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1. Introdução
A princípio, a ideia de inserir não-humanos na arena política pode parecer absurda.
Como fazer isso? Nomeando um cavalo para o senado, como nas histórias do Imperador
romano Calígula? Talvez discutindo sobre a possibilidade de uma árvore se candidatar, ou
sobre os direitos civis dos micróbios? Não estaríamos cometendo com isso um perigoso
antropomorfismo, traficando elementos estranhos pela fronteira entre Natureza e Cultura?
Estaríamos inserindo intenção e racionalidade onde elas não existem, sendo que, para
chamarmos qualquer coisa de "política" seria imprescindível a presença de ambas? Apenas
povos não-modernos sequer pensariam em uma política não-humana, como os xamãs
ameríndios que possuem a habilidade de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e
adotar a perspectiva de outros seres, de modo a administrar as relações entre estas e os
humanos."1
Mas o que acontece com esse pressuposto se aceitarmos aquilo que nos diz Bruno
Latour já no título de seu clássico livro de 1991 - Jamais fomos modernos? Se de fato jamais
fomos modernos, então jamais distinguimos muito bem Natureza e Cultura, jamais fomos
realmente não-animistas, jamais respeitamos a fronteira ontológico-política entre ser e dever-
ser; e portanto, os não-humanos sempre terão sido seres políticos. Se não somos isso, o que
somos então? Como se articulam ciência e política na nossa sociedade não-moderna, segundo
Bruno Latour?
2. Objetivos
Nesta pesquisa, procuramos explorar exatamente em que medida, como e por que
agentes não-humanos seriam políticos e descrever o plano latouriano para acomodá-los
conceitualmente. Isto envolve uma especificação da noção de política e de seu trabalho de
1 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem, 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify,
2011, p. 358.
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3. Desenvolvimento
3.1 O diagnóstico de Latour: a Constituição Moderna
Em linhas gerais, os Modernos são aqueles que vivem sob o estado de
incomensurabilidade ontológica entre os polos Cultura e Natureza, divisão que é chamada por
Latour de Constituição Moderna.2
"A primeira [câmara] abarca a totalidade de humanos falantes, os
quais se encontram apenas com o poder de ignorar em comum, ou de
crer por consenso nas ficções esvaziadas de toda a realidade exterior.
A segunda se compõe exclusivamente de objetos reais, que têm a
propriedade de definir o que existe, mas sem o dom da palavra. De
um lado, o vozerio de ficções, de outro, o silêncio da realidade."3
O único que caminha entre os dois mundos, segundo esta Constituição, é o Cientista 4
que teria o poder de acessar os objetos puros da Natureza e regressar à câmara da Cultura,
pondo fim aos debates desmedidos dos ignorantes.5 É a partir deste processo contínuo de
silenciamento de discussões que se cria o "front de Modernização", que depura continuamente
os objetos confusos, particulares, locais, culturais, políticos, em direção aos objetos puros e
globais6 que os Cientistas têm em mãos. Esta dicotomia - Cultura de um lado, Natureza do
outro - já se percebe, se desdobra em muitas outras: valores e fatos; humanos e não-humanos;
sujeito e objeto, etc.
2 LATOUR, Bruno, Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, 1. ed. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2009; LATOUR, Bruno, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no
Antropoceno, Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020, pp. 33-42.
3 LATOUR, Bruno, Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia, São Paulo: Editora
UNESP, 2019, p. 32.
4 Seguindo Latour, marcamos o "Cientista" da Constituição Moderna com "C" maiúsculo, para diferenciá-lo
do cientista das práticas científicas. Cf. LATOUR, Políticas de natureza., p. 319.
5 LATOUR, Políticas da natureza., p. 27.
6 LATOUR, Bruno, Down to earth: politics in the new climatic regime. Cambridge, UK; Medford, MA:
Polity Press, 2018, p. 26-32; LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 153-ss.
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A Constituição, segundo Latour, possui pelo menos três garantias7 que permitem aos
modernos de ao mesmo tempo habitarem o reino da Cultura e o da Natureza, 8 revezando
posições imanentes e transcendentes sobre estes polos, e tornando-se (ou assim eles
acreditavam) invencíveis.
Primeira garantia (ontológica): a natureza não é uma construção (ou seja, é
transcendente), mas a sociedade o é (ou seja, é imanente).
Segunda garantia (epistemológica): a natureza é construída artificialmente em
laboratório (ou seja, é imanente), enquanto as leis da sociedade nos ultrapassam e podem ser
investigadas pelos cientistas sociais (ou seja, são transcendentes).
O paradoxo representado por estas duas garantias é contornado por uma outra:
Terceira garantia: a natureza e a cultura devem permanecer absolutamente
distintas, o trabalho de purificação (que propriamente separa os dois polos) deve permanecer
absolutamente distinto do trabalho de mediação (que constrói a natureza nos laboratórios e a
sociedade em suas práticas sociais).9
Para Latour, a última garantia se refere a um processo subterrâneo acontecendo na
Constituição: para produzir polos infinitamente separados (Natureza e Cultura), os modernos
precisam construir múltiplas mediações, associações de humanos e não-humanos (também
chamados de híbridos ou quase-objetos) nos laboratórios, nas instituições e nos artigos
científicos que os unissem. Os quase-objetos que vemos cotidianamente nos noticiários, como
o coronavírus, com origem zoonótica inextrincável na agricultura e na urbanização; 10 os
Organismos Geneticamente Modificados; e principalmente o aquecimento global
antropogênico, causado pelo lançamento na atmosfera (o objeto planetário aparentemente
mais externo a nós) de enormes quantidades de CO² emitido pela ação humana que é a
queima de combustíveis fósseis; todos esses híbridos são "o resultado mais real e a prova mais
eloquente da irrealidade de tal distinção [natureza e política] – [...] uma situação que
poderíamos chamar de falência múltipla dos órgãos do governo cosmopolítico (o nomos) dos
7 Para simplificar, omiti a quarta e última garantia, a qual remove parcialmente Deus do dual natureza-
cultura. Cf. LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 48-50.
8 LATOUR, Bruno, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno, Rio de Janeiro:
Ubu Editora, 2020, p. 255.
9 VRIES, Gerard de, Bruno Latour, Cambridge, UK; Malden, MA: Polity Press, 2016, pp. 126-127;
LATOUR, Jamais fomos modernos, pp. 44-48.
10 CHUANG, Coletivo. Contágio social: coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural, Rio
de Janeiro: N-1 Edições, disponível em: https://n-1edicoes.org/022.
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Modernos."11 Antropoceno (ou o Novo Regime Climático) é o nome desta época em que a
Constituição Moderna "cai sob seu próprio peso"; em que descrever se mostra muito
rapidamente prescrever e os meros fatos não têm mais a força de silenciar os debates.
11 DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e
os fins, 2. ed. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017. Grifo dos autores.
12 Uma das principais características do conceito de Antropoceno é a impossível unificação da humanidade.
Cf. o clássico artigo CHAKRABARTY, 2013.
13 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, Há mundo por vir?
14 LATOUR, Políticas da natureza.
15 LATOUR, Bruno, Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia, São Paulo: Editora
UNESP, 2019, p. 85.
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Então o que faz exatamente um cientista? O que há, se não há natureza? Para
responder a estas questões, Latour propõe uma leitura do conceito de Gaia, tal como
concebido pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis - uma "figura enfim profana da
Natureza".18
16 Ibid., p. 45.
17 Ibid., p. 48.
18 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
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O encadeamento causal é feito de modo que a parecer que toda a ação está na causa e
não nos efeitos, quando, na verdade, durante a prática científica e até na pedagógica, as
causas aparecem depois dos efeitos. Com isso, quero dizer que, antes de ser a fonte absoluta
de onde emana o poder, a causa é mais um agente com competências específicas e limitadas.
O fenômeno essencial do trabalho científico é a descoberta destas competências das
entidades, a sua animação. Como podemos não acreditar nisto quando, por exemplo, os
19 Ibid.
20 Ibid., p. 116. Grifo do autor.
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biólogos dizem que, durante uma transcrição gênica, o DNA se abre e os códigos do gene são
transcritos para a molécula de RNA por uma enzima? Com isso, Latour não está condenando
um suposto antropomorfismo na ciência; pelo contrário, ele está abraçando um
"metamorfismo": entre as diferentes práticas, há uma intensa permuta de competências,
características e potências de agir - todas traduções sem uma versão original.
Notemos que, ao mesmo tempo em que temos que evitar desanimar a Natureza,
também não devemos superanimá-la. Não é que todo o globo terrestre esteja vivo, ou seja um
grande Ser Vivo, mas sim que tudo o que se situa na camada entre o topo da atmosfera e as
rochas sedimentares - na chamada "zona crítica"21 - está envolvido em uma complexa história
entrelaçada dos seres que compõem um mundo discordante, bagunçado e contingente, em que
cada um modifica o outro para tornar sua existência menos improvável. Ao contrário do que
muitos cientistas erroneamente pensaram22, Gaia não é uma ordem superior, comparável a um
super organismo, ou a uma grande máquina; ela não é uma ordem superior que coordena suas
partes. A descoberta de Lovelock e Margulis dá conta dos "efeitos de conexão entre potências
de agir, sem, para tanto, depender de uma concepção insustentável da totalidade."23 Como
todos os que estão "no ambiente" são agentes que se influenciam mutuamente, que agem
segundo seus interesses (no sentido etimológico de o que está "entre dois seres"), e as noções
de vontade, força, intenção são substituídas pela de potência de agir, a animação é distribuída
entre todos os seres. "Nada está conectado a tudo; tudo está conectado a algo." 24 A
intencionalidade do Todo é pulverizada sob Gaia e seus infinitos agentes.
Identificar cada um destes atores em suas situações, desenhar seus atributos, sua
interação com os outros, fazer emergir tais personagens surpreendentes através de provas e de
instrumentos: é disto que tratam as práticas científicas e suas complexas e extensas redes de
humanos e não-humanos. Como diz Latour, a ciência não avança contando a história de tudo
a partir de entidades já conhecidas, mas
"revisando a lista de objetos que povoam o mundo, o que costuma ser
chamado pelos filósofos, com razão, de uma metafísica e, pelos
antropólogos, de uma cosmologia. [... M]undo e natureza são marcos
temporais: a natureza é o que está estabelecido, o mundo, o que vem.
É por isso que a palavra "metafísica" não deveria ser tão chocante
Em poucas palavras: o mundo se encontra no fim (provisório) do processo, não antes dele.
Quando juízes, cientistas, religiosos, políticos, economistas e tantos outros praticantes
coproduzem seus fatos, eles estão habilitando a entrada de mais um agente ao coletivo, e os
habitantes precisam estar atentos a ele - não se sabe como todos irão reagir. Se não estiver
estabilizada, qualquer entidade pode ter sua existência cassada e ser expulsa do coletivo.
Para esta tarefa de composição, Latour nos propõe o Parlamento das Coisas como
"novo nomos da Terra".27 Sua principal inovação é de que não apenas os Estados são
representados, mas também delegações de não-humanos - já que elas também são potências
de agir planetárias. Além de atravessar a barreira antropocêntrica, os novos atores da
assembleia são de diferentes escalas, corroendo a lógica do poder soberano em um território
bidimensional. Ao lado dos Estados nacionais, podemos colocar, por exemplo, os povos
indígenas, as ONGs, a atmosfera, a Amazônia, as cidades, sempre reunidos ao redor de uma
questão, uma matter of concern, sem árbitro superior. Como em um modelo científico, a cada
momento, novas variáveis podem ser adicionadas, que tornam o mundo mais complexo, mas
sempre parcial.
A objeção da impossibilidade da representação de não-humanos ("não se pode falar
por uma floresta!") só tem alguma força se acreditamos que há mesmo como objetivamente
representar humanos. Para Latour, em primeiro lugar, nunca deveríamos ter dividido os dois
domínios. Novamente, o trabalho científico não pode ser reduzido apenas a "observar os
fatos", mas inclui o esforço político de discutir ao redor de entidades novas que fazem os
cientistas falarem.28 Dizer que os cientistas falam sozinhos entre si, limitados ou definidos
pelos "fatores sociais e culturais" (construtivismo) , ou dizer que "os fatos falam por si só"
(realismo): ambas são posturas antipolíticas.
Confesso que esta questão da representação política é a que menos consegui exaurir -
e que possui certamente pontas soltas -, mas a título de argumentação provisória, é possível
organizá-la desta forma: Latour propõe resolver a questão da representação, saindo da
Constituição moderna, através do conceito de porta-vozes. Sim, os humanos são os únicos
que falam, mas esta diferença não faz diferença, já que eles nunca, nem na ciência nem na
política tradicional, falam em nome de si mesmos. A representação política é o trabalho de
traçar incessantemente um círculo que transforma a multidão em uma unidade (o porta-voz),
portanto não pode ser exatamente autêntica e transparente. Se o fosse, a multidão jamais se
27 LATOUR, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
28 LATOUR, Politicas da natureza, p. 112.
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4. Conclusões
Vimos que, através de uma noção composicionista de política – ou seja, política como
composição de um mundo comum – e de uma noção animista de ciência - ou seja, ciência
como atribuição de agência a entidades humanas e não-humanas –, Latour desenvolve uma
teoria que pretende reformular a esfera pública para encarar os desafios suscitados pelo que
ele chama de “Novo Regime Climático”. As diferenças entre humanos e não-humanos não
fazem diferença, já que a noção de potência de agir traz as entidades a um mesmo plano
ontológico.
Referências
CHUANG, Coletivo. Contágio social: coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo
natural, Rio de Janeiro: N-1 Edições. Disponível em: https://n-1edicoes.org/022
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?: ensaio
sobre os medos e os fins. 2. ed. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017.
HARAWAY, Donna Jeanne. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene.
Durham: Duke University Press, 2016. (Experimental futures: technological lives, scientific
arts, anthropological voices).
LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020.
_____________. Down to earth: politics in the new climatic regime. English edition.
Cambridge, UK ; Medford, MA: Polity Press, 2018.
_____________. E se falássemos um pouco de política? Política & Sociedade, v. 3, n. 4,
p. 11–40, 2004.
_____________. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 1. ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2009.
_____________. Políticas da natureza: como associar as ciências a democracia. Trad.
Carlos Aurélio Mota de Souza. São Paulo: Editora UNESP, 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. 2. ed. São Paulo:
Cosac & Naify, 2011.
VRIES, Gerard de. Bruno Latour. Cambridge, UK ; Malden, MA: Polity Press, 2016. (Key
Contemporary Thinkers).