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Rio de Janeiro
Dezembro de 2013
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Agradecimentos
Sumário
Introdução 4
A gênese da linguagem 9
A verdade metafísica 15
Considerações finais 23
Bibliografia 29
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“Um poema, com seu mistério, corta ao meio o sentido da vida, preso a mil palavras
triviais, e transforma-o num balão que foge voando. Se, como é costume, chamarmos
isso de beleza, a beleza seria uma mudança indizivelmente mais cruel e implacável do
que qualquer revolução política!” (“Um Homem sem Qualidades” - Robert Musil)
Introdução
Tendo isso em conta, parece claro que Nietzsche, com seu rolo compressor
sobre tudo o que tínhamos de seguro, está nos levando ao completo ceticismo. Mas
não é um ceticismo que sua filosofia busca estabelecer. Sua meta não é eliminar a
verdade, colocando nossa linguagem como limitada e nós como incapazes de alcançar
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que se tem de mais próprio, trata nossas verdades como mentiras1, ilusões, para,
assim, fazer aparecer a arbitrariedade de sua contraposição estanque. Pode-se dizer,
com isso, que ele está se apossando dos termos metafísicos para implodi-los
(MATTIOLI, 2010, p.49).
Essa proposta de verdade neutra relega o ato criativo do homem ao seu oposto:
a mentira. Nessa dualidade, a metafísica desvaloriza a atividade humana, que, para
Nietzsche, é condição de qualquer verdade. Uma hipocrisia, como ele coloca na
citação acima, já que a linguagem mesma que constitui essas verdades, como ele irá
propôr nesse texto de 1873, parte de uma invenção inteiramente parcial, que foi por
nós esquecida.
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"! “mentir conforme uma convenção consolidada, mentir em rebanho num estilo a todos obrigatório”
(WL/VM, p.37)!
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“criamos os “modelos”, unidades, ideais, (...) de maneira que a vida torne-se possível
de ser vivida (...) sem eles, não haveria qualquer construção histórica de sentido, e
antes mesmo qualquer vivência” (CORTÊS, 2010, p.22)
Com a linguagem construímos formas, uma “ficção de permanência”
(MATTIOLI, 2010, p.42) que torna as impressões constantes e dissonantes,
manejáveis.
Nietzsche busca mostrar, assim, que não podemos apreender a verdade como
um todo, e isso não por algum defeito da linguagem ou limitação do homem, mas pela
própria condição perspectivista da existência, em que assumimos posições
contingentes.
“Percebemos assim que “conhecer”, para Nietzsche, não pode ser compreendido
somente como uma teoria da concordância entre verdade e realidade (realismo), ou
entre as categorias da subjetividade e os objetos do mundo (racionalismo); mas, por
conhecer faz-se necessário dizer um modo de ser no mundo.”(MARINS, 2008, p.134)
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#! Para Mattioli, a afirmação do devir, em Nietzsche, seria uma “espécie de aposta ontológica”
(MATTIOLI, 2010, p.41). Para uma interpretação das concepções de Nietzsche à respeito da natureza
como relações de forças múltiplas, em que as relações constantemente redefinem as partes, ao mesmo
tempo que as singularidades destas atuam sobre as relações, ver “Subjetividade e perspectivismo: a
dissolução do sujeito metafísico a partir de uma lógica das relações em Nietzsche”, de Danilo Augusto
Santos Melo.
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A gênese da linguagem
Em “Verdade e Mentira”, Nietzsche nos apresenta o nascimento de uma
palavra a partir de um impulso artístico calcado numa perspectiva, acentuando seu
contraponto à tradição filosófica que concebia a definição das coisas como uma
captação de sua essência.
A palavra não é uma reprodução do estímulo, mas sua transposição para um outro
âmbito. “Transposição” significa interpretar, redimensionar. (…) é sintoma de um
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$! É interessante notar que Nietzsche assume como centro da sua abordagem da estética o
ponto de vista do criador - o aspecto do processo criativo - no lugar de tomar por estudo o que
tradicionalmente se aborda: a obra e sua contemplação. Na Genealogia da Moral, Nietzsche
mesmo estabelece o contraste da sua posição com relação à tradição: “Kant, como todos os
filósofos, em vez de encarar o problema estético a partir da experiência do artista (do criador),
refletiu sobre a arte e o belo do ponto de vista do “espectador”” (GM, III, §6). Como
Nietzsche coloca na sua autocrítica do Nascimento da Tragédia, sua proposta com a estética é
“ver a arte sob a ótica da vida” (GT/NT, “Tentame de Autocrítica”, §2), direcionar a criação
artística para a vida, para novos modos e sentidos para a existência, já que não há sentido na
existência por si mesma. Assim, Nietzsche privilegia o engajamento ativo com a experiência
estética, que, como podemos ver em sua exposição sobre a origem da linguagem, é nossa
maneira de nos relacionar com o mundo.
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Mas para que as palavras possam ser compartilhadas, isto é, para que a
comunicação ocorra, é imprescindível a não individualidade da expressão linguística.
Como fruto de estímulos subjetivos, de fenômenos estéticos singulares, é necessário
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que ocorra aos termos uma generalização para que estes abarquem experiências
distintas, e assim duas pessoas se entendam. Essa generalização é a criação do
conceito.
“toda palavra (...) deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes,
isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos nitidamente desiguais, portanto.
Todo conceito surge pela igualação do não-igual.” (WL/VM p.34-5)
A formação de conceitos é necessária para a compreensão mútua, pois “cada
metáfora intuitiva é individual e desprovida do seu correlato, por isso, sabe sempre
eludir a todo rubricar” (WL/VM, p.38); cabe à “banalização” conceitual, em sua
diluição da força sensível original, torná-la compartilhável. Mesmo entre uma folha e
outra de uma árvore, conforme exemplo dado em “Verdade e Mentira”, existem
sempre aspectos diferentes, que precisam ser ignorados para que todas se igualem sob
o conceito “folha”.
“Comunicar é tornar comum e tornar comum em dois sentidos: comum a todos – pela
linguagem, o homem compartilha, ou tenta compartilhar, experiências vividas – e
medíocre, trivial, vulgar, banal.” (CALOMENI, 2011, p.232)
Se tomamos a linguagem como um elemento social, sede daquilo que é
comum, então a ação generalizante é parte integrante da linguagem. Assim, “está na
essência da linguagem enquanto formadora de conceitos (...) a simplificação e
redução daquilo que nomeia e faz existir” (HENRIQUES, 2006, p.2). Simplificação e
redução são próprios do compartilhamento, pela eficácia e rapidez comunicativa, mas
as metáforas, com seus estímulos singulares, estão na base de todo conceito. O
estímulo nervoso, então, inicia a criação das palavras, que serão continuamente
reapropriadas por outras visões e se diluirão no meio social. É assim que obtemos os
universais, sobre os quais vamos construir o nosso conhecimento.
importância do corpo para o filósofo: é a partir dele que temos o contato com o
mundo, e a partir dele que damos forma à nossa experiência, sendo que o que chega à
consciência são apenas “as últimas cenas” do embate de forças corporais que avaliam
e lutam por domínio (FW/GC, §333).5
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Em “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche chega a designar o corpo como “a grande razão”:
“O corpo é a grande razão (...) instrumento de teu corpo é também tua pequena razão”
(ZA/ZA, Primeira Parte, “Daqueles que Desprezam o Corpo”), que seria a razão que se torna
consciente, apenas uma pequena parte de todo processo racional.
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O esclarecimento sobre a noção de origem em Nietzsche é consonante com a interpretação
de Foucault em “Nietzsche, a Genealogia e a História”.
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No lugar de um tempo linear, progressivo, Nietzsche adota uma concepção de tempo
circular. Daí a possibilidade de recorrência das origens.!!!
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A verdade metafísica
Mas, sendo o disfarce sua atividade mestra, Nietzsche se pergunta como pôde
surgir, ao mesmo tempo, um impulso à verdade. A primeira pista estaria na união dos
homens em sociedade.
“porque o homem quer (...) existir socialmente e em rebanho, por necessidade e tédio,
ele necessita de um acordo de paz e empenha-se, então, para que a mais cruel bellum
omnium contra omnes [guerra de todos contra todos], ao menos, desapareça de seu
mundo.” (WL/VM, p.29)
Para impedir o conflito constante e garantir a manutenção da sociedade, é
instaurado um tratado de paz que fixa o que será “verdade”, isto é, determina “uma
designação uniformemente válida e impositiva das coisas” (WL/VM, p.29). São
acordos em torno de metáforas, que, após longo uso, começam a parecer necessários,
naturais. Daí Nietzsche dizer “[o homem] mente, pois, da maneira indicada,
inconscientemente e conforme hábitos seculares” (WL/VM, p.37).
“o mentiroso (...) abusa das convenções consolidadas por meio de trocas arbitrárias
ou inversão dos nomes. Se faz isso de uma maneira individualista e ainda por cima
nociva, então a sociedade não confiará mais nele (...). Nisso, os homens não evitam
tanto ser ludibriados, quanto lesados pelo engano.” (WL/VM, p.29)
Mentira seria, então, aquilo que prejudica a conservação da vida em
sociedade. “Quem se nega a usar a língua segundo as regras estabelecidas se coloca
contra (...) a ordem social.” (PAGNO, 2010, p.52). Verdade e mentira, portanto, não
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nasceriam como um bem e mal em si, e não teriam originalmente qualquer relação
com uma noção de certeza. A dissimulação, também instrumento de conservação, não
se opõe a essa noção de verdade que se coloca a serviço da preservação da vida em
grupo. Ela é, pelo contrário, necessária à preservação dos acordos sociais, pois o que
seria da convivência sem “a ilusão, o adular, mentir e enganar, o falar pelas costas, o
representar, o viver em esplendor consentido, o mascaramento, a convenção
acobertadora, o fazer drama diante dos outros e de si mesmo” (WL/VM, p.27).
“A suspeita que se levanta é que o mundo real dos conceitos, das construções do
intelecto, nada mais é do que uma fábula (...) uma invenção necessária à conservação
do indivíduo.” (PAGNO, 2010, p.43, 44)
Para disciplinar e controlar o caos à sua volta, esse animal sem força física
desenvolve a paciência, o cálculo, a capacidade de dissimular a complexidade do
mundo de impressões em sistemas formais estáveis, de dissimular para os outros seus
impulsos, calcado no acordo de paz em meio à comunidade, que fixa certas formas,
certas concepções.
Mas, considerando que mesmo os conceitos mais abstratos têm por base a
metáfora, uma interpretação singular, e não um sentido próprio das coisas que seria
desvelado, como é possível que as pessoas se entendam? Em Além do Bem e do Mal,
Nietzsche diz que vão se entender melhor as pessoas que partilham de estímulos
semelhantes:
experiência em comum para que se faça analogia.8 Como Nietzsche colocará em sua
última obra: “Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da
experiência” (EH/EH, “Por que escrevo tão bons livros”, §1). Mesmo os conceitos
mais abstratos sempre terão algum resíduo de metáfora. Como vemos em “Verdade e
Mentira”: a “transposição artística de um estímulo nervoso em imagens, se não é a
mãe, é ao menos a avó de todo conceito” (WL/VM, p.38). Daí dizer que se entendem
melhor os homens que partilham dos mesmos estímulos.
No sentimento de estar obrigado a indicar uma coisa como vermelha, outra como fria
e uma terceira como muda, sobrevém uma emoção moral atinente à verdade: a partir
da contraposição ao mentiroso àquele em quem ninguém confia e que todos excluem,
o homem demonstra para si o que há de venerável, confiável e útil na verdade.”
(WL/VM, p.37)
Numa reação aos malefícios que o mentiroso causa, e que causamos a nós
mesmos em meio ao grupo ao mentir, a verdade passa de mera utilidade social, como
que por metástase, a ser aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária, tomada por
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É possível, a partir disso, tirar uma idéia do porquê da tragédia grega - da ida ao teatro na
antiga Grécia - ser tida na época como uma experiência religiosa e política.
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A questão do esquecimento é importante e rica em Nietzsche (tendo atenção especial na segunda
dissertação da Genealogia da Moral) e exige maiores pesquisas.
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“agora faz frente ao mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais
consolidado, universal, conhecido, humano e, em virtude disso, como o mundo
regulador e imperativo.” (WL/VM, p.37, 38)
“Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a
honestidade, mas, antes do mais, de inúmeras ações individualizadas e, por
conseguinte, desiguais, que igualamos por omissão do desigual e passamos a
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“Denominamos um homem honesto; perguntamos então: por que motivo ele agiu
hoje de modo tão honesto? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em função de sua
honestidade. A honestidade!” (WL/VM, p.35)
Os conceitos se tornam instrumentos metafísicos, como se possuíssem um
sentido unívoco, e os tomamos como princípio primordial de todo pensar. Assim nos
detemos sobre a questão d’“A liberdade”, buscamos definir “A coragem”, e
analisamos ações em toda parte segundo “O egoísmo”.
“Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?.. Por exemplo, sua falta de
sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam
fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam, (sob a perspectiva da
eternidade) - quando fazem dela uma múmia.” (GD/CI, “A ‘razão’ na filosofia”, §1).
Cria-se um sistema abstrato o suficiente (distante o suficiente das sensações
dissonantes) para abarcar um “Todo”. Nos submetemos a formas pretensamente
universais de maneira a tornar uniforme nossa relação com o mundo, recusando seu
caráter circunstancial, exigindo das relações que sejam sempre as mesmas. Essa
estrutura pré-ordenada acaba funcionando como um narcótico, tornando para nós
insuportável lidar com o caos de impressões; abominável assumir a solidão e
incerteza constituintes da tarefa de interpretar constantemente as experiências.
“Como ser racional, [o homem] põe seu agir sob o império das abstrações: já não
tolera mais ser arrastado por impressões repentinas, pelas intuições, sendo que
universaliza, antes, todas essas impressões em conceitos mais desbotados e frios, para
neles atrelar o veículo de seu viver e agir.” (WL/VM, p.37)
Tendo em vista a paz de não mais precisar reinterpretar, buscamos acomodar
apressadamente o extraordinário a formas já familiares, assentá-lo no que é comum. O
impulso à verdade se impõe, soberano, aos impulsos criativos. De fixações
momentâneas a partir de determinadas perspectivas, as metáforas se petrificaram,
armadas contra a pluralidade de sentidos possíveis nas relações, num
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“o ser humano só quer o que já foi vivido, portanto só deseja o que se encontra na
memória (deseja reconhecer). O conhecimento adequou desta maneira a natureza a
ele próprio, onde conhecer seria apenas reconhecer algo no interior do intelecto”
(FERREIRA, 2004, p.17)
Tomamos por real apenas o que se encaixa nas estruturas já existentes.
Considerando que as convenções linguísticas levam em conta experiências
reincidentes, aquilo que é compartilhável - o banal e comum -, as experiências
singulares vão sendo deixadas de lado, pois para elas não há designação estipulada,
não há palavras estabelecidas.
Sem submeter tais formas às impressões atuais, no entanto, elas vão perdendo
seu poder sensível, tornando-se banais e mantendo apenas sua função pragmática.
Como coloca Nietzsche, ficamos com:
“metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, [como] moedas que
perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais
como moedas.” (WL/VM, p.36)
Perdemos a força significativa das verdades e, devido ao sentimento moral em
nós enraizado, ficamos com sua obrigação.
Apesar de nos permitir uma organização que seria de outra forma impossível,
nossas construções conceituais criaram uma cisão com o mundo sensorial, separando
a verdade do mundo volúvel das aparências. Esse “egipcismo” acabou por
desembocar no niilismo moderno, quando nossas verdades e as instituições que elas
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“Tal impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem (...) não
é, em verdade, subjugado ou minimamente domado pelo fato de um novo mundo
firme e regular ter-lhe sido construído, qual uma fortificação, a partir de seus
produtos volatizados, o mesmo é dizer, os conceitos. Ele busca um novo âmbito para
sua ação e (...) o encontra no mito e, em linhas gerais, na arte.” (WL/VM p.45, 46)
Sendo a arte uma ilusão sem consequências, a moral permite que nos
enganemos, entregando-nos ao encantamento da fantasia, da dissimulação, ao qual
somos propensos. Livre da vontade de verdade que escraviza o intelecto, o homem se
libera e se deleita na arte:
“o próprio homem tem uma inclinação imbatível a deixar-se enganar e fica como que
encantado de felicidade quando o rapsodo narra-lhe contos épicos como se estes
fossem verdadeiros, ou então, quando o ator, no espetáculo, representa o rei ainda
mais soberanamente do que o exibe a efetividade. O intelecto, esse mestre da
dissimulação, acha-se, pois, livre e desobrigado de todo seu serviço de escravo
sempre que pode enganar sem causar prejuízo” (WL/VM, p.47).
Tanto a arte como a ciência são, igualmente, perspectivas. Mas a arte acaba
sendo menos mentirosa, no sentido em que, já de partida, se admite ilusória. Assim
sendo, na arte, o intelecto entrega-se à atividade figurativa com uma liberdade muito
maior em relação às metáforas estabelecidas, assumindo seu interesse de ficcionalizar
o mundo.
Considerações finais
“Aqui, cabe muito bem admirar o homem como um formidável gênio da construção,
capaz de esguer sobre fundamentos instáveis e como que sobre água corrente um
domo de conceitos infinitamente complicado” (WL/VM, p.38, 39).
Como vimos, nos é necessário criar formas sobre o devir, idealizações e
convenções, pois não podemos prosperar sem crenças estáveis, sem uma
simplificação linguística ordenada das constantes impressões, sem uma razão para
viver. Mas vimos também que as estruturas conceituais no Ocidente já não são
capazes de prover sentido para a vida moderna e, mesmo assim, se colocam como
princípios últimos e definitivos, dado o esquecimento de sua origem simplificadora,
convencional, metafórica. A moral, baseada no império dos costumes, impôs um
domínio linguístico exclusivo sobre as impressões. Do ponto de vista social, afinal, a
criação inusitada é uma violência, uma ruptura da paz e da segurança, tida não só
como desnecessária, mas perniciosa. Partindo dessa valoração uniformizante, a
metafísica se propõe universal e busca eliminar de seus fundamentos aquele
movimento, próprio à linguagem, entre criações e manutenções, singulares e coletivos
- busca eliminar o movimento de embate entre perspectivas. Nesse caso, as ilusões se
estabelecem como consolo metafísico, como defesa contra a confusão angustiante da
qual podem surgir novos conhecimentos. Assim asseguram a ordem e a estabilidade, e
se colocam como empecilho para uma vontade de agir criando. Dominada pela moral,
a linguagem se torna “um obstáculo na relação do indivíduo com o que o rodeia”
(MARTON, 1990, p. 184) e, segundo Nietzsche:
“É preciso invocar prodigiosas forças contrárias para opor-se com sucesso a esse
natural, demasiado “natural” progressus in simile que é a degeneração do homem no
semelhante, no comum, no medíocre, no animal de rebanho, no vulgar! (JGB/BM,
§268)
Cada vez mais distantes das sensações de origem, as palavras se tornam
“cemitério de intuições”, levando à descrença no poder da linguagem, descrença no
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a verdade não permanece verdade, “quando se lhe tira o véu” (FW/GC, “prefácio”, §4).
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possibilidades de vida.
“Ora, a crítica nietzscheana à idéia de verdade a coloca em uma relação não mais de
oposição (que diz respeito a espécies), mas de hierarquia (que diz respeito a graus)
com a mentira ou a falsidade.” (COSTA, 2008, p.117)
Verdades são fruto de relações de valor, da vontade de conservar ou promover
certo tipo de vida. O filósofo fala, em “Verdade e Mentira”, na reunião da verdade
com o mundo das aparências, o que se dá a partir de uma “re-significação da idéia de
aparência na qual verdade e mentira se reinserem e se dissolvem” (COSTA, 2008,
p.117), reconduzindo o ímpeto artístico, fictício, para a vida. A aparência, para
Nietzsche, nasce com a atividade interpretativa do homem, com aquela construção
metafórica que se dá já no momento de perceber, pois sem ela, para delimitar e realçar
os traços que dá por principais, temos apenas um emaranhado de estímulos. Ele ilustra
a união indissolúvel do ideal com o aparente numa passagem de Crepúsculo dos
Ídolos:
“Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez?... Não! Com o
mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!” (CI, “Como o ‘mundo
verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, §6)
A verdade estaria, assim, diretamente ligada às aparências e à atividade
criativa. Levando-se em conta, então, que as relações entre homem e mundo se dão
em constante devir, é importante ressaltar o caráter intrinsecamente mutável dessa
noção de verdade.
“não somos mais os mesmos na medida em que mudamos de relação, de maneira que
já não nos relacionamos com o mesmo mundo de outrora, pois as relações que nos
constituem no presente já não são as mesmas que nos determinaram na antiga relação,
de modo que o mundo será, inevitavelmente, determinado por um outro sentido.”
(MELO, 2011, p.29)
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“que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo,
substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”
(NIETZSCHE, GM, prólogo §4)
Em “Verdade e Mentira”, ele afirma a criação como aquilo que há de mais
próprio no homem. Em “Assim Falou Zaratustra”, anos depois, ele atrelará a palavra
“homem” a “aquele que avalia”; completando em seguida: “Avaliar é criar” (Za/ZA,
“Dos mil e um fins”). O homem é aquele que interpreta e, com a interpretação,
constrói sua existência. Com Nietzsche, como coloca Foucault, a interpretação se
tornou “uma tarefa infinita” (FOUCAULT, 2000, p.45).
ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão
mesma” (GM/GM, III, §28), pois declara-se haver uma “Verdade”, mas nossa razão é
incapaz de alcançá-la. O ceticismo instalado, no entanto, não é um estágio final ou
necessariamente mais verdadeiro. Talvez seja o estágio final de uma vontade de
verdade neutra, e por isso Nietzsche se esforce tanto por avariar essa concepção. Não
ver uma verdade é apenas uma postura diante de relações nas quais poder-se-ia ver
várias. Por que o não sentido seria mais verdadeiro que o sentido? Não há um mundo
em si mesmo, mas em relações, em relação com os homens, e os homens interpretam.
Seria como a abelha dar por mais verdadeiro não fabricar mel. Por que atribuir à
criação humana um valor negativo seria mais verdadeiro que atribuir a ela um valor
positivo? Tudo depende da avaliação, e Nietzsche preconiza valores por uma vida
intensa, criativa. Busca nos desenlaçar dessa criação própria do nosso nada,
instigando uma vontade de “criar (...) para além de si” (Za/ZA, I, “Dos desprezadores
do corpo”), indo além das próprias necessidades e da própria preservação. A novos
valores poderosos, numa hierarquização engajada, servem suas marteladas - não a um
ceticismo, a um relativismo em que tudo tem o mesmo valor e, portanto, nenhum.
Afirmar a verdade como criação não é uma provocação para que passemos a
desconsiderá-la, e sim para trazer à consciência a crucial tarefa de criá-la: “está em
nossas mãos “idealizar” a Terra inteira! (GM/GM, III, §26).
“Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para
destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto
criadores podemos destruir! - Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos
nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”.”
(FW/GC §58)
Ficamos com a pista que Nietzsche nos deixa nessa passagem sobre o
princípio da constituição da realidade: “basta criar novos nomes”11.
algo de compartilhado (quando as palavras alcançam uma unificação das sensações presentes)
é um fenômeno extraordinário e sem receita. Acaba indo na mesma linha do caráter artístico
de uma obra de arte: o artista pode ter toda intenção de gerar profundos sentidos, mas estes
terão que advir da matéria criada para a atualidade do público que a acolhe. O princípio do
sentido, no entanto, estaria na criação artística da palavra.
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“Tal maneira de conhecer se diz "trágica" por estar ciente da profunda incompreensão
que subsiste as suas refinadas estratégias de compreensão. Se tal condição pode ser
niilista e enfraquecedora para um apóstolo da Verdade, certamente é um estimulante
para aquele que cria aquilo que sabe.” (SAMPAIO, 2007, p.105)
Para assumir a tarefa de interpretar é necessário que se aprenda a dar ouvidos
à imediatez dos impulsos, distanciando-se das categorias dadas, dos grandes
imperativos; ultrapassar os conceitos já incorporados e ir à fonte de origem da
linguagem, enredar-se no disforme, com ímpeto plástico capaz de “corresponder
criativamente à impressão de poderosa intuição presente” (WL/VM, p.48, 49).
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BIBLIOGRAFIA