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FILOSOFIA MODERNA

KANT, ROMANTISMO,
IDEALISMO E HEGEL

Curso Online

Filosofia 360°
Prof. Dr. Mateus Salvadori

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

1. Immanuel Kant princípios do direito e ter escrito À paz


perpétua (1795), texto que serviu de
Kant (1724-1804) nasceu na Prússia, na inspiração para criação da Organização
cidade de Koningsberg, onde levou uma das Nações Unidas (ONU). É de se
vida extremamente regrada e simples. deixar claro que o termo crí�ca está
De origem protestante e humilde, sendo usado no sen�do de análise e
nunca se casou, nem saiu de sua cidade não no sen�do nega�vo de escrever
natal. Dizem que quando alguém queria coisas ruins sobre determinado assun-
acertar o relógio, esperavam ele passar to. O que ele estava fazendo era anali-
para saber a hora. Apesar de seu es�lo sar o que os filósofos haviam escrito
de vida simples, Kant foi um dos maio- sobre a razão.
res filósofos da história. Conheceu fama
ainda em vida e suas obras sinte�zaram Em seu projeto crí�co, Kant inves�ga a
o espírito de sua época, sendo ele o questão do conhecimento, ou seja, a
maior porta voz do modo de vida indivi- possibilidade, o limite e o âmbito de
dualista liberal. A sua doutrina filosófica aplicação do conhecimento, pois em
moldou o modo de ver e pensar o sua época a filosofia se defrontava com
mundo no alvorecer da contemporanei- a nova ciência da natureza, que ombre-
dade, influenciando diversas áreas do ava os avanços bem anteriores realiza-
saber. Não há como entender qualquer dos pela lógica e pela matemá�ca. Já a
filósofo que veio depois dele, sem estu- meta�sica não era capaz de oferecer
dá-lo a fundo, pois ele é leitura soluções unanimemente aceitas, e
obrigatória para todo aspirante a inte- �nha sua pretensão a ser ciência ques-
lectual. �onada. Por isso, Kant inves�ga a possi-
bilidade dela como ciência, pois lhe
Conheceu a �sica de Newton na Univer- parece intolerável que a Primeira Filo-
sidade, reconheceu a contribuição de sofia, chamada tradicionalmente de
Hume sobre os limites da nossa capaci- Meta�sica, permaneça envolvida em
dade de conhecimento e estudou pro- uma disputa sem fim em torno das
fundamente os filósofos iluministas questões de Deus, da liberdade e da
franceses. Foi um pacifista e defensor imortalidade. Para que a filosofia man-
do regime republicano, apoiando a tenha seu lugar entre as ciências, essa
independência norte-americana. Ele controvérsia, acerca dos fundamentos
escreveu as três grandes crí�cas das meta�sicos, deve ser superada. Para tal,
mais importantes áreas, quais sejam, a a inves�gação kan�ana procura pelo
teoria do conhecimento, a moral e a critério que permite delimitar o que
esté�ca, além de ter formulados os pertence e o que não pertence à ciência

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

para verificar se a meta�sica se situa ou crí�ca prévia das possibilidades e limi-


não no campo cien�fico, e assim, o tes da razão para um projeto tão ambi-
porquê da meta�sica não apresentar o cioso. Ao inves�gar os fundamentos do
mesmo grau de certeza da lógica, da conhecimento, Kant se contrapõe ao
matemá�ca e da �sica. dogma�smo – mas não ao procedimen-
to dogmá�co. “A crí�ca não se opõe ao
Ao invés de propor um novo sistema procedimento dogmá�co da razão no
meta�sico, que sem dúvida teria sorte seu conhecimento puro, enquanto ciên-
idên�ca à dos outros, Kant irá atacar o cia (pois esta é sempre dogmá�ca, isto
problema pela raiz, interrogando-se é, estritamente demonstra�va, basean-
sobre as próprias possibilidades da do-se em princípios a priori seguros),
razão. In�ma-a para conhecer-se a si mas sim ao dogma�smo, quer dizer, à
mesma por meio de um método reflexi- presunção de seguir por diante apenas
vo e para ins�tuir um tribunal que se com um conhecimento puro por concei-
recuse a seguir todas as exigências que tos (conhecimento filosófico), apoiado
carecem de fundamento. Esse tribunal, em princípios, como os quais que a
onde juiz e ré são a razão, é a crí�ca da razão desde há muito aplica, sem se
razão pura. Trata-se de um exame crí�- informar, como e com que direito os
co da razão, isto é: de um exame que alcançou. O dogma�smo é, pois, o pro-
tem por fim de discernir ou dis�nguir o cedimento dogmá�co da razão sem
que a razão pode fazer e o que é incapaz uma crí�ca prévia da sua própria capa-
de fazer. A preocupação crí�ca consiste cidade”.
essencialmente em não se dizer mais do
que se sabe. E, se essa crí�ca diz respei- É dentro dessa perspec�va que se deve
to à razão pura, isso se deve à intenção entender o conceito de transcendental:
de Kant de pronunciar-se apenas sobre todo o conhecimento que, em geral, se
o valor dos conhecimentos puramente ocupa não tanto com os objetos, mas
racionais, como devem ser os da meta- com o modo de conhecê-los, na medida
�sica. Portanto, é preciso buscar na pró- em que esse conhecimento deva ser
pria razão as regras e os limites de sua possível a priori. Toda a inves�gação
a�vidade, a fim de saber até que ponto kan�ana é transcendental, no sen�do
podemos confiar na razão. de que a crí�ca tem, como objeto,
nossa faculdade cognosci�va. O concei-
O fracasso da meta�sica em suas pre- to transcendental, para Kant, significa o
tensões cien�ficas se deve ao fato dela modo de conhecer os objetos, enquan-
ter empreendido sua tarefa dogma�ca- to possível a priori. Esses modos são a
mente, ou seja, ter procedido sem uma sensibilidade e o entendimento, a que

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inerem estruturas a priori próprias do sada sem iden�dade; são par�culares,


sujeito e não do objeto. Sem elas, é con�ngentes, porém ampliam o conhe-
impossível qualquer experiência de cimento.
qualquer objeto. Antes de Kant, a meta-
�sica clássica denominava de transcen- Originalmente, Kant propõe uma nova
dental as condições do ser enquanto classe de juízos: os sinté�cos a priori.
tal, ou seja, as condições sem as quais o Estes são o verdadeiro núcleo da Teoria
próprio objeto deixava de exis�r. Após do Conhecimento: são universais,
Kant e a sua revolução copernicana não necessários, verdadeiros, ampliam e
é mais possível falar das condições do fazem prosperar o conhecimento. Con-
objeto em si, mas somente das condi- ceitualmente, esses juízos são possí-
ções do objeto em relação ao sujeito. veis. A questão é saber se essa possibili-
Com Kant, o transcendental não está dade conceitual pode realizar-se, isto é,
mais no objeto, mas no sujeito. se são possíveis os juízos sinté�cos a
priori e, portanto, a ampliação do
Analisando a faculdade de conhecer, o conhecimento anterior a toda experiên-
filósofo afirma que, “se, porém, todo o cia.
nosso conhecimento se inicia com a
experiência, isso não prova que todo Em torno dessa questão (de como são
ele derive da experiência”. Ele dis�ngue possíveis os juízos sinté�cos a priori),
dois conhecimentos: o a priori (conheci- Kant estrutura a Crítica da Razão Pura.
mento da razão que é puro, universal, Na Esté�ca Transcendental procura res-
necessário e independente da experi- ponder como são possíveis os juízos sin-
ência) e o a posteriori (conhecimento té�cos a priori na matemá�ca e inves�-
da experiência que é empírico, par�cu- ga os princípios apriorís�cos da Sensibi-
lar e con�ngente). O que os dis�ngue é lidade (Espaço e Tempo). Na Analí�ca
a necessidade e a universalidade, espe- Transcendental procura responder
cíficos do conhecimento a priori. Feita como são possíveis os juízos sinté�cos a
esta dis�nção, impõe-se dis�nguir os priori na ciência da natureza e inves�ga
juízos analí�cos dos juízos sinté�cos. Os os princípios apriorís�cos do Entendi-
analí�cos são juízos de elucidação; a mento (Categorias). E, na Dialé�ca
conexão sujeito-predicado é pensada Transcendental, inves�ga se são possí-
por iden�dade; são universais, necessá- veis os juízos sinté�cos a priori na meta-
rios e verdadeiros, mas não ampliam o �sica. Convém ra�ficar que, na meta�si-
conhecimento por serem tautológicos. ca, Kant indaga se são possíveis os
Os sinté�cos são os juízos de amplia- juízos sinté�cos a priori e não como são
ção; a conexão sujeito-predicado é pen- possíveis, pois essa ainda não havia se

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

cons�tuído como ciência, ao passo que resultados que se tornou um fato inegá-
a matemá�ca e a �sica, sim. vel. Por esse mo�vo, ele inves�ga o que
caracteriza e o que fundamenta a ciên-
A matemá�ca e a �sica se cons�tuíram cia. Para Kant, a ciência é cons�tuída
ciência graças a uma inversão na manei- por leis, por juízos sinté�cos a priori,
ra de pensar: ao invés da faculdade de que, como foi visto, são universais e
conhecer ser regulada pelos objetos, necessários e propiciam um avanço no
estes são regulados por aquela. Isso se conhecimento.
denomina revolução copernicana. Ela
irá ques�onar essa visão meta�sica Kant discorda tanto dos empiristas
existente. Portanto, “aquele que pri- como dos racionalistas acerca de sua
meiro demonstrou o triângulo isósceles concepção sobre ciência e conhecimen-
(fosse ele Tales ou como quer que se to. Os racionalistas sustentam que a
chamasse) teve uma iluminação; desco- ciência é cons�tuída por juízos analí�-
briu que não �nha que seguir passo a cos a priori e os empiristas, por juízos
passo o que via na figura, nem o simples sinté�cos a posteriori. Kant conclui que
conceito que dela possuía, para conhe- eles não estão certos devido à errônea
cer, de certa maneira, as suas proprie- concepção do conhecimento que eles
dades; que antes deveria produzi-la, ou têm. A ciência, desta forma, é impossí-
construí-la, mediante o que pensava e o vel, segundo Kant, pois o objeto fornece
que representava a priori por conceitos somente a novidade e o sujeito fornece
e que para conhecer, com certeza, uma somente a universalidade. O conheci-
coisa a priori nada devia atribuir-lhe mento não surge somente com o sujei-
senão o que fosse consequência neces- to ou somente com o objeto, mas surge
sária do que nela �nha posto, de acordo da junção dos dois, ou seja, o conheci-
com o conceito”. mento é o resultado de um elemento a
priori – sujeito –, e de um elemento a
Desse modo, a ciência moderna torna- posteriori – objeto. Kant irá descobrir os
-se, para Kant, uma espécie de ponto de juízos sinté�cos a priori. Portanto, em
par�da para a abordagem epistemoló- sua filosofia especula�va, ele afirma
gica, embora suas preocupações e inte- que o conhecimento humano não é
resses maiores sejam meta�sicos. Isso reprodução passiva de um objeto por
porque ele percebe que, desde as bases parte do sujeito, mas construção a�va
postas para a ciência, por Copérnico, do objeto por parte do sujeito. Isso o
Galileu e Newton, na aurora da moder- leva a negar a possibilidade da meta�si-
nidade, o conhecimento cien�fico ca como ciência.
alcançou um tal progresso e riqueza de

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Posto que o conhecimento se cons�tui nesse estágio que a meta�sica – um


da correlação sujeito-objeto e o objeto conhecimento da razão inteiramente
não fornece os elementos essenciais isolado e especula�vo que através de
para que se alcance o estágio cien�fico, simples conceitos se eleva completa-
será necessário buscar o elemento a mente acima do ensinamento da expe-
priori (universalidade e necessidade), riência –, se encontra. “O des�no não
indispensável para que haja lei e, por- foi até hoje tão favorável, que permi�s-
tanto, ciência, no sujeito. Se é o sujeito se trilhar o caminho seguro da ciência à
quem determina as possibilidades, meta�sica”. A razão emperra con�nua-
sujeitos diferentes, nas mesmas mente na meta�sica mesmo quando
circunstâncias, deverão chegar aos quer discernir a priori aquelas leis que a
mesmos resultados. Essa é a condição experiência mais comum a confirma.
para que haja juízo sinté�co a priori – e
ciência”. Desse modo, constata-se que o Na meta�sica é preciso retomar o cami-
fundamento dos juízos sinté�cos a nho inúmeras vezes, porque se desco-
priori é o próprio sujeito. Daí que se bre que não leva aonde se quer, e
compreende a afirmação kan�ana de quanto à unanimidade de seus colabo-
que “só conhecemos a priori das coisas radores isso está longe de acontecer,
o que nós mesmos nelas pomos”. pois não existe um consenso sobre o
método. Por isso, não há dúvida de que
Para que um estudo se cons�tua como o procedimento da meta�sica foi “um
ciência é preciso que haja unanimidade tateio apenas entre simples conceitos”.
entre os colaboradores e que, por um Esse seu procedimento deve-se, talvez,
caminho, se chegue a conclusões verda- ao fato dela não ter deixado vir à mente
deiras, isto é, que se proceda conforme essa questão (de como são possíveis os
um plano, seguindo metas. Quando, juízos sinté�cos a priori); ou, talvez, por
constantemente, é preciso voltar ao nem ter feito a dis�nção entre juízos
ponto de par�da e tomar outro cami- analí�cos e sinté�cos. Só que a resposta
nho ou quando se torna igualmente a essa questão é de capital importância,
impossível aos diversos colaboradores pois decide sobre a sua possibilidade
porem-se de acordo sobre a maneira como ciência. Desta forma, o obje�vo
como o obje�vo comum deve ser perse- de Kant, a exemplo dos geômetras e os
guido, então pode-se estar sempre con- inves�gadores da natureza, é tentar
victo de que um tal estudo acha-se, transformar o procedimento tradicional
ainda, bem longe de ser tomado como da meta�sica no modo de encarar suas
caminho seguro de uma ciência, cons�- relações com os objetos, comparável à
tuindo-se antes num simples tatear. E é de Copérnico. Ele afirma que, até agora,

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se supôs que todo o nosso conhecimen- seria pensado. Pensamentos sem con-
to �nha de ser regulado pelos objetos. teúdo são vazios; intuições sem concei-
Porém, “tentemos, pois, uma vez, expe- tos são cegas”. O conhecimento pode
rimentar se não se resolverão melhor as surgir da reunião dos dois. O entendi-
tarefas da meta�sica, admi�ndo que os mento e a sensibilidade, com suas
objetos se deveriam regular pelo nosso formas a priori, são as condições de
conhecimento, o que assim já concorda possibilidade dos juízos sinté�cos a
melhor com o que desejamos, a saber, a priori, específicos da ciência. E só pode-
possibilidade de um conhecimento a mos conhecer fenômenos (múl�plo)
priori desses objetos, que estabeleça que adentram a sensibilidade em suas
algo sobre eles antes de nos serem formas puras de espaço e tempo; sobre
dados”. Esse a priori possibilita que emi- esse conteúdo fenomênico é que o
tamos juízos universais e necessários, entendimento aplica as suas categorias,
exigência para que um conjunto de obtendo a cada aplicação uma síntese.
conhecimento se torne ciência. Porém,
como será visto, não poderá ultrapassar A razão, caracterizada como a busca do
os limites da experiência sensível, que é incondicionado, ou seja, que tende a ir
justamente a sua ocupação. além do âmbito fenomênico, não se
contenta com as sínteses do entendi-
A sensibilidade dá a matéria do conhe- mento, pois esse, de certo modo, é for-
cimento e o entendimento dá a forma. mado por uma mul�plicidade de sínte-
Assim, conhecer é dar forma a uma ma- ses. Ela exige a síntese suprema, a
téria dada. É ligar representações em máxima unidade que ponha termo à
conceitos. O resultado disso é que série das condições. As sínteses do
nosso conhecimento só se refere a entendimento são o objeto da razão.
fenômenos, pois só conhecemos as Esta age sobre o entendimento, o que
coisas no espaço e no tempo. Todo resulta nas ideias transcendentais:
objeto, para ser conhecido, deve estar Deus, liberdade e imortalidade – obje-
condicionado ao espaço e ao tempo, tos da meta�sica. Essas ideias estão
isto é, precisa afetar a sensibilidade fora do espaço e do tempo: não existe
causando uma impressão sensível. O um objeto a elas correspondente no
entendimento age sobre a sensibilidade mundo sensível. Por isso, elas não
e sinte�za as múl�plas intuições sensí- afetam a sensibilidade e, portanto, não
veis. Sensibilidade e entendimento são podem ser conhecidas. Contudo,
mutuamente independentes: “sem a podem – e a razão o exige –, ser pensa-
sensibilidade, nenhum objeto nos seria das.
dado; sem o entendimento, nenhum

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Kant conclui que as ideias da alma, do modos de conhecer. E ainda, não se


mundo e de Deus não tem valor cons�- deve fazer confusão com um terceiro
tu�vo, pois são formas que não tem par: necessário/con�ngente. Este par é
conteúdo. Essas ideias representam um acerca da dis�nção meta�sica de
ideal ina�ngível da razão especula�va. modos de verdade.
Essas ideias são coisas-em-si; portanto,
são incognoscíveis. A meta�sica como A priori é o conhecimento ou jus�fica-
conhecimento da coisa-em-si é impossí- ção independente da experiência (por
vel; ela somente é possível como exemplo, “Todos os solteiros não são
estudo das formas a priori da razão. casados”). Galen Strawson afirmou que
Portanto, é impossível a meta�sica um argumento a priori é aquele em que
como ciência. Prova disso vem com a “você pode ver que é verdadeiro
dialé�ca que mostra os erros que a apenas deitado em seu sofá. Você não
razão cai ao tentar fazer meta�sica. E as tem que se levantar do seu sofá e sair
ideias (de alma, de mundo e de Deus), para examinar a forma como as coisas
também são erros transcendentais? no mundo �sico são. Você não tem que
Kant responde essa pergunta afirmando fazer qualquer ciência.” A posteriori é o
que as ideias não são ilusões. As ideias conhecimento ou jus�ficação depen-
não têm uso cons�tu�vo como o têm as dente de experiência ou evidência em-
categorias, mas têm uso regula�vo, uni- pírica (por exemplo, “Alguns solteiros
ficando o conhecimento. Desta forma, o são muito infelizes”).
númeno é indiscu�velmente incognos-
cível, mas é possível a sua pensabilida- Os juízos sinté�cos a priori são juízos
de e a sua possibilidade. Portanto, já em que também o predicado não é
que através da ciência não é possível extraído do sujeito, mas que pela expe-
a�ngir o númeno, esse pode ser a�ngi- riência forma-se como algo novo, cons-
do por meio da é�ca. Com Kant, surge truído. No entanto, essa construção
uma meta�sica renovada. deve permi�r ou antever a possibilida-
de da repe�ção da experiência, isto é, a
Juízo é toda proposições sujeito-predi- aprioridade, entendida como a possibi-
cado afirma�vas. O par analí�co/sinté- lidade formal de construção fenomêni-
�co não deve ser confundido com o par ca, que permite a universalidade e a
a priori/a posteriori. O primeiro par é do necessidade dos juízos. A experiência
domínio da lógica, ou da análise semân- aqui não é a mera deposição de fenô-
�ca da linguagem. São independentes menos na mente em razão da sequên-
do domínio empírico. O segundo par faz cia das percepções, mas sim a organiza-
uma dis�nção epistemológica acerca de ção da mente numa unidade sinté�ca

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daquilo que é recebido pela intuição. ção do princípio supremo da moralida-


Kant concorda com Leibniz que “nada de, o que cons�tui só por si no seu pro-
há na mente que não �vesse passado pósito uma tarefa completa e bem dis-
pelos sen�dos, exceto a própria �nta de qualquer outra inves�gação
mente”. moral”. O princípio universal da morali-
dade kan�ana denota que o sujeito não
Na esfera das leis da liberdade, que são pode agir movido por emoções, sen�-
as leis morais, Kant dis�ngue duas mentos ou desejos, pois eles são subje-
formas de legislação: a legislação é�ca e �vos. O impera�vo é o critério obje�vo
a legislação jurídica. Esse conceito de da moralidade.
moral (gênero) é o conceito no sen�do
amplo, pois ele aborda tanto as leis Ei-los: i) Lei Universal: “devo proceder
é�cas quanto as leis jurídicas (espé- sempre de maneira que eu possa
cies). A legislação é�ca caracteriza-se querer também que a minha máxima se
pela ação pra�cada por dever. A sua torne uma lei universal”; ii) Dignidade
preocupação não é com as leis exterio- da Pessoa Humana: “age de tal maneira
res, mas com as leis interiores, com a que uses a humanidade, tanto na tua
intenção da ação. A legislação jurídica é pessoa como na pessoa de qualquer
a ação pra�cada conforme o dever. A outro, sempre e simultaneamente
ação legal é externa, pois está apenas como fim e nunca simplesmente como
preocupada com a adesão às leis exte- meio”. O impera�vo não diz o que deve
riores, ou seja, com a sua legi�mação. ser feito, mas como deve ser feito, ou
seja, o impera�vo é apenas formal e
Querendo propor um procedimento não conteudís�co. Um princípio obje�-
universal, Kant ressalta que o ponto de vo incondicionado é aquele, segundo o
par�da não pode ser algo empírico, pois qual todo agente racional, independen-
por meio do empírico não se alcança a temente de seus desejos pessoais por
universalidade. Por isso, a busca pelo fins par�culares, deve necessariamente
princípio da moralidade deve seguir a obedecer, se a razão �ver completo
via formal (filosofia pura). Tanto na controle sobre suas paixões.
razão teórica quanto na razão prá�ca,
Kant visa elaborar uma teoria distante O impera�vo categórico formula a obri-
do conteúdo empírico. A elaboração do gação ou mandamento (ordenamento)
seu princípio da universalidade parte de para obedecer a esse princípio incondi-
elementos a priori oriundos da razão cionado; e um princípio excluindo refe-
pura. “A presente Fundamentação nada rência a fins par�culares pode ser
mais é, porém, do que a busca e a fixa- somente a forma de um princípio, ou

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um princípio formal, ou lei universal diz que “a liberdade de um termina


como tal. Em suma, toda vez que quando começa a liberdade de outro”
formos agir devemos pensar em univer- está presente na filosofia kan�ana. Esse
salizar a nossa máxima e se todas as procedimento – impera�vo categórico
pessoas pudessem fazer isso sem pro- do direito – é formal. Ele não diz o que é
blemas para a humanidade, o ato é justo e injusto, mas apenas aponta um
é�co. Por exemplo, men�r não é um ato procedimento para alcançar a jus�ça. O
é�co porque não pode ser universaliza- direito empírico tem essa função:
do. Mas ajudar ao próximo é um ato garan�r, por meio das leis posi�vas e da
é�co, pois pode ser universalizada. E coação externa, a aplicação da jus�ça
men�r para salvar a vida de um inocen- advinda do direito natural. O obje�vo
te? Para Kant, men�r jamais será um da doutrina do direito de Kant é derivar
ato é�co (sem exceções), mesmo se for as leis dos princípios. O direito posi�vo
para salvar a vida de um inocente; iii) O deve encontrar seu critério de jus�ça e
impera�vo categórico do direito diz o seu fundamento no direito natural. A
seguinte: “age externamente de modo jus�ça, portanto, é a liberdade. O obje-
que o livre uso de teu arbítrio possa �vo do direito é a liberdade. Uma cons-
coexis�r com a liberdade de todos de �tuição justa tem como obje�vo har-
acordo com uma lei universal”. Desse monizar a liberdade de cada indivíduo
impera�vo é que deriva o direito posi�- com a liberdade de todos os demais.
vo. Somente a razão e não a experiência
define o critério de jus�ça. A ação Dever por dever é agir sem inclinações.
somente é justa se a liberdade de um Toda ação realizada visando algum inte-
possa coexis�r com a liberdade de resse (para si) não é é�ca. Somente será
outrem. Desta forma, direito, para Kant, é�ca a ação que agir sem querer algo
é “a soma das condições sob as quais a em troca. A ação realizada visando inte-
escolha de alguém pode ser unida à resses é chamada de dever por inclina-
escolha de outrem de acordo com uma ção. Por exemplo, fiz uma doação de
lei universal de liberdade”. dinheiro para a caridade. Eu agi de
forma é�ca? Normalmente, a resposta
O direito conduz, assim, a coexistência dada é que sim. Mas para a é�ca kan�a-
entre os sujeitos tendo a lei da liberda- na devemos saber se houve ou não
de como reguladora dos arbítrios. Isso interesses pessoais nessa doação.
impede a ditadura do arbítrio de um Então, a pergunta que se deve fazer é a
sujeito na liberdade de outro, garan�n- seguinte: qual é a sua intenção? Eu fiz a
do-se a paz que o direito persegue. doação porque me realizo ao poder
Desta maneira, a máxima popular que ajudar o necessitado. Dessa forma, essa

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ação não é considerada é�ca, pois esta: por amor a mim mesmo, eu esta-
houve interesses, inclinação, a saber, a beleço a princípio de poder encurtar a
auto-realização. Independente de qual minha vida a par�r do momento em
for a inclinação, ajudei por acreditar em que, prolongando-a, tenho mais males
Deus e achar que Deus gosta disso ou a temer do que sa�sfações a esperar. A
para ser reconhecido pelos outros pela questão agora é somente saber se esse
minha ação de ajudar o próximo, enfim, princípio do amor a si poderia tornar-se
para que a ação seja considerada é�ca uma lei universal da natureza. A dor
não pode haver interesses. Nesse caso, pode jus�ficar o suicídio?
a ação é considerada é�ca somente se
você ajudou o necessitado sem pensar Segundo caso: Um homem é levado
em receber qualquer coisa em troca. pela necessidade a pedir dinheiro em-
Em resumo: para agir de forma é�ca prestado. Ele sabe que não poderá
devemos primeiro seguir o Impera�vo devolvê-lo, mas sabe também que nada
Categórico – agir pensando que o nosso lhe será emprestado, se ele não se em-
ato pode ser feito por todas as pessoas penhar seriamente em devolve-lo na
– e agir sem inclinações, ou seja, seguir época determinada. Ele teria vontade
o dever por dever. Por exemplo, men�r de fazer essa promessa, mas tem ainda
jamais será um ato porque não passa consciência suficiente para se pergun-
pelo Impera�vo Categórico. Ajudar ao tar: não é proibido e contrário ao dever
próximo passa pelo Impera�vo Categó- se livrar da necessidade desse modo?
rico, mas será considerado é�co somen- Supondo, porém, que ele tomasse essa
te se você agiu sem interesses, sem decisão, a máxima da sua ação significa-
inclinações. ria: quando eu acredito precisar de
dinheiro logo o peço emprestado, pro-
A seguir, quatro casos concretos citados metendo devolvê-lo, mesmo sabendo
por Kant. Primeiro caso: Um homem que não o farei nunca. Ora, é certamen-
passa por uma série de males e isso te possível que esse princípio do amor a
acabou por levá-lo ao desespero. Ele mim mesmo ou da u�lidade própria se
sente um grande desprezo pela vida, conecte com todo o meu bem-estar
mas, todavia, ainda está de posse da futuro, mas no momento a questão é:
sua razão para poder perguntar-se se isso é justo? Eu transformo, portanto, a
não seria uma violação de dever para exigência do amor a mim mesmo em
consigo mesmo �rar a própria vida. Ele uma lei universal, e coloco a seguinte
procura, então, saber se a máxima de questão: o que aconteceria se a minha
sua ação poderia tornar-se uma lei uni- máxima se tornasse uma lei universal?
versal da natureza. A sua máxima seria É é�co em uma situação totalmente

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excepcional (por exemplo, graves de indiferença em relação aos outros?


necessidades financeiras) não cumprir a
palavra dada? Na sua obra À paz perpétua (1795), ele
nos apresenta os ar�gos preliminares
Terceiro caso: Um homem sente possuir como preparação À Paz Perpétua.
tal engenho que, com um certo empe- Ei-los: Primeiro ar�go: “Não se deve
nho, poderia fazer de si uma pessoa ú�l considerar como válido nenhum trata-
sob muitos aspectos. Mas ele se encon- do de paz que tenha sido feito com a
tra numa situação abastada e prefere reserva secreta de elementos para uma
entregar-se ao prazer (em levar a sua guerra futura”. A verdade é um manda-
vida no ócio, no prazer, na propagação mento incondicional da razão. Segundo
da espécie, em uma palavra, na fruição) ar�go: “Nenhum Estado independente
em vez de esforçar-se para ampliar e poderá ser adquirido por outro, me-
aperfeiçoar as suas ditosas disposições diante herança, troca, compra ou
naturais. Porém, ele se pergunta se a doação”. O Estado é um fim em si
sua máxima de negligenciar os seus mesmo. Terceiro ar�go: “Os exércitos
dons naturais, que, em si mesma, se permanentes devem, com o tempo,
concilia com a sua tendência ao prazer, desaparecer totalmente”. Quarto
concilia-se igualmente com o que se ar�go: “Não deve-se emi�r dívidas pú-
chama dever. Não desenvolver a fundo blicas em relação aos assuntos de polí�-
o próprio talento cons�tui um pecado ca exterior”. Aqui evidencia-se o proble-
de omissão, ou seja, seria jus�ficável ma do financiamento da guerra e o pro-
não desenvolver os próprios talentos blema de manter os respec�vos Esta-
para dedicar-se apenas ao ócio? dos em condição de dependência eco-
nômica, polí�ca e cultural. Quinto
Quarto caso: Um homem, que é bem- ar�go: “Nenhum Estado deve intervir
-sucedido em tudo, vendo que os pela força na cons�tuição ou no gover-
outros (a quem poderia muito bem no de outro Estado”. Esse é o princípio
ajudar) estão lutando contra grande da autonomia dos Estados. Sexto ar�go:
dificuldade, assim raciocina: O que me “Nenhum Estado em guerra com outro
importa? Que cada um seja feliz como o deve permi�r tais hos�lidades que
Céu manda ou como pode por si tornem impossível a confiança mútua
mesmo; eu não �rarei dele a menor na paz futura, como, por exemplo, o
parte do que tem, aliás, nunca o inveja- emprego no outro Estado de assassi-
rei; só que não estou disposto a contri- nos, envenenadores, a ins�gação à trai-
buir para o seu bem-estar ou a ajudá-lo ção etc”.
na sua necessidade. É é�ca uma a�tude

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Passamos agora aos ar�gos defini�vos e A paz perpétua é uma tarefa a ser cum-
as condições à efe�vação da Paz Perpé- prida passo a passo, mesmo que nunca
tua. Primeiro ar�go (Cons�tuição Repu- seja a�ngida. “É por isso que a ideia de
blicana): A Cons�tuição Civil deve ser uma Cons�tuição Nacional se completa
Republicana. Nela há três princípios pela ideia de uma federação regida por
fundamentais: liberdade, igualdade e uma Cons�tuição Cosmopolita, encar-
dependência (todos se encontram sob a regada de assegurar a paz perpétua”.
única e comum legislação/cons�tui- Kant não vê o progresso do Direito nem
ção). Na Cons�tuição Republicana se como governado pelo ins�nto nem por
requer o consen�mento dos cidadãos um plano acordado, mas pela natureza
para declarar guerra. Kant é pouco favo- humana. Kant parte da hipótese teleo-
rável à Democracia. Defende a Monar- lógica de que todas as disposições natu-
quia Republicana/Cons�tucional. rais de uma criatura estão des�nadas a
Segundo ar�go (Federação de Estados algum dia desenvolver-se completa e
Livres): “O direito das gentes (dos finalis�camente (Idee, 1. Tese). As dis-
povos) deve fundar-se numa federação posições naturais par�culares dos indi-
de estados livres”. A mesma insociabili- víduos, que visam ao uso da razão,
dade que obrigou os homens a saírem chegam ao pleno desenvolvimento não
do estado de natureza e a entrarem no indivíduo, mas no gênero através de
numa cons�tuição civil republicana é o gerações sucessivas (Idee, 2. Tese). Este
mesmo antagonismo que obriga os propósito natural da humanidade deve
Estados a entrarem na Federação de ser alcançado pela própria natureza
Estados. Para isso, deve haver, por parte humana; o sen�do da História, o pro-
dos Estados, muito empenho e dedica- gresso do Direito, ocorre sem nosso pla-
ção. Kant fundamenta sua liga das nejamento. Para Hobbes, o ins�nto pri-
nações no princípio transcendental do mário é o egoísmo; para Pufendorf e
direito. Terceiro ar�go (Direitos Cosmo- Locke, a sociabilidade; para Kant,
polita e a Hospitalidade): O direito cos- ambos. O antagonismo (sociabilidade
mopolita trata da hospitalidade univer- insociável) (Idee, 4. Tese) gera o desen-
sal, do respeito ao direito dos cidadãos volvimento das disposições humanas.
do mundo como seres humanos, do tra-
tamento dos cidadãos de um Estado 2. Roman�smo
quando visitam outro Estado. É o direito
de visitar e estar em qualquer parte do A palavra “român�co” aparece pela pri-
mundo e de não receber um tratamen- meira vez na Inglaterra pela metade do
to hos�l ao chegar noutro país. século XVII para designar o fabuloso, o
fantás�co, o irreal. Posteriormente, o

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

termo “roman�smo” passou a indicar o Alemanha, embora depois se dissemine


renascer do ins�nto e da emoção, sufo- por todo o Ocidente, renovando as
cados pelo racionalismo prevalente do raízes culturais desta esfera da civiliza-
século XVIII. O roman�smo designa o ção. Ele se contrapõe ao culto exacerba-
movimento espiritual que, envolvendo do da Razão, perpetrado pelo Iluminis-
não só a poesia e a filosofia, mas mo. Este ideal racionalista rouba do
também as artes figura�vas e a música, mundo seu encantamento, o vínculo
desenvolveu-se na Europa entre o fim com o sobrenatural, e agora resta aos
do século XVIII e a primeira metade do jovens român�cos desbravarem o uni-
século XIX. verso desconhecido do inconsciente.
Eles acreditam profundamente no reen-
A par�r da Inglaterra, o movimento se cantamento da realidade, em uma
expandiu em toda a Europa, na França, imagem do Homem que não é só razão,
na Itália, na Espanha, mas a manifesta- mas sen�mento, desejo mís�co, atra-
ção paradigmá�ca do roman�smo foi ção pela Natureza. Este ser tem em seu
em todo caso a que surgiu na passagem ín�mo uma vida interior a ser revelada,
entre o século XVIII e o XIX na Alema- que age sobre os român�cos com um
nha. Para os român�cos, a natureza, magne�smo sem par, atraindo-os para
subtraída inteiramente da concepção o seu núcleo com a voracidade �pica do
mecanicista-iluminista, entende-se que é novo.
como vida que cria eternamente, como
grande organismo do todo afim ao O movimento alemão foi criado pelos
organismo humano. A natureza é jogo irmãos August e Friedrich Schlegel, por
móvel de forças que gera todos os fenô- Novalis, jovem poeta, pelo autor de
menos, compreendendo o homem e, obras dramá�cas Ludwig Tieck e pelos
portanto, esta força é a própria força do ícones da Filosofia Schelling e Schleier-
divino. O roman�smo foi caracterizado macher, todos unidos em torno da
pela importância que em alguns siste- revista “Atheanum”, em 1797. Esta
mas filosóficos foi dada à intuição e à escola logo se estendeu por toda a Ale-
fantasia, em contraste com os sistemas manha, contagiando a poesia e a litera-
baseados unicamente sobre a fira tura com a presença de Goethe e Schil-
razão, entendida como único órgão da ler, a música com os compositores Bee-
verdade. Nesse sen�do, todo idealismo thoven e Brahms, as Artes Plás�cas com
é uma filosofia român�ca. a Escola de Berlim e Frankfurt, e a filo-
sofia.
O Roman�smo Alemão é um movimen-
to que nasce no final do século XVIII, na Para os român�cos, o mundo não é uma

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

equação exata, sem margens de erro. A tanto, do domínio da Razão e nos per-
realidade é muito mais rica, oferecendo mite simplesmente sen�r, perceber
ao homem várias possibilidades que algo que não pode ser traduzido pelo
podem ser exploradas. Assim, múl�plos campo da lógica, mas mesmo assim
pontos de vista sobre o real podem coe- está presente no Universo, como Deus –
xis�r, variando conforme a percepção de quem os adeptos do Roman�smo
de cada um. Neste sen�do, o Roman�s- estão muito próximos. Abre-se assim,
mo foi revolucionário ao romper com as diante do ser, o vasto campo do autoco-
cadeias da educação tradicional, basea- nhecimento, pronto para ser decifrado.
da somente no domínio da Razão, e o Este fascínio exercido pelo Eu atrai os
sujeito podia enfim elaborar sua pró- român�cos para a esfera da introspec-
pria interpretação do mundo exterior, o ção, do crepúsculo, do mistério. Sempre
que apontava para os limites da visão que o mundo dá uma guinada excessi-
racionalista. vamente materialista e racional, retor-
nam os princípios sedutores da visão
Ao cri�car o paradigma da Razão, os român�ca da vida, principalmente a
român�cos exercitaram uma espécie de importância atribuída a Natureza
crí�ca de arte que foi posteriormente enquanto fonte da unidade, como hoje
definida pelo filósofo Walter Benjamin ocorre com o ressurgimento do ponto
como meio de reflexão, o qual combate de vista holís�co, contraposto a um
o viés monológico do conhecimento, ou conhecimento fragmentado e a um
seja, aquele que privilegia apenas um ideal mecanicista.
discurso – neste caso, o racional –, não
permi�ndo que outros se expressem. 3. Idealismo
Assim, nesta linha de pensamento ine-
rente ao Roman�smo, só é considerada 3.1 Fichte e a Doutrina da Ciência
uma obra de arte aquela que �ver o
poder de despertar um conjunto de O idealismo. A preocupação primordial
reflexões, as quais cons�tuirão um de Fichte foi em primeiro lugar contri-
conhecimento não mais monopolizado buir para a difusão do cri�cismo kan�a-
por uma única voz, mas aberto para a no e, depois, de descobrir o princípio de
mul�plicidade discursiva. base, não revelado por Kant, que unifi-
cava as três Crí�cas, a fim de construir o
Os român�cos se valem da arte para sistema do saber, transformando a filo-
engendrar seu próprio mecanismo de sofia em uma rigorosa “doutrina da
conhecimento e de evolução humana. ciência”. Par�ndo das reflexões pós-
A criação ar�s�ca nos torna livres, por- -kan�anas de Reinhold, Schulze e

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Maimon, o pensamento de Fichte originária e infinita, é autocriação abso-


chegou a transformar o Eu penso kan- luta por meio da própria imaginação
�ano em Eu puro, entendido como produ�va. Este é o momento da “liber-
intuição pura que livremente se dade” e da tese. O autopor-se de Eu
autopõe (se autocria) e, se autopondo, comporta necessariamente a posição
cria toda a realidade. Esta é a grande inconsciente de alguma outra coisa
novidade de Fichte, com a qual ele ia diversa do Eu e, portanto, a posição de
muito além do cri�cismo e fundava o um não-eu.
idealismo. O Eu de Fichte é o princípio
originário e absoluto de toda a realida- O segundo princípio é, portanto: o Eu
de, que antes de tudo põe a si mesma e, opõe absolutamente a si mesmo, dentro
portanto, põe todas as coisas; desse de si, um não-eu. Este é o momento da
modo, o Eu é condição incondicionada “necessidade” e da an�tese. A produ-
de si mesmo e da realidade. Na meta�- ção determinada do não-eu surge como
sica anterior a Fichte, a a�vidade / agir limite, como determinação do Eu,
era sempre considerado consequência mo�vo pelo qual o não-eu determinado
do ser; o idealismo de Fichte inverte comporta necessariamente um eu
isso: o ser é produto do agir. Assim, o Eu determinado, ele próprio oposto ao Eu
penso de Kant, que era a estrutura absoluto. É evidente que esse não-eu
transcendental fundamental do sujeito, não está fora do Eu e sim no seu inte-
torna-se em Fichte a�vidade / auto-in- rior, já que nada é pensável fora do Eu.
tuição.
O terceiro princípio de Fichte é: no Eu
A “doutrina da ciência”. Para Aristóte- absoluto, o eu limitado e o não-eu limi-
les, o princípio de todo saber cien�fico tado se opõem e se limitam reciproca-
era o princípio de não-contradição; na mente. E este é o momento da síntese.
filosofia moderna wolffiana e para Kant O terceiro princípio explica tanto a a�vi-
era o princípio de iden�dade (A = A), dade cognosci�va, que se funda sobre o
considerado ainda mais originário; para aspecto pelo qual o eu é determinado
Fichte, ao contrário, o princípio se pelo não-eu, uma vez que o eu, para
autopõe (Eu = Eu) e, desse modo, põe a realizar-se como liberdade, devem
iden�dade A = A. sempre superar os limites que o não-eu
pouco a pouco lhe opõe. Isso atesta a
O primeiro princípio do idealismo de superioridade da razão prá�ca sobre a
Fichte, sua condição incondicionada é, razão pura. A oposição entre o Eu e o
portanto: o Eu põe absolutamente a si não-eu ocorre no Eu. Nessa oposição,
mesmo. O Eu, enquanto livre a�vidade um não elimina o outro, mas delimita

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

o outro. A produção do não-eu surge mente que nos encontramos diante de


como limite ou como determinação do objetos diferentes de nós e que agem
Eu. sobre nós. Como se explica o fato de o
sujeito considerar o objeto diferente de
Fichte iden�fica esse terceiro momento si, a ponto de sen�r-se “afetado” pela
como a “síntese a priori” kan�ana. E, ação dele? Em Kant a imaginação pro-
nos dois primeiros momentos, indica as du�va determinava a priori a forma
condições que a tornam possível. Além pura do tempo, fornecendo os “esque-
disso, Fichte está convicto de estar em mas” às categorias. Em Fichte, a imagi-
condições de “deduzir” as categorias nação produ�va torna-se criadora “in-
que Kant pretendeu extrair de modo consciente” dos objetos. A imaginação
metódico seguindo um fio condutor, produ�va, portanto, é a a�vidade infini-
mas que, na realidade, extraiu mecani- ta do Eu que, delimitando-se con�nua-
camente. Ei-las: Quan�dade (Unidade, mente, produz aquilo que cons�tui a
Pluralidade e Totalidade); Qualidade matéria de nosso conhecimento. Preci-
(Realidade / Afirmação, Negação e Limi- samente por se tratar de produção
tação); Relação (Substância e Acidente, inconsciente, o produto nos aparece
Causa e Efeito e Ação recíproca entre como diferente de nós. Mas a imagina-
Agente e Paciente); Modalidade (Possi- ção produ�va fornece um material
bilidade-impossibilidade, Existência- bruto, do qual, em etapas sucessivas, a
-inexistência e Necessidade-con�ngên- consciência se reapropria através de
cia). Dos três princípios de Fichte po- sensação, da intuição sensível, do inte-
dem-se deduzir as três categorias de lecto e do juízo. Ora, se nós nos colocar-
qualidade: Afirmação (primeiro princí- mos no ponto de vista da reflexão
pio); Negação (segundo princípio); Limi- comum, formamos a sólida convicção
tação (terceiro princípio). De modo aná- de que as coisas têm realidade fora de
logo, Fichte procede para deduzir nós e que elas existem sem nossa inter-
também as outras. venção. Todavia, quando refle�mos
sobre as etapas do processo cognosci�-
A an�tese entre Eu e não-eu e a limita- vo e suas condições, então adquirimos
ção recíproca explicam tanto a a�vida- consciência do fato de que tudo deriva
de cognosci�va como a a�vidade moral. do Eu e, em nossa autoconsciência, nos
aproximamos sempre mais da auto-
A a�vidade cognosci�va funda-se no consciência pura. O não-eu se revelou
aspecto pelo qual o Eu é determinado como condição necessária para que
pelo não-eu. Na experiência e no nascesse a consciência, que é sempre
conhecimento nós consideramos comu- consciência de alguma coisa diferente

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

de si, e que, entretanto, pressupõe não é substância ou realidade em si


sempre uma alteridade. A autoconsci- mesma e sim essa ordem moral do
ência pura permanece como limite do mundo; é o dever ser e, portanto, a
qual podemos nos aproximar, mas que ideia. A verdadeira religião consiste na
nunca podemos a�ngir, por razões ação moral. O finito (o homem) é mo-
estruturais (derrubar todo limite signifi- mento necessário e estrutural de Deus.
caria derrubar a própria consciência). Visto que tanto um quanto outro mo-
mento se verificam no âmbito do Eu
A a�vidade prá�ca funda-se no aspecto infinito, consequentemente se dá uma
pelo qual o Eu determina o não-eu. No dinâmica que, nos dois âmbitos, de
agir prá�co, o objeto se apresenta ao modo diferente, se desdobra em pro-
homem como obstáculo a superar. O gressiva superação e domínio do limite.
não-eu torna-se o instrumento através
do qual o Eu se realiza moralmente. 3.2 Schelling e a Filosofia da Natureza
Sendo assim, o não-eu torna-se mo-
mento necessário para a realização da A filosofia da natureza. Para Schelling,
liberdade do Eu. Ser livre significa tor- é preciso aplicar à natureza o mesmo
nar-se livre. E tornar-se livre significa modelo de explicação que Fichte aplica-
afastar incessantemente os limites ra com sucesso à vida do espírito,
opostos pelo não-eu ao Eu empírico. porque o sistema da natureza está junto
Essa é uma liberdade des�nada a per- com o sistema do espírito. A natureza
manecer estruturalmente no plano da vem, portanto, a mostrar-se como a
função ilimitada (o dever absoluto ou produção de uma inteligência incons-
impera�vo categórico de Kant). A infini- ciente que opera a par�r de dentro
tude do Eu é um infinito pôr um não-eu dela, desenvolvendo-se em sen�do
para superá-lo ao infinito. Como é evi- teleológico. O grande princípio da filo-
dente, a eliminação completa do sofia natural de Schelling é, portanto: a
não-eu só pode ser um conceito limite; natureza deve ser o espírito visível, o
por isso, a liberdade permanece estru- espírito deve ser a natureza invisível.
turalmente como função infinita. A ver- Toda força natural que se expande con-
dadeira perfeição é um infinito tender à trapõe-se de tempos em tempos um
perfeição como superação progressiva limite e toda fase cons�tuída pelo
da limitação. E nisso revela-se a própria encontro da força expansiva se apre-
essência do princípio absoluto. Assim, senta como mais rico e hierarquicamen-
Fichte considera ter demonstrado a te mais elevado: o mais alto nível é o
superioridade da razão prá�ca sobre a nível “orgânico” e o fim último da natu-
razão pura, que Kant já intuíra. Deus reza é o homem, porque nele desperta

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

justamente o espírito, que em todos os interior, que se desenvolve teleologica-


outros graus naturais permanece como mente em graus, ou seja, em níveis
que dormente. sucessivos, que mostram uma finalida-
de intrínseca e estrutural. Nessa absolu-
O “Eu puro” de Fichte é apresentado ta unidade do espírito em nós e da
como o “absoluto”, cuja unidade não é natureza fora de nós que se deve resol-
a unidade numérica dos indivíduos, ver o problema de como é possível uma
mas sim a unidade própria do Uno-Todo natureza fora de nós. “A natureza nada
imutável. O “Eu” não é consciência nem mais é do que inteligência enrijecida em
pensamento nem pessoa, porque cons- um ser”; “sensações apagadas em um
ciência e pessoa são momentos poste- não-ser”; “arte formadora de ideias que
riores e “deduzidos”. transforma em corpos”. Em suma, a
natureza nada mais é do que a história
Spinoza é o seu grande adversário, pois da inteligência inconsciente que, atra-
ele apresenta-se como o campeão do vés de sucessivos graus de obje�vação
dogma�smo, enquanto absolu�zou o chega, por fim, à consciência (no ser
objeto (o não-eu) e procurou garan�r a humano).
paz do espírito ao preço do abandono
do sujeito (empírico) ao objeto absolu- Idealismo transcendental. Após verifi-
to. Fichte não considera o objeto como car como a natureza chega à inteligên-
absoluto e sim o sujeito, além de vincu- cia, Schelling verifica agora como a inte-
lar o sujeito empírico ao sujeito absolu- ligência chega à natureza (na obra O
to mediante a intuição intelectual, que sistema do idealismo transcendental). O
revela precisamente a tangência do eu Eu é a�vidade originária que se
empírico com o Eu absoluto. autopõe ao infinito, a�vidade produto-
ra que se torna objeto para si mesma.
Mas, se não é um puro não-eu, o que é Mas, para não ser apenas produtora,
então a natureza? Schelling considera tornando-se também produto, a produ-
que o problema é solucionável supon- ção pura infinita que é própria do Eu
do-se a existência de unidade entre deve estabelecer limites ao seu próprio
ideal e real, entre espírito e natureza. produzir e, portanto, opor algo a si. Mas
Isso implica que se deve aplicar à natu- a a�vidade do Eu, enquanto é a�vidade
reza o mesmo modelo de explicação infinita, estabelece o limite e depois
que Fichte aplicara com sucesso à vida também o supera, gradualmente, em
do espírito. Assim, conclui-se que a nível sempre maior. Schelling chama de
natureza é produzida por uma inteligên- “a�vidade real” a a�vidade originária
cia inconsciente, que opera em seu do Eu, produtora ao infinito, enquanto

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

chama de “a�vidade ideal” aquela que reza. Essa concepção abandona as filo-
toma consciência colidindo com o sofias kan�ana e fichteana unilaterais.
limite; o limite, com efeito, é ideal no O absoluto é, portanto, essa iden�dade
âmbito do saber e real no âmbito do originária de ideal e real e a filosofia é
agir: a filosofia teórica é por isso idealis- saber absoluto do absoluto. As concep-
mo, enquanto a filosofia prá�ca é realis- ções de Spinoza e Fichte são sinte�za-
mo e apenas juntas elas formam o siste- das em forma de espiritualismo pante-
ma completo do idealismo transcen- ísta: tudo é razão e a razão é tudo.
dental. Os horizontes da Doutrina da
ciência de Fichte se ampliam e o idealis- A “iden�dade absoluta” é infinita e não
mo subje�vo torna-se ideal-realismo. sai nunca fora de si e, portanto, tudo
aquilo que existe, existe de algum modo
Idealismo esté�co. A mais elevada nela e é iden�dade: a identidade abso-
tarefa da filosofia transcendental con- luta é definitivamente o Uno-Todo, fora
siste em mostrar a iden�dade, inerente do qual nenhuma coisa existe por si
no próprio princípio, da a�vidade cons- mesma.
ciente e da inconsciente e a a�vidade
consciente-inconsciente presente tanto Schelling procura superar a dificuldade
no espírito quanto na natureza é a a�vi- reintroduzindo a teoria platônica das
dade esté�ca: o mundo obje�vo é, por- ideias. Não razão, entendida como
tanto, a poesia primi�va e ainda incons- iden�dade absoluta e unidade do uni-
ciente do espírito e o órgão universal da versal e do par�cular, existem unidades
filosofia é a filosofia da arte. Na criação par�culares (as ideias) que deveriam
ar�s�ca se fundem o consciente e o cons�tuir a causa das coisas finitas.
inconsciente. O produto ar�s�co é, de Todavia, no absoluto, as ideias estão
fato, finito, mas mantém significação todas em todas, ao passo que as coisas
infinita. Nas obras-primas da arte sensíveis estão separadas e umas fora
humana encontra-se a mesma marca das outras. Schelling sustenta que, no
das obras-primas da arte cósmica. sensível, as coisas são tais somente para
nós, ou seja, somente para nossa cons-
Filosofia da iden�dade. A concepção ciência empírica. Para resolver a grande
da intuição esté�ca, como captação da dificuldade de explicar como e por que
unidade do ideal e do real (filosofia da iden�dade infinita nasçam a diferen-
transcendental como ideal-realismo), ciação e o finito, Schelling não acolhe o
implicava já uma concepção do absolu- criacionismo (que faz o finito nascer por
to como “iden�dade originária” de Eu e ato de livre vontade do Criador e supõe
não-eu, sujeito e objeto, espírito e natu- a transcendência) nem o spinozismo

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

(que, na prá�ca, anula o finito e repre- refle�r-se de um conflito originário de


senta a posição pré-idealista) e retoma forças opostas, que estão na base da
o an�go conceito gnós�co, aceito no própria vida de Deus. Existe mal no
passado pelo mis�cismo alemão da mundo porque ele já existe em Deus. A
“queda”: a existência das coisas e sua vitória da liberdade, da inteligência e do
origem supõem uma queda originária, posi�vo, que é o obje�vo da história
uma separação em relação a Deus. A dos homens, é o reflexo daquela vitória
origem do mundo sensível só pode ser que se realiza eternamente em Deus.
explicada pelo afastamento em relação
ao absoluto através de um salto. Na úl�ma fase do pensamento de
Schelling (1815), ele dis�ngue: i) filoso-
Filosofia nega�va e filosofia posi�va. fia nega�va: é a filosofia professada até
Schelling aceita ser chamado de pante- esse momento; é a especulação em
ísta desde que se entenda por panteís- torno do universal, da essência das
mo que tudo está em Deus, mas não, ao coisas; é rela�va à possibilidade lógica
contrário, que tudo é Deus. Deus é o das coisas; ii) filosofia posi�va: é a espe-
antecedente e as coisas são o conse- culação que se funda sobre a religião e
quente. O consequente está no antece- sobre a revelação e se refere sobre à
dente, mas não vice-versa. Schelling existência efe�va das coisas.
chega a considerar Deus como “pessoa”
(o que fora excluído tanto por Spinoza 4. Georg Wilhelm Friedrich Hegel
como por Fichte), mas pessoa que-se-
-faz. Os opostos, que antes (jovem O alemão Georg Wilhelm Friedrich
Schelling) eram admi�dos como unifi- Hegel (1770-1831) foi um dos filósofos
cados, agora já são entendidos por ele de maior envergadura da modernidade.
como presentes em luta dentro do pró- Os núcleos conceituais a que todo o
prio absoluto. Existe em Deus o princí- sistema hegeliano pode ser referido,
pio obscuro e cego, que é a vontade seguindo em concreto seu desenvolvi-
irracional e o princípio posi�vo e racio- mento até sua plena realização, são
nal. A vida de Deus se explica precisa- três: 1) a realidade enquanto tal é espí-
mente como vitória do posi�vo sobre o rito infinito; 2) a estrutura é a própria
nega�vo. Deus não é puro espírito, mas vida do espírito e, portanto, também o
é também natureza. procedimento com o qual se desenvol-
ve o saber filosófico, é a dialé�ca; 3) a
O drama humano, que consiste na luta peculiaridade desta dialé�ca, bem dife-
entre o bem e o mal, entre a liberdade e rente de todas as formas precedentes
a necessidade, nada mais é do que o de dialé�ca, é o elemento “especula�-

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

vo”. que Hegel dis�ngue três momentos: 1)


o ser-em-si; 2) o ser-outro ou ser-fora-
Um ponto de vista fundamental do pen- -de-si; 3) o retorno a si ou ser-em-si-e-
samento hegeliano é o de entender a -por-si.
verdade não como substância fixa e
imutável, mas como sujeito, como espí- O movimento autoprodu�vo do absolu-
rito, isto é, como a�vidade, processo, to tem, portanto, um ritmo triádico,
automovimento. Para Hegel o espírito que se repete estruturalmente em
se autogera, gerando ao mesmo tempo todos os níveis do real e que no próprio
a própria determinação e superando-a absoluto dá lugar a três momentos ori-
completamente. O espírito é infinito ginários e paradigmá�cos: 1) a ideia em
porque se atua e se realiza sempre si, que é logos como racionalidade pura
como infinito que põe e ao mesmo (objeto da lógica); 2) a natureza, que é a
tempo supera o finito. O espírito infini- ideia fora de si, isto é, alienada (objeto
to hegeliano é como um círculo em que da filosofia da natureza); 3) o espírito
princípio e fim coincidem de modo em geral, que é a ideia que, a par�r da
dinâmico, como um movimento em alienação, retorna a si e se torna em si e
espiral em que o par�cular é sempre por si (objeto da filosofia do espírito).
posto e sempre dinamicamente resolvi- Tudo é, portanto, desenvolvimento da
do no universal. O espírito infinito hege- ideia, que suporta e supera sua nega-
liano é algo que se plasma a si mesmo ção, e a famosa frase de Hegel “tudo
de novo, mas em figuras sempre diver- aquilo que é real/efe�vo é racional e
sas. tudo aquilo que é racional é real/efe�-
vo” indica justamente que a realidade é
O absoluto é uma igualdade que con�- o próprio desenvolver-se da ideia, e
nuamente se diferencia para se recons- vice-versa.
�tuir. Cada momento do real é momen-
to necessário do absoluto, o qual se faz Segundo Hegel, o único método em
e se realiza justamente em cada um e grau de garan�r o conhecimento cien�-
em todos estes momentos. O real é, fico do absoluto, e de elevar assim a
portanto, um processo que se autocria filosofia à ciência, é o método dialé�co,
enquanto percorre seus momentos em virtude do qual a verdade pode
sucessivos, e em que o posi�vo é justa- finalmente receber a forma rigorosa do
mente o próprio movimento como pro- sistema da cien�ficidade; ele se remete
gressivo auto-enriquecimento. O movi- aqui à dialé�ca clássica, conferindo
mento próprio do espirito é o refle�r-se porém movimento e dinamicidade às
em si mesmo, uma reflexão circular em essências e aos conceitos universais

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

que, já descobertos pelos an�gos, mediante a negação do nega�vo pró-


haviam, contudo, permanecido com prio das an�teses dialé�cas e, portanto,
eles em uma espécie de repouso rígido, é uma elevação do posi�vo das teses a
quase solidificados. O coração da dialé- um nível mais alto. Para Hegel, com
�ca torna-se assim o movimento, e pre- efeito, a negação especula�va não é
cisamente o movimento circular ou em uma aniquilação total, nem uma reser-
espiral, com ritmo triádico. va defini�va, mas é propriamente uma
conservação daquilo que é negado, e
Os três momentos do movimento dialé- sua elevação a um nível superior é um
�co são: seu “enverdadeiramento” e uma sua
1) A tese, que cons�tui o momento abs- “posi�vização”. O especula�vo é, por-
trato ou intelec�vo; o intelecto/enten- tanto, o vér�ce ao qual chega a razão, a
dimento é a faculdade que abstrai con- dimensão do absoluto. Por conseguin-
ceitos determinados e se detém nessa te, as proposições filosóficas devem ser
determinação própria do finito, consi- proposições especula�vas, que expri-
derando erroneamente que as separa- mem o movimento dialé�co com o qual
ções e definições assim ob�das sejam sujeito e predicado trocam entre si as
defini�vas; partes de modo a cons�tuir uma iden�-
2) A an�tese, que cons�tui o momento dade dinâmica. Enquanto a proposição
dialé�co (em sen�do estrito) ou nega�- da velha lógica permanece fechada nos
vamente racional; o primeiro passo limites rígidos do intelecto, a proposi-
além dos limites do intelecto/entendi- ção especula�va é estruturalmente
mento é realizado nega�vamente pela dinâmica como a realidade que ela
razão, removendo a rigidez dos produ- exprime e como o pensamento que a
tos intelec�vos e levando luz a série de formula. Os termos “tese”, “an�tese” e
contradições e de oposições que carac- “síntese” são usados apenas para facili-
terizam o finito; tar a exposição das ideias, não são
3) A síntese, que cons�tui o momento termos u�lizados por Hegel.
especula�vo ou posi�vamente racional;
aqui a razão capta a unidade das deter- Passamos a análise da obra A fenome-
minações contrapostas, ou seja, capta nologia do espírito. O problema da pas-
dentro de si o posi�vo emergente da sagem da consciência comum para a
síntese dos opostos e se mostra ela pró- razão. Tudo o que destacamos, obvia-
pria como totalidade concreta. mente, implica que o homem, no mo-
mento em que filosofa, eleva-se bem
O momento “especula�vo” é, portanto, acima da consciência comum, ou seja,
a reafirmação do posi�vo que se realiza mais precisamente, que sua consciência

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

se eleva à altura da pura razão e que se até dizer que na Fenomenologia, enten-
coloca em perspec�va absoluta (ou dida como caminho que leva ao absolu-
seja, que adquire o ponto-de-vista-do- to, o homem está envolvido tanto
absoluto). E, “para construir o absoluto quanto o próprio absoluto. Com efeito,
na consciência”, é preciso negar e supe- no horizonte hegeliano, não existe o
rar as finitudes da consciência, elevan- finito “separado” do infinito, o par�cu-
do desse modo o eu empírico a Eu lar “afastado” do universal e, portanto,
transcendental, a razão e espírito. Mas o homem não está afastado e separado
nada disso pode ocorrer abruptamente. do absoluto, mas é parte estrutural e
Na verdade, Hegel condenou dras�ca- determinante dele, porque o infinito
mente o “problema do método” como hegeliano é o infinito-quase-faz-por
fora posto desde Descartes até o pró- meio-do-finito, e o absoluto é “o ser
prio Kant, chegando até a expedir que reentrou eternamente em si pelo
impiedosamente o atestado de óbito ser outro”.
desse problema, declarando-o como
pertencente “a uma cultura ultrapassa- Trata-se, portanto, de uma “introdu-
da”; não pode haver “introdução” ao ção” ou de uma propedêu�ca que cons-
filosofar (como pretendia o velho pro- �tui um momento, não só da vida
blema do método) que já não seja filo- humana, mas também da vida do abso-
sofar, nem introdução à ciência que já luto: a “fenomenologia do espírito” é o
não seja ciência. caminho que leva a consciência finita ao
absoluto infinito, que coincide com o
Hegel argumenta que pretender elabo- caminho que o absoluto percorreu e
rar uma introdução à filosofia que pre- percorre para alcançar a si mesmo (o
ceda a filosofia seria como pretender reentrar em si pelo ser-outro). Portanto,
querer aprender a nadar antes de a Fenomenologia marca a passagem
entrar na água. Entretanto, Hegel está necessária e cien�fica, como dissemos,
convencido de que a passagem da cons- e sua metodologia não pode deixar de
ciência comum para a consciência filo- ser a mais rigorosa metodologia cien�fi-
sófica deve ocorrer de modo mediato e ca, ou seja, a dialé�ca.
não de modo roman�camente imediato
e, portanto, Hegel também admite que A “fenomenologia” como história da
exista uma espécie de “introdução à consciência do indivíduo e história do
filosofia”. Ela, naturalmente, seria uma espírito. Com base nessa premissa, tor-
“introdução” ao filosofar, que é já ela na-se fácil compreender o termo “feno-
própria um filosofar. A passagem da menologia” na acepção hegeliana. O
consciência finita ao absoluto. Podemos termo deriva do grego phainomenon,

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

que significa manifestar-se ou aparecer quais são algumas das “figuras essen-
e, portanto, quer dizer ciência do apare- ciais do espírito já depostas”.
cer e do manifestar-se. Esse aparecer
(e, no sistema hegeliano, não poderia A seguir, serão abordadas as etapas do
ser diferente) é o aparecer do próprio i�nerário fenomenológico. O espírito
espírito em diferentes etapas, que, a que se determina e aparece é a consci-
par�r da consciência empírica, pouco a ência no sen�do lato do termo, que sig-
pouco se eleva a níveis sempre mais nifica consciência de alguma coisa
altos. A fenomenologia, portanto, é a diversa (tanto interna como externa, e
ciência do espírito, que aparece na de qualquer gênero que seja). Consci-
forma do ser determinado e do ser múl- ência indica sempre relação determina-
�plo e que, em uma série sucessiva de da entre um “eu” e um “objeto”, relação
“figuras”, ou seja, de momentos diale�- sujeito-objeto. A oposição sujeito-obje-
camente relacionados entre si, alcança to, portanto, é caracterís�ca dis�n�va
o saber absoluto. da consciência. Ora, o i�nerário da
Fenomenologia consiste na mediação
Na Fenomenologia, como se evidencia progressiva dessa oposição, até sua
do que foi dito, existem dois planos que total superação. Podemos, portanto,
se interseccionam e se justapõem: 1) há dizer também que o obje�vo que Hegel
o plano cons�tuído pelo caminho per- persegue na Fenomenologia é a anula-
corrido pelo espírito para chegar a si ção da cisão entre consciência e objeto,
mesmo ao longo de todos os aconteci- com a demonstração de que o objeto
mentos da história do mundo que, para nada mais é do que o “si” da consciên-
Hegel, é o caminho ao longo do qual o cia, isto é, autoconsciência: a autocons-
espirito se realizou e se conheceu; 2) ciência que, de Kant em diante, se tor-
mas há também o plano próprio do sim- nará o centro da filosofia, e que Hegel
ples indivíduo empírico, que deve per- procura fundamentar cien�ficamente,
correr novamente aquele mesmo cami- dela extraindo ao mesmo tempo as úl�-
nho e apropriar-se dele. A história da mas consequências.
consciência do indivíduo, portanto,
outra coisa não pode ser senão o per- Resumidamente, o i�nerário fenome-
correr de novo a história do espírito. A nológico percorre as seguintes etapas:
introdução fenomenológica à filosofia é 1) Consciência (em sen�do estrito); 2)
o percorrer novamente esse caminho. Autoconsciência; 3) Razão; 4) Espírito;
Vejamos agora qual é o esquema desse 5) Religião; 6) Saber absoluto. A tese de
i�nerário do espírito-que-aparece e da Hegel é que toda consciência é auto-
consciência que o percorre de novo, e consciência; por sua vez, a autoconsci-

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

ência se descobre como razão; por fim, diale�camente ao outro: a) No momen-


a razão realiza-se plenamente como to da sensação, o par�cular aparece
espírito, que, através da religião, alcan- como verdade, mas aparece muito mais
ça seu ponto culminante no saber abso- como contraditório, a tal ponto que,
luto. Cada uma dessas etapas é cons�- para compreender o par�cular, é neces-
tuída por diferentes momentos ou sário passar para o geral; b) No momen-
“figuras”. Hegel apresenta cada um to da percepção, o objeto parece ser a
desses momentos ou cada uma dessas verdade; mas logo também ele é con-
figuras de modo a mostrar que a sua traditório, porque se revela uno e
determinação é inadequada e que, por- muitos, ou seja, um objeto com muitas
tanto, obriga a passar a seu oposto; este propriedades ao mesmo tempo; c) No
supera o nega�vo do anterior, mas, por momento do entendimento, o objeto
sua vez, embora em nível mais elevado, aparece como um “fenômeno”, produ-
também se mostra determinado e, por- zido por forças e leis. Aqui, o sensível se
tanto, inadequado, obrigando a passar resolve na força e na lei, que são preci-
além e assim por diante, segundo o samente obras do intelecto; dessa
ritmo da dialé�ca. Hegel diz que a mola forma, a consciência consegue compre-
dessa dialé�ca fenomenológica está na ender que o objeto depende de alguma
desigualdade ou no desnível entre a outra coisa, ou seja, do intelecto, e, por-
consciência ou o “eu” e seu objeto (que tanto (de certo modo), de si mesma (o
é o “nega�vo”), e na superação progres- objeto se resolve no sujeito). Desse
siva dessa desigualdade. O momento modo, a consciência torna-se autocons-
culminante desse processo coincide ciência (saber de si).
com o momento no qual o espírito tor-
na-se objeto para si mesmo. A segunda etapa: a autoconsciência
(dialé�ca do senhor-escravo, estoicis-
Vejamos brevemente essas etapas da mo-ce�cismo e consciência infeliz). A
Fenomenologia. A primeira etapa: a segunda etapa do i�nerário fenomeno-
consciência (certeza sensível, percep- lógico é cons�tuída pela autoconsciên-
ção e intelecto). A etapa inicial é cons�- cia, que, através dos diversos momen-
tuída pela “consciência”, entendida tos, aprende a saber o que ela é pro-
acepção mais estrita, aquela que olha e priamente. Inicialmente, a autoconsci-
conhece o mundo como algo diferente ência se manifesta como caracterizada
e independente de si. Ela se desdobra pelo ape�te e pelo desejo, ou seja,
em três momentos sucessivos: a) da como tendência a se apropriar das
certeza sensível, b) da percepção, c) do coisas e fazer tudo depender de si, a
entendimento. Cada um destes leva “tolher a alteridade que se apresenta

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

como vida independente”. Primeiro a efeito, o senhor acaba por se tornar


autoconsciência exclui abstratamente “dependente das coisas”, ao invés de
de si toda alteridade, considerando o independente, como era, porque desa-
“outro” como não-essencial e nega�vo. prende de fazer tudo o que o servo faz,
Mas logo deve sair dessa posição ao passo que o servo acaba por se
porque se defronta com outras auto- tornar independente das coisas, fazen-
consciências e, consequentemente, do-as. Além disso, o senhor não pode se
nasce de modo necessário “a luta pela realizar plenamente como autoconsci-
vida ou pela morte”, por meio da qual e ência, porque o escravo, reduzido a
somente por meio da qual a autoconsci- coisa, não pode representar o polo
ência se realiza. Com efeito, segundo dialé�co com o qual o senhor possa se
Hegel, toda autoconsciência tem neces- confrontar adequadamente (já se
sidade estrutural da outra e a luta não notou com razão que ser somente
deve ter como resultado a morte de senhor é muito menos do que ser
uma das duas, mas a submissão de uma pessoa autoconsciente); ao contrário, o
a outra. escravo tem no senhor um polo dialé�-
co tal que lhe permite reconhecer nele
a) Nasce assim a dis�nção entre a consciência, porque a consciência do
“senhor” e “servo”, com a consequente senhor é a que comanda, enquanto o
“dialé�ca”, que Hegel descreve em pági- servo faz o que o senhor ordena. Dessa
nas que se tornaram famosas, para as forma, Hegel iden�fica perfeitamente o
quais principalmente os marxistas cha- poder dialé�co que deriva do trabalho.
maram a atenção e que estão efe�va- Diz ele: “Precisamente no trabalho,
mente entre as mais profundas e belas onde parecia ser ela um significado
da Fenomenologia. O “senhor” arriscou estranho”, a consciência servil encon-
seu ser �sico na luta e, na vitória, tor- tra-se a si mesma e encaminha-se para
nou-se consequentemente senhor. O encontrar seu significado próprio. Mas
“servo” teve medo da morte e, na der- a autoconsciência só alcança a plena
rota, para salvar a vida �sica, aceitou a consciência através das etapas sucessi-
condição de escravidão e tornou-se vas: b) do estoicismo, c) do ce�cismo, d)
como que uma “coisa” dependente do da consciência infeliz.
senhor. O senhor usa o servo e o faz tra-
balhar para si, limitando-se a “desfru- b) O “estoicismo” representa a liberda-
tar” das coisas que o servo faz para ele. de da consciência que, reconhecendo-
Mas, nesse �po de relação, desenvolve- -se como pensamento, instala-se acima
-se um movimento dialé�co que acaba da senhoria e da escravidão, que, como
por levar a inversão dos papéis. Com sabemos, cons�tuem para os estoicos

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

meros “indiferentes”. Mas, querendo objeto naquilo que é apenas um além


libertar o homem de todos os impulsos ina�ngível: ela está instalada neste
e de todas as paixões, o estoicismo o mundo, mas está toda voltada para o
isola da vida e, consequentemente, outro (ina�ngível) mundo. Para a cons-
segundo Hegel, sua liberdade permane- ciência infeliz, toda aproximação à
ce abstrata, retrai-se para dentro de si e divindade transcendente significa uma
não supera a alteridade. própria mor�ficação e um sen�r a pró-
pria nulidade. A superação do nega�vo
c) O estoicismo translada-se diale�ca- próprio dessa cisão (isto é, segundo
mente para o “ce�cismo”, que transfor- Hegel, o reconhecimento de que a
ma o afastamento do mundo em a�tu- transcendência na qual a consciência
de de negação do mundo. Mas, negan- infeliz via a única e verdadeira realidade
do tudo o que a consciência �nha como não está fora, mas sim dentro dela) leva
certo, o ce�cismo, por assim dizer, esva- a uma síntese superior, que se realiza
zia a autoconsciência, levando-a a auto- no plano da “razão”.
contradição e cisão de si consigo
mesma. Com efeito, a autoconsciência A terceira etapa: a razão. A razão nasce
cé�ca nega as próprias coisas que é no momento em que a consciência
obrigada a fazer e vice-versa: nega a adquire “a certeza de ser toda realida-
validade da percepção e percebe; nega de”. Essa a posição própria do idealis-
a validade do pensamento e pensa; mo. As etapas fenomenológicas da
nega os valores do agir moral e, no razão (ou do espírito que se manifesta
entanto, age segundo tais valores. como razão) são as etapas dialé�cas
progressivas da aquisição dessa certeza
d) A caracterís�ca da cisão, implícita na de ser toda coisa, ou seja, da aquisição
autocontradição do ce�cismo, torna-se da unidade de pensar e de ser. Essas
explícita na “consciência infeliz”, que é a etapas repetem, em nível mais elevado,
consciência de si como “duplicada” ou como espiral que se eleva, em movi-
“desdobrada” e “no aspecto imutável e mento que retorna sempre sobre si,
no aspecto mutável; o primeiro é consi- segundo círculos cada vez mais amplos,
derado como coincidente com um Deus os três momentos examinados anterior-
transcendente, e o segundo com o mente. O nível mais elevado consiste
homem”. A consciência infeliz, segundo justamente no fato de que agora, como
Hegel, é o traço que caracteriza princi- razão, a consciência sabe ser unidade
palmente o cris�anismo medieval. Essa de pensamento e de ser e, nesse nível,
consciência tem apenas consciência as novas etapas consistem precisamen-
fragmentada de si, porque procura seu te em verificar essa certeza. E assim

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

temos as três etapas: A) da “razão que res, a razão é dada pela autoconsciência
observa a natureza”; B) da “razão que que supera sua posição em relação aos
age” e C) da “razão que adquire a cons- outros e ao curso do mundo, encon-
ciência de ser espírito”. trando neles seu próprio conteúdo. Esta
fase também se realiza em três momen-
A) A “razão-que-observa-a-natureza” é tos sucessivos: a) o representado pelo
cons�tuída pela ciência da natureza, homem inteiramente voltado para as
que se move desde o princípio no plano obras que realiza; b) o da razão legisla-
da consciência de que o mundo é pene- dora; c) o da razão que examina ou cri�-
trável pela razão, ou seja, é racional. ca leis. Como momento conclusivo,
Portanto, para poder-encontrar-a-si- nessa fase, a autoconsciência descobre
-mesma-no-seu-outro, a razão deve que a substância é�ca nada mais é
superar o momento “de observação” e senão aquilo em que ela já está imersa:
passar para o momento “a�vo” ou “prá- é o ethos da sociedade e do povo em
�co”, ou seja, para a esfera moral. que vive.
B) A “razão-que-age” repete em nível
mais elevado (isto é, no nível da certeza A quarta etapa: o espírito. A razão que
de ser toda coisa) o momento da auto- se realiza em um povo livre e em suas
consciência. O i�nerário da razão a�va ins�tuições é a consciência que se
consiste em começar a realizar-se, reúne in�mamente a sua própria subs-
inicialmente, como indivíduo para, por tância é�ca, e isso é doravante o espíri-
fim, elevar-se ao universal, superando to. O espírito é o indivíduo que cons�tui
os limites da individualidade e alcan- um mundo tal como ele se realiza na
çando a união espiritual superior dos vida de um povo livre. O espírito, por-
indivíduos. As etapas desse processo tanto, é a unidade da autoconsciência
são indicadas por Hegel nas “figuras”: a) “na perfeita liberdade e independên-
do homem que busca a felicidade no cia” e, ao mesmo tempo, em sua oposi-
prazer e no gozo; b) do homem que ção “mediata”. O espírito é “eu que é
segue a lei do coração individual (como nós, nós que é eu”. Quem não �ver con-
no sistema de Rousseau); c) da virtude e �nuamente presente essa dimensão
do homem virtuoso. Mas de modo intersubje�va e social do espirito não
ainda abstrato (como ocorre, por exem- poderá compreender sequer uma pala-
plo, nos personagens que gostariam de vra do que diz Hegel. Consequentemen-
reformar o mundo, mas que por sua te, é claro que, durante todo o curso do
qualidade abstrata entram em falência, resto do i�nerário fenomenológico, as
como Dom Quixote e Robespierre). “figuras” tornam-se “figuras de um
C) Síntese dos dois momentos anterio- mundo”, etapas da história, que nos

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

mostram o espírito “alienado no dade de si consigo, operando a síntese


tempo”, mas que, através dessa aliena- suprema dos opostos.
ção, se realiza, se reencontra e, por fim,
se autoconhece. As etapas fenomeno- A etapa conclusiva: o saber absoluto. A
lógicas do “espírito” são: A) o espírito superação da forma de conhecimento
em si como e�cidade (como se exprime “representa�vo” próprio da religião
de modo paradigmá�co no mundo gre- leva, por fim, ao puro conceito e ao
co-romano); B) o espírito que se alheia saber absoluto, ou seja, ao sistema da
de si (que se cinde nas contradições, ciência, que Hegel exporia na “Lógica”,
como acontece, por exemplo, no Ilumi- na “Filosofia da natureza” e na “Filoso-
nismo e na Revolução Francesa que ter- fia do espírito”, como veremos.
mina no terror); C) o espírito que read-
quire certeza de si. Passamos agora a Ciência da Lógica, de
Hegel. Nesta parte, iremos analisar a
A quinta etapa: a religião. A Fenomeno- ideia (primeira parte do seu sistema). A
logia apresenta ainda uma etapa, ou Lógica começa e se desenvolve inteira-
seja, a religião, através da qual chega-se mente no plano defini�vamente ganho
ao saber absoluto. Na religião e em suas da Fenomenologia, isto é, no plano do
diferentes manifestações o espírito saber absoluto, em que desapareceu
toma consciência de si mesmo, “mas toda diferença entre “certeza” (subje�-
somente do ponto de vista da consciên- vidade) e “verdade” (obje�vidade). Ela
cia, que tem consciência da essência não é, portanto, um puro “organon”, no
absoluta” e não ainda como autoconsci- sen�do em que o era a Lógica formal,
ência absoluta do próprio absoluto, que mas é o estudo da estrutura do Todo, no
será o ponto de vista do saber absoluto. sen�do que a própria Lógica é o auto-
Pode-se também dizer que a religião é a -estruturar-se do Todo. A tese de fundo
autoconsciência do absoluto, mas ainda da Lógica hegeliana, que retoma em
não perfeita, ou seja, na forma da sen�do especula�vo a posição de Par-
representação e não do conceito. A mênides, é que “pensar” e “ser” coinci-
forma mais elevada de religião para dem. O pensamento, em seu processo,
Hegel é o cris�anismo e nos dogmas realiza a si mesmo e o próprio conteú-
fundamentais do cris�anismo ele vê os do, e esta realização dialé�ca é ao
conceitos cardeais de sua filosofia: a mesmo tempo, de modo sempre mais
encarnação, o reino do espírito e a trin- elevado, um “pensar o ser” e o “ser do
dade expressam o conceito de espírito pensamento”. A lógica coincide, portan-
que se aliena para se auto possuir e to, com a ontologia (ou seja, com a me-
que, no seu ser-outro, mantém a igual- ta�sica).

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Em seu complexo, portanto, a Lógica é o termos em seu “refle�r-se” recíproco


reino do pensamento puro, da verdade dirigido às raízes do ser. Aqui se dão as
como ela é em si e por si sem véu, é a discussões sobre princípios de iden�da-
exposição de Deus como Ele é em sua de e de não-contradição, que por Hegel
eterna essência antes da criação do são considerados como pontos de vista
mundo e de todo espírito finito. O Deus do intelecto abstrato e unilateral. A ver-
exposto pela Lógica é, portanto, o ele- dadeira iden�dade, com efeito, inclui as
mento puro do pensamento (o logos) diferenças, e a contradição é a raiz de
que, para se tornar espírito, deve pri- todo movimento e vitalidade.
meiro alienar-se na natureza e depois 3) Na lógica do conceito o pensamento
superar essa alienação. O logos da se atua na dimensão da circularidade.
Lógica deve também ser concebido Cada termo prossegue no outro até
como desenvolvimento e processo iden�ficar-se diale�camente com ele, e
dialé�co, e as diversas categorias por tudo é um autodesdobramento do
meio das quais pouco a pouco se desen- sujeito, o qual é toda a realidade. O con-
volve podem ser consideradas como ceito, em sen�do próprio, é o Eu penso
definições sucessivas, sempre mais que se autocria e, autocriando-se, cria
determinadas e mais ricas, do absoluto. todas as determinações lógicas.
A “ideia lógica” e a totalidade de suas Mudam, por conseguinte, os significa-
determinações conceituais em seu des- dos de “juízo” e de “silogismo”, estreita-
dobramento dialé�co. Ora, as três mente ligados ao “conceito”. O juízo
etapas fundamentais da Lógica são: coincide com a proposição especula�va
1) Na lógica do ser a dialé�ca procede que exprime a iden�dade dinâmica de
em sen�do horizontal, mediante passa- sujeito e predicado, e indica o tornar-
gens que levam de um termo a outro -se-universal do singular; o silogismo
que absorve em si o precedente; seu representa depois a unidade dialé�ca
início (que é o início absoluto da Lógica) dos três momentos da universalidade,
é cons�tuído pela tríade da primeira par�cularidade e singularidade, tríade
categoria (a qualidade): a) ser; b) nada; que cons�tui a estrutura fundamental
c) devir. Em certo sen�do, nesse início de toda coisa e de toda a realidade. A
já está presente todo o sistema especu- ideia lógica resulta, finalmente, como o
la�vo hegeliano, justamente porque conceito que se auto-realiza plenamen-
todas as tríades sucessivas apenas te e também a totalidade dos momen-
exprimem o absoluto de modo pouco a tos desta realização.
pouco sempre mais rico e ar�culado.
2) Na lógica da essência temos o desen- Passamos agora à filosofia da natureza
volvimento em profundidade dos vários (segundo momento do seu sistema), de

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Hegel. A passagem da ideia para a natu- tríade ideia-natureza-espírito, diremos


reza é o ponto teórico mais problemá�- que a ideia é o mero conceito de saber
co da filosofia de Hegel, sujeito a diver- e, portanto, a “possibilidade lógica” do
sas interpretações que surgem das pró- espírito; o espírito é a atualização ou a
prias afirmações ambíguas do filósofo a realização dessa possibilidade. O espíri-
esse respeito. Isso depende principal- to é a atualização e autoconhecimento
mente do fato de que Hegel tem dificul- vivos da ideia. Nesse sen�do, o espírito
dade de dominar as diversas sugestões não é úl�mo senão pelo nosso modo de
que confluem sobre esse ponto: a) a nos exprimirmos, mas efe�vamente é o
processão dialé�ca do neoplatonismo, primeiro, e, nessa ó�ca, ideia lógica e
que concebia o desenvolvimento da natureza devem ser vistas como mo-
realidade em sen�do triádico como ma- mentos ideais do espírito não separa-
nência, saída e retorno. Para ele, a natu- dos e não cindidos, mas como polos
reza corresponde à “saída”; b) o dogma dialé�cos dos quais o espírito é a sínte-
da teologia cristã da criação; c) os se viva. Também a filosofia do espírito
dogmas da encarnação, paixão, morte e (como toda parte e momento do siste-
ressureição de Cristo; d) a concepção ma hegeliano) é estruturada de manei-
�picamente român�ca do tornar-se-es- ra triádica, sendo, portanto, dividida em
tranho do espírito a si mesmo com o três momentos: 1) um primeiro, em que
obje�vo de tomar consciência de si e se o espírito está no caminho de sua pró-
realizar completamente. pria auto-realização e autoconhecimen-
to (espírito subje�vo); 2) um segundo,
Por fim, analisaremos a filosofia do em que o espírito se autoconcre�za ple-
espírito (terceiro momento do seu namente como liberdade (espírito obje-
sistema). O espírito é a “ideia que volta �vo); 3) um terceiro, em que o espírito
a si de sua alteridade”. No espírito, se autoconhece plenamente e se sabe
sobretudo, torna-se manifesta aquela como princípio e como verdade de
“circularidade” dialé�ca sobre a qual tudo, e é como Deus em sua plenitude
Hegel chama seguidamente a atenção. de vida e de conhecimento (espírito
Como momento diale�camente conclu- absoluto).
sivo, ou seja, como resultado do proces- 1) O espírito subje�vo. A ideia que
so (do autoprocesso), o espírito é a retorna a si, portanto, é a emersão do
mais elevada manifestação do absoluto. espírito, que inicialmente ainda se ma-
O “espírito” hegeliano é, portanto, o nifesta ligado a finitude. Hegel explica,
correla�vo filosófico daquilo que na do modo que agora já conhecemos
religião é “Deus”. É o auto-realizar-se e bem, como a ideia infinita, que se faz
o autoconhecer-se de Deus. Voltando à espírito, ainda se encontra ligada ao

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

finito no seu emergir da natureza. Não é momento da realização da liberdade na


o espírito que se manifesta no finito, ordem intersubje�va, que pouco a
mas, ao contrário, é a finitude que apa- pouco se amplia em graus e em mo-
rece dentro do espírito. E por que isso mentos dialé�cos sucessivos, que Hegel
acontece? Trata-se, diz Hegel, de uma indica: a) no direito abstrato; b) na mo-
“aparência que o espírito põe diante de ralidade e c) na e�cidade. A compreen-
si como barreira, para poder, através da são destes momentos nos fará compre-
superação dessa barreira, possuir e ender melhor o sen�do do espírito ob-
saber por si a liberdade como sua je�vo hegeliano.
essência”. As etapas do espírito subje�-
vo são: 1) a antropologia, que é o Crí�ca ao contratualismo. Para definir o
estudo da alma, considerada em sua direito, Hegel parte do ethos de um
fase inicial como o sono do espírito ou povo com a sua religião, a sua arte, as
como o aristotélico “intelecto poten- suas leis e os seus costumes. O direito,
cial”; 2) a fenomenologia, que retoma assim, não é formal, mas é tomado de
algumas temá�cas da grande obra ho- forma histórica e concreta. A ideia jus-
mônima e que, por meio da autoconsci- naturalista contratualista acerca do
ência, leva da consciência à razão (a direito é infundada. Não é possível
qual, como consciência de ser todas as pensar um conjunto de normas para um
coisas, é espírito, ainda que não desdo- aglomerado de indivíduos, ou seja, o
brado inteiramente); 3) a psicologia, direito como algo externo aos indivídu-
que estuda o espírito teórico (que os e esses devendo a ele uma obediên-
conhece os objetos como alteridades), cia cega. Hegel cri�ca a postulação de
o espírito prá�co (como a�vidade que uma origem pactuada e juridicamente
modifica os objetos) e o espírito livre, regrada de uma vida cole�va ocorrida a
como síntese dos primeiros dois mo- par�r da soma de vontades par�cula-
mentos. res. Os sujeitos individuais formam a
2) O espírito obje�vo. O espírito obje�- sua iden�dade somente quando são
vo é o momento mais significa�vo e reconhecidos por outro sujeito (inter-
mais específico do hegelianismo, ou, subje�vamente). O indivíduo somente
pelo menos um dos mais caracterís�cos é autônomo, podendo relacionar-se po-
e interessantes. O espírito obje�vo é o si�vamente consigo mesmo, se ele for
que se realiza nas ins�tuições da famí- valorizado pelos demais indivíduos de
lia, nos costumes e preceitos da socie- sua comunidade. Se não há esse reco-
dade e nas leis do Estado, é o ethos que nhecimento, o indivíduo não reconheci-
alimenta a vida é�co-polí�ca, é a histó- do parte para a luta a fim de criar as
ria-que-se-faz. O espírito obje�vo é o condições para tal. Quando a falta de

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

reconhecimento não é de um indivíduo dade. Na posse, o que está em jogo é a


isolado, mas de um grupo social, a luta coisa; na propriedade, o que está em
ganha contornos polí�cos e sociais. jogo é a coisa em relação com as duas
Para formular o seu pensamento, Hegel vontades; no contrato, a coisa não está
parte da premissa de que os indivíduos mais em jogo, pois o que importa são
não são dados, mas se formam por um apenas as duas vontades. Porém, neste
processo de socialização (teoria natura- ponto surge um problema: não há nada
lista). Portanto, o indivíduo desde que impõe limites sobre as vontades e
sempre está inserido em um convívio uma delas pode exercer a sua vontade
intersubje�vo. Hegel defende um direi- sobre a outra. Se isso ocorrer, tem-se a
to de natureza é�ca, que não deve pro- injus�ça e a necessidade da moralida-
ceder do indivíduo isolado, mas da vida de. Se é possível o injusto, ou seja, se
comunitária. vontades arbitrárias são possíveis, isso
mostra a insuficiência do direito abstra-
Direito Abstrato (pessoa de direito). O to. O direito penal resulta da quebra do
direito abstrato divide-se em direito de contrato entre os proprietários. Há três
propriedade, direito contratual e direito formas de delito: o dano, a fraude e o
penal. O direito de propriedade trata da crime. O dano é uma injus�ça não mal-
primeira forma pela qual a pessoa se dosa, não intencional. Ele não a�nge o
dirige ao mundo, a saber, através da conceito de direito, pois a disputa
posse. O direito de posse se reporta ao ocorre entre diferentes vontades em
direito de troca. O direito de troca só se relação à propriedade (objeto) e não
confirma com o direito de contrato, pois em relação ao direito. Por isso, não há
ele é o reconhecimento formal da punição para esse �po de injus�ça. Se o
posse. Somente há a possibilidade da caso é em torno da disputa de bens,
troca quando a posse se torna proprie- ocorre a res�tuição da posse e não a
dade e isso ocorre quando a posse é punição, pois o autor não desrespeita a
reconhecida por outras vontades. Hegel lei, mas equivoca-se no caso par�cular.
trata o direito de propriedade como Na fraude, o delinquente não respeita o
expressão da vontade livre reconheci- direito, mas mantém a aparência do
da. No direito contratual, Hegel ressalta direito; a punição seria apropriada, mas
que a garan�a da propriedade e a sua ela só passa a ser introduzida no crime.
possível transferência para outrem só é O crime é o querer ser injusto; tanto o
possível se exis�r um contrato. A posse, direito quanto a aparência do direito
a propriedade e o contrato, nessa não são respeitados; a punição, nesse
ordem, representam o aumento da caso, é apropriada.
intensidade na concre�zação da liber-

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Moralidade (sujeito). Na moralidade, sim responsável pela consequência não


Hegel afirma que a teoria kan�ana não prevista de seu ato. Todavia, na morali-
passa de um formalismo vazio e o impe- dade, não existem ins�tuições capazes
ra�vo categórico é uma pura indetermi- de mediar a responsabilidade. Isso só é
nação (crí�ca ao formalismo kan�ano). possível na e�cidade. Na moralidade,
Não adianta criar procedimentos for- os efeitos de uma ação permanecem no
mais para guiar a ação do homem, mas âmbito da responsabilidade subje�va,
devem-se apontar quais são os princí- não havendo responsabilização obje�va
pios conteudís�cos para, a par�r deles, dos atos pra�cados. A e�cidade resolve
extrair e estabelecer os deveres par�cu- essa insuficiência. Agir é essencialmen-
lares. Sem isso, ações injustas e imorais te aceitar riscos em face de uma reali-
poderiam ser jus�ficadas. Hegel ressal- dade externa que não se encontra total-
ta que Kant não foi além da moralidade mente sob o nosso próprio domínio ou
subje�va e apresenta, através da e�ci- conhecimento prévio. Ao tratar das
dade, o desdobramento obje�vo da consequências não previstas, é neces-
vontade livre, ou seja, a concre�zação sário dis�nguir as consequências neces-
da vontade livre dentro das ins�tuições sárias (comum de ocorrer) das consequ-
sociais. A moralidade representa a ências con�ngentes (incomum de ocor-
intenção dos agentes e não a vontade rer). O exemplo citado por Hegel do
exterior e suas consequências. Somente incendiário que colocou fogo na casa do
se responsabiliza o agente pelo saber e vizinho e queimou um quarteirão intei-
pelo querer (direito do propósito). A ro é um exemplo de consequência
moralidade trata apenas da responsabi- necessária e não con�ngente. Portanto,
lidade subje�va. Mas, o agente pode o agente deve sim ser responsabilizado
ser responsabilizado pelas consequên- pelo ato come�do. Quem quer a parte
cias não previstas de sua ação? O pro- quer o todo. As consequências necessá-
blema das consequências somente será rias entram na responsabilização, pois
resolvido no nível da e�cidade. Um ato são próprias da ação. Portanto, o sujei-
só pode ser imputado na medida em to deveria saber. Um caso específico na
que ele se enquadra no direito do saber. moralidade é o direito de emergência
Portanto, Édipo não pode ser acusado (estado de necessidade). Esse é o direi-
de parricida por haver matado o seu pai to à vida e é considerado um direito
sem sabê-lo; pode-se sim ser acusado fundamental. Pode-se usar de todos os
de assassino. Porém, através do direito meios possíveis para assegurar esse
da intenção, que não representa a indi- direito, abrindo exceções se for neces-
vidualidade (propósito), mas visa à uni- sário. As situações de emergência são
versalidade, destaca-se que o sujeito é exceções e não invalidam a lei, mas indi-

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

cam que ela não é absoluta. Que não se carências, que tomam novas formas e
deve roubar, con�nua valendo, porém, se desenvolvem à medida que a econo-
há situações em que isso pode ser rela- mia progride; 2) A administração da jus-
�vizado. Portanto, a vida tem um direi- �ça (jurisdição): o direito abstrato é for-
to de emergência. mulado em leis definidas, promulgadas
e conhecidas. Esse aspecto público é
E�cidade (cidadão). A e�cidade corres- um traço essencial do direito, estrutura-
ponde à vinculação do direito abstrato do para proteger os indivíduos de danos
e da moralidade nas ins�tuições sociais e injúrias. Na sociedade civil, “um ser
(família, sociedade civil e Estado). A humano é considerado como tal porque
família é a base é�ca do Estado. A par�r ele é um ser humano, e não porque é
dela, o indivíduo passa a ser tratado judeu, católico, protestante, alemão,
como membro e não mais como pessoa italiano”; 3) A polícia e a corporação: no
(direito abstrato) e sujeito (moralida- tempo de Hegel, a polícia compreendia
de). Só há casamento se houver o con- não apenas a execução da lei, mas
sen�mento de ambos. O mero formalis- também a fixação de preços das neces-
mo não é suficiente para o casamento, sidades, o controle da qualidade dos
pois o mesmo é uma relação é�ca. Isso bens, a organização de hospitais, a
implica o abandono dos sen�mentos iluminação das ruas e muitas outras
imediatos. No casamento, caracteriza- coisas. A corporação de Hegel não é um
do como uma relação é�ca e não uma sindicato, uma vez que inclui tanto em-
relação natural, a escolha de se casar e pregados quanto empregadores.
com quem casar envolve uma ação Também compreendem corpos religio-
é�ca da liberdade. A família é a vida sos, sociedades eruditas, câmaras mu-
é�ca em sua fase natural ou imediata. nicipais. O papel das corporações é mo-
No devido tempo, sua unidade substan- derar o individualismo compe��vo do
cial cede lugar à sociedade civil. Siste- sistema de necessidades (a economia) e
mas de direito, como a propriedade, preparar os citadinos para suas vidas
não requerem a sociedade civil; antes, é como cidadãos do Estado. O Estado em
através e nas ins�tuições da sociedade Hegel é dividido em Direito Polí�co
civil, tais como o livre mercado, que a Interno (Cons�tuição e Opinião Públi-
consciência da liberdade da vontade na ca), Direito Internacional (Guerra) e His-
propriedade é possível. A sociedade tória Universal. 1) Cons�tuição. A Cons-
civil compreende três partes: 1) O siste- �tuição é a própria organização do
ma de necessidades: é a economia na Estado. A base é�ca que sustenta a
qual os indivíduos trocam bens e servi- Cons�tuição é o “espírito do povo” e
ços para sa�sfazer suas necessidades e “este é cons�tuído por toda a história

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

de um povo, suas origens, seus costu- ta a guerra por conquista e glória. 4)


mes e hábitos, sua cultura, seu ethos. A História Universal. A história entendida
Cons�tuição de um Estado, portanto, é como a realização da liberdade remete
o próprio “espírito do povo”. A Cons�- a impossibilidade da eliminação total
tuição polí�ca de Hegel não é formal, das contradições. Hegel, ao analisar a
nem norma�va e nem valora�va. 2) história, condena tanto a historiografia,
Opinião Pública. A opinião pública tem que se atem apenas aos fenômenos,
duas funções importantes. Uma delas é quanto o pensamento abstrato, que
trazer à atenção do governo queixas e visa construir a história universal aprio-
desejos do eleitorado, provendo assim ris�camente. É através da filosofia que
o governo de uma compreensão mais a racionalidade histórica é decifrada. A
plena do que as pessoas têm em mente filosofia da história busca captar, filoso-
e de suas necessidades e dificuldades ficamente, o sen�do da história. 3) O
mais urgentes. A outra função da opi- espírito absoluto. É o “retorno a si
nião pública é trazer os problemas e mesma” da ideia. Depois de se realizar-
ideias do governo para o cole�vo dos -se na história como liberdade, a ideia
cidadãos, de maneira que eles adqui- conclui seu “retorno a si” no autoco-
ram um senso polí�co e um conheci- nhecer-se absoluto. O espírito absoluto,
mento daquilo sobre o que se baseiam portanto, é a ideia que se autoconhece
as decisões e polí�cas do governo esse de maneira absoluta. E esse autoconhe-
intercâmbio ocorre nos debates da cimento é o autoconhecimento de
assembleia dos Estados. O fortaleci- Deus, no qual, porém, o homem
mento das ins�tuições de mediação é o desempenha papel essencial. Ao
núcleo-chave para o limite do poder po- mesmo tempo, Hegel abaixou Deus ao
lí�co. A liberdade de expressão implica homem e elevou o homem a Deus. As
o direito do cidadão em “dizer não” e de formas de auto saber-se do espírito:
poder fazê-lo publicamente. A própria arte, religião e filosofia. Esse auto-sa-
desobediência civil deveria ser situada ber-se do espírito não é uma intuição
nesse contexto. 3) Guerra. Desde Mon- mís�ca, e sim um processo dialé�co;
tesquieu e Kant (Paz Perpétua), os auto- por isso, é processo triádico, que se rea-
res liberais defenderam que a democra- liza: 1) na arte; 2) na religião; 3) na filo-
cia cons�tucional associada ao comér- sofia. Essas são, portanto, três formas
cio e ao intercâmbio conduziria à paz por meio das quais conhecemos Deus e
entre as nações. Hegel rejeita essa Deus se conhece. Elas se realizam, res-
ideia. Hegel defende a guerra entre os pec�vamente: 1) através da intuição
Estados. Ele defende que se deve ir à sensível (esté�ca); 2) através da repre-
guerra somente pela autodefesa; rejei- sentação da fé; 3) através do conceito

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

puro. Eis como Hegel caracteriza, de oriental; b) arte clássica; c) arte român-
modo claro e preciso, estes três mo- �ca; 2) Também na religião dis�nguem-
mentos dialé�cos da filosofia do espíri- -se três momentos: a) religião oriental;
to. 1) “A forma da intuição pertence à b) religião grega; c) religião cristã; 3) A
arte, de modo que a arte é que apresen- própria filosofia (que vem a coincidir
ta a consciência à verdade sob forma com a história da filosofia) também é
sensível, que tem nessa sua aparência vista desdobrando-se nos três momen-
um sen�do e um significado mais eleva- tos: a) da an�guidade grega; b) da cris-
dos, mais profundos”; 2) O âmbito tandade medieval; c) da modernidade
seguinte, que ultrapassa o reino da germânica. Em todos esses desdobra-
arte, é o da religião. A religião tem mentos histórico-dialé�cos, sobretudo
como forma de sua consciência a repre- duas coisas chamam a atenção: em pri-
sentação, enquanto o absoluto é trans- meiro lugar, a evolução pareceria cessar
ferido da obje�vidade da arte para a com a terceira fase, na qual tudo pare-
interioridade do sujeito; 3) A terceira ceria chegar a seu termo; em segundo
forma do espírito absoluto é, enfim, a lugar, a história da filosofia, de Tales a
filosofia. Com efeito, a religião na qual Hegel, apresenta-se como grandioso
Deus é inicialmente objeto externo para teorema, que se desdobra no tempo e
a consciência se revela depois no ele- no qual cada sistema cons�tui uma
mento interior, impelindo e preenchen- “passagem” necessária. E esse teorema
do a comunidade. Hegel, portanto, con- parece encontrar sua própria conclusão
clui: “Desse modo, unificam-se na filo- precisamente na filosofia de Hegel. Na
sofia os dois lados da arte e da religião: filosofia de Hegel – em certo sen�do – é
a obje�vidade da arte, que aqui certa- o próprio Deus que se autoconhece, e,
mente perdeu a sensibilidade externa, conhecendo-se, atua todas as coisas.
mas encontrou compreensão na forma Em suma, sob muitos aspectos a filoso-
suprema do obje�vo, na forma do pen- fia pareceria ter alcançado seu ápice no
samento, e a subje�vidade da religião, sistema de Hegel.
que é purificada como subje�vidade do
pensamento”. É justamente este o
esquema que Hegel seguiu ao traçar a
síntese das três manifestações grandio-
sas do espírito, arte-religião-filosofia.

Por fim, devemos recordar que: 1) A


arte também é entendida e reconstruí-
da segundo etapas dialé�cas: a) arte

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Kant, Romantismo, Idealismo e Hegel

Indicações de Leituras

1. Livros de Kant: Crítica da Razão Pura; Crítica da Razão Prática; Crítica da


faculdade de julgar; A metafísica dos costumes; A paz perpétua e outros
opúsculos; A religião nos limites da simples razão; Fundamentação da Meta-
física dos Costumes; Ideia de uma história universal de um ponto de vista
cosmopolita
2. Raízes do Romantismo, de Isaiah Berlin
3. Livros de Fichte: A Doutrina Da Ciência; Lições Sobre a Vocação do Sábio
Seguido de Reinvindicação da Liberdade de Pensamento; Sobre o Espírito e a
Letra da Filosofia
4. Livros de Schelling: Filosofia da Arte; Investigações Filosóficas; Nova Dedu-
ção do Direito Natural e Aforismos para introdução à filosofia da natureza e
aforismos sobre filosofia da natureza
5. Livros de Hegel: Ciência da lógica; Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
Compêndio; Fenomenologia do Espírito; Filosofia da História; Filosofia Real;
Princípios da filosofia do direito; Sobre as maneiras científicas de tratar o
direito natural; Curso de Estética; Introdução à História da Filosofia; Prope-
dêutica Filosófica; O Sistema da Vida ética; Fé e saber.

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