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Departamento de Filosofia

POLÍTICA NÃO-HUMANA NO PENSAMENTO DE BRUNO LATOUR

Aluno: Tobias Marconde


Orientadora: Déborah Danowski

1. Introdução
A princípio, a ideia de inserir não-humanos na arena política pode parecer absurda.
Como fazer isso? Nomeando um cavalo para o senado, como nas histórias do Imperador
romano Calígula? Talvez discutindo sobre a possibilidade de uma árvore se candidatar, ou
sobre os direitos civis dos micróbios? Não estaríamos cometendo com isso um perigoso
antropomorfismo, traficando elementos estranhos pela fronteira entre Natureza e Cultura?
Estaríamos inserindo intenção e racionalidade onde elas não existem, sendo que, para
chamarmos qualquer coisa de "política" seria imprescindível a presença de ambas? Apenas
povos não-modernos sequer pensariam em uma política não-humana, como os xamãs
ameríndios que possuem a habilidade de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e
adotar a perspectiva de outros seres, de modo a administrar as relações entre estas e os
humanos."1
Mas o que acontece com esse pressuposto se aceitarmos aquilo que nos diz Bruno
Latour já no título de seu clássico livro de 1991 - Jamais fomos modernos? Se de fato jamais
fomos modernos, então jamais distinguimos muito bem Natureza e Cultura, jamais fomos
realmente não-animistas, jamais respeitamos a fronteira ontológico-política entre ser e dever-
ser; e portanto, os não-humanos sempre terão sido seres políticos. Se não somos isso, o que
somos então? Como se articulam ciência e política na nossa sociedade não-moderna, segundo
Bruno Latour?

2. Objetivos
Nesta pesquisa, procuramos explorar exatamente em que medida, como e por que
agentes não-humanos seriam políticos e descrever o plano latouriano para acomodá-los
conceitualmente. Isto envolve uma especificação da noção de política e de seu trabalho de
1 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem, 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify,
2011, p. 358.
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representação que possibilitará a proposta de um Parlamento das Coisas. Em relação a esta


questão norteadora, demonstramos como, para Latour, a catástrofe climática em curso levaria
à irrupção dos não-humanos na esfera pública reunidos sob o nome de Gaia, uma figura que
substituiria a ideia de Natureza no tempo do Antropoceno.

3. Desenvolvimento
3.1 O diagnóstico de Latour: a Constituição Moderna
Em linhas gerais, os Modernos são aqueles que vivem sob o estado de
incomensurabilidade ontológica entre os polos Cultura e Natureza, divisão que é chamada por
Latour de Constituição Moderna.2
"A primeira [câmara] abarca a totalidade de humanos falantes, os
quais se encontram apenas com o poder de ignorar em comum, ou de
crer por consenso nas ficções esvaziadas de toda a realidade exterior.
A segunda se compõe exclusivamente de objetos reais, que têm a
propriedade de definir o que existe, mas sem o dom da palavra. De
um lado, o vozerio de ficções, de outro, o silêncio da realidade."3

O único que caminha entre os dois mundos, segundo esta Constituição, é o Cientista 4
que teria o poder de acessar os objetos puros da Natureza e regressar à câmara da Cultura,
pondo fim aos debates desmedidos dos ignorantes.5 É a partir deste processo contínuo de
silenciamento de discussões que se cria o "front de Modernização", que depura continuamente
os objetos confusos, particulares, locais, culturais, políticos, em direção aos objetos puros e
globais6 que os Cientistas têm em mãos. Esta dicotomia - Cultura de um lado, Natureza do
outro - já se percebe, se desdobra em muitas outras: valores e fatos; humanos e não-humanos;
sujeito e objeto, etc.

2 LATOUR, Bruno, Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, 1. ed. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2009; LATOUR, Bruno, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no
Antropoceno, Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020, pp. 33-42.
3 LATOUR, Bruno, Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia, São Paulo: Editora
UNESP, 2019, p. 32.
4 Seguindo Latour, marcamos o "Cientista" da Constituição Moderna com "C" maiúsculo, para diferenciá-lo
do cientista das práticas científicas. Cf. LATOUR, Políticas de natureza., p. 319.
5 LATOUR, Políticas da natureza., p. 27.
6 LATOUR, Bruno, Down to earth: politics in the new climatic regime. Cambridge, UK; Medford, MA:
Polity Press, 2018, p. 26-32; LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 153-ss.
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A Constituição, segundo Latour, possui pelo menos três garantias7 que permitem aos
modernos de ao mesmo tempo habitarem o reino da Cultura e o da Natureza, 8 revezando
posições imanentes e transcendentes sobre estes polos, e tornando-se (ou assim eles
acreditavam) invencíveis.
 Primeira garantia (ontológica): a natureza não é uma construção (ou seja, é
transcendente), mas a sociedade o é (ou seja, é imanente).
 Segunda garantia (epistemológica): a natureza é construída artificialmente em
laboratório (ou seja, é imanente), enquanto as leis da sociedade nos ultrapassam e podem ser
investigadas pelos cientistas sociais (ou seja, são transcendentes).
O paradoxo representado por estas duas garantias é contornado por uma outra:
 Terceira garantia: a natureza e a cultura devem permanecer absolutamente
distintas, o trabalho de purificação (que propriamente separa os dois polos) deve permanecer
absolutamente distinto do trabalho de mediação (que constrói a natureza nos laboratórios e a
sociedade em suas práticas sociais).9
Para Latour, a última garantia se refere a um processo subterrâneo acontecendo na
Constituição: para produzir polos infinitamente separados (Natureza e Cultura), os modernos
precisam construir múltiplas mediações, associações de humanos e não-humanos (também
chamados de híbridos ou quase-objetos) nos laboratórios, nas instituições e nos artigos
científicos que os unissem. Os quase-objetos que vemos cotidianamente nos noticiários, como
o coronavírus, com origem zoonótica inextrincável na agricultura e na urbanização; 10 os
Organismos Geneticamente Modificados; e principalmente o aquecimento global
antropogênico, causado pelo lançamento na atmosfera (o objeto planetário aparentemente
mais externo a nós) de enormes quantidades de CO² emitido pela ação humana que é a
queima de combustíveis fósseis; todos esses híbridos são "o resultado mais real e a prova mais
eloquente da irrealidade de tal distinção [natureza e política] – [...] uma situação que
poderíamos chamar de falência múltipla dos órgãos do governo cosmopolítico (o nomos) dos

7 Para simplificar, omiti a quarta e última garantia, a qual remove parcialmente Deus do dual natureza-
cultura. Cf. LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 48-50.
8 LATOUR, Bruno, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, Rio de Janeiro:
Ubu Editora, 2020, p. 255.
9 VRIES, Gerard de, Bruno Latour, Cambridge, UK; Malden, MA: Polity Press, 2016, pp. 126-127;
LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 44-48.
10 CHUANG, Coletivo. Contágio social: coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural, Rio
de Janeiro: N-1 Edições, disponível em: https://n-1edicoes.org/022.
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Modernos."11 Antropoceno (ou o Novo Regime Climático) é o nome desta época em que a
Constituição Moderna "cai sob seu próprio peso"; em que descrever se mostra muito
rapidamente prescrever e os meros fatos não têm mais a força de silenciar os debates.

3.2. Antropoceno e o fim da ideia de Natureza


Diversos cientistas (especialmente aqueles que trabalham com mudanças climáticas)
têm usado o termo Antropoceno, concebido por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, para
designar esta época em que a humanidade12 teria virtualmente se tornado uma força
geológica, ou seja, "em um fenômeno 'objetivo', em um objeto 'natural', em um 'contexto' ou
'ambiente' condicionante [...]."13 Por outro lado, a Terra surge nos debates do dia, se torna um
ator político pleno. A história humana, que até então parecia infinitamente distante da lenta e
profunda geo-história, se mostra entrelaçada com esta.
Latour argumenta que aquilo que Antropoceno e toda crise climática nos trazem não é
apenas uma crise ecológica, mas uma crise da objetividade. Como poderíamos compreender
facilmente as notícias de que a concentração de CO² na atmosfera é a mais alta dos últimos
2.5 milhões de anos e que ultrapassamos um dos "limites planetários" para a sobrevivência
humana? A escala desses acontecimentos, os cruzamentos das disciplinas científicas e a
presença da ação (e portanto da política) humana neste fato científico torna impossível ver
este fato do "ponto de vista de Sirius". Este ponto de vista distante, frio e imparcial, o ponto
de vista que, paradoxalmente, anularia qualquer perspectiva, faz parte de uma filosofia
política da Natureza e da atividade científica que se mostra tudo menos racional. Pois a Terra
não é mais um "corpo entre outros", uma imensa bola de bilhar flutuando no espaço - as
imagens depuradas pelo telescópio de Galileu não funcionam mais.
Com efeito, a própria noção de Natureza está se mostrando totalmente instável e
polêmica. Seguindo o antropólogo Phillipe Descola14, Latour reconhece pelo menos três
designações diferentes da palavra "natureza"15:

11 DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e
os fins, 2. ed. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017. Grifo dos autores.
12 Uma das principais características do conceito de Antropoceno é a impossível unificação da humanidade.
Cf. o clássico artigo CHAKRABARTY, 2013.
13 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, Há mundo por vir?
14 LATOUR, Políticas da natureza.
15 LATOUR, Bruno, Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia, São Paulo: Editora
UNESP, 2019, p. 85.
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a um "canto" do mundo, uma região metafísica submetida à estrita causalidade -


o reino da necessidade, em oposição ao reino da liberdade humana;
b a união do reino da necessidade com o reino da liberdade;
c se entendemos a natureza como uma "parte" do cosmos e ao mesmo tempo "o
todo" do cosmos, como distinguir o reino da liberdade e o da necessidade? Há duas respostas
possíveis:
c.1 a distinção dos reinos pertence à natureza - por exemplo, a ideia de que o ser
humano progressivamente se descolaria do reino da necessidade através da evolução;
c.2 a distinção dos reinos pertence à sociedade - o reino das necessidades não existe
em si, mas é apenas uma arbitrária criação humana.
A Natureza (seja social ou não social), que parecia um juiz muito sólido, exterior,
superior, inexorável (e nem um pouco secular), na verdade é resultado de uma Constituição
que dá à Ciência (com C maiúsculo) o papel apolítico de fazer política, de silenciar as
discussões e especulações infindáveis da câmara ao lado. Seus objetos eram puros, essenciais,
factuais, produzidos por técnicos e cientistas (cujo trabalho era rapidamente invisibilizado); e
apenas a posteriori seriam inseridos (indevidamente) no "meio político" desordenado, repleto
de entidades bem menos confiáveis, os tais "fatores políticos" ou "aspectos irracionais". 16
Contrariamente, as entidades do Novo Regime Climático já nascem entrelaçadas umas às
outras; é possível seguir os controvertidos cientistas com seus instrumentos, laboratórios e
máquinas na produção de agentes; as entidades são, desde o início, implicadas e vinculadas às
suas inesperadas consequências.
"Não assistimos à irrupção de questões da natureza nos debates
políticos, mas à multiplicação dos objetos cabeludos, que nada mais
poderia limitar apenas ao mundo natural, que mais nada, justamente,
pode naturalizar."17

Então o que faz exatamente um cientista? O que há, se não há natureza? Para
responder a estas questões, Latour propõe uma leitura do conceito de Gaia, tal como
concebido pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis - uma "figura enfim profana da
Natureza".18

3.2. Gaia e as mil potências de agir

16 Ibid., p. 45.
17 Ibid., p. 48.
18 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
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As noções anteriores de natureza a colocam como um quadro no qual as formas de


vida agem. Lovelock e Margulis propõe uma reformulação desta visão. Os equilíbrios
químicos, a presença de água no planeta e de CO² no solo, enfim, tudo que parecia mera
condição natural para o desenvolvimento de seres vivos, só pode ser explicado a partir do
momento em que acrescentamos os próprios seres vivos à equação da Terra. O que ressalta a
partir da leitura que Latour faz da Teoria de Gaia é que, enquanto os humanos, no
Antropoceno, parecem relegados à posição de mero cenário, aquilo que os modernos
consideravam ocupar o fundo assume o proscênio. Os organismos vivos, anteriormente
limitados e definidos por este quadro maior da Natureza, agora participam da construção das
suas condições de vida, produzem o mundo. Gaia é o resultado parcial e caótico do
entrelaçamento destes agentes. Sua história é muito viva, em que diversas entidades humanas
e não-humanas modificam seus "ambientes" - ou seja, modificam outras entidades, sejam elas
plantas, cianobactérias, a atmosfera ou as rochas. "Tudo que era um simples intermediário
usado para transmitir uma concatenação estrita de causas e consequências torna-se um
mediador que acrescenta seu grão de sal à narrativa."19
Se alguém se acha no dever de ponderar rapidamente: "Calma, a Terra não exatamente
age, não como nós! Ela apenas obedece a leis!", é porque ainda está preso aos vícios da antiga
Constituição. Latour argumenta que a impressão que temos de que os objetos "duros" não
agem verdadeiramente faz parte de uma operação estilística para esconder a agência ao narrar
acontecimentos materiais.
"A ideia de uma distinção Natureza/Cultura, assim como de
humano/não humano, nada tem de uma grande concepção filosófica,
de uma profunda ontologia; ela é um efeito estilístico secundário,
posterior, derivado, por meio do qual se pretende simplificar a
distribuição dos atores, designando, em seguida, uns como animados e
outros como inanimados."20

O encadeamento causal é feito de modo que a parecer que toda a ação está na causa e
não nos efeitos, quando, na verdade, durante a prática científica e até na pedagógica, as
causas aparecem depois dos efeitos. Com isso, quero dizer que, antes de ser a fonte absoluta
de onde emana o poder, a causa é mais um agente com competências específicas e limitadas.
O fenômeno essencial do trabalho científico é a descoberta destas competências das
entidades, a sua animação. Como podemos não acreditar nisto quando, por exemplo, os

19 Ibid.
20 Ibid., p. 116. Grifo do autor.
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biólogos dizem que, durante uma transcrição gênica, o DNA se abre e os códigos do gene são
transcritos para a molécula de RNA por uma enzima? Com isso, Latour não está condenando
um suposto antropomorfismo na ciência; pelo contrário, ele está abraçando um
"metamorfismo": entre as diferentes práticas, há uma intensa permuta de competências,
características e potências de agir - todas traduções sem uma versão original.
Notemos que, ao mesmo tempo em que temos que evitar desanimar a Natureza,
também não devemos superanimá-la. Não é que todo o globo terrestre esteja vivo, ou seja um
grande Ser Vivo, mas sim que tudo o que se situa na camada entre o topo da atmosfera e as
rochas sedimentares - na chamada "zona crítica"21 - está envolvido em uma complexa história
entrelaçada dos seres que compõem um mundo discordante, bagunçado e contingente, em que
cada um modifica o outro para tornar sua existência menos improvável. Ao contrário do que
muitos cientistas erroneamente pensaram22, Gaia não é uma ordem superior, comparável a um
super organismo, ou a uma grande máquina; ela não é uma ordem superior que coordena suas
partes. A descoberta de Lovelock e Margulis dá conta dos "efeitos de conexão entre potências
de agir, sem, para tanto, depender de uma concepção insustentável da totalidade."23 Como
todos os que estão "no ambiente" são agentes que se influenciam mutuamente, que agem
segundo seus interesses (no sentido etimológico de o que está "entre dois seres"), e as noções
de vontade, força, intenção são substituídas pela de potência de agir, a animação é distribuída
entre todos os seres. "Nada está conectado a tudo; tudo está conectado a algo." 24 A
intencionalidade do Todo é pulverizada sob Gaia e seus infinitos agentes.
Identificar cada um destes atores em suas situações, desenhar seus atributos, sua
interação com os outros, fazer emergir tais personagens surpreendentes através de provas e de
instrumentos: é disto que tratam as práticas científicas e suas complexas e extensas redes de
humanos e não-humanos. Como diz Latour, a ciência não avança contando a história de tudo
a partir de entidades já conhecidas, mas
"revisando a lista de objetos que povoam o mundo, o que costuma ser
chamado pelos filósofos, com razão, de uma metafísica e, pelos
antropólogos, de uma cosmologia. [... M]undo e natureza são marcos
temporais: a natureza é o que está estabelecido, o mundo, o que vem.
É por isso que a palavra "metafísica" não deveria ser tão chocante

21 LATOUR, Down to earth., pp. 68-ss.


22 Cf. a análise do livro de Toby Tyrell em LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza
no Antropoceno, pp. 210-217.
23 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, p. 160.
24 HARAWAY, Donna Jeanne, Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene, Durham: Duke
University Press, 2016, p. 31.
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para os cientistas em atividade, mas apenas para aqueles que


acreditam que a tarefa de povoar o mundo já está completa. [...] E,
com certeza, a partir do momento em que você decide quais são os
personagens humanos e não humanos, como a levedura, convocados a
desempenhar os "papéis principais", a política logo mostra sua cara."25

Finalmente, procuramos compreender a proposta do Parlamento das Coisas como uma


maneira de abrigar os não-humanos adequadamente na esfera pública. Para tal, precisamos
explorar exatamente o conceito de política para Latour, assim como o de representação.

3.3 O Parlamento das Coisas e o desvio da palavra política


Vimos que, ao contrário do que dá a entender a oposição Natureza/Cultura,
constitutiva da Modernidade, as entidades que compõem o mundo não estão dadas de
antemão às práticas científicas, mas precisam ser constantemente produzidas por
agenciamentos entre humanos e não-humanos. Qualquer tipo de pressuposição de unidade é
falsa. Isto exige que se opere um radical desvio no conceito tradicional de política. Ora, se
tradicionalmente pensamos política como o regime de discurso pelo qual indivíduos
(unidades pressupostas) representam seus próprios interesses na praça pública, encontramos
um problema: a praça pública precisa, antes de mais nada, ser construída.
A esse respeito, Latour distingue duas tradições sociológicas: 26 (1) a tradição
sociológica que remonta a, pelo menos, Émile Durkheim, em que o trabalho político é
explicado a partir da existência prévia da sociedade; (2) a sociologia da associação que
descende de Gabriel Tarde, em que a sociedade é explicada pela política. Segundo esta última
linha, à qual Latour se filia, a política é justamente a tarefa de composição progressiva do
mundo comum, de engendramento de agregados - qualquer tipo de agregado, seja ele um
organismo, um planeta, um corpo ou uma orquestra. Latour chama a esta última definição de
política como "composicionista". A política não é uma competência inerente à espécie
humana, como havia dito Aristóteles, mas sim uma prática de distribuição de potências de
agir que possibilitam invocar um nós, um coletivo. Não há Sociedade - ou Natureza - que
distribua os papéis definitivamente aos agentes; o mundo precisa ser construído, patrocinado,
mediado, por entidades humanas e não-humanas, que modificam, agem, enfim, o compõem.
A lista dessas entidades e suas qualidades está sempre sendo revisada, alterada e discutida.

25 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, p. 151.


26 LATOUR, Bruno, E se falássemos um pouco de política?, Política & Sociedade, v. 3, n. 4, p. 11–40,
2004.
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Em poucas palavras: o mundo se encontra no fim (provisório) do processo, não antes dele.
Quando juízes, cientistas, religiosos, políticos, economistas e tantos outros praticantes
coproduzem seus fatos, eles estão habilitando a entrada de mais um agente ao coletivo, e os
habitantes precisam estar atentos a ele - não se sabe como todos irão reagir. Se não estiver
estabilizada, qualquer entidade pode ter sua existência cassada e ser expulsa do coletivo.
Para esta tarefa de composição, Latour nos propõe o Parlamento das Coisas como
"novo nomos da Terra".27 Sua principal inovação é de que não apenas os Estados são
representados, mas também delegações de não-humanos - já que elas também são potências
de agir planetárias. Além de atravessar a barreira antropocêntrica, os novos atores da
assembleia são de diferentes escalas, corroendo a lógica do poder soberano em um território
bidimensional. Ao lado dos Estados nacionais, podemos colocar, por exemplo, os povos
indígenas, as ONGs, a atmosfera, a Amazônia, as cidades, sempre reunidos ao redor de uma
questão, uma matter of concern, sem árbitro superior. Como em um modelo científico, a cada
momento, novas variáveis podem ser adicionadas, que tornam o mundo mais complexo, mas
sempre parcial.
A objeção da impossibilidade da representação de não-humanos ("não se pode falar
por uma floresta!") só tem alguma força se acreditamos que há mesmo como objetivamente
representar humanos. Para Latour, em primeiro lugar, nunca deveríamos ter dividido os dois
domínios. Novamente, o trabalho científico não pode ser reduzido apenas a "observar os
fatos", mas inclui o esforço político de discutir ao redor de entidades novas que fazem os
cientistas falarem.28 Dizer que os cientistas falam sozinhos entre si, limitados ou definidos
pelos "fatores sociais e culturais" (construtivismo) , ou dizer que "os fatos falam por si só"
(realismo): ambas são posturas antipolíticas.
Confesso que esta questão da representação política é a que menos consegui exaurir -
e que possui certamente pontas soltas -, mas a título de argumentação provisória, é possível
organizá-la desta forma: Latour propõe resolver a questão da representação, saindo da
Constituição moderna, através do conceito de porta-vozes. Sim, os humanos são os únicos
que falam, mas esta diferença não faz diferença, já que eles nunca, nem na ciência nem na
política tradicional, falam em nome de si mesmos. A representação política é o trabalho de
traçar incessantemente um círculo que transforma a multidão em uma unidade (o porta-voz),
portanto não pode ser exatamente autêntica e transparente. Se o fosse, a multidão jamais se
27 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
28 LATOUR, Politicas da natureza, p. 112.
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transformaria em unidade; "a multidão permaneceria multidão"29 e o coletivo não seria


produzido. Portanto, a representação é mais um trabalho de tradução do que de repetição ou
de mímese entre o um e a multidão.
"Falar com autoridade é sempre interpretar o que os mudos diriam se
pudessem falar e ser interrompido por alguém que afirma que os
mudos dizem outra coisa! A dúvida surge apenas no momento dos
conflitos, quando a disputa é tensa e nos opomos aos eleitos, ou
cientistas [...] sobre a qualidade da representação (e não ao princípio
de representatividade)."30

A discussão política permanece viva justamente porque, paradoxalmente, o círculo


político da representação nunca se fecha, isto é: nem a multidão representada obedece
perfeitamente à unidade representativa, nem a unidade representa exatamente a multidão.
Para se prolongar, o círculo precisa ser reencenado, restaurado, retraçado; a cada volta, uma
nova tradução, com novos agentes povoando a multidão e um novo porta-voz.
As fronteiras do coletivo, seus habitantes e seus interesses mudam a cada vez que se
fala sob o regime da palavra política. Afinal, se os agentes tivessem já interesses e opiniões
bem delimitados e fixos, o círculo representativo se fecharia e a composição de um coletivo
seria impossível. Os interesses precisam se alterar no engendramento do coletivo que se fará
representado por um porta-voz - que por sua vez fará o coletivo falar. O círculo não é
tautológico porque, obviamente, o representante sempre fala em nome de um outro que, como
os demônios, "não é um, mas legião."31

4. Conclusões
Vimos que, através de uma noção composicionista de política – ou seja, política como
composição de um mundo comum – e de uma noção animista de ciência - ou seja, ciência
como atribuição de agência a entidades humanas e não-humanas –, Latour desenvolve uma
teoria que pretende reformular a esfera pública para encarar os desafios suscitados pelo que
ele chama de “Novo Regime Climático”. As diferenças entre humanos e não-humanos não
fazem diferença, já que a noção de potência de agir traz as entidades a um mesmo plano
ontológico.

29 LATOUR, E se falássemos um pouco de política?.


30 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno., p. 411-412.
31 LATOUR, E se falássemos um pouco de política?.
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Referências
CHUANG, Coletivo. Contágio social: coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo
natural, Rio de Janeiro: N-1 Edições. Disponível em: https://n-1edicoes.org/022
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?: ensaio
sobre os medos e os fins. 2. ed. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017.
HARAWAY, Donna Jeanne. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene.
Durham: Duke University Press, 2016. (Experimental futures: technological lives, scientific
arts, anthropological voices).
LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020.
_____________. Down to earth: politics in the new climatic regime. English edition.
Cambridge, UK ; Medford, MA: Polity Press, 2018.
_____________. E se falássemos um pouco de política? Política & Sociedade, v. 3, n. 4,
p. 11–40, 2004.
_____________. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 1. ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2009.
_____________. Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia. Trad.
Carlos Aurélio Mota de Souza. São Paulo: Editora UNESP, 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. 2. ed. São Paulo:
Cosac & Naify, 2011.
VRIES, Gerard de. Bruno Latour. Cambridge, UK ; Malden, MA: Polity Press, 2016. (Key
Contemporary Thinkers).

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