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KANT, ROMANTISMO,
IDEALISMO E HEGEL
Curso Online
Filosofia 360°
Prof. Dr. Mateus Salvadori
cons�tuído como ciência, ao passo que resultados que se tornou um fato inegá-
a matemá�ca e a �sica, sim. vel. Por esse mo�vo, ele inves�ga o que
caracteriza e o que fundamenta a ciên-
A matemá�ca e a �sica se cons�tuíram cia. Para Kant, a ciência é cons�tuída
ciência graças a uma inversão na manei- por leis, por juízos sinté�cos a priori,
ra de pensar: ao invés da faculdade de que, como foi visto, são universais e
conhecer ser regulada pelos objetos, necessários e propiciam um avanço no
estes são regulados por aquela. Isso se conhecimento.
denomina revolução copernicana. Ela
irá ques�onar essa visão meta�sica Kant discorda tanto dos empiristas
existente. Portanto, “aquele que pri- como dos racionalistas acerca de sua
meiro demonstrou o triângulo isósceles concepção sobre ciência e conhecimen-
(fosse ele Tales ou como quer que se to. Os racionalistas sustentam que a
chamasse) teve uma iluminação; desco- ciência é cons�tuída por juízos analí�-
briu que não �nha que seguir passo a cos a priori e os empiristas, por juízos
passo o que via na figura, nem o simples sinté�cos a posteriori. Kant conclui que
conceito que dela possuía, para conhe- eles não estão certos devido à errônea
cer, de certa maneira, as suas proprie- concepção do conhecimento que eles
dades; que antes deveria produzi-la, ou têm. A ciência, desta forma, é impossí-
construí-la, mediante o que pensava e o vel, segundo Kant, pois o objeto fornece
que representava a priori por conceitos somente a novidade e o sujeito fornece
e que para conhecer, com certeza, uma somente a universalidade. O conheci-
coisa a priori nada devia atribuir-lhe mento não surge somente com o sujei-
senão o que fosse consequência neces- to ou somente com o objeto, mas surge
sária do que nela �nha posto, de acordo da junção dos dois, ou seja, o conheci-
com o conceito”. mento é o resultado de um elemento a
priori – sujeito –, e de um elemento a
Desse modo, a ciência moderna torna- posteriori – objeto. Kant irá descobrir os
-se, para Kant, uma espécie de ponto de juízos sinté�cos a priori. Portanto, em
par�da para a abordagem epistemoló- sua filosofia especula�va, ele afirma
gica, embora suas preocupações e inte- que o conhecimento humano não é
resses maiores sejam meta�sicos. Isso reprodução passiva de um objeto por
porque ele percebe que, desde as bases parte do sujeito, mas construção a�va
postas para a ciência, por Copérnico, do objeto por parte do sujeito. Isso o
Galileu e Newton, na aurora da moder- leva a negar a possibilidade da meta�si-
nidade, o conhecimento cien�fico ca como ciência.
alcançou um tal progresso e riqueza de
se supôs que todo o nosso conhecimen- seria pensado. Pensamentos sem con-
to �nha de ser regulado pelos objetos. teúdo são vazios; intuições sem concei-
Porém, “tentemos, pois, uma vez, expe- tos são cegas”. O conhecimento pode
rimentar se não se resolverão melhor as surgir da reunião dos dois. O entendi-
tarefas da meta�sica, admi�ndo que os mento e a sensibilidade, com suas
objetos se deveriam regular pelo nosso formas a priori, são as condições de
conhecimento, o que assim já concorda possibilidade dos juízos sinté�cos a
melhor com o que desejamos, a saber, a priori, específicos da ciência. E só pode-
possibilidade de um conhecimento a mos conhecer fenômenos (múl�plo)
priori desses objetos, que estabeleça que adentram a sensibilidade em suas
algo sobre eles antes de nos serem formas puras de espaço e tempo; sobre
dados”. Esse a priori possibilita que emi- esse conteúdo fenomênico é que o
tamos juízos universais e necessários, entendimento aplica as suas categorias,
exigência para que um conjunto de obtendo a cada aplicação uma síntese.
conhecimento se torne ciência. Porém,
como será visto, não poderá ultrapassar A razão, caracterizada como a busca do
os limites da experiência sensível, que é incondicionado, ou seja, que tende a ir
justamente a sua ocupação. além do âmbito fenomênico, não se
contenta com as sínteses do entendi-
A sensibilidade dá a matéria do conhe- mento, pois esse, de certo modo, é for-
cimento e o entendimento dá a forma. mado por uma mul�plicidade de sínte-
Assim, conhecer é dar forma a uma ma- ses. Ela exige a síntese suprema, a
téria dada. É ligar representações em máxima unidade que ponha termo à
conceitos. O resultado disso é que série das condições. As sínteses do
nosso conhecimento só se refere a entendimento são o objeto da razão.
fenômenos, pois só conhecemos as Esta age sobre o entendimento, o que
coisas no espaço e no tempo. Todo resulta nas ideias transcendentais:
objeto, para ser conhecido, deve estar Deus, liberdade e imortalidade – obje-
condicionado ao espaço e ao tempo, tos da meta�sica. Essas ideias estão
isto é, precisa afetar a sensibilidade fora do espaço e do tempo: não existe
causando uma impressão sensível. O um objeto a elas correspondente no
entendimento age sobre a sensibilidade mundo sensível. Por isso, elas não
e sinte�za as múl�plas intuições sensí- afetam a sensibilidade e, portanto, não
veis. Sensibilidade e entendimento são podem ser conhecidas. Contudo,
mutuamente independentes: “sem a podem – e a razão o exige –, ser pensa-
sensibilidade, nenhum objeto nos seria das.
dado; sem o entendimento, nenhum
ação não é considerada é�ca, pois esta: por amor a mim mesmo, eu esta-
houve interesses, inclinação, a saber, a beleço a princípio de poder encurtar a
auto-realização. Independente de qual minha vida a par�r do momento em
for a inclinação, ajudei por acreditar em que, prolongando-a, tenho mais males
Deus e achar que Deus gosta disso ou a temer do que sa�sfações a esperar. A
para ser reconhecido pelos outros pela questão agora é somente saber se esse
minha ação de ajudar o próximo, enfim, princípio do amor a si poderia tornar-se
para que a ação seja considerada é�ca uma lei universal da natureza. A dor
não pode haver interesses. Nesse caso, pode jus�ficar o suicídio?
a ação é considerada é�ca somente se
você ajudou o necessitado sem pensar Segundo caso: Um homem é levado
em receber qualquer coisa em troca. pela necessidade a pedir dinheiro em-
Em resumo: para agir de forma é�ca prestado. Ele sabe que não poderá
devemos primeiro seguir o Impera�vo devolvê-lo, mas sabe também que nada
Categórico – agir pensando que o nosso lhe será emprestado, se ele não se em-
ato pode ser feito por todas as pessoas penhar seriamente em devolve-lo na
– e agir sem inclinações, ou seja, seguir época determinada. Ele teria vontade
o dever por dever. Por exemplo, men�r de fazer essa promessa, mas tem ainda
jamais será um ato porque não passa consciência suficiente para se pergun-
pelo Impera�vo Categórico. Ajudar ao tar: não é proibido e contrário ao dever
próximo passa pelo Impera�vo Categó- se livrar da necessidade desse modo?
rico, mas será considerado é�co somen- Supondo, porém, que ele tomasse essa
te se você agiu sem interesses, sem decisão, a máxima da sua ação significa-
inclinações. ria: quando eu acredito precisar de
dinheiro logo o peço emprestado, pro-
A seguir, quatro casos concretos citados metendo devolvê-lo, mesmo sabendo
por Kant. Primeiro caso: Um homem que não o farei nunca. Ora, é certamen-
passa por uma série de males e isso te possível que esse princípio do amor a
acabou por levá-lo ao desespero. Ele mim mesmo ou da u�lidade própria se
sente um grande desprezo pela vida, conecte com todo o meu bem-estar
mas, todavia, ainda está de posse da futuro, mas no momento a questão é:
sua razão para poder perguntar-se se isso é justo? Eu transformo, portanto, a
não seria uma violação de dever para exigência do amor a mim mesmo em
consigo mesmo �rar a própria vida. Ele uma lei universal, e coloco a seguinte
procura, então, saber se a máxima de questão: o que aconteceria se a minha
sua ação poderia tornar-se uma lei uni- máxima se tornasse uma lei universal?
versal da natureza. A sua máxima seria É é�co em uma situação totalmente
Passamos agora aos ar�gos defini�vos e A paz perpétua é uma tarefa a ser cum-
as condições à efe�vação da Paz Perpé- prida passo a passo, mesmo que nunca
tua. Primeiro ar�go (Cons�tuição Repu- seja a�ngida. “É por isso que a ideia de
blicana): A Cons�tuição Civil deve ser uma Cons�tuição Nacional se completa
Republicana. Nela há três princípios pela ideia de uma federação regida por
fundamentais: liberdade, igualdade e uma Cons�tuição Cosmopolita, encar-
dependência (todos se encontram sob a regada de assegurar a paz perpétua”.
única e comum legislação/cons�tui- Kant não vê o progresso do Direito nem
ção). Na Cons�tuição Republicana se como governado pelo ins�nto nem por
requer o consen�mento dos cidadãos um plano acordado, mas pela natureza
para declarar guerra. Kant é pouco favo- humana. Kant parte da hipótese teleo-
rável à Democracia. Defende a Monar- lógica de que todas as disposições natu-
quia Republicana/Cons�tucional. rais de uma criatura estão des�nadas a
Segundo ar�go (Federação de Estados algum dia desenvolver-se completa e
Livres): “O direito das gentes (dos finalis�camente (Idee, 1. Tese). As dis-
povos) deve fundar-se numa federação posições naturais par�culares dos indi-
de estados livres”. A mesma insociabili- víduos, que visam ao uso da razão,
dade que obrigou os homens a saírem chegam ao pleno desenvolvimento não
do estado de natureza e a entrarem no indivíduo, mas no gênero através de
numa cons�tuição civil republicana é o gerações sucessivas (Idee, 2. Tese). Este
mesmo antagonismo que obriga os propósito natural da humanidade deve
Estados a entrarem na Federação de ser alcançado pela própria natureza
Estados. Para isso, deve haver, por parte humana; o sen�do da História, o pro-
dos Estados, muito empenho e dedica- gresso do Direito, ocorre sem nosso pla-
ção. Kant fundamenta sua liga das nejamento. Para Hobbes, o ins�nto pri-
nações no princípio transcendental do mário é o egoísmo; para Pufendorf e
direito. Terceiro ar�go (Direitos Cosmo- Locke, a sociabilidade; para Kant,
polita e a Hospitalidade): O direito cos- ambos. O antagonismo (sociabilidade
mopolita trata da hospitalidade univer- insociável) (Idee, 4. Tese) gera o desen-
sal, do respeito ao direito dos cidadãos volvimento das disposições humanas.
do mundo como seres humanos, do tra-
tamento dos cidadãos de um Estado 2. Roman�smo
quando visitam outro Estado. É o direito
de visitar e estar em qualquer parte do A palavra “român�co” aparece pela pri-
mundo e de não receber um tratamen- meira vez na Inglaterra pela metade do
to hos�l ao chegar noutro país. século XVII para designar o fabuloso, o
fantás�co, o irreal. Posteriormente, o
equação exata, sem margens de erro. A tanto, do domínio da Razão e nos per-
realidade é muito mais rica, oferecendo mite simplesmente sen�r, perceber
ao homem várias possibilidades que algo que não pode ser traduzido pelo
podem ser exploradas. Assim, múl�plos campo da lógica, mas mesmo assim
pontos de vista sobre o real podem coe- está presente no Universo, como Deus –
xis�r, variando conforme a percepção de quem os adeptos do Roman�smo
de cada um. Neste sen�do, o Roman�s- estão muito próximos. Abre-se assim,
mo foi revolucionário ao romper com as diante do ser, o vasto campo do autoco-
cadeias da educação tradicional, basea- nhecimento, pronto para ser decifrado.
da somente no domínio da Razão, e o Este fascínio exercido pelo Eu atrai os
sujeito podia enfim elaborar sua pró- român�cos para a esfera da introspec-
pria interpretação do mundo exterior, o ção, do crepúsculo, do mistério. Sempre
que apontava para os limites da visão que o mundo dá uma guinada excessi-
racionalista. vamente materialista e racional, retor-
nam os princípios sedutores da visão
Ao cri�car o paradigma da Razão, os român�ca da vida, principalmente a
român�cos exercitaram uma espécie de importância atribuída a Natureza
crí�ca de arte que foi posteriormente enquanto fonte da unidade, como hoje
definida pelo filósofo Walter Benjamin ocorre com o ressurgimento do ponto
como meio de reflexão, o qual combate de vista holís�co, contraposto a um
o viés monológico do conhecimento, ou conhecimento fragmentado e a um
seja, aquele que privilegia apenas um ideal mecanicista.
discurso – neste caso, o racional –, não
permi�ndo que outros se expressem. 3. Idealismo
Assim, nesta linha de pensamento ine-
rente ao Roman�smo, só é considerada 3.1 Fichte e a Doutrina da Ciência
uma obra de arte aquela que �ver o
poder de despertar um conjunto de O idealismo. A preocupação primordial
reflexões, as quais cons�tuirão um de Fichte foi em primeiro lugar contri-
conhecimento não mais monopolizado buir para a difusão do cri�cismo kan�a-
por uma única voz, mas aberto para a no e, depois, de descobrir o princípio de
mul�plicidade discursiva. base, não revelado por Kant, que unifi-
cava as três Crí�cas, a fim de construir o
Os român�cos se valem da arte para sistema do saber, transformando a filo-
engendrar seu próprio mecanismo de sofia em uma rigorosa “doutrina da
conhecimento e de evolução humana. ciência”. Par�ndo das reflexões pós-
A criação ar�s�ca nos torna livres, por- -kan�anas de Reinhold, Schulze e
chama de “a�vidade ideal” aquela que reza. Essa concepção abandona as filo-
toma consciência colidindo com o sofias kan�ana e fichteana unilaterais.
limite; o limite, com efeito, é ideal no O absoluto é, portanto, essa iden�dade
âmbito do saber e real no âmbito do originária de ideal e real e a filosofia é
agir: a filosofia teórica é por isso idealis- saber absoluto do absoluto. As concep-
mo, enquanto a filosofia prá�ca é realis- ções de Spinoza e Fichte são sinte�za-
mo e apenas juntas elas formam o siste- das em forma de espiritualismo pante-
ma completo do idealismo transcen- ísta: tudo é razão e a razão é tudo.
dental. Os horizontes da Doutrina da
ciência de Fichte se ampliam e o idealis- A “iden�dade absoluta” é infinita e não
mo subje�vo torna-se ideal-realismo. sai nunca fora de si e, portanto, tudo
aquilo que existe, existe de algum modo
Idealismo esté�co. A mais elevada nela e é iden�dade: a identidade abso-
tarefa da filosofia transcendental con- luta é definitivamente o Uno-Todo, fora
siste em mostrar a iden�dade, inerente do qual nenhuma coisa existe por si
no próprio princípio, da a�vidade cons- mesma.
ciente e da inconsciente e a a�vidade
consciente-inconsciente presente tanto Schelling procura superar a dificuldade
no espírito quanto na natureza é a a�vi- reintroduzindo a teoria platônica das
dade esté�ca: o mundo obje�vo é, por- ideias. Não razão, entendida como
tanto, a poesia primi�va e ainda incons- iden�dade absoluta e unidade do uni-
ciente do espírito e o órgão universal da versal e do par�cular, existem unidades
filosofia é a filosofia da arte. Na criação par�culares (as ideias) que deveriam
ar�s�ca se fundem o consciente e o cons�tuir a causa das coisas finitas.
inconsciente. O produto ar�s�co é, de Todavia, no absoluto, as ideias estão
fato, finito, mas mantém significação todas em todas, ao passo que as coisas
infinita. Nas obras-primas da arte sensíveis estão separadas e umas fora
humana encontra-se a mesma marca das outras. Schelling sustenta que, no
das obras-primas da arte cósmica. sensível, as coisas são tais somente para
nós, ou seja, somente para nossa cons-
Filosofia da iden�dade. A concepção ciência empírica. Para resolver a grande
da intuição esté�ca, como captação da dificuldade de explicar como e por que
unidade do ideal e do real (filosofia da iden�dade infinita nasçam a diferen-
transcendental como ideal-realismo), ciação e o finito, Schelling não acolhe o
implicava já uma concepção do absolu- criacionismo (que faz o finito nascer por
to como “iden�dade originária” de Eu e ato de livre vontade do Criador e supõe
não-eu, sujeito e objeto, espírito e natu- a transcendência) nem o spinozismo
se eleva à altura da pura razão e que se até dizer que na Fenomenologia, enten-
coloca em perspec�va absoluta (ou dida como caminho que leva ao absolu-
seja, que adquire o ponto-de-vista-do- to, o homem está envolvido tanto
absoluto). E, “para construir o absoluto quanto o próprio absoluto. Com efeito,
na consciência”, é preciso negar e supe- no horizonte hegeliano, não existe o
rar as finitudes da consciência, elevan- finito “separado” do infinito, o par�cu-
do desse modo o eu empírico a Eu lar “afastado” do universal e, portanto,
transcendental, a razão e espírito. Mas o homem não está afastado e separado
nada disso pode ocorrer abruptamente. do absoluto, mas é parte estrutural e
Na verdade, Hegel condenou dras�ca- determinante dele, porque o infinito
mente o “problema do método” como hegeliano é o infinito-quase-faz-por
fora posto desde Descartes até o pró- meio-do-finito, e o absoluto é “o ser
prio Kant, chegando até a expedir que reentrou eternamente em si pelo
impiedosamente o atestado de óbito ser outro”.
desse problema, declarando-o como
pertencente “a uma cultura ultrapassa- Trata-se, portanto, de uma “introdu-
da”; não pode haver “introdução” ao ção” ou de uma propedêu�ca que cons-
filosofar (como pretendia o velho pro- �tui um momento, não só da vida
blema do método) que já não seja filo- humana, mas também da vida do abso-
sofar, nem introdução à ciência que já luto: a “fenomenologia do espírito” é o
não seja ciência. caminho que leva a consciência finita ao
absoluto infinito, que coincide com o
Hegel argumenta que pretender elabo- caminho que o absoluto percorreu e
rar uma introdução à filosofia que pre- percorre para alcançar a si mesmo (o
ceda a filosofia seria como pretender reentrar em si pelo ser-outro). Portanto,
querer aprender a nadar antes de a Fenomenologia marca a passagem
entrar na água. Entretanto, Hegel está necessária e cien�fica, como dissemos,
convencido de que a passagem da cons- e sua metodologia não pode deixar de
ciência comum para a consciência filo- ser a mais rigorosa metodologia cien�fi-
sófica deve ocorrer de modo mediato e ca, ou seja, a dialé�ca.
não de modo roman�camente imediato
e, portanto, Hegel também admite que A “fenomenologia” como história da
exista uma espécie de “introdução à consciência do indivíduo e história do
filosofia”. Ela, naturalmente, seria uma espírito. Com base nessa premissa, tor-
“introdução” ao filosofar, que é já ela na-se fácil compreender o termo “feno-
própria um filosofar. A passagem da menologia” na acepção hegeliana. O
consciência finita ao absoluto. Podemos termo deriva do grego phainomenon,
que significa manifestar-se ou aparecer quais são algumas das “figuras essen-
e, portanto, quer dizer ciência do apare- ciais do espírito já depostas”.
cer e do manifestar-se. Esse aparecer
(e, no sistema hegeliano, não poderia A seguir, serão abordadas as etapas do
ser diferente) é o aparecer do próprio i�nerário fenomenológico. O espírito
espírito em diferentes etapas, que, a que se determina e aparece é a consci-
par�r da consciência empírica, pouco a ência no sen�do lato do termo, que sig-
pouco se eleva a níveis sempre mais nifica consciência de alguma coisa
altos. A fenomenologia, portanto, é a diversa (tanto interna como externa, e
ciência do espírito, que aparece na de qualquer gênero que seja). Consci-
forma do ser determinado e do ser múl- ência indica sempre relação determina-
�plo e que, em uma série sucessiva de da entre um “eu” e um “objeto”, relação
“figuras”, ou seja, de momentos diale�- sujeito-objeto. A oposição sujeito-obje-
camente relacionados entre si, alcança to, portanto, é caracterís�ca dis�n�va
o saber absoluto. da consciência. Ora, o i�nerário da
Fenomenologia consiste na mediação
Na Fenomenologia, como se evidencia progressiva dessa oposição, até sua
do que foi dito, existem dois planos que total superação. Podemos, portanto,
se interseccionam e se justapõem: 1) há dizer também que o obje�vo que Hegel
o plano cons�tuído pelo caminho per- persegue na Fenomenologia é a anula-
corrido pelo espírito para chegar a si ção da cisão entre consciência e objeto,
mesmo ao longo de todos os aconteci- com a demonstração de que o objeto
mentos da história do mundo que, para nada mais é do que o “si” da consciên-
Hegel, é o caminho ao longo do qual o cia, isto é, autoconsciência: a autocons-
espirito se realizou e se conheceu; 2) ciência que, de Kant em diante, se tor-
mas há também o plano próprio do sim- nará o centro da filosofia, e que Hegel
ples indivíduo empírico, que deve per- procura fundamentar cien�ficamente,
correr novamente aquele mesmo cami- dela extraindo ao mesmo tempo as úl�-
nho e apropriar-se dele. A história da mas consequências.
consciência do indivíduo, portanto,
outra coisa não pode ser senão o per- Resumidamente, o i�nerário fenome-
correr de novo a história do espírito. A nológico percorre as seguintes etapas:
introdução fenomenológica à filosofia é 1) Consciência (em sen�do estrito); 2)
o percorrer novamente esse caminho. Autoconsciência; 3) Razão; 4) Espírito;
Vejamos agora qual é o esquema desse 5) Religião; 6) Saber absoluto. A tese de
i�nerário do espírito-que-aparece e da Hegel é que toda consciência é auto-
consciência que o percorre de novo, e consciência; por sua vez, a autoconsci-
temos as três etapas: A) da “razão que res, a razão é dada pela autoconsciência
observa a natureza”; B) da “razão que que supera sua posição em relação aos
age” e C) da “razão que adquire a cons- outros e ao curso do mundo, encon-
ciência de ser espírito”. trando neles seu próprio conteúdo. Esta
fase também se realiza em três momen-
A) A “razão-que-observa-a-natureza” é tos sucessivos: a) o representado pelo
cons�tuída pela ciência da natureza, homem inteiramente voltado para as
que se move desde o princípio no plano obras que realiza; b) o da razão legisla-
da consciência de que o mundo é pene- dora; c) o da razão que examina ou cri�-
trável pela razão, ou seja, é racional. ca leis. Como momento conclusivo,
Portanto, para poder-encontrar-a-si- nessa fase, a autoconsciência descobre
-mesma-no-seu-outro, a razão deve que a substância é�ca nada mais é
superar o momento “de observação” e senão aquilo em que ela já está imersa:
passar para o momento “a�vo” ou “prá- é o ethos da sociedade e do povo em
�co”, ou seja, para a esfera moral. que vive.
B) A “razão-que-age” repete em nível
mais elevado (isto é, no nível da certeza A quarta etapa: o espírito. A razão que
de ser toda coisa) o momento da auto- se realiza em um povo livre e em suas
consciência. O i�nerário da razão a�va ins�tuições é a consciência que se
consiste em começar a realizar-se, reúne in�mamente a sua própria subs-
inicialmente, como indivíduo para, por tância é�ca, e isso é doravante o espíri-
fim, elevar-se ao universal, superando to. O espírito é o indivíduo que cons�tui
os limites da individualidade e alcan- um mundo tal como ele se realiza na
çando a união espiritual superior dos vida de um povo livre. O espírito, por-
indivíduos. As etapas desse processo tanto, é a unidade da autoconsciência
são indicadas por Hegel nas “figuras”: a) “na perfeita liberdade e independên-
do homem que busca a felicidade no cia” e, ao mesmo tempo, em sua oposi-
prazer e no gozo; b) do homem que ção “mediata”. O espírito é “eu que é
segue a lei do coração individual (como nós, nós que é eu”. Quem não �ver con-
no sistema de Rousseau); c) da virtude e �nuamente presente essa dimensão
do homem virtuoso. Mas de modo intersubje�va e social do espirito não
ainda abstrato (como ocorre, por exem- poderá compreender sequer uma pala-
plo, nos personagens que gostariam de vra do que diz Hegel. Consequentemen-
reformar o mundo, mas que por sua te, é claro que, durante todo o curso do
qualidade abstrata entram em falência, resto do i�nerário fenomenológico, as
como Dom Quixote e Robespierre). “figuras” tornam-se “figuras de um
C) Síntese dos dois momentos anterio- mundo”, etapas da história, que nos
cam que ela não é absoluta. Que não se carências, que tomam novas formas e
deve roubar, con�nua valendo, porém, se desenvolvem à medida que a econo-
há situações em que isso pode ser rela- mia progride; 2) A administração da jus-
�vizado. Portanto, a vida tem um direi- �ça (jurisdição): o direito abstrato é for-
to de emergência. mulado em leis definidas, promulgadas
e conhecidas. Esse aspecto público é
E�cidade (cidadão). A e�cidade corres- um traço essencial do direito, estrutura-
ponde à vinculação do direito abstrato do para proteger os indivíduos de danos
e da moralidade nas ins�tuições sociais e injúrias. Na sociedade civil, “um ser
(família, sociedade civil e Estado). A humano é considerado como tal porque
família é a base é�ca do Estado. A par�r ele é um ser humano, e não porque é
dela, o indivíduo passa a ser tratado judeu, católico, protestante, alemão,
como membro e não mais como pessoa italiano”; 3) A polícia e a corporação: no
(direito abstrato) e sujeito (moralida- tempo de Hegel, a polícia compreendia
de). Só há casamento se houver o con- não apenas a execução da lei, mas
sen�mento de ambos. O mero formalis- também a fixação de preços das neces-
mo não é suficiente para o casamento, sidades, o controle da qualidade dos
pois o mesmo é uma relação é�ca. Isso bens, a organização de hospitais, a
implica o abandono dos sen�mentos iluminação das ruas e muitas outras
imediatos. No casamento, caracteriza- coisas. A corporação de Hegel não é um
do como uma relação é�ca e não uma sindicato, uma vez que inclui tanto em-
relação natural, a escolha de se casar e pregados quanto empregadores.
com quem casar envolve uma ação Também compreendem corpos religio-
é�ca da liberdade. A família é a vida sos, sociedades eruditas, câmaras mu-
é�ca em sua fase natural ou imediata. nicipais. O papel das corporações é mo-
No devido tempo, sua unidade substan- derar o individualismo compe��vo do
cial cede lugar à sociedade civil. Siste- sistema de necessidades (a economia) e
mas de direito, como a propriedade, preparar os citadinos para suas vidas
não requerem a sociedade civil; antes, é como cidadãos do Estado. O Estado em
através e nas ins�tuições da sociedade Hegel é dividido em Direito Polí�co
civil, tais como o livre mercado, que a Interno (Cons�tuição e Opinião Públi-
consciência da liberdade da vontade na ca), Direito Internacional (Guerra) e His-
propriedade é possível. A sociedade tória Universal. 1) Cons�tuição. A Cons-
civil compreende três partes: 1) O siste- �tuição é a própria organização do
ma de necessidades: é a economia na Estado. A base é�ca que sustenta a
qual os indivíduos trocam bens e servi- Cons�tuição é o “espírito do povo” e
ços para sa�sfazer suas necessidades e “este é cons�tuído por toda a história
puro. Eis como Hegel caracteriza, de oriental; b) arte clássica; c) arte român-
modo claro e preciso, estes três mo- �ca; 2) Também na religião dis�nguem-
mentos dialé�cos da filosofia do espíri- -se três momentos: a) religião oriental;
to. 1) “A forma da intuição pertence à b) religião grega; c) religião cristã; 3) A
arte, de modo que a arte é que apresen- própria filosofia (que vem a coincidir
ta a consciência à verdade sob forma com a história da filosofia) também é
sensível, que tem nessa sua aparência vista desdobrando-se nos três momen-
um sen�do e um significado mais eleva- tos: a) da an�guidade grega; b) da cris-
dos, mais profundos”; 2) O âmbito tandade medieval; c) da modernidade
seguinte, que ultrapassa o reino da germânica. Em todos esses desdobra-
arte, é o da religião. A religião tem mentos histórico-dialé�cos, sobretudo
como forma de sua consciência a repre- duas coisas chamam a atenção: em pri-
sentação, enquanto o absoluto é trans- meiro lugar, a evolução pareceria cessar
ferido da obje�vidade da arte para a com a terceira fase, na qual tudo pare-
interioridade do sujeito; 3) A terceira ceria chegar a seu termo; em segundo
forma do espírito absoluto é, enfim, a lugar, a história da filosofia, de Tales a
filosofia. Com efeito, a religião na qual Hegel, apresenta-se como grandioso
Deus é inicialmente objeto externo para teorema, que se desdobra no tempo e
a consciência se revela depois no ele- no qual cada sistema cons�tui uma
mento interior, impelindo e preenchen- “passagem” necessária. E esse teorema
do a comunidade. Hegel, portanto, con- parece encontrar sua própria conclusão
clui: “Desse modo, unificam-se na filo- precisamente na filosofia de Hegel. Na
sofia os dois lados da arte e da religião: filosofia de Hegel – em certo sen�do – é
a obje�vidade da arte, que aqui certa- o próprio Deus que se autoconhece, e,
mente perdeu a sensibilidade externa, conhecendo-se, atua todas as coisas.
mas encontrou compreensão na forma Em suma, sob muitos aspectos a filoso-
suprema do obje�vo, na forma do pen- fia pareceria ter alcançado seu ápice no
samento, e a subje�vidade da religião, sistema de Hegel.
que é purificada como subje�vidade do
pensamento”. É justamente este o
esquema que Hegel seguiu ao traçar a
síntese das três manifestações grandio-
sas do espírito, arte-religião-filosofia.
Indicações de Leituras