Nietzsche, contemporâneo do
século XIX, já alertava que se prendiam à pequenez do
conceito de verdade os espíritos que tentavam entender
os eventos como meros fenômenos em si. Por que não
colorir a complexidade que a existência engendra?
Dessarte, chega-se ao questionamento que figura
no título deste curto prefácio: “Quando uma biografia é
etimologicamente significativa?” Assente os filósofos que
os radicais gregos “βíoϚ” (vida) “ϒРάфє” (escrever) juntos
têm o significado de relato de vida, contudo certos relatos
sofisticam a passagem pela materialidade do ser em um
ensaio investigativo – quase ontológico – que gera empatia
entre leitor e personagem. Para além do encarrilhado
vagão da História, a narração nutre-se de vitalidade, ao
trespassar o tecido o objeto da linguagem e dos fatos e
tornar-se arte, afinal, como vaticinou Fernando Pessoa, “a
literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida
não basta”.
Escritores diferem-se de pesquisadores, estes
descobrem forças, seres e acontecimentos, aqueles
(re)encontram-lhes o significado e preenchem suas lacunas
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imageticamente com as filigranas da criatividade. Desse


receituário, fizeram uso Fernando Morais, em “Olga” e
“Chatô: o rei do Brasil”; Leonardo Padura, em “O homem
que amava os cachorros”; Ana Miranda, em “Boca do
Inferno”; Walter Scott, em “Ivanhoé”, e até o cômico Jô
Soares, em “O homem que matou Getúlio Vargas”. A bem
da verdade, nesta obra, “Pedro de Alcântara, o imperador
do Brasil”, sobressaem a historicidade e o mapeamento
temporal, mas são inegáveis a progressão narrativa e a
estratégia dramática que atam e avivam as lembranças
pessoais de um Pedro de Alcântara envelhecido, exilado e
recolhido, com os registros públicos do altivo e pacífico
Dom Pedro II, último imperador do Brasil. Ao fim da
leitura, como assevera Felipe Negreiros, tem-se a
impressão de que realmente a Nação perdera “uma figura
singular”.

Ivan Costa
Professor de Português, admirador e
entusiasta da língua e da literatura.
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Parte 1
OS PEDROS...
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Capítulo 1
POIS É...

O médico Jean-Martin Charcot se pôs de pé com


um salto!
4h da manhã.
Acordado por um tilintar ensurdecedor, tateou no
escuro para encontrar o lampião a gás, alojado acima da
sua cômoda. Estava ainda com sono, mas, mais do que
ninguém, aprendera que na vida não se faz sempre aquilo
que se gosta.
Por um instante, levantou a cabeça e apreciou a lua
ao alto!
Bem! Não tinha tempo a perder. Fez um rápido
asseio e, sentindo as cicatrizes das suas costas formigarem,
colocou as roupas, penteou os seus vastos cabelos
prateados com as mãos, não se importando com a dor que
sentia ou uma qualquer má aparência, chegando até a
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trocar um sorriso de deboche com a sua imagem no


espelho.
Não era mais um jovem, mas tinha o corpo rijo.
Deplorava a obesidade, evitando-a a todo custo! E
o seu porte físico – reconhecia –, devia-se a uma vida
calcada em forte disciplina; expressa por um misto de dieta
espartana e cama solitária à noite.
Some-se a isso o fato de ser razoavelmente alto.
Assim, era-lhe fácil se sentir apresentável.
Na verdade, tinha pouca vaidade e o que mais
odiava era se atrasar a qualquer compromisso.
A aparência para Charcot era o menos importante.
Daí, ao sair de casa, pegou o tílburi que estava a sua
espera sem muitas distrações, refletindo que, apesar de já
ter tido início a tão sonhada primavera, incrivelmente,
fazia um frio intenso em Paris.
O ano de 1891 era atípico, parecia até que o
inverno se prolongava. Nem as flores, que, em outras
épocas, enchiam as ruas e os olhos, tinham dado o ar da
graça. Estávamos já em abril, e as noites eram ainda
longas, com geadas e chuvas de granizo. Os jornais
chegaram a comentar com imenso sarcasmo que a cidade
mais se parecia com Moscou ou São Petersburgo do que
com uma localidade próxima às costas acaloradas do sul
do mediterrâneo e anunciaram que, em alguns recantos da
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Bélgica e do Vale do Loire, ocorrera uma tremenda


nevasca.
O frio estava tão cortante que não custou muito,
para que o ancião gigante, de vastas barbas brancas,
mirando o crepúsculo da janela central do hospital La
Salpêtrière, abotoasse o jaquetão. Pediu até ao funcionário
que passava por ele no corredor que trancasse a porta, à
frente de onde se encontrava. Tudo em busca de diminuir
a fria e incômoda corrente de ar que o atingia.
O tempo ruim teria de esperar, pois o velho
acabara de ser encontrado, justamente, por Charcot que
iniciava o seu plantão e com ele começara a desenvolver
uma conversa frenética e intrigante, na qual o referido
senhor muito lhe queria demonstrar o quanto ficava
insatisfeito por discordar das teses escritas pelo doutor em
um extensíssimo artigo publicado no Le Monde. O velho
falava sem parar que, em que pese a contribuição dele
para a medicina e quanto a Academia de Ciências da
França lhe era devedora, entendia que essas suas teses
ultrapassavam algumas fronteiras que não deveriam ser
rompidas. Por muitos séculos, a medicina foi associada à
bruxaria e, agora, mais uma vez, aproximamo-nos de algo
que demoraria para ser visto como um serviço médico à
altura de outros mais tradicionais que tanto contribuíram
para o desenvolvimento da química e da física,
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argumentava o mencionado ancião ao seu médico, em


contraponto ao que ouvia.
Muito embora essa conversa já estivesse acalorada,
até mesmo pelo tema abordado, que naturalmente
deveria despertar tanto interesse, as pessoas passavam
pelos dois e não se apercebiam que ali naquele corredor
encontravam-se duas figuras muito importantes. Um
deles, com a aparência sofisticada, sutil e aristocrática, era,
precisamente, Charcot, o médico que criou, ao lado dos
austríacos Joseph Breuer e Freud, a psicanálise e a
moderna neurologia, dando asas ao conhecimento das
mais diversas doenças, como, o aneurisma e as causas da
hemorragia cerebral. O outro, um senhor, que, segundo
Gladstone, o primeiro ministro da Inglaterra, o país mais
poderoso do mundo, foi o maior sábio e estadista do
século XIX. Sim! O velho de barba bem cortada, a qual
emoldurava um rosto tipicamente alemão, era Pedro de
Alcântara, até alguns meses atrás, de acordo com o mais
importante dogma da Constituição do país em que nasceu,
o imperador e o defensor perpétuo do Brasil.
Os passantes não reconheciam o senhor simpático
que tanto encantou os europeus e os norte-americanos
com a sua inteligência e erudição, mas que agora parecia
assumir um papel diverso daquele que o acompanhou ao
longo da vida, afastado de qualquer paramento ou
soberba, muitas vezes própria a um membro de suas duas
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famílias: Bragança e Habsburgo. E ter um papel diferente


daquele que teve ao longo da vida, diga-se, foi uma
decisão tomada há algum tempo, mais precisamente no
começo do ano de 1878.
Isso era algo tão presente em sua vida nos
momentos passados na França, que, no meio da conversa
com Charcot, Pedro começou a mirar o horizonte e, sem
que o seu médico percebesse, deixou de ouvi-lo. Passou a
divagar e a recordar o dia em que o barão de Mauá o
chamou entusiasmado em um jantar de gala oferecido a
um conde português, no palácio de São Cristóvão. Pedro se
lembrou de que ainda não estava aclimatado à rotina de
sua corte, neste dia, por causa de uma viagem oficial que
tinha empreendido aos Estados Unidos, ao Oriente Médio
e à Europa. Recordou ainda que esse barão empresário
que tanto o irritava e, Pedro sabia, passava àquela altura
sérios problemas financeiros em sua casa bancária, queria
apresentar-lhe uma moça. Dizia, sem parar, que ela era
talentosíssima. “Até imaginei”, Pedro pensava, “tratar-se, a
princípio, de uma paixão súbita sobre a qual, tempos
depois”, continuava Pedro, “escrevi em meus diários. Na
verdade, não tive dúvidas de tratar-se, no mínimo, de uma
protegida, o que é natural. Sendo o barão quem era,
sempre se entusiasmava exageradamente, como uma
criança diante de um brinquedo novo, para que se visse
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uma pessoa talentosa. Mauá”, lembrava ainda, “foi


realmente um homem bem contraditório”.
“Apesar de muito agitado e de ter esses arroubos
infantis, era admirável! Como esquecer a dignidade com
que liquidou os seus negócios e veio morar em Petrópolis,
como um humilde comerciante de café? Exerceu essa
profissão até morrer, às vésperas do golpe militar que
derrubou o império”. Pedro recordava também, sempre
falando para si.
“Bem! Sei que este homem, segurando a minha
mão, mostrou-me uma senhorita que tocava ao piano e
animava os ouvintes, entre os quais estava o franzino
Machado de Assis, autor de uma obra que, sabia eu, seria
um marco da literatura brasileira: ‘Memórias Póstumas de
Brás Cubas’”. Pedro refletia sobre isso até mesmo pelas
outras obras que tal autor escreveu, sempre em português
perfeito, que, indubitavelmente, teria dado inveja ao
próprio Camões. Na passagem, contudo, lembra
igualmente que Mauá quase trombou com Osório e Caxias.
O pior só foi evitado devido à agilidade que o primeiro
possuía, embora a guerra do Paraguai o tenha deixado
cego de um olho: Osório conseguiu puxar Caxias para
perto de si. Ambos, por sinal, confabulavam
animadamente.
“Oh! Como teria o duque, orgulhoso e reservado
que era, odiado Mauá, se o tivesse feito derramar a sua
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taça de suco”, dizia mais uma vez a si mesmo. Pedro sabia


que Caxias, o seu antigo professor de esgrima, já não mais
tinha os reflexos de antes e quanto ele se compadecia
disso. Teria perdido a noite, como a teria perdido também
se o suco houvesse derramado sobre Osório.
Aliás, Osório – que já era senador do império – e
Caxias estavam muito felizes naquela festa e, apesar da
lentidão dos movimentos, os dois aparentavam estar
muito bem de saúde. Ninguém que os visse adivinharia
que Osório morreria menos de um ano depois, acometido
de pneumonia, assim como o Duque, que morreu menos
de dois anos depois.
Pedro puxava pela memória e recordava que, ao
passarem por Osório e pelo duque de Caxias, tanto ele
como Mauá começaram a ouvir atentamente a mulher
baixa e espevitada que, ao se apresentar, disse se chamar
Francisca Edwiges Neves Gonzaga ou, simplesmente,
Chiquinha Gonzaga.
“De início todos se surpreenderam com o fato de
fazer-me reverência, ao mesmo tempo em que dizia ser
uma mulher autônoma, uma musicista que, com sua arte,
ganhava a vida. De fato, adorei ouvi-la falar a respeito de
ter um nome artístico, algo que, segundo ela, era natural
ao mundo dos que se sabiam importantes ou nem tanto,
mas que se sabiam ter, digamos, um estilo próprio. Ou”,
continuava Pedro raciocinando, “uma certa fineza, não só
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de origem, mas de trato com a vida e com o que lhe


ocorria no seu dia a dia. No seu cotidiano”, assinalava.
Pedro, olhando para Charcot, embora sem ouvir o
que o médico lhe dizia, imaginava que o que Chiquinha
Gonzaga dissera significava assumir um segundo papel na
vida, uma outra personalidade, que, a partir daí, Pedro
começou a construir, especialmente quando estava fora do
Brasil e de São Cristóvão. “Que o digam”, reconhecia, “as
minhas idas a Petrópolis”. Lá passou a adotar um padrão
diverso daquele próprio a um rei e mais próximo ao de um
cidadão comum. Neste momento, deixando essas imagens
para trás, voltou a prestar atenção em Charcot que falava
entusiasmado sobre a disciplina criada ainda há pouco a
respeito das doenças do sistema nervoso, e quanto as suas
aulas causavam alvoroço nos salões dos estudantes em
todo o Quartier Latin. Começara até mesmo a adentrar um
assunto ainda mais intricado sobre o qual Pedro não tivera
conhecimento prévio, pois sobre o mesmo nada tinha visto
nos artigos publicados nos jornais dos últimos dias, ainda
que passasse grande parte do seu tempo debruçado sobre
o que se dizia na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, para lá
do que também se noticiava na França.
Charcot contava que tinha plena certeza de que as
perdas na primeira infância deixavam sequelas
inimagináveis, traumas que poderiam provocar angústias,
depressões e, até mesmo, fazer com que alguém
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simplesmente deixasse de ter vontade de viver e optasse


pelo caminho do suicídio ou da invalidez completa.
Mexendo-se, Charcot expunha quão exitoso era o
tratamento por meio do hipnotismo, capaz de, por
persuasão ou narcóticos, induzir alguém a um estado de
vigília, deixando a pessoa em transe profundo, capaz de se
expor, assim, de uma maneira não só mais natural, como
também absoluta, livre de qualquer amarra proveniente
de pudor ou medo. Charcot dizia que quem lhe contara
usar muito esse método fora justamente Freud, e o
psicanalista austríaco até lhe avisara que viria vê-lo em
janeiro, para que ambos escrevessem um extenso artigo
sobre esse assunto, detalhando com mais miudeza como
deveria transcorrer esse tipo de tratamento clínico.
Charcot contava, ainda, que Freud escrevera-lhe
dando detalhes sobre os seus estudos acerca da utilização
da técnica da hipnose para o acompanhamento dos
pacientes com histeria, como forma de acesso aos seus
conteúdos mentais.
– Sabe, Pedro, para Freud, a causa da histeria seria
meramente psicológica e não orgânica, tratada em um
ambiente médico por meio de uma conversa entre o
psicanalista e o seu paciente, não por meio de cirurgias
lesivas ou nocivas à saúde de alguém. Para ele, o mal não
estaria no corpo, mas na mente das pessoas. Isso, em que
pese ter vindo de um neurocirurgião como Freud –
36 | Felipe Negreiros

informava Charcot a Pedro –, certamente servirá de base


para outros conceitos a serem desenvolvidos, como, por
exemplo, o do inconsciente.
Pedro, até mais de uma vez, imerso em seus
próprios pensamentos do que naquilo que lhe falava
Charcot, ponderava que, no início da vida, deve-se chamar
atenção para os seus feitos a todo custo, mas, durante o
passar dos anos, deve-se ir adaptando-se, também
constantemente. Então, Pedro dizia que via falhas no
comportamento de Freud, expondo que:
– Embora saiba que tudo deve ser estruturado pela
marca do bom senso, sei também que há cantos em que o
bom senso não pode entrar. E é por aí que vejo que Freud
pode ter até uma certa razão, todavia, se um ar de
mistério, Charcot, funciona como uma maravilha para todo
aquele que almeja desenvolver uma aura de poder e se
fazer notado, essa aura deve ser comedida e controlada,
algo a que essa última tese desenvolvida por Freud não
obedece e para qual, menos, atenta. Freud rechaça uma
ideia, mas deveria trabalhar mais as soluções para o que
ele não aceita.
De acordo com Pedro, Freud naturalmente possuía
uma imaginação fértil, fácil de flertar com os limites da
fantasia. Desta feita, permanecia na crítica do método,
sem trazer respostas para as dúvidas que criava,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 37

sugerindo-nos um contexto fluido, para dizer o mínimo,


pois visão sem execução seria alucinação.
Ignorando esse comentário de Pedro, Charcot,
ainda mais entusiasmado, continuava explicando que, daí,
seria possível fazer com que o paciente entrasse em um
mundo de ilusões, tanto auditivas quanto visuais, capaz de
levá-lo a regredir à infância e a trazer à luz os sofrimentos
que o afligiam, desembaraçando o indivíduo de seus
males.
Pedro prestava atenção a tudo, embora, neste
ponto da conversa, novamente, Pedro não mirasse o
médico. Alheio ao entusiasmo de Charcot, Pedro lançava
os olhos, mais uma vez, para bem longe. Procurava refletir
se a maneira como deixou o seu país não lhe provocaria
marcas que demorariam, para curar. A todo instante,
indagava-se se tudo poderia ter sido diferente. Tinha
dúvidas se deveria ter ido a Minas Gerais no dia do golpe
militar e resistido, como lhe sugerira o genro; mas não!
Sabia que era a hora de o país encontrar os seus próprios
caminhos. Jamais poderia concordar em ver derramado o
sangue do seu povo, de ver lutando brasileiros contra
brasileiros. Claro que, independentemente de ter evitado
uma guerra civil, preocupava-se com a possível futura
decadência das elites e a ascensão de uma classe mais
pobre, marcada por uma terrível ausência de fidelidade ou
admiração aos mais ricos que deveriam lhes servir de
38 | Felipe Negreiros

exemplo. Gente que não se interessaria por saber o que


houve com o seu país e, por não conseguir entender o
passado, estaria condenada a repetir sempre os mesmos
erros no futuro.
“Muitos diziam, que a minha calma no dia do golpe
militar parecia infinita! Verdade que o meu equilíbrio era
notável e quem o viu achou, com razão, que,
simplesmente, não me importei com o fato de ser banido
do país que nasci e governei por mais de quarenta anos.
Ora, não viam que externar desespero, ódio, raiva ou
rancor estava abaixo da dignidade imperial que me
impuseram desde o meu nascimento? Fui criado para
nunca me igualar ao meu pai em seus rompantes de
humor, mas parecer digno e equilibrado como a minha
mãe. À minha maneira, quieto e introvertido, preferi me
calar” – refletia Pedro.
Embora sem ignorar o medo enorme que o afligia
de acabar por ser o último homem público que pensou e
se preocupou só com o seu país. Torcia, para que surgisse
logo alguém que, como ele, marcasse, de maneira positiva,
a vida política do Brasil, disseminando ao seu povo os
elementos essenciais de felicidade, de amor e de
simplicidade. Ao longo de quase meio século, ele
acompanhou, de perto, todas as questões de Estado,
muitas vezes, entrando em choque com os seus ministros.
Sua interferência foi particularmente notável na condução
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 39

tanto da política interna como externa do Brasil, dando


provas de grande patriotismo. Era contra o imperialismo,
mas sabia que este só, no futuro, deixaria de ser um credo
quase religioso.
Isso tudo o levava a se perguntar quando nasceria a
República que ele defendia e sonhava implantar.
Entraríamos no inevitável avanço da marcha da História
rumo a um futuro melhor, cujo conteúdo poderia até não
ser de todo claro, mas certamente nos levaria a presenciar
o triunfo da razão, da educação e da tecnologia. Pedro
queria saber como os gritos dos fanáticos e dos grosseiros
seriam silenciados pelas vozes unificadas da decência, que,
em um ambiente propício, erguem-se para enfrentá-los.
Essas eram questões que o acompanhavam onde quer que
estivesse, sempre lhe alterando o espírito.
Recordava-se de que, quando não estava em Paris,
ia a Cannes passear com os netos, procurar conchas nas
praias, no entanto as notícias sobre o lugar em que nasceu
e amava deixavam-no transtornado. A toda hora, falava de
suas preocupações à filha mais velha, a única que restava
viva e vinha vê-lo onde ele estivesse.
Mantinham o hábito de realizar juntos, ao menos,
uma refeição por semana, quando se encontravam em
uma mesma cidade. Em todas essas ocasiões, ao final das
conversas, para amenizar a dor que o angustiava, dava-lhe
um ramalhete de flores, sempre junto a um poema bem
40 | Felipe Negreiros

infantil terminando com o sufixo “eta”: careta, perneta,


trombeta.
Volta e meia, entre uma xícara ou outra de café,
Pedro virava-se e perguntava:
– Filha, e o Brasil? Tem recebido cartas, você ou o
seu esposo? Ouro Preto disse-lhe algo nas últimas vezes
que o viu? Que falam os jornais brasileiros que lhe chegam
aqui? Que se percebe deles? Que conclusão você faz deste
momento?
Isabel, com a voz baixa e pausada, desconversava,
falava de sua vida na Europa, da escola dos filhos, sobre
quão agradáveis eram os vizinhos Rothschild, na
proximidade que tinham de outros centros, como Londres
ou Viena, das salas de Mayfair, de onde se podia encontrar
as líderes da moda ou as gravuras dos últimos penteados,
e sobre poder frequentar a temporada de concertos e
óperas.
Como isso o entristecia! Será que a sua filha não
percebia o quanto o seu pai sempre seria vinculado ao
Brasil? Por qual motivo as datas comemorativas brasileiras
seriam reverenciadas por ele, ainda nesse exílio, ao qual,
viu-se imposto?
Até o 13 de maio passou a fazer parte das
comemorações. Pedro em 1890 escreveu uma saudação,
justamente, para a filha pela data.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 41

Já nesse ano de 1891, Pedro desejava-lhe entregar


algo em sua homenagem. Assim como fez em 7 de abril,
data em que o seu avô abdicou ao trono brasileiro, em
1831.
“Será que Isabel não se apercebia disso?”,
indagava-se Pedro, particularmente, sobre o fato de Isabel
não enxergar ser a preocupação pelo seu país que o levava
a receber sempre os mais diversos estadistas brasileiros
que o procuravam.
Pedro pensava, sobretudo, no período em que
passou hospedado na casa do conde de Nioac.
Especialmente nos saraus, encontros, jantares e pequenas
recepções. Todas lhes oferecidas e as quais participaram a
nata dos brasileiros, exilados ou não, como Eduardo Prado,
Ouro Preto, Lafaiete e Rio Branco, sempre ladeados por
celebridades estrangeiras como Sarah Bernhardt e Eça de
Queiroz.
“Certa vez disse isso a Isabel de maneira direta,
logo após visitar pela primeira vez a Torre Eiffel, mas ela
nem quis ouvir”, lembrava-se Pedro.
Na realidade, Isabel insistia que o pai comprasse
uma casa. Seria muito mais barato e até mais confortável
do que morar em um hotel. Lá teria mais criados à sua
disposição, além dos jardins, tanto para caminhar como
para tomar o seu necessário banho de sol. A filha falava
muito sobre isso, e esse assunto o deixava irritado, pois
42 | Felipe Negreiros

não havia cometido qualquer crime para ser expulso de


sua Pátria, sobretudo quando o país era governado por
oportunistas despreparados e inescrupulosos. Ouro Preto,
o presidente do último Conselho de Ministros que
nomeou, voltara ao Brasil e dizia a todos que a experiência
do que lá se implantou provou-se uma lástima.
Pedro não se esquecia de quando os amigos, no dia
de seu aniversário, falaram-lhe da nova Constituição e lhe
disseram que ela permitia o retorno dos brasileiros.
Recorda-se tanto do júbilo, ao saber da notícia como da
tristeza seguida, ao descobrir que quanto a si e à sua
família mantinha-se proibido o regresso: para Pedro não
existia uma punição maior a ser infligida a um cidadão.
Embora não fizesse questão de restabelecer a monarquia,
desejava retornar ao seu país, mas os militares queriam
evitar a sua presença, pois temiam a sua liderança,
sobretudo, quando a República instaurada ardia com
greves, epidemias sem controle, e falência do Estado.
O governo instaurado esquecia que Pedro preferiu,
como o pai, tanto sofrer as saudades da pátria a permitir
que se derramasse o sangue do povo brasileiro, como ter
sempre alardeado o seu desejo de abdicar, caso não se
achasse ainda capaz de trabalhar para o que considerava
até como uma evolução natural: transformar a Monarquia
em uma República.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 43

Joaquim Nabuco, correspondente do Jornal do


Brasil em Paris, escrevia-lhe sobre uma “linguagem de
descontentamento crescente, motivada pela corrupção”.
Partidários não lhe faltavam; aumentava o número dos
chamados sebastianistas, que, tal qual os que, em
Portugal, esperavam pelo regresso do último rei da Casa
de Avis, queriam o seu retorno. Mesmo o New York Times
publicara sobre a tentativa de volta do seu neto Augusto
de Saxe, oficial da marinha, que chegou a alcançar a Bahia
e, mesmo sem desembarcar em solo brasileiro, pois foi
impedido de fazê-lo pelo governo provincial, chegou a ser
visitado por inúmeras autoridades que foram ao seu
encontro na embarcação e o convidaram a, de lá mesmo,
lutar, liderar um movimento de restauração do antigo
regime. De fato, muitos políticos brasileiros faziam questão
de expressar o quanto sentiam falta da inteligência do
Imperador, do seu sorriso tímido que não escondia a
riqueza de sua fala, honestidade de análise e uma
paciência infinita para escutar. Diziam que a ascensão de
um parente seu, poderia relativizar tal sensação de perda.
Era uma sucessão de lamentos que ecoavam
também no meio intelectual existente fora do Brasil. Na
verdade, desde que pusera os pés na Europa, Pedro
recebia centenas de cartas e telegramas de diversas partes
do mundo. O astrônomo Camille Flammarion, por
exemplo, alardeava sobre uma negra ingratidão que o
44 | Felipe Negreiros

havia feito sair do Brasil. Já o arquiteto francês que


projetara a L’Opéra de Paris, Charles Garnier, escrevera-lhe
se solidarizando. Escritores e filólogos prestigiados como o
conde Angelo de Gubernatis, por outro lado, chegaram a
lhe suplicar para ir morrer em Florença, ressalvando o
quanto essa cidade saberia cultuar a sua pessoa.
No entanto, embora volta e meia se perdesse
nesses tipos de reflexões e até se sentisse confortável com
tais lamentos, propagados pela imprensa internacional,
Pedro sabia que nem Augusto de Saxe nem o seu neto
mais velho, Pedro Augusto, tratado – na ocasião – por
Freud, iriam a substituí-lo. O primeiro era muito imaturo e
desejava apenas seguir a carreira militar, enquanto o
segundo se mostrava gravemente doente, dando mostras
de problemas psíquicos irreversíveis.
É bem certo que o ano de 1891 começara
particularmente trágico para o Brasil. Além da malária e da
tuberculose, assolaram a população do Rio de Janeiro as
epidemias de varíola e febre amarela. Já neste mês de
abril, a taxa de mortalidade prevista atingiria, certamente,
seu mais alto nível. Falavam até que a prima de Pedro, a
rainha Vitória, defendera a concessão de um adicional de
insalubridade ao corpo diplomático britânico situado na
antiga corte.
Ademais, o clima de instabilidade e o crescimento
da dívida externa apavoravam os investidores estrangeiros,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 45

especialmente esses mesmos ingleses. Era voz corrente


que a praça do Rio de Janeiro fora inundada por dinheiro
sem nenhum lastro e isso provocara um encarecimento
surpreendente dos produtos importados, que
representavam praticamente a totalidade dos bens de
consumo das famílias brasileiras. Logo seria necessário o
dobro de mil réis, para se comprar uma libra esterlina. A
inflação galopava
e a perda salarial já chegara à porta da casa dos operários.
Comerciantes repetiam sem parar: “O único recurso é
restaurar a Monarquia”. O Standard, o Manchester, o
Examiner ecoavam ser a solução um governo forte, nas
mãos de um rei, defendendo que em um ambiente em que
há uma classe média fraca, necessita-se de um príncipe,
para quebrar a resistência ao progresso, feita pelos
arraigados interesses de uma burocracia incompetente,
fundada no vício do compadrio que só sabe se locupletar
do dinheiro público. Ferroviários, marítimos, estivadores,
cocheiros e condutores de bondes promoviam as primeiras
paralizações de serviços. Houve violências e mortes, algo
impensável, se o país ainda estivesse sob a tutela de
Pedro.
Porém, a verdade era uma só e, por mais que ela
doesse, Pedro deveria reconhece-la, para o seu próprio
bem: não havia por que crer em fantasias, pensar em
46 | Felipe Negreiros

hipóteses ou em circunstâncias que o levassem a imaginar


que tudo poderia ter sido diferente.
Claro que uma classe média fraca necessita e gosta
de um monarca, para vencer a resistência ao progresso,
gerada por enormes interesses clericais e aristocráticos.
Claro que, ao se proclamar a República da maneira como
se fez, provocou-se uma ruptura em um caminho que
ainda estava por ser percorrido, e acabou por impedir que
Pedro e a sua dinastia concretizassem no Brasil um
ambiente político onde o equilíbrio entre os interesses da
coroa, do povo e do parlamento fosse alcançado, onde
cada um deixasse de olhar para os seus próprios interesses
e passasse a olhar para os interesses do país.
Pedro sabia de tudo isso e se angustiava. Ele via
que o país que deixou ainda não estava maduro para
enfrentar os problemas que os europeus e os norte-
americanos enfrentaram, até com sucesso, adequando o
seu sistema político às realidades que se avizinhavam com
o advento do século XX.
Volta e meia, Pedro comentava, com ar de muita
preocupação, que os países europeus e mesmo os EUA, no
momento triste em que se afastou do trono justamente o
avô do seu genro, o conde D’Eu, ao constatar o fato de que
as organizações ilegais eram naturalmente menores que as
legais, perceberam que isso levaria à transformação das
sociedades carbonárias secretas em sociedades proletárias
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 47

revolucionárias, por exemplo, a Liga Alemã dos Proscritos,


que, por sua vez, transformou-se na Liga dos Justos e na
Liga Comunista, responsável por comissionar os trabalhos
de Marx e Engels, principalmente o “Manifesto
Comunista”, que Pedro lera tantas vezes e ao qual tantas e
tantas críticas fez, e isso tenderia a afastar a classe média
(termo que apareceu pela primeira vez em 1812) da
política, deixando-a ao mando das classes operárias mais
radicais.
Eles evitaram que os extremos sufocassem os seus
sistemas políticos fortalecendo o ensino primário, fazendo
com que nesse ambiente, além de se preservar o
surgimento cada vez maior de uma aristocracia culta, se
permitisse que as classes baixas evoluíssem por meio do
mérito, aumentando-se assim o número das pessoas
prósperas, cultores da arte de qualidade e dos valores da
honestidade e do exemplo. Para Pedro, enquanto isso não
acontecer entre nós, a cultura brasileira será sempre o eco
de um eco ou até pior, a sombra de uma sombra, em que
todos se apegam a quantidade, declarando que o volume
de uma produção pretensamente científica, mas
verdadeiramente irrelevante e repetitiva, é prova de
criatividade. Isso, segundo Pedro, só dá desinteresse sobre
o sentido da vida, letargia, quando não prende a
inteligência de um país à esfera do econômico imediato,
de uma maneira que até as classes mais letradas não têm
48 | Felipe Negreiros

forças sequer para tomar consciência da sua própria


miséria espiritual. Uma classe que, no máximo, terá na
satisfação das ambições mais fúteis, os meios e a ocasião
de se anestesiar, através de ideias sem sentido, contra o
sem sentido das suas vidas.
Uma pena, mas, por mais que tudo isto doesse
nele, a realidade era que a sua filha, a princesa Isabel,
realmente se estrangeirara, e isso ocorreu a partir de seu
casamento. Ela gostava da Europa e da civilidade de lá;
Isabel era uma senhora rica, quase anônima, no lugar onde
os recursos disponíveis para fazer valer toda a sua fortuna
são os mais diversos. Ela adorava tudo isso e dizia sempre
que queria salvar a alma dos filhos e mantê-los longe do
Brasil era a melhor opção.
Isabel vivia de igreja em igreja, no máximo
participava de algumas inaugurações de hospitais, de
escolas, realizando obras de caridade; eram desculpas. Na
realidade, desistira do seu país há muito tempo: achava-o
bucólico, porém trabalhoso, de elite ainda muito inculta.
Eram problemas que Isabel não encarava como seus, já
que a tiraram do poder espontaneamente, sem que ela
trabalhasse ou mesmo fizesse algo que sugestionasse isso.
Era uma pena, pois os recursos disponibilizados em sua
educação iam por terra perante tais escolhas. Todos
sabiam quanto ela estava preparada, ao menos
teoricamente, para o exercício da missão de governar um
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 49

império como o do Brasil, bem como posicionar-se da


maneira mais elevada, acima dos partidos e assim ser
reverenciada por toda a Nação.
Pedro não escondia de ninguém tais opiniões,
repetindo sem parar: “Isso me entristece enormemente!
Até o seu marido eu o eduquei, para ser não só um
príncipe consorte, mas o verdadeiro amigo e conselheiro
da futura soberana. A coroa de Isabel teve em mim um
defensor dedicado, leal, sincero e confiável. A sua apatia é
um mal irreparável ao Brasil. E para que ela enxergasse
quanto estava errada, sempre disse à mesma aquele
jargão de que viverei como um turista, nunca me tornarei
algo que não seja brasileiro”.
Com o tempo, profetizava Pedro, sentiriam os erros
e, por seu exemplo, veriam saídas através de pessoas que
ainda poderiam salvar o Brasil e fazer dele uma
democracia, nos mesmos moldes daquela de Jefferson,
Franklin ou Washington. Escolheriam um líder que
conseguisse que mero poder não tivesse atração sobre si,
mas sim, resumisse em sua pessoa a figura de um rei de
verdade, a cabeça coroada de um povo; alguém cercado
de todas as circunstâncias apropriadas a um homem
público: frio, pontual, metódico, avesso ao sucesso fácil,
consciente do quanto precisa viver no pináculo da
sociedade e ter uma história exemplar, devotada ao
serviço dos seus súditos.
50 | Felipe Negreiros

“Os mitos desmoronam por si mesmos, mas só


podem ser totalmente banidos pela verdade”. Acredito
fortemente no fato de que, naturalmente, surgirá uma
aristocracia altiva e independente, que conquistará o
respeito, superando esse estatuto de economia
dependente e mera produtora de alimentos e outras
matérias primas. Até porque, o nosso povo impressionará
o mundo, demonstrando soberania, paixão, coração
ardente e coragem de ir contra a maré com pensamentos
não anacrônicos, incorporando não só uma História de
ontem, mas também uma de amanhã. A Europa, nesta
quadra das nossas vidas chamada de Era ‘Vasco da Gama’
– um período em que o mundo ou, ao menos grande parte
dele transformou-se a partir de uma base europeia, em
que (se não nos limitarmos a um ideário restrito e franco-
britânico) alguns poucos Estados europeus e forças
capitalistas europeias estabeleceram um domínio
completo sobre todos os demais continentes –, um dia,
verá o Brasil como uma potência e o tratará em pé de
igualdade com qualquer país, incluindo aí os Estados
Unidos e a Argentina. Não tenho dúvidas de que isso
acontecerá!
Pedro realmente torcia para que, no Brasil, surgisse
uma aristocracia à altura de perceber o florescimento
gerado na Europa daquele período e que aproximasse
nosso povo de Beethoven ou Schubert, Goethe, Dickens,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 51

Dostoievski, Verdi, Pushkin e Balzac. Isso para não


mencionar uma série de outros nomes que seriam gigantes
em qualquer época ou em qualquer país.
Sempre que podia, Pedro realçava a cultura que
tínhamos como uma maneira de prestigiar a nossa
intelectualidade. Mesmo no exílio e já sem dinheiro,
continuava trabalhando em prol de conferir
respeitabilidade ao nosso patrimônio cultural. Tanto que
há poucos meses, antes de partir para visitar a condessa de
Barral com a família, participou de uma entrega de
prêmios no Colégio Stanislas, em Cannes, onde os netos
estudavam.
Lá distribuiu aos alunos vencedores uma obra que
tinha escrito com frases a respeito da educação nas mais
diversas línguas, começando pelo hebraico e terminando
com o tupi.
Nesses momentos Pedro dizia sempre para si: “O
fato de se ter tudo isso se devia a existir na Inglaterra,
Rússia, Alemanha ou Áustria-Hungria um público erudito
que atraiu, prestigiou e assim incentivou tais talentos.
Houve quem se deleitasse com Schiller, ouvisse as
‘Estações’ de Haydn, as ‘Primeiras Sinfonias’ e os
‘Primeiros Quartetos de Beethoven. Oxalá surja alguém
que, apesar de mentecapto, tenha um refinamento do
gosto que permita a um Goya, perdido, pintar uma obra
como a comissionada pelo meu primo, chamada de
52 | Felipe Negreiros

‘Retrato da família do rei Carlos IV’; alguém que goste de


romances e invista em um Walter Scott brasileiro,
permitindo que também se pinte ‘O massacre de Chios’, tal
qual fez Delacroix; ou mesmo escreva um ‘Inspetor Geral’,
como fez Golgol, ou o ‘Pai Gorito’, como produziu Balzac”.
E foi refletindo sobre isso que Pedro, de repente,
virou-se e olhou para Charcot, não conseguindo controlar
o riso. Curioso, o médico lhe perguntou qual o motivo de,
particularmente hoje, sentir-se tão feliz.
“Lembranças, meu amigo, lembranças, simples
curiosidades sobre o passado, mas que são importantes
para homens como nós que desejam compreender como e
por que o mundo e os nossos países vieram a ser como são
hoje, e para onde se dirigem”, repetia, puxando o médico
pelo braço, convidando-o a deixá-lo junto à saída do
edifício, sempre lhe falando de que a soma de
conhecimento humano era a única coisa de que um
homem certamente podia ter orgulho. Disse-lhe, ainda,
que já era hora de retornar ao seu hotel, e, se possível, às
suas leituras da noite.
Pedro assim o fez, mas não sem antes dizer a
Charcot: “Ao conversarmos sobre a neurociência, senti em
você o mesmo entusiasmo que vi em Krupp, quando ia
abordá-lo pelas manhãs sobre um tipo de arma nova que a
sua fábrica estava produzindo. Por sinal, conversávamos
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 53

sobre isso todos os dias, em que estive hospedado em sua


mansão”.
Krupp só falava dos canhões de aço que Moltke lhe
encomendara, sob os auspícios de Bismarck e do Kaiser,
meu primo, Guilherme I, da Alemanha – Pedro lhe contava.
E, continuando: Na ocasião, fiquei um esperto em
artilharia e nas mudanças que se empreenderam no
estado-maior prussiano durante a guerra que derrubou o
antigo imperador da França, Napoleão III, mas o que de
fato me faz rir, Charcot, nem é o que me recordava o
ânimo de Krupp ou a sua empolgação, sobre a
neurociência. Veja só! Dias atrás, quando estava sentado
em um banco nos jardins de Luxemburgo, olhando para
aquela enorme coleção de exuberantes estátuas e
pequenos lagos, uma menina se aproximou de mim e ficou
ao meu lado, encarando-me espantada. Estranhei o fato de
a criança não estar correndo com as outras, mas, ao
contrário, ter ficado parada, bem à minha frente.
Confidenciou-me que nunca tinha visto um senhor de
barba tão grande, nem nos livros de história que a mãe lhe
contava antes de dormir ou mesmo nas peças de teatro de
marionetes que assistiu.
Pedro ria reiteradas vezes, ao lembrar que a
menina lhe perguntou o que fez na vida, em que
trabalhou. Como esquecer o ar pomposo e de entusiasmo
triunfante em que lhe respondeu, mirando-a nos olhos:
54 | Felipe Negreiros

– Eu? Fui o imperador do Brasil!


Achava graça ao recordar que, com os olhos ainda
mais arregalados, ela lhe perguntou sem qualquer pudor,
pronta para levantar e sair correndo pelo parque com
destino ao teatro de fantoches, cuja próxima apresentação
começaria naquele instante:
– Brasil? Que é isso?
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 55

Capítulo 2
BRASIL BRASILEIRO...

Pedro acordou muito cedo, especialmente para


este abril invernoso. Dormiu bem e, apesar de achar
bastante simples o hotel em que se hospedava, elogiava o
tamanho da cama, apropriada para seus quase 2 metros de
altura, assim como a maciez dos travesseiros e do colchão.
Ao levantar, gostava logo de abrir as janelas do seu
quarto na Rue de L’Arcade e sentir o cheiro de Paris. Era
algo que lhe agradava tanto, sem nem saber o porquê,
especialmente pela manhã, quando sempre uma breve
neblina emprestava às casas e às árvores, ao redor, um
odor que não sentia em nenhum outro lugar do mundo.
Fazia isso antes de realizar o asseio que antecedia o
seu singelo café da manhã, tomado ali mesmo, no andar
térreo. Sozinho, como de costume, bebia uma quantidade
absurda de café, em um ato de flagrante teimosia e
desobediência ao apelo dos parentes e de seus médicos.
56 | Felipe Negreiros

Era estranho, mas durante os seus cafés da manhã,


Pedro gostava de contar a quem o estivesse
acompanhando nas mesas ao lado que via muitas
semelhanças entre Paris e o Rio de Janeiro. Reparava
existir, nessas duas grandes cidades do mundo, um certo
cosmopolitismo que fazia com que mesmo quem não
nascesse em uma ou em outra cidade se sentisse como
mais um dos seus nativos. Claro que existia uma imensa
diferença entre o francês e o brasileiro, suspirava, mas isso
se devia mais à distinção entre o tipo de homem que se
moldou na França e na Península Ibérica ao longo dos
séculos do que ao característico aspecto cosmopolita ou
acolhedor de uma ou outra cidade.
“O brasileiro é indiferente à participação do
Governo, ausente de visão do Estado como
responsabilidade coletiva”, refletia. “Não tem visão política
para uma esfera pública de ação. Seus cidadãos não se
reconhecem como coletividade. Isso é o que marca o
nosso povo”, lamentava Pedro.
Por outro lado, concluía, “na religião, na assistência
mútua e nas grandes festas, nós nos reconhecemos como
comunidade. Esses fatos, convenhamos, sem dúvida
alguma, se devem à nossa herança colonial. A cultura
ibérica difere-se neste ponto da cultura anglo-saxã, italiana
ou francesa”. Então, Pedro repassava em sua mente o fato
de que a cidade ocidental medieval representou uma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 57

verdadeira revolução na História, contribuindo muito


poderosamente para o desenvolvimento da sociedade
industrial capitalista daqueles dias. Relembrava ele que, na
Idade Média, as cidades se desenvolveram como uma
coletividade de produtores individuais, e isso fez aparecer
novas práticas de legitimidade política. Nessas cidades,
surgiram os interesses dos burgueses da época, os quais
eram os seus mais fortes cidadãos e formaram a primeira
entidade política moderna que precedeu o próprio Estado
ao qual se opunham.
Sendo comerciantes que precisavam salvaguardar-
se, criaram uma justiça própria, uma defesa própria,
finanças próprias e governos próprios, desvinculados de
qualquer tipo de burocracia que venha a interromper a
liberdade dos negócios ou a livre iniciativa do comércio e
dos contratos. “Quebraram assim”, refletia, “a base da
cidade antiga, fundada em estamentos ou classes sociais
eclesiásticas, familiares, tudo respaldado meramente pela
tradição e pelo berço”. Fizeram surgir um novo tipo de
pessoa, admitida em termos estritamente individuais que
tinha sua razão de ser nos direitos que lhe eram inerentes
e não naquilo que possuía como patrimônio.
Era a cidade uma associação livre de produtores e
mercadores que precisavam de regras, contratos e, acima
de tudo, estabilidade; não mais uma reunião ou
aglomerado de meros consumidores que, por questões
58 | Felipe Negreiros

estritamente religiosas, acreditavam existir um Estado,


plasmado na imagem de um homem tido praticamente
como um semideus que os comandava.
Com o olhar perdido no espaço, Pedro via que a
cidade medieval não foi uma cidade só orientada para fins
políticos e militares, marcada pela pilhagem, predomínio
do Estado e burocracia, como fora a cidade antiga.
O dia a dia das pessoas na cidade medieval não era
algo secundário, com uma importância diminuída pela
participação do trabalho escravo, obstáculo à formação
das suas corporações. Seus cidadãos não são só os
guerreiros, os brutos ou os oportunistas de plantão, cuja
riqueza se baseia exclusivamente na posse de escravos, de
terras e de espólios de guerra; o cidadão é detentor de
direitos, formalmente previstos em um conjunto de
normas e é, por isso mesmo, um individualista, alguém que
se preocupa em ver respeitado o seu espaço na
comunidade em que vive.
“Que pena!”, Pedro se lamentava, enquanto tudo
isso vinha à sua mente já tão cansada, como um turbilhão
de imagens. “Meu Deus! A influência do cidadão medieval
foi maior para a formação moderna das cidades saxãs do
que das cidades da Península Ibérica”, entristecia-se,
totalmente perdido em seus pensamentos.
No norte da Europa, vimos a separação das várias
esferas da atividade, enquanto, no sul, predominou uma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 59

burocracia capaz de reunir a sociedade apenas por meio


dos paramentos, rituais e símbolos reforçados pelos ideais
católicos. Até a França e a Itália seguiram outro destino,
pois foram mais afetadas pelas mudanças que Portugal e
Espanha. Na Itália, dividida em pequenos estados
independentes, o desenvolvimento cultural de Florença e
de Veneza contribuiu para o surgimento de uma elite
magnânima, propiciadora de uma cultura autônoma da
burocracia do Estado e fortemente ligada às fontes
centrais e permanentes do conhecimento espiritual; todos
pareciam criados nessas duas cidades para gerar lucros.
“Como não ver a balbúrdia da oficina de Tiziano?”, dizia
para si. Ali tudo girava em torno da sabedoria econômica,
todo o pensamento levava à aquisição de algo e toda a
arte era empregada na obtenção de grandes riquezas.
A Espanha e Portugal, ao contrário, passaram ao
largo da reforma protestante. O homem ibérico
acostumou-se a não resolver os problemas como um
inglês, mas a pedir ao bom Deus que os resolvesse. Se um
inglês procurava técnicos, para se solucionar, por exemplo,
a falta de água, em Portugal, faziam procissões, pagavam
novenas e promessas, enchendo as diversas igrejas
espalhadas pelo país.
A ideia de Lutero de cada pessoa buscar a Deus em
si mesmo, sem ser necessária a interseção de algo que lhe
seja superior, como a Igreja, gerou uma verdadeira
60 | Felipe Negreiros

revolução científica. Então, esses fatores solidificaram com


o tempo os novos valores burgueses, particularmente os
do individualismo.
“Santo Deus”, refletia. “Em Portugal e na Espanha
predominava-se a ideia tomista de uma sociedade
hierarquizada, onde se tem o todo sobre o indivíduo em
oposição à cultura anglo-saxã em que se via a liberdade de
iniciativa e a prioridade do indivíduo sobre o todo”.
No norte da Europa, juntou-se a liberdade à ordem.
Absorveu-se, assim, o liberalismo e a democracia como
uma maneira de compatibilizar e diminuir a tensão daí
decorrente. Já no sul do velho continente, os direitos não
eram tão importantes; o que interessava era estar inserido
em um contexto de poder. “Daí os vícios do
patrimonialismo, da bajulação, de tudo o que nos afasta do
mérito e da justiça, tudo o que afasta os brasileiros do que
há de salutar em termos de convívio social, integração ou
mesmo construção de uma comunidade onde o exemplo
não é baseado meramente no sucesso de uns sobre os
outros”, revoltava-se.
“Isso só serviu para gerar uma minoria privilegiada,
dependente de casamentos, pensões, presentes ou
sinecuras da corte. Criou-se uma sociedade de arrivistas,
de onde se tem alguém até muito sociável, mas pouco
solidário, cuja sociabilidade e forte extroversão dão-se em
relações pessoais e em pequenos grupos. Uma sociedade
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 61

capaz só de fazer predominar os interesses da família, do


clã, do grupo de trabalho ou de um esquema de comando
que confunde o interesse público com o privado”.
“Em termos coletivos”, concluía Pedro o seu
raciocínio, “isso gera falta de organização, solidariedade
mais ampla e consciência coletiva, ou, em outras palavras,
promove a apatia e a sensação de impotência e, ainda,
uma política de orientação voltada para o emprego
público, chamada de fisiologismo”.
Sim! O anglo-saxão é individualista, mas esse
individualismo gera a iniciativa privada, um espírito
associativo e uma política de participação voltada para a
defesa e para a prevalência desses direitos individuais
estabelecidos pela sociedade burguesa e comercial. Para a
lógica protestante, não é feio ganhar dinheiro e ter
sucesso. O protestante dá testemunho, não vive uma
relação de segredos, tão bem vistos na lógica da confissão
ou da preservação das posições sociais, como fazem os
católicos, que são sempre temerosos em perder, mas não
possuem ânimo para ganhar, tendo até raiva de quem
assim procede. Os católicos formam uma sociedade que
aguarda uma caridade, um emprego, se possível, sem
esforço, para obtê-lo, um corpo que não luta, para
melhorar de vida.
“O sentimento individualista que nos faltou deu ao
mundo a Inglaterra: uma verdadeira oficina”, Pedro
62 | Felipe Negreiros

concluía: “Em todo este século, o seu comércio se manteve


em um patamar duas vezes superior ao da França, o seu
consumo de algodão foi quase três vezes superior ao dos
Estados Unidos. Lá se produziu, nestes últimos anos, mais
da metade do total de lingotes de ferro do mundo
economicamente desenvolvido e se consumiu duas vezes
mais por habitante do que o segundo país mais
industrializado, a Bélgica”. Comparar a Inglaterra ao Brasil
muito entristecia Pedro: “O problema de nosso país, de ser
o nosso povo apático e acomodado, é um problema de
origem”.
De repente, entre tantos lamentos, a porta de seu
quarto se abriu. Para a sua surpresa, Isabel entrou com o
seu caçula, Antônio, o Totó.
– Isabel, minha filha, deixemos de mesuras,
desçamos juntos e vamos ao café da esquina! Quero
mostrar o que é um croissant ao meu neto – ordenava.
– Veja lá, meu pai, como o senhor não perde certos
hábitos e requintes do mundo burguês; nem a diabetes o
detém – retruca-lhe Isabel, após o que Pedro ergue as
sobrancelhas e, ao levantar da cadeira, começa a lhe falar,
sem perder o fôlego:
– Minha filha, antes de você chegar, pensei
exaustivamente sobre isto: ninguém deve deixar de se
sentir satisfeito por ser rico, nem deixar de aproveitar os
prazeres advindos desse estatuto social. Sei que muito de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 63

mim marcou a classe média do Brasil, mas nunca deixei de


ser um aristocrata e de ter hábitos aristocráticos. Em
certos aspectos de minha vida, não fui nem um homem de
gostos equivalentes ao de um homem da classe média ou
mesmo ao de um homem aristocrático. Reconheço! Mas,
na verdade, sempre compreendi que a atitude melhor que
deveria ter com relação a mim mesmo era a simplesmente
régia. E o rei, mais do que qualquer outro ser humano,
deve saber que, quando não desprezada, é a riqueza algo
que gera uma oportunidade para o pleno exercício da
virtude. E digo-lhe isso, pois entendo que o dinheiro, se de
origem honesta, não representa nada do que devemos nos
envergonhar, pois, se gasto sabiamente para o bem
comum, pode até ser uma força criativa e fonte de orgulho
justificável. Pensar diferente seria criar obstáculos àquilo
que, um dia, permitiu-nos conviver com homens como
Américo Vespúcio, Cristóvão Colombo, Petrarca,
Boccaccio, Brunelleschi, Donatello, Botticelli, Da Vinci,
Michelangelo ou Galileu. A boa fortuna nos facultou dar
vazão a todos esses talentos, redescobrir uma tonelada de
manuscritos que continham o antigo conhecimento de
Euclides, Ptolomeu, Platão e Aristóteles! Eu, como sabe,
aproveitei isso! Fiz nascer toda uma geração cuja
contribuição ao aperfeiçoamento cultural do Brasil foi
inestimável: Pedro Américo, Carlos Gomes, Gonçalves Dias,
Manuel Araújo Porto Alegre, só para lhe citar alguns,
64 | Felipe Negreiros

menina. E por que digo isso a você e ao meu neto? Porque


ninguém segura o gênio humano ou mesmo certas manias.
Esse é o meu jeito de ser. Recordo-me, aproveitando-me
da figura desses importantes personagens, de uma
passagem muito pitoresca que lhe contava, quando juntos
lemos a obra de Vasari sobre a história da arte.
Admirávamo-nos com a quantidade de criados,
domésticos, artesãos humildes e, também, vários
dignitários, estudiosos, filósofos, poetas e artistas que
estavam na folha de pagamento de Cosimo de Medici.
Lembra? Dentre eles, recorde-se filha, do menos
agradecido: Filippo Lippi. Oh! Tão escravo era ele do seu
apetite amoroso, que, quando estava neste estado de
espírito, dava pouca ou nenhuma atenção aos trabalhos
dos quais estava encarregado.
– Cosimo – dizia, rindo, Pedro –, certa vez, tendo
lhe encomendado um quadro, trancou-o em sua própria
casa, a fim de que ele não pudesse sair e desperdiçar o seu
tempo. Fracasso, filha, fracasso! Lippi escapava do palácio
com uma corda improvisada, feita com os lençóis da sua
cama. Aí lembra, outra não foi a saída: quando Cosimo
descobriu a artimanha, concordou em lhe dar a liberdade
de entrar e sair de sua casa, concluindo que as virtudes de
uma mente como aquela dão seres celestiais e não
escravos picaretas. Mas, filha, não percamos tempo com
conversas do tipo – continuava a dizer-lhe Pedro.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 65

Os três não demoraram, para sentar à mesinha


mais próxima da esquina de seu hotel, a única que
sobrava, fruto do frio, sem dúvida, pois todos queriam
evitar as agruras do tempo. Entre um e outro gole de
chocolate quente, Isabel ria-se ao ouvir o seu pai falar-lhes
sobre o seu Rio de Janeiro e quanto se ressentia, por não
ter aberto algo como um grande museu na cidade, ao nível
de uma National Gallery, como a de Londres. Sem dúvida,
ele estava incrivelmente feliz, e isso era o que importava à
filha.
Discorria não sobre as suas questões sociais ou
mesmo antropológicas como estivera pensando há pouco,
mas sobre a cidade em si, os seus recantos mais bonitos,
os logradouros inesquecíveis para ele.
A cidade e o homem certamente se confundem.
Tanto que não há como, hoje, contarmos a história de
Pedro, sem que facilmente venha às nossas mentes a
imagem das ruas sombreadas do Centro do Rio de Janeiro:
espaços públicos tão bem retratados nas novelas ou nos
contos de Machado de Assis, cujo futuro brilhante Pedro
anteviu, quando, anos antes, encontrou-o com o barão de
Mauá. Espaços também representados na música de
Chiquinha Gonzaga, a compositora com jeito de menina
atrevida, a qual muito encantou Pedro. A compositora,
ademais, dez anos após a queda do Imperador,
presenteou-nos com o seu “Ô abre alas”, enquanto
66 | Felipe Negreiros

Machado de Assis, no ano da Proclamação da República,


inaugurara a nossa Academia Brasileira de Letras.
Na verdade, muito do Rio nos remete ao Brasil dos
tempos do império e aos tempos de Pedro II. Se ambientes
que ele frequentou, como o Real Gabinete Português,
inaugurado por Isabel em 1887, mexem com a nossa
memória, até mesmo lugares que não têm qualquer
relação com o período em que o mesmo Pedro II viveu no
Rio, como a Confeitaria Colombo, remetem-nos também
ao tempo da Monarquia. Embora muitos prédios e feitos
urbanísticos – como o túnel do Leblon ou as largas
Avenidas Getúlio Vargas e Atlântica – falem desse Rio de
Janeiro grande e sede de uma corte, a maioria deles
apareceu anos depois de 1889.
Então, surge a pergunta: por qual motivo isso tudo
se confunde com a pessoa de Pedro II? Muito nos parece
que a resposta está em seu jeito de ser e no fato de que,
ao formar, ao menos, uma pequena elite razoavelmente
culta e com princípios, tais empreendimentos, na recém-
implantada República, terminaram por ser realizados por
antigos membros de seu Governo. Pode-se dizer até que
foi, entre 1902 e 1910, o melhor momento da primeira
fase republicana. Para muitos, ainda, foi esse o melhor
momento não só da fase inicial da implantação da
República, mas de todo o tempo desde que essa se
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 67

instaurou até os dias atuais, em que ainda se apresenta no


Brasil como um sistema de Governo.
Justamente quando afastados por um certo tempo
os oportunistas e os inescrupulosos que tomaram a
República por assalto, assumiram, simultaneamente, o
governo do Brasil dois dos antigos conselheiros de estado,
nomeados pelos imperadores: Francisco de Paula
Rodrigues Alves e Afonso Augusto Moreira Pena. Um
paulista e outro mineiro, colegas do tradicional
educandário Pedro II, que, além de concretizar os projetos
definidos como prioritários pelo império, mantiveram viva
a ideia de ter sido o período monárquico o que de melhor
ocorreu em termos de sistema político no Brasil.
Como esquecer que foi na gestão de Rodrigues
Alves que se deu ao Rio de Janeiro o embelezamento
urbanístico ainda hoje não superado, comandado por
Pereira Passos? Erradicaram-se várias doenças por meio de
uma ampla campanha de vacinação liderada pelo médico
Oswaldo Cruz, como, por exemplo, a febre amarela. Além
disso, afirmaram-se as nossas fronteiras através de Rio
Branco.
Rodrigues Alves e Afonso Pena foram dois
personagens tão próximos de Pedro II que o último chegou
a ser ministro em dois dos seus Gabinetes e elogiado até
por Ouro Preto, presidente do último Gabinete instituído
pelo imperador.
68 | Felipe Negreiros

Embora próximos de Pedro, esses dois homens


cultos e aristocráticos são bem distantes do mundo em
que Pedro nasceu. Referimo-nos aqui a um país sem
educação básica e sem imprensa, capaz de nos fazer
lembrar mais do século XVI do que do século XIX. Eram
esses dois mundos tão diferentes que, por si só,
abrilhantam a obra realizada por Pedro II, quando a
História os compara: o Brasil antes de Pedro II e o Brasil
depois dele. De um lado, um Rio europeu, de uma
aristocracia presa a princípios formados no Humanismo e
na cultura enriquecida pelo Renascimento e pelo que se
seguiu no cenário das artes, como o Barroco e
Romantismo. De outro, um país perdido em um mundo
que ainda cheirava à pólvora das guerras napoleônicas,
marcado pelo descontrole na aplicação das penas, seja por
parte do governo laico, seja pelas autoridades
eclesiásticas, às vezes, até elas mesmas acuadas pelo que
se chamou de Santa Inquisição.
Foi esse um período tão bem retratado em um
quadro de Goya que Pedro passava horas e horas
admirando: “Os fuzilamentos de três de maio”. Pedro via
nele o resumo de um tempo cheio de revoltas,
sentimentos de ódio, anarquia e desintegração, em que o
Brasil de 1830 ainda estava imerso. Assim como falou a
Charcot – quando esteve, a tarde, em sua clínica, depois de
deixar Isabel e Totó descansando no hotel –, era comum
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 69

registrar, nas suas animadas conversas no Instituto


Histórico e Geográfico no Rio de Janeiro, que esse quadro
mereceria a atenção de qualquer pessoa, dos mais
ignorantes andarilhos ou refinados nobres em viagem pela
Europa, não só porque rivalizava em visitas com as
famosas “Meninas” de Velásquez, mas também por estar
exposto onde está.
Rindo, confidenciava ao médico que dizia, após um
ligeiro suspense, aos seus confrades mais curiosos: “No
Prado! O mais prestigiado Museu da Espanha, situado lá
no Centro de Madrid. Um Museu que, diga-se de
passagem, é belíssimo, até por estar situado em uma
grande avenida margeada por jardins largos e exuberantes.
Além de também ter sido inaugurado pelo empenho da
minha tia por parte de pai”, não perdia a oportunidade de
acrescentar, “a rainha da Espanha, Maria Isabel de
Bragança, esposa do rei Fernando VII”.
A esta altura da conversa, Pedro falou a Charcot
quanto se espantava, quando se prostrava diante dessa
tela. Realmente, é ela uma obra bem intrigante. Nela vê-se
uma fileira de soldados apontando fuzis a um grupo de
pessoas ajoelhadas e uma luz fantasmagórica sobre um
homem de camisa branca que ergue as mãos em direção
aos atiradores.
Reportando-se sobre o seu significado, Pedro
lembrava ao seu médico e dedicado ouvinte que, no papel
70 | Felipe Negreiros

de um velho e devotado avô, costumava ensinar aos netos,


com seu ar professoral, ter Goya retratado, com essa
ilustração, algumas verdades marcantes, para os olhos que
a admiram. De logo, falava-lhes sobre o fato do início do
século XIX ter sido um período ainda tão amarrado às
ideias que negavam ao homem direitos e liberdades, tal
qual a brutal resposta da França à estratégia de uma luta
de guerrilha, a qual espanhóis e portugueses
desenvolveram, no tempo em que a Península Ibérica
estava subjugada ao império francês, sob a inspiração do
duque de Wellington, de quem a prima de Pedro II, a
rainha Vitória, tanto lhe falou, quando, certa vez, jantaram
lado a lado no castelo de Windsor, ocasião em que ela
insistiu em que, em vez da barba, ele passasse a cultivar
um bigode parecido ao do chanceler alemão, Otto
Bismarck.
O duque, de fato, foi uma pessoa muito idolatrada
por Pedro, já que o via como um equivalente inglês ao que
representou para o Brasil o duque de Caxias. Pedro o
venerava tanto, que não resistiu repetir para Charcot o
que Vitória lhe disse, confidenciando-lhe que tinha até
anotado em seu diário as palavras dela, a fim de não as
esquecer:

“Tinha acabado de fazer um


piquenique, perto de um mar e de
um morro silencioso, quando recebi
a carta e soube que aquele motivo
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 71

de orgulho da Inglaterra, ou melhor,


da Grã Bretanha, aquele herói
glorioso, o maior homem que a
Nação jamais produzira, já não
respirava! Sua posição foi a mais
elevada que um homem já
alcançou; acima dos partidos, ele
consultava todos e era reverenciado
por toda a Nação. Foi um
verdadeiro amigo da soberana; a
coroa nunca teve – e receio que
nunca terá – um defensor tão
dedicado, leal, sincero e confiável.
Para nós, a sua perda foi
irreparável, nem um só olho ficou
sem lágrimas em todo o país”.

Charcot ficou admirado! Pedro falou-lhe depois de


ter feito um esforço enorme de puxar pela memória as
palavras da prima, um esforço que não condizia com a
enorme capacidade de memorização que possuía, desde
os seus tempos de juventude. Isso Pedro registrava
também ao seu médico, dizendo-lhe mais:
– Ensino igualmente às crianças, Charcot, que nessa
época a França foi o berço da mais importante revolução
libertária do mundo. E não lhes falo apenas dos
acontecimentos de 1789 ou mesmo da República jacobina
do ano II que, não tenho dúvidas, vêm à sua mente agora,
junto com o empertigado Robespierre, o gigantesco e
dissoluto Danton, a gélida elegância revolucionária de
Saint-Just, o gordo Marat, o Comitê de Salvação Pública, os
72 | Felipe Negreiros

tribunais marciais ou a guilhotina. Rindo, aproveito até,


para lembrá-los, sobretudo aos que estudaram filosofia
comigo, que lá ocorreu algo tão grandioso que, até
mesmo, o austero filósofo de Königsberg, Immanuel Kant
(de quem se diz que os hábitos eram tão regrados que os
cidadãos daquela cidade acertavam por ele os seus
relógios), postergou a hora de seu passeio vespertino ao
receber a notícia, fazendo assim com que, no centro da
Europa, se soubesse de que um fato que sacudiu o mundo
tinha deveras ocorrido. Veja só! Soube-se, anos mais tarde,
que Kant só tivera perdido a hora desse seu passeio
vespertino novamente, quando ficou absorvido pela leitura
de “Émile”, de Rousseau, autor que, como sei, teve uma
enorme influência sobre Kant. No mais, meu caro Charcot,
costumo confirmar ainda aos meus netos que mais do que
a americana (que foi um fato importante tão somente para
os Estados Unidos), a Revolução Francesa forneceu a
maioria dos países o conceito e o vocabulário do
nacionalismo, quando, em sua declaração, o Abade Sieyès
proclama, sem rodeios, que a fonte do próprio poder
majestático reside na soberania de um país, eis que não
existe, na Terra, qualquer direito acima daquele da própria
Nação. Esse mesmo Abade diz ser inaceitável qualquer lei
ou autoridade superior à de um país, nem a da
humanidade como um todo, nem a de outras nações. Ora,
lembro com entusiasmo aos meus netos que essa mesma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 73

Revolução Francesa forneceu também códigos legais,


modelos de organização técnica, científica e o sistema
métrico e se tentou levar luzes à Europa, no entanto, a
vaidade, o radicalismo sem paralelo (que tornava o mais
jacobino britânico ou americano alguém moderado na
França) e a corrupção dos seus líderes fizeram com que os
próprios povos oprimidos pela nobreza não acolhessem
tais ideias de bom grado.
– Acho que toda essa balbúrdia fez com que o povo
se unisse contra essa mesma França – advertia-o Charcot –
Assim como fez, por exemplo, a Universidade de Coimbra,
o lugar onde estudou o seu querido tutor José Bonifácio,
quando transformou o seu laboratório químico em uma
fábrica de pólvora, um professor de metalurgia em um
responsável por idealizar armas, e estudantes, em chefes
de milícias, para, em junho de 1808, massacrarem a
guarnição francesa estabelecida na cidade de Figueira da
Foz – lembrava-lhe o mesmo Charcot, sentindo-se feliz
pela oportunidade de mostrar quanto sabia daquele
período ao seu dileto amigo.
– Até porque – Pedro II não perdeu a oportunidade
de lhe dizer – é extremamente necessário registrar para os
mais jovens, assim como fiz certa feita com os dois filhos
mais velhos de Isabel, que sempre me acompanhavam nas
visitas aos museus, quanto os tempos de paz que
vivenciamos hoje devem a atos de heroísmo como esse.
74 | Felipe Negreiros

Ao que Charcot o interrompeu;


– Recordo-lhe que, nessa época de lutas, surgiu, em
Portugal, uma das grandes maravilhas da engenharia
militar: as Torres Vedras.
– Verdade, falava sobre isso! Oh! Os meninos
ficavam espantados – retrucava-lhe Pedro.
Os dois, sentando no parapeito da janela da clínica,
vislumbravam em suas mentes uma sequência de
fortificações que iam da margem do Tejo até o Oceano
Atlântico e foram tão fundamentais para a mudança do
mundo de então. Um mundo que, segundo Pedro
apontava, olhando para a velha senhora vizinha de
Charcot, descobriu o Brasil justamente na ocasião em que
os seus avós empreenderam uma fuga, propiciadora da
transferência de 20 mil pessoas a uma cidade como o Rio
de Janeiro de 1808, onde só residiam, no total, 60 mil
habitantes. Entre os novos imigrantes, estavam
comerciantes franceses, ingleses, artistas italianos,
naturalistas austríacos.
Pedro, em suspiro dizia-lhe:
– Trouxeram todo um aparelho administrativo,
responsável por fazer do Rio de Janeiro, de uma hora para
outra, a capital de um império situado aqui na Europa.
A essa altura, repetia ao seu médico, que o
observava com os olhos bem voltados para si:
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 75

– Imagine isso, imagine isso! Reflita sobre o que foi


um choque cultural sem igual, cuja ferida fez surgir em
uma vila perdida no meio do nada toda uma agenda de
festas e uma etiqueta, a qual, abaixo do Equador, ganhou
um colorido muito especial.
– Singular! – Fechava Charcot o seu raciocínio.
Realmente é interessante observarmos que se, no
início, tudo era só uma nova agenda de peças de teatro as
quais engrandeciam a História e o império português,
tempos depois, constatou-se que essa nova agenda de
peças de teatro fez com que esse território sul-americano
se transformasse em algo apartado dos demais, onde a
solução monárquica garantidora da ordem e do progresso
era vista como viável, desde que realizada por um Estado
portador e impulsionador de um projeto civilizatório para a
região onde ele estava localizado.
Dizia Pedro:
– Os meus cinco netos, Charcot, estavam sempre
me escutando lhes narrar o que foi a ida de nossa família
ao Brasil. Recordo-me, de pronto, quando os meninos
afirmavam com ares eruditos: “Aí, vovô, os quadros de
Debret trazerem o mais marcante do neoclassicismo, a
exaltação da cultura greco-romana”.
Foi, com certeza, das mãos desse pintor que
começou a se desenhar o ambiente que, como Pedro
lembrava, cercou-o e acabou também por cercar todos os
76 | Felipe Negreiros

que estiveram à sua volta ao longo dos anos de seu


reinado. Um Rio místico, dotado de um conceito cultural e
político, com a sua rua do Ouvidor, a mesma rua que, nos
seus primeiros anos de reinado, inaugurava, uma atrás da
outra, lojas de modistas franceses, floristas, joalheiros,
charuteiros. Era um mundo do hábito do passeio da tarde,
os chás na confeitaria Carceler ou o dedo de prosa do Café
de la Paix. Nas livrarias Garnier, Laemmert e Briguit
compravam-se as traduções de Balzac, Maupassant,
Rimbaud, Baudelaire e Victor Hugo. Na Biblioteca Nacional,
as obras mais consultadas eram as de Alexandre Dumas e
Verlaine. No Rio, chegou-se a ter, já na década de 40 do
século XIX, dez livrarias e doze tipografias. Tomava-se
sorvete, cognacs ou uma coupe de champagne na
Déroche.
Na década de 50, o “vaudeville”, gênero de
comédias ligeiras, desembarcou entre nós, e o público teve
a oportunidade de aplaudir as peças de Octave Feuillet,
entre elas, “La crise”. Na arquitetura, os sobrados dão
lugar aos chalés, nos jardins, surgem as roseiras e até os
canários da terra são substituídos pelos belgas.
Esse era o Rio de pessoas que, apesar do exagerado
desejo de se tornarem europeus – tão criticado nos artigos
de Machado de Assis –, estavam profundamente marcadas
por suas responsabilidades, fazendo sempre, da melhor
maneira, o que era possível, sobretudo ele, esse avô de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 77

cinco crianças, até por se colocar, por graça divina, fora do


alcance dos interesses particulares, tal qual repetia, sem
parar, aos netos:
– É importante para o crescimento de qualquer
pessoa saber reconhecer as graças que a vida deu.
Lembrava isso tirando da bolsa preta a revista “A
Ilustração Luso-Brasileira”, de 1858, responsável por
divulgar o seguinte comentário sobre o Brasil: “Um império
imenso, recortado de rios e coberto por uma vegetação
maravilhosa, é considerado o ponto central da civilização
do Novo Mundo, salvo da anarquia, que, pouco a pouco,
devora os outros Estados da América do Sul”.
Na verdade, Pedro, no inverno da vida, nunca
esqueceu quantas vezes lera para todos os familiares tal
comentário. Dizia sempre em seguida às leituras dos
trechos, que entendia como sendo os mais significativos
para a vida e a formação dos filhos e dos netos:
– Era a opinião comum, minhas crianças: do Brasil
floresceu, no seu solo virgem, um ramo da antiga e
transplantada árvore dos Bragança. De nós e de nosso
destino, este país que tanto amo não poderá se separar.
78 | Felipe Negreiros

Capítulo 3
MAIOR REPUBLICANO...

Chovia de uma maneira fora do normal em


Filadélfia, mesmo para os padrões dos meses de abril e
maio da Nova Inglaterra.
A sala estava totalmente fechada; não chegava a
fazer calor, mas o ambiente abafado provocava um
desconforto imenso àqueles poucos senhores sentados em
volta de uma grande mesa, falando alto.
Franklin sabia que o seu dia seria bastante difícil e
sequer tirara o avental, quando saiu de sua loja e se dirigiu
ao encontro dos seus colegas. Estavam todos envolvidos
em dar aos Estados Unidos a sua Constituição.
Jefferson era o mais entusiasmado do grupo,
seguido por Adams e Hamilton. Todos se manifestavam
sobre o tipo de sistema político que adotariam para o seu
país. Ter um governo liderado por alguém que o
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 79

conquistasse pelo seu exemplo e pelos seus méritos os


empolgava, todavia, precavidos, questionavam se terem
um rei, alguém educado, para governar, isento de
interesses e ambições, não seria a melhor maneira de se
verem livres de aventureiros e oportunistas.
Era um argumento forte, mas não os convenceu,
sobretudo a Franklin, que ponderou que a América seria
um país de gente pobre, de classe média e, claro
conviveria com o risco de se ver dominada por um mau
caráter; a saída não seria outra, senão o seu Estado de
Polícia que puniria aquele que subisse os seus estatutos
sociais por meio da prática de crimes. Esse sofreria penas
tão árduas e prejuízos financeiros tão fortes, que, não só
ele se arrependeria, mas também aqueles que tivessem a
mínima intenção de realizar tais práticas se sentiriam
desencorajados para tanto.
Pedro gostava muito de ler essa passagem da
história dos Estados Unidos e, agora, já idoso e com os
olhos capazes de formular uma crítica amadurecida, via
que essa fora a grande falha da forma como os assuntos
políticos se desenvolveram no Brasil. O Brasil precisava e
ainda precisa não só de um maior rigor nos castigos, como
a plena efetividade da sua aplicação.
Mas...era a hora de deixar essas leituras de lado.
Passavam-se três dias dos seus dois encontros com
80 | Felipe Negreiros

Charcot e a sua filha o esperava no “hall”. Viera ao hotel


lhe dar um beijo, antes de viajar.
Pedro fez seu asseio, vestiu-se e, depois de tomar
uma xícara de café forte, despediu-se de Isabel e rumou
para os Jardins de Luxemburgo. Amava aquele pedaço
bucólico de Paris, onde se encontrava o Senado da França.
Era nos Jardins de Luxemburgo que Pedro ficava grande
parte de seu dia, envolto em leituras ou simplesmente
apreciando a beleza do lugar, na verdade nem conseguia
entender o porquê dessa região ser menos valorizada que
as áreas situadas nos arredores do Bois de Bolougne.
A filha ia para a estação encontrar-se com o seu
marido, o conde D’Eu, de onde rumariam de trem a
Cannes. Pedro, ao contrário, aproveitaria para passar a
manhã só, lendo e olhando a deslumbrante paisagem
deste recanto, bem apropriado, para se recordar da sua
Luísa, há pouco falecida, ou mesmo chorar por esse amor
outonal, meio platônico, e pensar como sua vida teria sido
diferente se tivesse casado com uma pessoa como ela, ou
sido o que sempre quis ser, um professor. Isso até quase
ocorreu, quando a sua irmã tentou destituí-lo do trono.
Àquela altura, com 19 anos, só se falava da iminência de
um golpe de Estado, perpetrado por ela e pelo marido
dela. Caso tivessem concretizado o que tanto lhe falaram
nos corredores do palácio, sobretudo o seu mordomo,
Paulo Barbosa, teria ido morar com o seu avô, o imperador
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 81

da Áustria, em Viena. Tornar-se-ia um intelectual, viajaria


pelo mundo. Seria um príncipe riquíssimo, sem maiores
obrigações, sempre viajando. Passaria meses na Florença
que encantou sua mãe e era a terra dos seus bisavôs, os
antigos grão-duques da Toscana, no entanto, certamente,
seguiria, apesar da cabeça coroada, mantendo a sua
reconhecida serenidade ou, até mesmo, simplicidade,
características que fizeram com que Pedro conquistasse
uma infinidade de admiradores pelo mundo.
Não seria o Pedro de Alcântara João Carlos
Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula
Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança, mas,
simplesmente, Pedro de Alcântara, maneira como seu pai
o chamou no momento em que lhe transferiu a sua coroa
e como ele mesmo preferiu ser conhecido. Foi assim que
assinou leis e se apresentou pelos quatro cantos do mundo
e ficou conhecido como o último dos sete filhos dos
primeiros Imperadores do Brasil.
Acrescente-se que esse nome gigantesco carregou
também vários significados e homenagens. O Pedro de
Alcântara foi uma homenagem dupla, por exemplo. Ao
mesmo tempo em que homenageava o pai e dava a ideia
de uma continuação e perpetuação do poder imperial,
também foi uma homenagem a São Pedro de Alcântara. O
santo padroeiro do Brasil, desde 1826. Já o João foi uma
homenagem ao seu avô paterno, D. João VI; o Carlos à avó
82 | Felipe Negreiros

materna, d. Carlota Joaquina; Leopoldo foi uma


homenagem à mãe da criança, a Imperatriz Leopoldina.
Por fim, o Salvador, segundo historiadores como Paulo
Rezzutti, pode ter dois significados, tanto uma referência a
Jesus como à cidade de Salvador, primeira capital brasileira
e para onde o seu pai planejava viajar, assim que ele
nasceu, com a ideia de reunir soldados para a campanha
que desejava empreender na Província Cisplatina.
Quanto ao seu nascimento, diz-se que Pedro
nasceu de um parto sem complicações, a 2 de dezembro
de 1825, no Palácio de São Cristóvão, tendo sido o seu
batismo marcado tanto por festividades, com procissões e
fogos de artifício, disparados das fortalezas e navios, como
também por uma igreja ricamente ornada, sobretudo no
corpo principal da capela imperial, onde os seus pais e as
suas irmãs oraram para o santíssimo sacramento.
Registre-se também que a sua morte ocorreu em 5
de dezembro de 1891, em Paris, aos 66 anos.
Por último, diz-se que Pedro foi aquele que,
diferentemente da singeleza do nome que adotou e do
que quisera ter sido, foi tão gigante no porte físico quanto
na administração do Brasil. Era esbelto, media um metro e
noventa de altura, tinha cabelo loiro, liso, pele de
porcelana, corpo relativamente musculoso, dotado de
impressionante força física e olhos azuis que o destacavam
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 83

e, em nada, absolutamente nada, faziam-no lembrar o país


mestiço que o tinha como monarca.
Sim! Pedro era diferente. Alto em um tempo em
que as pessoas eram baixas e mais leves que as de hoje.
Segundo se disse lá atrás, de acordo com José
Murilo de Carvalho: Pedro foi um Habsburgo perdido nos
trópicos, e, conforme Gilberto freire nos lembra em
“Sobrados e mocambos”: “Quem no Brasil teve menos de
indígena e mais de europeu”.
Em síntese, Pedro II foi, de fato, uma pessoa
singular. Como nos diz Fernando Henrique Cardoso: Pedro
tinha tudo para dar errado. Olhem-se os motivos: a mãe
morreu quando o menino tinha um ano de idade, e o pai o
deixou, quando tinha cinco, todavia nenhum homem deu
mais certo na chefia do governo, ou marcou mais a
História do Brasil.
Não vingou o mau presságio do seu pai, Pedro I, de
que sedições militares como a que o levou a abdicar em 7
de abril de 1831 impediriam não só o seu único filho
homem vivo, mas a suas demais filhas de herdar o império.
Pedro I costumava repetir que o Brasil era um país
instável e os motivos para tanto poderiam ser os mais
banais. De acordo com ele: “se tinham como mote, para
me fazer abdicar, o fato de não ser nato, bem poderiam
impedir o meu filho de se tornar Imperador, por não ser
mulato”.
84 | Felipe Negreiros

No entanto, na vida de Pedro II, tudo transcorreu


de uma maneira bem diferente do vaticínio paterno. O seu
sucesso se deve não só a longevidade do seu governo, mas
às transformações que realizou nesse meio tempo, quase
sessenta anos, se contarmos o período da Regência, ou
quarenta e nove anos, três meses e vinte e dois dias, se
contarmos o tempo em que ficou à frente do executivo, a
partir do chamado golpe da maioridade. Pedro foi o
homem público mais culto e operoso da sua época e
passou a vida dedicado aos estudos e ao governo do Brasil.
Tanto que, como governante, foi um planejador e um
executivo soberbamente eficiente, por isso mesmo, capaz
de entender e supervisionar o que os seus subordinados
faziam dentro da administração pública complexa do
Brasil. Encontrou-se com as maiores personalidades do
mundo da época em que viveu, como Victor Hugo,
Alessandro Manzoni, Alexandre Herculano, Wagner, Alfred
Nobel, Louis Pasteur, e foi uma unanimidade,
considerando-se justamente o que provocou com firmeza,
obstinação e paciência, enquanto esteve à frente dos
destinos do seu país.
Não nos custa recordar que, quando Pedro II
recebeu a coroa, aos quatorze anos de idade, alguns
gaúchos viviam em uma pátria independente. Estávamos
em meio a uma revolta chamada Balaiada, no Maranhão,
na iminência de uma intervenção do Império britânico. A
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 85

Inglaterra não só nos retaliava por causa do tráfico de


escravos, como também nos considerava uma nação
atrasada, de bárbaros. Tudo isso estava bem diferente ao
fim de seu reinado, tanto que quando foi deposto e exilado
aos 65 anos, muitos líderes, na ocasião, afirmaram que
tinha terminado aí a única República da América Latina.
Muitos são os historiadores também, como Paulo
Schimdt, que defendem a tese de que Pedro II “construiu
uma verdadeira democracia coroada”, ou mesmo que o
“Brasil de seu tempo, ao contrário das antigas colônias do
império espanhol, fragmentadas e vítimas de um número
sem fim de quarteladas e caudilhos, teve em seu reinado
uma referência de ética e participação popular na
chamada coisa pública”. Desenvolveu-se um Governo
parlamentarista que assegurou a unidade de um país
continental.
No último Gabinete do Segundo Império, o seu
presidente, o visconde de Ouro Preto, apresentou um
programa cheio de reformas, apoiado pela isenção de
Pedro que já não interferia nas decisões dos Gabinetes
àquela quadra da sua vida. Em que pese a sua idade e o
seu precário estado de saúde, nem Pedro nem a filha ou o
seu neto mais velho, os seus herdeiros imediatos, tinham
vínculos com os grandes proprietários de terra ou com as
forças armadas, o que permitiria a qualquer um dos
86 | Felipe Negreiros

membros da sua família exercer o Poder Moderador com a


sabedoria de que o nosso povo, até hoje, tanto precisa.
Lá se vão mais de cem anos e passado todo esse
tempo, vê-se, de maneira até muito nítida, que a
derrubada de Pedro resultou de um acordo entre os
latifundiários que desejavam conservar seus patrimônios e
alguns militares que ambicionavam o poder, tudo feito “ao
custo de sedimentar, de uma vez por todas, no Brasil, as
corrosivas práticas da autocracia e do privilégio”.
No tempo em que Pedro governou, qualquer tipo
de violência do Estado que objetivasse impedir a liberdade
de manifestação era fortemente rechaçado. Nenhum
brasileiro foi banido do seu país, e esse foi o primeiro ato
do governo supostamente republicano que se instalou no
Brasil em 1889, contra o mesmo Pedro e a sua família. Esse
foi um castigo que Pedro nunca aceitou, e o povo e os
governos que sucederam à sua morte reconheceram como
uma violência desmedida.
Hoje tido como o Pai da Pátria, vê-se que ele, ao
final, como Imperador, deu-nos, além da citada unidade
territorial, a escravatura abolida, um judiciário
independente, uma corrupção governamental quase nula e
um sistema eleitoral efetivo, com um número de eleitores
maior que o dos primeiros anos dos governos dos
presidentes que o seguiram na chefia do Brasil. Tudo isso
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 87

graças a um sistema representativo fundado na realização


de eleições ininterruptas.
Sempre é interessante lembrar que no Brasil
imperial já existia até o voto feminino, pois a Lei Saraiva,
que concedia o título de eleitor aos brasileiros diplomados,
não fazia qualquer distinção de gênero, acolhendo de bom
grado o fato de que as mulheres em nosso país, com a
reforma do ensino em 1879, podiam estudar e se graduar.
Ou seja, como nos lembra Paulo Rezzutti, a lei, sem
dizer com todas as letras que o direito ao voto era
exclusivamente atributo do homem, permitiu que as
mulheres interpretassem o texto para fazer valer os seus
direitos; sendo a primeira mulher a possuir um título de
eleitor no Brasil a gaúcha Isabel de Sousa Mattos, formada
em odontologia.
Isabel, muito antes das lutas travadas pelas
sufragistas inglesas no século XX, requisitou o título em
1885 e após discutir na justiça teve o seu direito de votar
reconhecido. Algo que a República não mais reconheceu
até o ano de 1932.
Isto sem deixar de registrar também que a
imprensa, que era livre até então, descobriu, a partir do
dia 15 de novembro de 1889, com a publicação do Decreto
Lei 85-A, que criticar o governo, na recém-implantada
República do Brasil, era crime de sedição militar. A
imprensa, na verdade, estranhou não ter sido o Partido
88 | Felipe Negreiros

Republicano, aberto com o beneplácito de Pedro, a


proclamar a dita República, mas uma quartelada,
comandada por um marechal que não sabia com exatidão
o que estava acontecendo. Estranhou-se também que
sequer os maiores defensores e propagandistas dessa
mesma República, como José do Patrocínio, tenham sido
acolhidos como os líderes naturais pela ditadura militar
que se apossou do poder.
Aristides Lobo, um dos intelectuais que mais
cultuaram o novo regime, manifestou, logo depois do 15
de novembro de 1889, o seu desapontamento com a
maneira pela qual a República fora proclamada. Dizia ele,
por meio de artigos: “O povo brasileiro, que pelo ideário
republicano deveria ter sido o protagonista dos
acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem
compreender o que se passava, julgando ver talvez uma
parada militar.
Aristides Lobo não estava sozinho na percepção
desse pecado original que desembocou na crise, sem
precedentes, presenciada na atualidade, colocando em
xeque o próprio sentido de país atribuído ao Brasil. O seu
povo, àquela época e a partir dela, sempre esteve alheio
aos fatos políticos, até porque, como se disse, essa apatia
está fundada na formação do próprio país.
José Murilo de Carvalho nos lembra que o sábio
francês Louis Couty, residente no Brasil à época da
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 89

Proclamação da República, “ao analisar a situação


sociopolítica concluiu que poderia resumi-la em uma frase:
‘O Brasil não tem povo’. Seus olhos franceses não
conseguiam ver, no Brasil, aquela população ativa e
organizada a que estava acostumado em seu país de
origem”. Tanto é assim que ninguém se surpreende com o
fato de que, apesar de todo o ostracismo imposto a Pedro
II e à sua família, até hoje, a população brasileira não se
identifique com a sua República, não a reconheça como
algo seu. Isso porque, desde o início, viveram-se, no Brasil
republicano, graves problemas. O arrivismo que guiou boa
parte dos seus líderes foi o mais comum, tanto que, ao
final, tudo ficou à mercê dos interesses mesquinhos, e não
mais aos da Nação.
Hoje, esses mesmos problemas de mesquinhez e
falta de patriotismo são ainda mais vivenciados e nos
fazem até crer que pertencemos a um lugar que mais
parece a pior das faces da clássica visão dicotômica dada
por Santo Agostinho, quando, em contraponto à Cidade de
Deus, fala de um estado governado por pecadores, ou
então, poderíamos imaginar um verdadeiro inferno,
baseado na repressão e na sensação de impotência do seu
povo. Tudo isso proporcionado por gravíssimas faltas de
caráter e por se querer sobrepor os interesses de alguns
poucos aos interesses públicos. Isso é tão forte, no Brasil,
que é capaz de fazer com que não um renomado
90 | Felipe Negreiros

sociólogo, mas qualquer curioso possa ver, inclusive em


pequenas coisas ou mesmo nas mais corriqueiras, a
ausência de identidade entre o povo e o seu governo.
Percebe-se isso em reflexões como as feitas por Laurentino
Gomes. O referido autor, comentando sobre a
Proclamação da República, compara o que era e o que é
hoje o antigo palácio de Pedro (ou ao menos o que foi
antes do devastador incêndio de 2018). Partindo daí faz
uma crítica sobre o que almejou e o que conseguiu o
sistema político que se implantou no poder com a queda
da Monarquia. De fato, se olharmos para a antiga casa de
Pedro, veremos que a mesma é naturalmente
emblemática. Primeiro, porque todos os que, ainda hoje,
dirigem-se à Quinta da Boa Vista só entenderão a sua
importância se conhecerem razoavelmente a História do
Brasil, pois lá não há qualquer referência ao fato de ter
sido o dito prédio um palácio de onde se decidiram os
assuntos políticos mais importantes do país entre os anos
de 1808 e 1891. Segundo, porque quando se olha para o
que a ele se destinou, outra não pode ser a conclusão se
não a de que a República implantada – à margem do povo
– quis fazer com que esse também apagasse da sua
memória o que existiu, no Brasil, antes do 15 de novembro
de 1889. Daí, depois de se ver o que foi feito, não demora,
para percebermos o que esse mesmo sistema político
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 91

alcançou em comparação ao breve tempo que se teve de


Monarquia.
Ao chegar ao que restou da casa de Pedro II, é fácil
perceber que o turista, no máximo, se impressionará com
o jardim zoológico que o circunda e não com o prédio, que,
tal qual o palácio do Planalto, em Brasília, foi, na época da
corte, a sede do poder. Isto já deveria ser suficiente para
que muitas pessoas acorressem a esse espaço, a fim de
conhecê-lo. Nada explica o lugar onde – desde a chegada
do avô de Pedro de Alcântara e do estabelecimento da
corte no Rio de Janeiro – implantaram-se costumes,
alterou-se o jeito de ser e de viver das pessoas. Nada se diz
sobre quem lá habitou, pessoas que, historicamente,
exerceram tanta importância nos destinos do Brasil, como
a bisavó de Pedro II, que, àquela altura, era ninguém
menos que a rainha de Portugal, responsável pela
condenação dos inconfidentes mineiros, entre os quais
Tiradentes, o único executado. Tampouco, nada se diz
sobre o fato dessa monarca não ter desejado ficar em São
Cristóvão, mas sim no paço da Cidade, em um quarto do
antigo convento do Carmo, anexo ao palácio.
Deixam-se assim no esquecimento até fatos
pitorescos, como o de que ela, ao ser transferida a uma
casa em Laranjeiras, para que facilitasse os seus passeios,
tornou a vida dos vizinhos um inferno, e estes, de muito
ouvir os seus gritos e contrariedade em ser levada por suas
92 | Felipe Negreiros

damas, criaram a conhecida expressão: “Maria vai com as


outras”.
Claro que não só os que o conhecem, mas até os
que o desconhecem e nada souberam sobre a sua história,
ao avistá-lo, percebem a grandiosidade do lugar. É, de fato,
um casarão belíssimo a poucos metros do Estádio do
Maracanã, mas a ignorância e a falta de referência
provocam a todo aquele alheio à memória de seu país a
impossibilidade de reparar quanto de simbólico este
prédio possui.
Se não se explica o que foi esse prédio, muito menos se diz
sobre o que significou este edifício para o Brasil do século
XIX. Se uma Monarquia vive de símbolos, a casa de um rei
é o coração da Pátria, tanto quanto os aniversários e os
casamentos são eventos que representam o resgate da
própria nacionalidade do povo. Repare-se, por exemplo, o
que se passa na Inglaterra. Nesse que é o mais monárquico
dos países, o povo, ao ver o seu soberano, não grita o seu
nome, mas o do país. As pessoas gritam “Inglaterra,
Inglaterra”. Repare-se também que em uma monarquia o
rigor no uso do significado desses símbolos é muito
grande. Tomemos mais uma vez a Inglaterra como
exemplo. Lá se viveu toda uma celeuma sobre colocar ou
não a bandeira a meio mastro, no palácio de Buckingham,
residência oficial do soberano britânico, quando a princesa
Diana, ex-esposa do príncipe herdeiro, faleceu. Recorde-se
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 93

também que quando se quis homenagear o grande líder


britânico, Winston Churchill, a rainha Elizabeth II preferiu
fazer uma visita à sua casa a substituir o nome do aero-
porto de Heathrow pelo seu. Entendeu-se que a
homenagem a esse líder seria mais forte dessa maneira.
É neste contexto que até o significado da própria
palavra palácio deve chamar a atenção, porque, nos países
monárquicos, palácio é todo prédio que designa a
habitação de um rei – na Inglaterra, a exceção é
justamente para a casa em que nasceu esse mesmo
Churchill –, pois, para os demais nobres, diferentemente,
usa-se a palavra palacete ou mansão.
Claro que esse rigor e etiqueta não se veem no
Brasil de Brasília, até porque é próprio das repúblicas uma
menor consideração aos rituais litúrgicos. Aqui tudo é
denominado de uma maneira indiscriminada, chama-se
palácio qualquer mansão ou palacete.
No entanto, um menor rigor ou respeito a uma
liturgia não justifica o fato de que, ao se olhar para São
Cristóvão, não se veja nada que nos remeta ao seu
passado, nem uma placa, repita-se, que sequer faça
referência a isso, que nos explique sobre a importância
daquele lugar, dê-nos pistas sobre as etiquetas que ali
foram seguidas. Nada se diz, tampouco, sobre o fato de ter
sido ele uma verdadeira instituição, administrada pela
Casa Imperial, estruturada e fiscalizada pela nossa melhor
94 | Felipe Negreiros

aristocracia, composta de repartições diversas,


subordinadas à mordomia-mor. Era esse um setor
composto por uma pessoa nomeada exclusivamente pelo
Imperador, responsável pelas suas finanças.
Como dizia o próprio Pedro II: “É a Nação quem
cuida da decência e dos recreios do monarca, mas a ela
cabe saber quanto e como se gasta o dinheiro que o povo
lhe confere”.
É triste, mas do mesmo modo que nada se vê que
nos explique que o que foi o dito prédio, lá também não se
vê um comentário sobre o lugar e os arredores do palácio.
Não se informa ao visitante, por exemplo, que essa área só
começou a ser habitada em 1870 com a construção de um
acesso ao centro antigo do Rio de Janeiro. Tampouco se diz
que, nesse ano, ele passou a ser realmente a sede do
governo e o lugar onde se realizariam todos os eventos e
solenidades administrativas, mesmo as que
tradicionalmente eram feitas no Paço da Cidade, localizado
na hoje denominada Praça Quinze.
Parece mentira, mas não há registro sobre o fato de
que, ainda na época da implantação do império, o então
afamado arquiteto e decorador Manuel da Cunha
esforçou-se, para melhorar o aspecto da morada de Pedro
II; ou que, em 1827, o pai de Pedro, sob a direção do
francês Pedro José Pezerat, edificou todo um pavilhão ao
sul, modificando o estilo do prédio para algo dotado de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 95

feições neoclássicas, como a fachada de cor amarela e


molduras brancas; ou que nos diga que o que havia de
neogótico desapareceu definitivamente em 1845, em uma
reforma feita durante as viagens de Pedro II ao sul do Bra-
sil, comandada por Manuel de Araújo Porto Alegre; ou que
a ala sul era o pedaço querido da Imperatriz, Dona Amélia,
a madrasta de Pedro II; ela lhe acrescentou uma sala
chinesa e um toucador, ficando aí, muitas vezes até o
anoitecer, ou, ainda, que foi em 1857 que Mário Bragaldi
pintou e decorou luxuosamente os aposentos da família
imperial que ficavam no torreão sul, o salão do trono, o
pomposo salão do conselho e a sala dos estrangeiros, tam-
bém chamada de embaixadores.
Na verdade, quem hoje visita o palácio não enxerga
algo sequer sobre os relatos da imprensa da época, de
quanto se vacilou a respeito da suntuosidade de São
Cristóvão, de que alguns jornais falavam sobre o seu luxo,
enquanto outros discorriam sobre o seu decoro e a sua
falta de adereços, tal qual a residência oficial de um
soberano europeu. Esses últimos, claro, diziam isso no
intuito de expressar o quão simples era Pedro II, embora
não existisse quem não reconhecesse, por mais que se
quisesse, a beleza e o capricho do terceiro andar do
edifício, todo em vidro, onde ficava um gabinete
magnífico, com vistas para um jardim de vastíssimas
proporções.
96 | Felipe Negreiros

Realmente, é lamentável que, hoje, nada faça


menção ao nome das ruas da época como a Primeira, a
Nona, a do Beco, a do Imperador ou a do Portão da Coroa.
É triste também que antes do desastre ocorrido já não se
via, ao se adentrar o prédio, a sua ampla cozinha,
enfermaria ou farmácia em sua parte de trás; ou, ao
menos, fotos que mostrassem como eram os seus
arredores, com mansões, sobrados, hospitais e escolas,
tudo ligado à vida da Corte, cuja entrada se dava por uma
enorme alameda com frondosas sapucaias, rigorosamente
alinhadas. É uma pena, mas já antes do incêndio nada
expunha o que foi essa casa, situada em mencionada
Quinta da Boa Vista, cujo nome faz jus ao cenário que des-
cortina, com fundos que dão para o estupendo morro da
Mangueira, uma lateral para o mar e a outra para o morro
do Corcovado e a floresta da Tijuca.
O que se via lá era apenas um museu que mais
parecia abandonado, um prédio em que se reúne um
acervo amontoado de meteoritos, aves empalhadas,
múmias, vestimentas de tribos indígenas, tudo distribuído
ao acaso, sem critério de organização ou mesmo
identificação. Um museu de nome Nacional que, sem
dúvida, como nos diz o citado autor Laurentino Gomes,
mais do que chamar a atenção para o desleixo do que
exibia, deveria provocar sobretudo hoje muito mais
reflexões, justamente por não ter falado o significado do
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 97

lugar, como se quisesse esconder ou tirar da memória dos


brasileiros este mesmo significado.
Na verdade, era até discrepante a beleza e a
imponência arquitetônica do edifício com o que se propôs
para aquele espaço: um museu de história natural. As
fachadas neoclássicas e os jardins do paisagista francês
Auguste Glaziou, até hoje, depois do incêndio, ainda
sugerem que ali existiu um órgão público e não um
zoológico.
Essa ausência de respeito à história só nos leva a
concluir que a nossa República sentiu essa necessidade
doentia de apagar da História do Brasil o seu período
monárquico, e tudo fez com este propósito, pois não é
aceitável que um jardim zoológico tenha recebido do po-
der público um destaque e um papel maior em um recanto
que nos levou à abertura dos portos, à criação da
imprensa, de códigos, de nossa primeira Constituição,
teatros, em suma: de nosso sentido de Pátria.
Contudo, é interessante olhar, por outro lado, que
se esse desejo de se apagar a História do Brasil
monárquico foi o objetivo do regime que aqui se
implantou a partir de 1889, ao contrário, é o que diz
respeito à República o que nos provoca uma sensação de
indiferença coletiva.
Ao olhar para São Cristóvão e ver no que ele se
transformou, Laurentino Gomes, de uma maneira bastante
98 | Felipe Negreiros

feliz, registra que apesar do descaso e do que se pretendeu


com ele, é a data da proclamação da República um dia de
feriado de significado pouco lembrado, até mesmo tímido.
Nem de longe essa data possui o mesmo prestígio do 7 de
setembro, que é comemorado com desfiles militares por
todo país.
Repare-se que os seus personagens mais atuantes
não têm melhor sorte. Quintino Bocaiuva e Benjamin
Constant estão registrados em praças e ruas, mas serão
poucos, ou quase nenhum, os estudantes do ensino médio
que conseguirão responder quem eles foram, quando
perguntados.
Nas escolas, ensina-se sobre Caxias, Cabral, Pedro I.
Estudam-se personagens de um período de apenas 67
anos, bem mais curto do que temos hoje de República. O
atual sistema de governo, como dito, embora já exista por
um período de tempo mais longo, é menos pesquisado, até
porque não provoca curiosidades tão intensas como as que
nos estimula o império ou mesmo o seu ator central: Pedro
de Alcântara, o nosso Pedro II, um pequeno órfão, que, de
acordo com José Murilo de Carvalho, recebeu da Pátria
uma rígida educação, propositadamente distinta daquela
de seu pai, que, diferentemente de seu cauteloso avô, D.
João VI, era sempre altivo e imprudente.
Foi através dessas lições que os educadores de
Pedro de Alcântara procuraram fazer de Pedro II um
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 99

“chefe de estado perfeito, sem paixões, escravo das leis e


do dever, quase uma máquina de governar”. Foi com esses
ensinamentos, de uma elite preparada em Coimbra, até
pouco antes da chegada da família real ao Brasil, que
Pedro tornou-se capaz não só de assegurar a realeza, mas
também destacar uma memória, reconhecer uma cultura,
circundada por homens como o pintor Debret, e fazer, a
partir de suas obras, surgir o Instituto Histórico e
Geográfico no Brasil nos mesmos moldes do Institut Histo-
rique, fundado em Paris em 1834.
Esse Instituto, a que Pedro dedicou toda a sua vida,
valorizou a nossa intelectualidade, deu estímulos
financeiros aos escritores e aos mais variados artistas.
Firmou-se como um órgão responsável por encontrar uma
identidade brasileira, tanto que, desde meados do século
XIX, fez surgir no Rio de Janeiro a moda de se procurar
vestígios de civilizações que teriam existido antes da
chegada dos portugueses. Isso foi feito em 1839 na Pedra
da Gávea, ou a partir de 1840, ano em que se iniciou uma
expedição ao sertão baiano e outra ao interior de Minas,
capitaneada por Peter Lund. Essa última descobriu fósseis
humanos pré-históricos, confirmando as expectativas
sobre um antiquíssimo povoamento no território
brasileiro. Esse foi um êxito que levou o Instituto a
promover também historiadores como Francisco
Varnhagen, responsável por comparar vocábulos das
100 | Felipe Negreiros

línguas indígenas locais com as de povos euroasiáticos, e a


colher frutos, como os citados Manuel Araújo Porto Alegre
e tantos outros como Gonçalves Dias, responsáveis por
editar periódicos e revistas extremamente populares no
meio das elites e dos mais esclarecidos, como a “Niterói”.
Foram responsáveis também por formar um caráter
nacional que evitou a desintegração do país, desejada por
muitos e só efetivamente evitada a partir de 1848, com a
aceitação da maioridade de Pedro II.
Na Academia de Belas Artes, outro exemplo do que
se passava, viu-se aparecer nomes como os de Almeida
Júnior e Vítor Meireles. Surgiu, assim, um fluxo de mentes
privilegiadas contagiantes, propiciadoras de um ambiente
culturalmente rico, onde uma suposta marionete, pouco a
pouco, revelou-se não só um estadista, mas uma espécie
de mecenas das artes.
Pedro, ainda menino, dedicou-se também ao
Colégio Pedro II, moldando-o como o centro de formação
da elite do Brasil. Fez questão de ceder uma das salas de
seu palácio para os encontros dessa mesma elite,
viabilizando assim o dito Instituto Histórico e os encontros
dos pesquisadores do referido colégio. Não por menos, até
hoje, o Instituto Histórico condecora homenageados com
uma medalha onde se veem os dizeres: Auspice Petro
Secundo. Pacifica Scientia Occupatio.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 101

Pedro deu tanta importância a essas duas


instituições, que fez questão de presidir 506 sessões do
Instituto Histórico e Geográfico, entre os anos de 1849 e
1889, seguindo assim os passos de outros monarcas
esclarecidos, como os Medici, na Itália. Não sem motivo,
Pedro escreveu ao seu tutor, José Bonifácio, dizendo que,
além do Brasil, administraria a formação da
intelectualidade do Brasil.
Pedro, na realidade, nunca foi só isso. Daí terem
causado tão forte impressão as palavras de Chiquinha
Gonzaga: pessoas que se sabem importantes, assumem
naturalmente nomes diferentes. Pedro sempre foi um
homem escondido por trás de uma máscara, reforçada
pelos rituais da corte, uma máscara que escondia um ser
humano marcado por tantas tragédias.
Diferentemente de outros, não queimou etapas e
não recebeu somente elogios por onde passou. Pedro
viveu sob limites, submetido a críticas, testemunhando
muitas fases negativas. Sua vida não teve uma escalada de
vitória em vitória; ele também experimentou muitos
fracassos e isso fez dele um homem que avaliava de modo
correto, a suportar os momentos negativos e a pensar com
os outros e não simplesmente julgar tudo de cima e de
modo apressado.
Desde cedo, aprendeu a aceitar também as pessoas
em suas fraquezas e atribulações, por isso mesmo, era um
102 | Felipe Negreiros

ser humano tão cheio de contradições e paixões, que, se


amava as letras, as suas filhas e a sua imperatriz, amava
também o proibido, concretizado na figura de sua Luíza, a
condessa de Barral.
Era aí, nessa parte oculta de sua face que se
encontrava o Pedro de Alcântara, cidadão comum, avesso
às pompas do poder, tão exposto ao final da vida, em suas
inesquecíveis viagens à Europa e aos Estados Unidos.
Como nos lembra José Murilo de Carvalho, eram
duas figuras tão distintas que “só não dilaceraram o
homem que as guardava devido à sua paixão pelo Brasil”, o
país que ele governou “com os valores de um republicano,
com a minúcia de um burocrata e o desvelo de um
patriota”. Em síntese, Pedro II foi de fato um personagem
singular da história do mundo, alguém de quem se pode
falar que se foi respeitado por todos, não foi amado por
quase ninguém!
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 103

Capítulo 4
SUA FAMÍLIA...

Charcot estava impaciente como nunca; odiava


esperar. Comprovava isso, ao ver-se que nem o fato de
estar confortavelmente em uma mesa no Le Deux Magots,
o seu café predileto em Paris, conseguiu diminuir a sua
ansiedade.
Estava lendo um guia, acompanhado de notícias
jocosas veiculadas em um encarte do The Manchester
Guardian, um jornal político e barato, escrito de maneira
atraente para os seus leitores através de comentários
picantes sobre as famílias nobres, a fim de ver qual a
última fofoca ocorrida no seio das casas reais, quem casou
com quem, quem perdeu posição, coisas do tipo, quando
um rapaz baixo bateu com as mãos em suas costas. Era
Freud.
104 | Felipe Negreiros

Tinham marcado um breve encontro antes do


psicanalista rumar a Londres, onde faria uma conferência.
Queriam conversar sobre algumas anomalias e temas que
Freud não tinha entendido bem, desde que assistiu às
últimas aulas de Charcot. Ambos não demoraram a iniciar
uma conversa frenética a respeito das diferenças entre a
esclerose múltipla e o mal de Parkinson, bem como sobre a
neurosífilis e a epilepsia, contudo tampouco demorou
muito para que Freud perguntasse a Charcot qual jornal
ele estava lendo. Rindo, Charcot disse-lhe que estava se
deliciando com as novidades de um catálogo sobre a
realeza feito pelo The Manchester Guardian. Mostrando-
lhe, começou a discorrer sobre a linhagem dinástica de
Pedro II, por quem Freud tinha cada vez maior admiração.
– Gostaria muito de estar com ele em minha
próxima visita à França; pretendo me demorar mais desta
vez – falava-lhe Freud – Pedro é realmente uma figura
interessante não só pelo seu saber, mas vejo aqui neste
encarte o quanto é poderosa e intrincada a sua rede de
parentes.
– Olhe bem, meu caro – interrompia-lhe Charcot,
discorrendo que, para instigar a curiosidade sobre a família
de Pedro de Alcântara, não seria sequer necessário fazer
uma referência, mais ao fundo, sobre quão confusa era a
sua árvore genealógica – De fato, de tão intrincada, aguça
a atenção até dos mais desinteressados sobre a sua
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 105

pessoa. Por exemplo, a sua bisavó, do lado paterno, Maria


I, foi casada com um tio dela, Pedro III. Ou seja, ao mesmo
tempo a sua bisavó foi filha e cunhada do pai dela; neta e
nora da mãe dele, Maria Ana d’Áustria, que, por
conseguinte, foi avó e bisavó do seu filho, o futuro rei D.
João VI – Não! – dizia, rindo, Charcot – Nem olhe mais
detalhadamente isso, meu querido Freud! O que interessa,
como estava dizendo-lhe, é que se repararmos
ligeiramente para quem o cercou em toda a sua vida, só
pela importância política desses seus parentes, Pedro II já
seria uma presença obrigatória em qualquer festa.
Freud ria da narrativa e das conclusões do seu
professor, ao mesmo tempo que se despedia dele.
Lamentando-se, falava-lhe que era a hora de cruzar a
Mancha.
É fácil percebermos, a partir de diálogos como esse,
entre Charcot e Freud, que, em um país como o Brasil –
distante dos países centrais, isolado em um continente
pobre e com um povo que gostaria imensamente de ser
reconhecido e respeitado por esses mesmos países
centrais –, Pedro foi a maneira que a elite do Brasil
encontrou de atender ao desejo de fazê-lo um país
justamente mais conhecido e respeitado, pois o seu
Imperador era tão Habsburgo ou Bourbon quanto
qualquer governante europeu.
106 | Felipe Negreiros

1 - DO LADO AUSTRÍACO

Da parte da mãe, a imperatriz Leopoldina, nascida


em 22 de janeiro de 1797 em Viena, na antiga Fortaleza de
Hofburg, Pedro II foi um dos netos do último Imperador do
Sacro Império Romano Germânico e primeiro Imperador
da Áustria.
Conhecido como Francisco II para o Sacro Império
Romano Germânico e Francisco I para a Áustria, o seu avô
soube ganhar e perder em um mundo tão confuso, como o
do início do século XIX.
Todavia, além de neto de um imperador, foi
também primo do mais célebre governante deste mesmo
país, Francisco José: um líder que viveu, nada mais nada
menos, com Bismarck, o chanceler de Ferro, momentos
como o surgimento da Alemanha e a queda do Segundo
Império na França.
Daí, foi primo torto da esposa de Francisco José, a
não menos festejada Sissi, figura tão divulgada em filmes,
como os estrelados por Romy Schneider.
Aliás, Francisco José e Sissi são dois nomes por
demais repetidos a qualquer turista que caminhe pelas
ruas de Viena ou visite os seus palácios mais célebres:
Hofburg e Schönbrunn.
Esses três personagens bastam, para revelar quão
importante era essa sua linhagem.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 107

No entanto, como se isso tudo não bastasse, diga-


se que Pedro foi também primo de Napoleão II, o rei de
Roma. Nascido Francisco Carlos José Bonaparte, esse seu
primo foi filho de uma irmã mais velha e, dentre elas, a
mais querida de sua mãe, a imperatriz Leopoldina. Ela se
chamava Maria Luísa, quem, ainda pelo lado da mãe, faz
de Pedro sobrinho afim da figura mais marcante do século
XIX, aquele que traçou a fronteira entre a Idade Moderna e
a Contemporânea de nossa História: Napoleão Bonaparte.
Realmente, poderíamos parar por aqui, mas se
ainda formos um pouco mais fundo, veremos que a sua
bisavó foi a imperatriz Maria Teresa, conhecida como a
Grande, que foi a mãe da rainha Maria Antonieta,
guilhotinada ao lado do seu esposo, o rei Luís XVI. Esses
dois últimos, portanto, Reis da França, foram seus tios
avós.
Esse parentesco fez com que tantas pessoas se
chocassem, quando o avô de Pedro, o imperador Francisco
I da Áustria, irmão de Maria Antonieta, decidiu casar a sua
filha com aquele que simbolizava a Revolução Francesa, ou
seja, o próprio Napoleão Bonaparte.

2 - DO RAMO PORTUGUÊS

Da parte do seu pai, a sua linhagem era igualmente


nobre, muito embora, por não representarem um país
108 | Felipe Negreiros

central como a Áustria, mas sim Portugal, os portugueses


tivessem menos força ou espaço no cenário das cortes
europeias.
Sempre é bom lembrar que a Áustria, país de
nascimento de sua mãe, comandava, no século XIX, a
Confederação Germânica, o que dava a essa Nação um
peso igual ao da Rússia ou da Inglaterra no jogo político
internacional. Já Portugal, por outro lado, na sua própria
relação com a Espanha, era visto como um país menor,
apesar de autônomo.
Para se entender melhor o que se disse, deve-se ver
que, apesar da Áustria, até hoje, ser um país mais forte do
que Portugal, na época em que Pedro viveu, a sua
representatividade era muito superior. Ao longo do século
XIX, a Alemanha sequer existia. O que havia era uma
colcha sem fim de pequenos reinos, principados, ducados
e estados eclesiásticos, como, por exemplo, Colônia,
Mainz, Treves ou Salzburgo, verdadeiras relíquias abolidas
com as conquistas do período napoleônico, mas, até
então, todas envolvidas em uma tutela direta ou indireta
da Áustria, contudo, ao falarmos em termos de Portugal e
Áustria, o fato é que essa discrepância de representativi-
dade entre um país e outro, em um breve espaço de
tempo, especialmente no período de casamento dos seus
pais, arrefeceu-se.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 109

Apesar de menos influentes e poderosos do que os


seus parentes austríacos, a parte portuguesa de sua
família, ungida pela poderosa força do destino, acabou
proporcionando uma das maiores mudanças da geopolítica
internacional até então, algo que envolveu dos seus avós
ao seu pai e os torna tão significativos para o país de
Pedro, o Brasil, e mais ainda para o país deles, Portugal,
tanto que, se olharmos bem, até por um ângulo mais
pitoresco, a linha reta da sua ascendência paterna parece
propositadamente representada pela avenida mais
importante de Lisboa, capital de Portugal, cujo nome é
Liberdade.
Sem dúvida, nenhum outro monarca marcou tanto
o mundo lusófono como o pai ou o avô de Pedro II. Isso é
tão verdadeiro que, em que pese o quão singular é o bairro
da Beira, no Porto, a segunda cidade de Portugal, falar
desse país é caminhar do mais competente servidor do seu
trisavô, ou, com outras palavras, da grande estátua que
presta homenagem ao maior homem que a Nação
portuguesa produziu, o marquês de Pombal (aquele que
foi o equivalente português ao que representou o duque
de Wellington para os ingleses e que todos os portugueses
retratam, assim como os ingleses retratam Wellington,
como um herói glorioso, responsável por modernizar a
Pátria e diminuir a influência das crendices de uma corte
carola, mística e apática), passando pela homenagem ao
110 | Felipe Negreiros

seu ascendente que terminou com os reinados dos Felipes,


II, III e IV, da Espanha – dando-lhes uma nova
independência –, afixada na praça carinhosamente
chamada de “Restauradores”; atravessar o obelisco que
tem o seu pai ao alto, D. Pedro IV ou I do Brasil, e chegar
ao Rossio, na cidade baixa.
Todos estes lugares estão relacionados à
Sereníssima Casa dos duques de Bragança, a mais rica de
Portugal e também uma das mais peculiares, para se dizer
o mínimo.
Primeiro, porque foi criada em 1401 com o fim de
fazer de um filho bastardo do rei D. João I um nobre, mas
não um rei. Segundo, porque a coroa só lhe chega por
acaso, pois foi pela descendência deste nobre que a elite
portuguesa, quando órfã de uma liderança – uma vez que,
com o desaparecimento de D. Sebastião, ficou sem
herdeiro a Dinastia de Avis –, e sob o domínio espanhol,
achou por bem dar legitimidade e fazer de D. João, então
duque de Bragança, tetravô de Pedro, rei de Portugal, com
o título de D. João IV.
Foi desse homem que se terminou de uma maneira
não pacífica a União Ibérica, criada por Felipe II, com o fim
não só de unir a Espanha a Portugal, mas para fazer nascer
a própria Espanha, eis que no reinado do pai deste, Carlos I
de Castela e V do Sacro Império Romano Germânico, ainda
tínhamos a Espanha repartida na própria Castela, Aragão
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 111

ou Navarra. Foi com esse parente de Pedro que se


encerrou a dinastia de Avis e teve início a dinastia dos
Bragança como detentores da coroa portuguesa. Foi por
ele que, passados cem anos, o seu pai, que também se
chamava Pedro, torna-se o príncipe herdeiro, embora ele
também não tenha sido destinado ao trono, pois era o
segundo filho a nascer do casamento de seus dois avós,
João e Carlota.
A coroa pertencia ao irmão do pai de Pedro de
Alcântara, de nome Francisco Antônio, que era o príncipe
da Beira, título do filho do príncipe herdeiro, intitulado
príncipe do Brasil. Todavia, o seu pai, assim como o seu
avô, herda o trono pela morte do irmão. Aqui surge uma
outra peculiaridade: o próprio Pedro II tampouco foi o filho
primogênito dos seus pais. Na verdade, coincidência ou
não, sempre acabam por morrer o filho do sexo masculino
mais velho dos reis dessa sua linhagem, o que ficou, ao
final, conhecido pelo povo por meio de lendas, como uma
maldição que acompanhava os herdeiros dos Bragança.
Por outro lado, registre-se também – aumentando-
se o leque das curiosidades que cercam os parentes
paternos de Pedro de Alcântara – que o seu avô, além de
ter sido um rei por acaso, casou com a sua avó também
por acaso. O que se passa é que a bisavó de Pedro II, a
rainha Dona Maria I, primeiro monarca feminino da
história portuguesa, em carta ao tio dela, o rei Carlos III da
112 | Felipe Negreiros

Espanha, queria casar o avô de Pedro de Alcântara com


uma neta desse tio rei, a princesa da Sicília, Maria Teresa,
ou, no máximo, com uma sobrinha desse monarca, a
princesa Maria Carolina, filha do duque de Parma. No
entanto, Carlos III insistiu em que o avô de Pedro, filho
dessa sua bisavó, a rainha Dona Maria I, casasse com uma
outra neta sua, justamente a filha do príncipe herdeiro, o
príncipe das Astúrias.
Dizem que tanto o avô de Pedro de Alcântara como
a sua bisavó, a rainha Dona Maria I, foram ludibriados pelo
próprio Embaixador português, que recebeu uma propina
do Governo espanhol e errou propositadamente sobre os
aspectos físicos da princesa, que veio a casar com o seu
avô e acabou por ser a sua avó: a princesa Carlota
Joaquina. Sendo a única característica que acertou a que
dizia respeito à vivacidade e ao comportamento errático
da avó de Pedro, a começar por ter mordido a orelha do
seu avô na ocasião do casamento deles. Outra
peculiaridade diz respeito ao próprio governo dessa sua
bisavó e a doença que a acometeu no meio de sua vida.
Dona Maria I foi filha de D. José I e tornou-se rainha
de Portugal com a morte dele, que teve, como único
mérito, o de ter entregue o governo nas mãos da pessoa
certa, o citado marquês de Pombal. Maria I foi casada com
um tio, que, apesar de não ser o rei de fato, tinha o título
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 113

de Pedro III e morreu logo no início do seu reinado, o que


já a abalou emocionalmente.
Porém, a morte que lhe causou mais dor e foi a
responsável pelo seu enlouquecimento foi a do seu filho
mais velho, José. O fato é que, desde 1720, se tinha
descoberto a vacina para a varíola, e a rainha, mesmo
aconselhada, não aceitou imunizar o seu herdeiro, que
veio a falecer justamente dessa doença em 1788. Já se
sentindo culpada pela morte do seu filho que ela adorava,
soube, três meses depois, que a sua filha, casada com o
príncipe herdeiro da Espanha, contraíra a mesma doença
com a filha recém-nascida e até o seu esposo, em seguida,
a contraíra também.
Foi com a morte dessas quatro pessoas mais a do
seu confessor, e a substituição deste pelo Bispo do Algarve
– que, diferentemente do anterior, vivia atemorizando-a
sobre a sua ida ao inferno, um tema que a apavorava – que
a rainha passou a ter crises histéricas sem fim, tornando-se
inabilitada para o exercício do trono.
Assume, desta feita, esse avô de Pedro de
Alcântara, o príncipe D. João, futuro rei D. João VI. Partiu
dele concretizar o evento que, segundo os mais
destacados historiadores, foi decisivo para os destinos do
Brasil e para que esses dois ramos da linhagem de Pedro,
tão díspares, se reunissem: a mencionada fuga da família
real para o Rio de Janeiro, em 1808. E tudo o que foi a dita
114 | Felipe Negreiros

fuga da família real portuguesa aconteceu por aqueles


motivos que geralmente norteiam os interesses das
cabeças mais coroadas: meras questiúnculas pessoais,
responsáveis por interferir na vida de milhões de pessoas.
De um lado, tínhamos esse seu tio poderoso,
Napoleão Bonaparte, e, de outro, esse seu avô, na época,
regente de Portugal. Devido a uma decisão do primeiro
que o segundo teve de, pela primeira vez na História, fazer
com que se mudasse a sede de um império de uma cidade
europeia para uma cidade sul americana. O que se passou
é que esse tio afim de Pedro II, Napoleão Bonaparte, foi
daquelas pessoas que marcaram, como ninguém, a história
da humanidade, de logo, por ter sido reconhecido por seus
incríveis feitos e, assim, ter ascendido ao trono. E isso se
deu contrariando em muito a tradição da época, eis que o
poder na Europa, até então, era herdado. E se deu
justamente por causa da Revolução Francesa, que tinha,
como o seu mais profundo alicerce, o fato de os homens
serem iguais perante a lei, as profissões estarem abertas
igualmente ao talento, e a propriedade privada ser um
direito natural, sagrado e inviolável.
Daí o tio de Pedro ter chegado tão longe. Eis que
tudo o que ele alcançou só lhe veio pelo mérito, o que não
foi pouco. Só a título de exemplo: ultrapassou ele, na
burocracia do Estado Danton, o revolucionário mais
poderoso, reconhecido como uma pessoa já imensamente
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 115

talentosa, dissoluta, mas, infelizmente, aos olhos de


muitos, corrupto. Tornou-se mais querido do que o próprio
Robespierre, o advogado fanático, frio e afetado que tinha
um senso de excessivo monopólio privado da virtude.
Assim, como um político brilhante, versátil, inteligente,
imaginativo, soberbamente eficiente e um intelectual sufi-
cientemente completo, Napoleão ficou para a História
como alguém singular.
Capaz como ninguém de entender e supervisionar o
que seus subordinados faziam, esse tio afim de Pedro II
desenvolveu em torno de si, um verdadeiro culto. Muito
pelo fato inédito de, ao longo dos primeiros dez anos do
século XIX, ter vencido todos os mais fortes exércitos do
mundo, incluindo aí o da família do avô por parte de mãe
do próprio Pedro II, subjugado nas memoráveis batalhas
de Austerlitz e Jena.
Eram batalhas memoráveis, sobretudo para Pedro
II, que, ao longo da vida, repetiu para os seus netos que foi
aí, neste momento (de glória por um lado), que esse seu
tio afim, ao ver reconhecida a sua desmedida ambição,
perdeu, para sempre (em um momento, no entender do
mesmo Pedro II, de extrema tristeza, por outro lado), o
apoio e o respeito de homens como Hegel. E de um
restante dos grandes homens que ainda o acompanhavam,
pois figuras como Bolívar já o tinham deixado na altura do
seu coroamento. Este último até fez duras críticas quando
116 | Felipe Negreiros

o viu tornar-se imperador, assim como Beethoven, que,


além das críticas, revogou-lhe a dedicatória da Sinfonia
Heroica.
Napoleão tinha ambição desmedida, pois não se
contentou de o rei da Espanha mendigar a sua proteção; o
da Prússia ter fugido de Berlim; o da Holanda ter passado
do estatuto de monarca de um país que outrora liderou a
Companhia das Índias Ocidentais e abrigou artistas como
Rembrandt, Rubens e Vermeer, ao de protegido em
Londres.
Para esse tio afim de Pedro II, não valeram nada as
vitórias alcançadas à conta de uma incrível máquina de
guerra – a Grande Armada, ou como ficou mais conhecida
pelo mundo, em francês mesmo, a Grande Armée – que
fez com que ele se tornasse o personagem mais falado em
livros, à exceção apenas de Cristo.
Foi pouco para ele ter comandado uma força militar
que enterrou o uso tradicional de exércitos bem treinados
e pouco numerosos, fazendo entrar em cena uma força
humana formada a partir do recrutamento de toda a
Nação. Esse foi um feito gigantesco obtido através de uma
lei chamada de amálgama, de 21 de fevereiro de 1793,
responsável por amalgamar o velho batalhão de tropas
regulares da França – orgulhoso de sua aptidão técnica – e
um novo batalhão de voluntários, composto por pessoas
extremamente entusiasmadas pelos ideais revolucionários,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 117

mesclando, dessa maneira, capacidade técnica e


disposição ideológica.
Napoleão, infelizmente, não se satisfez, ao fazer
surgir, a partir daí, uma força assentada em massas
mobilizadas e motivadas, concretizada por meio de uma
outra lei, de nome Jourdan, de 5 de setembro de 1798.
Essa lei declarou obrigatório o serviço militar entre os
jovens de 18 a 24 anos e fez aparecer uma arma mortífera,
um contingente de soldados coesos, onde a bravura
contaria mais do que o saber como instrumento de
ascensão hierárquica, tornando-se, assim, mais condizente
com um exército que nunca pararia em uma caserna, mas
viveria combatendo no “front”.
Isso tudo provava a insatisfação de Napoleão,
alguém que, nas oito semanas que perdurou a Batalha de
Toulon, com a finalidade de proteger o governo
implantado com a Revolução Francesa, passou de capitão a
general.
Napoleão alcançou, daí, o posto de comandante do
exército aos 27 anos; aos 30, o de chefe de governo; e, aos
35, o de imperador da França. Um feito notável, embora
insuficiente para o seu ego, talvez por ser algo não
surpreendente em termos do que se passava nessa mesma
França à época. Isso porque, aos elementos citados que
caracterizaram a força militar francesa, técnica,
entusiasmo e número, deve-se somar a impressionante
118 | Felipe Negreiros

juventude dos seus quadros militares, cujos mais


destacados generais também estavam com idade de vinte
ou trinta anos, como Murat ou Davout.
Juventude e promoção relâmpago eram
fundamentais para a capacidade de improvisar, mover-se e
ser flexível, para fazer surgir um exército em que a pura
coragem ofensiva e a moral de luta não tinham rivais; um
exército composto por um corpo de soldados, para além
do que se falou, assaz politizados. Eram verdadeiros solda-
dos cidadãos, compatíveis com um comandante que, como
se disse, estava longe de ser um imperador qualquer.
Napoleão era marcado por essa incontrolável ambição
pessoal e política cuja estratégia era centrada na utilização
de um corpo coeso de militares capaz de movimentar-se
com o máximo de velocidade em seus deslocamentos,
recorrendo sempre à ofensiva como elemento de surpresa,
pautada na sua infantaria, na luta corpo a corpo, e na
baioneta.
Em síntese, Napoleão, esse tio afim de Pedro II, foi
alguém sempre insatisfeito e insaciável que alcançou um
número ininterrupto de vitórias, cujo paralelo seriam os
êxitos de Carlos Magno, rei dos francos, por 45 anos, que
chegou a ser coroado imperador de Roma, pelo próprio
papa, no natal do ano 800.
Todas as suas vitórias eram respaldadas pela
proclamação do citado Danton, feita em 31 de janeiro de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 119

1793, perante a Convenção, quando este mesmo Danton


disse que as fronteiras de uma França revolucionária não
eram as determinadas por acordos políticos anteriores,
mas aquelas marcadas pela natureza: o Reno, os oceanos e
os Alpes.
Foi munido com isso que Napoleão despedaçou a
ordem geopolítica internacional vigente até então,
fundada pelos tratados de Münster e Osnabrück,
chamados de Paz da Westfália, responsáveis por dar fim à
Guerra dos Trinta Anos, em 1648, e fez surgir um sen-
timento político de que ou se lutava a favor ou contra os
princípios de 1789, ou se lutava a favor ou contra os
princípios ainda mais incendiários de 1793.
Como nos diz Eric J. Hobsbawm, com o seu
engenho militar, Napoleão deu ao mundo um novo
discurso político, lastreado em códigos e em uma
burocracia que fez da França algo mais até do que ela já
tinha sido durante todo o século XVIII. Tornou-a, de fato, o
maior rival econômico da Grã-Bretanha, conferindo-lhe um
comércio externo que se multiplicava e só causava ao
mundo uma terrível ansiedade, pois confrontava-o com
um sistema colonial surpreendentemente mais dinâmico
do que o próprio sistema colonial britânico.
Se é possível falar que o fim do século XVIII foi uma
época de crises para os velhos regimes da Europa e os seus
sistemas econômicos, foram as decisões de Napoleão as
120 | Felipe Negreiros

maiores responsáveis por essas crises. Ele foi o rosto do


que começou como um consenso de ideias gerais entre um
grupo social já bastante coerente, a burguesia, o grupo dos
filósofos e dos economistas, cujos estudos desenvolvidos
eram constantemente difundidos pela maçonaria e
associações informais.
Na verdade, ao ser o responsável por tudo isso,
como um guerreiro que era, Napoleão acabou por afetar
esse avô de Pedro II, pela parte de seu pai, o homem que
seria o rei D. João VI, e provocar a fuga dessa parte de sua
família para o Brasil.
Essa fuga foi algo não só sem paralelo no jogo político
internacional até então, mas foi também o primeiro dos
dois fatos que concretizaram um outro, se não da mesma
dimensão, muito improvável: o do Brasil ter tido dois
imperadores como chefe de governo, entre os quais, Pedro
II, um Habsburgo educado sob os ditames mais rígidos de
uma casa real europeia.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 121

Parte 2
FUGIRAM...
122 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 123

Capítulo 5
SEM QUERER A AMÉRICA

Todas as tardes, desde muito jovem, Pedro II


gostava de se trancar em seu gabinete, no terceiro andar
de São Cristóvão. Lá passava horas estudando; amava ficar
lendo romances, poesias, biografias e livros de história ou
filosofia, sempre ouvindo os passos dos cavalos na rua
abaixo ou a música do piano de Francisca, sua irmã caçula,
no segundo andar. Vez ou outra ia ao parapeito das
enormes janelas, abria as vidraças e deixava entrar o ar
fresco dos morros verdejantes, cujas curvas deixavam o
seu Rio de Janeiro ainda mais belo.
Pedro amava a cidade e aquela paz!
Ao final da vida, entre um hotel ou outro
peregrinando pela Europa, dizia sempre aproveitar as
tardes para pensar sobre os dois eventos da História do
Brasil decisivos, para torná-lo imperador. Por sinal, essa foi
124 | Felipe Negreiros

uma das primeiras reflexões políticas que fez ao longo de


sua vida.
Confidenciava até a senadores do império,
responsáveis por acompanhar a sua educação, estudar
com afinco esses dois fatos, no intuito de demarcá-los e
mostrar aos mais chegados como a História é refém de
surpresas imponderáveis. Ou como a política realmente é
algo que, se de um lado, e até de uma forma geral, tem
uma estrutura marcada pelo bom senso, de outro,
expressa um canto em que esse mesmo bom senso não
pode entrar, onde, de uma certa maneira, as medidas
esperadas não são aplicáveis e as leis comuns não
funcionam.
Isso lhe era algo realmente forte. Mexia com ele,
daí relatar, volta e meia, em seus diários, a fuga de sua
família para o Brasil e o fato de a independência ter sido
feita por seu pai e não pelo povo por meio de uma revolta,
uma revolução, ou mesmo através de um levante militar,
como acontecimentos únicos no mundo e cruciais, para
que ele não terminasse por morar em Viena ou em Lisboa
e fosse apenas um príncipe, sem a possibilidade de aceder
à coroa de Portugal; até mesmo, por inexistir entre os
Bragança as travas da lei sálica que restringe aos homens a
possibilidade de ascensão ao trono. Diferentemente do
que ocorreria na Espanha, por exemplo, seria a sua irmã,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 125

Maria da Glória, e não ele, a herdar o trono do Reino


Unido entre Portugal, Brasil e Algarve.
Pedro se lamentava, via que sacrificou uma vida de
estudos e prazer ao assumir os destinos do Brasil e isso, na
realidade, deveu-se muito ao que decidiu o seu avô, D.
João VI, o herdeiro dessa sereníssima casa dos duques de
Bragança.
Pedro II, embora soubesse o que significava ser um
Habsburgo, orgulhava-se também da sua família por parte
de pai. Não se sabe quantas vezes ele reuniu sua aia,
Dadama, e suas irmãs, Francisca e Januária, para lhes
ensinar ter partido de D. Afonso a legitimidade para D.
João IV, antepassado direto do seu avô, fazer a chamada
restauração, um movimento político que pôs fim à União
Ibérica, ou, em outras palavras, ao domínio espanhol sobre
Portugal.
Na verdade, Pedro II adorava a personalidade dos
seus antepassados portugueses e, especialmente, a de seu
avô por parte de pai, mas, ao mesmo tempo, amava rir-se
de sua figura. Pedro comentava:
– Meu avô, o rei D. João VI, apesar de metódico, era
uma pessoa indecisa, medrosa e refém de fortíssimas
crises de depressão. Soube-se que o embaixador britânico,
na corte, notou nele um ar pasmado que, segundo
afirmava, seria próprio da ociosidade em que vivia. Ele se
referia a si mesmo na terceira pessoa: “sua majestade quer
126 | Felipe Negreiros

comer, dormir, passear”, e embora ciente de sua


autoridade, era incapaz de fazer-se respeitar.
Suas irmãs riam, quando, imitando-o, Pedro II o
representava através de gestos.
Dom João VI era gordo, letárgico, bonachão e tinha
estatura mediana e o lábio inferior grosso e caído; ficava
exausto com uma simples caminhada de poucos metros;
bocejava em festas e recepções oficiais, tendo por único
prazer o de ouvir os cantos gregorianos na companhia dos
monges que com ele moravam no seu imenso palácio de
Mafra.
Pedro acorria à janela e, como se estivesse
apontando para o palácio, chamava as irmãs e dizia,
abrindo os braços:
– Uma mistura de palácio, igreja e convento, com
264 metros de fachada, 5.200 portas e janelas, que
simboliza o ciclo do ouro das Minas Gerais do Brasil e está
situado a 30 Km da Lisboa desse nosso avô, meninas.
Após toda a brincadeira, Pedro II expunha o porquê
de sua admiração:
– Pois é, irmãs, foi ele, um homem solitário, mal-
amado, sonhador e desejoso de ter uma vida simples,
monástica e de reflexão, que, sob a coação do medo,
enfrentou como ninguém o nosso tio afim, Napoleão
Bonaparte, vivendo e morrendo como rei, enquanto as de-
mais cabeças coroadas da Europa, na maior crise do
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 127

chamado “anciens régimes”, rolavam pelo cadafalso. Ele


não venceu só um grande estrategista militar, e isso é
muito importante que se saiba, mas todo um contexto
revolucionário que modificou não só a estrutura da maior
potência continental europeia, a França, ou mesmo do seu
vizinho e rival, a Grã-Bretanha, mas também do mundo
inteiro. Não esqueçamos que explodiram em 1780 uma
revolução aristocrática, uma revolução burguesa e uma
revolução popular na França. A primeira, a revolução
aristocrática, quis impor ao rei uma monarquia constitu-
cional à moda inglesa, que culminou com os Estados Gerais
em 1791, um órgão de governo responsável por marcar os
anseios da segunda revolução, a burguesa, e abrir o espaço
para o surgimento de um período mais radical,
caracterizado pela terceira onda revolucionária citada, a
popular, a qual fez surgir uma ideia de um Estado onde
todos são cidadãos e possuem direitos iguais. Essa é uma
tese tão carregada de boas intenções quanto de
inviabilidade prática, que apenas gerou uma verdadeira
paranoia, cujo resultado foi a eliminação física dos
próprios revolucionários. Chamada de terror, esta fase só
foi interrompida, quando o exército assume, por meio de
um diretório – posteriormente transformado em um
consulado – e um império que não tinha outra
predisposição senão a de romper e perseguir os soberanos
europeus estabelecidos.
128 | Felipe Negreiros

Realmente, não havia como Pedro II não se


orgulhar de seu avô, um homem que fez o que fez,
segundo a história, combinando bondade, inteligência e
senso prático; por sinal, três virtudes tão caras ao próprio
Pedro II.
D. João VI era, para ele, um exemplo, alguém que,
ao longo da sua vida, demonstrou mais do que consciência
e simplicidade em seus atos, e venceu todos os seus
desafios por ser não um marcial, como o seu pai ou esse
seu tio afim, mas uma pessoa simultaneamente branda e
sagaz, insinuante e precavida, afável e pertinaz. D. João
precisou ser e foi tudo isto quando entrou no campo de
visão deste tio de Pedro: Napoleão Bonaparte. E isso
aconteceu por causa, como dito – em um ambiente de
primos, compadres –, de um detalhe, fundado em cansaço
e paternidade.
O que se passou é que, sem aguentar mais as
inúmeras coalisões criadas contra a França e já pai de um
Habsburgo, o tio de Pedro II acolheu uma sugestão de seu
mais importante ministro, Talleyrand, que, para Henry
Kissinger, ex-Secretário de Estado Norte-Americano nos
Governos Nixon e Reagan, foi o mais capaz político do
mundo. Talleyrand sobreviveu, mantendo-se como líder,
durante o terror, à Era Napoleônica, à restauração da
monarquia dos Bourbons, aos 100 dias de retorno de
Napoleão de Elba, e à segunda restauração dos Bourbons,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 129

pós Waterloo, comandando, ao final, o Congresso de


Viena. Esse último foi outro grande momento, que, para a
história universal, só teve paralelo com a mencionada paz
da Westfália, pois redesenhou o mapa da Europa para os
37 anos seguintes.
Talleyrand, segundo historiadores como Eric
Hobsbawm, “continua sendo o modelo do diplomata
francês até os dias de hoje” e, de acordo com Kissinger,
quem teve, em que pese a sua grotesca figura de caminhar
manco de uma perna, mais êxito e criatividade política do
que aquele que lutou no mundo com mais afinco para tê-
lo: o imperador Carlos V, pai de Felipe II, da Espanha.
Pois, responsável pela política externa francesa de
1814 a 1835, foi de Talleyrand a tese de que, para
derrotar, radicalmente, qualquer inimigo, não havia outro
caminho, a não ser o de cortar o que irriga a sua economia,
uma sugestão, que, séculos depois, esse mesmo Kissinger
vaticinou, quando do advento de terroristas, como os da Al
Qaeda ou do Estado Islâmico, que ameaçam os Estados
Unidos nos dias hodiernos. Napoleão colocou em prática a
sugestão, na sua época, por meio do chamado Bloqueio
Continental: uma ordem de fechamento de portos que se
tornou o grande pesadelo desse outro lado familiar de
Pedro II.
O seu avô, na ocasião dessa ordem, teve de criar
uma estratégia para enganar o seu tio, desembocando na
130 | Felipe Negreiros

mencionada vinda de toda a sua família, e também de toda


a sua corte, para o Brasil. Esse, reitere-se, acabou por ser o
episódio histórico que mais interferiu na vida de nosso
país, e, consequentemente, selou o destino de Pedro de
Alcântara, como o futuro Pedro II do Brasil; foi um dos
episódios, inclusive, que mais lhe chamou a atenção.
Como expôs a Caxias, certa vez, logo que terminou
uma das suas mais cansativas aulas de esgrima, ao pé de
uma jaqueira, sob a qual costumava relaxar e ouvir os
pássaros pousados no amplo jardim, situado no lado
frontal do palácio de São Cristóvão:
– O meu avô pode não ter sido um gênio militar,
mas é fácil concluir, meu caro professor, que, ao decidir
fugir para o Brasil e não submeter Portugal a uma guerra,
que, a princípio, não tinha expectativas de vencer, ele
impactou muito a geopolítica, até então vigente. Só ele fez
ver, de uma maneira definitiva, quanto Portugal, a me-
trópole, era totalmente dependente de um país que era a
sua Colônia. Ele fez isso, pois entendia que não se podia
mais esconder o fato de que o Brasil foi colonizado por um
centro fraco naquela ocasião, até porque a hegemonia
portuguesa entre os séculos XV e XVI declinara e, desde o
século XVII, a Colônia estava entregue à própria sorte. Para
o meu avô, infelizmente, era a altura de se evitar o olhar
da fé e discernir que o Portugal grande de outrora
transformara-se em um país pequeno, débil, atrasado, ou
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 131

mesmo uma semicolônia britânica, segundo qualquer


padrão crítico.
– Vovô, meu caro duque, percebeu antes de muita
gente que a grande revolução, pela qual o mundo passara
em 1789, foi o triunfo de uma indústria capitalista que
Portugal não possuía. Era a época não da igualdade ou da
liberdade que tantos sonhadores e idealistas inocentes
proclamavam, mas de uma classe média consumista,
liberal e burguesa cujos interesses só refletiam os
interesses da Grã-Bretanha e da França.
– E isso – já argumentava o próprio Caxias ao jovem
quase alemão que se prostrava à sua frente – tornava fácil
até perceber a conclusão a que chegou o seu avô, pois, se,
de um lado, havia uma corte portuguesa sem dinheiro, só
com o controle do governo, por isso mesmo, capaz de
distribuir favores e privilégios, de outro, havia um país
riquíssimo, embora com uma elite deseducada, sem
refinamento, qualquer traço de nobreza ou mesmo bom
gosto e sofisticação. Portugal tinha de se voltar para o
Brasil; era a sua única chance! Essa foi a conclusão de D.
João. E ele estava correto, penso eu, Majestade.
– De fato, o que produzíamos, ouro, fumo e açúcar,
era, naquela ocasião, o eixo do comércio de Portugal –
confidenciava Pedro a Caxias, mais uma vez com muita
seriedade – A nossa balança comercial era tão favorável,
de uma maneira que, podíamos falar, ia de dois para um.
132 | Felipe Negreiros

Daí ter o grande Pombal defendido a ideia de que, diante


de qualquer distúrbio, dever-se-ia mudar a sede do
império para o Brasil, sem maiores vacilações.
Pedro falava até com ironia, ao ponderar ter sido
esse plano concretizado justamente pelo afilhado de
Pombal, Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde de Linhares,
um diplomata cosmopolita que viveu por muito tempo na
corte da Sardenha e em Turim como homem de seu tempo
que acreditava ser possível conciliar uma arte de viver
fundada no espírito de casta e privilégios com as exigências
que projetavam nas veias da Europa os princípios da
justiça, tolerância e cidadania dos quais falavam os
iluministas. Que fez dele o mais importante e influente
ministro do seu avô, que, segundo registrava, de tolo não
tinha nada, pois reconheceu o valor de Pombal e de todos
os seus familiares logo depois de sua própria mãe tê-lo
desterrado. Tudo isso dito por Pedro ao filho do homem
que provocou a queda de seu pai.
Pedro II, sem dúvida, usava esse exemplo, para
demonstrar estar a sua mente sendo educada, para não
ver rancor ou outra emoção qualquer no trato da coisa
pública. O seu espírito tinha de ser voltado não para os
caprichos pessoais, mas para perceber a ética e o mérito
das pessoas.
Assim, continuava o seu raciocínio expondo que o
conde de Linhares, antevendo os fatos, até pelo que se
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 133

passava na Europa e o que se passou, mesmo que


pontualmente, no Brasil, foi inteligente demais ao se
aproximar, nos fins do século XVIII, da elite brasileira,
fazendo com que essa mandasse os seus filhos a Coimbra,
permitindo agora que houvesse toda uma manipulação
dos ideais dessa mesma elite.
Linhares, segundo Pedro, deu um golpe de mestre
ao se aproximar dos maçons brasileiros e ao aproximá-los
dos maçons portugueses, fazendo como que uma espécie
de irmandade única. Ele viu que a ideologia pós 1789 era a
maçônica, expressa com tão sublime inocência na “flauta
mágica”, escrita por Mozart já em 1791. E com esse
estímulo, Coimbra, a velha cidade às margens do
Mondego, com a sua universidade, detentora de uma rica
biblioteca em madeiras exóticas, uma sala de capelos,
palco das cerimônias acadêmicas, com as galerias de
pinheiros, sé velha e a igreja do mosteiro de Santa Cruz,
ruas seculares, onde a cultura romana deixou suas marcas,
passou a receber jovens de toda a colônia e não mais,
quase que exclusivamente, de pessoas das Minas Gerais.
Lá passariam esses jovens a mais marcante fase da vida e
se identificariam não só como brasileiros, mas como
portugueses também, o que deu certo demais.
A universidade de Coimbra fez surgir um grupo de
jovens mais dinâmicos e criativos, tornando o Brasil um
país bem mais à frente que a sua decadente e estagnada
134 | Felipe Negreiros

metrópole. Ao todo, foram 450 inscritos em matemática e


250 em filosofia natural.
Pedro dizia entusiasmado:
– Veja, Caxias, entre esses jovens destacou-se o
meu primeiro tutor: José Bonifácio. Tenho realmente
muito orgulho dele. Ele prova o valor de um brasileiro,
quando este estuda e se dedica ao bem comum. Não foi à
toa que foi considerado, em sua época, mais experiente e
preparado do que qualquer outro estadista ou intelectual
português; um reconhecimento a um homem que, diga-se
de passagem, sempre que se escuta, nos leva a concordar
mais ou menos. Mesmo porque é deveras importante ver
que ele e os outros que acorreram a Coimbra, seguindo o
estímulo deliberado de Rodrigo de Sousa Coutinho, vi-
veram em um mundo diverso do de hoje.
– Naquele instante, a Europa, além de ser o centro
original do desenvolvimento capitalista ainda era, de
longe, e até ainda mais do que hoje, a peça mais
importante da economia e da sociedade burguesa
mundial. Era o tempo em que não se transformava o que
se criou, mas se fazia surgir algo novo a cada instante. Os
jovens aprenderam a enxergar cidades cosmopolitas como
Londres e a entender como se gerava o seu dinamismo.
Nessa quadra da história, Londres era incontestavelmente
a maior e mais vibrante cidade do mundo, com mais de um
milhão de habitantes e chaminés que lançavam uma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 135

nuvem de fuligem que cobria o telhado das casas. Foi


neste momento que esses jovens testemunharam um
ambiente criativo, cujas ideias transitavam livremente, por
meio de 278 jornais que se contrapunham ao ardor
revolucionário, mas autoritário da França napoleônica,
onde a opinião pública, apesar de existir, era submissa ao
capricho de um Imperador. E isso produziu tantos reflexos,
que, ainda em 1814, só haviam pouquíssimos periódicos
em solo francês, cuja tiragem mal chegava a 5 mil
exemplares. Foi o tempo da máquina a vapor de Watt, de
“Fausto”, de Goethe, da “Quinta Sinfonia”,
de Beethoven; indiscutivelmente, ao menos uma parte da
elite brasileira desses pródigos, locupletou-se. E isso não é
pouco, quando se olha que um cientista ou um maduro
viajante daqueles tempos como, por exemplo, Alexander
von Humboldt – falecido em 1859 –, conhecia somente
pedaços do mundo habitado. Imagine, meu caro duque, o
que representava estar ou ver uma cidade que sintetizava
as culturas mais distantes, que, com certeza, nunca iria se
poder visitar.
Pedro se entusiasmava com as conclusões que fazia
para um homem mais voltado ao aspecto físico que ao
intelecto. Assim, ponderava:
– Olhe, Caxias, foi essa mesma elite que recebeu
minha família e, consequentemente, a corte portuguesa. E
esse estímulo de levar um maior número de jovens a
136 | Felipe Negreiros

Coimbra e acompanhá-los lá fez com que estes


recebessem a corte no Brasil como leais súditos.
Pedro continuou: – O desembarque testemunhou
uma imensa festa popular. Os habitantes do Rio de Janeiro
receberam os Bragança com entusiasmo. Atapetaram as
ruas de areias brancas da praia com ervas aromáticas;
colchas da Índia tremulavam nas janelas e varandas; os
sinos repicavam; cada um dos que desciam dos navios era
recebido com uma chuva de flores e plantas odoríferas. Na
fronte das igrejas, como a do Rosário, jogava-se incenso,
foguetes eram atirados ao ar, celebrou-se por 9 dias com
luminárias nas ruas a chegada de minha família. Eles não
se aproveitaram do momento de angústia de vovô para
gerar qualquer ruptura.
– Eram portugueses lidando com portugueses,
sobre um tema realmente da mais alta relevância para os
destinos de nosso país, de Portugal e da Europa –
arrematava Caxias.
– Mas, se não! – completava Pedro esse raciocínio,
afirmando: – Linhares aprendera com os movimentos
libertários anteriores. Querendo ou não, apesar dos
caminhos a que a França seguiu com Napoleão, as ideias
francesas estimularam um sentimento de ruptura entre as
colônias e as suas metrópoles. A decepção com os ideais
franceses, sentida por homens como Bolívar ou San
Martin, só veio depois. Nas últimas décadas do século XVIII
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 137

não só o que ocorreu na França, mas também nos Estados


Unidos, mexeu com esses homens. Quando, em 1776, as
treze colônias norte americanas romperam com o domínio
inglês e aprovaram a Declaração de Independência dos
Estados Unidos, apareceu no Brasil o mesmo sentimento
libertário. À essa época, o velho regime colonial estava
com os dias contados. Iniciara-se a passagem de um
regime de monopólio para o de livre concorrência, do
trabalho escravo para o assalariado. Surge o livre-câmbio,
a igualdade civil e o ideal de liberdade e propriedade. Essas
ideias foram aceitas pela Inglaterra, envolvida no processo
de revolução industrial, no momento em que acata a
independência das treze colônias e acelera a luta contra o
tráfico de escravos, abolindo-o logo no início do século XIX.
Isso não é surpreendente, pois ela era a maior
representante do capital industrial. Para a Inglaterra, era
crucial e urgente a abertura dos mercados das colônias,
tanto para que ela comprasse as matérias primas quanto
para que vendesse manufaturados. Meu avô sabia quanto
Portugal era cada vez mais dependente da Inglaterra. Daí
ter feito, até antes da sua chegada ao Brasil, a abertura do
nosso comércio e uma outra série de concessões para que
os comerciantes ingleses se instalassem em portos
brasileiros.
A história se alongava:
138 | Felipe Negreiros

– Linhares viu, com maestria, a posição britânica


em detrimento do monopólio luso, nos finais do século
XVIII; o contrabando do açúcar, tabaco, anil, madeira,
cacau, pimenta e ouro; o crescimento cada vez maior do
comércio interno que aumentava o caráter deficitário
entre a metrópole e a sua colônia, enfraquecendo assim a
coroa. Então, a elite portuguesa levou muito a sério as
conspirações que surgiram nessa fase em decorrência de
tais fatores. A rebelião que mais repercutiu ocorreu em
Minas Gerais entre os anos de 1788 e 1789, e envolveu
uma parte da elite estudada, daí o entendimento de
Linhares de que esta deveria estar mais próxima dos
interesses de Lisboa. Não se podia deixar os filhos desses
homens endinheirados, mas com pouca cultura, soltos em
um mundo tão radicalizado contra o poder estabelecido.
Diz-se que um brasileiro de nome José Joaquim Maia, que
estudava em Montpellier, chegou a se encontrar com
ninguém menos que Thomas Jefferson, que chegou a
notificar o Congresso americano sobre a próxima rebelião,
nos mesmos moldes da que ocorreu nas treze colônias,
desta vez na América portuguesa. E não só esse Maia
reproduziu as ideias iluministas em curso: Domingos
Barbosa, um dos maiores proprietários de terra de Juiz de
Fora, e José Álvares Maciel, filho do capitão-mor de Vila
Rica, foram exemplos. Só para se ter uma ideia desta
urgência sentida por Linhares, dos 27 estudantes
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 139

matriculados na Faculdade de Direito de Coimbra, 12 eram


mineiros. E dos 24 envolvidos na conjura, 8 tinham
estudado lá. Todos instruídos por livros como os de
Voltaire e Condillac. Linhares se apercebeu do problema,
quando interveio em uma outra fonte de revoltas, que foi
uma tal sociedade literária do Rio de Janeiro. Seus
membros só não sofreram condenações duras e acabaram
por ser libertados por influência do próprio Linhares. Já na
Bahia, levantaram-se os representantes das classes mais
baixas em mais uma conspiração de logo conhecida, e os
seus principais líderes enforcados. Em suma, ao chegar a
hora, os portugueses já estavam bem preparados, para
fazer a transferência da corte, algo que a própria Inglaterra
reconheceu como monumental. Tanto que a mesma, ao
dar segurança à minha família, nesta passagem da sede do
império, de Lisboa ao Rio de Janeiro, designou o seu mais
importante comandante, Sidney Smith. Smith era um
oficial, veja só, cujo currículo o colocava como o mentor da
luta na guerra da independência americana e listava
combates contra Napoleão e o czar da Rússia.
– Certamente, tal fato, tão marcante no destino do
Brasil, foi algo incrivelmente grandioso, meu príncipe –
completava Caxias seu raciocínio, falando-lhe – Digo isso,
pois gerou a mudança, não só das pessoas, mas da
burocracia, da inteligência, como o acervo da Real
Biblioteca, que, na época, era 20 vezes o da Biblioteca do
140 | Felipe Negreiros

Congresso americano, e de toda a prataria usada pela casa


real.
– Sem dúvida, mesmo ciente da chegada de Junot
com antecipação, meu avô fez algo inimaginável –
interrompia Pedro, continuando a falar – Vovô trouxe a
uma vila no meio do nada artistas franceses como Joachim
Lebreton, secretário do Instituto de Belas Artes da França
e, com ele, os pintores Nicolas Antoine Taunay, Jean
Baptiste Debret e Arnaud Julien Pallière, o escultor August
Marie Taunay, o arquiteto Grandjean de Montigny, o
gravador Zepherin Ferrez, e, ainda, o ornamentista Marc
Ferrez, que era discípulo de Louis David, o pintor favorito
de Napoleão. Veio também o famoso músico austríaco
Neukomm, discípulo de Haydn, amigo de Mozart, a quem
fez questão de tornar conhecido nos saraus da corte e das
casas dos nobres mais proeminentes, grande parte das
quais só tinham ouvido mais da cultura africana do que da
europeia. É de se recordar que, à esta época, nas noites de
luar, era na beira d’água que as famílias se encontravam,
ouvindo e cantando modinhas e lundus ao violão. Isso para
não falar novamente que foi a primeira vez que príncipes
das casas reais, herdeiros das poderosas dinastias Medici,
Habsburgo ou Bourbon, desembarcaram nesse novo
mundo, mais de três séculos depois do seu descobrimento
– intervinha Pedro.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 141

– Não há dúvida de que o seu avô, D. João VI,


apesar dos pesares, e por mais incrível que pareça, repetiu
a saga de Eneias, ao fugir de Troia, carregando o pai e o
filho dele – ponderava Caxias, finalizando – No caso, ele
transportava a mãe, a rainha Dona Maria I, impedida de
governar por sofrer transtornos mentais, desde o dia 10 de
fevereiro de 1792, quando teve, no meio de uma peça de
teatro, uma crise nervosa, e, também o filho, Pedro, futuro
Pedro I do Brasil, que já possuía, na ocasião, o título de
príncipe da Beira. D. João trouxe em torno de 15.000
funcionários portugueses, algo que bem se dimensiona,
quando se vê que o presidente Adams, ao transferir a
capital dos Estados Unidos da Filadélfia para Washington,
levou 1.000 pessoas.
Entusiasmado, Pedro dava seguimento: – E se isto
não for suficiente, para se ver o porte do que houve,
repare-se, que, de logo, a fim de se conseguir a acolhida
desta máquina, o governo que tinha em seiscentos anos
feito, em solo português, 16 marqueses, 4 condes e 4
barões, gerou, só na chegada ao Brasil e entre os
brasileiros, quase o dobro de marqueses, 28, o dobro de
condes, 8 e o mesmo número de barões, 4. Afora as
mudanças que fez surgir no Rio de Janeiro e em Salvador,
escolhidas, aquela como a capital do reino, e esta, como a
cidade mais importante, ao Norte. Dessas transformações,
inaugurou-se o Real Teatro São João, com os seus 112
142 | Felipe Negreiros

camarotes e 1020 lugares na plateia, e um Jardim


Botânico, chamado de Aclimação com espécimes
transplantados da Índia, das Ilhas Maurício e da Guiana
Francesa. Eram canforeiras, cravos-da-índia, mangueiras,
abacateiros, especiarias finas.
– Há até de se ver que alguns chineses vieram, para
plantar e colher as folhas de chá colocadas no local.
– Isso é fato, majestade! – interrompia Caxias,
acrescentando: – Incentivou-se o aumento de escolas
régias, o ensino de primeiras letras, de artes e ofícios, bem
como uma imprensa régia, a Academia Real de Belas Artes,
o Banco do Brasil, o estudo da economia política e a Escola
de Cirurgia da Bahia.
– Ampliou-se, no Rio de Janeiro, a Academia Militar
e instalou-se uma Academia de Artilharia e Fortificação no
Maranhão.
– E além de todos esses melhoramentos, também
se retaliou a invasão de Portugal pelas tropas francesas,
aliadas aos espanhóis, tomando a Guiana Francesa e a
margem oriental do Rio da Prata que ficaria conhecida, na
época, como a Província Cisplatina, hoje Uruguai.
– Houve igualmente expedições cercadas de êxito,
chefiadas por um neto do marquês de Pombal, João Carlos
de Saldanha Oliveira e Daun. Esse homem, uma pessoa
que, como sempre registro, é digno de nota, aos quinze
anos, ocupava a patente de capitão do exército português;
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 143

aos dezoito, juntou-se aos ingleses, para combater as


tropas francesas em Portugal e, ao final da vida, depois de
ter sido Presidente da província do Rio Grande e já duque
de Saldanha, ajudou o seu pai, o imperador D. Pedro I a
restaurar o trono de sua irmã Dona Maria II, derrubando o
irmão mais novo dele, o seu tio Miguel, e o absolutismo
em Portugal.
Pedro concluía:
– Isto tudo é verdade, meu professor! E olhe que as
mudanças eram realmente necessárias. O próprio Paço da
Cidade deixava a desejar em termos de um mínimo
conforto para uma corte, já numerosa, como a de Lisboa.
Os coches colocados à disposição para o transporte na
cidade eram pobres, sem adornos, até considerados um
tanto quanto ridículos. Só a minha bisavó usava uma
carruagem, mesmo assim, além de ser a que veio com eles
de Portugal, era puxada por mulas e dirigida por um lacaio
usando vestimentas velhas, desbotadas e os soldados que
a acompanhavam eram pessimamente fardados. Meu avô
usava um coche velho e minha avó nem coche tinha, mas a
isso tudo ele foi bastante resignado. De qualquer modo,
incansável que era, transformou a Igreja do Carmo em
Capela Real, fazendo surgir apresentações musicais e
óperas; fez surgir também as tertúlias com os padres
carmelitas da Lapa e com os franciscanos. Para diminuir
um pouco o desconforto do Paço, colocou na Quinta da
144 | Felipe Negreiros

Boa Vista meu pai e esse meu tio que você acabou de
mencionar, D. Miguel. Mandou construir alas laterais no
Paço da Cidade, que lhe aumentavam os corredores; fez
uma escadaria circular ornamentada em ouro, e mandou
afixar quadros de cenas religiosas em vários espaços;
determinou, por fim, que não só o palácio, mas que
também todas as casas dos nobres do Rio de Janeiro
trocassem as velhas janelas de madeira por janelas de
vidraças.
Pedro encerrava assim a sua extensa lista sobre os
feitos do seu avô. E a bem da verdade, o avô de Pedro II
fez mudanças não só marcantes, mas também para
sempre, porque a vinda da corte não foi uma simples
visita, como se disse. E para somar a isso, coincidiu com
uma difusão da produção cafeeira que passou a ser em
larga escala e gerou lucros imensos com a abertura dos
portos. Além disso, os servidores do regente que vieram
com ele não encontraram dificuldades em se apossar de
sesmarias, rapidamente transformadas em imensas
fazendas de café. Cada vez maiores eram as contas de
compras e os números de casamentos com a elite local.
Daí a corte que acompanhou o avô de Pedro II ter criado
raízes e formado um poderoso grupo contrário à partida
do seu avô para Lisboa, acreditando que era no Brasil, e
não em Portugal, que se encontrava o futuro da dinastia
dos Bragança.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 145

Contudo, se esses sentimentos fizeram aparecer,


no Brasil, a ideia de que nada mais seria como antes, fez
despontar em Portugal, ressentimentos profundos, frutos
de uma década em que metade da população do país
pereceu. De fato, os anos em que os avós de Pedro II
passaram no Brasil foram tempos severos para a nossa
metrópole, tal qual nos mostra o rosto do tutor inglês
designado, para ficar à frente da administração de Portugal
durante a ausência do seu rei: Lorde Beresford. Um
homem que tomou a direção dos exércitos e derrotou
heroicamente os franceses em Columbeira, Vimeiro e
Roliça. E que sabia o quanto Lisboa tinha se reduzido a um
entreposto de mercadorias inglesas, gerando uma
dependência vergonhosa. Vê-se a angústia e o cansaço de
seu rosto em seu retrato, pintado por William Beechey,
pendurado em um dos amplos corredores da “National
Gallery” de Londres. Uma angústia e um cansaço que, na
população que lá ficou, transformou-se em um sentimento
de preconceito e raiva contra o Brasil e contra os
portugueses que aqui fixaram as suas residências. Uma
raiva que eclodiu no Porto, mais precisamente no Campo
de Santo Ovídio, em 24 de agosto de 1820. Um dia que deu
início a uma revolta concretizada em um movimento
liberal voltado para a formação de uma Assembleia
Constituinte que objetivava o retorno imediato do rei, mas
cujo resultado foi não a volta da família real, mas a
146 | Felipe Negreiros

formação de uma junta preparatória chamada de “cortes


portuguesas”, constituída na cidade de Alcobaça. Cortes
que, na verdade, nada mais eram que um conselho régio
que não se reunia há mais de 100 anos e que tinha por
função limitar o poder absoluto do avô de Pedro II e
promulgar uma nova ordem para o país. Um objetivo
alcançado, ao final de alguns meses, mas a um custo muito
alto. De logo, porque D. João resistiu e, inteligentemente,
para manter a dualidade de poder entre Lisboa e o Rio,
deixou, no Brasil, como regente, o pai de Pedro de
Alcântara. Depois, porque, mesmo que o avô de Pedro II
não tivesse essa intenção, iniciou-se, assim, a desenhar o
segundo fato que fez de Pedro II o imperador do Brasil.
Com outras palavras, o decidido por tais cortes custou alto,
pois as mesmas acabaram por fazer com que Portugal
perdesse o Brasil. Eis que, ao tentar limitar o poder do avô
de Pedro II e os desígnios que este traçou para o destino
do Brasil, estas cortes liberaram toda a impetuosidade do
pai de Pedro II, o Pedro I do Brasil e, por sete dias, o Pedro
IV de Portugal. Fez aparecer também a astúcia, a
inteligência e o pragmatismo de sua admirável mãe,
Leopoldina, que era uma arquiduquesa da Áustria, e veio a
ser, posteriormente à independência, que ela liderou,
embora no começo de maneira reticente, a nossa primeira
imperatriz.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 147

Sem dúvida, não demorou Pedro II concluir, até


ainda bem jovem, que essa vinda de sua família fez surgir
um sentimento de trama na mente do seu avô. Ele próprio,
para manter sem lutas ou guerras o Brasil, não sob o
domínio de Portugal, mas sob a tutela dos Bragança,
acabou por fazer a sua independência por meio do seu pai,
Pedro I.
Com certeza, não era por outro motivo que este
mesmo Pedro II terminasse as suas leituras, anotando em
seu diário: – Vovô fez a independência do Brasil de
Portugal, mas não do seu rei. Daí tantos homens cultos
com que tenho conversado concluírem que, em 1822, o
nosso país separou-se pacificamente de Portugal, sob o
comando de meu pai, na época, o seu regente deixado
pela sua família em seu retorno à Europa, após o exílio
napoleônico. É interessante, mas esses mesmos amigos até
se surpreendem, quando lhes digo que a separação do
Brasil, apesar dos pesares, não foi tão pacífica assim como
eles imaginam. Como lhes digo: se alguém conseguiu
roubar algo da coisa pública, o meu avô conseguiu roubar
um país inteiro para si. E, embora não seja virtuoso roubar
algo, não posso nem se pode deixar de reconhecer que
vovô foi nada menos do que brilhante!
148 | Felipe Negreiros

Capítulo 6
...MORRER PELO BRASIL

No primeiro sábado em que Isabel o deixou nos Jar-


dins de Luxemburgo, para ir a Cannes, Pedro lhe escreveu
uma carta, com aquela caligrafia de letras miúdas que lhe
era peculiar e tanto impressionava as pessoas com as quais
ele se correspondia. Queria que a filha soubesse da sua
pretensão de passar mais um mês em Viena e visitar o
túmulo do seu avô por parte de mãe, o imperador
Francisco I da Áustria.
Na verdade, reconhecia, por mais paradoxal que
isso parecesse, que evitara ir a Viena até aquele momento,
pois detestava o seu primo, o atual monarca, Francisco
José, afora considerar a sua prima, a imperatriz Sissi, por
demais fútil.
Todavia, Freud lhe tinha pedido, via Charcot, uma
entrevista com ele. Tinha de admitir que o discípulo do seu
querido médico francês não só tinha ideias mais arrojadas,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 149

como era também uma pessoa mais persistente do que


ele. A bem da verdade, quando estivera em Berlim, na casa
dos Krupp, nem pensou em esticar a viagem à Áustria,
mas, agora, acreditava ser o momento. Queria visitar, além
do mausoléu da sua família e de sua filha caçula, em
particular, os lugares por onde caminhou e viveu a sua
mãe. Ela era uma mulher extraordinária, um ano mais
velha do que o seu pai, mas, em termos de maturidade de
vida e política, parecia ser duas ou três gerações à frente.
Ria-se!
Carolina Josefa Leopoldina Francisca, arquiduquesa
da Áustria, tinha traços finos, pele clara e delicada, e sua
altura rondava entre 1,55 e 1,58 m. Na verdade, Pedro
nunca entendeu porque os biógrafos da época, como
Maria Graham, afirmaram que a sua mãe não tinha beleza;
era mais simpática do que bonita, comentavam.
Para Pedro, a autora do valioso diário sobre os
primeiros anos da corte brasileira, companheira de
Cochrane, o mercenário que liderou a frota naval da
independência, estava redondamente enganada; ao
contrário, sempre achou a sua mãe belíssima, sobretudo
quando retratada usando cordões dourados ao redor do
penteado coque com aquele pingente mínimo, pendurado
no meio da testa, que, sabia Pedro, ela tanto gostava. Isso,
claro, sem esquecer o fato de ter sido alguém muito
especial para os destinos do Brasil.
150 | Felipe Negreiros

Orgulhava-se de sua mãe, diferentemente de seu


pai, ter recebido uma educação esmerada; de ter
convivido com Beethoven e Goethe, com quem esteve
duas vezes na estação balneária de Karlsbad e de quem
ficou muito amiga, chegando inclusive a escrever com ele e
a encenar uma peça teatral; de ter tido, tal qual ele, um dia
a dia minuciosamente planejado, incluindo aulas, orações,
visitas a membros da família e trabalhos no jardim, fossem
os da residência de verão de Luxenburg ou os de
Schönbrunn. Ela seguia um programa de ensino que incluía
leitura, aritmética, desenho, pintura, história, geografia,
física, latim, canto, trabalhos manuais e o que mais
gostava, a mineralogia. E isso lhe deu uma visão
cosmopolita, algo que se é de muita importância ainda
hoje, na época era algo ainda mais significativo. Basta
olhar que cientistas, como, por exemplo, o físico alemão
Alexander von Humboldt – só para citar uma pessoa que,
como se viu mais atrás, Pedro II geralmente usava como
paradigma –, conheciam somente partes do mundo, e as
suas mentes, por mais privilegiadas que fossem,
discorriam, com facilidades sobre temas muito específicos.
De fato, a educação de Leopoldina foi uma verdadeira
tática política, diga-se de passagem, dos Habsburgo e de
Metternich, o principal ministro austríaco, que, sábio
mantenedor da estabilidade do que acontecia à sua época,
e, ao lado de Napoleão III, foi a figura mais poderosa da
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 151

Europa, desde a derrota do tio de Pedro, Napoleão I, até a


sua própria queda em 1848. Fase em que surgiram pessoas
tão fantásticas naquela parte do mundo, como o citado
Bismark, de quem, recorde-se sem maiores pretensões, a
rainha Vitória queria que Pedro lhe copiasse o bigode.
– Foi com base nele que planejei o futuro de Isabel
– reconhecia Pedro, batendo fortemente o lápis na
cômoda.
Na verdade, para Metternich, formavam-se alianças
por meio dos casamentos dinásticos; seriam as princesas
uma mera peça de xadrez no jogo político internacional.
Daí a corte austríaca ter transmitido à sua mãe um
respeito profundo aos pais e o conhecimento de cinco
línguas, a saber, o latim (e é de lembrar que os ambientes
culturais com mais efervescência intelectual, como a
Universidade de Budapeste, na Hungria, controlada por
Viena, só veio a abandonar o costume das palestras de
seus professores serem dadas em latim no ano de 1844,
mesmo que muitos cidadãos húngaros já defendessem o
uso de sua língua nativa como língua oficial, desde os idos
de 1790), o alemão, o francês, o inglês e o italiano, essa,
Leopoldina usava como se fosse a sua língua nativa, pois
Milão e adjacências, no começo do século XIX, pertenciam
ao império austríaco.
Por essa linha de raciocínio, Pedro II, ao pousar a
carta na mesa, suspirava – Foi realmente de Metternich a
152 | Felipe Negreiros

ideia de que era uma necessidade casar a minha mãe com


o filho do rei de Portugal, do Brasil e de Algarve, com o fim
de incrementar o comércio da Áustria.
Para Pedro, pronta para isto ela estava, apesar de
ver o Brasil segundo os ideários de Rousseau, como um
local de bons selvagens não corrompidos pela civilização.
De fato, Leopoldina era uma típica pessoa, cuja
infância e juventude se deram em um país onde nasceu o
Romantismo, como um contraponto ao Racionalismo e ao
Iluminismo, justamente com a obra prima de Goethe: “Os
sofrimentos do jovem Werther”.
De acordo com o que Pedro refletia, enquanto o
Iluminismo se fundava em um pragmatismo extremado, o
Romantismo supervalorizava os sentimentos humanos,
como o amor, a emoção, o sentimentalismo, o
nacionalismo e a busca pelo exótico e pelo selvagem.
– Daí a minha mãe ter sofrido tanto, enquanto
esteve no Brasil convivendo com uma pessoa tão instável
como o meu pai! – constatava, pesaroso.
Ao pensar sobre tudo isso, veio à mente de Pedro
uma dúvida sobre a reação da mãe, se tivesse visto a
manifestação que fizeram no dia do seu último aniversário
como imperador, comemorado no Rio de Janeiro.
– Se a minha mãe tivesse visto! Como gostaria de
saber o que ela expressaria por meio dos seus gestos e o
que ela diria! – imaginava.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 153

Os jardins do Paço ficaram pequenos diante de


tanta gente, naquele 2 de dezembro de 1888. No meio da
multidão, como esquecer a imponente figura do príncipe
Obá. Pedro ria para si, ao lembrar o adorno de penas em
sua farda de alferes honorário. Extasiava-se com a cena e
de como a sua mãe a julgaria.
Obá era negro, um rei não ungido por Deus, mas
um rei das ruas e becos, paramentado com farda oficial e
penas de origem africana, aclamado pela multidão de
miseráveis a saudar um Imperador de olhos azuis.
– Mas a cara da minha mãe e o seu espanto, ao
menos, não significaria o falso moralismo de Raul Pompeia
que descreveu o episódio como de extremo mau gosto e
de perda moral da sociedade carioca. Tolo! – falava Pedro,
rangendo os dentes – Não sabia ele que a quebra dos
valores antigos no campo da moral e dos bons costumes,
há muito, ocorrera no Rio de Janeiro? – Pedro, indagava-
se.
Não se via exemplo de recato há tempos. Não foi a
abolição, como vociferavam homens como Pompeia, que
ocasionou a perda do recato. Foi, sim, um processo
migratório de anos, com o desequilíbrio entre os sexos, a
baixa nupcialidade e a alta taxa de nascimentos ilegítimos,
tão bem retratados por Manuel Antônio de Almeida, no
seu “Memórias de um Sargento de Milícias”, escrito em
1853.
154 | Felipe Negreiros

– Sem dúvida, não era com esses olhos egoístas que


a minha mãe via o Brasil – esbravejava – Ela via o Brasil
como uma mera passagem, até porque, dizia-se à época,
logo, a família real portuguesa, a minha família, retornaria
a Lisboa. No máximo em dois anos! Como estava
enganada! – concluía, guardando os seus escritos na
gaveta da cômoda.
De fato, Pedro tinha razão: Leopoldina se enganou
muito. Da mesma maneira como se enganou também, ao
se inebriar com a riqueza que os representantes
portugueses demonstraram no seu casamento e com o
fato de ter-se colocado à frente de uma arquiduquesa
russa, irmã do czar Alexandre I. Ela o fez devido a
divergências religiosas, e ao czar ter dado apoio às
pretensões da Espanha na Europa e na América, interesses
esses que se chocavam com os de Portugal, no momento
em que se foi selar o acordo nupcial.
É, ao pensar sobre isso, que Pedro cruza as mãos e
começa a falar mais uma vez para si próprio – Claro que
esses equívocos e mesmo a realidade difícil, testemunhada
nos dias em que viveu no Brasil, não diminuíram o fato de
ter sido o casamento dela com meu pai um acontecimento
histórico.
Olhando a janela de seu modesto apartamento,
Pedro II imaginava o quanto o representante de Portugal,
o poderoso marquês de Marialva, querendo recuperar o
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 155

prestígio de uma corte exilada, não poupou nos gastos. A


verdade é que ouvira, ainda menino, de sua aia: “A
camareira-mor da arquiduquesa chegou a comentar que
nunca tinha visto tanta riqueza”.
– Marialva, no dia 1 de junho de 1817, ofereceu
uma suntuosa recepção no Augarten de Viena, quando foi
anfitrião de 1.200 pessoas, em um baile de gala, com
músicas criadas exclusivamente para o evento. Os
Habsburgo foram servidos em baixelas de ouro e os de-
mais convidados em baixelas de prata, algo tido como
espantoso até para o fausto a que era acostumada a corte
vienense no século XIX – Pedro refletia – O que Marialva
quis foi impressionar, desde a chegada – Pedro afirmava
para si mesmo, balançando a cabeça.
Ao se apresentar oficialmente em Hofburg,
iniciando as tratativas do casamento, Marialva esteve à
frente de um cortejo de 41 carruagens, puxadas por 6
cavalos, servidas por cocheiros vestidos de libré; destas, 24
foram construídas só para a ocasião.
– Toda a nobreza e o corpo diplomático de Viena
participaram como convidados, e todos, simplesmente
todos, foram presenteados com medalhas e barras de
ouro; até os funcionários de nível mais baixo receberam
brincos de diamantes e caixas trabalhadas com pedras
preciosas. Minha nossa!
– Quanto exagero! – pensava.
156 | Felipe Negreiros

Assim, tirando essas cenas da cabeça, Pedro


anunciava, em voz alta:
– Bem! É hora de me vestir.
Queria ir a Notre-Dame, andar um pouco a pé pelo
Sena, atravessar a ponte Alexandre III e se perder em um
café qualquer, mas não faria isso só, convidaria Mota
Maia; o seu dileto médico particular acabara de dobrar a
esquina e lhe acenava da rua. E, quando saíram, não
demorou muito tempo, para perceberem o quanto o
percurso estava lento até a catedral. Havia muito tráfego
de tílburis, carruagens e passantes próximos a “Île de la
Cité”, no caminho da “Conciergerie”. Daí, entre uma pausa
e outra, voltava à mente a suntuosidade da festa de sua
mãe.
Pedro, assim, começou a conversar sobre isso.
Dizia:
– Querido Mota Maia, com o seu casamento,
mamãe marcou também, sem que soubesse, a sua
despedida da corte austríaca para sempre!
– Após o casamento, majestade, a imperatriz
rumou à Itália, foi de Livorno que partiu para o Brasil? –
perguntava-lhe o seu abnegado médico.
– Isso! Mas não sem antes aguardar por
aproximadamente três meses em Florença, cidade em que
o meu avô nasceu e foi educado – respondeu-lhe Pedro,
continuando: – Lá, ficou hospedada no palácio Pitti, antiga
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 157

residência dos Medici. Um majestoso edifício, cujo interior


é todo de obras de arte, as quais foram apresentadas à
minha mãe por ninguém menos do que Canova, meu caro
doutor.
– Veja só!
– Ele ia ao seu encontro diariamente, a fim de, com
ela, percorrer as ruas da cidade. Foi uma estada regada
com muita cultura. Isso, não tenho nem nunca tive
dúvidas, só lhe serviu, para aumentar o fosso entre a sua
cabeça refinada e culta e a do meu pai.
– Isso mesmo! Seu pai, majestade, era um homem
viril, atlético, de estatura acima da média e ombros largos,
que passava o dia com os escravos, entretido com os
cavalos e as atividades físicas – completava Mota Maia,
dizendo-lhe, ainda, cheio de receios, pois não desejava
ofender ao seu imperador –, todavia ele também foi
carente de uma educação formal, até porque um país
como o Brasil colônia, sem imprensa ou universidade, não
poderia nem pôde oferecer-lhe.
E este foi o momento que o tílburi estacionou junto
à imponente catedral de pedra. Os sinos badalavam. Iria
justamente começar a missa do meio dia.
Pedro, ao ouvir o badalo, bradou: – Uma ótima
oportunidade de não só pensar na vida, como também
conversar com Deus. Vamos, Mota Maia, vamos, Mota
Maia! Repetia freneticamente.
158 | Felipe Negreiros

Assim, os dois correram, como meninos, o longo


percurso entre o estacionamento dos coches e o pórtico
da igreja. Lá viram uma missa incrivelmente curta. O
pároco esteve o tempo todo sussurrando aos ouvidos dos
diáconos presentes que precisava se retirar. Isso fez com
que Pedro e Mota Maia estivessem a caminhar pela
margem do Sena, apenas 20 minutos depois que entraram
na Notre-Dame, sob um sol acolhedor e capaz de diminuir
muito a sensação de frio que vinham sentindo nos últimos
dias. Só pararam ao alcance da ponte Alexandre III. Pedro
convidara Mota Maia, na ocasião, para tomar uma taça de
vinho. O médico dizia que esse era o modo de Pedro
comprá-lo, e o mesmo aceitar que ele bebesse um pouco,
embora isso não contribuísse com o seu diabetes.
Ao sentar, Pedro vai logo lhe dizendo:
– Daí veio dela a liderança da independência, meu
caro doutor. Minha mãe conviveu com Goethe, e foi dessa
convivência que surgiu seu tino, para enxergar Bonifácio, o
meu tutor, o homem que guiaria a Nação. Ele, inclusive, a
via como “o líder”, de fato – dizia com o dedo em riste.
Porquanto, a verdade é que Pedro sabia ter partido
de sua mãe, a imperatriz Leopoldina, até a doutrina que
Pedro I, o seu pai, seguiu, quando colocou a sua irmã mais
velha, Maria da Glória, no trono de Portugal. Essas foram
lições aprendidas, e muito bem aprendidas, com um outro
personagem marcante do Primeiro Império: o conde
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 159

Hogendorp, um militar e embaixador do irmão de


Napoleão, Luís Napoleão, quando este foi o rei da Holanda.
Em 1817, Hogendorp veio morar no Brasil,
comprando uma fazenda na floresta da Tijuca. Aluno de
Kant, transmitiu aos pais de Pedro II as ideias liberais e
constitucionalistas da época.
– Ideias que foram escolhidas a dedo por minha
querida mãe – acrescentava Pedro II ao seu médico.
– Certamente! Dizem até que partiu dela, no dia
seguinte ao 7 de setembro, quando indagada no Teatro
São João sobre um lema para resumir o momento, a
célebre frase: “Independência ou Morte” – acrescentava
Mota Maia, com entusiasmo, a Pedro II.
E este mesmo Pedro II, dizia-lhe:
– Sem esquecer que foi dela também a carta que
meu pai amassou na ocasião em que bradou a quem com
ele estava, no riacho do Ipiranga, que o Brasil rompia os
laços com Portugal. Lembro-me de que cheguei a ler esse
documento. Lá, minha mãe escreveu: “o Brasil será, em
vossas mãos, um grande país. O Brasil o quer como
monarca...o pomo está maduro, colhei-o já”.
– Pelo que sei de História, majestade, não tenho
dúvidas ter sido a sua mãe quem deu o respaldo
necessário, para se consolidar o império recém-criado. Era
filha do imperador da Áustria –continuava,
interrompendo-o, Mota Maia.
160 | Felipe Negreiros

No que lhe respondia Pedro:


– Sim! Para o país que recepcionou a Santa Aliança,
isso foi até natural, meu caro doutor, pois, às vezes, via em
minha mãe o mesmo peso político de Catarina de Aragão.
De fato, não nos custa reparar que o rei Henrique VIII, da
Inglaterra, e meu pai sentiram o mesmo. Aquele, por ser
casado com as filhas dos reis católicos, Fernando de
Aragão e Isabel de Castela; este por estar preso a uma
Habsburgo. Ela era a única com poder de lidar com os
reflexos de um pacto europeu tão longevo e exitoso,
responsável por preservar a paz da Europa, desde a queda
de meu tio afim, Napoleão Bonaparte, no começo do
século XIX.
– Foi uma diplomata perfeita, meu imperador –
interrompia-o, novamente, Mota Maia – Sua mãe lutou,
para que se reconhecesse o império do Brasil e se evitasse
a união das nações signatárias da Santa Aliança, com o fim
de nos impor os ditames de Lisboa – acrescentava-lhe,
afirmando:
– Sua majestade, a imperatriz Leopoldina foi uma
mulher extraordinária. Eu mesmo não tenho dúvidas que
foi do trabalho dela que os Estados Unidos reconheceram
a nossa independência, quase imediatamente; os
britânicos logo depois, embora cuidando de concluir os
tratados comerciais de seus interesses; os franceses ainda
antes do fim da segunda década do século XIX. Não se
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 161

pode esquecer que foi de Dona Leopoldina que nasceu o


hábito do povo estar próximo ao soberano, para lhe falar
das injustiças e pedir a sua proteção e benevolência, algo
até surpreendente, pois, como se sabe, ela era uma pessoa
romântica, e a análise social nunca foi o forte dos
românticos. E essa compreensão, ao contrário do que se
poderia esperar, lhe foi tão forte, que até um agente de
imigração brasileira na Europa, von Shäffer, relatou em
livro, a facilidade que era conversar com a monarca:

“Todas as sextas-feiras, cedo às 9 horas, há


audiência pública no palácio residencial. Os
audientes se reúnem na antessala sem
distinção de posição e classe, mesmo sem
roupa própria de corte, de modo que até
pobres e descalços podem comparecer às
audiências, e permanecem na ordem de
entrada. A imperatriz fica sob um dossel,
diante de uma mesinha na sala por onde
entram os solicitantes, pedindo através de
petição escrita ou oralmente, recebendo
logo de costume uma resposta provisória”.

– Shäffer relatava também:

“Às sextas, como de costume católico, a


imperatriz visita a igreja da Glória. Fácil o
acesso do povo até ela”.

– Contudo, todo esse conhecimento não a livrou de


ter uma morte prematura. E na época, você, majestade,
162 | Felipe Negreiros

tinha só um ano, Mota Maia lhe dizia pesaroso. Foi de fato


pungente quando o levaram bebê para beijar a mãe no
caixão. Não o pouparam sequer dos comentários sobre as
sucessivas traições do seu pai – o médico revoltava-se,
continuando – e deste tê-la possivelmente agredido antes
da sua morte, já envolta em uma profunda depressão.
Neste momento, Pedro lhe dizia:
– Sei, sei! Realmente, isso tudo foi há muito tempo,
Mota Maia. Não sou mais uma criança, longe disso,
todavia, eu ainda me sinto muito mal com tais lembranças.
A minha vida solitária no palácio, os choros às tardes, não
ter convivido com um pai e uma mãe como qualquer outra
criança e ter sido sempre tratado como uma peça de um
xadrez político, isso são coisas que não se esquece, mas,
apesar desses espinhos, meu caro médico, o fato é que
seja pelo seu comportamento exemplar perante os seus
súditos, que a fizeram a figura mais querida e popular do
Primeiro Império, seja pelo que lutou contra a pessoa do
meu tio, D. Miguel, que queria a todo instante, até que
conseguiu, usurpar o trono de minha irmã mais velha,
Maria da Glória, mamãe não merecia o tratamento que lhe
foi dispensado por meu pai. Sua cultura e bondade a
impediram de aceitar uma Pompadour ou uma Maintenon,
bem ao gosto de papai – refletia – No dia de sua morte,
toda a corte caiu em pranto convulso. Não havia casa no
Rio de Janeiro da qual, ao menos, um morador não tivesse
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 163

ido ao palácio saber sobre o seu estado de saúde.


Historiadores relatam que, nas ruas, só se viam faces
mudas de dor e desespero.
– Esse esposo que foi o seu pai, majestade, tinha
falhas, mas essas não minoram o papel que lhe coube em
nossa História e na de Portugal. Seu pai, sem dúvida, fez
jus ao nome do quarto em que nasceu, no já distante 12 de
outubro de 1798, e morreu, no também já distante 7 de
janeiro de 1830. Um aposento que está no belo palácio de
Queluz, localizado nos arredores de Lisboa: D. Quixote.
– Certamente! Inclusive, foi esse palácio o primeiro
lugar que visitei, quando exilado – Pedro finalizava o
raciocínio, expondo com seu ar de professor: – Um palácio
que trazia consigo as marcas da juventude de meu pai e
ainda simbolizava o domínio espanhol. Até porque a sua
propriedade era dos marqueses de Ciudad Rodrigo,
primeira cidade da fronteira norte dos que se destinam a
Santiago de Compostela, situada exatamente entre
Portugal e Espanha.
– Ele só passou para os Bragança ao fim das lutas
de restauração? – questionava-lhe Mota Maia.
– Isso! E lá, meu caro, quando o visitei, perguntei-
me se teria a graça de meu pai de morrer no quarto em
que nasci, no meu quarto em São Cristóvão.
– Deus o atenda! E ainda registro aí que o seu pai
foi uma pessoa, realmente, singular, Majestade. Olhe-se!
164 | Felipe Negreiros

Assim como todos os da dinastia Bragança que herdavam a


coroa, sempre é bom lembrar isso, não era o primogênito.
Acreditava-se, na época, até em uma maldição, ria-se o
médico, falando-lhe – Veio ao Brasil criança, no mesmo
navio que o seu avô e, embora fraco em sua educação
formal, como lhe disse, era hiperativo e marcial. Relatos
contam que menino, moleque e travesso, não tinha medo,
passava o dia misturado aos marujos, participando das
manobras de bordo. Era impaciente com as cerimônias
oficiais. Sempre foi assim, a vida toda. Diferente de sua
mãe, a qual, em visita à Bahia, por exemplo, sabendo se
portar, trouxe mais e mais admiradores para o seu círculo.
– Eu até herdei essa impaciência – dizia-lhe Pedro,
justificando-se – Não por considerar tolas as cerimônias
oficiais, como o meu pai, mas pomposas demais para o
meu caráter simplório e tímido, no entanto, reconheço,
sim, que meu pai tinha muitos pontos positivos, querido
Mota Maia, e digo:
– Meu pai, desde cedo enveredou pelas artes
manuais, marcenaria e escultura, embora gostasse da
música, chegando a dominar o clarim, a flauta, o violino e
o cravo. Ele era diferente de meu tio D. Miguel. Este era
quatro anos mais novo e até afeito aos exercícios físicos,
como, por exemplo, velocidade e resistência, mas sempre
expôs a todos uma crueldade que, claramente, meu pai
não possuía. Mas, meu querido doutor, deixemos de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 165

conversa, vamos aproveitar esse sol para caminhar,


ordenou-lhe o velho monarca. No trajeto do café ao hotel,
que fizeram a pé passando pelos bulevares de Paris, Pedro
refletia consigo: “Tais hábitos marcam tão intensamente a
nossa sociedade, que se considera efeminado o homem
que, qual o príncipe, não faça uso de palavrões e gestos
obscenos. Meu pai passara a vida com cavalariços e criados
de nível inferior. Ao longo da vida foi visto com eles em
tavernas projetando um tipo de comportamento
reprovável que escandalizou os mais diversos cronistas
estrangeiros”, meditava.
Entre um passo e outro, pensava não só na
personalidade de seu pai, mas também em cada um dos
problemas atravessados no reinado de quase 10 anos que
antecedeu ao seu. A primeira prova de fogo, refletia,
ocorreu em 26 de fevereiro de 1821, quando o seu pai ti-
nha apenas 20 anos. As cortes enviaram ofícios ao Brasil, e,
na Baixa, militares e parte da nobreza começaram a exigir
que o rei D. João VI jurasse a Constituição promulgada em
Portugal.
Ria, ao lembrar que, avisados da revolta, o seu avô
mais uma vez surpreendeu. Dizia a si: “O vagaroso homem
tomou decisões rápidas, mandou papai, exímio cavaleiro, ir
à residência do ministro da justiça e lá receber um decreto
assinado com data retroativa, onde o rei já reconhecia o
direito e a Constituição das cortes. E como não lembrar
166 | Felipe Negreiros

também da segunda prova de fogo, que foi a


independência do Brasil”, suspirava, ao ver o quanto o seu
pai sabia ser um príncipe à época.
“De fato, se, em algum dia, o príncipe for só uma
celebridade, nos oitocentos, é alguém ungido, destinado a
ocupar um trono ancestral e herdar nações. Eu não soube
fazer uso disso”, reconhecia, vindo à sua mente a cena de
seu pai, tolhido pelas cortes, viajando com constância a
Minas e a São Paulo e lá sendo recebido como um deus
pelas populações locais.
Recordava-se de que a maçonaria mineira, em 13
de maio de 1822, desrespeitando a decisão destas mesmas
cortes, que limitava o poder e a importância do príncipe,
concedeu-lhe o título de Defensor Perpétuo do Brasil.
“Foi justamente quando morreu meu irmão mais
velho”, lembrava. “Isso fez com que meu pai rompesse de
vez com Portugal”.
“Tudo ocorreu, quando a nossa família saiu de São
Cristóvão para a fazenda de Santa Cruz”.
“Foi em decorrência dessa viagem que o meu
irmão, já doente, veio a falecer. Meus pais não perdoaram
a morte de meu irmão”, dizia a si. “Culparam as cortes
portuguesas e disseram a meu avô que, de Portugal, o
Brasil não quer nada, não precisa de nada. Meu pai nunca
havia falado assim com meu avô”, lamentava. “Foi daí que
se chegou ao 7 de setembro e a um governo não só
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 167

marcado pela personalidade dúbia de meu pai, mas


também pelo desejo bem singular de alguns setores das
elites coloniais de eles mesmos empreenderem a
independência do Brasil. Não de uma maneira absoluta ou
que envolveria todo o país como a que ocorreu por fim,
mas regionalizada, tal qual propôs a dita inconfidência em
Minas ou a revolução deflagrada em Pernambuco. Com o
que houve no Porto, essa elite passou a eleger
representantes para as cortes portuguesas e só lá não
ficaram ou a apoiaram devido a um movimento
constitucionalista, iniciado logo depois da proclamação da
Independência pelos meus pais, o qual acabou por
significar um claro retorno ao absolutismo”.
Eis que o pai de Pedro fechou o Congresso
Constituinte e nomeou um pequeno grupo de notáveis, a
fim de que fizessem uma Constituição, dizia, digna dele.
Acabaram por conseguir, ampliando os cargos, cuja
incumbência, para nomear e demitir permaneceria com o
chefe do executivo ou com o seu representante, bem
como criando um poder de nome moderador, que seria
exercido exclusivamente pelo monarca. Esse ora se
portava como um imperador constitucional, ora agia como
um autocrata, com frases como: “Faço tudo para o povo,
mas não pelo povo, ou através da vontade do povo”. Ele
entendia caber a ele e a mais ninguém o discernimento e a
168 | Felipe Negreiros

palavra final, e, por vezes, mostrava-se forte, por outras


vezes, frágil.
Viúvo aos 28 anos, vinha à mente de Pedro II o
quanto ele chorou, até compulsivamente, quando relatou
à corte brasileira a morte da sua imperatriz.
“Uma viuvez acompanhada da morte de seu pai, o
meu avô. Realmente, dois acontecimentos que levam ao
terceiro episódio marcante de sua vida e, também,
marcante para a vida do Brasil e para a minha: o 7 de abril
de 1831”, refletia Pedro.
De fato, apesar de seu pai, Pedro I, já estar casado
em segundas núpcias com a bela Amélia de Leutchenberg,
sobrinha do rei da Baviera e neta de Josefina, a primeira
esposa de Napoleão, não houve como resistir à
impopularidade que a citada dubiedade de comporta-
mento e o seu romance com a marquesa de Santos
geraram.
Com a independência do Uruguai, veio uma
inflação galopante e um crescimento do exército, que fez
com que ele saísse do controle do poder central.
Dois elementos, fome e força, fizeram com que o
povo se voltasse contra o comércio local, majoritariamente
nas mãos de portugueses.
Some-se a isso ter ficado claro nas elites, imprensa
e camadas populares, que o 7 de setembro foi um golpe
tanto para o Brasil como para Portugal, a fim de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 169

permanecerem sob a tutela dos Bragança. Isso se


comprova no fato de, mesmo em um período curto, Pedro
I ter sido imperador do Brasil e rei de Portugal,
simultaneamente.
“Tal contexto de animosidade”, recordava Pedro,
escorando-se um pouco em Mota Maia, enquanto
caminhava, “materializou-se no que se passou no dia 6 de
abril de 1831, no Campo de Santana, próximo do paço da
cidade, às 2 da tarde”. Pedro lembra o amigo que, para lá,
acorreram 5 mil pessoas, a exigir a renúncia de um
ministério que o seu pai tinha constituído, com a maioria
de nascidos em Portugal. Na madrugada do dia 7, mais
precisamente às 3 da manhã, o general Francisco de Lima e
Silva, diz que não havia mais o que ser feito.
– O meu pai, acuado e sentindo-se desprestigiado,
por não ter nascido no Brasil, na frente do corpo
diplomático, dos seus ministros e da imperatriz, abdicou ao
trono – Pedro II recordava –E fez isso, para apaziguar os
ânimos, pois outra não foi a razão de ter me colocado de
imediato no trono. O rei seria uma criança e isso significou,
na prática, a transferência do poder para as elites
regionais, tendo em vista que o cargo máximo do governo,
inicialmente na forma de uma Regência Trina e, depois,
através de um único regente, passou a ser escolhido via
eleição manipulada por essas mesmas classes de
privilegiados que questionavam o poder de meu pai. Como
170 | Felipe Negreiros

estudei sobre isso! – registrava em sua mente Pedro,


continuando a andar, já chegando à rua de seu hotel.
“O que se seguiu daí foi um dos momentos mais
tristes de nossa história”, refletia. “Como pai, ele não
queria deixar os filhos, praticamente todos, mas, como
soberano e responsável por sua dinastia, tinha de deixar
no Brasil, não só a mim, mas as minhas irmãs, pois, caso
falecesse, elas herdariam o trono. Foi difícil”, dizia para si,
“porém, isso era uma preocupação, de fato. Tanto assim
que a Assembleia que se apossou do poder com as
regências, estabeleceram em lei que a minha irmã,
Januária, herdeira imediata, depois de mim, só poderia sair
do Brasil, quando eu próprio gerasse um herdeiro. Meu pai
foi embora naquela madrugada”, vinham-lhe os fatos à
mente.
“Ele não me acordou, nem às minhas irmãs
Francisca, Januária e Paula Mariana. Levou consigo apenas
a filha mais velha, Maria da Glória, rainha de Portugal.
Disseram que meu pai se despediu de mim com um beijo,
enquanto dormia”, suspirava. “Determinou ainda ao
senado que acolhesse o nome de Bonifácio como o meu
tutor”.
Pedro se lembrava de ter estudado que o seu pai
saiu do palácio acompanhado do marquês de Loulé, o
mesmo que, anos depois, criaria obstáculos a ele, enfermo,
continuar como regente, enquanto se aguardava a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 171

emancipação da rainha Dona Maria II, sua irmã. Na


ocasião, ele deu adeus à multidão que
surpreendentemente o aplaudia.
“Ele estava protegido pela armada britânica,
simpática à causa de minha irmã. Foi para não voltar”,
mentalizava, fazendo o seguinte registro: “Para ser para
Portugal um rei que ao final não foi para o Brasil. Lá
encerrou o absolutismo e colocou no trono essa minha
irmã, fazendo valer a Constituição”.
“Meu pai viu que, no geral, o burguês liberal dos
séculos XVIII e XIX até podia não ser um democrata ou
republicano, mas era um devoto do constitucionalismo.
Vivia-se um tempo, e meu pai teve a grandeza e a
sabedoria de perceber isso ao final de sua breve vida, em
que se queria e não se abria mão de se ter um Estado
secular com liberdades civis e garantias voltadas para um
ambiente de contribuintes e proprietários, de onde toda a
soberania não proveria mais de Deus, mas da Nação, e
esta, a Nação, não iria reconhecer qualquer direito acima
do seu próprio, não aceitaria qualquer lei ou autoridade
que não a sua, nem a da humanidade como um todo, nem
a de outras nações”.
Na verdade, para boa parte da elite da época, por
trás do golpe dado por meu tio, D. Miguel, estariam os
austríacos, pois ele professava a causa absolutista tanto
172 | Felipe Negreiros

como a Rússia e a Prússia, buscando impedir que as ideias


liberais e constitucionais abalassem novamente a Europa.
“É interessante, mas o meu pai foi um dos poucos
governantes, criados dentro de uma corte absolutista que
percebeu que a liberdade do povo, com leis justas e uma
Constituição como guia, podia ser mais saudável para o
sistema monárquico que sustentá-lo por meio de uma mão
militar”.
“E foi assim, repetindo tais palavras como um
mantra que o meu pai angariou o apoio de Luís Filipe, o rei
da França e o futuro sogro de minha outra irmã, Francisca,
casada com o príncipe de Joinville, o terceiro filho deste
mesmo Luís Filipe. E foi, inclusive, fortemente ajudado pela
esposa deste rei, Dona Maria Amélia, tia de minha mãe,
Leopoldina, que adotou Pedro I como um verdadeiro
sobrinho”. Na verdade, ele fez por onde. Precisando
desesperadamente do apoio da França, assumiu um
comportamento exemplar, ganhou a Grã-Cruz da Legião de
Honra, participou de solenidades, entoou hinos cujas letras
foram escritas por Victor Hugo, foi ao teatro, assistiu
Rossini, misturando-se com a melhor elite de Paris. Isso
para não falar que quem ainda o aconselhou como
recuperar Portugal foi Tayllerand. “Sempre ele, que, na
época, era o embaixador da França na Inglaterra, já no
final da vida”, orgulhava-se.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 173

Sentando-se em um banco para descansar, falava


ao médico: “Meu pai teve uma morte, realmente, bem
diferente da que terei, cercado pela sua segunda esposa,
minha madrasta, D. Amélia, e pela minha irmã mais velha,
Maria. Soube que os primeiros sinais de debilidade de sua
saúde ocorreram no dia 27 de maio de 1834. Ele fora
assistir a um concerto no Teatro São Carlos, em Lisboa.
Houve um tumulto enorme no local, apesar de meu pai ter
libertado Portugal da tirania de meu tio, D. Miguel. Muitos
o culpavam por ter sido brando com este e com os seus
partidários. Na ocasião, houve brigas, temeu-se até pela
sua vida, mas, meu pai, mesmo tremendo e com falta de ar
tentou chamar a multidão à ordem. Foi acometido aí,
neste momento, por um violento ataque de tosse, que fez
com que ele levasse o seu lenço à boca. Uma onda de
sangue vermelho e espumoso manchou-o por inteiro. O
que fez com que todo o público, outrora revoltado, ao
presenciar a cena, calasse. Meu pai logo se recompôs, mas,
muito pálido, teve força apenas para se voltar para a
orquestra e pedir ao maestro para dar início às funções.
Desde esse dia, mudou-se para Queluz. Passou a diminuir,
cada vez mais, as suas atividades. Parara de caçar e
montar, só passeando de carruagens ao redor do palácio,
diminuindo cada vez mais o percurso. No dia 08 de julho,
segundo aniversário da data em que desembarcou no
Porto para libertar Portugal, ele, teimoso como era, fez
174 | Felipe Negreiros

questão de viajar de Lisboa àquela cidade, com a minha


madrasta e a minha irmã. Àquela altura, ele ainda era o
regente, mas queria apresentá-la. Os médicos fizeram todo
o possível, para que ele não fosse, tentaram até mudar o
tipo de lenha do navio a vapor que o conduziu, todavia, ele
sabia que não mais retornaria àquela cidade, tão
importante para a história da nossa família, para os
Bragança. Disseram-me que se despediu da cidade
comentando que nunca mais a veria novamente. De fato, o
excesso de atividades, de ar cheio de enxofre pela salva de
canhões e a poeira das estradas, levaram-no, em agosto
daquele ano, a ter um novo ataque”.
– Está registrado no Livro do Tombo em Lisboa,
caro Mota Maia: pediu, na hora da morte, que o duque da
Terceira, o mais velho dos Marechais, representasse o
exército de Portugal, abraçando-o neste último momento.
Sob o seu peito, a minha irmã, a rainha Maria II,
emancipada aos 15 anos, dias antes da morte de meu pai,
colocou a medalha da Torre e da Espada. Em suma, meu
pai foi enterrado como pediu, não como um rei, mas como
um soldado.
– Majestade – perguntava-lhe Mota Maia –, o seu
pai escreveu algumas últimas palavras para o Brasil?
– Veja, meu caro doutor, em 1835 imprimiu-se uma
carta do médico que o assistiu. Segundo esse médico, em
um determinado momento, em seu leito de morte, quando
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 175

todos dormiam, ele escreveu algumas palavras ditadas por


meu pai para o Brasil e para o povo brasileiro. Falava de
uma irresistível saudade que o chamava, uma saudade que
lhe doía muito, como nada igual. Meu pai dizia que foi filho
do Brasil por adoção. Lá se descobriu. Sob o seu Sol
resplandecente, de sua virginal e incomparável natureza, a
sua juventude floresceu, assim como a vida com os seus
mistérios e a mocidade com os seus encantos se
manifestaram em sua alma. Ele contava que foi no Brasil, e
não em Portugal, que foi filho, pai, esposo, irmão, cidadão,
soberano, legislador e fundador de um dos maiores
impérios da terra. Dizia também que, embora se sentisse
em dívida, sabia que legou ao país leis que o fizeram
diferente dos seus vizinhos. Ainda, falava que doou ao
mesmo os seus bens mais preciosos: quase a totalidade
dos seus filhos. Bem! Entremos no hotel, já é hora de
descansar as pernas e a cabeça – ordenava.
176 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 177

Parte 3
CUMPRIMENTE...
178 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 179

Capítulo 7
EDUCAR O PRÍNCIPE?

O sono da sesta, por ser sagrado, não deveria


provocar-lhe a sensação de cansaço que lhe causava,
pensava Pedro. Não fazia muito tempo, entrara no hotel e
se afastara de Mota Maia, mas singularmente nesta tarde,
estava demonstrando enfado. Terminou a conversa com o
seu médico em um momento da vida que lhe é
particularmente triste.
Nesse momento, muitos dos que ainda o cercam
reconhecem que a verdadeira história da sua vida
começou assim que ele despertou, nas primeiras horas do
dia 08 de abril de 1831. “E quanto este dia foi trágico!”,
lamentava-se. Quando abriu os olhos, viu logo a coroa
imperial sobre a cama e achou tudo estranho, pois sua aia
e os demais criados o estavam cercando. Pedro lembra-se
180 | Felipe Negreiros

de que correu pelo palácio chorando e chamando pelo seu


pai.
Ele se fora.
“Minha nossa! Será que ninguém reparou o quão
dantesco era o quadro?”, indagava-se. Uma criança de 5
anos, no meio de um momento como esse. Ele conseguiu
se recompor e escreveu uma carta ao pai, que, àquela
altura, já se encontrava em uma fragata inglesa, amparado
pelo embaixador tanto da França como da Inglaterra, dois
países que lhe deram asilo político.
Pedro I levava consigo como único mérito a lhe
amenizar as dores do espírito: o de ter evitado a eclosão
de uma guerra civil na Pátria que, há pouco, adotara-o.
Sem dúvida, foi um dos momentos mais tristes da
história do Brasil. Difícil separar o drama de uma família
desfeita das razões de Estado. Pedro I, inicialmente,
mandou preparar todos os filhos para levá-los consigo,
todavia, cioso da sua dinastia, deu ordens para não
acordar as crianças e decidiu ir apenas acompanhado da
sua filha mais velha, D. Maria da Glória, rainha de Portugal.
No Brasil, ficaram todos os demais filhos de D. Leopoldina.
Quatro dos sete que teve e dos cinco que lhe restavam
vivos: Pedro, Januária, Francisca e Paula Mariana. Os dois
filhos que já haviam morrido eram D. Miguel e D. João
Carlos. O primeiro nasceu em 26 de abril de 1820, vindo a
falecer logo após o parto, enquanto o segundo chegou a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 181

alcançar o título de príncipe da Beira, com a morte da sua


bisavó, Maria I, e a ascensão ao trono do seu avô, D. João
VI. Ele, como se falou, veio a falecer logo após o dia do
Fico, naquele momento de tensão que antecedeu a
independência e exigiu que a imperatriz, Dona Leopoldina,
na ocasião, tivesse de se deslocar para a Fazenda de Santa
Cruz. Um fato que, tal qual já se disse, o seu pai jamais
perdoou, responsabilizando Portugal pelo ocorrido.
Dentre os que sobreviveram à partida do pai de
Pedro II, Dona Maria da Glória foi a que, ao lado deste
mesmo Pedro II, chegou ao trono. Nascida no Rio de
Janeiro em 04 de abril de 1819, ela ascendeu ao posto de
rainha de Portugal com o título de D. Maria II. Casou em
1834, por procuração, em Munique, com Augusto de
Leuchtenberg, o duque de Santa Cruz, irmão da segunda
esposa do seu pai; Augusto logo veio a falecer. Menos de
três meses depois, contraiu um novo casamento com
Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, primo de Alberto,
esposo da rainha Vitória da Inglaterra. Seu reinado, ao
contrário do de Pedro II, foi muito tumultuado e muito
breve, pois veio a falecer em 1853, aos 34 anos, enquanto
dava à luz seu 11º filho.
Já Januária era a mais velha dos quatro que ficaram
no Brasil. Nasceu a 11 de março de 1822, logo após o Dia
do Fico, e o seu nome foi dado em homenagem à cidade
do Rio de Janeiro. Por essa razão, ficou conhecida como a
182 | Felipe Negreiros

princesa da Independência. Foi a única da família que


alcançou o século XX, morrendo em Nice, na França, em
1901. Teve quatro filhos e, entre eles, um ainda voltou ao
Brasil em 1869, onde se tornou militar, Filipe de Bourbon.
Diz-se que este tinha um temperamento tão difícil que
Pedro decidiu afastá-lo do palácio para que ele não
acabasse por gerar uma má influência aos seus netos.
Quanto à Paula Mariana, nasceu em 1823, e o seu nome
foi dado em homenagem aos estados de São Paulo e Minas
Gerais. Faleceu ainda criança, às vésperas de completar 10
anos de idade e o seu corpo foi enterrado ao lado do da
sua mãe no Convento da Ajuda, que hoje não existe mais,
fazendo com que os restos mortais das duas fossem
transferidos para o convento de Santo Antônio, no Largo
da Carioca, no Rio de Janeiro. Por último, foram levados
para a cripta que fica abaixo do monumento do Ipiranga,
em São Paulo.
É interessante, mas há uma curiosidade sobre essa
irmã de Pedro II que viveu tão pouco tempo. É a de que se
deveu a ela o surgimento de Petrópolis, pois, o seu pai, na
busca de cuidar do estado de saúde da menina, acabou
comprando a propriedade do Córrego Seco, que originou a
dita cidade serrana.
Por último, dentre os irmãos por parte de pai e de
mãe de Pedro, tem-se Francisca. Ela nasceu em agosto de
1824 e o seu nome foi dado em homenagem à Comarca de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 183

São Francisco, outrora pertencente a Pernambuco e hoje


fazendo parte do Estado da Bahia. Francisca teve dois
filhos e um deles ficou conhecido como um dos heróis da
Guerra da Secessão, lutando pela União e pela
emancipação da escravatura nos Estados Unidos. Ela era a
mais próxima de Pedro e morreu em Paris, em 1898.
Uma outra curiosidade que merece registro, sobre
essa irmã, é que, ao casar com um príncipe homônimo,
Francisco, filho do último rei da França, teve como dote de
casamento 25 léguas quadradas, ao nordeste da província
de Santa Catarina, à margem esquerda do rio Cachoeira.
Isso representava uma verdadeira fortuna para a época,
concretizada neste pedaço extenso de terras que, em
1848, foi negociado com a Companhia Colonizadora Alemã
e fez surgir a cidade de Joinville, em homenagem ao título,
príncipe de Joinville, que o seu esposo carregava, ao casar.
O fato é que o pai de Pedro amava demais esses
filhos. Tanto que, anos mais tarde, a sua madrasta, D.
Amélia, residindo em Lisboa, contou-lhe que ele, com a sua
natural emotividade, chorou compulsivamente, ao pegar a
cartinha que Pedro II, ainda criança, lhe escreveu. Por
sinal, tal cartinha, Pedro II tinha guardada em sua bagagem
e, volta e meia, lia não só a que ele próprio escreveu como
a resposta do pai, repleta de elogios, conselhos e protestos
extremos de fidelidade ao país, onde dizia sonhar terminar
os seus dias, como simples súdito do filho.
184 | Felipe Negreiros

“Meu filho, meu imperador, escrevo-lhe,


confesso, em lágrimas, fazendo votos para
que você se torne digno da pátria que teve
a fortuna de nascer, que eu adotei e tanto
amo, ame-a também, desejando
prosperidade, revelo que não tenho mais
esperanças de nos vermos, mas sei que o
mundo o admirará”.
“Meu pai e meu senhor, principiei a
escrever a V. M. I. pela minha própria letra,
mas não pude acabar, entrei a chorar e a
tremer-me a mão, remeto para a prova da
minha verdade o princípio que tinha feito.
Eu, todos os dias rogarei ao céu pelo
melhor dos pais que uma desgraça tão
cedo me fez perder, sempre serei
obediente filho e seguirei os ditames de
meu augusto pai. Beijo as mãos de V. M. I.
como obediente filho. Pedro. P.S. Os meus
criados beijam a mão de V.M.I. com o
maior respeito e saudades”.

Foi verdadeiramente uma passagem curiosa da


vida! Se o seu pai ficava ao largo de nosso litoral, cheio de
ressentimentos, salientando que não via como o filho vir a
governar no meio de tantos impasses, a elite brasileira
enxergou naquele menino uma solução.
Ninguém duvida de que a abdicação significou, de
início, uma vitória das forças descentralizadoras, fazendo
surgir no Brasil uma certa experiência republicana, tendo
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 185

em vista a eleição direta dos regentes, uma espécie de


presidente da época.
No entanto, a elite imperial, que representava a
larga maioria dos oligarcas que controlavam o país, agiu
rápido, ordenando não só o massacre dos rebeldes das
províncias, como também criando instituições que
viabilizassem o projeto de fincar, no Brasil, uma Monarquia
constitucional nos mesmos moldes dos países mais
prósperos da Europa. Os intelectuais e nobres vinculados a
esse projeto não pouparam esforços financeiros e
humanos, para mostrar o Brasil com uma identidade
própria e coletiva. Daí, logo nas primeiras horas da manhã
do dia 08 de abril de 1831, terem organizado um Te-Déum
e tratado Pedro II literalmente como um Deus, vendo-o
como uma pessoa que, além de ter nascido no Brasil, seria
educado à nossa maneira, para nos governar e fazer de nós
um povo evoluído, um exemplo civilizatório para o resto
do continente. O que se seguiu foi, contudo, um outro
episódio do teatro do absurdo em que esses dias se
tornaram.
A criança chorando, sem aceitar a partida do pai, e
chamando-o, foi vestida e colocada no banco de trás de
uma carruagem. A seguir: os gritos e os vivas da multidão
que o aclamava, assim como os tiros de artilharia em sua
homenagem. O tumulto proporcionado por soldados
confusos e incapazes de controlar os ânimos dos populares
186 | Felipe Negreiros

que a todo instante colocavam em risco a vida do príncipe


e dos demais membros de sua comitiva.
Como é natural em uma pessoa de tão pouca idade,
tudo o aterrorizava ainda mais. Não sabia a quem recorrer
e a todo instante desejava estar na paz de seu quarto.
Momento sim e momento não, ouvia de sua aia:
“Cumprimente menino, cumprimente”.
No Paço, também pediam para que ele acenasse ao
povo.
– Minha nossa! Como realmente me faz mal pensar
sobre isso – dizia – Mesmo velho, nunca me refiro a esse
episódio e o evito nas conversas. Tenho minhas razões, eis
aí como estou agora, depois de me lembrar sobre esses
fatos – suspirava.
Esse, sem dúvida, era o motivo de se sentir
indisposto nesta tarde, entretanto, recusando-se a ficar
amuado, saindo do quarto e indo a uma sala de leitura no
andar de baixo do seu hotel, Pedro começou a refletir que,
se esse foi um momento de início, era também a ocasião
que fechou o último capítulo da vida de outros
personagens importantes para a sua história e para a
história do Brasil.
Pedro se viu a pensar no grande José Bonifácio, o
seu primeiro tutor. Como era bom pensar sobre ele,
recordá-lo. Sem sombra de dúvidas, foi ele a pessoa em
quem seu pai mais confiou. Tanto que não aceitou de bom
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 187

grado a sua destituição, hoje vista como injusta, assim


como muito do que ocorreu no país naqueles últimos anos.
“Bonifácio tornou-se o responsável por mim,
quando já tinha cerca de setenta anos, até mais idade que
tenho hoje, neste 1891”, constatava o próprio Pedro,
sentando na aconchegante sala de leitura do hotel em que
residia.
Sua vida não foi tão trágica, mas marcada por
grandes surpresas: E, apesar de muitos dizerem que meu
pai não teve escolha senão a tê-lo como tutor de seus
filhos, pois um nome escolhido entre os seus aliados não
seria aceito pelo povo assim como a melhor solução não
estaria entre aquelas pessoas que o obrigaram a abdicar,
não tenho dúvidas de que a sua formação europeia e
conhecimento vasto seria o que havia de melhor para a
minha educação e a de minhas irmãs – De fato, quem diria
que depois de 36 anos morando na Europa, aquele filho de
colonos ainda iria viver a parte mais fantástica da sua vida
– ria-se Pedro.
José Bonifácio nasceu no dia 13 de junho de 1763,
na Vila de Santos, em um amplo sobrado e cresceu cercado
por nove irmãos. Filho do segundo homem mais rico da
Vila, conhecedor de Rousseau, Voltaire, Montesquieu,
Descartes, Locke, Leibniz, estudou em Coimbra, latim,
gramática, doutrina, boas maneiras e lá fez um enorme
sucesso. Ao pedir para voltar ao Brasil, deu como
188 | Felipe Negreiros

justificativa ao rei D. João VI o fato de se sentir aflito e


cansado. Entendia que era a altura de voltar com a sua
biblioteca de 6.000 volumes, a fim de morrer na cidade em
que nasceu.
– Como imaginar aí que o seu grande papel na
História, ainda estava por acontecer?
Convenhamos, se a surpresa do movimento da
Independência o elevou ao Panteão Nacional, o
reconhecimento de se lhe entregar aos seus cuidados a
educação do futuro imperador, na undécima hora, só pode
ser interpretado como a unção do monarca de então de
ser ele o melhor dos melhores.
– Como disse meu pai, no Decreto de sua
nomeação como tutor – registrava Pedro, colocando a
“Divina Comédia” sobre a mesinha sempre usada para as
suas costumeiras leituras feitas à tarde: “Nomeio tutor dos
meus amados filhos o muito probo, honrado e patriótico
cidadão José Bonifácio, o meu verdadeiro amigo”.
Se tudo isso foi surpreendente, tinha mesmo de
acontecer. Não podia ser diferente para um homem que
teve uma vida tão memorável.
– Ele era 4 anos mais velho que o meu avô, ou seja,
tinha idade para ser pai de meu pai – refletia, abrindo as
cortinas da vasta sala de leitura do hotel.
Na verdade, quando o pai de Pedro II nasceu,
Bonifácio já era um dos pesquisadores mais respeitados da
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 189

Europa, seja como matemático, filósofo ou jurista. Entre


outras realizações, publicaria tratados para melhorar a
pesca da baleia, o plantio de bosques e a recuperação das
minas exauridas de Portugal. Partira para Coimbra em
1783 e lá se formara em Direito, Filosofia e Matemática.
Aluno brilhante, foi premiado com bolsas, para estudar
química e mineralogia em outros países europeus. Esteve
na Alemanha, na Bélgica, na Itália, na Áustria, na Hungria,
na Suécia e na Dinamarca. Quando foi a Paris,
testemunhou a Revolução Francesa e, ao voltar a Portugal,
participou da resistência contra Napoleão, ajudando o
corpo acadêmico da Universidade de Coimbra na produção
de munição.
– Nunca deixei de reconhecer a qualquer um: no
Brasil, meu tutor foi o mais importante conselheiro dos
meus pais, seja por ter visto as atrocidades que ocorreram
com o advento do terror na Revolução Francesa, seja por
ter percebido, antes de todos, os benefícios que
conseguiríamos, se repetíssemos aqui algumas ideias
desenvolvidas durante o processo de independência dos
Estados Unidos – afirmava Pedro.
Tinha a convicção: nenhum homem público, no
escasso tempo que teve, 18 meses à frente do primeiro
governo que se instalou após a independência, realizou
tanto para o Brasil, um país que quando ele deixou para ir
estudar em Coimbra não possuía uma biblioteca, salvo a
190 | Felipe Negreiros

modesta coleção de livros do convento dos Carmelitas.


Tinha somente três tipos de professores: Retórica, Filosofia
e Gramática, sem avaliações nem currículos de educação
instituídos.
Neste momento, chegava à sala de leitura Totó, o
seu neto, que viera dar-lhe um beijo. Sentou ao seu lado e
começou a ouvi-lo, colocando a sua cabeça sobre as suas
pernas, da maneira como tanto gostava de ficar, quando
estavam juntos. Acariciando-o, Pedro falou que estava
pensando em Bonifácio, o patriarca da independência do
Brasil. Dizia-lhe:
– Não tenho dúvidas, meu neto, sem Bonifácio, o Brasil
provavelmente não existiria. Coube a ele convencer os
seus pares de que era necessário equipá-lo com um centro
de força e unidade. Foi e partiu dele a fórmula que
funcionou. E fez mais, sugeriu a criação de, pelo menos,
uma universidade, a implantação de um ensino primário
gratuito, a transformação de escravos em cidadãos e a
mudança da capital para o centro-oeste do país.
Seu neto o escutava com atenção, mas, virando-se,
perguntou:
– Em que ocasião, vovô, ele se aproximou de nós,
juntou-se à nossa família; já era uma pessoa de idade,
quando conviveu com os seus pais, não?
– De mim?
– Sim! Do senhor mesmo – confirmava o neto.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 191

– Foi na noite de 07 de abril de 1831. O sábio


estadista esteve exilado em Paquetá, condenado a um
ostracismo que o meu pai, cedendo aos encantos de uma
amante, a marquesa de Santos, lhe impôs – respondeu-lhe
Pedro – Sei que, nesta noite, foi acordado, anunciando-lhe
a urgência. Agradecendo a confiança do seu soberano,
recebeu deste a seguinte mensagem: “Faça do meu filho o
rei que não consegui ser para o Brasil”. Bonifácio, trôpego,
cansado, chega ao Paço, meses depois. Em que pese a
fragilidade da idade, segurou-me, outrora um menino
grande e gordo, nos braços e, aos gritos, bradou: “Meu
filho, meu imperador”. Nesse instante, com certeza, via
duas coisas garantidas e pelas quais lutara toda a vida: a
unidade do Brasil e a Monarquia constitucional. Isso era
algo que vislumbrava, mas sem duvidar de que a sua tarefa
seria imensa: preparar o futuro monarca, driblando um
pecado original. Ele não tinha receios em dizer: a
administração montada no Brasil, desde sempre, merecia
críticas.
– Mas que críticas, vovô? – Totó não lhe escondia a
curiosidade, nem lhe negava atenção.
– De logo, meu neto, porque, desde a chegada de
um colono, a doação da terra e a oportunidade de uma
vida nova vinha envolta de um alto preço. No novo país,
esses homens só seriam agricultores. Daí o Brasil não ter
tido indústrias, nenhum dos nascidos estar no controle do
192 | Felipe Negreiros

comércio, não haver impressão de livros, folhetos, escolas.


Só se permitia, realmente, aos colonos a prática da
agricultura.
Minha nossa! – alarmava-se o neto.
– Sim! Era esse o país que deveria governar –
confirmava Pedro.
– Como? – insistia Totó.
– Coube ao velho sábio responder e acertou meu
pai, ao escolhê-lo para tutor. Ninguém mais poderia
desempenhar tão bem essa tarefa. Bonifácio sabia que o
Brasil, apesar deste início limitado ou mesmo tímido, era
uma terra de oportunidades. Se tudo começou assim, res-
trito à agricultura, há de se ver que, com o dito bloqueio
continental, esse mesmo Brasil se tornou uma terra de
possibilidades únicas. Transformou-se no escoadouro do
mundo, e a formidável frota naval britânica, a “Royal
Navy”, longo braço do império inglês, trouxe comerciantes
sedentos, munidos até de patins de gelo. Era preciso me
preparar, para que observasse que o comércio no Brasil se
limitou no começo a uns poucos traficantes de escravos,
por exemplo, Pereira de Almeida ou Carneiro Leão; que se
a sua elite era rica, na sua maioria, tirando os muito
poucos que estudaram na Europa, era também dura,
desconfiada, despreparada, sem cultura. Era necessário
ver que os brasileiros de maior fortuna e prestígio social,
na origem, só trabalhavam em torno do que havia de pior:
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 193

a escravidão. Não era uma elite de literatos que se iria


herdar, mas composta de pessoas que viam a força da lei
de muito longe. Era um povo que, por isso mesmo, cuidava
de si, convicto de que o bolso repleto de moedas era a
única recompensa da vida.
– Não é à toa, não é, vovô, que o Rio de Janeiro à
época possuía tantas casas que mais pareciam fortalezas! –
falava-lhe o neto.
– Verdade, Antônio, só entrava quem o dono queria
e só saía quem ele deixava – acrescentava-lhe Pedro,
tentando ilustrar um pouco as suas colocações – Janelas de
madeira isolavam os de dentro, mulheres andavam de
camisola e homens de camisolão. Trajes que não
mudavam, nem mesmo quando chegavam visitas. Todas
sempre íntimas o suficiente, diga-se, para não se
incomodar com o descaso. O Brasil resumia-se ao
cotidiano de um ambiente controlado com mão de ferro.
Era escasso até, pasme, a maior alegria de quem só espera
prêmios em ouro.
– E quais seriam essas alegrias vovô? – Antônio
ficara curioso.
– Ora! Tinha-se dificuldade em exibir a riqueza. O
fato é que Bonifácio sabia disso como ninguém; era preciso
mudar esse cenário de uma vez por todas e, em fazendo
isso, não esquecer aqueles detalhes que não escaparam ao
olhar prudente do rei D. João VI: ver o que se poderia
194 | Felipe Negreiros

retirar de bom dessa elite deslumbrada com a chegada da


corte.
Pedro continuava:
– É necessário enxergar que o ritual e a etiqueta da
nobreza fizeram com que a nossa elite deixasse de ter a
procissão e a missa dominical como a única oportunidade
de ostentar. Estava aí a oportunidade de criar uma relação
de necessidade entre a elite e a corte. Cabia a nós saciar a
sua vaidade, mexer com as maneiras de pensar de uma
população, apesar de tímida – sob um aspecto intelectual
–, excitável, alegre, expansiva e ruidosa. Com a chegada do
rei, haveria mais que as marchas da igreja, em que até os
escravos eram incrivelmente adornados. A corte fez com
que se vivenciasse um ambiente de bailes constantes,
cerimônias sem fim.
A explanação prosseguia:
– O dia 13 de maio, por exemplo, aniversário de
meu avô, passou a ser uma data comemorativa, em que
não só as roupas, mas o modo de comer, sentar e falar,
passaram a ser vistos como sinônimo de elegância e
sucesso social. Veja também que, apesar dessa preparação
social pouco adequada, não havia súditos mais fiéis. O
brasileiro, do rico ao pobre, ao olhar a corte, teve uma
sensação de alegria, não de escárnio como um francês ou
de resignação como um inglês mais liberal. Para o
brasileiro, era como estar vendo um parque de diversões e
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 195

esse sentimento infantil enxergou com seu olhar aguçado


o meu genial avô, tanto que adorava as provas de
veneração expostas nas ruas – registrava Pedro, olhando
para Antônio.
Pedro seguia:
– Vovô só saía a passeio em um carro aberto,
saudando os transeuntes com a maior amabilidade.
Determinou que se trocassem os velhos uniformes da
guarda por uniformes novos e vistosos e que todos
marchassem atrás dele com espadas desembainhadas.
Soube fazer bem um jogo cênico – dizia Pedro rindo –
Infelizmente, andava pouco, pois sofria de gota devido ao
peso. Só se aventurava a fazer exercícios, quando o seu
estado de saúde lhe permitia; vivia sob dieta severa e
quase não bebia vinho, entretanto, apesar dessas
limitações, era só gentileza. O único momento em que não
recebia ninguém e desmarcava solenidades, como o do
beija-mão na imensa Galeria de São Cristóvão, era quando
havia tempestades.
– Ele aí se trancava em seus aposentos morto de
medo, não é, vovô? – indagava Antônio.
– Verdade! Mas o fato é que o carinho daquele
povo simplório, percebia Bonifácio, era uma arma para a
preservação da Monarquia
– Pedro lhe respondia, continuando: “E isso era
algo a ser urgentemente ensinado” – Daí os exemplos do
196 | Felipe Negreiros

que o rei D. João VI fez com Pereira de Almeida e Carneiro


Leão, os dois mais ricos brasileiros na época da sua
chegada ao Brasil em 1808. Eles eram traficantes de
escravos que se tornaram fazendeiros ao final da vida e
que praticamente financiaram não só a instalação do
Governo português no Brasil, como a própria
independência. Meu avô, com o espírito mais liberal do
que qualquer rei, privatizou nada menos que o fisco do
país para Pereira de Almeida – dizia rindo – Ele pagava
mensalmente um valor fixo e ficava com o que, por direito,
a coroa tinha a mais e não era capaz de perceber, algo que,
para o traficante, era fácil, até porque tinha uma enorme
rede de contatos e de meeiros vendedores de escravos, os
quais sabiam o lucro de cada fazenda do país. Sobretudo
em uma época em que a avaliação do grau de confiança e
dependência de cada um era um aspecto verdadeiramente
não só matemático. E esses ensinamentos me foram
transmitidos, Antônio, em uma aura em que tudo em São
Cristóvão só traduzia uma palavra: orfandade – entristecia-
se – Não por menos, quando Francisca, a mais bela da
família, ainda moça casou com o mencionado príncipe
Francisco, filho do rei da França, Luís Filipe, homem fino,
dócil e generoso, este disse à sua esposa, Maria Amélia,
quando foram recepcioná-la em sua chegada a Paris:

Receberemos uma criança que viveu só,


sem pai, mãe...lembremos que a corte
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 197

brasileira foi e é a mais intrigante do


mundo, composta de criados e mais
criados, do Senado e de três órfãos
solitários, que só choravam aos meios de
banquetes, não possuindo um simples
carinho de um pai e de uma mãe.

– Difícil imaginar outras crianças vivendo de uma


maneira tão austera, sem direitos, infelizes. Nos primeiros
anos em que me vi só, não queria nada, pedia um pai e
uma mãe à minha camareira. Nos meus aniversários havia
doces, gente em volta, mas eu e as minhas duas irmãs,
todos igualmente órfãos, em dados momentos, abraça-
vam-nos e chorávamos. Meu único ascendente vivo era o
meu avô por parte de mãe, Francisco I, o imperador da
Áustria, quem, afora ter tido o cuidado de, no dia 07 de
abril e os seguintes à abdicação do meu pai, ter
determinado que a armada que se localizava no Rio
retirasse as crianças em caso de urgência e as levasse à
Áustria, limitava-se a pedir à embaixada austríaca notícias
sobre a minha saúde e sobre o desenvolvimento de minha
educação.
– Aí ele teve as melhores notícias de sua vida, vovô
– Antônio, fazendo-lhe carícias, tentava alegrar Pedro que
lhe falava:
– Na realidade, Antônio, eu, o menino louro e
grande, era visto pela elite mais intelectualizada colocada
no poder pelo meu pai como alguém que representava a
198 | Felipe Negreiros

própria Nação ou, se não, o meio dos ditos políticos ou


mais ricos brasileiros chegarem onde realmente queriam
chegar e serem respeitados: a Europa. Para eles, era
importantíssimo que o Brasil tivesse um governante tão
Bourbon ou Habsburgo que o de qualquer das potências
da época, todas elas reunidas, lembre-se, na chamada
Santa Aliança. Era como se de um certo modo eu
simbolizasse um padrão de luxo e pompa que os aris-
tocratas almejavam para o nosso país.
– Mas, vovô, além de Bonifácio, quem estava perto
e de fato o criou?
– Bonifácio foi um, mas houve outros, é claro –
Pedro respondeu, de imediato – Outra pessoa que me
acompanhou foi a minha aia e camareira-mor. D. Mariana
Carlota de Verna Magalhães Coutinho. Era uma mulher
encantadora, carinhosa e de quem tenho imensa saudade,
Antônio. Posteriormente, a nobilizei como condessa de
Belmonte. Dadama, era assim como a chamávamos. Foi
uma portuguesa, religiosa, doce, com uma inabalável
retidão de caráter que viera ao Brasil em 1808, junto com
o marido, Joaquim José de Magalhães Coutinho, e os seus
filhos, na comitiva da rainha D. Maria I e do meu avô,
àquela altura ainda príncipe regente de Portugal. Fiéis ao
meu pai, Joaquim foi secretário da fazenda real e ocupou
diversos outros postos, chegando até a fazer parte do
cerimonial da sua coroação, em dezembro de 1822. Era a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 199

minha mãe de fato e ficou comigo até ser declarada a


minha maioridade, embora seja verdade que eu próprio
tenha dito que considerei como mãe a segunda esposa de
meu pai, a imperatriz D. Amélia. Realmente revelei isso em
meus diários; disse que tive um relacionamento forte e
carinhoso com a minha madrasta. Para mim, Amélia foi
uma mulher notável, linda, madura, apesar da pouca idade
que tinha, quando casou com meu pai. Nessa ocasião, ela
era uma jovem de apenas dezessete anos. Vinda da
“segunda parte do Gotha” (o almanaque alemão que,
desde 1763, publica a relação de casas nobres dinásticas
soberanas e não soberanas), soube ultrapassar as barreiras
sociais e se fazer respeitar. Era tão amada que foi uma das
poucas pessoas da família que fiz questão de visitar em
uma das minhas viagens oficiais à Europa. Estive com ela
em Portugal, no seu Palácio das Janelas Verdes,
constatando, com alegria, que a minha madrasta manteve
a mesma dignidade tão marcante em toda a sua vida. Na
última vez que a vi, já estava na cama, doente, mas como a
descrevi: sempre muito meiga e bonita.
Neste momento, Pedro levanta e diz ao neto:
– Querido, use a força da sua juventude e feche um
pouco a janela, nunca vi um abril tão frio.
Ao que o seu neto lhe pergunta:
– Vovô, como foi o Senhor, quando criança?
200 | Felipe Negreiros

– Com certeza, não demoraram, para perceber os


traços que tinha de semelhança com a minha mãe; o meu
amor aos livros e às ciências, especialmente a astronomia,
era testemunhado por todos no palácio. Daí ter sempre eu
conservado o museu particular de história natural da
minha mãe. Daí, também, os elogios que faziam com
relação à minha obsessão por cumprir logo os meus
deveres e buscar sempre o refúgio no estudo, quando me
sentia atormentado. Ademais, se eu tinha muito da minha
mãe, já com o meu pai tinha pouco em comum. E isso não
me surpreende, pois fui educado para ser diferente. Se o
meu pai foi um romântico, impulsivo, sonhador,
ensinaram-me a controlar os ódios e os amores, a ser
contido e racional, equilibrado e previsível. Embora tudo
isso, sabe, Totó, fosse um verniz que escondia um homem
de paixões tão fortes como as do meu pai, incluindo aí
também o amor que nós dois tivemos pelo Brasil.
– E, afora esses dois, de quem mais se recorda? –
Antônio se impacientava.
– Em outro ponto, uma pessoa a quem, já velho, fiz
referência como tendo sido influente em minha educação
foi Félix Taunay, filho do pintor Nicolas Taunay. Para mim,
esse homem, que foi o meu professor de desenho e
responsável pela Academia de Belas Artes, foi quem me
apresentou a França e me incutiu os hábitos de um
francês.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 201

– Nossa! – admirava-se Antônio.


– Taunay, meu neto, não era homem de seguir um
programa, suas aulas seguiam a sua fantasia e passavam,
tranquilamente, de Voltaire a Chateaubriand. Cedo, esse
professor incutiu-me o hábito de ler os jornais franceses: O
“Débats” e o “Quotidienne”. Uma vez por mês, os jornais
chegavam, e o professor não prevenia ninguém. O Mestre
colocava sua pasta preta sobre a mesa, estendia um lenço
sobre a cadeira, piscava o olho, tirava o jornal e dizia,
displicente: “Verás como Guizot quebrou a crista dos
liberais. Que homem, Majestade, que homem!!!”
– E aí, vovô? – Antônio lhe perguntava.
– Lia fascinado. Guizot brilhara na tribuna, mas
havia Victor Cousin na universidade, Thierry e os seus
merovíngios, falando em anarquia ou em não haver causas
legítimas que impedissem levar a França novamente para
os braços de uma Monarquia Constitucional. Eram
momentos mágicos, no gabinete do terceiro andar de São
Cristóvão. As janelas ficavam entreabertas, para proteger
de um certo frio da tarde, próprio do Rio. Afora a voz do
Mestre, como tantas vezes já disse, só o chiado das
carruagens no cascalho do pátio e a música tocada por
Francisca no segundo andar do palácio. Só uma outra coisa
não me passava despercebido – falava, entristecendo a
voz.
– O que, vovô?
202 | Felipe Negreiros

– Toda vez que terminava a aula e me despedia de


meu professor, quando este me entregava a camaristas
subservientes, ele sentia a aura de tristeza em meu rosto,
há pouco tão alegre. Sabe, via que ele foi um dos únicos
que tinha pena de mim. Ao final, eu soube que, quando de
minha queda, o seu filho ficou responsável pela Biblioteca
Nacional.
– Mas deixemos de falar de tristezas e de lamentos,
vovô, conte-me em que disciplinas o Senhor se destacava.
– Meus mestres me diziam, recordo-me, que havia
quatro caminhos para as estrelas: os negócios, a leitura
aleatória e constante de tudo que me viesse às mãos, o
estudo das artes e da guerra. Bem! Posso lhe dizer que fui
ótimo em álgebra, no estudo de línguas, especialmente no
grego, e da geologia. Dos homens, compreendi-os por
meio de Camões, dos políticos por meio de Tácito, e sobre
as mulheres por meio de Racine e Bernardin de Saint-
Pierre. Tudo era decantado pelas aulas memoráveis de
meu professor de literatura, Cândido José de Araújo Viana,
o marquês de Sapucaí. Na verdade, vejo, hoje, que a minha
idade acompanhava as nacionalidades dos escritores.
Quando mais novo, eram os portugueses, iluminado por
Almeida Garret; depois vieram os ingleses, como Walter
Scott. Então, vieram os alemães, como Hoffmann e
Charmisso, e os italianos, como Manzoni. Esse até me
inspirou a escrever a primeira das inúmeras cartas que
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 203

enviei ao longo da minha vida, como imperador, aos


intelectuais que, de um modo ou de outro, tocaram a
minha sensibilidade.
– Como o senhor gastava o seu tempo no palácio,
eram só aulas? Se sim, pelo amor de Deus, não fique
falando isso a mamãe, por favor – suplicava-lhe Antônio.
– Não, meu menino, nem se preocupe! Todo o
tempo era preenchido por atividades diversas. Na arte da
esgrima, por exemplo, quem foi o responsável pelas lições
acabou sendo o homem que foi o meu condestável, aquele
cuja ausência me fez ver que o golpe que me foi dado não
podia mais ser combatido: o duque de Caxias. Caxias
terminou por não só comandar o exército, mas ser o
símbolo do próprio. Era comum ouvir o exército se referir a
si não como o exército do Brasil, mas de Caxias. Na
verdade, esta ideia de me isolar e me restringir aos
exercícios físicos e aos livros, seguia uma prática cor-
respondente à inglesa. A rainha Vitória, minha prima é
alguns anos mais velha do que eu, foi educada desta
maneira e tinha-se nela a ideia de uma soberana moderna,
passiva, que deixava a política para os políticos. Já, por
outro lado, o responsável pelo meu dia a dia era o
mordomo do Paço, Paulo Barbosa. Ele controlava
meticulosamente o meu tempo e foi dele que partiu, não
tenho a menor dúvida disso, a minha primeira posição de
poder. Vou contar-lhe: em certos horários, só o imperador
204 | Felipe Negreiros

podia passear em alguns locais do jardim. Minhas irmãs só


me acompanhariam se eu deixasse, e, às vezes, elas
pediam para caminhar comigo. Foi aí que vi, pela primeira
vez, o que era decidir sobre algo.
– Sua vida era muito regrada, vovô!
– Sim! Vivia-se sempre em tensão e havia uma
razão forte na confusa situação política da Regência. Meu
tutor, Bonifácio, não me ajudava nesse aspecto. Em vez de
ser neutro, integrava uma facção chamada de
restauradores. Pedia o retorno de meu pai. Por outro lado,
havia os farroupilhas, mais radicais, republicanos e liberais.
Foram tantos problemas criados, que Bonifácio acabou
sendo demitido pelo ministro da justiça, Aureliano
Coutinho.
– Isso eu sei! – dizia-lhe Antônio – E a maior graça
foi a de que esse ministro terminou por casar com a neta
de seu antigo tutor – lembrava-lhe ainda.
– Isso mesmo, meu neto! Bonifácio tinha essa veia
insaciável, essa vontade de estar no meio do jogo político,
mas eu tinha por ele, sempre repetirei isto, muito carinho.
Recordo-me agora de nosso último contato, foi quando da
morte de meu pai. Lamentando por não ir mais ao Paço ou
me escrever com frequência, mandou-me uma carta:

“Carregado de pesares e de profunda


amargura, eu vou dar os pêsames pela
perda de Vosso Augusto Pai, o meu amigo.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 205

Não disse bem, D. Pedro não morreu – só


morrem os homens vulgares e não os
heróis. Eles sempre vivem na memória ao
menos dos homens de bem, presentes e
vindouros e sua alma imortal vive no céu
para fazer a felicidade do futuro do Brasil...
Deus guarde a preciosa vida de Vossa
Majestade”.

Na verdade, prestei a Bonifácio diversas


homenagens ao longo de minha vida. Recordo-me, como
se fosse hoje, quanto quis ir ao seu enterro, Antônio. Só
não fui, porque a Regência me negou o direito. Nada tira-
lhe o brilho, nem mesmo o fato de que, depois da sua
saída e da nomeação de um novo tutor, Manuel Inácio
Pinto Coelho, o marquês de Itanhaém, a minha vida se
tranquilizou mais. Militar reformado e na casa dos 50 anos,
Itanhaém fez da educação do futuro imperador do Brasil a
grande tarefa de sua vida. Levantava-me às 7h da manhã,
o almoço me era oferecido às 8h, com a presença de um
médico. As minhas irmãs não comiam comigo. Das 9 às
11h30 eu estudava. Daí, podia me divertir até às 13h30,
quando se servia o jantar, na presença mais uma vez de
um médico, da camareira e da camarista. Havia um breve
descanso a seguir e, às 16h30, havia o passeio pelos
jardins; às 20h, orações; ceia às 21h, e dormia-se às 21h30.
Eram hábitos de disciplina e pontualidade que, reconheço,
foram incorporados em mim e os manterei até o fim da
minha vida.
206 | Felipe Negreiros

– Vovô, conte-me do aspecto humano, moral, como


formou-se o seu caráter, como você se tornou esse
homem tão admirável?
– Não sei se sou tão admirável assim – Pedro ria –,
mas foi com a ajuda de Frei Pedro de Santa Mariana que se
programou como dever-se-ia ser a educação moral do
príncipe. Frei Pedro tinha, por missão, fazer daquele
menino um profundo conhecedor do iluminismo,
humanismo e moralismo. Queriam de mim, e aqui me
refiro à elite brasileira, um monarca humano, sábio, justo,
honesto, tolerante, dedicado integralmente às suas
obrigações, acima das paixões políticas e dos interesses
privados.
– E conseguiram! Creia, vovô! – dizia-lhe o neto.
– Bem, Antônio, se sucesso tive em ser o que
desejavam que eu fosse, só a história dirá. O que importa
por agora, meu menino, é que você saiba que eu sempre
tive o desejo de me tornar alguém igualitário, imparcial e
justo. Primei pela importância do estudo das ciências, das
artes, das mecânicas inclusive. Frei Pedro foi, nesse
aspecto, mais que o meu aio. Era um frade carmelita
austero, ensinou-me matemática e geometria. Marcou-me
tanto, que, mesmo quando deu por terminado o seu
trabalho, não deixou os seus aposentos na Quinta da Boa
Vista, sendo nomeado pelo Papa Gregório XVI Bispo de
Crisópolis em 1841, e, vindo a falecer em 1864, aos 82
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 207

anos de idade, sepultei-o no Convento da Lapa, com todas


honras. Na realidade, posso lhe dizer que, se Taunay deu
ao menino cosmopolitismo, esse frade lhe deu modos. Isso
porque foi ele quem ficou encarregado de me acompanhar
às recepções e me passar toda a civilidade, assim como o
gosto pela leitura. E os livros, de fato, eram a minha
paixão. Sem ninguém, trancado em um palácio, meus
livros eram um mundo à parte. Era comum ser
surpreendido lendo, até altas horas, na cama. Frei Pedro
apagava as luzes, mas, logo em seguida, era eu flagrado
lendo novamente – ria-se Pedro, imaginando a cena.
– Interessante, você não tinha quem lhe cobrasse,
ou mesmo acompanhasse a evolução dos seus estudos?
– A minha educação era tratada como uma questão
de Estado. Os deputados e os senadores acompanhavam,
de perto, o desenvolvimento dos meus conhecimentos.
Eles examinavam os relatórios do tutor; havia até sessões
no parlamento para isso. Lembro que, em 1837, relataram
já saber falar e escrever em francês e inglês. E isso foi um
reboliço; muitos vieram me congratular, parecia, para eles,
um grande feito. Trouxe comigo uma série de exercícios
escolares daquela época, espero que, um dia, alguém os
coloque em um museu. Neles se vê o quanto a corte se
preocupava em me incutir as lições certas, para me tornar
um estadista. Há um exercício em francês, Antônio, que
retrata bem isso. Nele escrevi mais ou menos assim: “Lei
208 | Felipe Negreiros

dos soberanos. O amor do povo, o bem público, o


interesse geral da sociedade”. E há um outro em
português: “Um rei não é digno de reinar nem ser feliz no
seu poder, senão enquanto o tem (o poder) subordinado à
razão”.
– Sua infância foi triste, vovô, como você se sentia?
– No meio disso tudo, vivia uma criança realmente
solitária e infeliz, meu neto – Pedro dizia acariciando os
cabelos do jovem – Meu mordomo, Paulo Barbosa, disse-
me, quando nos encontramos, eu já Imperador, que, por
alguns anos nada me agradava, eu só chorava. Penso que
veio daí a minha grande timidez. A minha voz, até hoje,
não alcançou um timbre verdadeiramente masculino.
– Com quem você brincava, vovô?
– Não havia muita gente, para brincar e o tempo,
para isso, era escasso, não porque me enchessem de
estudos ou de atividades físicas, mas porque sempre gostei
da solidão e de ler, mas brincava com outras crianças, sim.
Meus companheiros eram os filhos da aia, do tutor e do
mordomo. Todos destacaram-se no mundo político e
científico inclusive. Deles, o mais chegado foi Luís Pedreira
do Couto Ferraz, o visconde do Bom Retiro. Ele chegou a
ser ministro, mas logo renunciou às posições de poder,
para não ser visto como alguém que se aproveitava da
proximidade que tinha comigo. Bem, deixemos essas
lembranças de lado. Ajude-me a subir e a me trocar; hoje é
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 209

quinta-feira e, como sempre faço às quintas-feiras, vou


jantar com você e Isabel. Enquanto eu estiver vestindo-me,
vá ao encontro de sua mãe e venham juntos me pegar,
escolham um bom restaurante, o que não lhes será difícil –
disse, abrindo um largo sorriso para o neto.
210 | Felipe Negreiros

Capítulo 8
COMEÇOU...

Charcot estava irritado demais para uma sexta-


feira. O céu estava muito nublado e Paris mais parecia
Londres, embora não fosse o clima a lhe tirar a paciência.
Sua mesa era um pandemônio de livros, jornais e caixas de
remédios. O médico não conseguia definir o que precisava
fazer, para colocá-la em ordem.
Para variar, precisava sair com uma certa pressa,
pois recebera um recado que o imperador do Brasil não
dormira bem e teria de ir vê-lo quanto antes.
Bem! Já que a mesa não seria mesmo arrumada
nesta ocasião, decidiu colocar um sobretudo e pedir ao
assistente, para lhe chamar um tílburi. Por sorte, o
percurso ao hotel de Pedro II não estava tumultuado, já
que o mal tempo afastou as pessoas das ruas. Isso lhe
permitiu relaxar e, durante a viagem, pôde ter uma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 211

conversa mais amena com o aluno que o acompanhava na


visita ao seu paciente não só ilustre, mas amigo.
Charcot escutava-o dizer o quanto ficara
impressionado com Pedro II, quando o viu na Academia de
Ciências da França. Para o seu aluno, além de erudito, o
imperador do Brasil lhe pareceu uma pessoa bastante
simples e informal.
– Embora – disse-lhe Charcot – em uma corte,
qualquer que seja, a compreensão do termo simples é algo
bem diferente para nós, meros mortais. Há de se ter uma
certa liturgia e faltou isso ao imperador do Brasil. Daí a sua
queda – acrescentava – Uma corte é diferente de uma
cidade em uma República. Se olharmos para a obra “O rei
está nu” de Andersen, não temos dificuldade alguma em
vislumbrarmos isso – Charcot falava, olhando o seu aluno
fixamente – Perceba que, se não fosse a criança
desavisada, todos teriam se maravilhado perante uma
roupa que não existia, presos à pompa da ritualística, da
procissão ou do desfile que apresentava as supostas
vestimentas do rei. Veja que essa estória nos mostra algo
que é não um simples adereço, mas uma parte
fundamental do Estado Monárquico – dizia-lhe o médico –
Pedro e a sua esposa, a imperatriz Teresa Cristina,
mostraram-se avessos demais a seguir uma liturgia que é,
de certo modo, necessária. Ela era napolitana e, como tal,
apesar de nobre, era uma dona de casa econômica, que
212 | Felipe Negreiros

não tolerava o desperdício e se preocupava em tirar tudo o


que podia de um metro de tecido ou de um barril de
farinha. Desse modo, estava sempre ocupada, cuidando do
bem-estar do marido e das duas filhas, deixando a parte
social para um segundo plano; algo imperdoável em se
tratando de uma corte, diga-se, pois é a sua estrutura
social o que permite compreender o próprio fenômeno do
luxo. E de luxo – sorria-lhe Charcot –, pelo que se sabia,
eles não tinham nada. Parece não terem entendido que,
para a sociedade brasileira, a corte significava entrar na
lógica da realeza, de uma vida que gira em torno do rei e
de um tipo de expediente que pressupõe uma exposição e
afirmação constantes; em cada gesto, havia um fetiche de
prestígio. A etiqueta marca posições e, com isso, a
estabilidade do Estado. Tal qual um argumento cênico,
transforma-se em um fim em si mesmo, uma parte integral
e essencial do poder – Charcot comentava ao seu aluno,
que, entretido, prestava-lhe cada vez mais atenção.
Charcot seguia:
– Nem ele nem D. Teresa se apercebiam disso. O rei
é a divindade e em sua família se expressa a tradição, algo
que lhe dá o que não existe para os aventureiros, a
perenidade do estatuto social. Seu avô, o fantástico rei D.
João VI, sabia disso e usava tais artifícios com maestria.
Participava de vários bailes e banquetes, dos seus e dos
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 213

oferecidos pelos membros da nobreza ou diplomatas


estrangeiros que serviam no Brasil.
O avô de Pedro sabia que a Monarquia, mais do
que qualquer outro regime político, tinha de se empenhar
em uma guerra silenciosa pelo controle dos ritos que
pertenciam ao próprio contexto da vida humana. Daí o
controle do sistema escolar, das igrejas, manipuladas e
enredadas em grandes cerimônias de nascimentos,
casamentos e mortes; por símbolos, como a bandeira, e
pela música expressa em hinos e marchas militares. Tanto
assim que o aniversário do príncipe regente da Inglaterra
foi um exemplo: o embaixador inglês da época ofereceu
uma grande recepção no Rio de Janeiro. Outra muito fala-
da foi a que fez o visconde de Vila Nova da Rainha para a
princesa Dona Carlota. Em suma, D. João fazia questão que
todos os bailes obedecessem a etiqueta da época, com a
sinfonia de abertura, e só determinadas pessoas,
seguindo-se rígida hierarquia, abrissem os bailes;
apresentavam-se minuetos, valsas e outras contradanças
pela ordem estabelecida pelos mestres-salas; convidava-se
cada uma das senhoras presentes para cada uma dessas
danças, dando-lhes pares sempre diferentes; evitavam-se
danças longas, e sempre vinha depois um rico banquete,
em que homens e mulheres comiam separados, ou seja, o
avô de D. Pedro soube fazer um culto a si próprio, obser-
vando ritos seculares, expressando o simbolismo que o
214 | Felipe Negreiros

unia ao seu povo. Pedro não soube fazer nada disso, essa é
a verdade! Ele não enxergava ou não queria enxergar –
hipótese até que acredito mais, devido sua imensa
inteligência – que são nestas circunstâncias de festas
públicas que o rei ora se regozija e ri irmanado com os seus
súditos, a quem ele faz a propaganda de si próprio.
Charcot destrinchava a história por conhecê-la
bem:
– D. João VI passou, no casamento dos pais de
Pedro, nos desfiles alegóricos no Campo de Santana, na
aclamação em 1818 e em todos os restos da liturgia
absolutista, a ideia de que o rei e o seu reino eram um só.
Ele se colocava como um ponto de encontro da estrutura
do governo e, assim, perpetuava o seu poder pessoal.
Tudo isso fundado em uma política de fazer amizades e em
uma troca de favores, de dar, receber e restituir atos de
gratidão e serviços, as pilastras da Monarquia Portuguesa.
D. João VI soube, como poucos, quanto precisava se cercar
dos aparatos reais, dos desfiles, carruagens, teatros,
igrejas, enterros. Isso era crucial em um mundo em que as
pessoas viviam juntas em estreitas redes de relações
pessoais e sociais guiadas pelo claro e único mapa do
costume. Daí não ter tido diplomata ou servidor público
que conviveu com ele que não tenha feito elogios ou que
tenha lhe faltado o respeito. Sempre se dizia, para
espantos de muitos que nada havia de burlesco neste
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 215

personagem. E é daí também que se tem a longa lista de


críticas bastante positivas, como: afável, bondoso,
atencioso, sensível, a ponto de chorar com frequência em
público, como fez na morte da mãe, na partida das filhas
para a Espanha, ou sagaz, por saber se cercar de gente
muito competente. D. João percebia o que estava por trás
de contos como “O rei estar nu”, de Andersen, ou mesmo
em peças, como “Ricardo III”, de Shakespeare. Ele sabia
que essas histórias retratam a decadência de um monarca
por meio da humanização dos reis. Pedro, no começo, até
soube cultivar um pouco a etiqueta, manipular os seus
patrícios, mas, ao final da vida, acredito, realmente –
repetia Charcot –, cansou-se disso.
O médico encadeava seus comentários:
– Pedro humanizou-se totalmente e passou a
rejeitar, até com veemência, as pompas, embora soubesse,
repito mais uma vez, inteligente como é, que, na esfera
social, as aparências são o barômetro de quase todos os
nossos julgamentos: um escorregão em falso, uma
estranha e repentina mudança no visual, pode se mostrar
desastroso. Pedro acreditava que a sua reputação
responderia por si, protegendo-o do olhar inquisidor dos
outros. Ele, de fato, era dotado de ilibada reputação; o
erro é que ele permitiu uma liberdade de imprensa sem
limites e isso inibiu o poder da mística que criou sobre si,
fazendo com que os críticos o definissem. Isso culminou na
216 | Felipe Negreiros

proclamação da República. A meu ver, Pedro, até sem


perceber, ao matar o “glamour” da sua corte matou a
própria Monarquia e, assim, corroeu as pilastras da
tradição, do comedimento e do exemplo, deixando o
espaço livre, para que uma parcela marcante da
população, formada por tolos inconsequentes, fanáticos e
ignorantes, passasse a ser manipulada através de
oportunistas que acabaram por tomar o poder no Brasil,
destruindo o patriotismo da sua gente, por meio de uma
ideologia perversa que contaminou o imaginário popular e
a fez acreditar fazer parte de um contexto fadado ao
fracasso, sem virtudes. Pedro pode até não enxergar, mas,
ao menos por omissão ou mesmo por cansaço, causou
danos incalculáveis nas parcelas mais jovens do Brasil.
Tenho convicção que ele, ao fugir das aparências, não
agradou justamente esse tipo de arrivista e cortesão que,
ao final, é aquele que detém mais poder que o próprio
soberano.
Como se sabe – continuava Charcot –, esses são
justamente aqueles que possuem a arte de dominar as
pessoas, sabem fazer um rei se sentir mais rei e todos os
outros temerem o seu poder; são os mágicos da aparência,
aqueles que Pedro mais abominou ao final, embora tenha,
ao sair como saiu, desistido de seu país justamente para
essas pessoas. Pedro, antes mesmo da proclamação da
República já tinha perdido o poder sobre aqueles que, de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 217

fato, têm o poder. Como se sabe, infelizmente, esses


aventureiros são polidos e a sua agressividade é sempre
velada, indireta. Donos do mundo nunca dizem mais que o
necessário, levando sempre a melhor em um elogio ou
mesmo em um insulto. Pedro se distanciou dessas pessoas,
que, ao final, por mais triste que isso signifique, são imãs
de prazer. O homem médio adora estar ao lado delas,
porque elas sabem agradar, adulam sem se humilhar e
sabem gozar os benefícios dessa posição; são verdadeiros
magos da acumulação da influência. As pessoas não
mudam quanto a isso, assim como o Sol e o tempo, daí não
haver mais um rei Sol, mas não se deixou de ter pessoas
que imaginam que o Sol gira em torno delas.
Charcot entristecia-se e continuava:
– O consolo, penso eu, é que se ele não desejou se
reinventar, forjando um tipo de identidade que fizesse
acordar a sua plateia, foi, ao menos, o ator central do seu
auge e do seu ocaso. Soube-se até que, agora no exílio,
doou ao governo brasileiro 20 mil fotos, retratos, óleos,
xilografias. Chamou o que tinha de coleção Teresa Cristina;
uma maneira até muito distinta e bem própria de sua
elegância de cultivar a memória de sua esposa, mas o fato
é que ele deveria ter sido mais cuidadoso – Charcot se
lamentava e registrava ainda mais –; veja que, no começo
do seu reinado, mesmo o seu limitado amor pela etiqueta
impactou muito no embelezamento e na modernização do
218 | Felipe Negreiros

Rio de Janeiro, que, apesar dos avanços e do


desenvolvimento espantoso, alcançado com a vinda do seu
avô, ainda carecia de atrativo, na primeira metade do
século XIX. Esses benefícios, ele deveria ter avaliado, antes
de abandonar por completo os rituais exigidos a uma
Monarquia. Pelo que se comenta, o Rio de Janeiro, em
1830, era uma cidade contida entre a praia do Caju, ao
norte, e a do Botafogo, ao sul: um recanto, cuja mágica
envolvia quem quer que lhe visitasse, logo na entrada, com
a sua baía e uma mata que beijava o mar, com soberbas
montanhas e rochedos de colunas superpostas. Os ricos
moravam em chácaras entre uma e outra, já os ingleses
moravam no Flamengo, e os franceses, na Tijuca. Eram
grupos que viviam isolados e de um modo bem próprio. Os
ingleses, só para tomar como exemplo o grupo dominante,
desde a abertura dos portos, conseguiram foro
privilegiado. Eram julgados por cortes inglesas instaladas
no Brasil; liam um jornal inglês, o “Rio Herald”; tinham
hospitais próprios, escolas próprias e até, pasme,
cemitérios próprios. Foi uma comunidade que transformou
o Rio em uma pequena Bretanha. Pela manhã, praticavam
equitação, com toda a leva de acessórios que trouxeram:
selas, botas, casacas e cartolas. Ao voltar para casa, almo-
çavam, chegando a introduzir o rosbife na culinária
brasileira. À tarde, saiam, em suas carruagens, para
conferir os negócios. À noite, davam jantares e bailes em
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 219

casa. Nos fins de semana, iam às chácaras dos amigos, se


possível, bem longe da cidade. Lá, praticavam todo o tipo
de jogos e passeavam a cavalo, fartavam-se com generosas
doses de cervejas inglesas, jantando só quando o Sol
estava por cair.
Segundo ainda relatava Charcot, tudo estava bem
diferente em 1850.
– No começo, as duas ruas principais da cidade
eram a Rua Direita e a Rua do Ouvidor. O jardim era o
Passeio Público e o Campo de Santana, tomado por
cavalos, carroças, animais e lavadeiras. Viu-se mais
organização nas ruas e um centro maior, depois dos 10
primeiros anos do seu longo reinado. No início, o teatro
era só o São Pedro, no chamado Largo do Rossio. A
iluminação era a gás, e o primeiro bonde apareceu em
1833. Os salões de recepções estavam apenas nas casas
dos membros da elite, e não havia clubes formados. O
salão do regente Araújo Lima, pelo que Pedro já me
contou, foi o mais disputado. Embora, como disse, uma
simplicidade republicana comandasse, desde esse tempo,
os espíritos dos brasileiros de então. Pedro II, na verdade,
nunca escondeu que era um democrata e um humanista.
Tanto assim que, mesmo no início e até o fim de seu
reinado, infelizmente, as festas só ocorriam, quando
chegavam príncipes europeus, em missões oficiais. Não
havia um calendário de festas, como há na Inglaterra, em
220 | Felipe Negreiros

torno e em função da nobreza local. Passava-se a ideia de


que verdadeiros príncipes eram só os de fora. É de se
recordar a apoteose que foi a vinda do jovem e belo
terceiro filho de Luís Filipe, à época rei da França.
– Tenho para mim, professor, esse rei burguês,
liberal e constitucionalista como um exemplo de estadista
– o aluno o interrompeu.
– Sim! Assumiu o poder destronando Carlos X,
terminando aí a dinastia dos Bourbons e começando a dos
Orléans – continuava Charcot – Esse seu terceiro filho, de
nome Francisco, não tinha o título de duque ou conde,
como na Inglaterra, como já disse, mas de príncipe de
Joinville. Ao ir ao Brasil, esse príncipe se encantou com as
suas riquezas, acreditou que ali se encontrava o futuro.
Não por menos, casou anos depois com uma das irmãs de
Pedro II, a princesa Francisca, a mais bela dos Bragança.
– Interessante! Francisco anos depois costumava
brincar com a altura do cunhado, lembrando-lhe que
quando o conheceu, ele era uma figura miúda,
compenetrada. Francisco repetia sempre, recordo-me:

“Fiz-lhe uma profunda reverência à qual


ele respondeu e dei-lhe meus
cumprimentos de chegada; ele não me
respondeu nada. Eu tinha preparado
minha mão caso houvesse um aperto de
mão, o que na verdade aconteceu (...) ele
segurou a minha mão e entramos de mãos
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 221

dadas. Nós nos sentamos, e ele, sempre


sem dizer nada, começou a contemplar-
me”.

Esse é o exemplo que se tem – registrava Charcot –


Afora esses raríssimos eventos festivos, quem circulava
entre a cidade e o palácio eram os professores e os demais
funcionários. Pedro faria o mais radical dos republicanos se
sentir uma pessoa cheia de excessos perante a sua
humildade, mas, graças ao bom Deus! Até que enfim
chegamos ao hotel! Não percamos tempo, desçamos logo
deste carro, quero ver como está o nosso Pedro II hoje –
ordenava Charcot ao aluno. Então, atravessando a
recepção, depararam-se com o velho Imperador que os
recebia de braços abertos e com um sorriso largo.
– Ao menos chegaram a tempo para um chá! Dizia-
lhes Pedro.
– Aceito, amigo, mas quero lhe confessar que, no
caminho, expus ao meu jovem aluno sobre as
prerrogativas de uma corte. Gostaria de ouvi-lo também,
enquanto nos deliciamos com o seu chá; ninguém melhor
para nos comentar a respeito.
– Com o maior prazer, meu caro Charcot –
dispunha-se Pedro, de imediato – Falarei de como foi a
minha chegada ao trono e também sobre os meus
primeiros anos à frente do governo. Tenho boas lem-
branças. Embora deva alertá-los: defendia-se, mundo
222 | Felipe Negreiros

afora, a ideia de que a corte do Brasil era a mais triste e


enfadonha do Universo.
Ria-se, completando:
– E que, quando menino, eu era só uma sombra
oculta, visto, se muito, em cerimônias oficiais.
Olhando-os profundamente e se sentando na larga
sala de leitura do hotel, Pedro passou a detalhar que isso
só muda em 1838, quando Araújo Lima, o marquês de
Olinda e o último regente, retoma uma cerimônia trazida
de Portugal por seu avô: o beija-mão.
– Criticado por todos os lados, viu o regente que
era a hora de colocar o futuro imperador no centro do
palco. Era premente apaziguar o Brasil, tão instável e cheio
de rebeliões provinciais, no tempo da infância do monarca.
E esse foi um trabalho que marcou o início dos anos 40 do
século XIX.
– A elite monárquica brasileira tinha consciência de
que, sem instituições sólidas, não seria possível construir
uma Nação, ou seja, sabia que não bastava convencer os
oligarcas regionais de que eles eram brasileiros, mas era
também necessário acenar com vantagens, por exemplo,
mostrar que a monarquia era um antídoto contra a guerra
civil que os brasileiros estavam vivendo. Só ela, dizia, seria
capaz de tratar da questão escravista, garantindo uma
transição lenta, proporcionando formas de trabalho
alternativas aos fazendeiros, como a imigração de mão de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 223

obra europeia. Araújo Lima, na defesa de suas ideias,


chegou a falar algo que soou até original na época, e, hoje,
é tantas vezes repetido: “O Brasil se encontra à borda do
abismo”.
Continuava Pedro a falar:
– Foram os anos em que realmente as questões de
ordem viraram uma obsessão, e o fato é que era
necessário mudar os rumos tomados em 1834, quando se
fez um Ato Adicional que reformou a Constituição
descentralizando o poder e pondo fim ao Conselho de
Estado. Daí, justamente em 1840, discutiu-se no
parlamento a recriação desse Conselho de Estado e uma
maior centralização do poder a partir do Rio de Janeiro.
Todos viam que a experiência da Regência nas mãos
exclusivas do parlamento não dera os frutos desejados. A
Regência Trina provisória, por exemplo, encabeçada pelo
marquês de Caravelas, pelo senador Nicolau de Campos
Vergueiro e pelo general Francisco de Lima e Silva só
durara dois meses. As demais só se mantiveram no poder
devido a ousadia e a capacidade de Feijó, um padre, filho
de padre, com mulher e filhos, e do filho do general
regente das duas Regências Trinas, Luiz Alves de Lima e
Silva, o duque de Caxias.
As reflexões de Pedro pareciam não ter fim:
– De fato, em que pese as reformas econômicas
implantadas, pois, pela primeira vez se fez um orçamento
224 | Felipe Negreiros

detalhado das despesas do Governo e se reduziu o défici, a


situação política não se resolvia. Some-se a isso terem sido
descobertos, em 1835, os mencionados planos de um
levante de escravos mulçumanos, vindos de um carrega-
mento fortuito, cuja origem foi uma região da África em
que não se recolhiam escravos, já que se sabia serem
extremamente perigosos. Descobriu-se a tempo que eles
se comunicavam por meio de cânticos e que a ideia era
matar todos os brancos e criar na Bahia uma Monarquia
islâmica. Quanto a essa história, apesar de ter-se evitado o
pior, não se evitou o pânico. Tudo que se temia no Brasil é
que ocorresse aqui a mesma revolta que ocorreu no Haiti e
dizimou a população branca daquele país. Esse tipo de
terror se incrementou, quando irrompeu uma revolta de
caráter popular no Maranhão que escapou totalmente do
controle das elites, passando a ser liderada por um escravo
fugido e um fazedor de balaios que reuniu um exército de
onze mil revoltosos. Foi daí que os liberais, vendo a
corrente dos ventos, agiram e criaram um clube intitulado
Clube da Maioridade, que visava, ao me colocar no trono
antes que eu completasse 18 anos, a centralizar o poder e
manter intacto o território do Brasil. Inicialmente, pensou-
se em nomear como regente, de imediato, a minha irmã, a
princesa Januária, que era três anos mais velha do que eu,
mas essa tese não vingou, pois era voz uníssona, declarar-
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 225

se a maioridade do varão, muito embora eu me


encontrasse na casa dos 14 anos.
Pedro dava ainda mais detalhes da história:
– E os liberais fizeram crescer essa hipótese com
medo dos conservadores se perpetuarem no poder. Daí
advogarem essa ideia, que o fato de o imperador ser ainda
um menino era uma vantagem. Certamente, imaginavam,
seria fácil me manipular. Assim, não perderam tempo. A
primeira reunião do dito Clube da Maioridade foi con-
duzida na casa do pai do poeta José de Alencar, que tinha
o mesmo nome do filho famoso e era, então, um influente
senador do império. Teófilo Otoni, em Minas, aderiu, assim
como os irmãos de José Bonifácio, representando São
Paulo. Todos eles usaram o mordomo do Paço e o tutor
Itanhaém como cúmplices, a fim de convencer o “ra-
pazinho”, como os parlamentares me chamavam, a
assumir a coroa.
Inicialmente, o projeto de lei que tinha por fim
declarar o imperador apto foi derrotado no Senado, 18
votos a 16 votos contra a maioridade, no entanto, o
referido Clube não se deu por vencido, levou o fato às ruas
e estas pressionaram o Parlamento. No dia 20 de julho de
1840, mais de 3.000 pessoas acompanharam os deputados
favoráveis ao Senado, e este achou por bem fazer uma
Comissão e relatar o problema ao príncipe, em São
Cristóvão. Para lá também se dirigiu o regente e o que se
226 | Felipe Negreiros

passou é uma controvérsia, até hoje mal resolvida –


relatava Pedro a Charcot e ao seu acompanhante – Para
muitos, o imperador, apesar de um menino, era
inteligentíssimo, estava a par do que se passava e como
que fez uso dos parlamentares que queriam usá-lo, tendo
na ocasião, quando indagado se queria assumir o trono,
dito a frase: “Quero já”.
– E isso foi o que realmente ocorreu, Majestade? –
indagou a Pedro, o jovem estudante de Medicina que
sentava à sua frente.
Pedro, sem perda de tempo, respondeu-lhe que,
quando velho, em seu diário, negou ter dito isso, relatando
que, na realidade, foi um sacrifício enorme ter assumido o
trono. Segundo ele próprio testemunhou, embora
consciente da falta de experiência e sabedoria de uma
pessoa com pouco mais de 14 anos, quando indagado se
queria assumir o trono para enfrentar os problemas pelos
quais o país passava, disse “sim” e, depois, sabendo que a
sua investidura traria a paz para o Brasil, quando indagado
para quando, ele teria dito “já”.
– Foi perante essa resposta, meus caros, que, ainda
neste dia 20 de julho, o exército se manifestou pela
maioridade e, três dias depois, a mesma foi declarada pelo
Parlamento, que me convocou a ir ao Paço e, lá, jurar a
Constituição. Então, o que se passou é que, neste dia 23 de
julho de 1840, o povo não viu mais uma criança chorando;
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 227

viram um jovem de fortes feições de ascendência


austríaca, tímido, com um sentimento dúbio de fascínio e
insegurança pelo que o aguardava. Era o retorno de um
membro da Casa de Bragança ao trono e isto foi
acompanhado por uma série de medidas legais que
combatiam os chefes caudilhos locais, revigorando ainda
mais os dispositivos da Constituição de 1824 que tratavam
do Poder Moderador.
Pedro mantinha a narrativa recheada de detalhes:
– Aboliram-se todas as inovações regenciais, tais
como as eleições para presidente das províncias que
passariam a ser indicados pelo monarca; subordinavam-se
as autoridades policiais de todo o Brasil ao Ministério da
Justiça, todavia, apesar de todo este centralismo e da
tomada de tantas medidas, foi um semestre de
aprendizado. Assumi um papel de quem reinava,
governava e administrava. Para tanto, a fim de conseguir
simpatizantes, elevei consideravelmente a concessão de
títulos de nobreza. Enquanto o meu pai dera no máximo 5
títulos de barão por ano, aumentei para 18 o número de
agraciados nessa fase do império. O governo se aproximou
do Senado, e esse último se encarregou de colocar o
soberano a par do que se passava no Brasil extremo.
Passaram-me toda uma compreensão dos negócios do
Estado, o que se estendeu até o dia 2 de dezembro de
1840, dia do meu aniversário.
228 | Felipe Negreiros

Rindo ao chegar a este ponto da conversa, Pedro


afirmava aos seus dois companheiros:
– O 15º da minha vida e o meu primeiro como
imperador. Escrevi o que se passou nessa data em meu
diário: disse ter acordado e me alimentado de ovos e café
com leite às 7h da manhã, após assistir uma missa trajando
um uniforme que pesava quase 4 quilos, afora as ordens e
a espada. Depois, vieram o beija-mão e o teatro, às 7h15
da noite. Por fim, anotei: “Agora façam-me o favor de me
deixar dormir”.
Pedro dizia, descontraído, que essa foi a ocasião em
que começou a separar os momentos do Estado dos
momentos que teria, necessariamente, para ele mesmo.
E continuava:
– A minha sagração como imperador foi em 18 de
julho de 1841. Foi o pintor Manuel Araújo Porto Alegre,
discípulo de Debret, quem desenhou as minhas roupas e
construiu uma varanda no Paço, esboçando um quadro da
cerimônia. Olhe-se que o representante da Áustria se
espantou com o luxo exibido – Pedro falava, exaltado –
Foram 9 dias de celebração que terminou com um baile
para 1.200 pessoas. E o que posso lhes contar mais? –
refletia Pedro – Apesar de adorar dançar, nesse dia não
dancei.
E assim, Pedro reconhecia que essa timidez foi
realmente a marca do início do Segundo Reinado. Tanto
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 229

que o mencionado representante austríaco relatou que o


menino, diante de políticos calejados, a fim de esconder a
insegurança, mostrava-se lacônico, calado, encarando a
todos com um olhar fixo e sem expressão,
cumprimentando apenas com um meneio de cabeça ou
um movimento de mão.
Para o diplomata nada do que se fazia de
importante podia ser atribuído de fato ao imperador.
Para o dito embaixador era como se Pedro tivesse
saído de uma tutoria para cair em outra, pois só se
escorava em quem lhe era próximo nesses primeiros anos,
como os seus serviçais no palácio.
Dentre eles, Aureliano Coutinho. O astuto
mordomo do paço, que, equilibrando-se entre os
Gabinetes Conservadores e Liberais, chefiou a chamada
“facção áulica”.
Um grupo que cercava o imperador e praticamente
inventara os dois primeiros ministérios de se reinado.
Algo tão explícito, que fez com que o embaixador
agisse não apenas como um representante de uma das
principais potências europeias, mas como um interlocutor
entre a família Habsburgo, em Viena, e os seus parentes no
Brasil, deixando claro que o assustava a falta de
experiência política do monarca e que deveria o Senado
cuidar de um aprendizado prático político melhor e
urgente para o imperador.
230 | Felipe Negreiros

– Dizem, até com muito de verdade, que partiu dos


caprichos desses serviçais o meu primeiro conflito político,
aos 18 anos.
– E como foi isso? – questionou-lhe agora Charcot.
Pedro, sem perda de tempo, respondeu-lhe que, à
época, o ministro da justiça era Honório Hermeto Carneiro
Leão, futuro marquês de Paraná.
– Sabem, meus amigos, ele era o político mais
poderoso de então, conhecido por seus modos bruscos.
Certa feita, ele quis a demissão de um irmão de Aureliano,
este mesmo que era um dos meus serviçais mais íntimos.
Sem demora, Pedro contou aos seus dois ouvintes
ter negado o pedido do senador e forçou-o, assim, a
renunciar ao seu assento no Conselho de Ministros.
– O que se passou é que tinha, na ocasião, apenas
18 anos e lidava com um homem inteligentíssimo, senador
do império, na casa dos 50. Vejam, meus caros, O senador
Hermeto Carneiro Leão, ao renunciar, jogou a carta de
exoneração praticamente em meu rosto e fez isso até
porque não se demitiam as pessoas escolhidas para tanto.
– E o que o Senhor fez, perante tal falta de
compostura? – perguntava-lhe o aluno de Charcot.
Pedro ria ainda mais.
– O senador ouviu, apenas, que eu iria refletir sobre
a sua exoneração. Dias depois, encontrei-me novamente
com ele, que, com raiva, exigia que o liberasse das
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 231

funções. Então, voltei a dizer que estava refletindo e ouvi


do senador, que cerrava os dentes com ódio: “Ainda que
imperador, um menino não pode zombar de um homem
que envelheceu a serviço da Pátria”.
– Pedro contou aos seus dois ouvintes, colocando a
xícara de chá sobre a mesa, que, ao ouvir isso, ficou pálido.
– Era realmente uma descompostura. Reuni
coragem e maturidade suficiente, para dizer a esse homem
mais velho, sábio e maduro: o imperador meditará sobre a
questão, que há de ser resolvida em tempo útil.
– Olha aí como os seus estudos, assim como o seu
mutismo, surtiram efeitos – dizia-lhe Charcot, também
colocando a sua xícara sobre a mesa.
– Verdade! – respondeu-lhe Pedro – E o fato é que
a demissão se deu dias depois, sem maiores
consequências. E o mais importante: a solução ocorrera de
um modo muito diferente de como se tratava assuntos de
Estado como esse no primeiro reinado.
Por fim, Pedro II contou, animado, a Charcot e ao
aluno deste, que um outro fato do início de sua história
como imperador do Brasil também merecia ser lembrado,
fato esse ocorrido um ano depois da demissão do ministro
da justiça, em 1844. Àquela altura, Pedro já exercia com
plenitude o poder moderador. Esse quarto poder fora uma
inovação da Constituição brasileira, que misturava partes
de absolutismo com liberalismo, pois o rei, no Brasil,
232 | Felipe Negreiros

demitia e nomeava os ministros. Esse artifício, por


exemplo, não existia na Inglaterra, onde o rei apenas
chancelava o partido mais votado em uma eleição geral, e
este trazia consigo os seus ministros.
Pedro, curvando-se, informou aos seus dois
ouvintes que, usando esse poder, fez um pacto com as
elites: aprovaria um Governo posto pela maioria, escolhida
pela oligarquia de todo o país, enquanto reinasse a paz.
Assim, terminou a Revolução Farroupilha, que se arrastava
no Rio Grande do Sul, sem solução, e foram revistas as ta-
rifas privilegiadas dos britânicos. Estes, como represália,
aprovaram a “Bill Aberdeen”, a norma que permitia,
mesmo em águas brasileiras, a apreensão de navios
negreiros.
Três anos depois, em 1847, fez-se outra importante
inovação: criou-se a presidência do Conselho de Ministros
ou o cargo de primeiro ministro. A partir deste ano, era só
com ele que o imperador discutia. A primeira pessoa a
ocupar esse cargo foi Francisco de Paula Souza e Melo. Em
1848, com a sua demissão, foram chamados os
conservadores e deu-se o poder ao último regente de
antes que fosse declarada a maioridade: Araújo Lima.
Pedro comentou que, ao meio do mandato de
Araújo Lima, já ia com 23 anos, mostrava-se mais
desenvolto e quis muito instituir, no Brasil um
parlamentarismo à inglesa. De acordo com Pedro, foi jus-
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 233

tamente nesta época que foram encerrados os serviços


dos chamados áulicos, como o do seu mordomo-mor.
Dizia Pedro:
– De fato, este foi o Gabinete mais operoso do
império. Mostrou-se, mais uma vez, a competência de
Araújo Lima, o marquês de Olinda. Neste momento,
promulgou-se o Código Comercial e a Lei Eusébio de
Queiroz que pôs fim ao tráfico de escravos. E para lá do
poder moderador, passei a ver ainda com mais satisfação o
poder que emanava dessa exagerada concessão de títulos,
mexendo com a vaidade das pessoas. Foi assim que fiz
marqueses, barões, condes e um duque.
Neste momento, levantando, o aluno de Charcot, já
bem entretido na conversa e sentindo-se orgulhoso de
dialogar com duas figuras tão importantes, perguntou a
Pedro como era a sua vida pessoal nesse tempo.
– Nem tudo foi um mar de rosas neste período –
disse-lhe Pedro – Eu tinha mais de 18 anos, via-se que era
a hora de me casar, garantindo assim a continuidade de
minha dinastia. Surgiam, com isso, os problemas, digamos,
naturais, em termos de casamentos dinásticos; os
problemas de sempre. A família imperial brasileira não
possuía bens privados, era pobre. Da mesma maneira, o
Brasil, um império tropical, era considerado pela civilizada
Europa como algo para lá de exótico, muito distante.
Some-se a isso, o mal precedente de meu pai, Pedro I.
234 | Felipe Negreiros

– Ao fim, cinco nações lançaram os olhos não só


para mim, mas também para as minhas irmãs entre os
anos de 1835 e 1841: Portugal, França, Rússia, Espanha e
Áustria.
– Todavia, eu fui firme: seria a Áustria quem
deveria guiar nossos casamentos. Assim, aproveitando
uma carta que escrevi ao meu tio, o imperador Ferdinando
I, agradecendo ter recebido a Ordem da Cruz Estrelada,
afirmei que desejava discutir o nosso matrimônio com a
augusta casa de Habsburgo.
– Infelizmente, recordo-me que a estada do corpo
diplomático lá foi um fracasso, no entanto não foi
retumbante, pois se contatou o rei das Duas Sicílias e de
Nápoles e acabou-se por arranjar o meu casamento com a
irmã mais nova deste: Teresa Cristina. O meu casamento
ocorreu por procuração, em 30 de maio de 1843, tendo
sido obtida uma licença de Roma, pois eu era primo de
Teresa. Ela chegou ao Brasil em setembro, na Fragata
Constituição e, então, houve um grande desapontamento.
Pedro, nesta hora, confessou que se sentiu até
enganado pelos seus serviçais mais próximos, ressalvando
o quanto reconhecia ter sido bom o seu casamento e o
quanto Teresa foi extraordinária, como mãe, esposa e
imperatriz do Brasil, no entanto, nem isso lhe permitia
esconder que, quando do envio do retrato da noiva, viu a
imagem de uma mulher totalmente diferente daquela com
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 235

quem realmente acabou por contrair núpcias. Pedro


recordava que o dito retrato tivera sido mostrado de logo
ao Conselho de Ministros, e os membros deste fizeram as
melhores referências a respeito, comentando, até mesmo,
sobre o quão próximo da realidade era o retrato que
estava sendo apresentado ao imperador.
– Sei que, na ocasião, suspirei de alívio – Pedro
salientou, ajudando Charcot a levantar – No retrato, que
tinha como pano de fundo o Monte Vesúvio, contemplava-
se o rosto de uma bela jovem trajando uma roupa de gala
e um diadema de rubis. Gostei tanto que, empolgado,
assim que saí do Conselho, mostrei o retrato às minhas
irmãs. Daí foram 10 meses de espera, para se armar a dita
fragata e prepará-la com ouro e prata; em nada se
economizava. Fiquei muito impaciente. Foi instalado nela
um salão para 24 pessoas, um quarto dominado, ao
centro, por um leito de mogno e um baldaquino de cetim
branco. Quando a dita embarcação chegou, veio
acompanhada de duas corvetas. A solenidade de
apresentação era para o dia seguinte à chegada, que
aconteceu no dia 3 de setembro de 1843. Na ocasião,
impacientava-me a cada instante. A expectativa era tão
grande, que, surpreendendo a todos, um dia antes, mandei
um marinheiro preparar um pequeno bote e rumei para a
fragata, a fim de ver a imperatriz.
Seguiu-se uma confissão de Pedro:
236 | Felipe Negreiros

– Sabe, amigo, digo sem reservas, quando a vi, tive


uma decepção enorme. Ainda tentei esconder o desânimo,
embora não tenha conseguido. Lembro-me que cheguei a
murmurar palavras de boas-vindas e informar a Teresa
que, no dia seguinte, estaria presente à solenidade, para
juntos, rumarmos para o Palácio de São Cristóvão. Soube
depois que Teresa chorou, assim que saí de sua vista. Já
quanto a mim, cheguei aos prantos ao palácio; falei em
demitir os ministros e em mandar a noiva de volta. Quem
acorreu foi Dadama, que me explicou, com a maior das
paciências, sobre a onipotência do tempo e dos custos
disso à dinastia dos Bragança.
– Bem, sei que no dia seguinte o protocolo foi
seguido à risca. O casamento, afinal, diga-se mais uma vez,
não foi assim tão mal. E não por quem Teresa era, uma
mulher em tudo extraordinária, como disse. Ela foi até
mais do que isso; apesar de não ser bela como a minha
madrasta, por exemplo, era atenciosa, deu-me segurança.
Se, outrora, mostrava-me tímido, a partir daí, tornei-me
mais desenvolto, falante e à frente das funções sociais.
– E como foi a festa do casamento? – perguntou o
aluno de Charcot, extasiado e interrompendo Pedro.
– Foi um acontecimento! Neste dia, trajava o meu
uniforme de almirante da Esquadra Brasileira. Alcancei a
embarcação de Teresa Cristina a bordo da lancha imperial,
enfeitada na proa com o dragão dos Bragança. Nela, 24
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 237

remadores portavam uma fita branca em seus chapéus,


com as cores do Reino das Duas Sicílias. Além dessa, outras
embarcações levaram os parlamentares, os fidalgos e os
demais convidados. Assim que cheguei ao deque, fiz um
discurso em homenagem à imperatriz e ao seu irmão, o
conde d’Aquila. Depois, como tinha prometido a Teresa,
rumamos em 15 coches, a São Cristóvão, onde houve um
jantar de gala.
O tom da fala voltou a ficar mais tranquilo:
– Bem! O fato, repito mais uma vez, é que, com os
anos, reconheci os muitos valores de Teresa. Embora –
disse Pedro rindo – tenha vindo com ela também um
problema enorme.
– Qual?, indagou-o, de pronto, Charcot.
– Esse seu irmão que acabei de citar. Um típico
napolitano, que, diverso da irmã, era bonito. Vendo as
riquezas e as oportunidades do Brasil, tão distintas das de
Nápoles, acabou por deixar apaixonada a minha irmã e,
por consequência, minha herdeira direta, a princesa
Januária. Sem conseguir evitar, ou mesmo proibir o
relacionamento, findaram por casar. Então, aí, surgiu em
mim um temor sem igual. Na realidade, cheguei ao pânico.
Pedro, neste momento da conversa, relatou que
começou a ver o cunhado conspirando, pois, em sua casa,
um palacete em Botafogo, recepcionava-se a alta
238 | Felipe Negreiros

sociedade carioca. Foi lá, para o seu desespero, que se


chegou a planejar a sua sucessão.
Rindo, comentou:
– Não sei se foi exagero, mas o fato é que meu
cunhado era o meu oposto. Na época do casamento de
Januária, eu era muito jovem, tinha dezenove anos, e o
embaixador austríaco, continuamente e mais uma vez,
reportava-se a mim como uma pessoa não amável,
suspeitosa, sombria, reservada e de vida retraída. Sei que
tudo isso ainda é verdade; em nada, enganou-se o
embaixador a meu respeito. Já o meu cunhado levava a
vida da maneira mais alegre possível, sendo adorado por
todos aqueles de quem se aproximava, como é natural a
um príncipe educado em uma corte europeia. Logo, as
nossas maneiras se chocaram, e começou a correr, nas
ruas do Rio, que eu poderia ser destituído. Esses boatos
foram tão fortes, ao ponto do dito embaixador ter pedido
a Metternich, chanceler de meu avô, o imperador da
Áustria, instruções sobre o que se deveria fazer se isso
realmente ocorresse; se ele seguiria comigo para Viena,
onde eu iria viver, ou se ele ficaria no Brasil,
acompanhando minha irmã, a nova imperatriz. Recordo-
me que isto provocou um tal mal-estar que decidi por não
mais convidar minha irmã nem o seu esposo, para
comparecerem à festa do meu aniversário de casamento.
Claro que hoje parece-me que tudo não passou de um
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 239

exagero, plantado em minha cabeça pelos áulicos, por


exemplo, o mordomo do Paço, Paulo Barbosa, todavia,
pelo bem ou pelo mal, na ocasião, comecei a temer pela
minha vida, e outra não foi a solução, senão a de cortar
relações com o meu cunhado e revelar à corte que nem a
minha irmã nem o seu marido seriam boas influências.
Segundo Paulo Barbosa,
o que eu quis, já que o casamento ocorrera, é que
Januária fosse para Nápoles com o conde, contudo ela só
poderia ir, conforme rezava a Constituição, caso eu gerasse
um herdeiro, que foi o que fiz, em desespero, 10 meses
depois do meu casamento. Nasceu, daí, Afonso, que
morreu com pouco mais de 2 anos.
– Depois é que vieram Isabel, Leopoldina e, por fim,
Pedro, que também morreu, recém-nascido.
Pedro, ao médico e ao aluno deste, dizia que ainda
nessa altura casou a sua irmã mais nova, Francisca, com o
dito terceiro filho do último rei da França. Aqui, para o
mesmo Pedro, cabia fazer, por fim, um registro aos seus
dois atentos ouvintes franceses sobre quem foi essa sua
irmã e também esse rei da França que tanto admirava.
– Sabem, meus caros, diferentemente de Januária,
Francisca foi a minha irmã querida; ela foi a única com
quem me correspondi ao longo da minha vida e de cujo
casamento eu muito me orgulhei. Tanto ela como o seu
noivo eram belíssimos, morenos. Francisco, o seu esposo,
240 | Felipe Negreiros

era um homem ao mesmo tempo culto e viril; militar, fez


carreira brilhante na Marinha francesa, comandou a
fragata “Belle Poule”, que conduzira o corpo de Napoleão
de Santa Helena a Paris, chegando, ao final, a deputado,
quando o seu pai foi deposto do trono e implantada a
República. Sempre se comentava, na corte, a festa de seu
casamento, em 1º de maio de 1843, na Capela do Palácio
de São Cristóvão. Como presente de casamento, os noivos
receberam do rei da França um cofre de joias
confeccionado pela Real Manufatura de “Sèvres”, em
bronze, esmalte e placas de porcelana, retratando cenas
da vida e dos feitos de Francisco.
– Majestade! – interrompia-o o aluno de Charcot –
O Senhor disse, há pouco, ter boas lembranças de Luís
Felipe. Apesar de não ser monarquista, sempre tive
também excelentes referências dele.
– Já eu posso dizer que me considero um orleanista
até hoje – acrescentava Charcot.
– Ora, ora, meus amigos! – Pedro sorria, ao contar
que, quanto ao rei, Luís Filipe, sabe-se que foi casado com
Maria Amélia, uma mulher extraordinária, e ele, sim, foi
um destacado membro da família Orléans; um líder,
responsável pela queda do último rei Bourbon.
Vejam só! – dizia: –Tanto ele como o seu filho, o
príncipe de Joinville, tiveram muita importância para o
Segundo Império do Brasil. Primeiro, por ser Luís Filipe um
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 241

monarca constitucional, conhecido como um rei que


sacramentava os valores da burguesia, como a adequada
educação e um forte sentimento de piedade, valores que
eu compartilhei. Depois, por ter sido não só o sogro da
minha irmã querida, mas também o avô de meus dois
genros.
– Sim! – dizia Charcot, de ímpeto – Daquele que
casou com a sua filha Leopoldina como daquele que
desposou a sua outra filha, Isabel, a sua herdeira direta.
– Verdade – continuava Pedro – A sua queda foi
algo que mexeu profundamente com a minha cabeça. Seja
pelos reflexos econômicos e políticos que isso teve sobre o
Brasil, pois se, ainda hoje, o mundo é dominado
completamente pelas potências europeias, às quais, com
boa vontade, somam-se os Estados Unidos, imagine-se,
àquela época, quando a França, de longe, era o único país,
que, mesmo de uma maneira tímida, fazia frente à
poderosa Grã-Bretanha. A onda revolucionária que tomou
conta da França, em 1848, permitiu-me enxergar, pela
primeira vez, a dificuldade que tinha o povo de
compreender que certas prerrogativas do poder
majestático não era o que se devia levar em consideração.
E como se tudo isso não bastasse, eu precisava, na altura,
considerar que esse rei já tinha um forte laço de
parentesco com a minha família. Temia pela vida de minha
irmã, de meu cunhado e meus sobrinhos.
242 | Felipe Negreiros

Quando houve o golpe – Pedro salientou a Charcot


e ao seu aluno que se apressou, para ver a listagem dos
parentes que fugiram de Paris, conseguiu contatar, na
ocasião, uma fragata brasileira que estava sob o Canal da
Mancha, para proteger a família de sua irmã.
De fato, dizia:
– Não entendi como Luís Filipe, que chegou ao
poder com o apoio da alta burguesia, caíra; justamente
ele, que foi chamado para combater um rei como Carlos X,
não só irmão de um desastre como Luís XVI, mas alguém
que tinha um caráter absolutista, derrubado em uma
quartelada que durou três dias e expressou a citada mi-
gração do poder dos Bourbons para os Orléans,
encarnando, como nenhum outro momento da História, a
derrota de uma velha aristocracia pelo poder burguês dos
banqueiros, grandes industriais e, às vezes, altos
funcionários civis que sintetizavam uma sociedade de
carreiristas, e não de duques. Luís Filipe foi rei por 18 anos,
e o seu governo foi liberal e constitucionalista, embora
tenha preservado em parte essa sociedade aristocrática,
egressa do império de Napoleão, e favorecido financistas e
donos de minas de ferro e de carvão.
– Isso! – interrompia Charcot mais uma vez,
afirmando: – Foi a era do poder dos Perrier, Lafitte e
Rothschild.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 243

– Pois é! – retomava Pedro a palavra: – Mas, sem


dúvida, a ruptura deveu-se à crise econômica que varreu a
Europa na terceira década do século XIX. O modelo que o
segurava simplesmente se esgotou.
Pedro lamentava.
– Uma série de operários desempregados
anarquizou Paris, pós 22 de fevereiro de 1848. Na “Place
de la Concorde”, foram erguidas barricadas,
paralelepípedos foram arrancados na “Champs-Elysées” e
na “Rue de Rivoli”. O rei, impotente, nada fazia; seu irmão
chegou a defender a tese da renúncia, o último ato do
último rei da França, meus amigos: ele convocou a
imprensa e, cercado de jornalistas, assinou a sua renúncia
em favor de seu neto, o conde de Paris.
Mais detalhes se seguiam:
– Todavia, a essa altura, o “Jardin desTuileries” já
estava sendo invadido. Então, Luís Filipe trocou o uniforme
pela casaca, colocou um chapéu na cabeça, deu o braço à
sua rainha e atravessou o jardim. Mesmo cansado e
envelhecido, demonstrou uma coragem enorme por passar
pela multidão, em meio a gritos e zombarias. Sem coches,
a família que seguia o rei, irmãos, sobrinhos, teve de se
espremer em pequenos cabriolés. Foi terrível! Onde
cabiam três, iam cinco. “Saint Cloud”, “Dreux”, o percurso
foi longo e angustiante. Em um desses veículos ia o conde
D’Eu, o meu futuro genro, ainda uma pobre criança. Todos
244 | Felipe Negreiros

deveriam encontrar-se na Normandia, justamente no


castelo D’Eu. Ao chegar, escaparam, porque a minha
prima, a rainha Vitória, assim como o governo brasileiro,
mandou um vapor, o Express, ficar à disposição, para
resgatar a família real. Vitoria, amiga dos reis e sentida
com o ocorrido a um bom pai e a um exemplo de homem
público, alojou-os em uma mansão em “Claremont”, nos
arredores de Londres, de onde se tinha uma bela vista para
a Catedral de “Saint Paul”. Foi tudo muito triste!
Pedro precisou finalizar a conversa:
– Aproveito este momento, para me levantar e me
despedir tanto do meu querido médico como do seu
acompanhante. Como estão vendo, amanheci, graças a
Deus, bem-disposto, diferentemente de ontem, meu caro
Charcot; cheguei a dizer a meu camareiro que não
precisava incomodá-lo. Aproveitarei o resto do dia, para
continuar os meus estudos de hebraico.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 245

Parte 4
SALVE...
246 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 247

Capítulo 9
SEUS ANOS DOURADOS

Se a sexta havia sido um dia triste e chuvoso, o


sábado amanhecera radiante com aquela mistura de sol a
pino e um pouco de frio, o que torna a experiência de
caminhar pelas ruas de Paris algo singularmente agradável.
Pedro aproveitou e andou a pé por toda a manhã.
Depois do café, vestindo o seu jaquetão preto, saiu cedo
sem destino. No caminho, continuava as suas reflexões,
queria ter bem em mente o que escreveria, mais tarde, no
seu diário. Ao caminhar, viu o quanto amava a França,
tanto que quis fazer do Brasil um país de hábitos franceses,
embora dotado da eficiência e do contexto democrático da
Inglaterra. Para Pedro, isso seria possível em um ambiente
em que todos voltassem o interesse para o bem do país e,
somente depois, para o bem pessoal.
248 | Felipe Negreiros

As elites brasileiras não tinham muitas diferenças


de perfil, esquerda e direita, como na Europa. Era aí, pela
maneira de ser das nossas elites, que Pedro via uma
brecha, para fazer valer os estudos que empreendeu e o
poder que exercia. Era necessário fazer com que a elite
vislumbrasse um norte que tinha por maior mérito o de
servir e o de engrandecer a Pátria. Pensava em voz alta:
“Nos primeiros anos da década de 1850, no vigor
da minha juventude, fiz aquilo para o qual fui treinado,
inspirei-me e dei rumos ao Brasil. Pode-se dizer que,
àquela época, consolidou-se o que se planejou em 1822;
cessam-se os projetos de independência alternativa
liderados por alguns setores das elites provinciais. A
Monarquia firma-se como um sistema político que garante
a manutenção da unidade territorial. E uma nova etapa da
história brasileira vem à luz, pois dá-se uma conotação
mais ampla ao tipo de estabilidade que eu conferia ao país,
não exclusivamente repressiva, mas, ao contrário,
responsável por valorizar um verdadeiro projeto civilizador
para a sociedade, de um modo geral. De fato, cheguei a
produzir o tipo de governo de que o país necessitava”,
Pedro orgulhava-se.
Ao pensar sobre isso, deparou-se com Mota Maia.
– Ora, ora! Que coincidência!
Ele também tivera a mesma ideia de passar o dia
caminhando.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 249

– Olá, caro doutor! – disse-lhe Pedro.


Sorrindo, Mota Maia fez uma reverência e começou
a segui-lo.
Pedro falava-lhe que vinha pensando sobre os seus
melhores momentos à frente do governo do Brasil e os
contextualizava de uma maneira bem estranha, pois, para
ele, os pontos de interesse nacional são bem
contraditórios.
Mota Maia, atento, pediu que o imperador lhe
explicasse de um modo mais claro; queria entender e
puxar conversa.
Pedro, acelerando o passo, dizia-lhe:
– Ora, meu caro doutor, se quer ver os meus
melhores momentos à frente do governo brasileiro,
primeiro, veja o que fiz sob o aspecto político. Depois, olhe
também para os êxitos que conquistei em termos de
conflitos com os países vizinhos. Mantive, mesmo que à
infeliz custa de muitas vidas, a soberania do Brasil.
Mota Maia, ouvindo, perguntou-lhe:
– No aspecto político, Majestade, que se destaca?
Pedro lhe explicou que convidou o senador
Hermeto Carneiro Leão, o marquês de Paraná, aquele
mesmo frente ao qual tivera o seu primeiro teste de fogo,
ou a primeira crise política, a iniciar um novo governo,
chamado de conciliador.
250 | Felipe Negreiros

– Era uma reunião de opostos! – Pedro


confidenciava ao seu médico brasileiro – Todavia –
continuava –, para mim, foi com esse homem que, em
1853, teve início o Gabinete mais exitoso do Segundo
Império. Falo isso, porque Paraná valorizou os jovens,
como o barão do Rio Branco; tal fato foi muito importante,
importantíssimo! Permitiu-me começar a só trazer ideias
para os governos, não mais participar deles. Foi daí que me
concentrei na repressão ao tráfico; construção de estradas
de ferro e incremento da educação primária.
Segundo Pedro narrava a Mota Maia, instituiu-se,
naquela época, um verdadeiro governo parlamentar à
inglesa, que permitia que os conflitos fossem negociados e
resolvidos dentro das instituições, sem terror ou
confrontos armados.
Pedro comemorava:
– Fez-se isso sem que se alterasse a Constituição
que estranhamente dava ao monarca poderes iguais ao de
um presidente. Sem dúvida, Paraná me deu a
oportunidade de exercer um poder de mera supervisão –
dizia, satisfeito, lembrando ao seu acompanhante o
quanto era comum ver nas primeiras horas do dia a
carruagem imperial em hospitais, escolas, arsenais e
demais repartições públicas – Tudo, ao final, só se resumia
a avaliação de metas, vistas em reuniões ministeriais
realizadas periodicamente em São Cristóvão, em torno de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 251

uma grande mesa da sala dos despachos. De início, eram


sempre à noite, mas a pedido de Caxias, passaram para o
horário da manhã. Nem quando se saía para um veraneio,
deixava-se de se realizar esses ditos encontros. Tanto que
quando a minha família estava em Petrópolis, descia eu
uma vez por semana, ou os ministros subiam também uma
vez por semana, para me resumir sobre o que se passava
na administração do país. Iam todos os ministros, que
eram, no total de 07, contando o presidente do Gabinete.
Pedro disse, sorrindo, que os tratava igualmente,
mas que tinha por Paraná e Rio Branco a mais alta estima.
Considerava este o maior estadista do Segundo Império.
Tanto que em sua primeira viagem à Europa, embora
tenha entregue a Regência à sua filha Isabel, deu a ele a
condução do governo.
– Veja, meu caro doutor, chegamos a um café para
lá de pitoresco; vamos fazer uma breve parada e
continuamos a nossa conversa sentados e mais relaxados –
Pedro falou, dirigindo-se a uma mesinha próxima à
calçada.
Os dois sentaram e Mota Maia lhe perguntou:
– Majestade, diga-me, se Rio Branco era a
eminência parda, quem lhe era mais querido?
Pedro respondeu considerar de uma maneira
diferente, até mesmo como um pai, Caxias.
252 | Felipe Negreiros

– Foi a ele – de acordo com o que lembrou a Mota


Maia – que entreguei a condução do governo na minha
segunda viagem à Europa.
Pedro não escondia o amor que tinha ao duque,
tampouco a admiração que tinha a Osório e a Tamandaré.
– Todos os três foram muito importantes nos
conflitos que o nosso país precisou enfrentar, para se
afirmar em um continente que ele tinha a missão de
civilizar, trazer às luzes da Europa, meu caro doutor. A
primeira questão em que vi o Brasil precisar fazer uso da
força não foi bem uma guerra, foi, na verdade, um breve
conflito militar, mas que serviu para me mostrar que não
se aceita tudo a qualquer custo – continuou Pedro.
– Qual foi essa questão, Majestade?, perguntou de
imediato Mota Maia.
Pedro relatou que a mesma ocorrera entre os anos
de 1861 e 1863.Tinha, à época, 37 anos e já estava há vinte
no poder. Foi chamada de a “questão inglesa” ou de a
“questão Christie”.
– Lembro-me disto! – disse-lhe Mota Maia – Este
conflito de interesses que envolveu o Brasil e a Inglaterra
foi responsável por fazê-lo alcançar o ápice da sua
popularidade – afirmou o médico.
Pedro, embora surpreso com a memória de Mota
Maia, salientou mais alguns pontos, mas sabia o quão
ciente ele estava sobre o que se passou. Disse:
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 253

– Veja bem, meu caro, a Inglaterra, na época, até


pela natural arrogância do inglês, era tão odiada pelos
brasileiros quanto os alemães, depois da queda de
Napoleão III e de Sedã, são odiados pelos franceses. Você
se recorda? Os ingleses tinham um fórum próprio; faziam o
que queriam, privilegiados no comércio e no controle do
câmbio, acobertados por um embaixador sem tato algum,
Douglas Christie. Ele, volta e meia importunava a mim e ao
governo com exigências absurdas, como a de pedir uma
indenização por uma fragata que naufragou e, ao
naufragar, foi saqueada – contava-lhe Pedro –, ou por
marinheiros bêbados ingleses terem sido presos – continu-
ava – Bem! O fato – dizia Pedro – é que, com os pedidos
negados, o embaixador fez uso do que lhe colocava a
Inglaterra à disposição. Lembra? Não havia país que,
dentro da rota do comércio inglês, não contasse com
navios de guerra britânicos próximos de seus litorais; e os
que se encontravam ancorados no porto do Rio de Janeiro
superavam o poder de fogo de nossa marinha. Recorde-se
que, à essa época, um quarto da superfície do globo era
controlada pela Monarquia britânica. Éramos vistos como
o terço restante e, por isso mesmo, como mais um
integrante do seu império informal. Ora, por mais loucura
que pareça, para os britânicos, éramos mais um satélite
atrelado ao seu círculo econômico e cultural. E aquele
idiota do Douglas Christie, seguindo essa linha de
254 | Felipe Negreiros

raciocínio, repetia aos quatro cantos que, se 6.000


burocratas ingleses controlavam 300 milhões de indianos,
ele bem podia sozinho comandar o império do Brasil. Daí,
no delírio de receber a verba pleiteada e negada pelo
governo, ter tido a audácia de determinar a apreensão de
navios mercantes brasileiros.
– Minha nossa – comentava Mota Maia – O que o
senhor fez, Majestade – perguntou-lhe, em seguida.
Pedro lhe contou:
– Não me acovardei; fiz o que deveria fazer.
Pedro narrou com detalhes:
– Coloquei a Marinha de prontidão, desci de São
Cristóvão e fui direto ao Paço da Cidade, um dos prédios
mais vulneráveis. Fiz tudo isso de propósito, pois queria
encorajar a resistência, conseguir o apoio do povo e
conquistar o medo dos comerciantes ingleses.
Estes últimos teriam as suas lojas e as suas casas
depredadas, esse fato, segundo Pedro, fez com que
conseguisse a queda do referido embaixador, não sem
antes ter este liberado os navios apreendidos e aceito um
arbitramento internacional para resolver a questão,
presidido pelo rei da Bélgica, quem, embora tio da rainha
Vitória, terminou por dar ganho de causa ao Brasil.
– E a situação entre os dois países, Brasil e
Inglaterra, Majestade? – perguntava-lhe Mota Maia.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 255

– Infelizmente, ficaram rompidas entre 1862 e


1865.
– Afora esses, quais os outros eventos que guarda
para o seu diário? Indaga-lhe, mais uma vez, com o olhar
transbordando de curiosidade, Mota Maia.
Pedro lhe respondia, registrando que houve dois
eventos mais, nesta mesma época dourada, os quais
chamam não só sua atenção, mas a de todos que se
envolveram nos destinos do Brasil na época.
– As questões no Prata e a Guerra do Paraguai. A
primeira levou à demissão Araújo Lima e a uma
intervenção do Brasil na Argentina e no Uruguai, expressa
em um apoio a um governador contra o presidente
argentino de então, Juan Manuel Rosas. Esse evento
acabou por definir a política brasileira no Prata até hoje;
uma política que entendo ser bem necessária.
– Qual política, Majestade? – Mota Maia, mais uma
vez, não escondia a sua curiosidade.
– Não conquistar nada e não deixar os argentinos
conquistarem nada também – Pedro falava rindo – O fato
é que, meu caro doutor, desde o período colonial, aquela
parte do Brasil sempre foi alvo de conflitos intermináveis.
Quando conquistavam a independência, os países que
surgiam na bacia do Prata mantinham as suas rivalidades.
Não havia como o Brasil ficar à margem dessas disputas,
infelizmente! Daí ter entendido ser crucial para o império
256 | Felipe Negreiros

impedir uma potência hegemônica na região. Temia um


foco de irradiação do caudilhismo que caracterizava esses
países, e também precisava garantir a livre navegação das
nossas embarcações nos rios Paraná, São Lourenço e
Paraguai. Sem essa estrada fluvial, o Mato Grosso ficaria
praticamente isolado do resto do País, e isso seria péssimo
para a integração do território brasileiro. Foi por essas
necessidades e interesses que chegamos ao segundo
conflito de relevância deste período, o mais difícil de ser
vencido, com um inimigo improvável, o Paraguai, e um
aliado menos provável ainda, a Argentina.
Pedro expôs a Mota Maia que muitos falam ter sido
o Brasil um agente de interesses dos Britânicos.
– Isso é uma tolice sem tamanho – Pedro ria! – Os
que isso falam desconhecem o passado colonial da região,
especialmente o do Paraguai. Embora conhecido desde o
século XVI, o território que deu origem ao Paraguai
despertou pouco interesse da Espanha. Essa se concentrou
em explorar as reservas de prata do Peru e da Bolívia,
portanto, devido a essa pouca atenção, permitiu-se aos
jesuítas se fixarem na região e catequisarem os índios
guaranis. O que se passa é que a região das missões
jesuíticas era superior ao território do Paraguai, e como os
padres influenciaram a cabeça de todos no Paraguai, o seu
presidente da época quis retomar a parte faltante, o que
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 257

resultou em ataques à Argentina e partes do Mato Grosso


e do Rio Grande do Sul.
– Que ficou da guerra?
– O lado proveitoso é que se evitou a propagação
do que aqui foi dito; o lado nocivo é que tudo tem o seu
custo e este nos levou à Proclamação da República. Em
síntese, o presidente do Paraguai, Francisco Solano Lopes,
uma pessoa muito jovem, diga-se, tinha sonhos de
grandeza que geraram repercussões no Brasil muito além
do campo de batalha. Hoje enxergo algo que não vi ou não
refleti como deveria no seu devido tempo: é que esses
delírios de Solano Lopes, que acabaram por envolver o
Brasil, terminaram por transformar o nosso exército em
um importante agente político, o que era impensável, até
então. E isso se tornou um problema, quando, ao se
encerrar a guerra, alguns parlamentares liberais e
conservadores começaram a fazer uma campanha pela
desmobilização do contingente das Forças Armadas. Tal
fato fez surgir uma forte resistência ao poder civil,
conhecida como oposição militar. Foi essa oposição que
iniciou o declínio do império, destruiu o Paraguai e, como
todo o fenômeno social que se preze, fincou raízes em
causas complexas, todas geradas por esse rapaz, filho do
segundo presidente do país, Carlo Antônio Lopes, morto
em 1862. Francisco Solano Lopes era uma mescla de
operante ministro da guerra e político inábil. Na verdade,
258 | Felipe Negreiros

sabia-se que o país mais rico da América do Sul, na ocasião,


era a Argentina e o seu presidente, Bartolomeu Mitre,
desejava patrocinar um fortalecimento do poder central.
Solano Lopes se opôs a isso, vindo a apoiar Urquiza, um
caudilho que comandava as políticas das províncias de
Corrientes e Entre-Rios, ao sudoeste da Argentina. Por
outro lado, esse mesmo Solano Lopes ficou também contra
um movimento rebelde que irrompeu no Uruguai, liderado
por um político local chamado pelo nome de Venâncio
Flores. Foi essa oposição a Mitre e o fato de tanto a
Argentina como o Império do Brasil estarem de acordo
com a política a ser implantada na região do Prata,
sobretudo no Uruguai, que fez com que justamente a
Argentina viesse a se juntar ao Brasil, para derrotar o
Paraguai. Ambos os países apoiavam a revolta comandada
por Venâncio Flores. Foi daí, em 1864, quando as tropas
brasileiras invadiram o Uruguai, e Tamandaré, no comando
de uma esquadra de guerra, deu apoio aos rebeldes, que o
Paraguai apreendeu, em represália, o navio civil brasileiro,
Marquês de Olinda, e invadiu a província do Mato Grosso
que foi rapidamente tomada pelo Paraguai, que contava
com um efetivo de 7.000 soldados contra 875 do lado
brasileiro.
Pedro seguia no seu relato:
– Garantida a retaguarda, o plano de Lopes era
marchar ao Rio Grande do Sul e de lá ao Uruguai e derrotar
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 259

as forças brasileiras que somavam 10.000 homens (o


efetivo total do exército imperial, registre-se, não chegava
a 18.000 homens). Tal plano, se tivesse dado certo,
colocaria o Brasil de joelhos. Lopes imporia fronteiras e
concessões ao império, tudo sob o argumento de ter
lutado pela defesa da independência do Uruguai, todavia,
antes de ele se mobilizar, para marchar ao Rio Grande, Rio
Branco fez um acordo com o presidente do Uruguai à
época, Tomás Villalba, permitindo que Venâncio Flores, ao
fim e ao cabo, ascendesse à presidência. Esse fato fez
surgir um obstáculo a Lopes, mas um obstáculo que ele
transpôs. Em 1865, ele invade Corrientes, na Argentina,
com 22 mil homens, e o Rio Grande do Sul, com 12 mil
homens. Lopes imaginava que seria visto como libertador,
e que a população de Corrientes marcharia com ele,
deporiam Mitre e, unidos, Paraguai e Argentina,
arrasariam o Brasil em uma verdadeira guerra relâmpago,
todavia, isso não aconteceu! A marinha brasileira fez um
eficiente bloqueio e os comerciantes de Corrientes não se
levantaram contra Mitre, tampouco a população desta
cidade, sobretudo quando, na batalha do Riachuelo, o
Brasil destruiu a marinha paraguaia.
– Foi uma vitória épica, Majestade – comentava
orgulhoso Mota Maia.
Pedro aceitava, mas ponderava que, à época,
percebeu com mais nitidez que a América Latina, de um
260 | Felipe Negreiros

modo geral, olhava o Brasil como uma potência


expansionista e escravista:
– Tanto quanto nós olhávamos os demais países
latino-americanos como repúblicas instáveis administradas
por caudilhos.
Pedro expunha que López tinha motivos, para se
ver como um libertador, pois, realmente, se os brasileiros
tinham, em mente, na época, caber ao Brasil europeizar a
América Latina levando-a para o caminho de uma
civilização, os países latino-americanos temiam que o
Brasil, com a sua força e a sua dimensão, passasse a
dominar os países vizinhos. Pedro via que o olhar brasileiro
era tão assim, europeizante, que, numa das vitórias da
guerra, recordava ter chegado a dizer que, enfim, a
civilização chegava ao Paraguai.
– E fiz isso com um tal entusiasmo, que levou
muitos críticos a questionarem os motivos com que, logo
eu, tão pacífico, tivesse me mostrado tão bélico neste
episódio.
Pedro confessou a Mota Maia que, em primeiro
lugar, o influenciou muito estar na presidência da
Argentina o general Mitre. Reconhecia que ele foi até mais
vítima de López que o Brasil ou mesmo a própria
Argentina, pois o primeiro desejo de López era derrubá-lo.
– No entanto, esquecia-se – Pedro continuava –
que, aos 45 anos, cabelos revoltos, Mitre rivalizava comigo
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 261

nesse ar europeu. Na época, eu contava com 40 anos, era


belo e alto. O oposto do presidente do Uruguai, Venâncio
Flores, que representava tudo que a elite brasileira
detestava: gordo, populista e de aspecto sujo. Mitre era
um erudito, sua família fundou o renomado jornal “La
Nación” e se tornou tão meu amigo que foi o único
estadista a me visitar no exílio. Por outro lado – dizia Pedro
–, influenciou-me muito também o fato de ter interrogado
um oficial paraguaio quando eu estive no “front” do Rio
Grande do Sul. Surpreendi a todos, por sinal, falando
corretamente o guarani. Foi aí que vi que o povo paraguaio
tinha uma relação filial com López e que, além de querido,
ele era opressor. O oficial disse que não queria ser solto,
pois morreria por ter se deixado ser preso. Concluí,
naquele momento, que, para trazer a paz, precisava matar
López ou fazê-lo sair do país.
– Mas – Mota Maia o interrompe – muitos falam
também, Majestade, que essa sua animosidade se deve ao
fato de ter considerado uma insolência López ter pedido
para casar com Isabel. Diz-se que não é sem motivo ter
sido declarado o casamento das suas duas filhas, quando
se anunciou a guerra.
– Isso não é verdade! – Pedro responde de pronto,
acrescentando: – Lógico, achei uma falta de senso da
realidade e vi quanto aquele rapaz era megalomaníaco,
mas não vi isso como um motivo, nem mesmo um motivo
262 | Felipe Negreiros

a mais, para irmos à guerra. Pelo amor de Deus! O Brasil é


um pedaço de chão que – em que pesem as dificuldades e
os contextos da nossa burocracia – tem uma formação
política fincada em uma realidade que remonta há séculos
e está em pleno funcionamento nos países mais prósperos
do mundo, veja a Itália, Alemanha, Rússia, Inglaterra ou
Áustria, por exemplo. Não somos uma republiqueta,
montada sob o arrojo e o comando de um punhado de
oportunistas que tratam o seu povo como sendo mais um
pedaço de suas posses. O casamento de uma filha de um
Habsburgo é algo que envolve países centrais e dinastias
como os Orléans; não é um negócio a ser tratado entre
caudilhos. Esse foi um episódio, para mim, praticado por
um insolente, admito, mas nem de longe nem de perto foi
algo que me fizesse pegar em armas. Já os outros motivos
que lhe narrei, há pouco, sim! Foi a invasão absurda do
Brasil e também o que aconteceu na Argentina e no
Uruguai que me fizeram entender, junto ao que me disse o
oficial paraguaio, aquele ao qual interroguei, que se não
nos livrássemos de López, em definitivo, jamais teríamos
paz na região. Sem isso, o Brasil estaria eternamente
ameaçado! E a ameaça não era pequena, meu caro doutor.
Olhe que assinamos um acordo de apoio mútuo com a
Argentina e o Uruguai em 1866, chamado de Tratado da
Tríplice Aliança. Mesmo assim, com o apoio desses dois
países, a reconquista do território do Mato Grosso foi
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 263

bastante difícil. Recorde que os paraguaios, estacionados


no Mato Groso, repito, não foram facilmente retirados. Em
1867, dos 2.080 soldados enviados por São Paulo, só
próximo de 700 homens retornaram. Foi um
acontecimento tão trágico que ficou conhecido na História
por intermédio da clássica obra do visconde de Taunay,
escrita em francês em 1871, pelo nome de “A retirada de
Laguna”.
– Recordo-me da repercussão deste artigo escrito
por Taunay – disse Mota Maia a um animado Pedro, que
aproveitava a ocasião para lhe dizer, com o seu costumeiro
ar de comando:
– Vamos, meu bom médico, como você sabe, sou
um amante das caminhadas. Já ficamos muito tempo
sentados – dizia-lhe fechando a cara.
264 | Felipe Negreiros

Capítulo 10
A PAIXÃO DE PEDRO...

Entre carruagens e pessoas, nada andava; o trânsito


estava engarrafado, logo no domingo em que Pedro
marcara um encontro com o seu neto mais velho, Pedro
Augusto. A todo instante, via se já se aproximara do café
próximo ao hotel em que Pedro Augusto se hospedara e
que oferecia aqueles doces de Rumplemeyer, o confeiteiro
mais afamado de Cannes, e que, Pedro sabia, o seu neto
adorava. Graças a Deus, ao dobrar a esquina, encontrou
um atalho que o fez chegar ao dito café. Em pé, já o
aguardava o neto; entraram e logo começaram a
conversar.
O avô comentava que, apesar desse reencontro,
este dia lhe era particularmente triste, pois o lembrava
sem parar o seu último encontro com a querida condessa
de Barral, quem sempre chamara a atenção justamente
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 265

desse seu neto, pois o mesmo sabia o quanto a sua avó


detestava a preceptora de sua mãe, Leopoldina, e de sua
tia, Isabel. Pedro Augusto era o mais ligado à avó, até
porque, órfão muito cedo, foi criado basicamente por ela,
no entanto, mesmo sabendo dos caprichos do neto, Pedro
dizia sem reservas que, em que pese a devoção que tinha
pela esposa e o quão certo dera o seu casamento, o
mesmo foi mais um matrimônio dinástico, nada mais do
que isso. Como tal, foi livre de sentimentos como o amor
ou o ódio. O casamento, para ele, comentava,
diferentemente do que seria para o neto, fora uma
questão de Estado. Isso, hoje, levava-o a afirmar, sem
medo do que ou de quem quer que seja, que, afora os
livros e o Brasil, uma mulher chamada Luísa de Barral, foi a
sua maior paixão. Alguém que correspondeu ao seu amor,
devotando a ele toda a sua vida.
– Mas vovô – dizia-lhe o neto, interrompendo a sua
fala –, apesar dos comentários, nunca vi uma atitude mais
ardente entre vocês, se é que o Senhor me entende.
Balançando a cabeça, como que concordando com
o que dizia o seu neto, Pedro lembrava-lhe que mesmo na
velhice, passados já trinta anos de convivência, a condessa
nunca perdeu uma oportunidade em recebê-lo ou a
qualquer um dos seus familiares.
– Vivi com ela uma relação mágica, mais do que
platônica, sem brigas e sem exigências, que foi conduzida
266 | Felipe Negreiros

por ela mesma, como quis e como acreditou que deveria


ser, especialmente para o mundo de então,
preconceituoso e limitador do papel da mulher na
sociedade.
Pedro concluía assim, pois para ele isso está bem
claro nos seus diários: a sedução que ambos exerceram se
transformou em um verdadeiro modo dos dois encararem
a própria vida: o prazer de viver um amor, onde tudo era
subentendido, lúcido, inteligente. Longe de qualquer
avareza ou inibição, esse amor trazia uma sensação de li-
berdade, e isso fez com que eles se transformassem em
almas gêmeas, unidas até o fim, assinalava Pedro.
O neto ficou com os olhos marejados, fato que não
passou despercebido ao avô, quando, levantando, para ir
ao banheiro, pediu ao garçom um café para si e o
chocolate com doces para o jovem. Por um breve instante,
antes de se dirigir ao banheiro, segurou fortemente o
braço do neto e expôs que eles eram daqueles tipos de
espíritos que trabalham à distância o seu amor, com
reencontros, conversas, carinhos e cujos corações não
envelhecem. Mesmo porque são capazes de fazer
suportar, mesmo com galhardia, não a morte romanceada,
mas a real, dolorosa, sofrida, forjada nas feridas do tempo
que passa. Foi assim que, segundo Pedro, os dois
construíram uma paixão que fez com que ele se libertasse
da rija máscara do monarca e mostrasse ao mundo um
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 267

homem ardente, cheio de desejos. Esse homem era


ousado, pronto para viver rebeliões e quedas como parte
do jogo, tal como um dia lhe sugerira Chiquinha Gonzaga,
na festa que quase deixou Caxias encharcado de suco.
Recordava-se rindo, no momento em que, ao
retornar a mesa e interrompido pelo neto, ouviu-o
perguntar:
– Vovô, quando a preceptora de mamãe e de minha
tia entrou em sua vida? O senhor já a conhecia antes que
ela fosse trabalhar no palácio?
– Não, não! Piscava-lhe o olho esquerdo. Todo esse
emaranhado de sentimentos teve início em minha vida de
uma maneira prosaica. Realmente, ela surgiu somente com
a necessidade que tive de educar as minhas duas filhas: a
sua mãe, Leopoldina e especialmente Isabel, a sua tia.
Havia a perspectiva de se vir a governar o Brasil, isso fazia
parte de nossas vidas naquela altura.
Pedro, curvando-se para alcançar o café que
acabara de chegar, comentava com o neto que, na
verdade, a sua relação com a condessa tinha de ser
contextualizada no tempo em que viveram para ser en-
tendida por quem quer que fosse. Para ele, devia-se ver
que, apesar de todo o preconceito próprio de uma
sociedade atrasada e patriarcal, vivia-se um certo
paradoxo. De um lado, foi uma época um tanto quanto
interessante para as mulheres, pois era o tempo da sua
268 | Felipe Negreiros

prima, a rainha Vitória, da Inglaterra. Por outro lado, o


dinheiro dos maridos privava as mulheres mais abastadas
até da satisfação de executar o trabalho doméstico,
personificando como uma virtude ser a mulher ignorante e
uma doce donzela, sem instrução, pouco prática, teorica-
mente assexuada, sem patrimônio e pessoa a ser
protegida.
Pedro via esse paradoxo de um mundo de rainhas e
de mulheres postas como figuras decorativas e queria
fazer crer que o fato de – após a morte dos seus dois filhos
homens – ter-lhe restado só duas filhas, não geraria um
embaraço à sua sucessão.
Pedro dizia que, à época, era-lhe indiferente não
ter um herdeiro homem, devido ao quão aceitável já era o
fato de uma mulher conduzir o maior império do mundo
sem objeção. Preocupava-o, isso sim, o fato de o herdeiro
não estar à altura da tarefa quando lhe fosse chegada a
hora. O pai lhe pedira sempre para lutar pela prosperidade
do Brasil e isso, em sua mente, era o que estava em jogo.
Assim, foi munido dessas lembranças que ele, contando
com a aprovação de Teresa Cristina, indagou à sua
madrasta, Amélia, sobre quem seria a pessoa mais capaz
para essa importantíssima tarefa.
Fez também uso de outros contatos na corte de sua
irmã, D. Maria II, bem como de sua outra irmã, Francisca
de Orléans e Bragança, a princesa de Joinville. Pedro ouvira
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 269

essas suas duas irmãs, até porque uma era a rainha de


Portugal e a outra a nora do rei da França.
Decidiu-se, por fim, acatar o nome que elas
recomendaram e foi desta maneira que chegou ao nome
da condessa, apresentada, na ocasião das referências,
como sendo Dona Luísa Margarida Portugal e Barros, que
fora uma antiga dama de companhia de Francisca, quando
esta, recém-casada, foi morar com o marido na corte de
seu sogro, o mencionado rei Luís Filipe. Portanto, como
dizia Pedro ao neto, logo se viu que havia muito mais nessa
personagem que um currículo, onde consta o de ter sido
uma aia de princesas.
Suspirando, Pedro mencionou que Luísa nasceu em
1816, antes, portanto, da independência do Brasil. Disse
também que ela crescera em um engenho de açúcar e de
lá foi estudar na Europa, servindo, ao final, em duas cortes,
a francesa e a brasileira.
– Foi uma mulher única, meu neto. Nas idas e
vindas entre a Europa e o Brasil, recusou um noivo bem
mais velho que tinha acordado o casório com o seu pai.
Enfrentou a revolta dos escravos no recôncavo e a dos
republicanos na França. Foi abolicionista, pensava o
dinheiro de uma maneira moderna, fazia alianças e foi fiel
aos Orléans até morrer em seu castelo na França. E foi
tudo isso – assinalava Pedro, repetindo insistentemente –
em uma época em que as mulheres, salvo alguns
270 | Felipe Negreiros

exemplos, como o de Vitória, sentiam os últimos reflexos


dessa sociedade patriarcal e misógina. Muitas ainda se
restringiam apenas a rendas e bordados para aumentar um
pouco os recursos financeiros da casa. No entanto, Luísa
era diferente! Órfã de mãe muito cedo, aliou-se ao pai,
que lhe ensinou bem como funcionava um mundo em que
os homens, salvo as raríssimas exceções citadas, eram os
reis. Como disse sempre, não via isso como um empecilho
ao coroamento de Isabel, mas era fato!
–E quem foi o seu pai? – indagou-lhe o neto.
– Seu pai chamava-se Domingos Borges de Barros,
o visconde de Pedra Branca, que, com a ida da família real
para Portugal e já amargurando a queda nas receitas dos
engenhos de açúcar, viu a oportunidade do serviço
público, tornando-se o primeiro embaixador do Brasil na
França.
Enfim, registrava:
– Luísa, apesar de não ter sido nenhuma princesa,
teve uma vida bem melhor do que a minha, especialmente
na infância. Ela foi cercada pelo carinho e a atenção dos
seus pais, cresceu livre, correndo em suas fazendas.
– Na verdade, quanta diferença: a partir de um ano,
eu já vestia calças e usava jaleco e condecorações; ela, ao
contrário de tudo isso, ao se mudar para a França, via Paris
como um lugar mágico onde caminhar para as lições
particulares era caminhar pela “Champs-Elysées”;
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 271

entreter-se era fazer piano, balé, cruzar a todo instante


com os vendedores de “macarons”, brincar de bonecas,
trajando-as na última moda, cada qual com o seu guarda-
roupa de cortar e colar. Isto sem esquecer que já montava
a cavalo, ia ao Circo Imperial e ao Odeon.
Pedro concluía contando ao seu neto que foi nesta
Paris, já adulta e casada com um nobre belo, mas sem
recursos, apesar do título de conde de Barral, que recebeu
o convite para ser a dama de companhia da sua irmã, a
princesa Francisca.
– O senhor disse, há pouco, que ela tinha no
currículo mais do que ser aia de princesas; então, além da
história da sua vida, a qual o senhor acabou de me contar,
como era a condessa no seu aspecto profissional? No
exercício do trabalho, ela também se mostrou ser essa
pessoa especial de quem o senhor falou agora? Como o
Senhor disse, ela venceu rebeliões, liderou engenhos de
açúcar!
– Ora, escute bem, meu neto! Luísa, quando
chegou na França, logo viu que Francisca e o marido
tinham a seu favor o auxílio da beleza. O esposo de sua tia
avó, inclusive, recordo-me o quanto ela registrava isso,
era, além de mulato, um homem alto e muito forte. Luísa
repetia sem parar que, ao menos sob o aspecto físico, ele
nem parecia um Orléans. Contudo, se viu a beleza dos dois,
viu também que ambos estavam bem abaixo de si, em
272 | Felipe Negreiros

termos de conhecimentos. Daí não ter demorado para que


Francisca rapidamente se encantasse com a sua dama, mil
vezes mais culta do que ela. Luísa a salvara das mais
variadas gafes, sempre se colocando ao seu lado nas
solenidades e festas de gala, as quais, diga-se, adorava. Na
corte da França, todos a tinham como uma pessoa sagaz,
aprumada e seca. O único local em que Barral não estava
ao lado de Francisca eram os almoços privados, exclusivos
da família real. Como dama, ganhava bem e, logo, fez de
seu salão um ponto de referência, porque ao conhecer
alguém no palácio, como, por exemplo, Chopin ou
Winterhalter – o artista plástico que chegou a pintar, além
de Francisca, a rainha Vitória e a imperatriz Sissi –, Luísa,
cultivava uma amizade para sempre. Tudo era luxo; os
vizinhos famosos eram vários: Lafayete foi um deles. Ela
amava o Jardim de Luxemburgo e foi uma das primeiras a
antever a queda da Monarquia Francesa. Bradava aos
Orléans sobre os reclamos de Tocqueville quando este,
deputado, avisava haver uma revolução em curso. Por fim,
acompanhou Francisca até o seu exílio em Claremont e lá
viu a mudança do hábito do rei. Anotou que este tomava
banhos diários na piscina aquecida do subsolo da casa em
que morou os seus últimos anos, e que as mulheres, ao
tricotar, discutiam o quanto valia a união dos Orléans com
os Bourbons, algo que ela sabia ser para lá de improvável.
Pedro continuava:
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 273

– Pois foi o pai de Luís Filipe quem deu o voto que


sacrificou Luís XVI. Era um marasmo que a fez ver não ser
mais a sua missão estar ali. Assim, voltou à Bahia a fim de
ver como andavam os seus próprios negócios. Então,
quando já pensava em retornar a Paris, também não mais
se adaptando à vida sem ter o que fazer, e aos mexericos
das comadres na Bahia, eis que recebeu uma carta com as
armas dos Bragança, através da qual o mordomo-mor a
chamava para educar as princesas imperiais, revelando a
indicação de Francisca. De maneira seca, Luísa fez ver que
se sentia honrada, mas o preço a pagar era o que a faria
decidir por ir.
Neste momento, colocando a xícara na mesa, o seu
neto sorriu e disse:
– Mas vovô, além de notável, seja pelo histórico
pessoal ou pelo modo de como conduziu a sua profissão,
reconheça que a condessa era uma mulher ambiciosa.
– Isso é verdade – respondeu-lhe Pedro – Tanto
que recebeu um salário equivalente ao de um ministro de
estado, 12 contos anuais, mais aluguel e uma pensão
vitalícia de 6 mil francos. Escrevi-lhe, a lápis, avisando-a
que se enquadraria na categoria dos criados de maior
representação, podendo morar em São Cristóvão, nos
aposentos que foram da condessa de Belmonte, Dadama,
a minha aia, morta um ano antes, em 1855. Esse quarto
274 | Felipe Negreiros

tinha entrada separada, sendo-lhe garantido também um


carro próprio.
– De fato, ela sabia se impor – reconhecia o neto ao
avô.
– Verdade! – respondia Pedro – E olhe que foi uma
luta convencê-la: as referências dela atiçaram o meu
interesse. Recordo-me até da curiosidade em que
estávamos quando ela chegou em São Cristóvão. Eu a
aguardava, em pé, ao lado da sua avó; a sua mãe e a sua
tia esperavam na sala contígua. A condessa entrou vestida
de cinza pérola, segundo revelei depois em cartas. Seu
penteado, de logo, me impressionou; não escondia seus
cabelos grisalhos. Todavia, foi ao me cumprimentar que
ela me conquistou: a elegância no porte, a vivacidade do
olhar foi diferente de todas as reverências que presenciei,
desajeitadas, esbaforidas, aflitas, pernósticas, petulantes.
Não, nunca ninguém fez do jeito que fez a condessa,
respeitosa sem se humilhar, calma, segura de si e
soberanamente submissa. Era uma obra de arte!
Pedro falava empolgado e registrava, ainda, ao
neto, que a primeira aula foi assistida por ele mesmo.
Dizia:
– A condessa ficou intimidada e eu gostei disso,
senti prazer em abalar a sua segurança.
O neto ria.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 275

– Do que ela se vingou logo em seguida –


continuava Pedro, também se divertindo com a sua
narrativa – Pois também insistiu em assistir a aula que dei
depois e me viu gaguejar algumas vezes. Ali – concluía
Pedro – já estava envolvido por ela. E esse envolvimento –
contava –, por um bom tempo, foi simplesmente
platônico. Passou a ser algo mais, como lhe disse há pouco,
depois! A condessa era 9 anos mais velha, mas era
admirável a sua cultura.
Assim, falava ao neto sem parar, que ambos
viveram essa paixão diferente que ultrapassou a paixão
física até o último instante, quase à véspera da sua morte,
nos bosques de um castelo do interior da França, perto de
Grenoble. Foram inúmeras as cartas – e Pedro dizia-lhe
que o carteiro tinha se transformado em uma figura
mística, portando felicidades e tristezas – sobre o
relacionamento, coube apenas, de início, uma anedota,
quando a princesa Leopoldina perguntou à mãe por que o
pai pisava os pés da condessa durante as aulas. As
princesas, depois, aprenderam ou viram, sem relacionar o
fato ou sem mencionar o possível “affair”, que elas
estavam sendo treinadas justamente para isso, para serem
iguais à condessa.
– Vivia-se – continuava Pedro a sua conversa com o
seu neto – o espetáculo da “coquetterie”, onde o poder de
sedução das mulheres comandava: declarar-se sem se
276 | Felipe Negreiros

entregar era o lema. Tudo ficava no campo das


insinuações, do roçar das pernas, no pisar o pé. As duas,
tanto Isabel como a sua mãe, adoravam a condessa, viam
nela algo diferente de Teresa Cristina, a sua avó, uma
mulher, apesar da extrema bondade, de pouca cultura,
como já lhe disse. Com a condessa aprenderam uma certa
dose de malícia, ela as vestia, dava sugestões de
conquistas para as paqueras.
E isso foi algo tão marcante que Isabel manteve
com ela uma relação estreita até a sua morte, exigindo que
estivesse presente nos três partos, todos
complicadíssimos. A condessa mostrou-lhes o mundo, deu-
lhes cosmopolitismo, algo difícil de se ver mesmo nas
nossas elites mais esclarecidas.
Pedro aproveita, aí, para confidenciar ao neto que
costumava até a brincar com a sua avó sempre que se via
diante de um comentário preconceituoso ou atrasado,
dizendo-lhe que, no Brasil, só via três coisas cosmopolitas:
o Sol, a Lua e o mar.
– Puxa, vovô! – falava-lhe rindo o seu neto.
Pedro contava-lhe que o que acabara de concluir
era a mais pura verdade e só vinha a demonstrar a
importância que teve Luísa para a própria coroa: sem ela,
não haveria como preparar a sucessão, ter uma pessoa à
altura do que se exigia. Recordava que em São Cristóvão,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 277

as suas filhas foram criadas aos pés da mãe, que gostava


de árias italianas, de bordar.
– Tanto uma como outra cresceram na chamada
chácara imperial, no meio de mangueiras e correndo em
uma soberba alameda de bambus. Ambas tiveram uma
infância alegre e idílica, mas só isso. Sei que, em
Petrópolis, as duas vivenciaram tempos em uma residência
que chamavam de maravilhosa, com jardins floridos,
canais que atravessavam a cidade, bonitas casas, colinas
cobertas de bosques, e montanhas – Pedro registrava –,
todavia foi Barral quem lhes trouxe o guia da civilidade e
da etiqueta. Ela ensinava a Isabel como ela passaria da vida
privada à pública: conveniências obrigatórias, tirar as luvas
sem se atrapalhar, sentar com joelhos e pés juntos, fingir
interesse com um interlocutor, pisar diferente na casa, na
rua, sorrir sempre, rir nunca. Regras básicas como a de
saber evitar a ostentação, praticar a modéstia, não
aparentar muito esforço, pois o que encanta é o estilo
tranquilo de se conseguir as coisas, ser notado, controlar
as emoções, ter autocrítica e ser uma fonte de prazer. E
isso – reconhecia – foi tão bom para as duas princesas, que
ambas se tornaram muito mais festivas que eu ou a sua
avó. Tudo, sem dúvida, por conta desse contato diário, que
se iniciava às 8h da manhã.
Pedro valorizava a importância da condessa:
278 | Felipe Negreiros

– Foi ela quem fez com que as duas trouxessem um


novo horizonte para a corte. O Rio queria tornar-se uma
das grandes cidades do mundo, do porte de Buenos Aires.
A cidade, em que pese os atrasos, ganhou, via a mágica de
Mauá, iluminação a gás e, um breve tempo depois, tílburis,
e não mais as cadeirinhas transportadas por escravos,
ligavam Botafogo ou a Tijuca a São Cristóvão. Pipocavam
arquitetos e engenheiros, que trabalhavam por
encomendas específicas, produzindo estruturas de uso
óbvio que expressavam formas claramente
compreensíveis, funcionais e significativamente neoclás-
sicas, copiadas dos modelos da Igreja de Madeleine em
Paris e do Museu Britânico, em Londres. A Rua do Ouvidor
via surgir um sem número de lojas chiques: eram as luvas
no “Wallerstein”, perfumes no “Desmarais”, roupas na
“Notre-Dame” e a Galeria “Geolas” ligando as Ruas do
Ouvidor e a do Ourives. Foi a época das pontes, canais,
construções ferroviárias, fábricas com o que se chamava
de beleza técnica. Havia o Jockey e as regatas. Os bailes
não eram no palácio, mas no Cassino fluminense. Tinha-se
o Café de Londres e a “Maison Moderne”. E posso lhe dizer
– registrava ao neto –, até a sua avó, em que pese o
natural ciúme, o qual não se dava ao trabalho de esconder,
reconhecia na condessa uma figura excepcional.
Pedro mantinha a narrativa:
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 279

– Luísa tinha princípios, dançava bailes, aplaudia o


teatro, lia as histórias de adultério de Flaubert, era uma
figura virtuosa. Minha Teresa Cristina pedia sempre que
ela sentasse ao seu lado, e ela mostrou-se fiel à nossa
família, sobretudo quando partimos para o exílio.
A fim de evitar ciúmes nos demais funcionários,
Pedro registrava também ter criado todo um receituário
que listava as obrigações da aia e, apesar de negar, volta e
meia, tal era o poder da condessa, que ele se sentia na
obrigação de esclarecer que não tinha protegidos.
– Enquanto moramos juntos no palácio, não
tivemos relações físicas – Pedro confessava, pontuando: –
Vivíamos apenas uma estreita comunhão intelectual.
Somente após o casamento das princesas e depois que ela
foi embora dando por encerrado o seu trabalho, em uma
das vezes que retornou de Paris, para passar um ano em
Petrópolis, encontrou-se comigo. Selamos aí o nosso amor.
O neto, neste exato instante, viu que uma lágrima
escorria na face do seu avô.
Pedro, apesar do ar melancólico, abria-lhe um
sorriso, ao confessar:
– Os encontros davam-se às escondidas, no
chamado Chalé Miranda. Escrevi cartas a respeito,
carregadas de saudades desse tempo. Prometemos enviar
semanalmente um diário um ao outro. Era essa a maneira
de estarmos juntos, sentirmo-nos pertos.
280 | Felipe Negreiros

– E fizeram isso, vovô?


– Sim! Foi uma correspondência frenética. Ela me
escrevia de uma maneira direta, retratando uma
verdadeira crônica social da época. Era como se
estivéssemos conversando; a espontaneidade era
transferida para o papel e a pena. Eu escrevia de próprio
punho e Luísa respondia muitas vezes na mesma carta. Por
alguns instantes chegávamos a deixar a discrição de lado,
quando lhe perguntava sobre o hotel Orléans, sobre o
nome do porteiro, e ela, “como não! Senhor Rozano, estou
até ouvindo o sino”. Mas olhe, meu neto, o que importa é
que você saiba que o desempenho da condessa até o
casamento das princesas foi irrepreensível.
– E o casamento das duas não foi algo fácil, assim
como o seu também não foi, não é, vovô? – Pedro Augusto
o interrompeu mais uma vez.
– Foi difícil – Pedro reconhecia – Especialmente o
de Isabel, que requeria, naturalmente, maiores cuidados,
pois sua imagem deveria estar associada a um matrimônio
exemplar. Aí, foi-se à luta. Primeiro, pensou-se nos primos
diretos. O filho de Januária, ou Pedro de Orléans, filho de
Francisca, entretanto os dois recusaram, pois não queriam
morar no Brasil. Esse último, como você sabe, optou pela
cidadania americana, tornando-se um dos mais festejados
oficiais que lutaram a favor da União.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 281

Pedro II registrou que esteve com ele, quando


visitou os Estados Unidos, que jantaram juntos com o
presidente Grant e sua esposa e que esses dois lhe fizeram
os maiores elogios.
– E aí?
– Com a recusa dos dois príncipes, pensou-se no
herdeiro do trono português, mas foi o Senado que se
opôs. Não queriam reviver, de maneira nenhuma, o
trauma que levou à abdicação do meu pai, Pedro I. O fato
de o rei, um dia, vir a ser um português era impensável
para o Senado e para a nobreza de um modo geral.
Pedro revelava ao neto:
– E olhe que, à essa época, fins dos anos 1859,
passou pelo Rio, em uma missão oficial, o arquiduque
Maximiliano da Áustria, que sugeriu casar Isabel com o
irmão dele, no entanto, essa ideia também não vingou,
pois era preferível aliar-se aos Orléans; nunca tive dúvidas
disso. Então, por aí, a melhor opção residia nos netos de
Luís Filipe, especialmente nos herdeiros do irmão do meu
cunhado, Joinville, justamente o que permaneceu
residindo com a mãe. O nome dele era Nemours e era o
mais pobre entre os irmãos, mas era o mais bem casado e
de família mais equilibrada. Esse histórico não podia ser
descartado, especialmente quando o dinheiro não faltava
mais à corte brasileira e sobretudo quando, diverso da
282 | Felipe Negreiros

Europa, que fervia em rebeliões, o Segundo Império


consolidava-se politicamente cada vez mais.
Seguia a história:
– O príncipe Nemours tinha uma filha, Margarida, e
dois filhos, Gastão, o conde D’Eu, e Ferdinando, o duque
de Alençon. Essas três crianças tiveram uma vida severa e
árdua: sem dinheiro, perderam a mãe na adolescência, e
Gastão, o mais velho, foi a Edimburgo, onde cursou a “high
school”. De lá, tanto ele como o irmão serviram ao exér-
cito, ficando Gastão na Espanha; nas consultas que se fez,
este era o disponível para casar. Faltava, então, apenas
mais um que seria ou o esposo de sua mãe ou de sua tia,
meu caro neto – dizia-lhe Pedro, piscando o seu olho
esquerdo.
– Então, o tio Joinville mais uma vez ajudou,
consultando uma irmã dele de nome Clementina, chamada
por todos de Clem.
– Ele viu, como par, para uma das princesas, o filho
de Clementina e seu pai, Augusto, que todos chamavam de
Gusty. Simpático e mais jovial que Gastão, era, na ideia de
Joinville, o par perfeito para Isabel. Eu também o vi como o
ideal, para representar o papel de consorte da imperatriz,
devo admitir – confessava-lhe.
– Como se deu o casamento, vovô? Tanto de meus
pais como de meus tios? Já li a respeito, mas sempre tive
dúvidas sobre alguns detalhes acerca de tudo o que se
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 283

passou na sociedade da época, especialmente na corte,


ainda pobre em número de hotéis. Deve ter sido um
evento enorme, não foi?
– Bem! Os dois primos escolhidos foram
despachados para o Brasil. Gastão tinha 22 anos, e o seu
pai, Augusto, 19. De fato, não demorei, para me encantar
com os rapazes. Gostei dos dois, logo que os recebi no
Palácio de São Cristóvão. Tanto que, à noite, escrevi em
meu diário que os via como jovens alegres.
– Mas, vovô, feitas as apresentações, minha tia
Isabel ficou de imediato com Gastão, e meu pai, Augusto,
com a minha mãe, Leopoldina?
– Não foi bem assim! Nenhum dos dois estava
prometido para essa ou aquela princesa, como lhe disse
ainda há pouco. Quis que as meninas escolhessem
livremente e, por fim, cada uma me diria por qual
encontrou mais afinidades. Lembro-me de que Luísa
considerou isso um erro, e sei que ela estava certa. Fui
mais pai que estadista nessa ocasião, e isso é imperdoável!
Seu pai era um militar, por isso mesmo, teria se adaptado
melhor ao papel de esposo da herdeira, diferente de
Gastão, que era um político ou, ao menos, insistia em sê-
lo, mesmo quando ninguém queria que fosse, afora o
problema que o pai do seu tio me causou, assim que Isabel
optou por ele. Divagou muito, para convencer os parentes
franceses, eis que, pela lei vigente, quem se dispusesse a
284 | Felipe Negreiros

casar com a sua tia não poderia viajar sem a licença do


imperador e do Senado, além de tampouco poder assumir
qualquer outra posição na vida, salvo a de consorte da
princesa herdeira do trono. A sua família questionava, pois
eram unidos e iam sentir a sua falta, mas ele, como
escreveu, era pobre, nada de grandioso o aguardava na
Europa, detestava a Espanha, já era acostumado a uma
vida sem prazeres e sem dinheiro e, como disse, viu, no
Brasil, um país esplêndido e um império que Deus lhe
colocava nas mãos – contava Pedro ao neto, sorvendo o
último gole de seu café.
– A verdade é que, para Gastão, Isabel era mais
capaz que a caçula, sua mãe, a minha doce Leopoldina. O
casamento de Gastão com Isabel se deu em 15 de outubro
de 1864, com um desfile de carruagens saindo de São
Cristóvão – seguidas pelo Regimento de Cavalaria e depois
pela Guarda de Arqueiros – ao Paço, Centro do Rio. Um
Mestre de Cerimônias levou os convidados aos seus
lugares na Capela Imperial. Sobre uma almofada, estavam
as condecorações que foram entregues a Gastão, em outra
os anéis, e em uma terceira os autos do casamento. Os
presentes foram recepcionados com músicas de Haendel.
Essa festa moveu a corte tanto quanto a da sua mãe, que
foi realizada dias depois, claro! Se tomarmos como
exemplo o casamento de Isabel, pode-se ver que, dias
antes, nos jornais, choviam pedidos de graça ou perdão
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 285

aos presos e cobravam-se convites do tipo: Os senhores


cadetes não serão convidados? Isso sem deixar de falar
que valeu a tradição do uso de luminárias a gás, que foram
colocadas no Largo do Paço, na Rua Direita, na Praça da
Constituição, no Campo da Aclamação e na Rua do
Ourives. Na Farmácia do Carmo, a iluminação foi elétrica e
isso causou o maior rebuliço. Recordo-me de que um sem
número de pessoas das classes menos favorecidas e das
mais ricas queriam vê-las ligadas. Todas as noites,
reuniam-se várias pessoas em frente ao prédio. Era um
acontecimento que parava a cidade, mudou até os hábitos
de algumas famílias, que só se reuniam para jantar depois
que viam as mesmas sendo acionadas. Pareciam estar
diante de um verdadeiro espetáculo.
A descrição das festividades não terminara:
– Houve ainda a apresentação gratuita de músicos,
retratos dos noivos eram vendidos nas livrarias e na fábrica
de gás do barão de Mauá, que, à altura, já era o homem
mais rico do Segundo Império. Um coreto de 500 pessoas
foi montado. Candelabros de vidro encantavam a todos.
Embora sempre houvesse a crítica dos próprios brasileiros,
que fazem piada com tudo, o evento, de um modo geral,
foi um sucesso, entretanto, se foi bom por um lado,
trouxe-nos tristeza, por outro. A todos nós, posso lhe
assegurar – falava Pedro, colocando a sua mão sobre o
braço do seu neto, que lhe retribuía o carinho.
286 | Felipe Negreiros

– Por que diz isso, vovô? – indagava Pedro Augusto,


sem esconder não entender o motivo de ter o casamento
da mãe e da tia trazido qualquer dor à sua família.
– Ora, meu neto, é que aí chegou a hora de a
condessa ir-se. Quando Luísa retornou a Paris, Francisca
também voltara, e seu marido, Joinville, ganhara um
mandato de deputado, pois o Governo da época tinha
reabilitado os Orléans. Então, claro, a condessa, orleanista
de primeira hora, defendendo, com unhas e dentes, os
interesses dos seus amigos empobrecidos, voltou a servir a
Francisca e a patrocinar o mandato de seu marido. A essa
altura, ela já era muito rica, dona de muitos salões em
Paris e de um castelo no interior. Nesses tempos,
frequentava-se o Palácio de Chantilly, onde Francisca se
alojou.
– Recordo-me disso – dizia o neto – Foi uma época
triste, uma série de insinuações em jornais.
– Sim! Foi o único momento de dificuldade entre
nós – respondia-lhe o avô – Houvera o roubo de joias em
São Cristóvão, e o camareiro que foi preso como sendo o
autor foi perdoado por mim. Todos os jornais da época
criavam sonetos de mau gosto e tiradas dizendo que o
imperador tinha sido chantageado e que o motivo da
chantagem era justamente o seu romance com Luísa –
interrompe o neto – Mas, sabe, o que me entristeceu não
foi a distorção, foi o ódio que senti em certos comentários.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 287

Vi que a grande parte dos brasileiros, incluindo aí a classe


média, devido até às desigualdades de nosso país, não
sente só inveja de quem tem sucesso ou êxito na vida,
sente ódio. Padecemos de um perigoso ressentimento
social e esse é um problema que deverá ser enfrentado
urgentemente. O pior é que essas notícias chegaram à
França e ela ficou possessa. Seu filho, à essa altura, adulto
e servindo no corpo diplomático, tecia críticas à mãe e era
um dos que comungava da ideia de que ela tinha, sim, um
romance proibido. Tanto que, quando ela veio o
acompanhando a serviço, na última vez que esteve no
Brasil, o jovem se recusou a me encontrar.
– Mas ela o amou muito, vovô!
– De verdade!
– Sei que, apesar desse desencontro, Luísa o
auxiliou nas três vezes em que o Senhor esteve na Europa,
em missão oficial.
– Ela não deu cabimento ao filho.
– Falam até que, na sua segunda viagem ao
exterior, já era uma aliada da imperatriz, vigiando-o,
sempre galanteador – ria-se o seu neto – Constantemente,
até o criticava pelo seu jeito de homem simplório e
pequeno burguês, uma mistura de turista e funcionário
público – continuava falando-lhe.
Ao que Pedro lhe respondeu:
288 | Felipe Negreiros

– Sim! Fui um príncipe realmente diferente, Pedro


Augusto. Apertava a mão de todo mundo, coisa que um
príncipe jamais faria. Batia nas costas das pessoas, usava
sempre um único tipo de roupa, um jaquetão preto, até
em jantares de gala. Reconheço isso, mas fiz tais coisas de
propósito. Era a hora de dar adeus à etiqueta, pontuar a
todos que essas fórmulas de nada valiam; era a hora de
transformar o Brasil em uma República.
– Discordo do senhor, mas não entremos em
conflito. Não hoje nem aqui, em meio a doces tão
deliciosos. Voltemos ao nosso tema central! Diga-me,
vovô, como foram os seus últimos momentos com a
condessa?
– Recordo-me como se estivesse vivendo tudo
agora, meu neto querido. Na última viagem oficial, tivemos
o nosso encontro mais sentido. Foi na estação de trem em
Bayonne, sob um frio intenso. Perguntei-lhe se acreditava
em vida depois da morte. Ela me disse não saber. Com
lágrimas nos olhos, eu lhe falei que gostaria muito de outra
chance. Ela me disse: “Seu maior merecimento é ser sim-
ples, simplesmente simples e instruído, ter memória feliz e
olhos que veem longe”. Foi assim que iniciamos o outono
de nossas vidas – Pedro suspirava.
– Imagino a cena, vovô, belíssima! Voltaram a se
encontrar?
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 289

– Reencontramo-nos no Brasil, quando ajudei


Dominique, o seu filho, a se casar com a filha do visconde
de Paranaguá. Soube por ela que, com o anúncio do
casório, os presentes encheram a sua casa na França. Luísa
me contou, feliz, sobre a correria de costureiros e
chapeleiros.
– Mulheres adoram isso! – Pedro Augusto cortava o
raciocínio de seu avô, gargalhando alto.
– Verdade, meu neto! – Pedro lhe respondia,
continuando: – Disse-me que esse pandemônio de gente a
perseguiu até o momento em que embarcou em Bordeaux.
A condessa era muito afobada, era essa a verdade – ria.
Quando chegou, veio direto para Petrópolis. Tanto eu
como toda a corte fomos recebê-la. Na ocasião eu já era
esse ancião de barbas brancas que vos fala, e a condessa,
que teve o filho com mais de 40 anos, estava ainda mais
velha do que eu.
Ao que o neto o interrompe mais uma vez:
– Sei que, na oportunidade, comentaram sobre o
envelhecimento da condessa e o senhor se irritou.
Contaram-me que disse que nunca envelhece uma mulher
de espírito. Para mim, vovô, isso foi um pouco marcante,
pois foi a primeira vez que soube desse seu amor por Luísa.
– Foi a primeira vez que ele veio a público de uma
maneira mais explícita.
290 | Felipe Negreiros

– Mas, vovô, fale-me, quando houve o golpe de 15


de novembro, onde ela estava? Não a vi no porto de
Lisboa.
– Quando da proclamação da República, Barral
estava na França, em seu castelo em Voiron. Seus filhos a
proibiram de ir ao nosso encontro e, depois, ao saber da
morte da imperatriz, tomou isso como um castigo diante
da falta de consideração dos filhos. Escreveu-me uma carta
bela que guardo até hoje. Nela, mostrou toda a sua devo-
ção à família imperial, não reconhecendo mais o Brasil
como o seu país, mas o que importa, mais do que tudo, é
que, em janeiro de 1890, ela correu para me ver; eu, já
viúvo e sem Pátria, começando essa terrível peregrinação
entre balneários e casas de amigos. Encontramo-nos em
Cannes. Pode-se ler em meus diários, aos meus olhos, o
tempo não passava, encontrei-a a mesma. Tivemos
encontros todos os dias, eu sempre a esperando
pacientemente em um banco em frente ao seu hotel.
Anotei, um a um, todos esses encontros: “Vou à
condessa...”, “Volto do passeio com a condessa...”, “A
condessa não veio, vou dormir”. Nos jantares, só ficava na
sala até ela se retirar, depois disso, recolhia-me. Meu
maior gosto era passear de carro pelo belo golfo de Juan
Les Prins ou ir até Nice. Às vezes – Pedro falava ao neto em
tons jocosos –, brigávamos como adolescentes, mas depois
ela sempre, em um gesto de carinho, massageava-me as
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 291

mãos dormentes por efeito da diabetes que sofro. Quando


Luísa voltou ao seu castelo, escrevia-me diariamente
sempre procurando me animar ou me fazer rir.
– Aí veio julho do ano passado, quando ela nos
recebeu em seu castelo.
– Recordo o quanto a imprensa local atiçou a
curiosidade da população com matérias ao meu respeito,
levando uma multidão à estação para nos receber.
Imaginavam até que eu podia me instalar lá, dando como
certa a compra do Château de Michallon, em Buisse, a
poucos quilômetros da casa da condessa.
– Estávamos todos, a sua tia Isabel inclusive. Foram
dois meses inteiros juntos. Foram meses dos mais felizes,
talvez os últimos verdadeiramente felizes da minha vida,
Pedro Augusto. Você não viu? Ela providenciou tudo, até
duchas. Organizou diversos programas para me entreter.
Jamais esquecerei as recepções e os piqueniques, tais
quais os que organizava no Jardim Botânico do Rio de
Janeiro e tanto nos encantavam. Amei a natureza e o
bosque próximo, tanto que o percorria diariamente a pé
ou em carruagem. À noite, havia música de piano. Foram
vários os concertos e representações teatrais realizados.
Passávamos horas conversando e lendo lado a lado à
frente da lareira. Eu lhe oferecia flores quase todos os dias
e, às vezes, colocava um ramalhete aos pés da porta de
seu quarto. Anotei em meu diário como inesquecível o
292 | Felipe Negreiros

encontro que tivemos em um bosque. As mãos já


carcomidas pela artrite ainda tinham uma mágica ao
toque, nos seus olhos eu via chama, juventude, e eu, ao
pousar a minha mão ainda forte, dei-lhe uma rosa. Lembro
de ter escrito nesta noite:

“A condessa pegou-a e colocou


sobre os joelhos e, sem uma
palavra, pôs a mão sobre a minha,
uma mão pálida, com manchas
escuras, deformadas pelo
reumatismo; mantivemo-nos
calados, não havia mais nada a
dizer naquela quadra da vida”.

– Foi assim o meu amor! Seria essa a cena que


melhor o representou. Lá, sonhei me retirar para um
mosteiro, tal qual Carlos V, o que não fiz. Embora, para nós
dois, esses momentos que acabei de lhe contar, que
terminaram por ser, repito, os últimos de nossas vidas
juntos, foram os mais marcantes.
– Que lindo, vovô!
– A condessa morreu dois meses atrás, como sabe.
Na verdade, desde Cannes, até antes do encontro que
tivemos em seu castelo, Luísa já dava sinais de que a sua
saúde fora tragada pela força do tempo. Ela vinha
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 293

emagrecendo, definhando mesmo a olhos vistos. Dizia aos


filhos que vira cair reis e se extinguir cortes em que
brilhou, como a de Luís Filipe e a de Napoleão III, mas que
o 15 de novembro de 1889, no Brasil, foi demais. Ela não
aceitava que tivesse desaparecido o império do Brasil,
considerava que isso seria um passo atrás para o projeto
civilizatório que o país merecia. Em janeiro deste ano, caiu
em uma caminhada. Quando viram, ardia em febre, pegara
pneumonia. Era inverno e as frentes frias, se ainda se
fazem sentir hoje, em abril, estavam tremendamente
fortes àquela época. Isso fez com que os seus empregados
fieis fizessem de um tudo, para acudi-la: esquentavam
botijas de água quente e mantinham o fogo da chaminé.
Os médicos, ao chegar, declararam que não havia mais o
que fazer. No dia seguinte, seu filho veio ao castelo com os
netos que ela adorava, mas ela só reconheceu o filho. No
momento em que ele entrou em seu quarto e, abraçando-
a, beijou-a, contaram-me que sussurrou em seu ouvido,
pedindo que lhe cantasse La Marjolaine: a história de um
cavaleiro que escolhe uma dama, para casar e, ao final, dá-
lhe o coração. Era a nossa música! – Pedro falava – Quando
morreu, todas as velas do seu castelo estavam acesas,
todos os seus criados foram ao seu quarto, além do seu
filho, da sua nora e dos seus netos. No dia em que soube,
anotei: “Morreu minha amiga, seu mérito só aquilatou a
quem a conheceu como eu.
294 | Felipe Negreiros

Neste instante, Pedro Augusto percebeu uma outra


lágrima escorrendo pela face enrugada do velho, no
entanto ele não estava triste. Era o amor esculpindo-lhe o
rosto, mantendo vivas e jovens as chamas dos seus olhos.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 295

Parte 5
O FIM...
296 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 297

Capítulo 11
CIDADÃO DO MUNDO...

Charcot caminhava de um lado para outro na “Gare


du Nord” ou, ao menos, tentava, encolhido por uma
multidão que parecia ter resolvido viajar no último
instante. O trem chegara, mas nem sinal do passageiro
esperado: havia um caos. Com surpresa, virou-se e viu o
amigo, que, de imediato, abraçou-o. Era mais uma vez
Freud. Tal qual prometera, viera vê-lo neste fim de janeiro
de 1892. Todavia, estava agitado, bem mais que de
costume. Falava lamentando sobre a morte de Pedro e o
quanto lhe impressionou a sua repercussão nos jornais de
todo o mundo.
– Passei um dia inteiro debruçado, vendo
manchetes a seu respeito, muito embora também
reconheça que, pela estampa de estadista que tinha, toda
a repercussão é, por si só, natural – dizia.
298 | Felipe Negreiros

Nesse momento, Charcot informa que esteve na


cabeceira dele até os seus últimos suspiros, há pouco mais
de um mês. Expressava:
– Foi tudo muito triste, realmente, Freud! Pedro era
uma figura singular. O único sábio que conheci. E, veja que
curioso, no dia em que ele morreu, a filha Isabel deu-me os
últimos cadernos de seus diários, já traduzidos para o
francês. Ela quer que faça um texto sobre o que li, um tipo
de crítica sobre a personalidade de seu pai.
– Não me diga! – cortava-lhe, Freud! – Isso é
deveras interessante. Além de ser ele um estudioso
incansável, algo que, para mim, já o credencia muito,
Pedro foi, sem dúvida, um homem singular. Chegou a ler
algo?
– Cheguei, Freud. Li a parte que remonta ao tempo
que o conheci. Mas – falava Charcot – o que poderia
pontuar em termos clínicos, à luz da psicanálise, a respeito
de alguém que, em comum, tinha o fato de nós dois, os
possíveis maiores entendedores da mente humana,
nutrirmos uma admiração enorme por sua pessoa? Eis um
obstáculo difícil de transpor!
– Verdade! – respondia Freud a Charcot.
– Posso considerar que – continuava Charcot –
apontando para um menino que conduziria a bagagem de
Freud –, como médico responsável por assinar o seu
atestado de óbito, Pedro II, ou, como assinava ao final da
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 299

vida, Pedro de Alcântara, ainda viveu, depois da última vez


que você esteve em Paris e nos encontramos em um café,
pouco mais de sete meses. Secamente, posso dizer que ele
morreu de uma pneumonia dupla que lhe atacou o pulmão
esquerdo, no pequeno hotel em que se instalou ao voltar
do castelo da condessa de Barral, o Bedford, localizado na
Rua de l’Arcade, número 17. Mas tirar dados do que ele
pensava e do que ele confessou, como me pediu a sua
única filha ainda viva, vai além. Sei que ele não chegou,
nesse meio tempo, a empreender nenhuma viagem para
fora da França, embora tivesse ido a um balneário na
Normandia entre os meses de junho e julho de 1891, mas,
com a graça de Deus, apresentou-se razoavelmente bem
de saúde em praticamente todos esses últimos sete meses,
conseguindo atualizar o referido diário até quatro dias
antes de falecer, no entanto, como você sabe, essa é uma
constatação fática, apenas isso. Ver nas entrelinhas a sua
personalidade, como quer Sua Alteza, é outra situação. Por
este motivo, não por outro, disse à princesa que o que
farei, por sua insistência, será algo produzido por um
admirador. Não sou isento!
– Você tem razão – dizia Freud – Nunca será algo
que não tenha vícios.
– Pois é – concordava Charcot, registrando, no
momento em que seguiam juntos ao tílburi que os
conduziria ao seu apartamento, lugar em que Freud se
300 | Felipe Negreiros

hospedaria: “Posso dizer-lhe que percebi, ao lê-los, um


homem que, a todo instante, refletiu sobre os destinos do
país em que nasceu”.
Acomodando-se no transporte, Charcot continuava
a falar: – O que fez, sobretudo perto de morrer, fez de uma
maneira livre, pois, pelo que pude ver, àquela quadra da
vida, Pedro II não aceitava mais fazer parte de qualquer
tipo de ato político que o fizesse voltar ao poder, ou
mesmo tecer uma mera crítica ao que lá se instalou, ob-
jetivando se favorecer. Na realidade, ao chegar à Europa,
tornou-se ainda mais distante das coisas mundanas do
cotidiano de uma pessoa comum. O que vi foi alguém
impassível perante os acontecimentos, calando-se diante
de qualquer comentário de cunho mais contestador,
voltado mais à velha rotina de visitar museus, ler, escrever
poemas e se encontrar com intelectuais de seu tempo.
Sabe, Freud, senti que, em seus últimos dias, o nosso
amigo sedimentou ainda mais uma imagem que assumiu,
quando empreendeu as suas famosas viagens.
– Sim! As viagens... – cortava Freud, voltando a
escutar.
Ao que falou Charcot:
– Todas o marcaram muito, pelo que pude
perceber, tanto as que ele realizou pelo interior e pelo
norte do Brasil como as realizadas ao exterior. Vi, naquelas
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 301

páginas entregues a mim por sua amável filha, que foi


nesses momentos que Pedro deu mais aos brasileiros.
Ao dizê-lo, Charcot abriu a porta do tílburi e
conduziu Freud à sua casa. Logo depois de tê-lo
apresentado o seu quarto e acomodado as suas bagagens,
sentaram em um amplo terraço com vista para os Campos
de Marte. Freud, ao sentar, pegara logo um pedaço de pa-
pel. Disse que, enquanto escutava Charcot, ia mostrar-lhe
a sua mais nova perícia: fazer origamis. As dobraduras lhe
davam não só uma paz de espírito, como também
fortaleciam em muito a sua capacidade de manter-se
focado e disciplinado.
Charcot, entusiasmado com as escolhas do amigo e
com o que ele falava, voltou a lhe contar as impressões
que teve, ao ler os diários de Pedro. O médico foi firme, ao
expor que, de fato, tal qual Freud, não se surpreendeu,
não só com a ampla repercussão da mídia sobre a morte
de Pedro, mas também com o que se disse a seu respeito,
quando esteve na Europa, no Oriente Médio e nos Estados
Unidos.
Falava:
– Pedro, Freud, era um homem criterioso em tudo.
Que o digam os seus ídolos. Olhe só, pouco antes de viajar,
ele os descreveu em seus diários, como que querendo
dizer o tipo de gente que ansiava encontrar no primeiro
mundo. Logicamente, logo, para traçar esse seu perfil, quis
302 | Felipe Negreiros

ver quem ele admirava. Fiquei até curioso, muito embora


não devesse!
– Não vejo problema em você ter ficado curioso.
Fez o certo! – dizia Freud, voltando a ouvir o amigo, no
momento em que pegou uma tesoura e fez uma leve
incisão em um guardanapo.
Lentamente, Freud desdobrava o papel e um pavão
eriçou as plumas na sua mão.
Admirado, Charcot continuou: “Pois é! Ao ver a
lista, busquei especialmente olhar o que escreveu sobre
aqueles a quem sempre se referiu, ou, ao menos, aqueles
que nunca me escondeu. Digo isso, pois me recordo de
que, certa feita, Pedro fez uma espécie de jogo comigo.
Conto-lhe: Uma vez, tive, por insistência dele, que lhe dar
dois nomes das pessoas que eu mais admirava em
contraponto às que ele pinçava. Dizia que, ao longo de sua
vida, ele escolheu, como ídolos, pessoas que via como
exemplos de homens, de intelectuais e de políticos que
deveriam espelhar as gerações responsáveis por dar o seu
contributo ao Brasil. Realmente, pelo que li, esses dois
foram também figuras singulares, mas, em que pese os
seus méritos, nenhum deles conseguiu ser mais
reconhecido, para o nosso orgulho, que o próprio Pedro.
– Quem eram esses dois? – perguntava Freud,
colocando o seu novo objeto de decoração sobre uma
mesinha à frente de sua espreguiçadeira.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 303

– O primeiro se chamava Agassiz; não sei se o


conhece. Foi um biólogo mundialmente respeitado, mas
nunca foi um estadista ou uma referência para além da
biologia. Encontrou-se com Pedro II, quando foi
requisitado pelo governo brasileiro, para classificar os pei-
xes do Rio Amazonas: um quase oceano, caudaloso, que se
situa no Norte do Brasil, bem na fronteira entre o Peru e a
Bolívia. Bem, o que vi é que, até antes desse seu trabalho
de classificação de peixes, o próprio Pedro já havia tido a
curiosidade de conhecê-lo por meio dos livros e dos artigos
que publicara. Quando Agassiz esteve com ele
pessoalmente, admirou-se, ao ver quanto Pedro já sabia a
seu respeito. Observei que o que o deixou ainda mais
abismado foi o fato de Pedro ter demonstrado, até com
naturalidade, quanto sabia sobre o desenvolvimento das
suas pesquisas científicas. Pelo que pude perceber do que
li, Pedro adorou Agassiz e o trabalho realizado por ele.
Tanto que ao enaltecer os seus conhecimentos, que não
eram poucos, registrou para as elites brasileiras que o
mesmo não poderia fazer por menos, nem o surpreendia,
pois possuía uma cátedra em Harvard. O currículo dele
impressionou de tal maneira a Pedro, que, quando Agassiz
chegou ao Rio e se apresentou a ele, Pedro logo o levou ao
seu laboratório, a fim de mostrar-lhe um eclipse lunar. Se
Agassiz foi um caso de amor à primeira vista, no
desenvolvimento do trabalho, Pedro encantou-se também
304 | Felipe Negreiros

com um jovem que viera na sua comitiva, de nome William


James. Esse profissional demonstrou quanto era realmente
brilhante, tornando-se também professor de Filosofia na
mesma Universidade de Harvard.
– Pedro dava muito valor à referência dos centros
de ensino – Freud falava.
– Isso mesmo – continuava Charcot: – E ele
considerou esses dois, duas figuras tão relevantes para a
cultura, que Pedro também não perdeu tempo. Olhe só!
Aproveitou-se da estada deles e fez uma grande
conferência, de cujo êxito falava sem parar, repetindo a
respeito da felicidade que sentiu, ao ver a elite restrita e
de pouca cultura de seu país discutindo ciência.
Charcot se preparava para introduzir mais um
personagem:
– Já quanto ao outro personagem, meu caro Freud,
Pedro ressalvou, em seus diários, como sendo o maior
presidente da Argentina de todos os tempos.
– Um dia, gostaria de ir a Argentina – dizia Freud.
– Um desejo que também nutro – falou Charcot,
continuando a sua narrativa sobre a pessoa que, segundo
Pedro II, aos 15 anos, ensinou os camponeses a ler e, aos
vinte, fez do sofrimento da sua vida pobre um ardor, para
que as crianças de seu país não tivessem o mesmo destino.
Tratava-se de um homem de nome Sarmiento. Ele era
autodidata e surpreendeu todos por sua aguçada
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 305

inteligência e se tornou conhecido como o maior expoente


do Romantismo portenho, publicando inúmeros livros, de
cunho político inclusive, como os que trataram do
fenômeno do caudilhismo e como combatê-lo. Pelo que li
– dizia Charcot –, Sarmiento escreveu também um tratado
sobre educação, obra que o tornou conhecido
mundialmente e o levou à política, quando cuidou do
financiamento dos estudos, da educação dos mestres,
transmitiu sua fé e fez da Argentina um exemplo que
Pedro realmente sempre citava nos últimos encontros que
tive com ele. Pedro escreveu que até por ter, no exercício
da presidência, conseguido duplicar o número de escolas,
construindo em torno de 100 bibliotecas, considerava
natural Sarmiento ter conseguido o reconhecimento do
seu povo. Falecido em 1888, diz o diário que ele foi
enterrado no cemitério La Recoleta e o seu túmulo já é
objeto de visitação.
Charcot continuava, atraindo ainda mais a atenção
de Freud:
– De fato, recordo-me, Pedro algumas vezes,
comentou comigo que, na Argentina, via, sim, algo perto
da Europa, um povo mais culto. Dizia sempre que as elites
brasileiras falharam e faltou o pulso e o rigor nas punições
que os argentinos tiveram em matéria de educação.
– Sabe, Freud, para Pedro, os políticos brasileiros,
presos aos interesses locais e ao desejo de enriquecer,
306 | Felipe Negreiros

falsificavam relatórios, viam a educação como mais uma


das suas manias; enquanto isso, professores na miséria,
matagal nas salas de aula, crianças na rua e, para guiá-las,
só os maus exemplos. O curioso é que, de acordo com o
mesmo Pedro, foi realmente com o espírito desses dois
homens que organizou as suas mais comentadas viagens.
– Ou seja – intervinha Freud –, Pedro veio para cá
seguindo os exemplos e as realidades de pessoas que
criaram um diferencial que ele mesmo não conseguiu em
seu país. Parece-me que assim passou-nos a ideia de algo
diferente do que vivenciava no Brasil, no seu dia a dia –
completava.
– Também concluí isso – concordava Charcot – Foi
com tal espírito que veio à Europa e foi ao Oriente e aos
Estados Unidos, muito embora, pelo que pude ler, a
primeira viagem feita pelo Brasil tenha sido igualmente
importante para o seu currículo, pois, antes dele, ninguém
empreendeu tal tarefa.
– Isso é incrível, Charcot! – dizia Freud.
– Sim! – Charcot continuava – Fiquei muito
impressionado. Pelo que li, Pedro começou a visitar as
províncias brasileiras ainda jovem, chegando até ao norte
da Bahia, em uma província de nome indígena: Paraíba.
Aqui para nós, uma breve lida em seus diários escancara a
sua inegável adoração por viajar. Lá, confirma-se que ele
tinha o viés de um andarilho. Possuía uma vontade
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 307

insaciável de conhecer novas pessoas e novos lugares e,


em sua ansiedade, veja só, viajava em correria desabalada,
para o desespero dos acompanhantes.
Charcot ria com tal comentário.
– Ele escreveu sobre todas essas viagens. Está lá
nos seus diários; neles, detalha o lugar em que esteve, a
temperatura, a atitude das pessoas com quem falava e o
assunto das conversas. As viagens feitas pelo Brasil tiveram
um sentido político, já as feitas ao exterior, pelo que vi,
destinavam-se a saciar essa sua fome em conhecer os
países e as pessoas, bem como passar uma impressão do
Brasil até melhor do que a realidade, segundo já
concluímos. Veja bem, Freud, foi logo em 1845, ainda
menino, que Pedro sentiu que ficar limitado à corte não
era o melhor a fazer. Em um primeiro momento vai a São
Paulo. Lá, visita a Faculdade de Direito criada pelo seu pai,
por meio de um decreto de 11 de agosto de 1827,
reconhecendo a instituição que acabaria por gestar os
intelectuais mais marcantes da história política e cultural
do seu reinado. Alguns registrados pelo próprio Pedro,
posteriormente nessas anotações, como Rio Branco, Ouro
Preto ou um escritor, chamado Castro Alves. Depois, sai de
São Paulo e vai ao Rio Grande do Sul com o fim de falar
com a elite local, conceder títulos de nobreza para os que
lutaram até contra o império, mas que, anistiados, eram
importantes para comungar com a coroa o governo do
308 | Felipe Negreiros

país. Foram apenas poucos anos de Governo e já se


encontrou com um líder gaúcho de nome Bento
Gonçalves. Em sua casa, Pedro dançou bailes e ouviu dos
seus partidários, como um novo amigo íntimo, que nunca
mais sacariam uma arma contra um irmão brasileiro.
Falavam isso de um modo que tanto Pedro como a sua
esposa estranharam, geralmente erguendo a arma e a
apontando em direção ao Uruguai e à Argentina.
– Chamou a minha atenção também a passagem de
Pedro por uma outra província do Sul, de nome Santa
Catarina. Lá, Pedro visitou escolas, elogiando o colégio dos
jesuítas espanhóis e os seus alunos da classe de latim; e,
em um beija-mão, conheceu um frei, João de São
Boaventura, que ao deixar Portugal em 1834, trouxera em
sua bagagem uma relíquia. A segunda edição de “Os
lusíadas”. Esse frei deu a Pedro este livro, onde se lê
escrito pela mão do próprio Camões: “Luís de Camões seu
dono”.
Freud se entretinha com Charcot, que continuava:
“em 1847 e 1848, visitou o interior do Rio de Janeiro e o
Vale do Paraíba, sendo hospedado com o luxo e a
ostentação que sacramentavam o café como o produto
nacional brasileiro do século XIX. Já em 1859, vi que foi a
vez do Norte, e, aí, é interessante observar, Freud, que o
Brasil se dividia como a Itália hoje. Norte, da Bahia para
cima, e Sul, da Bahia para baixo. Foram 4 meses de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 309

andanças do Espírito Santo à dita Paraíba. Sua comitiva


sempre era seguida por camaristas, padres, um médico e o
seu mordomo, todos pagos por sua dotação, mesmo sendo
uma viagem oficial de um chefe de Estado”.
– Isto é um ponto digno de registro – intervinha
Freud.
– Também achei – respondia Charcot – Na viagem
ao Norte, quem comandava a esquadra imperial era um
marquês de uma localidade chamada Tamandaré. A
chegada à Bahia, pelo que li pelos jornais do dia
encartados às suas anotações, foi triunfal. A cidade toda
enfeitada de bandeiras e meninos jogando flores,
enquanto a comitiva passava. Houve discursos, leituras de
poemas, banquetes e muito entusiasmo! E Pedro, veja só,
não fugiu dos seus hábitos, livre das solenidades, visitava
freneticamente igrejas, hospitais, fábricas, cemitérios,
escolas.
– Imagino – intervinha novamente Freud.
Ao que Charcot continuava:
– Na Faculdade de Medicina, assistiu aulas, indagou
lentes. No teatro foi aplaudido por 15 minutos, embora,
em seu diário, ainda nem conhecido do público, por sorte
sua, tenha sido exigente, ao anotar que a orquestra era
ruim e que não vira nenhuma senhora com um rosto, ao
menos, interessante. Aqui para nós, quero ver o que vão
comentar quando souberem dos juízos de Pedro a respeito
310 | Felipe Negreiros

da beleza das baianas – dizia, rindo, Charcot – Ademais,


pelo que li também, em um Município chamado Paulo
Afonso, quiseram erguer uma estátua sua, para registrar a
sua visita, mas ele sugeriu que se gastasse o dinheiro em
um fim mais útil, como, por exemplo, melhorar o acesso ao
local, cheio de buracos. A visita ao Norte também passou,
como disse, por uma província chamada Paraíba. A elite
local ajudou o presidente dessa província a preparar com
luxo e esmero o Palácio da Redenção, a sede do Governo.
Segundo relatos anotados pelo próprio Pedro, tal
localidade “nunca sentira antes, nem sentiria depois, maior
momento de apoteose”. Foram 6.000 pessoas da Guarda
Nacional enfileiradas no Varadouro, Rua da Areia, Ladeira
das Pedras. Lá, o imperador nobilizou pessoas: dois barões,
Mamanguape e Abiaí, um visconde, Diogo Velho
Cavalcanti; uma pessoa que chegou até a integrar o
Conselho de Estado, órgão mais importante da
administração do império. Vi, por fim, que estando nessa
província, algumas cenas hilárias foram marcantes para
ele. Em uma ocasião, Pedro diz, em um terraço, olhando o
horizonte, que a atmosfera está carregada; um influente
personagem da época fala: “Vossa Majestade não viu
nada: no ano passado o carrego foi grande, era cada
‘atmosferão’ deste tamanho”. Outra cena igualmente
hilária tratada no diário é a de quando ofereceram um
queijo de manteiga à imperatriz, sempre tão tímida. Para
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 311

não ser indelicada, diz que aceita uma naquinha, ao que o


ofertante responde: “Não! Vossa Majestade vai comer
uma nacona”. Esse périplo terminou em Recife, uma outra
cidade importante do Norte, capital da província de
Pernambuco, que ele achou poeirenta, mas altiva. Tanto
que decidiu por se demorar lá, chegando a ser recep-
cionado com um baile para 2.000 pessoas. O fato, meu
caro Freud, é que pelo que eu li, fazia só 10 anos que essa
referida província de Pernambuco se rebelara, e Pedro
queria se certificar de que ela estava em paz e integrada
ao comando da corte. Foi nessa ocasião que ele visitou a
dita localidade de Tamandaré, local em que o irmão do
citado almirante Joaquim Marques Lisboa, que comandou
essa excursão, morrera, na defesa do país. Foi nessa hora
que ele fez do dito almirante, marquês. Pude ver, ao ler os
seus diários, que Tamandaré ficou até tão grato, que foi
um dos poucos que visitou Pedro no exilio, sendo-lhe
sempre fiel.
– Tinha sensibilidade política, tal qual o avô –
intervinha novamente Freud.
– Percebi isso – cortava Charcot, que continuava
falando:
– Por último, e ainda em Recife, vi que ele fez
questão de conversar com o historiador Muniz Tavares, um
cônego que escreveu sobre a revolta pernambucana.
Então, a fim de prestigiar os brios desses mesmos
312 | Felipe Negreiros

pernambucanos, visitou o local em que se travou uma


batalha chamada Guararapes. Foi nela, pelo que pude ver,
que se expulsou, de vez, uma invasão de holandeses na
região, que foi, como sabemos, de colonização portuguesa.
No mais, registrei também que ele, ao voltar ao Rio de
Janeiro, testemunhou um fato extremamente curioso: ao
meio do caminho, recebeu em sua embarcação o primo,
Maximiliano da Áustria, que, por decisão de Napoleão III,
estava indo assumir o trono do México. Pedro o achou
arrogante, sentimento que nutriu por todos os seus
parentes por parte da família de sua mãe. Falava que
Maximiliano recebeu com desdém os seus conselhos. O
fato é que o Brasil não achou surpresa a revolta que se
seguiu à chegada desse primo, nem muito menos a sua
morte, fuzilado por revoltosos.
– Você leu sobre outra viagem que fez ao Brasil? –
perguntava Freud.
– Vi que, depois do Norte, Pedro foi à província de
Minas. Essa visita teve de diferente o fato de o monarca
ter levado consigo alguns representantes da imprensa,
como o Jornal do Comércio, Revista Ilustrada, Gazeta de
Notícias. Vi também o fato de Pedro ter feito questão de
citar em seus diários ter conhecido a neta de uma senhora
chamada Maria Doroteia Joaquina de Seixas. Ou, como
Pedro registrou, a “famosa” Marília de Dirceu. Pelo que li,
a musa de um revolucionário, Tomás Antônio Gonzaga. Vi
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 313

que Pedro aí uniu à obrigação de se mostrar junto do povo


com o contato com a cultura do seu país, tanto
prestigiando as obras mais importantes como agraciando
aqueles artistas que, para ele, eram os mais relevantes. Foi
nessa viagem que Pedro não só se apaixonou pelas igrejas
barrocas como também se entusiasmou com a escola de
minérios que abriu. Ouviu ainda uma exposição sobre as
impressionantes reservas de ferro e sobre a capacidade de
o Brasil abastecer o mundo com elas. E foi essa a parte do
diário, Freud, que me chamou ainda mais a atenção, pois
foi aí que Pedro começou a narrar as suas viagens ao
exterior.
O entusiasmo se podia sentir na voz de Charcot:
– No Brasil, veja só, Pedro era o monarca. Aqui na
Europa, ele era outra pessoa. Era o Pedro de Alcântara, o
Pedro cidadão. Percebi, quando passei para essa parte,
que ele assumia uma outra personalidade, quando vinha
ao primeiro mundo. Ganhava até mais vida como se
tivesse recebido uma carga de vitalidade incrível com o
simples fato de sair do Brasil.
– Faz sentido – dizia Freud, testemunhando ter sido
nas viagens ao exterior que Pedro o encantou e encantou a
todas as pessoas que conhecia, mostrando-se como um
democrata apaixonado por uma ideia de República no
sentido mais literal que esse termo podia expressar.
314 | Felipe Negreiros

– Verdade! – concordava Charcot. Pude ler em seus


diários quanto ele conhecia o peso dos países europeus na
formação do Brasil, tanto que sempre fez questão de
registrar, com orgulho, os brasileiros brilhantes cujos
estudos na Europa subvencionou. Gonçalves Dias foi um,
Carlos Gomes, autor de “O Guarani”, foi outro, entretanto,
como tudo em sua vida, foi penosa a licença dada pelo
Senado para a primeira sonhada viagem ao exterior. Veja
só, antes, já tinha permitido até que a sua filha Isabel
fosse, com Gastão. Ficaram em Londres, no solar em que
os Orléans estavam instalados, por 6 meses. Vi que foi por
meio dessa viagem de Isabel que Pedro soube do cerco de
Paris e de outra notícia bem triste, o falecimento de sua
filha Leopoldina, que, instalada na corte de Viena,
contraíra febre tifoide.
– Minha nossa! Isso deve ter sido um choque para
ele e para Dona Teresa – interrompeu Freud, no momento
em que colocou uma xícara de café em seu colo.
– E foi mesmo. Como Isabel estava na Europa, ela
ainda chegou a tempo à Áustria, para ver a irmã dando os
últimos suspiros, mas Pedro e Teresa só souberam dos
fatos. Li que a sua filha mais nova adoecera no início de
1871 e a irmã, ao chegar, já a viu recolhida no leito sem
sequer abrir os olhos, apenas conseguindo balbuciar
algumas palavras em português. Pedro anotou que com o
seu falecimento o seu corpo foi levado de Coburgo à Viena,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 315

tendo a corte austríaca declarado luto por dezesseis dias e


o próprio imperador Francisco José comparecido à câmara-
ardente no palácio para prestar homenagens à princesa
brasileira. Vários membros da aristocracia brasileira
também se fizeram presentes nessas homenagens e todos
comentavam que, diferente da mãe que saiu da Áustria
para morrer no Rio de Janeiro, a princesa fizera o trajeto
contrário. Todos diziam parecer isso um ciclo que se
fechava. Ao final, registrou-se que o corpo da filha de
Pedro seguiu de volta até Coburgo, indo para a Igreja de
Santo Agostinho.
– Vi também no diário, Freud, que, com a morte da
filha, não teve o Senado como impedir a viagem do
imperador, que queria, além do mais, ir resgatar os filhos
que Leopoldina deixou.
– E, como sabemos, essa viagem, que acabou
acontecendo por um motivo trágico, fora sonhada por
Pedro e planejada meticulosamente. Comentou-se, na
ocasião, que meses antes, o imperador se transformara em
um prazeroso turista: folheava monografias e catálogos de
museus, estudava os anuários das estradas de ferro,
anotava tudo, desde o “não perder o Rubens na sacristia”
até o tipo de hotéis onde ficaria hospedado. Pedro fez
questão de comunicar a todos os governos da Europa que
viajaria anonimamente, se possível, ou, pelo menos, alheio
a qualquer protocolo oficial. Tanto assim que, durante a
316 | Felipe Negreiros

sua primeira estada na Europa, recusara jantares de gala,


corneteiros e trens especiais. Essas atitudes irritavam os
primos, seduziam a imprensa e deixavam em pânico os
serviços secretos dos países em que passou, pois o impe-
rador não fazia uso de qualquer escolta. Vi que a condessa
de Barral o acompanhou nessa viagem e, como se disse,
criticava demais essa maneira despojada com que Pedro
conduzia os negócios de Estado. Pedro respondia do prazer
que sentia, quando, andando como qualquer mortal,
pasmava as pessoas, ao dizer, quando perguntado quem
era, ou o que fazia: “Sou Pedro, o imperador do Brasil”.
O relato sobre o que encontrara nos diários
continuava:
– Essa sua primeira ida à Europa durou 10 meses,
entre 1871 e 1872. Ao chegar a Portugal, recusou logo o
caráter oficial que o governo quis dar à viagem; aceitou
ficar em quarentena como os demais passageiros por
causa da febre amarela. Além disso, tendo sido visitado
por todos no lazareto onde a quarentena era cumprida,
incluindo aí o rei e a rainha de Portugal, seus sobrinhos, a
visita que mais o marcou foi a do escritor Alexandre
Herculano, que, à época, vivia totalmente recluso em uma
quinta, onde produzia azeite. Deliciaram-se com a
narrativa de um romance que o impressionara, “A
Abóbada”, onde se conta a epopeia da construção do
Mosteiro de Batalha. Ainda em Lisboa, visitou a sua
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 317

madrasta, Amélia, e os túmulos de sua irmã, Maria II, e do


seu pai, o rei D. Pedro IV, em São Vicente de Fora. Por fim,
encontrou-se com o seu cunhado, viúvo de sua irmã, D.
Maria II, e também com Camilo Castelo Branco, no Porto,
causando sensação, quando se misturou com o povo na
Praça da Figueira: comprou maçãs das vendedoras
estacionadas ao largo dos bancos, conversou e discutiu
animadamente preços com os demais feirantes. De lá
partiu para a Bélgica, onde não conseguiu se furtar de ter
uma reunião oficial com o rei Leopoldo II; já na Alemanha,
evitou Bismarck, só o recebendo, assim como ao kaiser, de
uma maneira não protocolar, prestigiando apenas Wagner.
A história era tão longa quanto a própria viagem:
– Vieram depois a Espanha, a França, a Inglaterra, a
Áustria, a Itália, o Egito, Grécia, Suíça e novamente a
França, seguindo todo um roteiro traçado, entre outros,
por Gobineau, um intelectual francês que acabou sendo o
nosso diplomata no Rio de Janeiro, e foi um dos
estrangeiros que mais falou a respeito de nosso amigo,
admirando-o até a sua morte. Pedro, por seu lado,
considerava Gobineau um pensador perdido, cujos livros
ninguém lia e cujas ideias racistas, para além de tudo,
incomodavam-no terrivelmente, contudo, mesmo a
contragosto, conviveu com ele, confessando-lhe que,
apesar de discordar de suas ideias, apreciava a sua
erudição.
318 | Felipe Negreiros

– Então, Pedro era um homem apaixonado pela


inteligência e aceitava até certos deslizes morais, quando
feitos por homens dotados de saber – concluía Freud.
– Sim! É verdade – Charcot concordava – Gobineau
foi quem o recebeu na fronteira entre a Espanha e a
França, como o representante oficial do meu governo.
Pedro, sem parar na França, passando pela Espanha,
encontrou-se com o rei Amadeu. Em Roma, tentou
reconciliar o Papa Pio IX com o rei da Itália, fazendo
questão também de se encontrar, em Perugia, com o
Cardeal Pecci, hoje Papa Leão XIII. E, como Paris ainda
estava ocupada por tropas do império alemão, evitou a
capital rumando pelo interior. Pelo que li, Barral se
correspondeu com vários personagens do mundo cultural,
e as visitas aos intelectuais daqui da França foram o objeto
central de Pedro na Europa, sempre se apresentando
como um cidadão comum, um turista qualquer. Li que só
aceitou ser recebido oficialmente pela rainha Vitória, na
Inglaterra, visitando-a, de maneira muito particular, em
Windsor, até pela gentileza da rainha ter-lhe colocado à
disposição o navio que lhe permitiu atravessar o Canal da
Mancha. Em Windsor visitou as galerias de pintura do
castelo, coroando um encontro que Vitória fez questão de
retribuir, indo também lhe ver com duas de suas damas de
companhia no hotel Claridge. Ocasião em que lhe entregou
a Ordem da Jarreteira. Uma homenagem que não
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 319

intimidou o seu ímpeto de perambular pelas ruas londrinas


como mais um dos seus inúmeros turistas.
Li nos diários Freud que em Londres, Pedro passeou
no Hyde Park. Visitou o Museu de Cera de Madame
Tussauds, a National Gallery e o British Museum. Na Royal
Academy assistiu Schliemann divulgar as suas descobertas.
Já na Real Sociedade Geográfica, de quem era membro
honorário, conheceu o Observatório Real. Jornais
divulgaram que muitos nobres e aristocratas reuniam-se
com o imperador nas noites em que ele recebia visitas no
hotel e que entre os presentes não era raro encontrar os
príncipes de Gales. Por fim, Pedro foi a vários bairros e
subiu a Torre de Londres, lamentando só não ter se
encontrado com Charles Darwin, por este não estar na
Inglaterra, no momento.
– Pedro – continuava Charcot – foi também
recebido, embora de uma maneira não protocolar, pelo
seu primo Francisco José, na Áustria. Vi que, apesar dessa
frustração de não ter conseguido falar com Darwin,
encontrou-se com Wagner, na Alemanha, e com Manzoni,
na Itália, ganhando deste uma versão da célebre obra do
seu avô, Beccaria, de nome: “Dos Delitos e das Penas”.
– Já dentre os pontos curiosos que colhi, está o
escândalo que gerou, ao visitar a sinagoga Upper Berkley
Street em Londres e ter assistido a uma cerimônia e
discutido com os rabinos os textos hebraicos,
320 | Felipe Negreiros

surpreendendo a todos pelo seu conhecimento desses


mesmos textos e da língua.
– Ao final, quando chegou a Paris, hospedou-se no
luxuoso Grande Hotel. Embora, repito, apesar da crítica
pelo dispêndio com a hospedagem, tenha ficado claro em
seu diário que foi em Paris que Pedro alcançou mais êxito.
– Sempre de preto e sem condecorações, andando
devagar pelas ruas, convenceu o nosso grande público. Ele
aproveitou a visita para ver, todos os dias, a condessa de
Barral e o seu filho, Dominique; encontrou-se com Pasteur
e brilhou nas recepções que lhe foram oferecidas em
Versalhes.
– Sim! – Charcot seguia – Pedro foi recebido por
Thiers nos degraus de acesso do Petit Trianon.
– Esse presidente francês e o imperador andaram
pelo palácio conversando por mais de uma hora.
– O nosso chefe do governo disse ter ficado
encantado e por isso o convidou para jantar dois dias
depois, tendo ido esperá-lo na própria estação de trem,
aproveitando para conversar com ele durante todo o
percurso.
– Nesse segundo jantar do Petit Trianon, fazia parte
da comitiva do imperador, a sua irmã, Francisca, com o seu
marido, Joinville, que tiveram ocasião de rememorar as
recepções dadas ali, antes da Revolução de 1848.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 321

– Li também no diário Freud que o imperador ainda


voltou mais algumas vezes a Versalhes para uma sessão da
Assembleia Nacional, quando estava sendo votado o
retorno ou não do governo para Paris.
– Por fim, Thiers jantou mais uma vez com Pedro no
Grande Hotel, sempre deixando claro para a imprensa o
quanto tinha ficado impressionado com a inteligência do
imperador do Brasil.
– A imprensa, aliás, depois desse testemunho do
presidente da França deu ainda mais atenção a Pedro,
registrando que no Natal de 1871, tanto ele como a
imperatriz assistiram à missa do galo na Madeleine e
cearam no hotel com membros da colônia brasileira.
– Já para as comemorações do final do ano os dois
participaram de festividades no Castelo de Chantilly,
organizadas pelo duque d’Aumale, um outro filho do rei
Luís Filipe.
– Ademais, os Braganças e os Orléans marcaram
também Paris com o maior evento social da temporada, o
casamento do príncipe Czartoryski com a princesa
Margarida, uma irmã do conde d’Eu.
– Vi que o próprio Pedro conduziu a noiva até o
altar, seguido pela imperatriz Dona Teresa Cristina que
entrou com o noivo.
– Chamou ainda a minha atenção – continuava
Charcot – o quanto a fascinação de Pedro por Victor Hugo,
322 | Felipe Negreiros

que, infelizmente, não pôde encontrar, valia-lhe


admiradores, tanto de monarquistas como de
republicanos.
– Pedro chegou a convidar Pasteur, para vir ao
Brasil estudar a febre amarela e a subvencionar o seu
Instituto, o prestigiado Instituto Pasteur.
– Já perto de terminar a última etapa dessa sua
viagem à Europa, Pedro foi eleito membro do Instituto da
França.
– Por fim, na escala por Portugal, ainda se
encontrou mais uma vez com Camilo Castelo Branco,
voltando, como dito, em março de 1872.
– Pelo que li também, seu retorno ao Brasil não
significou mais do que meramente uma volta para planejar
a sua segunda ida à Europa, desta vez, passando pelos
Estados Unidos, país que o fascinava desde a década de
1850, quando se encontrou com um pastor de nome James
Fletcher, no Brasil.
Charcot já emendava uma viagem à outra:
– Esse pastor chegou em uma missão evangélica,
em 1851, permanecendo no Brasil até 1865, onde acabou
sendo o representante diplomático norte-americano lá.
Formado pela Universidade de Brown, ele foi o primeiro
dos americanos a escrever uma obra sobre o Brasil e os
brasileiros, cujo título representava exatamente o objeto
de sua pesquisa: o país e os seus habitantes. Vivendo o
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 323

período áureo do império, popular e gozando o país de boa


estabilidade política e econômica, Fletcher nunca poupou
elogios a Pedro, reverenciando a sua tolerância religiosa e
a sua bondade para com a população. Depois, ao se fixar
em Harvard, Fletcher conheceu Agassiz e Longfellow, dois
que já se correspondiam com Pedro e já faziam parte do
seleto grupo de intelectuais, considerados como os mais
respeitados da América. Desses dois, Agassiz foi o único
que Pedro não viu na sua viagem pela América do Norte,
pois ele morrera meses antes, em 1873. Já Longfellow, ele
não só viu, como também traduziu um dos seus poemas e
o convidou, para verter “Os Lusíadas” para o inglês.
Isso era motivo de grande satisfação para Pedro e
ocorre, desde a viagem iniciada em 1876, em um
momento em que ele não esconde a ninguém o quanto já
estava enfastiado e irritado com a realidade política
nacional.
– Na verdade – continuava Charcot –, vi
nitidamente em seus diários que, a essa altura, Pedro já
estava mais e mais distante dos rituais e da cultura
brasileira. Em maio, parte com a missão de abrir a
Exposição Universal da Filadélfia e levar a imperatriz às
águas de Gastein para um tratamento. No mais, vi também
que essa viagem foi tão meticulosamente planejada como
a outra, incluindo, em doses equilibradas, Estados Unidos,
Canadá, um pouco da Ásia, parte da África, Europa, com
324 | Felipe Negreiros

retorno à Alemanha, Bélgica, Portugal, França e Grécia, e


ida à Dinamarca, Suécia, Noruega, Rússia e Turquia.
– O Senado lhe concedeu uma licença de um ano e
meio e, autorizado, embarcou em um navio americano,
fazendo questão de afirmar, desde o dia do embarque, que
o imperador ficava no Brasil e, a partir daí, seria apenas um
cidadão brasileiro.
– Tanto como a outra, essa viagem também foi
muito aguardada pelas autoridades dos países que seriam
visitados. Quanto aos Estados Unidos, as expectativas
eram ainda mais evidentes, pois seria a primeira vez que
um líder estrangeiro visitaria a América do Norte em uma
missão oficial, e isso representou muito, até porque os
EUA foram a primeira Nação que reconheceu a
independência do Brasil. Ademais, não era um monarca
qualquer que os visitava, mas “The only American
Monarch”, o único monarca americano, chegando
justamente no ano do primeiro centenário da
independência daquele país. Daí a naturalidade da
repercussão; todos os jornais se dividiam em exaltar o lado
cosmopolita de Pedro e destacar a singularidade de um
império tropical. O “New York Herald”, por exemplo,
colocou um repórter ao lado de Pedro a todo instante. Seu
nome era James O’Kelly, que chegou ao Rio no início de
1876 e se encantou com a simplicidade do palácio, com a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 325

mencionada falta de cerimonial, mas não deixou de falar


de como o impactou a figura imponente de Pedro.
Para o mundo, o Brasil era o que havia de mais
europeu nas Américas. Um país governado pelo neto do
imperador da Áustria, que teve a sua independência, em
que pese alguns conflitos, especialmente na Bahia, por
meio de uma singular articulação dinástica em que tanto a
colônia como a sua metrópole, ficaram sob a tutela de
uma das Casas Reais mais antigas do mundo: a Casa dos
Bragança. Isso, para o olhar de um jornalista norte-
americano, fazia do Brasil um país diferente de qualquer
outro do Novo Mundo, até por inicialmente, segundo já se
ensinava nas escolas dos EUA, não ter desejado romper
com a sua Pátria mãe, mas criar uma união de países, com
um exército, moeda e comércio comum, bem como uma
corte itinerante.
– Entre Pedro e O’Kelly, durante a viagem, iniciou-
se uma relação de profunda amizade e confiança. O
periódico passou a destacar todos os dias o itinerário da
viagem, encantando-se com o imperador do Brasil. Exigia
desfiles, uma recepção à altura da Nação irmã e um
feriado nacional com a presença do presidente Grant à
chegada. O que vi foi que o navio americano fez uma
rápida parada em Belém e lá o jornalista testemunhou
uma multidão saudando Pedro que passava pelo meio do
povo sem seguranças. Era uma festa! As casas enfeitadas
326 | Felipe Negreiros

e, segundo O’Kelly, o mais incrível, um verdadeiro mosaico


humano de raças e cores. No navio, ele se deixava dominar
por Pedro de Alcântara, via que ele conversava com todos
e ria muito, pouco se incomodando com uma queda que
levou de uma cadeira. O jornalista notava que, no trajeto,
Pedro não perdia o hábito de estudar: lia Shakespeare e
queria insistentemente traduzir o hino americano, o “Star-
Spangled Banner” –, cuja letra na sua integralidade
nenhum americano, a bordo, sabia, algo que só veio a
acontecer, quando um turista embarcou na referida escala
de Belém.
– Todos se deslumbravam com a simplicidade
republicana do casal imperial, totalmente diferente de um
príncipe inglês, por exemplo, que sequer cumprimentaria
alguém.
– Gargalhavam, dizendo que, com seu jeito de ser,
o imperador do Brasil fazia dos republicanos americanos
seus mais leais súditos. Contavam que essa sede por saber
e conhecer fazia de Pedro um legítimo ianque.
Charcot não se cansava de contar o que lera nos
diários de Pedro:
– Em síntese, a viagem foi um sucesso, Freud, mas
não só isso, está repleta de episódios memoráveis, como o
de que, ao ser recebido com as pompas que não queria
pelo secretário de estado, o embaixador de Portugal e o
cônsul do Brasil, Pedro repetia, mais uma vez, que o
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 327

imperador ficara no Brasil, e lá, ele era Pedro, Pedro de


Alcântara. Recebendo o telegrama do presidente Grant,
que abria simbolicamente as portas dos Estados Unidos,
dispensou a corveta que vinha recebê-lo com a comissão
de notáveis e continuou no seu navio até o destino final,
como mero passageiro. Vejo que foi por isso, por esse jeito
de ser, que o “Herald”, dias após a morte de Pedro, falava
dessa viagem:

“Foi amor à primeira vista... ele estava no


porto, como um turista qualquer... e o que
particularmente nos conquistou foi o
tratamento que deu aos figurões que
foram recebê-lo, eles tinham ido receber
um rei e ele quebrou a pose desses
homens de um modo magnífico e olha que
essas pessoas esnobaram a nós que
também fomos e fomos tratados como
iguais”.

– Li, nos diários, que os jornalistas foram esnobados


e proibidos de fazer parte da recepção de gala, com oito
carruagens estacionadas na Rua 23. D. Pedro recusou tudo,
foi, com a imperatriz para o hotel em um carro de aluguel
como um cidadão comum, deixando-se fotografar, cercado
de repórteres que, devido à presença das autoridades
republicanas norte-americanas, encontraram tantas
dificuldades para se aproximarem do rei. Pedro foi cortês,
pois era naturalmente um grande homem, diziam os
328 | Felipe Negreiros

jornalistas. À noite, no teatro, foi ovacionado pela plateia.


Ouviu o hino brasileiro ser tocado no quarto ato. Além
disso, fez-se notar, quando pagou a entrada como um
“legítimo americano”. De madrugada, o imperador visitou
as oficinas do “Herald” e, logo ao amanhecer, cumpriu as
tradicionais visitas a escolas, museus e sinagogas que
exauriam seus acompanhantes. Foi ainda em Nova York
que se encontrou com Theodore Roosevelt. Em abril
deixou a imperatriz naquela cidade e rumou para São
Francisco. Recusou o trem especial que lhe ofereceram e
embarcou em um carro Pullman, sendo ciceroneado na
ocasião, pelo próprio George Pullman, fundador e dono da
companhia de trens. A travessia mais pareceu uma
epopeia: passou pelo meio oeste, parando rápido em
algumas cidades e pontos de interesse, como as
Montanhas Rochosas e os Grandes Lagos. Chicago o
fascinou, e, em Salt Lake, foi ao tabernáculo mórmon e
assistiu ao culto, presidido pelo próprio Brigham Young,
chegando ao final do mês a São Francisco. Lá assistiu ao
“Rei Lear” e visitou a Sinagoga, encontrando-se com o
responsável pelo seu genizah, mostrando saber que o
Talmude proíbe que qualquer escrito que contenha o
nome de Deus seja descartado. Ao cabo de 4 dias, voltou à
costa leste, passando pelas usinas de aço de Pittsburgh.
Toda a imprensa, ao final, dizia que o nosso hóspede era
um republicano e americano também, um autêntico
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 329

imperador na terra em que muitos se acham imperiais, e


demonstrou conhecer mais os EUA que 2/3 de seus
congressistas.
– Em maio, foi à Filadélfia abrir a exposição
universal, onde Pedro mostrou-se como um monarca. Era
a única autoridade estrangeira e foi muito aplaudido. A
feira realizou-se no dia 10 de maio, às dez horas, sendo ele
um dos primeiros a entrar no recinto em uma visita, o que
foi realmente, no mínimo, paradoxal, pois, na ocasião,
comemoravam-se cem anos de independência e cem anos
de República. A importância da data não o intimidou:
portou-se a todo o instante como um dos cientistas mais
interessados, encontrando-se até com Thomas Edison.
O fato é que Pedro sempre foi um admirador da
história dos EUA, e durante a sua estada lá, com o fim de
participar da feira internacional, conseguiu demonstrar
essa sua admiração. Não foram poucas as conversas com
as mais altas autoridades em que, ao falar sobre a
independência do Brasil e a respeito do seu primeiro tutor,
José Bonifácio, disse que o mundo deveria olhar mais para
a fundação dos EUA do que para o que se passou na França
entre os anos de 1790 e 1800. Para Pedro, no mundo, foi
Bonifácio quem enxergou isso muito bem, tanto que, de
acordo com ele, Bonifácio foi o homem que, por conhecer
tão profundamente o que ocorreu nos EUA, mais resumiu
as qualidades de todos os fundadores da Nação americana.
330 | Felipe Negreiros

– Pedro abriu a exposição com o presidente Grant,


acionando um mecanismo que ligava 8.000 máquinas. O
representante inglês ofereceu-lhe um banquete e ele, na
ocasião, ganhou aplausos e mais aplausos, saindo de braço
dado com o General Sherman. De Washington, Pedro foi
ao Canadá, passando por Niagara Falls. Visitou Montreal e
Toronto, voltando por Boston, indo ainda a Harvard e
Westpoint. Ao final, já tendo retornado mais uma vez à
exposição e realizado o célebre encontro com Graham Bell,
Pedro foi homenageado nas academias de ciência:
disseram-lhe que, em pouco mais de três meses, ninguém
se tornara menos estrangeiro e mais amigo do povo
americano. E esse amor, pelo que li, Freud, continuou em
cenas curiosas, como a de lançarem Pedro para
presidente, com o filho do ex-presidente Adams como vice.
Diziam que queriam algo fora do comum. Esse amor, para
mim, concretizou-se no editorial do “New York Times”, no
dia que se seguiu à proclamação da República no Brasil,
que eu mesmo guardei em um álbum onde coleciono
notícias que entendo como marcantes.
– Verdade? Que dizia esse editorial? – perguntava
Freud.
– Deixe-me lhe mostrar, tenho aqui em minha
estante, veja!

“Com uma ou duas exceções, Pedro II tem


uma reputação maior do que a de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 331

qualquer monarca vivo, seu


desprendimento ao poder, praticamente
atraente para um público republicano,
nenhum monarca teve mais do que ele, e
talvez nenhum tenha nascido, para
governar com tão pouca satisfação na
pompa e na circunstância da realeza”.

– Pois é! Depois desse sucesso nos EUA, ele foi,


Freud, à Europa, visitando a Rússia, a Terra Santa, a
Escandinávia e a Grécia. Partiram em julho. Esteve em São
Petersburgo e Moscou, onde visitou o Kremlin, indo, como
sempre de maneira corrida a institutos, feiras, palácios e
museus. Pedro até registrou ter achado Moscou a mais
bela cidade que conhecera até então.
– Li também que foram ao Teatro Bolshoi como
convidados de honra de príncipes italianos e assistiram à
apresentação da ópera “A Sonâmbula”, de Vincenzo
Bellini.
– Depois, em Bruxelas, encontrou-se comigo.
Cheguei a atender a imperatriz. Nessa viagem, ele esteve
também com Pedro Américo, em Florença, e Carlos
Gomes, em Milão. Já na Grécia, ao lado da condessa de
Barral, fez vários passeios românticos, assistindo, repetidas
vezes, ao pôr do Sol no Panteon.
– Depois ficou dois meses aqui em Paris,
participando de uma sessão na Academia Francesa,
presidida, na ocasião, por Dumas Filho.
332 | Felipe Negreiros

– Pedro II marcou mais uma vez, fortemente, a sua


presença na França, com a sua atitude democrática, seja
pelas frases de efeito que pronunciou, seja pelos
encontros com os principais intelectuais franceses como
Renan, Pasteur e Victor Hugo. Pedro foi ainda eleito
membro da Academia de Ciências de Paris, cuja honra
igual só tiveram Pedro, o Grande, e Napoleão. Por fim, foi
ao encontro do mesmo Victor Hugo, realizando um sonho
que gerou comentários, justamente pelo fato de ter aberto
mão do protocolo e ter ido bater humildemente à sua
porta. Não está no diário, mas sei que, ao ser introduzido
pela filha do escritor, Jeanne, como a Majestade do Brasil,
teria afirmado: “Minha filha, aqui existe apenas uma
Majestade, Victor Hugo”. Soube até que conversaram
demoradamente e foi de Pedro a iniciativa de pedir a ele
uma foto, oferecendo-lhe a sua. Ao que Victor Hugo disse-
lhe: “Vós sois um grande cidadão, sois o neto de Marco
Aurélio”.
Mudando um pouco o tom, Charcot completou:
– E assim foi, Freud... Pedro discorria sobre o Brasil
com cientistas e com reis, mostrou ao mundo a grandeza
do país, falava do Gabinete responsável, um instituto de
cegos, e sobre insignes poetas, todavia, sempre triste, via
que, ao final, o Brasil não chegava à Europa. Percebi que
era como se ele fosse tornando-se um europeu, mas não o
seu país. Daí ele dizer que, na verdade, não proclamaram a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 333

República, ele apenas abdicou, pois não se via mais como


um brasileiro, alguém capaz de se envolver nas miudezas
do cotidiano do seu país.
– Pelo que disse sobre o que leu, Charcot, apreendo
isso também de sua personalidade – sinalizava em tom
sério, Freud.
– Pois é! – concordava Charcot, falando: – É nessa
época que ele resolve investir mais e mais na imagem do
Brasil no exterior em seus diários. Olhe só o que disse:
“Durante minhas viagens, não tive tempo senão para
tornar mais conhecido o Brasil e travar relações pessoais
que já têm sido úteis. Se procurei mostrar aí o que já se
sabia, foi para que se visse que, no Brasil, também se
estuda ainda mais em condições que não as minhas...”.
– E veja que ele investia nisso também dentro do
seu país, levando para lá o que havia de melhor no cenário
cultural. Ele desejava elevar a cultura de seu povo, era
obcecado por isso, pelo que pude ver de seus escritos. Em
julho de 1883, por exemplo, levou o bailado Excelsior, da
Companhia de Ópera Italiana, que agitou os meios sociais
do Rio de Janeiro. Depois de ter estreado no Scala de
Milão, a turnê lotou os 6 mil lugares do imenso Teatro
Imperial D. Pedro II, e ele próprio fez questão de
comparecer a sete das oito apresentações. É fácil ver que
ele tinha sede de transformação, queria inserir o Brasil no
mundo, passou a se dedicar pessoalmente à seleção dos
334 | Felipe Negreiros

pedidos de privilégio industrial, de patentes e invenções,


incluindo aí os maiôs flutuantes e chuveiros portáteis. Ele
começou a supervisionar, ainda mais de perto, a
participação do país nas mostras estrangeiras, sobretudo
nas chamadas Exposições Universais. Tais feiras, criadas
incialmente na França, em meados do século XIX, com o
advento e a disseminação do capitalismo industrial, foi,
segundo ele, o que melhor expressou a força e a utopia
moderna. Sem dúvida, para Pedro, os cem dias que elas
duravam seria a oportunidade, para apresentar o país que
ele estava construindo. Pedro via que, nessas feiras, havia
países de todos os continentes, que não só apresentavam
produtos divididos em grupos de manufatura, maquinaria,
matéria-prima e belas-artes, como países que observavam
também o que se produzia nos outros, tornando-se aí
potenciais consumidores. Pedro dizia que a primeira
Exposição Universal, realizada em Paris, por exemplo, foi
visitada por mais de 6 milhões de pessoas e seriam elas os
principais atores de palcos perfeitos. Pelo que li, ele
mostra que, mais do que ninguém, sabia que tempos
novos chegaram. Essas feiras, dizia, concebidas de início
por intelectuais, políticos e empresários, transformaram-
se, com o tempo, em espaços de apresentação da própria
burguesia. E era essa nova burguesia que Pedro queria
adotar; ela inspirava todos os monumentos construídos
para as cidades que recepcionavam as feiras. Pedro
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 335

escreveu que, na primeira Exposição de Londres todos se


extasiavam com um símbolo que marcou o nosso
imaginário, o Palácio de Cristal, projetado pelo arquiteto
Joseph Paxton. A exposição de 1889 nos legou a Torre
Eiffel, tendo sido realizada em um espaço que alcançou em
torno de setenta hectares, quarenta quilômetros só no
interior da exposição, chegando ao Jardim de “Trocadéro”,
ao Campo de Marte, “Quai d’Orsay”, “L’Avenue de
Suffren”, “Ministère des Affaires Étrangers”, “L’Esplanade
des Invalides”, com a emissão de 30 milhões de bilhetes e
a participação de 38 mil expositores.
E seguia-se a narrativa:
– De fato, se olharmos para o empenho de Pedro
quanto à participação do Brasil nessas feiras, constata-se
que ele esperava que não uma dinastia, mas o povo
brasileiro, geração após geração, traçasse o seu caminho.
Ao final, vejo-o como um intelectual não acomodado e
longe de ser preconceituoso. Com uma vontade férrea e
uma disciplina que o igualava a uma máquina de
administrar, quis ele que, neste caminho, vingasse a ideia
de que era urgente mudar a imagem negativa que o país
tinha no exterior, impor a sua real face de um povo ordeiro
e trabalhador. Daí ter investido tanto nessas feiras e
exposições universais, subvencionando livros informativos
sobre a geografia e a economia do país, produzidos em
francês, inglês, alemão e português. Era preciso superar os
336 | Felipe Negreiros

problemas de um Brasil que tinha um monarca, sem


querer sê-lo; um povo que se queria ver como civilizado,
mas que era escravocrata; de cidadãos em uma terra que
desconhecia a cidadania. Era preciso mudar a geração de
líderes que desapareceram no decorrer da década de 80,
como Osório, Caxias, Rio Branco, Eusébio de Queiroz e
Bernardo Pereira de Vasconcelos. O velho de longas barbas
brancas, rugas profundas aos 62 anos, mais parecendo o
imperador Napoleão III, dava mostras de que não seria ele
quem estaria à frente das mudanças. Doente, muito
debilitado, empreende a sua última viagem como
imperador no ano de 1887, tomando um empréstimo de
50 mil libras à casa bancária Knowler Foster, de Londres. O
imperador aporta, como nas outras duas viagens que fez,
inicialmente, em Portugal, em 19 de julho e já no dia 22
chega a Paris. Nessa viagem os encontros são com os seus
médicos, que lhe recomendam ir à estação de cura de
Baden-Baden, frequentada pela rainha Vitória, seu filho, o
príncipe de Gales, Alberto (depois rei Eduardo VII), e
Bismarck. Lá, ainda foi a um concerto onde o maestro lhe
prestou homenagens. Terminada essa etapa, retorna a
Paris, onde novamente se encontra com Renan e Pasteur e
parte para um cruzeiro na Riviera italiana. Aproveitou para
passar alguns dias em Florença, hospedado no Grand Hotel
de La Paix. Nesta cidade, encontrou-se com o rei
Humberto I, da Itália. O rei estava de férias no Palácio Pitti
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 337

e o convidou para um almoço onde havia mais três cabeças


coroadas: a rainha Vitória, que passava uma temporada
hospedada na Vila Palmieri, a rainha de Württemberg e a
da Sérvia. Na ocasião, os presentes lhe lembraram que,
segundo o Almanaque de Gotha, ela era o príncipe com o
reinado mais longevo do mundo. Infelizmente, a melhora
inicial, proporcionada pelos prazeres desses dias, é seguida
de uma piora em seu estado clínico. Tanto que, quando
retorna, chega ainda mais combalido e alheio a um país
agitado por mudanças e indignado pela maneira em que
ocorreu a mais drástica delas para a sua economia: a
abolição da escravatura. No meu entender, Pedro perdera
o ânimo, para exercer o poder, especialmente aquele que
advém da interação social e pede que o chefe de Estado
não se tranque em uma fortaleza real ou imaginária,
deixando para trás o contato com seu povo. Ao final, ficou
refém de informações prestadas por um círculo de pessoas
cada vez menor, capaz unicamente de fazer com que
aqueles que estivessem nele inseridos perdessem a noção
do que ocorria ao seu redor. Pedro voltou, para morrer no
Brasil; mal sabia o que o destino lhe havia reservado e que
lá seria o único lugar em que não poderia estar nos seus
últimos dias.
338 | Felipe Negreiros

Capítulo 12
TRAGAM-NO DE VOLTA...

Charcot acabou por se desvencilhar da tarefa da


qual Isabel o incumbiu, embora tenha, no tempo em que
Freud esteve com ele em Paris, discutido todos os dias
sobre o que leu nos diários de Pedro. Especialmente sobre
a vontade de vencer a solidão que o acompanhou ao longo
da vida e ocasionou essa sua busca incessante por amigos
que não lhe sorrissem pelos favores que poderia oferecer,
mas que lhe mostrassem o que realmente sentem. Ambos
(Charcot e Freud), como tantos outros intelectuais,
questionaram sobre a sua passividade diante da
quartelada que o tirou do poder. Muitos dizem existir até
uma dúvida, a qual o imperador levou com ele: Pedro
renunciou ou houve, sim, um golpe militar? Na época, fi-
cou bastante conhecida uma expressão proferida por
Aristides Lobo, quando da ocasião da proclamação da
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 339

República: “O povo assistiu a tudo bestializado”. Essa


expressão ganhou o mundo e foi publicada no ‘The New
York Times’: “The people, as a rule, were rather constrai-
ned, and looked and acted in a dazed, apathetic way”. Isso
porque o próprio partido republicano, embora existisse
desde 1870, não tinha ainda, àquela altura, qualquer
apego popular. Tanto que os seus quadros nunca pregaram
uma revolução ou a queda brusca de Pedro II, mas a
defesa de reformas que garantissem uma lenta passagem
da forma de governo, de monárquica à republicana.
Infelizmente para o Brasil, alguns se aproveitaram dos
descontentamentos dos quarteis e deram um golpe de
estado. Daí ter demorado por volta de dez anos para que
os civis – ideólogos da proclamação da República,
mediante arranjos políticos – chegassem ao poder.
Pedro, ao final da vida, reconheceu as falhas e
soube precisar o que nos levou ao golpe, apesar de nunca
ter dito se contribuiu ou não, para que o mesmo
ocorresse. Uma dúvida bem plausível, até por ter ele, na
ocasião do levante, determinado veementemente que
ninguém de sua família reagisse. O fato é que Pedro sabia
que se o exército acabou por ser usado, como instituição,
teve as suas razões em dar o golpe que o fez perder o
trono. Ele reconhecia a sua culpa nisso, embora, reitere-se,
ninguém soubesse com certeza se, ao final, ele tenha,
340 | Felipe Negreiros

afora a dita opção pela inércia, contribuído, até de propó-


sito, em não serenar os ânimos dos quarteis.
Nos seus diários, diz ter visto ao final da vida que,
por um bom tempo, contou com Caxias e Osório, para
evitar os conflitos na caserna, já que os dois faziam com
que o exército, embora apresentasse queixas, tivesse em
seus mais altos quadros pessoas comprometidas com o
regime monárquico, todavia, nunca revelou o porquê de,
após a morte dos dois, não ter substituído ambos por
alguém que assumisse esse papel de conciliador entre os
interesses civis e militares; tampouco ponderou o porquê
de ele próprio não ter assumido esse papel. Caxias, por
exemplo, era – além de um herói da guerra do Paraguai e
comandante em chefe das forças imperiais – um hábil
negociador junto às elites, desde as que lideraram os
movimentos e as rebeliões regionais, ainda durante as
regências. As partes mais influentes da nobreza o fizeram,
mais de uma vez, deputado, senador, ministro e
governador de província, e Pedro sabia que uma outra
pessoa com o nível de aceitação de Caxias não apareceu
nos finais do século XIX, porque o próprio Pedro não
colocou ninguém à altura desse posto; foi essa uma época
em que começou a diminuir o número de aristocratas que
vinham das fileiras militares.
Ninguém pode deixar de reconhecer que, mesmo
doente, ele sabia o que se passava, especialmente, que, de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 341

repente, os mais representativos comandantes do exército


que defendiam os interesses da caserna começaram a ser
privados das esferas de poder: eram enviados para
localidades distantes com a menor crítica.
Entretanto, esses militares já eram bem diferentes
dos de antes da guerra. Todos eles eram fruto de uma
reforma ocorrida em 1850 liderada pelo próprio Pedro,
que fez com que as promoções não se baseassem nas
classes sociais, que era a praxe até então, mas ocorresse
pelo mérito de cada um, ou seja, um cadete oriundo das
camadas mais pobres da sociedade que entrasse no
exército podia ascender socialmente, e isso fez com que os
mais ricos passassem a evitar a carreira militar, pois, para
eles, nada estava assegurado neste modelo de exército
profissional e técnico que passou a se desenhar.
Pedro reconhecia que, ao deixar a cargo de Ouro
Preto os destinos do império, falhou, ao não demonstrar
que o tratamento a ser dado ao exército deveria ser outro.
Então, a pergunta que fica é, repita-se sempre: o golpe
ocorreu ao seu alvedrio, ou porque assim desejou?
As elites civis não entendiam os militares de antes
do 15 de novembro, mas Pedro os entendia, sabia o que se
passava. Testemunhava que, ao final do século XIX, os
brasileiros conviviam com as crises econômicas marcadas
pela inflação, desemprego e superprodução de café,
problemas aos quais ele só enxergava um caminho: um
342 | Felipe Negreiros

dia, o país encontraria o seu próprio destino. Daí as


conversas com Isabel e com todos sempre se iniciar e
terminar na tecla de que tudo naturalmente seria
resolvido. Esse mote só nos leva a concluir que, com a sua
apatia, foi ele quem proclamou a República ao final.
Tais pontos de vista estão bem registrados em seus
diários, por exemplo, em um diálogo travado entre ele e a
sua filha, em um balneário localizado no litoral da
Normandia. Lá, vê-se que Isabel se recusava a falar sobre o
Brasil, e Pedro via, daí, que a filha realmente não queria
herdar o trono e o seu marido, apesar de querer, não
angariou simpatias, por isso, falava-lhe que o certo foi
deixar as coisas como estavam. Seja porque o seu genro
achava que, como francês, fazia um favor em aconselhar
os parlamentares, em se envolver em política, quando,
para os brasileiros, sair à francesa é sair sem avisar; ser
francês é ser pernóstico e supérfluo. Seja porque os seus
netos apresentaram uma série de desequilíbrios que não
os credenciavam a herdar o trono.
Pedro, muitas vezes confidenciou o que aquele seu
cunhado, o príncipe de Joinville, dizia: “Isabel deveria ter
se casado com Augusto, que acabou casando com
Leopoldina”. Ele sempre repetia essa colocação de seu
cunhado, quando estava só, especialmente nos anos em
que esteve no exílio, embora reconhecesse que Gastão foi
um marido maravilhoso, tanto que o seu casamento com
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 343

Isabel perdurou por toda uma vida. “E que vida levaram os


dois, sobretudo em Paris”, Pedro sempre ressalvava.
No entanto, reconhece-se também que, no Brasil,
apesar dos pesares, Gastão não era bem quisto. Por fim,
some-se a essa fadiga moral – sobre a sua filha, o seu
genro e os seus netos – a sua prostração física como mais
um fator que o levou a perder o seu trono: a diabetes
agravava-se, a erisipela não curava, nada mais poderia
fazer. Assim, “como impedir a ordem natural da vida?”,
indagava-se. “Como cortar o curso das mudanças de
hábitos, de se dormir menos à noite e mais durante o dia?”
e, assim, evitar as charges dos jornais que o desrespei-
tavam mostrando-o como um velho ridículo.
Em 1887, esteve para morrer em Petrópolis: sofreu
um ataque febril com congestão hepática e vômitos. Os
médicos diagnosticaram malária e a doença só confirmava
o fato de não se sentir mais à vontade para lutar, provar
algo, os seus méritos. Já tinha conquistado o respeito do
mundo; ficava apenas, porque sentia que o Brasil ainda
não tinha chegado lá. Ninguém queria entender, mas eram
as necessidades do Brasil, não a sua vontade, que
imperavam, que o faziam ficar. E isso se testemunhava
desde antes.
Quando ocorreu o manifesto republicano, em
dezembro de 1870, Pedro proibiu e vetou a ordem que
impedia os republicanos de ocuparem cargos públicos.
344 | Felipe Negreiros

Apesar de isso ocorrer na Inglaterra, não ocorreria no


Brasil, falava, independentemente de a monarquia ser um
dogma da Constituição que ele próprio prometera
proteger. Informava repetidas vezes ao presidente do
Gabinete: “Se os brasileiros não me quiserem como
Imperador, irei ser professor”. E arrematava: “Eu sou
republicano, todos sabem, se fosse egoísta eu mesmo
proclamava a República para ter as glórias de
Washington”.
Da mesma maneira, Pedro não perdoou a
repreensão de sua segurança, quando manifestantes,
liderado pelo jornalista republicano Lopes Trovão,
deflagraram a chamada revolta do vintém, em protesto ao
aumento da passagem do bonde, autorizada pelo ministro
das finanças, Afonso Celso de Assis Figueiredo, no final de
1879 e início de 1880.
Por essas e outras, Pedro ter estimulado tanto uma
série de reformas, inclusive, a política que ocorreu,
justamente, nesses mesmos anos 80. Nessa altura, Rui
Barbosa apresentou um projeto que tentava conter os
vícios das fraudes eleitorais e se chegou a ter dois
ministros derrotados em eleições, Pedro deu a ele todo o
seu apoio de maneira até irrestrita. Críticas não faltaram a
esse seu apoio, pois se proibiu o voto dos analfabetos e,
para muitos, isso criou um governo de letrados, uma
democracia sem cidadãos. O único comentário a respeito
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 345

feito pelo imperador foi que se verificasse sempre que,


sem democracia, não há monarquia e que a função do
chefe de estado é ouvir e encontrar a opinião nacional.
Assim, aproveitava para repetir que o problema do Brasil é
a falta de educação primária e que esse devia ser o pri-
meiro mal a ser tratado.
Se ele, a certa altura, mostrou-se inerte, pesou
muito também para a proclamação da República o
empenho de Isabel para a abolição dos escravos. O modo
como tudo se processou irritou os velhos latifundiários que
ainda apoiavam o regime e que diziam amar o Brasil mais
do que a qualquer raça. A verdade é que, desde há muito,
perdeu-se a trajetória traçada lá no início, com a
emancipação de Pedro, pois a grande promessa de
conservadores e liberais era a de fazer uma abolição
gradativa que não provocasse qualquer dano aos
proprietários de terra. Se olharmos com atenção, essa
ideia não era nova, já que José Bonifácio a defendera,
propondo a adoção de leis que abolissem a escravidão
gradualmente.
No entanto, diferentemente do que se pensava e se
projetou, entre 1820 e 1840, o café se expandiu pelo
interior do Rio de Janeiro, gerando a necessidade absurda
de mão de obra e a consequente importação de africanos;
tudo ficou muito difícil desde aí. Tanto que até as críticas
filosóficas que se seguiram à formação dos mercados con-
346 | Felipe Negreiros

sumidores, reflexo da Revolução Industrial, não


contribuíram para apaziguar os ânimos e permitir que se
enxergasse tudo pela ótica do bom senso. Os proprietários
de terra se sentiam perseguidos, enquanto todos
necessitavam do que produziam. Falava-se
constantemente no perigo de uma revolta, pois o número
de negros que chegavam anualmente, entre 33 a 37 mil,
era três vezes superior ao de europeus. No máximo,
advogava-se, a ideia de se humanizar as senzalas, mas não
as abolir por completo, até porque isso, temia-se, levaria o
Brasil à ruína.
Foi um tempo em que muito se leu do “Manual do
Agricultor Brasileiro”, de Carlos Augusto Taunay. O autor
era um cafeicultor que, no intuito de defender a
escravidão, propôs um modelo paternalista de gestão dos
escravos, por exemplo, a uniformização do tratamento,
alimento e roupas suficientes, melhoria do estado sanitário
das senzalas, adequação do trabalho às habilidades dos
cativos e rigorosa disciplina.
Essas vozes que existiram no início do governo de
Pedro já não existiam mais no final do século XIX, e foi na
ausência delas que Isabel não só viu que Cotegipe, então
presidente do Conselho, procrastinava, como também
promoveu, durante a última das três viagens de Pedro à
Europa, algo diferente do usual: mudou o Gabinete e fez
aprovar, em tempo recorde, a Lei Áurea. Isabel imaginou
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 347

errado que a burguesia e a intelectualidade do Brasil


passariam a defender os interesses da família imperial
frente aos latifundiários, que, em sua maioria, opunham-se
ao fim da escravidão.
A escravidão já era inaceitável para um Brasil que, à
essa altura, tinha recebido uma quantidade significativa de
imigrantes europeus. Eram já tantos, que levaram a uma
migração de costumes, como a de, no café da manhã,
substituir a mandioca pelo pão francês, começar a registrar
cervejas, e trocar os tradicionais e seculares doces
portugueses pelos gelados que faziam, já há algum tempo,
o maior sucesso nos países mais ricos do mundo.
Foram tais fatores que fizeram Isabel decidir por
não mais retardar a promulgação da Lei Áurea, entretanto,
esse foi um ato político equivocado por parte da regente:
ela pode ter ganho o título de “Redentora”, ou, como disse
Cotegipe, pode ter redimido uma raça, mas perdeu o
trono, até porque o império, como se disse, já não contava
mais com o apoio de Caxias ou de Osório e tampouco
reconhecia mais os militares e os seus líderes.
Pedro, de propósito ou não, repita-se mais uma
vez, viu o exército como um órgão público, e os seus
membros, soldados e oficiais, como meros funcionários,
não como integrantes de uma corporação. Foi inaceitável,
quando ele próprio, na década de 80, deu a presidência do
Conselho a Caxias; ao colocar os militares no centro do
348 | Felipe Negreiros

poder, como não enxergar que, a partir daí, quisessem


participar do governo. Só fica a justificativa de que ele
queria, sempre quis, embora sem ferir a filha, proclamar a
República. Daí o desalento que teve ao final da vida, ter
sentido o mesmo que os republicanos, como Rui Barbosa
ou Joaquim Nabuco: entusiasmo, no início, e muita
decepção depois.
Poucos sabem, mas meses antes do 15 de
novembro, Pedro chamou alguns políticos liberais, para
formar um governo e foi por eles avisado de que a
República era algo sem volta, inevitável, mas que a elite
mais responsável se preocupava com o fato de o país não
estar preparado para ser uma República, pois poderia
ocorrer uma situação de anarquia e era necessário
preparar o terreno.
Assim, Pedro, em junho de 1889, autorizou que se
anunciasse que seria proclamada a República, bastavam
apenas alguns ajustes. Isso comprova que já aceitava o
fato de que a sua filha não reinaria. Essa decisão somente
não foi adiante, devido ao último Gabinete do império ter
sido escolhido, de fato, por Isabel e por seu marido. Eles
viram que o pai se voltara contra a monarquia e o
deixaram ao lado das últimas decisões, aproveitando-se do
seu estado de saúde.
Escolheram Ouro Preto, e ele tentou dar aos
republicanos tudo o que queriam, sem mudar o regime,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 349

incluindo aí conferir maior poder e autonomia a São Paulo


e aos seus cafeicultores. Esse ato político até teria dado
certo por algum tempo, caso não tivesse cometido o erro
de não compreender Deodoro, que já era um líder militar.
Acabou por nomear pessoas, como Silveira Martins, que
fizeram com que o Marechal não tivesse escolha e
chancelasse o golpe. Isso, coincidentemente, depois de
uma festa retumbante, com 258 caixas de vinho
consumidas que promoveu na Ilha Fiscal em homenagem a
uma delegação chilena. Esperava-se a proclamação da
República, estudava-se como proclamá-la, mas sem a
necessidade de se deflagrar um golpe militar, responsável
por fazer com que a família imperial deixasse o país no dia
17 de novembro de 1889. O evento encerrou, assim, um
período tão longevo que só as rainhas Vitória e Elizabeth II,
da Inglaterra, governaram mais tempo do que Pedro de
Alcântara, que, diferentemente das duas, sentia-se fora do
lugar no trono. Pedro era um intelectual que vivia
estudando e cuja erudição, como dito, surpreendia até
mesmo a elite brasileira, cite-se, entre tantos outros, Rui
Barbosa e Joaquim Nabuco.
Todos sabiam da facilidade com que traduzia latim,
inglês, francês; falava sânscrito, hebraico e tinha adoração
pelo povo judeu, tanto que, como se viu, sempre visitava
as sinagogas, onde surpreendia os rabinos com quem
discutia interpretações da Bíblia. Seu amor pelo estudo era
350 | Felipe Negreiros

tão grande, que fez questão de levar o seu professor de


sânscrito e o seu professor de hebraico com ele ao exílio e,
com eles, teve lições até os últimos dias de sua vida.
Daí a possibilidade de o golpe ter sido aceito com
tanta passividade, sem que ela concretize a ideia de
renúncia por parte do monarca. Há, claro, de se
reconhecer o seu estilo, o seu modo de encarar a vida.
Tanto assim que, no dia da partida, ele estava até mais
calmo que o usual, sempre lendo. Encontrava-se triste
apenas, por não ver reconhecido quanto trabalhou para o
Brasil, em prejuízo de sua vida e dos seus gostos que
ajudaram tanto em nossa cultura de valorização do mérito.
Lamentava terem esquecido o fato de que acompanhava
todos os concursos públicos, para lhes ver a lisura e ter
sido o terror dos professores, pois ouvia os alunos e
indagava-os quanto ao seu conhecimento.
Tudo é bem paradoxal neste ponto. A sua própria
saída do país foi descrita de maneira contraditória. Para
alguns, o povo acorreu ao porto, a fim de dar o seu último
adeus. Para outros, no entanto, a sua partida foi
melancólica, de onde só se viam os sentimentos da culpa,
tristeza e mesmo de vergonha.
O que fica é que ele quis e soube manter a sua aura
mística na hora da partida, deixando saber que só levaria
consigo, além de uma edição francesa do “Decameron” de
Boccaccio, àquela sua primeira edição de Camões, tudo
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 351

contribuindo, na verdade, para tornar Pedro o mártir da


Nação.
Algo que, como dito, tentou-se evitar a todo o
custo, tratando a ditadura implantada de modificar os
nomes dos logradouros que faziam menção ao imperador.
O Largo do Paço, por exemplo, passou a se chamar Quinze
de Novembro, a Estrada de Ferro Pedro II virou Central do
Brasil, o Colégio Pedro II tornou-se Colégio Nacional, o Real
Cemitério da corte ficou sendo São João Batista. E a
própria corte que designava o centro de poder passou a
ser chamada de Capital Federal.
Contudo, o que se passou é que nunca se conseguiu
apagar o respeito que, ao final, todos os brasileiros
sentiam por Pedro. Não por menos, Machado de Assis, na
ocasião, sempre sarcástico, criticava contundentemente
nos jornais tais ânsias de se fazer desaparecer a história
monárquica do Brasil. O escritor salientava que sempre se
teria saudades do império, porque Pedro não só nos
deixou o seu exemplo de estadista, mas também todo um
acervo que hoje constitui a história oitocentista de nosso
país. Só em São Cristóvão, foram três bibliotecas com mais
de 60.000 volumes, um terceiro andar tomado por uma
sala de física e pelo melhor observatório astronômico do
Brasil da época. Hoje tudo perdido, infelizmente, com o
citado incêndio de 2018.
352 | Felipe Negreiros

No mais, além desse seu perfil ético, como


esquecer de um homem que tinha uma memória
prodigiosa e que sempre encantava o seu interlocutor?
Como se disse, quando este era, por exemplo, um
intelectual, demonstrava o quanto conhecia de suas obras,
quando era um botânico, referia-se aos mais diversos
assuntos ligados ao ramo de trabalho de seu embasbacado
ouvinte. Ao final, todos se surpreendiam também como,
em uma terra cheia de caudilhos como a América Latina,
existia um país cujo monarca era o mais ilustrado chefe de
estado do mundo.
Nietzsche repetia isso sem parar, e Pedro merecia
receber tais elogios. Cite-se a importância que tiveram
para a historiografia do Brasil os 14 cadernos de diários em
que escreveu, com paciência e com espantosos detalhes,
os seus últimos dois anos de vida. Neles, por exemplo,
relatou que, no navio que o levara à Europa, conversou
muito com o abolicionista André Rebouças que tinha
devoção a ele e à sua filha. Rebouças nunca mais voltou ao
Brasil: suicidou-se por decepção com o que ocorria em seu
país e foi enterrado na Ilha da Madeira. Os diários contam
também de outro personagem que lhe fez companhia e lia
para ele: o poeta José Loreto. Esses dois personagens,
quando questionavam porque Pedro não resistiu, ouviam
enfaticamente a história de sempre: o Brasil tinha de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 353

descobrir os seus caminhos e a República era um regime


superior à Monarquia Constitucional.
Embora os seus amigos reconhecessem esse fato,
não lhes retirava o direito de lhe exigir que reagisse contra
a ditadura implantada. Esse tipo de estímulo levava Pedro
a, no máximo, fechar o livro e mirar o seu país natal no
horizonte.
Os seus escritos mostram também que, quando do
seu 64º aniversário, comemorado a bordo do Alagoas, ele,
na hora do brinde, chamou a filha e disse-lhe uma frase
dada por seu pai na carta que lhe escreveu: “Menina,
escute a que brindo: à prosperidade do Brasil”. Foi nessa
ocasião que tomou conhecimento que Deodoro, que tanto
relutou em proclamar a República e dela discordou como
regime, ao final da vida, mandara lhe dar uma pensão de
5.000 contos. Pedro, como sempre fez com o dinheiro
público, recusou.
Há também relatos de como estavam, quando
chegaram a Lisboa. Na ocasião, já mais animado, ele não
conseguiu controlar o riso, ao ver que Isabel reclamava do
gasômetro que tinham construído ao lado da Torre de
Belém. Torna-se nítido para nós que víamos com certa
satisfação que a vida continuava o seu curso, apesar de
tudo o que lhes acabara de acontecer.
Foi com esse espírito de seguir adiante que, antes
de desembarcar do navio, presenteou o comandante com
354 | Felipe Negreiros

um relógio de ouro, distribuiu brindes aos oficiais e


dinheiro à tripulação, além de recusar a hospedagem
oferecida pelo seu sobrinho, o rei de Portugal, indo para
um hotel. Não fez isso, sem antes cumprimentar, entre
outros, o embaixador do Brasil em Londres, que veio
recebê-lo, assim como o historiador Oliveira Lima, que
narra, como alguém que esteve na ocasião do
desembarque, que, apesar de simpatizar com a República,
voltou para casa nesse dia “pesaroso e envergonhado”.
Tudo isso ocorreu no dia 7 de dezembro em Lisboa,
lugar em que, inicialmente, a família imperial se instalou.
Só após dez dias, Isabel, o marido e os filhos foram para o
sul da Espanha, e Pedro, a Coimbra e ao Porto, visitar o
coração de seu pai. Estava no dia 28 de dezembro nessa
última cidade, mais precisamente na Escola de Belas Artes,
quando mais um golpe selaria a sua sorte e a sua história
de vida: Pedro, repentinamente, foi chamado às pressas ao
Grande Hotel do Porto, pois a imperatriz sofrera um
ataque cardíaco. Avisaram-lhe que tinham encontrado a
princesa Isabel em Madrid e lhe enviaram um telegrama.
Ele, chegando ao hotel, atravessou o pórtico principal às
pressas, com passos firmes, quando todos lhe faziam re-
verências. Infelizmente, já era tarde, Teresa Cristina se
fora.
Isabel e o resto da família só chegaram no dia
seguinte. Foi assim que se escreveu mais uma página de
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 355

nossa história, sobre o fato de que a mãe da Pátria morreu


de desgosto e no exilio injusto. Some-se a isso o fato de
que foi essa a primeira vez que Pedro se deixou levar pela
emoção. Foi dessa maneira que escreveu a respeito em
seu diário:

“Custa-me crer. Sempre desejei precedê-la


na morte. Abriu-se um vácuo na minha
vida que não sei como preencher”, repetia:
“só o estudo me consolará”.

É interessante ver como tudo o que Pedro nos


deixou, em documentos, escritos e na memória daqueles
que com ele conviveram, sempre nos expressa o quanto
foi probo e intelectual abnegado. Tanto que estava na
Academia de Belas Artes e iria buscar refúgio nos livros
diante da dor da perda daquela que, com o tempo, foi em
sua vida, uma presença constante e solidária. Ia-se, como
dizia, uma felicidade de 46 anos e, diante da saudade,
isolava-se cada vez mais. Isso porque, registrava, apesar do
desapontamento inicial e as aventuras amorosas, gestou
uma relação de profunda amizade com essa senhora séria,
humilde e sensata que esteve ao seu lado com tanta
dignidade.
Historiadores contam que no dia da morte, Ouro
Preto foi vê-lo e testemunhou que Pedro estava lendo, ao
lado da sala onde estava o caixão, a “Divina Comédia”.
Disse o último presidente do Conselho que, após prestar a
356 | Felipe Negreiros

homenagem à imperatriz, voltando, para pegar o chapéu,


testemunhou uma cena rara: as mãos pálidas de Pedro
sobre o rosto e as lágrimas molhando os versos de Dante.
Contam que foi a única cena de tristeza que se
testemunhou de Pedro, que foi assim relatada:

“Sua Majestade, porém, mal soube de


nossa presença, ordenou que nos dessem
ingresso. Modestíssimo o seu quarto, a um
canto, cama desfeita, em frente, um
lavatório comum, no centro, larga mesa
coberta de livros e papéis. Um sofá e
algumas cadeiras completavam a mobília.
Tudo frio, desolado, nu. Os joelhos
envoltos com cobertor ordinário, trajando
o velho sobretudo, D. Pedro lia sentado à
mesa um grande livro, apoiando a cabeça
na mão”.

Lá está dito que foi um comerciante português que


enriquecera no Brasil e admirava o imperador quem pagou
o enterro de sua esposa; depois do luto, Pedro deixou
Portugal com Isabel para sempre, começando uma
peregrinação por hotéis e balneários. Inicialmente fixou-se
em Cannes, escolhendo o belíssimo hotel Beau Séjour,
onde ficou com a sua extensa comitiva, à exceção da
mesma Isabel, que alugou uma casa na Villa Ormesson.
Esse lugar, por sinal, a deixou deslumbrada, sobretudo
pela vista magnífica para a Riviera francesa, com
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 357

excelentes e espaçosos cômodos, um belo jardim, um


parque inglês e uma quadra de tênis.
Daí se registrar que levaram em Cannes a típica
vida de luxo das pessoas mais abastadas da época. Tanto
que Isabel amava passar as tardes percorrendo as lojas. Ia
sempre com Pedro aos chás, comer os maravilhosos doces
de Rumplemeyer, como dito, o confeiteiro mais festejado
da Europa na ocasião. Sempre jantavam juntos todas às
quintas no hotel em que Pedro estava, e este ia à sua casa,
que ficava em uma rua até próxima, aos domingos. Não
havia, a propósito, encontro em que faltasse à mesa uma
explosão de rosas. Uma exigência de Pedro, que dizia ser
essa uma maneira de prestar homenagens à filha. Pedro
tinha agora um olhar vazio, expressão marcada pelo tempo
e trajava sempre um jaquetão; estava sempre ao lado de
escrivaninhas ou com livros à mão, apresentando a todos a
sua elevada cultura. Percorreu a Europa como um turista,
para deixar claro que nunca aceitou ser expulso de sua
Pátria, tanto assim que, ao sair da costa francesa,
hospedou-se na casa de amigos, como no castelo da con-
dessa de Barral, em Voiron, perto de Grenoble, ou na
mansão da milionária família Krupp, na Alemanha. Adotou
sempre uma expressão distante, mantendo-se impassível
diante dos acontecimentos.
Pedro se calava e sempre voltava à velha rotina de
visitar instituições, ler, escrever poemas e se encontrar
358 | Felipe Negreiros

com os maiores intelectuais de seu tempo. O único luxo


era o de ter, ao seu lado, o seu médico, Mota Maia, seu
professor de sânscrito e o seu mordomo, o conde de
Aljezur. Mesmo assim, a visita dos seus admiradores era
constante: vários ex-presidentes do Conselho de Ministros
vieram vê-lo, como, por exemplo, Rio Branco; Mitre foi
outro que esteve com ele; Tamandaré, que o adorava,
também foi, várias vezes, ao seu encontro. Com o passar
dos meses, até os republicanos começaram a ir vê-lo,
reverenciando-o; e, quando Pedro puxava conversa com
qualquer um deles, gostava de aconselhar, ludicamente,
que, da mesma maneira com que ele próprio buscou nos
arquivos da Cúria Romana as cartas originais do padre José
de Anchieta, os diplomatas ou mesmo turistas brasileiros
deveriam gastar o seu tempo pesquisando quaisquer
informações antigas sobre a sua Pátria.
Daí, não demorou, para se começar a testemunhar
os casos de republicanos que viram quão absurdo foi o
banimento. Passou-se, ao contrário, do que se viu nos
últimos anos do império, a se defender o imperador na
imprensa. Casos como o do jornalista Ferreira Viana, que
tantas críticas fez e passou a admirá-lo – quando o
comparou com aquele que o sucedeu – começaram a ser
algo comum e corriqueiro. Todos os dias, aumentava o
cordão de admiradores.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 359

No entanto, mesmo com as mudanças nos ânimos


daqueles que tanto o criticavam, Pedro, em Paris,
continuava a não conversar sobre política e a desautorizar
qualquer tipo de conspiração. Quando Deodoro fechou o
Congresso, foi notável a romaria pedindo o seu retorno,
mas ele recusava; só perguntava a respeito da política a
Isabel, e esta, como dito, sempre desconversava.
Seus contatos, na França, realmente limitavam-se
aos colegas da Academia de Ciência de Paris, embora os
movimentos de restauração da monarquia fossem
inúmeros dia a dia. Em agosto de 1891, por exemplo,
Pedro Américo assinou uma proposta de emenda à
Constituição, para que fosse dado ao menos uma pensão a
Pedro em reconhecimento aos serviços que prestou à
Nação; Pedro, mais uma vez, recusou.
No último ano de vida, ele apenas fazia questão de
retornar ao Brasil; foi constante no diário o desejo de
retorno ao seu Rio de Janeiro, e 1891 propiciava esse
sentimento saudosista. Aquele ano começara com a morte
da condessa de Barral e, nessa época, ele se muda para o
pequeno hotel Bedford, situado na Rua de L’Arcade,
número 17. Foi logo após a mudança que Pedro revelou
uma tosse insistente. Sabia que o seu fim estava próximo,
e ele chegou por meio de um resfriado persistente que
começou no dia 23 de novembro, quando foi a uma eleição
na Academia de Ciências. Ele vinha de Vichy, passeou pelo
360 | Felipe Negreiros

Sena sob neblina e, à noite, começou a tossir. A tosse fez


com que o último imperador do Brasil passasse o seu
aniversário de 66 anos confinado em um quarto modesto,
com os amigos, a filha e os netos, todos extremamente
preocupados.
No dia 25, constatou-se a pneumonia e os seus
médicos revelaram que essa não conseguiriam debelar.
Seus netos, Pedro Augusto e Augusto de Saxe chegaram no
dia 3 de dezembro; acreditavam na recuperação do seu
avô.
Todavia, ao invés de melhora, veio-lhe a morte, em
5 de dezembro de 1891. E os que o acompanharam até o
final, de logo, ajoelharam-se perante Isabel e lhe beijaram
a mão esquerda.
Paul Nadar, famoso fotógrafo, foi chamado e já o
viu vestido com a roupa de marechal.
O atestado de óbito foi assinado por Mota Maia,
Charcot e um outro médico, de nome Bouchard, e a “causa
mortis” foi pneumonia aguda do pulmão esquerdo.
A repercussão não só em Paris, mas em toda a
Europa e nos Estados Unidos, foi imediata. O presidente da
França, Sardi Carnot, dirigiu-se, de imediato, ao hotel em
que o corpo de Pedro estava e determinou honras
militares, ignorando o protesto do embaixador brasileiro,
considerando-o ridículo, pois, como disse, as honras eram
devidas não por ser Pedro um brasileiro, mas por ser ele o
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 361

titular da Grã-Cruz da Legião de Honra. O presidente da


França convenceu Isabel, inclusive, que queria uma
cerimônia íntima e simples, como sempre vivera o seu pai,
a permitir que se lhe dessem todas as homenagens
meritórias.
Vestiram-no como um imperador, com o colar da
Ordem da Rosa sob a barba e, perto do crucifixo de prata,
enviado pelo Papa, colocaram sobre ele também a Ordem
do Cruzeiro do Sul que tanto estimava.
Duas bandeiras do Brasil império foram usadas para
lhe cobrir as pernas. Ao final do dia, com o corpo ainda no
hotel, 2 mil telegramas e centenas de coroas de flores já
ocupavam todo o “hall”, uma delas enviada pela rainha
Vitória.
Vários brasileiros residentes em Paris se
aglomeravam e colocavam na calçada da entrada do hotel
ramos de fumo e de café.
No dia 8 de dezembro, um outro fato completou
ainda mais a mística do que acontecia no modesto refúgio
de Pedro. Enquanto o preparavam, um pacote lacrado foi
encontrado no quarto pelo conde D’Eu. Viu-se que ele
continha areia. Sobre o mesmo, uma mensagem escrita
pelo próprio imperador: “É terra de meu país; desejo que
seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha
Pátria.
362 | Felipe Negreiros

Assim, o pacote que continha a terra de todas as


províncias brasileiras foi colocado dentro do caixão, que foi
levado para a Igreja de Madeleine, em cortejo oficial, no
mesmo carro usado nos funerais dos ex-presidentes da
França.
O ritual oficial durou três dias. A igreja cobriu suas
paredes, forrando-as com tecidos pretos e o corpo foi
colocado de maneira destacada no centro da nave. O
caixão também foi coberto com mais uma bandeira
imperial. Então, no dia 9, registrou-se uma solenidade na
igreja, com o ministro da guerra da França representando
o presidente, que tivera que viajar de emergência.
Estiveram presentes, a solenidade em homenagem
a Pedro, o presidente da Câmara dos Deputados e do
Senado da França, praticamente todos os membros da
Academia de Ciências e da família imperial, inclusive, a sua
irmã, Francisca, a princesa de Joinville, o embaixador dos
Estados Unidos, representantes de países distantes como
Pérsia, Turquia e Japão, de todas as Casas Reais da Europa,
como Isabel II, rainha da Espanha, curiosos, como Eça de
Queiroz e Joaquim Nabuco ao lado de escritores como
Alexandre Dumas Filho, maestros como Gounod e Abroise
Thomas, matemáticos, físicos, médicos como Charcot, e
orientalistas como Gauthier, Foucart, Boislisle.
Foi de Madeleine que partiu o imenso cortejo
fúnebre, ainda no dia 9, composto de doze regimentos,
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 363

com espadas em continência, comandados por três


generais de brigada. Em torno de 2.000 pessoas o
acompanharam, sob chuva, pelas ruas de Paris. Ao som da
marcha fúnebre de Chopin, o corpo foi conduzido por oito
cavalos negros para a estação de Austerlitz, de onde seguiu
de trem para o cais de Santa Apolônia em Portugal. Lugar
onde as honrarias continuaram. Todos os jornais do Porto
as descreveram: ruas cobertas pelo povo enlutado,
mulheres nas varandas rezando e ricos portugueses que
tinham dívidas de gratidão para com o Brasil
acompanhando o féretro. Por último, viu-se que, na morte,
Pedro tivera toda a pompa que sempre merecera e
recusara em vida.
Assim, o imperador deposto perdeu o lugar para
um rei mistificado que, naquele momento, pareceu
recuperar o espaço destinado a uma Monarquia imaginária
em que a sua figura física já não tinha mais nenhuma
importância.
Morto, com o tempo, tornou-se mais rei, mais líder
e estadista que quando esteve vivo. Joaquim Nabuco
escreveu a um jornal que nesse dia não havia coração de
um brasileiro que não pulsasse diferente em Paris. Os
jornais europeus trouxeram suas imagens durante dias e
transformaram o enterro em uma cerimônia de grande
projeção. As homenagens se seguiram na viagem e só se
encerraram quando o seu corpo foi enterrado em São
364 | Felipe Negreiros

Vicente de Fora, perto de Lisboa, no dia 12 de dezembro,


no Panteão dos Bragança, entre a sua madrasta, D. Amélia,
e a sua esposa, a imperatriz, D. Teresa Cristina.
Já no Brasil, apesar do olhar transverso da ditatura
militar implantada, a repercussão foi igualmente imensa. O
comércio, de escolha própria, fechou as portas; bandeiras
eram hasteadas a meio mastro, tarjas pretas nas roupas.
Os jornais que tanto o criticavam se derramavam em
elogios. Quintino Bocaiuva foi um dos que logo partiram a
reconhecer os méritos de Pedro.
Nos Estados Unidos, o “New York Times”, já no dia
da morte, 5 de dezembro de 1891, não foi econômico nos
elogios. Em texto de duas colunas, reproduziu a frase de
Gladstone, segundo a qual, Pedro seria o governante
modelo do mundo e disse, por conta própria: “Para os
EUA, Pedro foi o mais ilustrado monarca do século, tornou
o Brasil tão livre quanto uma Monarquia poderia ser”.
O “The Herald” publicou: “Em uma outra era e em
circunstâncias mais felizes, ele seria idolatrado e honrado
por seus súditos e teria passado para a História como D.
Pedro, o bom”. No “The Tribune”, lia-se: “O seu reinado foi
sereno, pacífico e próspero”.
Já entre os jornais sul-americanos o que mais trazia
notícias sobre Pedro era o “The Chilean Press”, que
relatava: “Os brasileiros que se guardem de uma
impostura que pode levar à anarquia e expô-los a uma
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 365

horda vexatória de tiranetes mil vezes mais intoleráveis do


que um único déspota”.
O “The Times”, em Londres, publicou um artigo
extenso em que se diz que: “Até novembro de 1889,
acreditava-se que o falecido imperador e a sua consorte
fossem unanimemente adorados no Brasil, devido aos seus
dotes intelectuais e morais e o seu interesse afetuoso pelo
bem-estar dos seus súditos... Quando no Rio de Janeiro,
ele era constantemente visto em público; e duas vezes por
semana recebia os seus súditos, bem como viajantes
estrangeiros, cativando todos com a sua cortesia”.
O “Weekly Register” noticiou em suas páginas que
Pedro: “Mais parecia um poeta ou um sábio que um
imperador, mas se lhe tivesse sido dada a oportunidade de
concretizar seus vários projetos, sem dúvida, teria feito do
Brasil um dos países mais ricos do Novo Mundo”.
Todos, ao final, ressaltavam o seu patriotismo, a
sua honestidade, o seu espírito de justiça e a sua
simplicidade. Tanto que José Veríssimo, um dos mais
árduos republicanos, em jornais, dizia que Pedro conseguiu
tudo o que um estadista quer para o seu povo, pois, en-
quanto foi o chefe de estado, todos diziam o que queriam
e o que pensavam. Constatou-se, logo nos primeiros anos
da República, que Pedro nunca deixou de ser um herói e
um exemplo para os brasileiros, pobres e ricos. Sendo
assim, não demorou também, para que ele passasse a ser
366 | Felipe Negreiros

um exemplo oficialmente reconhecido pelo próprio


governo republicano, pois todos constataram que, com a
sua morte, nasceu o mito, e que os sentimentos de culpa
começaram a brotar no seio das elites.
Todos viam, como uma injustiça, o banimento do
imperador. Conspirava-se, logo depois da sua morte, no
Instituto Histórico e Geográfico, o retorno do seu corpo.
Toda a elite sentia a sua falta, e o sinal de respeito era
acolhido unanimemente.
Deodoro, o primeiro presidente, quando visitou o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, foi proibido de
sentar na cadeira de Pedro, missiva que acatou
prontamente. O Instituto, no intuito de prantear a sua
morte, cerrou suas portas por sete dias, cobriu com crepe
a cadeira do monarca e mandou celebrar uma missa
solene no sétimo dia após a sua morte.
Prêmios foram oferecidos a quem se dignasse a
escrever biografias a seu respeito. Era como se ele não
fosse a Monarquia: caiu a realeza, mas não o rei.
Nas trovas populares, ele era o herói popular, o
filho amado da sua terra. Todos viam, ao final, que o
modelo de um líder era o próprio Pedro, daí os
presidentes, até Collor, terem colocado seu quadro por
trás de sua mesa de despachos no Planalto. O seu retrato,
na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em
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Salvador, está acima do consagrado político baiano


Antônio Carlos Magalhães.
De fato, a admiração a Pedro ultrapassou gerações.
Quando na Segunda Guerra Mundial, Franklin
Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, ao vir ao
Brasil, fez questão de registrar a ocasião em que,
passeando com os pais em um parque no sul da França, viu
surgir um casal de idosos vestidos distintamente.
Roosevelt disse ter aí falado com Pedro II e a sua
imperatriz e que aquele foi o seu primeiro contato com o
Brasil; um contato que não poderia ter começado melhor!
Demais a mais, em 2017, em viagem à Rússia, o ex-
presidente brasileiro Michel Temer recebeu, como mais
uma homenagem ao Brasil, de presente do presidente da
Rússia, Vladimir Putin, um pequeno lote de cartas de
Pedro, entre as quais, uma para Sully Prudhomme, um
importante poeta parnasiano que viria a ser a primeira
pessoa a receber o Prêmio Nobel de Literatura.
E essa unânime admiração que hoje se vê,
começou, realmente, lá atrás!
Se, em 1898, o mundo chorava a morte da
imperatriz Sissi, que acabara de ajudar a entrada do filho
de Isabel na prestigiada Academia Militar de Wiener-
Neustad, o Brasil se decepcionava a cada dia com a sua
República. Dessa decepção, nem Isabel nem o seu marido
tomaram conhecimento, pois em 1905 ela se instalou no
368 | Felipe Negreiros

castelo D’Eu, na Normandia, que era uma enorme e


belíssima casa construída no século XVI, onde passava,
religiosamente, os verões e os outonos. O interior da
residência era destinado a reunir os móveis, os quadros e
os papéis que pertenceram à família imperial. Foi lá que os
seus herdeiros aproveitaram para reconstruir a memória
de sua família, registrando os momentos dos seus pais, dos
seus filhos e dos seus netos.
Era um mundo idílico bem diferente da
efervescente crítica que pedia o retorno do corpo de Pedro
ao Brasil, feita por civis e até por autoridades do governo
brasileiro. Vide o ocorrido no dia 5 de fevereiro de 1906,
em Petrópolis, quando uma estátua sua foi inaugurada na
presença de autoridades federais e de mais de 1.500
pessoas. Nessa oportunidade, todos os presidentes dos
Gabinetes do império ainda vivos subscreveram uma
petição exigindo do governo instaurado a volta do corpo
do imperador. Esse mesmo governo, na ocasião, resolveu
as pendências da sua herança com a sua filha e os seus
netos. Isabel aproveitou, primeiro, o dinheiro herdado
para comprar a casa em que morou em Boulogne, uma
área bem refinada, à época, no subúrbio de Paris. Depois,
o utilizou, para realizar com o seu marido uma volta ao
mundo de cento e dezoito dias, organizada por uma
empresa de turismo, chamada de “Cook and Sons”. Isabel
dizia que essa era a etapa final de sua educação, algo que
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 369

iria fazer-lhe uma diferença para o resto de seus dias.


Enquanto isso, no Brasil, o povo não se conformava com o
ocorrido.
Em 1906 foi apresentado um novo projeto à
Câmara dos Deputados determinando o retorno do corpo
do imperador e o fim do banimento da sua família. Foi em
1914, na tribuna do Senado, que o último líder do golpe de
15 de novembro de 1889 (ainda vivo naquela altura – que
ordenou o seu banimento – o senador Rui Barbosa),
impactou a Nação, ao refletir que:

“A falta de justiça, Srs. Senadores, é o


grande mal da nossa terra, o mal dos
males, a origem de todas as nossas
infelicidades, a fonte de todo nosso
descrédito, é a miséria suprema desta
pobre nação. De tanto ver triunfar as
nulidades, de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes
nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar da virtude, a rir-se da honra, a
ter vergonha de ser honesto. Essa foi a
obra da República nos últimos anos. No
outro regime (a Monarquia), o homem que
tinha certa nódoa em sua vida era um
homem perdido para todo o sempre, as
carreiras políticas lhe estavam fechadas.
Havia uma sentinela vigilante (Pedro II), de
cuja severidade todos se temiam e que,
acesa no alto, guardava a redondeza,
como um farol que não se apaga, em
370 | Felipe Negreiros

proveito da honra, da justiça e da


moralidade”.

Rui reconhecia o absurdo que fora o banimento e


pedia a volta do corpo de Pedro ao Brasil. Seu pedido só
não teve uma resposta imediata devido à Primeira Guerra
Mundial, marcada fortemente pelo conflito entre a
Alemanha e a França, que Isabel e os filhos tanto amavam.
Era um conflito não só de países, mas também de primos e
os príncipes brasileiros estavam entre eles. Isso fez com
que Isabel abrisse o seu castelo, para que fosse
transformado em um hospital, onde foram atendidos
centenas de soldados franceses feridos no “front”.
Foi em 15 de outubro de 1914, em meio aos
preparativos para adaptar a sua casa para a nova
realidade, entre as batalhas de Arras e Isonzo, que Isabel e
D’Eu comemoraram as suas bodas de ouro ao lado dos três
filhos, noras e netos. Foi aí e nessa época que eles viveram
mais uma guerra, que reservou a ambos uma outra grande
provação: a perda do seu filho mais novo, Antônio, morto
em novembro de 1918, quando pilotava um avião perto de
Londres. Todos o tomaram como um herói de guerra, fato
que não aliviou a dor dos pais. A dor da perda não
diminuiu nem mesmo com essa campanha que levava o
Brasil a pedir que os corpos de Pedro e Teresa
retornassem. O movimento era encabeçado por periódicos
como o republicano “A Cidade do Rio”, que chegou a
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 371

afirmar: “O Brasil é tão largo, que não se pode invejar


alguns pés escassos de terra para ele”. E exigiu: “Tragam-
no de volta”. “A Gazeta da Tarde” também se manifestou:
“Pedro merece um funeral oficial em seu próprio país”.
Inúmeras pessoas ligadas ao mundo cultural
entoavam esse mantra, cantando, como visto, desde o fim
do século XIX e início do século XX. Entre elas, Afonso Celso
de Assis Figueiredo Júnior escreveu em 1895 no “Comércio
de São Paulo”: “O corpo de D. Pedro não pode continuar a
jazer em território estrangeiro”. Olavo Bilac esqueceu o
quanto criticou o seu neto, Pedro Augusto, e escreveu
nesse mesmo ano de 1906, reforçando o coro: “A pátria
reclama o seu corpo e ela irá tê-lo”.
Os vários comentários ganharam tal força, que, já
em 1916, o próprio presidente Venceslau Brás aprova o
mencionado projeto de traslado dos corpos de Pedro e de
sua esposa, prorrogando a sua formalização para a ocasião
do centenário da Independência. Nessa ocasião, sob o
governo de Epitácio Pessoa, os corpos dos imperantes
voltam ao Brasil. O presidente, no dia 3 de setembro de
1920, usando uma pena dourada, assinou o Decreto de
número 4.120, que revogou o banimento do imperador e
de toda a sua família; decretou o dia da sua chegada
feriado nacional, e que o mesmo fosse recebido como
herói, com honras militares. Além disso, o trecho da hoje
372 | Felipe Negreiros

Central do Brasil que se dirige a Petrópolis foi novamente


denominado de Pedro II.
O historiador Pedro Calmon, que escreveu a maior
obra sobre Pedro de Alcântara, descreve a cena assim: “Os
velhos choravam. Muitos se ajoelhavam. Todos batiam
palmas. Não se distinguiam mais republicanos e
monárquicos. Eram brasileiros”. Eram todos unânimes em
dizer, na época e ainda hoje, que Pedro foi e é visto como
o maior de todos os brasileiros, como o Pai da Pátria.
Foi com esse sentimento de reencontro que
Epitácio Pessoa determinou ainda a construção do seu
mausoléu na catedral de Petrópolis, o que só se
concretizou, de fato, em 1939, sob o governo do
presidente Getúlio Vargas.
Vargas, por decreto, também reservou ao Museu
Imperial de Petrópolis o papel de local onde ficariam
guardadas a memória da monarquia brasileira e a memória
de seu principal personagem. Encontram-se lá a belíssima
coroa imperial, louças, as vestimentas oficiais em que o
imperador abria as sessões do Parlamento e fazia a fala do
trono e também o estupendo cofre de joias que o rei da
França deu à princesa Dona Francisca, sua nora, na ocasião
do seu casamento.
O próprio Getúlio Vargas fez questão de inaugurar a
capela mortuária ao lado do príncipe D. Pedro de Orléans e
Bragança e dos seus cinco filhos.
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 373

Sobre os túmulos, Leão Veloso, esculpiu os corpos


de Pedro e Teresa de forma estendida; à frente deles,
veem-se os vitrais desenhados por Carlos Oswald, que
representam a ascensão e a queda do Brasil imperial, onde
se lê o poema-lamento de Pedro em que pede justiça de
Deus na voz da história.
374 | Felipe Negreiros
Sou Pedro..., O Imperador do Brasil | 375

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