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Daniele Conceição Scarinci Pinto da Cruz

Introdução a um estudo da linguagem em Nietzsche

Trabalho de conclusão de curso


Monografia apresentada ao Departamento de
Filosofia da PUC-Rio como requisito para a
obtenção de título de Bacharel em Filosofia.

Orientador: Luiz Camillo Osório

Rio de Janeiro
Dezembro de 2013
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Agradecimentos

Ao professor Luiz Camillo Osório, por sua orientação e cuidado.

À minha família, por todo apoio.

Ao professor Rogério Soares da Costa e ao amigo Pedro Chagasteles, pelas


conversas e a paciência.

Aos professores de filosofia da PUC-Rio, pelas aulas inspiradoras, em especial


a Katia Muricy.
! #!

Sumário

Introdução 4
A gênese da linguagem 9
A verdade metafísica 15
Considerações finais 23
Bibliografia 29
! $!

Siglas para as citações das obras de Nietzsche

A Gaia Ciência FW/GC

Além do Bem e do Mal JGB/BM

Assim Falou Zaratustra Za/ZA

Crepúsculo dos Ídolos GD/CI

Ecce Homo EH/EH

Genealogia da Moral GM/GM

Humano, Demasiado Humano, v.2: O Andarilho e sua Sombra WS/AS

O Nascimento da Tragédia GT/NT

Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral WL/VM


! %!

“Um poema, com seu mistério, corta ao meio o sentido da vida, preso a mil palavras
triviais, e transforma-o num balão que foge voando. Se, como é costume, chamarmos
isso de beleza, a beleza seria uma mudança indizivelmente mais cruel e implacável do
que qualquer revolução política!” (“Um Homem sem Qualidades” - Robert Musil)

Introdução

O presente trabalho se propõe a introduzir um estudo sobre a linguagem em


Nietzsche, em meio a algumas das muitas questões que ele suscita, partindo do seu
texto de juventude “Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral” (doravante
“Verdade e Mentira”), no qual talvez se concentre o essencial das suas concepções
sobre o tema. Artigos de comentadores também serão abordados para mais
esclarecimentos, assim como outros livros do filósofo, tomando sua obra como um
conjunto.

Em “Verdade e Mentira”, Nietzsche fala da linguagem no contexto de uma


crítica epistemológica. Está ali sua famosa frase: “As verdades são ilusões, das quais
se esqueceu que elas assim o são” (WL/VM, p.36). Um contra-senso à primeira vista,
essa afirmação será o centro do ataque que, nesse texto, o filósofo desferirá à nossa
noção elementar de verdade como adequação. Ele abre o texto com uma fábula em
que assume um ponto de vista naturalista, e assim ilustra a pequenez dos homens e
seu conhecimento, perante a magnitude do cosmo:

“Em algum remoto recanto do universo, que se deságua fulgurantemente em


inumeráveis sistemas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da “história
universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Após alguns respiros da
natureza, o astro congelou-se, e os astuciosos animais tiveram de morrer.” (WL/VM,
p.25)
Assim começa todo um processo de comparações e arranjos que tem em vista
rebaixar a divindade do intelecto e, com ele, suas certezas: as verdades, por nós
inventadas. Tudo isso que, desde os primórdios da filosofia, foi tido como o que de
mais nobre e precioso têm os homens - seres voltados, por essência, ao conhecimento.

Tendo isso em conta, parece claro que Nietzsche, com seu rolo compressor
sobre tudo o que tínhamos de seguro, está nos levando ao completo ceticismo. Mas
não é um ceticismo que sua filosofia busca estabelecer. Sua meta não é eliminar a
verdade, colocando nossa linguagem como limitada e nós como incapazes de alcançar
! &!

as coisas mesmas - pelo contrário, é contra o ceticismo, contra um vazio de sentido e


de valores fortes, contra uma visão de homem incapaz, que seus esforços se voltam.
Se ele se coloca no papel de destruidor é porque vê necessidade de abrir espaço para
novas construções.

“O homem tornou-se gradualmente um animal fantástico, que mais que qualquer


outro tem de preencher uma condição existencial: ele tem de acreditar saber, de
quando em quando, por que existe, sua espécie não pode florescer sem uma periódica
confiança na vida! Sem fé na razão da vida!" (FW/GC, §1).
É necessário que tenhamos sentido para a existência, pois, como Nietzsche
coloca na Genealogia da Moral, “o que revolta no sofrimento não é o sofrimento em
si, mas a sua falta de sentido” (GM/GM, II, §7), não é a dor que é insuportável ao
homem, mas a dor sem sentido. Os valores vigentes na modernidade, no entanto,
segundo ele, já não dão mais conta de trazer significado às experiências atuais. Ainda
assim, eles se mantêm devido a uma velha crença, uma noção básica e milenarmente
tradicional: a de que nosso conhecimento alcança uma essência das coisas, um mundo
em si mesmo, invariável, primário a qualquer ação humana.

Quando reivindica o caráter ilusório e mentiroso das nossas construções


linguísticas, é com a noção metafísica de verdade, em sua pretensão de plenitude, que
o filósofo dialoga. É importante sempre ter em mente, ao ler Nietzsche, que suas
propostas e sua linguagem “pertencem a contextos específicos e não-redutíveis uns
aos outros” (SAMPAIO, 2007, p.90). Ao escrever, o filósofo assume seu caráter
interessado em relação às questões que adota, e usa as palavras de acordo com
diferentes pontos de vista, pelas diferentes acepções que delas se apossam em
diferentes contextos, tratando a linguagem, justamente, da maneira que a concebe:
fundamentalmente retórica, não como se tivesse alguma conexão essencial com a
realidade, ou uma forma de uso correto, mas “como se todas as palavras (…) fossem
bolsos em que ora isso, ora aquilo, ora várias coisas de uma vez foram metidas!”
(WS/AS, §33).

É contra a univocidade da postura metafísica, uma postura milenar que


pretende ter nas palavras representações neutras e totalizantes das coisas, que em
“Verdade e Mentira” ele investe (ofensiva que permeia toda sua obra). Para balançar
essas concepções canônicas, tão arraigadas em todos nós, ele se apossa dos ideais
metafísicos, mistura e reverte aquilo que se costuma ter como impróprio com aquilo
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que se tem de mais próprio, trata nossas verdades como mentiras1, ilusões, para,
assim, fazer aparecer a arbitrariedade de sua contraposição estanque. Pode-se dizer,
com isso, que ele está se apossando dos termos metafísicos para implodi-los
(MATTIOLI, 2010, p.49).

Através de uma crítica da linguagem, reivindicando seu caráter metafórico e


convencional, Nietzsche realiza uma crítica a certa concepção de mundo. A metafísica
parte de uma realidade externa coesa, a qual nosso juízo poderia se adequar
alcançando uma verdade única e segura. Assim consolidaria-se um domínio
teleológico sobre a natureza, desvelando-a como um todo, cada vez mais pondo fim
aos seus mistérios. O objeto poderia ser apreendido passivamente pelo intelecto
humano, em sua imutabilidade, a partir da perspectiva correta.

Essa proposta de verdade neutra relega o ato criativo do homem ao seu oposto:
a mentira. Nessa dualidade, a metafísica desvaloriza a atividade humana, que, para
Nietzsche, é condição de qualquer verdade. Uma hipocrisia, como ele coloca na
citação acima, já que a linguagem mesma que constitui essas verdades, como ele irá
propôr nesse texto de 1873, parte de uma invenção inteiramente parcial, que foi por
nós esquecida.

Em “Verdade e Mentira”, ainda influenciado pelas filosofias de Kant e de


Schopenhauer, Nietzsche coloca a questão em termos de uma coisa-em-si
inalcançavel pelo conhecimento humano, mas, mais tarde, irá se opor à existência
mesmo de uma realidade autonomamente subsistente, exterior ao homem: “não existe
‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir” (GM/GM, I, §13), ele dirá em 1887. É
importante apontar o alcance da crítica nietzscheana que já pode ser antevista neste
ensaio de juventude. Com isso, ele também não está aderindo a um idealismo. Sua
filosofia não concebe uma realidade una, mas plural, como uma rede de relações em
que os elementos não convêm ser pensados isoladamente, com sentido ou existência
em si mesmos.

“O perspectivismo nietzschiano reenvia, assim, a dois pólos de uma mesma metafísica


arcaizante que ele intenta superar: de um lado, o realismo - pelo qual conhecer é
apoderar-se do mundo tal qual ele é em sua verdade (...). Por outro, o idealismo - pelo
qual o real concorda com o pensamento que é o produto de um sujeito. Para Nietzsche,
não há nem uma realidade substancializada, anterior ao sujeito (ao eu) e fora deste, e

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"! “mentir conforme uma convenção consolidada, mentir em rebanho num estilo a todos obrigatório”
(WL/VM, p.37)!
! (!

nem um sujeito anterior (um eu substancializado), gerador de realidade.” (MARINS,


2008, p.126-7)
O sentido, desta forma, não subsiste - pronto - no mundo ou no homem, mas se
constituirá na relação, na perspectiva que se estabelecerá entre eles. O sem-sentido de
uma realidade em si mesma, no entanto, não lhe indicaria uma falta, e sim um
excesso; um excesso de perspectivas possíveis, já que tudo o que existe, existe sempre
em múltiplas relações: “excesso é exatamente o que lhe impede [à realidade] de
ganhar um único sentido” (MELO, 2011, p.31)

Aparências, interpretações melhores e piores, perspectivas estabelecidas umas


sobre as outras num jogo de dominações em cima da linguagem, são o que compõe
nossa realidade, na qual não há um ponto de vista absoluto e neutro.

“sentidos e valores não provêm de um fundo ou plano metafísico que já os


possuiriam prontos e seriam acessíveis somente ao homem pelo pensamento, mas
emergem a partir de um ato de criação” (MELO, 2011, p.28)
Sentidos e valores precisam ser interpretados em meio às múltiplas relações,
sempre em devir2. E há necessidade, para os homens, de dar forma ao caos
desesperador e exaustivo das sensações para que possamos lidar com elas.

“criamos os “modelos”, unidades, ideais, (...) de maneira que a vida torne-se possível
de ser vivida (...) sem eles, não haveria qualquer construção histórica de sentido, e
antes mesmo qualquer vivência” (CORTÊS, 2010, p.22)
Com a linguagem construímos formas, uma “ficção de permanência”
(MATTIOLI, 2010, p.42) que torna as impressões constantes e dissonantes,
manejáveis.

Nietzsche busca mostrar, assim, que não podemos apreender a verdade como
um todo, e isso não por algum defeito da linguagem ou limitação do homem, mas pela
própria condição perspectivista da existência, em que assumimos posições
contingentes.

“Percebemos assim que “conhecer”, para Nietzsche, não pode ser compreendido
somente como uma teoria da concordância entre verdade e realidade (realismo), ou
entre as categorias da subjetividade e os objetos do mundo (racionalismo); mas, por
conhecer faz-se necessário dizer um modo de ser no mundo.”(MARINS, 2008, p.134)

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#! Para Mattioli, a afirmação do devir, em Nietzsche, seria uma “espécie de aposta ontológica”
(MATTIOLI, 2010, p.41). Para uma interpretação das concepções de Nietzsche à respeito da natureza
como relações de forças múltiplas, em que as relações constantemente redefinem as partes, ao mesmo
tempo que as singularidades destas atuam sobre as relações, ver “Subjetividade e perspectivismo: a
dissolução do sujeito metafísico a partir de uma lógica das relações em Nietzsche”, de Danilo Augusto
Santos Melo.
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Mas Nietzsche diagnostica nossa linguagem, em seu poder de evocação de


sentido, como doente, e sua doença é a metafísica. Para entender a crítica que ele faz à
linguagem, é preciso entender, principalmente, o domínio que o impulso à verdade
deteve sobre ela ao longo dos últimos milênios, o que será visto na nossa segunda
sessão. Primeiro, abordaremos sua concepcão da constituição das palavras conforme
exposto em “Verdade e Mentira”; uma concepção que afasta das proposições qualquer
neutralidade possível.
! *!

A gênese da linguagem
Em “Verdade e Mentira”, Nietzsche nos apresenta o nascimento de uma
palavra a partir de um impulso artístico calcado numa perspectiva, acentuando seu
contraponto à tradição filosófica que concebia a definição das coisas como uma
captação de sua essência.

“De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora.


A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez,
um completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e
nova.” (WL/VM, p.31)
A criação da palavra parte de um estímulo nervoso subjetivo, um estímulo
fundamentalmente inestético, que perturba e impulsiona a ser apaziguado numa forma
(MURICY, 2000, p.30). Como já foi visto, nós temos essa necessidade de dar forma
ao caos desesperador e exaustivo das sensações para que nos seja possível lidar com
elas. Essa sensação forte e incômoda incitaria em nós, então, uma força plástica. O
estímulo disforme seria então dominado por essa força modeladora, que o transporia a
uma imagem e, novamente, a um som. A atividade metafórica se manifesta, portanto,
já no nosso ato de percepção, ao estabilizar em uma imagem as impressões amorfas.
Assim, pode ser tida como “um elemento pré-linguístico de essência ‘estética’,
referid[a] a uma vontade artística” (MURICY, 2000, p.40), que dará origem à palavra.

O termo “metáfora” é usado para falar de um salto entre âmbitos


completamente diferentes (de estímulo nervoso a imagem, e de imagem a som); um
deslocamento em que há total discrepância nos resultados da passagem de um
domínio para o outro. Segundo Mattioli, o filósofo usa “metáfora” no sentido amplo
do termo: “a metáfora pode ser vista, em razão de um princípio de economia, como
um conceito operacional capaz de descrever a pluralidade de substituições
figurativas” (MATTIOLI, 2010, p. 42) que ocorrem na constituição da linguagem.
Nietzsche exemplifica essas substituições figurativas com a imagem de um “pintor
cujas mãos lhe faltassem e quisesse, ainda assim, expressar pelo canto a imagem por
ele visionada.” (WL/VM, p.42). Apesar de sugerir que a mudança de esferas se dá
devido a uma privação frente a um meio de expressão adequado, o exemplo ilustra
bem os resultados da atividade metafórica: “uma reprodução infiel, uma réplica que
reproduz analogicamente, sempre perdendo o modelo.” (MURICY, 2000, p. 39).

A palavra não é uma reprodução do estímulo, mas sua transposição para um outro
âmbito. “Transposição” significa interpretar, redimensionar. (…) é sintoma de um
! "+!

impulso para tornar-se senhor das coisas, dominando-lhe o sentido. (SAMPAIO,


2007, p.98)
As palavras advêm de uma “capacidade ficcional” (MURICY, 2000, p.31) do
homem, numa ação duplamente metafórica em que não se mantêm relações de
semelhança, mas uma relação estética3, numa produção assistemática por excelência.

A tradição filosófica sempre manteve a noção de uma linguagem literal,


adequada, que antecederia a metafórica. Esta última seria fruto de um uso impróprio,
um desvio do literal, com fins meramente retóricos. Já segundo essa concepção de
Nietzsche, a linguagem seria fundamentalmente figurativa: a metáfora não seria um
uso impróprio, mas base mesmo da constituição linguística. Como cita Mattioli, a
partir das anotações do curso sobre retórica que Nietzsche dera pouco tempo antes de
escrever “Verdade e Mentira”:

“O argumento central acerca da oposição entre linguagem natural e figuras retóricas é


que, em última instância, essa oposição não existe. “Em suma: os tropos não vêm ter
às palavras somente de vez em quando, mas são sua natureza mais própria. Não
podemos falar de forma alguma de um “significado próprio”, o qual seria transposto
apenas em casos especiais.” (Darstellung der antiken Rhetorik, p. 427)” (MATTIOLI,
2010, p.47).
Ao desfazer essa oposição (literal/metafórico) e colocar a atividade figurativa
como condição do chamado “uso literal”, Nietzsche estaria trazendo toda a linguagem
a um caráter tradicionalmente reservado à “impropriedade” - ou, ao inverso, estaria
trazendo toda a linguagem àquilo que, segundo ele, há de mais próprio no homem:
seu impulso metafórico artístico (LOBO, 2007, p.338). Pois, em “Verdade e Mentira”
(em consonância com sua afirmação da necessidade de trazer a um sentido as
sensações múltiplas disformes), é essa atividade metafórica que o filósofo assume
como traço fundamental do homem, “ao qual não se pode renunciar nem por um
instante, já que, com isso, renunciar-se-ia ao próprio homem” (WL/VM, p.45).

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$! É interessante notar que Nietzsche assume como centro da sua abordagem da estética o

ponto de vista do criador - o aspecto do processo criativo - no lugar de tomar por estudo o que
tradicionalmente se aborda: a obra e sua contemplação. Na Genealogia da Moral, Nietzsche
mesmo estabelece o contraste da sua posição com relação à tradição: “Kant, como todos os
filósofos, em vez de encarar o problema estético a partir da experiência do artista (do criador),
refletiu sobre a arte e o belo do ponto de vista do “espectador”” (GM, III, §6). Como
Nietzsche coloca na sua autocrítica do Nascimento da Tragédia, sua proposta com a estética é
“ver a arte sob a ótica da vida” (GT/NT, “Tentame de Autocrítica”, §2), direcionar a criação
artística para a vida, para novos modos e sentidos para a existência, já que não há sentido na
existência por si mesma. Assim, Nietzsche privilegia o engajamento ativo com a experiência
estética, que, como podemos ver em sua exposição sobre a origem da linguagem, é nossa
maneira de nos relacionar com o mundo.
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No lugar de um impulso ao conhecimento, então, ele distingue no homem, um


impulso à criação. O criador da linguagem “designa apenas as relações das coisas
com os homens” (WL/VM, p.31), calcado num determinado encontro com o mundo,
numa perspectiva, e, em suas transposições metafóricas, voa para longe do “cânone da
certeza” (WL/VM, p.31). Pois não é por algum saber essencial que se dará a escolha
do que levar em consideração e o que desconsiderar, de que características priorizar
sobre outras, para assim classificar e definir.

Nossas expressões linguísticas teriam um fundo essencialmente inventivo e


retórico, isto é, interessado, em que cada um tenta fazer valer sua perspectiva, sua
impressão das coisas, pelo uso de metáforas. Com sua interpretação figurativa da
linguagem, portanto, Nietzsche rejeita a ideia de formas de designação que fossem,
em si mesmas, adequadas:

“Ao rejeitar a primazia do literal, Nietzsche rejeita simultaneamente a visão da


verdade como correspondência. Ele não alega simplesmente que a metáfora não passa
no teste da correspondência, mas que as afirmações supostamente literais também
falham nesse teste, e que esse teste apenas seria apropriado se uma relação literal
entre palavra e objeto existisse”. (HINMAN, 1982, p.193)
Sem uma universalidade ou necessidade na forma da percepção que dá origem
à linguagem, no entanto, como Nietzsche coloca a seguir, não se pode falar numa
conexão natural com as coisas.

“A mim me parece, em todo caso, que a percepção correta - que significaria a


expressão adequada de um objeto no sujeito - é uma contraditória absurdidade: pois,
entre duas esferas absolutamente diferentes tais como entre sujeito e objeto não
vigora nenhuma causalidade, nenhuma exatidão, nenhuma expressão, mas, acima de
tudo, uma relação estética, digo, uma transposição sugestiva, uma tradução
balbuciante para uma língua totalmente estranha. Algo que requer, de qualquer modo,
uma esfera intermediária manifestamente poética e inventiva, bem como uma força
intermediadora. (WL/VM p.41)
Essa esfera intermediária poética e inventiva é a linguagem, que dará forma às
impressões fugidias, concedendo uma unidade bem delimitada às sensações
dissonantes, impondo uma estabilidade formal momentânea, pela qual o intelecto
poderá pensar suas relações múltiplas e volúveis. Assim, “para cada relação um
sentido singular é atribuído ao existente, a partir de uma dinâmica interpretativa
inesgotável” (MELO, 2011, p.30).

Mas para que as palavras possam ser compartilhadas, isto é, para que a
comunicação ocorra, é imprescindível a não individualidade da expressão linguística.
Como fruto de estímulos subjetivos, de fenômenos estéticos singulares, é necessário
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que ocorra aos termos uma generalização para que estes abarquem experiências
distintas, e assim duas pessoas se entendam. Essa generalização é a criação do
conceito.

“toda palavra (...) deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes,
isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos nitidamente desiguais, portanto.
Todo conceito surge pela igualação do não-igual.” (WL/VM p.34-5)
A formação de conceitos é necessária para a compreensão mútua, pois “cada
metáfora intuitiva é individual e desprovida do seu correlato, por isso, sabe sempre
eludir a todo rubricar” (WL/VM, p.38); cabe à “banalização” conceitual, em sua
diluição da força sensível original, torná-la compartilhável. Mesmo entre uma folha e
outra de uma árvore, conforme exemplo dado em “Verdade e Mentira”, existem
sempre aspectos diferentes, que precisam ser ignorados para que todas se igualem sob
o conceito “folha”.

“Comunicar é tornar comum e tornar comum em dois sentidos: comum a todos – pela
linguagem, o homem compartilha, ou tenta compartilhar, experiências vividas – e
medíocre, trivial, vulgar, banal.” (CALOMENI, 2011, p.232)
Se tomamos a linguagem como um elemento social, sede daquilo que é
comum, então a ação generalizante é parte integrante da linguagem. Assim, “está na
essência da linguagem enquanto formadora de conceitos (...) a simplificação e
redução daquilo que nomeia e faz existir” (HENRIQUES, 2006, p.2). Simplificação e
redução são próprios do compartilhamento, pela eficácia e rapidez comunicativa, mas
as metáforas, com seus estímulos singulares, estão na base de todo conceito. O
estímulo nervoso, então, inicia a criação das palavras, que serão continuamente
reapropriadas por outras visões e se diluirão no meio social. É assim que obtemos os
universais, sobre os quais vamos construir o nosso conhecimento.

Vimos, portanto, que são impulsos fisiológicos4, inconscientes e arbitrários,


que estão na base das nossas construções racionais. Como coloca Carvalho: “não há
valoração sem um suporte afetivo. O lugar da afetividade, segundo Nietzsche, é
central para o conhecimento do mundo." (CARVALHO, 2007, p.102). Fica clara a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
%! “a noção nietzschiana de ‘fisiologia’ está associada aos processos de assimilação e
regulação do organismo como um todo e aos instintos e atividades que potencializam ou
diminuem sua vitalidade, incluindo assim tanto o âmbito ‘físico’ (digestão, circulação
sanguínea, ruminação, etc.), quanto o âmbito ‘psíquico’ (os afetos, os instintos, os estímulos
nervosos, etc.) (...) tornando tais esferas interdependentes, pois as múltiplas vivências do
organismo constituem uma dinâmica indissociável.” (BITTENCOURT, 2011, p.3). Por
fisiologia, então, ele trata os diversos impulsos corporais organizados entre si numa
hierarquia.
! "$!

importância do corpo para o filósofo: é a partir dele que temos o contato com o
mundo, e a partir dele que damos forma à nossa experiência, sendo que o que chega à
consciência são apenas “as últimas cenas” do embate de forças corporais que avaliam
e lutam por domínio (FW/GC, §333).5

“o surgimento da linguagem não procede, pois, logicamente, sendo que o inteiro


material no qual e com o qual o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, mais
tarde trabalha e edifica, tem sua origem, se não em alguma nebulosa cucolândia, em
todo caso não na essência das coisas.” (WL/VM, p.34)
Ao admitir pulsões e afetos, a partir de uma certa perspectiva, como base da
formação da linguagem, Nietzsche rompe com a pretensão de neutralidade do
conhecimento (LOBO, 2007, p.337). Ele é fruto de um arbítrio artístico, que dá nome
às sensações, e assim estabelece certo domínio sobre a realidade.

É importante esclarecer aqui, por fim, que ao falar de uma origem da


linguagem, Nietzsche não busca estabelecer “uma origem como fundamento
originário, como uma essência ou uma identidade.” (LOBO, 2004, p.68). A origem,
para Nietzsche6, não seria um dado primeiro no tempo, como um começo substancial
do qual um processo teleológico se desenrolaria, unificando a multiplicidade de
acontecimentos em um objetivo; não seria também alguma plenitude perdida. Ele
quer ressaltar, na busca pelas origens, os pontos de emergência da linguagem em seus
diferentes aspectos, apontar suas diferentes proveniências. Não quer estabelecer um
princípio linguístico em determinado tempo, mas buscar as origens que se fazem
presentes, evidenciar a emergência dos aspectos perceptíveis em sua atualidade. E as
origens são recorrentes7, assim como múltiplas. Como pudemos ver, a linguagem não
surge de um fundamento único: advém de relações estéticas singulares, por impulsos
criativos, assim como da diluição de fenômenos múltiplos em um conceito, pela
necessidade de comunicação. Além disso, veremos a seguir como a metafísica irá se
apoderar da linguagem, conforme Nietzsche nos mostra em “Verdade e Mentira”,
com uma terceira força sobre ela: a moral. O problema é que, em meio a esse embate

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Em “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche chega a designar o corpo como “a grande razão”:
“O corpo é a grande razão (...) instrumento de teu corpo é também tua pequena razão”
(ZA/ZA, Primeira Parte, “Daqueles que Desprezam o Corpo”), que seria a razão que se torna
consciente, apenas uma pequena parte de todo processo racional.
6
O esclarecimento sobre a noção de origem em Nietzsche é consonante com a interpretação
de Foucault em “Nietzsche, a Genealogia e a História”.
7
No lugar de um tempo linear, progressivo, Nietzsche adota uma concepção de tempo
circular. Daí a possibilidade de recorrência das origens.!!!
! "%!

de forças, a metafísica, com sua imposição de um pensamento eterno e universal, se


sobrepõe ao ímpeto artístico e às necessidades de cada grupo, cristalizando a
linguagem e ocasionando seu gradual declínio de poder significativo.
! "&!

A verdade metafísica

Seguindo com seu combate às nossas pretensões de um ponto de vista


supremo e seguro, Nietzsche, em “Verdade e Mentira”, fala do intelecto como um
órgão como qualquer outro, desenvolvido a partir da relação do homem com o meio,
como instrumento para a conservação de bichos fracos, sem garras ou dentes afiados
que pudessem auxiliá-lo numa luta pela existência. Enquanto a tradição filosófica via
no intelecto a faculdade mais alta do homem, sua essência, Nietzsche o coloca como
fruto de um processo histórico, importante como o estômago. Longe de nascer como
instrumento para a verdade, ele surge de uma necessidade concreta, como meio de
conservação, tendo sua força máxima na dissimulação: como um inseto que, para se
proteger, camufla-se com o ambiente ou finge-se de morto, o intelecto humano exerce
sua preservação contra seres mais fortes através do disfarce.

Mas, sendo o disfarce sua atividade mestra, Nietzsche se pergunta como pôde
surgir, ao mesmo tempo, um impulso à verdade. A primeira pista estaria na união dos
homens em sociedade.

“porque o homem quer (...) existir socialmente e em rebanho, por necessidade e tédio,
ele necessita de um acordo de paz e empenha-se, então, para que a mais cruel bellum
omnium contra omnes [guerra de todos contra todos], ao menos, desapareça de seu
mundo.” (WL/VM, p.29)
Para impedir o conflito constante e garantir a manutenção da sociedade, é
instaurado um tratado de paz que fixa o que será “verdade”, isto é, determina “uma
designação uniformemente válida e impositiva das coisas” (WL/VM, p.29). São
acordos em torno de metáforas, que, após longo uso, começam a parecer necessários,
naturais. Daí Nietzsche dizer “[o homem] mente, pois, da maneira indicada,
inconscientemente e conforme hábitos seculares” (WL/VM, p.37).

Com o acordo de verdade, se quer os benefícios da verdade para o grupo, em


oposição aos malefícios do seu contrário, a mentira:

“o mentiroso (...) abusa das convenções consolidadas por meio de trocas arbitrárias
ou inversão dos nomes. Se faz isso de uma maneira individualista e ainda por cima
nociva, então a sociedade não confiará mais nele (...). Nisso, os homens não evitam
tanto ser ludibriados, quanto lesados pelo engano.” (WL/VM, p.29)
Mentira seria, então, aquilo que prejudica a conservação da vida em
sociedade. “Quem se nega a usar a língua segundo as regras estabelecidas se coloca
contra (...) a ordem social.” (PAGNO, 2010, p.52). Verdade e mentira, portanto, não
! "'!

nasceriam como um bem e mal em si, e não teriam originalmente qualquer relação
com uma noção de certeza. A dissimulação, também instrumento de conservação, não
se opõe a essa noção de verdade que se coloca a serviço da preservação da vida em
grupo. Ela é, pelo contrário, necessária à preservação dos acordos sociais, pois o que
seria da convivência sem “a ilusão, o adular, mentir e enganar, o falar pelas costas, o
representar, o viver em esplendor consentido, o mascaramento, a convenção
acobertadora, o fazer drama diante dos outros e de si mesmo” (WL/VM, p.27).

É, então, como conservação de uma determinada forma de vida que se


desenvolve o intelecto e é inventada a verdade.

“A suspeita que se levanta é que o mundo real dos conceitos, das construções do
intelecto, nada mais é do que uma fábula (...) uma invenção necessária à conservação
do indivíduo.” (PAGNO, 2010, p.43, 44)
Para disciplinar e controlar o caos à sua volta, esse animal sem força física
desenvolve a paciência, o cálculo, a capacidade de dissimular a complexidade do
mundo de impressões em sistemas formais estáveis, de dissimular para os outros seus
impulsos, calcado no acordo de paz em meio à comunidade, que fixa certas formas,
certas concepções.

Mas, considerando que mesmo os conceitos mais abstratos têm por base a
metáfora, uma interpretação singular, e não um sentido próprio das coisas que seria
desvelado, como é possível que as pessoas se entendam? Em Além do Bem e do Mal,
Nietzsche diz que vão se entender melhor as pessoas que partilham de estímulos
semelhantes:

“Não basta para a compreensão mútua utilizar as palavras, é necessário adaptá-las


àquela determinada espécie de acontecimentos interiores, enfim é preciso uma
experiência comum. Por este motivo, indivíduos que pertençam à mesma nação
entendem-se melhor entre si do que os de nações diferentes (…), os indivíduos que
conviveram longamente nas mesmas condições (clima, solo, país, necessidades,
trabalho) formam algo que "se compreende", um povo. (JGB/BM, §268)
Tanto para criar como para compreender é requerido o mesmo ponto de
partida: a experiência pessoal. O sentido das palavras, sua compreensão, só se dá pela
relação com estímulos subjetivos que, em última instância, é o que se busca transmir
com elas. É claro, uma experiência nunca será idêntica a outra, como a folha de uma
árvore nunca será igual a outra; a generalização, desconsideração de diferenças, faz
parte do compartilhamento, como dito acima. Relacionamos experiências o tempo
todo e podemos compreendê-las por identificações analógicas, mas é preciso uma
! "(!

experiência em comum para que se faça analogia.8 Como Nietzsche colocará em sua
última obra: “Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da
experiência” (EH/EH, “Por que escrevo tão bons livros”, §1). Mesmo os conceitos
mais abstratos sempre terão algum resíduo de metáfora. Como vemos em “Verdade e
Mentira”: a “transposição artística de um estímulo nervoso em imagens, se não é a
mãe, é ao menos a avó de todo conceito” (WL/VM, p.38). Daí dizer que se entendem
melhor os homens que partilham dos mesmos estímulos.

Um grupo, assim, estabelece suas palavras priorizando os fenômenos


recorrentes entre eles, desprezando as sensações mais sutis e incomuns. Dentro de um
mesmo contexto, de perspectivas similares, cunha-se termos que comunicam as
experiências coletivas, erguendo estruturas simbólicas que seriam compreendidas por
todos os membros.

Mas, de acordo com Nietzsche, o uso da linguagem que se deu no Ocidente


não foi o de interpretar e comunicar a partir dos contextos compartilhados. A
metafísica procurou estabelecer um mundo que fosse invariável, que servisse de
molde para classificar toda experiência, e isso adveio do impulso à verdade.

O impulso à verdade (ou vontade de verdade) surgiria como uma extrapolação


dos acordos do grupo, de uma necessidade do homem de tornar fixa uma concepção a
ponto de a poder pressupor, tomá-la como garantia, como realidade maior que aquela
dos sentidos, maior que ele mesmo. Como dito acima, conforme as metáforas usuais
vão sendo mantidas ao longo dos tempos, vão parecendo naturais, canônicas a um
povo. Esquece-se9, assim, da sua origem convencional e atinge-se com elas um
sentimento de verdade:

No sentimento de estar obrigado a indicar uma coisa como vermelha, outra como fria
e uma terceira como muda, sobrevém uma emoção moral atinente à verdade: a partir
da contraposição ao mentiroso àquele em quem ninguém confia e que todos excluem,
o homem demonstra para si o que há de venerável, confiável e útil na verdade.”
(WL/VM, p.37)
Numa reação aos malefícios que o mentiroso causa, e que causamos a nós
mesmos em meio ao grupo ao mentir, a verdade passa de mera utilidade social, como
que por metástase, a ser aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária, tomada por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
É possível, a partir disso, tirar uma idéia do porquê da tragédia grega - da ida ao teatro na
antiga Grécia - ser tida na época como uma experiência religiosa e política.
9
A questão do esquecimento é importante e rica em Nietzsche (tendo atenção especial na segunda
dissertação da Genealogia da Moral) e exige maiores pesquisas.
! ")!

um sentimento moral, uma sobrevalorização inconsciente da necessidade de


obediência (WOTLING, 2011, p.49). Tal impulso é a busca por conservar as
interpretações que mantêm a vida em rebanho, independente de algum grau de erro ou
acerto, de alguma correspondência com a realidade. “A verdade é um valor, e não
uma essência objetiva.” (WOTLING, 2011, p. 57).

Seguir os costumes gera um prazer recompensador, faz do homem um homem


bom em meio ao rebanho, e ele agora posta-se contra a metáfora “mentira”, contra a
própria quebra de acordo. A moral torna espiritualmente obrigatórios os acordos antes
meramente pragmáticos. Assim, acaba por se criar um mundo formal separado das
impressões caóticas - o mundo metafísico, “verdadeiro” - um novo mundo inabalável.

Com a metafísica, se dá a “perversão do ato legítimo de tornar comunicável


uma experiência” (CORTÊS, 2010, p.23). Uma certa estrutura conceitual assume
domínio exclusivo sobre a efetividade;

“agora faz frente ao mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais
consolidado, universal, conhecido, humano e, em virtude disso, como o mundo
regulador e imperativo.” (WL/VM, p.37, 38)

As formas precedem, categóricas, a qualquer conteúdo singular. A verdade


passa a ser
convencional é agora valorizada em si mesma, pois o homem se rende à ilusão que ele
próprio constrói, esquecendo-se que foi ele quem construiu. O intelecto, afinal de
contas, tem sua força mestra na dissimulação: ele dissimula seus próprios
procedimentos. Assim nasce o instinto para o conhecimento. A moral toma conta da
linguagem e a consolida em designações apropriadas, supondo nas metáforas já
desgastadas pelo uso, uma neutralidade, objetividade. Como aponta Foucault, a
Agora? Ou sempre!
palavra se coloca agora como “máscara (…) recobrimento da interpretação”, já que é
“uma interpretação que não se dá como tal”. (FOUCAULT, 2000, p.48-49).

Tomamos os conceitos, não por uma forma que comporta múltiplas


impressões, mas por substitutos das próprias coisas, como se fossem primários a
qualquer percepção; como se as sensações que o compõem derivassem de uma
essencialidade que a palavra carrega. Como Nietzsche exemplifica com o conceito de
“honestidade”:

“Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a
honestidade, mas, antes do mais, de inúmeras ações individualizadas e, por
conseguinte, desiguais, que igualamos por omissão do desigual e passamos a
! "*!

designar, desta feita, como ações honestas.” (WL/VM, p.35)


No entanto, com o uso:

“Denominamos um homem honesto; perguntamos então: por que motivo ele agiu
hoje de modo tão honesto? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em função de sua
honestidade. A honestidade!” (WL/VM, p.35)
Os conceitos se tornam instrumentos metafísicos, como se possuíssem um
sentido unívoco, e os tomamos como princípio primordial de todo pensar. Assim nos
detemos sobre a questão d’“A liberdade”, buscamos definir “A coragem”, e
analisamos ações em toda parte segundo “O egoísmo”.

É o que levará Nietzsche, posteriormente, a avaliar o “feitiço” que as


estruturas da linguagem detêm sobre o nosso pensar, enredado, em conceitos como
“unidade, identidade, duração, substância, causa, materialidade, ser” (CI, “A ‘razão’
na filosofia”, §5). Nossa crença na gramática, na transparência da linguagem, ele
conclui, é responsável pelas leis mais fundamentais da metafísica, pela nossa forma
cristalizada de ver o mundo. Responsável, portanto, por desconsiderarmos a
historicidade própria das nossas relações com ele.

“Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?.. Por exemplo, sua falta de
sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam
fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam, (sob a perspectiva da
eternidade) - quando fazem dela uma múmia.” (GD/CI, “A ‘razão’ na filosofia”, §1).
Cria-se um sistema abstrato o suficiente (distante o suficiente das sensações
dissonantes) para abarcar um “Todo”. Nos submetemos a formas pretensamente
universais de maneira a tornar uniforme nossa relação com o mundo, recusando seu
caráter circunstancial, exigindo das relações que sejam sempre as mesmas. Essa
estrutura pré-ordenada acaba funcionando como um narcótico, tornando para nós
insuportável lidar com o caos de impressões; abominável assumir a solidão e
incerteza constituintes da tarefa de interpretar constantemente as experiências.

“Como ser racional, [o homem] põe seu agir sob o império das abstrações: já não
tolera mais ser arrastado por impressões repentinas, pelas intuições, sendo que
universaliza, antes, todas essas impressões em conceitos mais desbotados e frios, para
neles atrelar o veículo de seu viver e agir.” (WL/VM, p.37)
Tendo em vista a paz de não mais precisar reinterpretar, buscamos acomodar
apressadamente o extraordinário a formas já familiares, assentá-lo no que é comum. O
impulso à verdade se impõe, soberano, aos impulsos criativos. De fixações
momentâneas a partir de determinadas perspectivas, as metáforas se petrificaram,
armadas contra a pluralidade de sentidos possíveis nas relações, num
! #+!

antropomorfismo que reconhece apenas a si mesmo, e quer apenas reconhecer.

“o ser humano só quer o que já foi vivido, portanto só deseja o que se encontra na
memória (deseja reconhecer). O conhecimento adequou desta maneira a natureza a
ele próprio, onde conhecer seria apenas reconhecer algo no interior do intelecto”
(FERREIRA, 2004, p.17)
Tomamos por real apenas o que se encaixa nas estruturas já existentes.
Considerando que as convenções linguísticas levam em conta experiências
reincidentes, aquilo que é compartilhável - o banal e comum -, as experiências
singulares vão sendo deixadas de lado, pois para elas não há designação estipulada,
não há palavras estabelecidas.

Assim, a linguagem relegou sua força expressiva, com a qual desvelava a


particularidade de uma experiência, para tornar-se veículo de pretensões de
imutabilidade, ou em um só termo, metafísica.” (CORTÊS, 2010, p.21)
A crítica nietzscheana da linguagem, ao longo de sua obra, se voltará a esse
domínio da metafísica sobre ela. Como ele resumirá em Além do Bem e do Mal §230,
a metafísica atende a uma “vontade de reduzir-se da multiplicidade à unidade”, “de
simplificar”, “de ignorar ou eliminar as contradições”; falseia arbitrariamente “certos
traços característicos do estranho”; “tem em mira (...) a interpolação de coisas novas
nos velhos ordenamentos.” A crítica recairá, principalmente, no esquecimento do
caráter ficcional, figurativo, da linguagem; na crença de que a linguagem metafísica é
a “expressão adequada de todas as realidades” (WL/VM, p.30), molde único para ver
o mundo, como se não houvessem outras perspectivas possíveis além da dominante,
nenhum outro elemento ou força além dos já nomeados.

Sem submeter tais formas às impressões atuais, no entanto, elas vão perdendo
seu poder sensível, tornando-se banais e mantendo apenas sua função pragmática.
Como coloca Nietzsche, ficamos com:

“metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, [como] moedas que
perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais
como moedas.” (WL/VM, p.36)
Perdemos a força significativa das verdades e, devido ao sentimento moral em
nós enraizado, ficamos com sua obrigação.

Apesar de nos permitir uma organização que seria de outra forma impossível,
nossas construções conceituais criaram uma cisão com o mundo sensorial, separando
a verdade do mundo volúvel das aparências. Esse “egipcismo” acabou por
desembocar no niilismo moderno, quando nossas verdades e as instituições que elas
! #"!

embasam perdem sua conexão com as sensações atuais, levando a um vazio


existencial. Todos aqueles conceitos tidos por sagrados, pelos quais os homens se
sentiam “seguros e identificados a um bem impessoal” (LOBO, 2013, p. 101), não são
mais capazes de prover sentido às múltiplas impressões e, no entanto, devido ao
domínio que a moral impôs sobre nossos instintos, se mantêm.

Perdeu-se de vista que é nossa relação com o mundo volúvel de aparências


que pode conferir poder significativo às palavras, trazendo sentido à vida atual,
através da criação. Com o esquecimento da base metafórica da nossa linguagem
aparentemente literal, a organização social também ocultou algo de importante sobre
nós mesmos (HINMAN, 1982, p.189):

“Somente pelo esquecimento desse mundo metafórico primitivo, apenas pelo


enrijecimento e petrificação de uma massa imagética (...), tão somente pela crença
imbatível de que este sol, esta janela, esta mesa são uma verdade em si, em suma,
apenas porque o homem esquece de si enquanto sujeito e, com efeito, enquanto
sujeito artisticamente criador, ele vive com certa tranquilidade” (WL/VM p. 40, 41).
Mas os instintos metafóricos, parte integral do homem, não foram vencidos.
Eliminados do campo de um “saber legítimo”, foram segregados para a arte:

“Tal impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem (...) não
é, em verdade, subjugado ou minimamente domado pelo fato de um novo mundo
firme e regular ter-lhe sido construído, qual uma fortificação, a partir de seus
produtos volatizados, o mesmo é dizer, os conceitos. Ele busca um novo âmbito para
sua ação e (...) o encontra no mito e, em linhas gerais, na arte.” (WL/VM p.45, 46)
Sendo a arte uma ilusão sem consequências, a moral permite que nos
enganemos, entregando-nos ao encantamento da fantasia, da dissimulação, ao qual
somos propensos. Livre da vontade de verdade que escraviza o intelecto, o homem se
libera e se deleita na arte:

“o próprio homem tem uma inclinação imbatível a deixar-se enganar e fica como que
encantado de felicidade quando o rapsodo narra-lhe contos épicos como se estes
fossem verdadeiros, ou então, quando o ator, no espetáculo, representa o rei ainda
mais soberanamente do que o exibe a efetividade. O intelecto, esse mestre da
dissimulação, acha-se, pois, livre e desobrigado de todo seu serviço de escravo
sempre que pode enganar sem causar prejuízo” (WL/VM, p.47).
Tanto a arte como a ciência são, igualmente, perspectivas. Mas a arte acaba
sendo menos mentirosa, no sentido em que, já de partida, se admite ilusória. Assim
sendo, na arte, o intelecto entrega-se à atividade figurativa com uma liberdade muito
maior em relação às metáforas estabelecidas, assumindo seu interesse de ficcionalizar
o mundo.

“Aquele descomunal arcabouço e travejamento de conceitos, sobre o qual o homem


! ##!

necessitado se pendura e se salva ao longo da vida, é para o intelecto tornado livre


apenas um andaime e um joguete para seus mais audaciosos artifícios (...) agora não é
conduzido por conceitos, mas por intuições.” (WL/VM, p.48)
Para que o impulso criativo se voltasse para a vida, no entanto, seria
necessário depor essa predominante soberania que o ideal de conservação por tanto
tempo manteve sobre o Ocidente.
! #$!

Considerações finais

A filosofia de Nietzsche se opõe à (como ele chama) idiossincrasia da tradição


filosófica: a negação do corpo, repúdia ao devir, a continuidade e teleologia,
sistematização e fixidez. Sua antropologia não deixa espaço para uma epistemologia
propriamente dita (um estudo que nos assegure das possibilidades e limites do
conhecer) e, ao mesmo tempo que ela nos diminui enquanto homens do
conhecimento, nos exalta enquanto homens criativos.

“Aqui, cabe muito bem admirar o homem como um formidável gênio da construção,
capaz de esguer sobre fundamentos instáveis e como que sobre água corrente um
domo de conceitos infinitamente complicado” (WL/VM, p.38, 39).
Como vimos, nos é necessário criar formas sobre o devir, idealizações e
convenções, pois não podemos prosperar sem crenças estáveis, sem uma
simplificação linguística ordenada das constantes impressões, sem uma razão para
viver. Mas vimos também que as estruturas conceituais no Ocidente já não são
capazes de prover sentido para a vida moderna e, mesmo assim, se colocam como
princípios últimos e definitivos, dado o esquecimento de sua origem simplificadora,
convencional, metafórica. A moral, baseada no império dos costumes, impôs um
domínio linguístico exclusivo sobre as impressões. Do ponto de vista social, afinal, a
criação inusitada é uma violência, uma ruptura da paz e da segurança, tida não só
como desnecessária, mas perniciosa. Partindo dessa valoração uniformizante, a
metafísica se propõe universal e busca eliminar de seus fundamentos aquele
movimento, próprio à linguagem, entre criações e manutenções, singulares e coletivos
- busca eliminar o movimento de embate entre perspectivas. Nesse caso, as ilusões se
estabelecem como consolo metafísico, como defesa contra a confusão angustiante da
qual podem surgir novos conhecimentos. Assim asseguram a ordem e a estabilidade, e
se colocam como empecilho para uma vontade de agir criando. Dominada pela moral,
a linguagem se torna “um obstáculo na relação do indivíduo com o que o rodeia”
(MARTON, 1990, p. 184) e, segundo Nietzsche:

“É preciso invocar prodigiosas forças contrárias para opor-se com sucesso a esse
natural, demasiado “natural” progressus in simile que é a degeneração do homem no
semelhante, no comum, no medíocre, no animal de rebanho, no vulgar! (JGB/BM,
§268)
Cada vez mais distantes das sensações de origem, as palavras se tornam
“cemitério de intuições”, levando à descrença no poder da linguagem, descrença no
! #%!

poder dos homens.

Por um desenvolvimento da própria exigência de verdade da moral, acabamos


por tomar consciência do caráter humano do mundo suprassensível10, o que levou ao
declínio dos valores metafísicos, no abalo espiritual que Nietzsche nomeia “a morte
de Deus” (FW/GC, §125). Não seria ainda de imediato, no entanto, que chegaríamos a
sentir todas as suas consequências: se Deus morreu, sua sombra ainda há de ser
vencida (FW/GC, §108). Conforme o velho hábito, continuamos buscando verdades
com autoridade sobre-humana para comandar nossa vida (razão, ciência, nação,
progresso). A crença nas verdades eternas permanece impregnada no nosso pensar,
como coloca Pagno:

“apesar de ser negada a existência de uma coisa em si, continua-se agindo e


pensando como se elas existissem, por exemplo: fala-se em “natureza humana”
ignorando as condições históricas, fisiológicas e genéticas que possibilitaram o seu
desenvolvimento. Portanto, o valor do humano continua atrelado a um “além”, a uma
finalidade e, por conseguinte, a uma moral e uma metafísica.” (PAGNO, 2010, p.13)
Nos agarramos às verdades desgastadas para nos salvar do abismo do sem-
sentido e, no entanto, conforme o mundo ideal perde sua potência, é para o abismo
que nos encaminhamos. É a ameaça niilista que Nietzsche constata no seu tempo -
quando os valores se desfazem, os homens perdem seus horizontes e arruínam-se os
fundamentos. Um caos que, segundo o filósofo, é inescapável ao nosso tempo:
podemos ser arrastados para ele ou nele mergulhar com força modeladora e assim
submetê-lo a uma forma. Mas, para isso, nossos valores devem ser revistos. É preciso
que se admita que: “a vida, essa existe na aparência, na arte, na ilusão, na óptica, na
necessidade de perspectiva e erro.” (GT/NT, “Tentativa de autocrítica”, §5).

Não se trata, para Nietzsche, de abolir as noções de certeza ou


correspondência; estas, no entanto, ficam restritas a sistemas formais.

“A primazia do sentido metafórico não exclui a possibilidade de referência ou de


verdade, mas fundamenta sua possibilidade no contexto de jogos específicos.”
(HINMAN, 1982, p.199)
É necessário que se possa dizer, com certeza, que um cachorro não é um gato:
“verdade é o tipo de erro sem o qual uma espécie de seres vivos não poderia viver.”
(Vontade de poder, §493). Trata-se, sim, de abolir a noção metafísica da verdade por
correspondência, que em sua oposição estanque de verdade e mentira elimina outras
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
"+! O que no prólogo de “Aurora”, §4, o filósofo chama de “auto-supressão da moral”. Já que

a verdade não permanece verdade, “quando se lhe tira o véu” (FW/GC, “prefácio”, §4).
! #&!

possibilidades de vida.

“Ora, a crítica nietzscheana à idéia de verdade a coloca em uma relação não mais de
oposição (que diz respeito a espécies), mas de hierarquia (que diz respeito a graus)
com a mentira ou a falsidade.” (COSTA, 2008, p.117)
Verdades são fruto de relações de valor, da vontade de conservar ou promover
certo tipo de vida. O filósofo fala, em “Verdade e Mentira”, na reunião da verdade
com o mundo das aparências, o que se dá a partir de uma “re-significação da idéia de
aparência na qual verdade e mentira se reinserem e se dissolvem” (COSTA, 2008,
p.117), reconduzindo o ímpeto artístico, fictício, para a vida. A aparência, para
Nietzsche, nasce com a atividade interpretativa do homem, com aquela construção
metafórica que se dá já no momento de perceber, pois sem ela, para delimitar e realçar
os traços que dá por principais, temos apenas um emaranhado de estímulos. Ele ilustra
a união indissolúvel do ideal com o aparente numa passagem de Crepúsculo dos
Ídolos:

“Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez?... Não! Com o
mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!” (CI, “Como o ‘mundo
verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, §6)
A verdade estaria, assim, diretamente ligada às aparências e à atividade
criativa. Levando-se em conta, então, que as relações entre homem e mundo se dão
em constante devir, é importante ressaltar o caráter intrinsecamente mutável dessa
noção de verdade.

“essas unidades comunicativas (...) nascem e se mantêm devido às interligações e às


intenções específicas, circunstanciais, que atualizam, e ao se dissipar a força que as
une, igualmente seu sentido se desfaz, dando vez a outro mais forte.” (CORTÊS,
2010, p.21)
Verdades morrem, mas isso não significa que, enquanto estejam vivas, não
sejam verdades. Nietzsche anuncia, em sua famosa passagem da Gaia Ciência (§125),
a morte de Deus, não sua inexistência, não a descoberta da sua mentira. “Deus está
morto”, ele afirma, pois “também os Deuses apodrecem!” (FW/GC, §125). O próprio
filósofo, ao escrever, se preocupa em se apresentar “mortal” nesse sentido, sem fazer
da sua filosofia um sistema, sem oferecer modelos. Pois os sentidos, como ele propõe,
se dão em meio às circunstâncias de cada tempo em sua particularidade.

“não somos mais os mesmos na medida em que mudamos de relação, de maneira que
já não nos relacionamos com o mesmo mundo de outrora, pois as relações que nos
constituem no presente já não são as mesmas que nos determinaram na antiga relação,
de modo que o mundo será, inevitavelmente, determinado por um outro sentido.”
(MELO, 2011, p.29)
! #'!

Assim, Nietzsche não propõe ter desvelado a realidade última a respeito da


linguagem e do mundo. Ele constrói uma interpretação a partir de suas impressões, do
seu interesse em avaliar o niilismo do seu tempo, para a partir disso (e levando em
conta as múltiplas forças que ele vê agir sobre a linguagem), propor a atividade
criativa como sua profilaxia.

“que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo,
substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”
(NIETZSCHE, GM, prólogo §4)
Em “Verdade e Mentira”, ele afirma a criação como aquilo que há de mais
próprio no homem. Em “Assim Falou Zaratustra”, anos depois, ele atrelará a palavra
“homem” a “aquele que avalia”; completando em seguida: “Avaliar é criar” (Za/ZA,
“Dos mil e um fins”). O homem é aquele que interpreta e, com a interpretação,
constrói sua existência. Com Nietzsche, como coloca Foucault, a interpretação se
tornou “uma tarefa infinita” (FOUCAULT, 2000, p.45).

“a alteridade própria da vida enquanto embate .. nos conduz à reinterpretação, ao


exercício [constante] de nossa capacidade mais elementar: criar novos sons para
novas experiências.” (CORTÊS, 2010, p.11)
Não há interpretação definitiva e não há ponto de vista superior; estamos
sempre enredados em múltiplas relações, em meio a nossas próprias construções, no
lugar de pairarmos livres sobre elas como um sujeito a priori - uno, autônomo e livre.
Também não há um modo de ser natural e livre escondido por trás das nossas
construções - temos um mundo graças à nossa atividade construtiva.

Para que se possa entender a positividade da filosofia de Nietzsche, é


importante apontar para sua recusa, em sua obra tardia, à existência da coisa-em-si,
pois só temos um homem (uma linguagem, um conhecimento) limitado, se olhamos a
partir da possibilidade da visão de um “Todo”, ou de um “em si”. Sem essa
objetividade pura, o que se tem é a produção de sentido.

“guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”,


“espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si” - tudo isso pede que se imagine um
olho que não pode absolutamente ser imaginado (...) Existe apenas uma visão
perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos
falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para
essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”.”
(GM/GM, III, §12).
A tentativa de um ponto de vista divino nos trouxe à desvalorização de nós
mesmos. A vontade de verdade nos tornou agudamente conscientes dos nossos
próprios artifícios (FW/GC, “prefácio”, §4), gerando um “ódio ao que é humano, mais
! #(!

ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão
mesma” (GM/GM, III, §28), pois declara-se haver uma “Verdade”, mas nossa razão é
incapaz de alcançá-la. O ceticismo instalado, no entanto, não é um estágio final ou
necessariamente mais verdadeiro. Talvez seja o estágio final de uma vontade de
verdade neutra, e por isso Nietzsche se esforce tanto por avariar essa concepção. Não
ver uma verdade é apenas uma postura diante de relações nas quais poder-se-ia ver
várias. Por que o não sentido seria mais verdadeiro que o sentido? Não há um mundo
em si mesmo, mas em relações, em relação com os homens, e os homens interpretam.
Seria como a abelha dar por mais verdadeiro não fabricar mel. Por que atribuir à
criação humana um valor negativo seria mais verdadeiro que atribuir a ela um valor
positivo? Tudo depende da avaliação, e Nietzsche preconiza valores por uma vida
intensa, criativa. Busca nos desenlaçar dessa criação própria do nosso nada,
instigando uma vontade de “criar (...) para além de si” (Za/ZA, I, “Dos desprezadores
do corpo”), indo além das próprias necessidades e da própria preservação. A novos
valores poderosos, numa hierarquização engajada, servem suas marteladas - não a um
ceticismo, a um relativismo em que tudo tem o mesmo valor e, portanto, nenhum.
Afirmar a verdade como criação não é uma provocação para que passemos a
desconsiderá-la, e sim para trazer à consciência a crucial tarefa de criá-la: “está em
nossas mãos “idealizar” a Terra inteira! (GM/GM, III, §26).

Apontar o caráter humano, contingente, da nossa verdade, destituir-lhe o


fundamento divino, não é o bastante para eliminar nossa vontade do divino, o impulso
à verdade:

“Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para
destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto
criadores podemos destruir! - Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos
nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”.”
(FW/GC §58)
Ficamos com a pista que Nietzsche nos deixa nessa passagem sobre o
princípio da constituição da realidade: “basta criar novos nomes”11.

Talvez “a crença numa verdade inscrita nas palavras” (MARTON, 1990,


!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
""! É claro que não é uma condição suficiente, já que o acontecimento de sentido, enquanto

algo de compartilhado (quando as palavras alcançam uma unificação das sensações presentes)
é um fenômeno extraordinário e sem receita. Acaba indo na mesma linha do caráter artístico
de uma obra de arte: o artista pode ter toda intenção de gerar profundos sentidos, mas estes
terão que advir da matéria criada para a atualidade do público que a acolhe. O princípio do
sentido, no entanto, estaria na criação artística da palavra.
! #)!

p.192) faça parte mesmo da sua constituição, nos enredando constantemente em


mundos oníricos. Não obstante, para que se possa renovar nossas relações, “deve
haver homens que, pela força de vontade, deixaram de roncar” (WL/VM, p.28), e
assim atentam para a atividade metafórica como condição da verdade.

É possível que a metáfora seja o que há de mais próprio à filosofia - essa


atividade metafórica que a tradição filosófica teria esquizofrenicamente tanto tentado
desqualificar (LOBO, 2007, p.332). Não apenas limitando-se a remexer ou
desenvolver idéias já estabelecidas, mas trazendo do caos à superfície em novos
arranjos, incitando o desacordo e se dispondo a ser desagradável, para assim renovar
as aparências, na tentativa de constantemente fundar o tempo presente.

“Tal maneira de conhecer se diz "trágica" por estar ciente da profunda incompreensão
que subsiste as suas refinadas estratégias de compreensão. Se tal condição pode ser
niilista e enfraquecedora para um apóstolo da Verdade, certamente é um estimulante
para aquele que cria aquilo que sabe.” (SAMPAIO, 2007, p.105)
Para assumir a tarefa de interpretar é necessário que se aprenda a dar ouvidos
à imediatez dos impulsos, distanciando-se das categorias dadas, dos grandes
imperativos; ultrapassar os conceitos já incorporados e ir à fonte de origem da
linguagem, enredar-se no disforme, com ímpeto plástico capaz de “corresponder
criativamente à impressão de poderosa intuição presente” (WL/VM, p.48, 49).
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BIBLIOGRAFIA

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