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D E B AT E S I N T E R D I S C I P L I N A R E S X I

ANTROPOCENO E CAPITALOCENO:
NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS COMBATES

Fábio Luiz Zanardi Coltro1


Benilson Borinelli2

http : / / d x. d oi. org / 1 0 . 1 9 1 7 7 / 9 7 8 - 8 5 - 8 0 1 9 - 2 2 9 - 2 . 1 5 7 - 1 75

1 INTRODUÇÃO
A proposição da pan-narrativa do Antropoceno em 2002 assinalou uma in-
flexão na forma de interpretar a crise civilizatória que paira sobre a humanidade.
Ela demarca o fim do Holoceno, era geológica de relativa estabilidade climática
iniciada cerca de 12 mil anos, e que foi alterada por uma série de descontinui-
dades espaço/temporais – mensuradas em termos da fixação de nitrogênio, da
acidificação dos oceanos, dos níveis atmosféricos de dióxido de carbono ou da
perda de biodiversidade. Mais importante, o Antropoceno atribui à humanidade
(antropos) status e magnitude de uma força geológica. Na era do Antropoceno3,4
é cada vez mais reconhecido que o modo como a vida humana se organiza é
ecologicamente prejudicial e põe em risco a existência da maioria dos seres vi-
vos5,6,7. O crescimento exponencial de nossa liberdade e poder, ou seja, de nossa
habilidade de transformar a natureza, é traduzido em uma limitação de nossa
liberdade, incluindo a desestabilização das próprias condições de vida biológica.
Especialmente desde a Revolução Industrial, ou mais precisamente da invenção
1 Doutor em Geografia; docente do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Estadual de Londri-
na; fzcoltro@gmail.com; ORCID https://orcid.org/0000-0002-6261-3182
2 Doutor em Ciências Sociais; docente do Departamento de Administração e do Programa de Pós-Graduação em
Administração da Universidade Estadual de Londrina; benilson@uel.br; ORCID http://orcid.org/0000-0002-7256-7618
3 CRUTZEN, P. J. Geology of mankind. Nature, v. 415, n. 6867, p. 23, 2002.
4 CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. Global change newsletter. The Anthropocene, v. 41, p. 17-18, 2000.
5 BARNOSKY, A. D.; MATZKE, N.; TOMIYA, S.; WOGAN, G. O. U.; SWARTZ, B.; QUENTAL, T. B.; MARSHALL, C.; MCGUIRE, J. L.;
LINDSEY, E. L.; MAGUIRE, K. C.; MERSEY, B.; FERRER, R. A. Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived? Nature, v.
471, p. 51-57, 2011.
6 IPPC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. AR5 Climate change 2014: impacts, adaptations
and vulnerability. Cambridge/New York: Cambridge University Press/IPCC, 2014.
7 ASSESSMENT MILLENNIUM ECOSYSTEM. Ecosystems and human wellbeing: the assessment series. Washington:
Island, 2005.

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da máquina a vapor, a biosfera e seus ecossistemas locais sofreram mudanças


radicais em termos de aumento de temperatura e redução da biodiversidade8,9.
Desde a sua publicização, a tese do Antropoceno desencadeou diferentes, e
muitas vezes divergentes, reações e acalorados debates no campo da geologia e
das ciências sociais e humanas sobre as suas causas e as implicações ontológicas,
epistemológicas e políticas da nova era. Podemos falar mesmo de uma acirrada
disputa dos sentidos emotivos e cognitivos do Antropoceno. Por exemplo, en-
quanto narrativas como a do “bom Antropoceno” e a dos ecomodernistas veem
na nova era a confirmação da vitória da modernidade contra a natureza, outras,
como a do Capitaloceno, destaca a imbricação entre as profundas modifica-
ções constatadas e a marcha obstinada e destrutiva do capitalismo nos últimos
cinco séculos. A tese do Capitaloceno, uma das mais conhecidas e elaboradas
interpretações críticas do Antropoceno, é de que as causas desse fenômeno não
podem ser atribuídas à humanidade como um todo unificado; a distribuição dos
responsáveis pela mudança climática e outras alterações na geomorfologia do
planeta se concentra entre os mais abastados, ao passo que os menos favore-
cidos sofrem de forma mais drástica os seus efeitos10. Nesse sentido, uma nova
era da humanidade precisa ser pensada nas coordenadas da origem e trajetória
contraditória – destrutiva/criativo – do capitalismo.
De qualquer forma, essas narrativas sobre o Antropoceno têm a qualidade
ou o inconveniente de colocar o mundo em perspectiva humana e, assim, ao
mesmo tempo que dá a nossa espécie a autoridade sobre o destino do mundo,
cobra-“nos” diretamente a responsabilidade por uma catástrofe planetária. Nes-
te artigo, de caráter introdutório, exploratório e bibliográfico, discorremos sobre
algumas das ideias centrais do Antropoceno e do Capitaloceno. Na parte final
do artigo, pontuamos algumas questões políticas surgidas em torno do campo
científico e das projeções de futuro do Antropoceno/Capitaloceno.
Parece possível afirmar que, independentemente dos posicionamentos a
seu respeito, o Antropoceno inaugurou uma nova fase de interpretação(ões)
sobre o futuro da humanidade e do planeta Terra. Dado que esse debate

8 BARNOSKY et al., op. cit.


9 ZALASIEWICZ, J. et al. Are we now living in the Anthropocene? Gsa Today, v. 18, n. 2, p. 4, 2008.
10 MALM, A.; HORNBORG, A. The geology of mankind? A critique of the Anthropocene narrative. The Anthropocene
Review, v. 1, n. 1, p. 62-69, 2014.

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envolve necessariamente uma avaliação crítica da dinâmica dos padrões de


distribuição das riquezas, riscos e males existentes, ele se refere às decisões
sobre continuidades e descontinuidades dos poderes construídos no Holoce-
no. É nesse sentido que o Antropoceno também deu largada à corrida/disputa
científico-ideológica pelo seu espólio. Ele vem assumindo a condição de um
campo de batalha para inúmeras formas de poder (econômicas, científicas,
tecnológicas e culturais) que buscam realinhar e legitimar seus projetos e
discursos, revelando, em alguns casos, interpretações originais, mas também
contradições requentadas.
Seja como for, o debate Antropoceno/Capitaloceno pode ter profundas
implicações para futuras discussões, pesquisas e, talvez, respostas individuais
e coletivas às crises ecológicas e sociais que rondam o planeta. Tomando o
marco diferencial assinalado pelo Capitaloceno na sua leitura do Antropoceno,
à periferia da modernidade interessa pensar se e como o potencial criativo/
destrutivo da humanidade assinalado nessa nova era pode contribuir, ainda
que seja pela sua contestação, para compreender a nossa situação e fortalecer
a defesa de novos mundos.

2 ANTROPOCENO
A Terra seguiu uma evolução determinada pelas forças geológicas desde sua
origem, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Ao longo dessa jornada, passou por
transformações significativas em sua crosta e atmosfera. Nos últimos 3 bilhões
de anos, a vida floresceu em nosso planeta de modo lento, inicialmente. Uma
espécie peculiar apareceu há 200 mil anos e evoluiu a ponto de desenvolver a
civilização que temos hoje. A dominação da espécie humana está sendo de tal
modo importante que está influenciando alguns componentes críticos do fun-
cionamento básico do sistema terrestre. Entre elas, o clima e a composição da
atmosfera11. Apesar de sermos uma única espécie entre os estimados 10 a 14
milhões de espécies atuais, e de estarmos habitando a Terra muito recentemente,
nos últimos séculos estamos alterando profundamente a face de nosso planeta.
O desenvolvimento da agricultura e o início da Revolução Industrial levaram a

11 CRUTZEN, op. cit.

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um explosivo crescimento populacional, que hoje atinge 7,6 bilhões de seres


humanos. Éramos cerca de 1 bilhão no início da Revolução Industrial e, somen-
te no século XX, a população humana cresceu de 1,65 para 6 bilhões, devendo
chegar a 10 bilhões de humanos neste século12. Tal crescimento populacional
fez pressões importantes sobre os recursos naturais do planeta. A necessidade
crescente de fornecimento de alimentos, água, energia e mais recentemente de
bens de consumo em geral está transformando a face da Terra.
Pesquisas sobre rochas e fósseis indicam que durante os 4 bilhões de anos,
aproximadamente, a Terra passou por grandes transformações, processo clas-
sificado como eras geológicas. As diferentes eras geológicas correspondem a
grandes intervalos de tempo, divididos em períodos. A alternância das eras geo-
lógicas foi estabelecida por meio de alterações significativas na crosta terrestre,
sendo, portanto, classificadas em cinco eras geológicas distintas: Arqueozoica,
Proterozoica, Paleozoica, Mesozoica e Cenozoica13.
A era geológica Cenozoica está dividida em dois períodos: Terciário (aproxi-
madamente 60 milhões de anos atrás) e Quaternário (1 milhão de anos atrás)14.
O Período Quaternário iniciou-se há 2,6 milhões de anos e compreende desde
a época pleistocênica (de 2,6 milhões de anos até cerca de 10 mil anos atrás,
referindo-se aos depósitos pós-pliocênicos) até a época holocênica (10 mil anos
atrás até os dias atuais, incluindo fósseis de espécies existentes), estando dentro
da Era Cenozoica. Compreende depósitos sedimentares juntamente com restos
de animais e vegetais que vivem ainda hoje, espécies de mamíferos placentários
(permitindo observar ancestrais de cavalos, e elefantes), sendo também a idade
do Homem. As características mais marcantes desse período foram as glaciações
e o aparecimento do homem, há apenas 1,8 milhões de anos15.
Durante quase todos esses períodos ocorreram extinção em massa, ou seja,
um decréscimo abrupto da biodiversidade por meio da extinção de vários gru-
pos ao mesmo tempo, devido a fenômenos naturais (como variação do nível
dos oceanos, mudança climática, impacto de asteroide, atividade vulcânica).

12 Ibidem.
13 GUERRA, A. T. Dicionário geológico, geomorfológico. Secretaria de Planejamento e Coordenação da Presidência da
República. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1987.
14 Ibidem.
15 Ibidem.

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Apesar de serem um fenômeno comum (se considerarmos a longa escala do


tempo geológico), diversos eventos de extinção massiva foram particularmente
violentos, acabando com mais da metade das formas de vida16.
O período geológico chamado de Holoceno, iniciado há 11.700 anos e ca-
racterizado pela estabilidade do ponto de vista climático17, desde os anos 1980
vem tendo a sua vigência questionada por alguns cientistas. Eles defendem que
o termo Antropoceno define melhor uma nova época em que os efeitos acumu-
lados da humanidade estariam afetando globalmente o nosso planeta. Desde
então, destacados pesquisadores, como o prêmio Nobel de Química (1995) Paul
Crutzen, contribuíram para a popularização do termo nos anos 2000, com uma
série de publicações discutindo o que seria essa nova era geológica da Terra18 e
enfatizando a promoção da humanidade a uma força significante globalmente,
capaz de interferir em processos críticos de nosso planeta, como a composição
da atmosfera e outras propriedades.
O Antropoceno pode ser entendido como a evidência da ação humana so-
bre a Terra, transformando-a profundamente. O termo é um neologismo criado
de uma combinação das palavras anthropo (homem) e ceno (o mais novo) para
sugerir que as atividades humanas se tornaram tão generalizadas e intensas que
passaram a se igualar às grandes forças da natureza no trabalho de modificar a
superfície do planeta. O Antropoceno pode ser considerado uma nova época
geológica que, segundo Lewis e Maslin19, provavelmente começou no período
pré-industrial após a chegada dos europeus às Américas e se consolidou a par-
tir da segunda metade do século XX, no momento conhecido como “a grande
aceleração” das atividades industriais e do aumento da população humana. No
intervalo entre os dois eventos (não podemos desconsiderar o marco da Revo-
lução Industrial de meados do século XVIII) observam-se mudanças significa-
tivas na natureza dos depósitos minerais em estratos de rochas, no relevo e na
composição da atmosfera20.

16 Ibidem.
17 CRUTZEN, op. cit.
18 Ibidem.
19 LEWIS, S. L.; MASLIN, M. A.; Anthropocene: Earth system, geological, philosophical and political paradigm shifts. The
Anthropocene Review, v. 2, n. 2, 2015.
20 LUZ, L. M.; MARCAL, M. dos S. A perspectiva geográfica do antropoceno. Revista de Geografia (Recife), v. 33, n. 2,
2016.

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Por meio da estratigrafia, os pesquisadores têm tentado estabelecer um mar-


co oficial (o chamado Golden Spike) para o início dessa nova época. A Revolução
Industrial foi inicialmente apontada como o deflagrador do Antropoceno21,22 por-
que a associação da intensificação do uso de combustíveis fósseis e das rápidas
mudanças societais anunciaram mudanças importantes e únicas na história da
humanidade. Todavia, o evento não é adotado como um marco absoluto, uma
vez que alguns estudos sobre o tema ressaltam que a Revolução Industrial foi um
evento localizado e que uma data precisa para o seu início não pode ser estabe-
lecida. Enquanto pesquisadores como Lewis e Maslin23 acentuam que é preciso
aprofundar a busca de evidências estratigráficas do início do Antropoceno, outros
como Hamilton e Grivevald24 discutem que a busca por marcos não deve se fixar
tão somente à estratigrafia, uma vez que eventos como a Revolução Industrial não
podem ser ignorados apenas porque não produziram registros estratigráficos tão
precisos. Essas duas posições se põem em confronto no campo acadêmico das
ciências naturais, como uma disputa em torno da transição paradigmática das
ciências do ambiente em direção a uma ciência do sistema terra25. Essa perspec-
tiva de mudança de paradigma não é direcionada apenas ao reconhecimento e
à definição do conceito de Antropoceno, mas também à compreensão de que a
Terra é um “‘ecossistema’ total complexo”26, o que inclui uma visão holística e in-
terdisciplinar sobre as mudanças que os seres humanos produzem no planeta.
Da sua origem na área de geologia, a tese do Antropoceno disseminou-se por
diversas áreas de conhecimento num relativamente curto espaço de tempo. Uma
parte expressiva desse debate debruçou-se em desenvolver uma interpretação
crítica e programas políticos, fundamentados, principalmente, em projetos polí-
ticos e ideológicos da modernidade. O termo pan-disciplinar27 vem provocando
diversas reações como [a confirmação da] perplexidade, temor e o pessimismo

21 CRUTZEN; STOERMER, op. cit.


22 STEFFEN, W.; BROADGATE, W.; DEUTSH, L.; GAFFNEY, O.; LUDWIG, C. The trajectory of the anthropocene: the great
acceleration. The Anthropocene Review. v. 2, n. 1, p. 81-98, 2013.
23 LEWIS; MASLIN, op. cit.
24 HAMILTON, C.; GRINEVALD, J. Was the anthropocene anticipated? The Anthropocene Review, v. 2, n. 1, p. 59-72, 2015.
25 HAMILTON; GRINEVALD, op. cit.
26 Ibidem.
27 BARRY, A.; MASLIN, M. The politics of the Anthropocene: a dialogue. Geo: Geography and Environment, v. 3, n. 2, p.
1-12, 2016.

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com relação à cultura econômica dominante e ao futuro do mundo. A era dos


humanos também é causa para regozijos. Na narrativa dos ecomodernistas, por
exemplo, festeja-se no Antropoceno a “morte” da natureza como a conhecíamos,
como uma entidade/força independente e até certo ponto imprevisível. Diversas
consequências decorrem dessa premissa, como a confirmação da supremacia da
humanidade e do capitalismo na gestão do mundo e a inexistência de limites
naturais ao projeto de desenvolvimento neoliberal28. As fragilidades da concep-
ção “oficial” pretensamente neutra de Antropoceno e a sua captura pela narra-
tiva capitalista têm sido contestadas por vários autores, dentre eles destaca-se
Jason Moore, com o seu Capitaloceno, uma das mais conhecidas e elaboradas
interpretações críticas do Antropoceno capitalista.

3 CAPITALOCENO
Jason Moore é um dos principais autores a problematizar a premissa “pós-
-social” do Antropoceno – que o reconhece como agente universal, excluindo
entre as suas causas os indivíduos, classes, sistema de poder e de privilégios –,
inserindo-o na perspectiva das ciências sociais, mais especificamente da geo-
gráfica histórica e da economia política marxista. Ele contesta a lógica simplista
de o Antropoceno ver apenas fatores antropogênicos nesse impacto à escala
planetária, sem o localizar numa determinada formação social capitalista. No
Capitaloceno, essa grande transformação do mundo é articulada num quadro
imperialista e colonial em que uma parte da humanidade é vista pela perspec-
tiva do eurocentrismo e que continua a usufruir do estatuto de centro de uma
história assente em determinismo tecnológico e no uso de recursos29. Assim,
dois aspectos centrais da abordagem de Moore podem ser destacados para
demarcar a sua perspectiva e a crítica ao Antropoceno: a indicação do capitalis-
mo como padrão histórico de relações sociais que coproduziu a atual crise, e a
diferenciada visão da relação sociedade/natureza assinalada na ecologia mundo
organizada pelo capital.

28 FREMAUX, A. The return of nature in the Capitalocene: a critique of the ecomodernist version of the “good Anthropo-
cene”. In: ARIAS-MALDONADO, M.; TRACHTENBERG, Z. Rethinking the environment for the anthropocene: Political
theory and socionatural relations in the new geological epoch. London: Routledge, 2019.
29 MOORE, J. W. Capitalism in the web of life: Ecology and the accumulation of capital. Verso Books, 2015.

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A proposta de Moore30 requer uma reconsideração do espaço do geológico


para pensá-lo historicamente com base no mundo atlântico do século XVI, nos
processos de expansão colonial e invasão, genocídio e dominação da África,
da Ásia e das Américas os quais fazem parte de um projeto de formação social
capitalista que privilegia a sempre interminável acumulação do capital. Acumu-
lação, essa, cuja expansão requer pelo menos quatro condições a baixo custo,
os “quatro baratos” assinalados por Moore31: energia, alimentos, matéria-prima
e força de trabalho. O Antropoceno retrataria as consequências planetárias de
um projeto capitalista alicerçado na exploração da natureza como um recurso
barato, resultando daí inúmeras crises, como as alterações climáticas e a espo-
liação para extrair o máximo de recursos da Terra.
As últimas quatro décadas, aproximadamente, ambientalistas e outros radi-
cais têm alertado sobre essas crises, mas nunca descobriram como colocá-las
juntas. A ênfase, equivocada, na Revolução Industrial como origem da moderni-
dade está em um método histórico que privilegia as consequências ambientais e
oculta as geografias do capital e poder32. O apego do “pensamento ecológico” à
Revolução Industrial enfraqueceu os esforços para localizar as origens das crises
de hoje nas transformações de época do capital, poder e natureza que come-
çaram no “longo” século XVI33. As origens das atuais e inseparáveis, mas distin-
tas, crises de acumulação de capital e estabilidade biosférica são encontradas
em uma série de transformações de paisagem, classe, território e técnicas que
emergiram nos três séculos, após 1450.
Ao questionar a proposta de Antropoceno, na qual esse “antropo” se faz agen-
te, Moore34 considera, primeiramente, que a humanidade não se constitui agente
por não agir conjuntamente como espécie. Além disso, são as leis do movimento
do capital que são executadas no anthropos, elas são tão determinantes que a
era terrestre atual poderia ser chamada de Capitaloceno35.

30 Ibidem.
31 Ibidem.
32 MOORE, J. W. Ecology and the rise of capitalism. University of California, 2007.
33 BRAUDEL, F. Por uma economia histórica. Revista de História, v. 7, n. 16, p. 343-350, 1953.
34 MOORE, 2015, op. cit.
35 ALTVATER, E. Crítica da economia política na praia de plástico e o fetiche do capital no Antropoceno. Revista Margem
Esquerda, v. 31, p. 69-84, 2018.

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O Antropoceno se torna fetiche, ele é criação, mas também, pelo duplo ca-
ráter de toda ação, é destruição, é acumulação e extinção de modo sem prece-
dentes e em escala planetária36. Se a destruição no planeta não resulta da ação
da humanidade no geral, como ocorre há mais de 100 mil anos na Terra, mas
sim pelos seres humanos em suas relações sociais capitalistas, que submetem
o planeta à subsunção real e o arruínam, podemos concluir que os perigosos
problemas do Antropoceno só podem ser atacados se ocorrer uma substituição
do modo de produção capitalista, seus valores e relações de poder37.
Não seria a primeira revolução social da história, na medida em que, após a era
glacial no fim do Pleiostoceno (entre 2,588 milhões e 11,7 mil anos atrás), o aumento
da temperatura no Holoceno favoreceu o desenvolvimento de culturas humanas
no planeta. A revolução neolítica com o sedentarismo, a agricultura e a pecuária
começam aí38. Podem-se destacar, então, duas grandes revoluções prometêuticas: a
neolítica com o uso do fogo e a industrial com as máquinas de combustível fósseis.
Porém, esta última apresenta impactos na esfera planetária – ar, água e solo – levan-
do o planeta a múltiplas crises – social, econômica, ecológica, entre outras. Contra
essas crises – principalmente a ambiental – propõe-se a radiation management
(gestão de radiação) e a carbono capturing and storage (captura e armazenagem
de carbono), mas qualquer tentativa no campo da geoengenharia ou da engenha-
ria climática aponta para o vazio, pois as verdadeiras causas ficam fora do foco39.
O argumento do Capitaloceno de Moore não é culpa; trata-se de identifi-
car o sistema que vem devastando a vida neste planeta. Trata-se de esclarecer
a história do capitalismo. Assim, o Capitaloceno é uma maneira de começar a
perguntar como a acumulação de capital, a busca pelo poder e a coprodução
da natureza formam um todo orgânico e evolutivo. Esse todo é uma “ecologia
mundial”. Dizer capitalogênico é, portanto, invocar não apenas a economia – o
que quer que isso signifique –, mas também o poder e a violência que tornaram
possível a acumulação infinita40.

36 MCBRIAN, J. Accumulating extinction: planetary catastrophism in the necrocene. In: ALTVATER, E. et al. Anthropocene
or capitalocene?: Nature, history, and the crisis of capitalism. Pm Press, p. 116-37, 2016.
37 ALTVATER, op. cit.
38 Ibidem.
39 ALTVATER, op. cit.
40 MOORE, J. W. The Capitalocene, part I: on the nature and origins of our ecological crisis. The Journal of Peasant
Studies, v. 44, n. 3, p. 594-630, 2017.

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Quanto à segunda contribuição da abordagem do Capitaloceno de Moore,


ela oferece uma nova perspectiva sobre o capitalismo e sua atual crise sistêmi-
ca, desenvolvendo uma teoria de acumulação de capital ecologicamente cen-
trada. O princípio organizador do pensamento de Moore41 é uma crítica ao que
ele denomina de Aritmética Verde ou Pensamento Verde, também presente no
Antropoceno, que divide o mundo em duas categorias separadas: Sociedade e
Natureza. Moore42, ao criticar a inspiração dessa divisão no dualismo cartesiano,
procura substituí-lo por uma teoria que vê a humanidade, portanto a organiza-
ção social humana, como uma parte orgânica da natureza e, em seguida, de-
senvolver uma teoria ecologicamente centrada no capitalismo e suas dinâmicas.
A metodologia, a teoria e a análise de Moore43 são fortemente influencia-
das pela teoria dos sistemas mundiais, desenvolvida por Immanuel Wallerstein
e Giovanni Arrighi: “O capitalismo é [...] melhor entendido como mundo-ecolo-
gia de capital, poder e reprodução na teia da vida”44. Moore45 argumenta que é
necessário desenvolver uma linguagem, um método e uma estratégia narrativa
que coloque os oikeios no centro; isto é, “a relação criativa, generativa e multica-
mada de espécies e meio ambiente. O oikeios nomeia as relações pelas quais os
humanos agem – e são influenciados por toda a natureza”46.
Por “teia da vida”, Moore47 quer dizer “natureza como nós, como dentro de
nós, como ao nosso redor”. A alternativa de Moore48 ao Pensamento Verde não
começa nem com humanos nem com natureza, mas com as relações que co-
-produz múltiplas configurações da humanidade na natureza, organismos e
ambientes, vida e terra, água e ar. Para lidar com esses conjuntos infinitamente
complexos ou “pacotes” de relações, Moore usa vários termos hifenizados para
denotar abstração; em sua opinião, “’História’ [...] é a história de uma ‘dupla inter-
nalidade’: humanidade na natureza/natureza na humanidade”49.

41 MOORE, 2015, op. cit.


42 Ibidem.
43 Ibidem, p.14.
44 Ibidem, p.4.
45 Ibidem.
46 Ibidem, p.3.
47 MOORE, 2015, op. cit. p.3.
48 Ibidem.
49 MOORE, 2015, op. cit., p.5.

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Humanidade na natureza é, para Moore50, um compromisso humano com o


resto da natureza. É ecologia do ponto de vista da agência humana. Já o conceito
de “capitalismo-na-natureza” é um pouco diferente, já que Moore51 desenvolve
uma definição mais expansiva do capitalismo, “não um sistema econômico [...]
não um sistema social; é uma maneira de organizar a natureza”. Para Moore52,
O conceito governante do capitalismo é que ele pode fazer com a natureza o que
quiser, que a natureza é externa e pode ser codificada, quantificada e racionaliza-
da para servir ao crescimento econômico, ao desenvolvimento social ou a algum
outro bem maior. ... [Mas, enquanto isso], a teia da vida está ocupada, remexen-
do as condições biológicas e geológicas do processo do capitalismo. A “teia da
vida” é a natureza como um todo: natureza com um n enfaticamente minúsculo.

Moore53 define ainda “mundo-ecologia” como “o processo através do qual as


civilizações, elas próprias forças da natureza, são envolvidas na coprodução da
vida”. A ecologia-mundo chama a atenção para o rico mosaico do pensamento
relacional sobre capitalismo, natureza, poder e história. Também “diz que a rela-
cionalidade da natureza implica um novo método que compreende a humani-
dade na natureza como um processo histórico mundial”54.
Assim, a crise atual é singular e múltipla. Não é uma crise do capitalismo e
da natureza, mas de modernidade na natureza. Essa modernidade é um mun-
do-ecologia capitalista. Como preleciona Elmar Altvater55, com o Holoceno, o
capital pôde se expandir e se tornar sujeito da história. Nem a natureza, nem a
humanidade civilizada; agora são os seres humanos socializados no capitalismo,
os mestres da história. Eles se curvam diante dos ditames do capital, e volun-
tariamente, pois o capital os captura e domina como um fetiche dos Deuses. O
sistema mundo capitalista é, desde o começo, não apenas um sistema imperia-
lista de dominação, mas também um sistema ecológico global (world ecology)
de pilhagem de gente e da natureza. O imperialismo não é somente econômico,
mas também ecológico56.

50 Ibidem.
51 Ibidem.
52 Ibidem, p.2-3.
53 Ibidem, p.3.
54 Ibidem, p.3.
55 ALTVATER, op. cit.
56 ALTVATER, op. cit.

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Moore57 conclui que essa teoria centrada em oikeios inverte as questões-cha-


ve do Pensamento Verde que buscam respostas sobre como a humanidade foi
separada da natureza e causa danos ecológicos. Em vez disso, ele argumenta,
as questões principais tornam-se “como a humanidade é unificada com o resto
da natureza na teia da vida” e “como a história humana é uma história coprodu-
zida, através da qual os humanos colocam a natureza para trabalhar – incluindo
outros humanos – para acumular riqueza e poder?”58.

4 ALGUNS DESAFIOS DO DEBATE


O Capitaloceno precisa ser entendido dentro da teia/relações de forças que
disputam e perpassam a noção-síntese do Antropoceno. A tensão decorrente
dessas disputas demonstra que ele é um conceito contestado e atravessado por
diferentes narrativas, nem sempre convergentes, sobre o início de uma nova era
e as prováveis alternativas à crise sistêmica59.
Principalmente após 2016, com a deliberação do Congresso Internacional
de Geologia sobre a procedência da tese de que estamos numa nova era geo-
lógica, o Antropoceno lançou a humanidade em uma seara de perplexidade e
incerteza científica, discursiva e política. A ruptura promovida pelo advento do
Antropoceno vem gerando a necessidade de revisões de concepções e premis-
sas científicas em diversas áreas e, nesse processo, desencadeando uma corrida
epistemológica e política em torno da interpretação e implicações do fenômeno.
A amplitude e a “humanização” do Antropoceno têm gerado diversas con-
trovérsias, como a determinação do limite de uma unidade de tempo geológi-
co controlado por humanos, o que, muitas vezes, também implica atravessar as
fronteiras entre as ciências naturais, as sociais e as humanidades. Aqui, a maior
preocupação de alguns estudiosos do Antropoceno é evitar, por um lado, que a
inevitável politização do debate reproduza as divisões existentes entre as ciências
naturais e as ciências sociais e que, por outro, o conceito torne-se antipolítico,
reduzindo o espaço potencial para discordância60.

57 MOORE, 2015, op. cit.


58 Ibidem, p.9.
59 SVAMPA, M. El Antropoceno como diagnóstico y paradigma. Lecturas globales desde el Sur. Utopía y Praxis Latinoa-
mericana, v. 24, n. 84, 2019.
60 BARRY; MARLIN op. cit.

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D E B AT E S I N T E R D I S C I P L I N A R E S X I

Por ser um conceito aberto a uma abordagem pan-disciplinar61, o Antropo-


ceno, potencialmente, reforça a crítica ao caráter institucionalizado de especia-
lização da ciência moderna e, de certa forma, revitaliza e exacerba a “guerra das
ciências” ao mesmo tempo que impele a um diálogo mais intenso e cooperativo
entre as disciplinas. A dilatação sem precedentes do lastro temporal e espacial
engendra enormes desafios e reflexões ontológicas e epistemológicas, dificil-
mente solúveis nos limites de uma única ciência, região, tempo e cultura. Nesse
sentido, o Antropoceno vem exigindo, pelo menos, a trabalhosa tarefa de inte-
gração de diversas formas de conhecimentos e saberes para repensar questões
complexas e importantes, a exemplo das políticas ambientais.
Enquanto atesta e torna mais preocupante o fracasso sistemático de políticas
ambientais nacionais e globais, o Antropoceno obriga a rever a premissa holocê-
nica de natureza implícita nessas políticas. De maneira mais ampla, o ambiente é
cada vez mais conceitualizado como uma construção híbrida na qual influências
humanas e não humanas estão inextricavelmente entrelaçadas – essa percepção
permitiu indiscutivelmente o florescimento de uma agenda de re-ambiente na
esfera da conservação da biodiversidade, por exemplo. À medida que um nú-
mero crescente de comentaristas declara o início da época do Antropoceno, e
as fronteiras entre sociedade e natureza ficaram borradas, o objeto da política
ambiental não pode mais ser tão facilmente definido em relação a uma única
ideia da natureza como um deserto intocado, abrindo a perspectiva de uma
multi, ou mesmo uma pós-agenda natural e ambiental para o século XXI62.
No Antropoceno também ressurge a contradição da ciência que promove e ava-
liza a destruição e a concentração de poder e, por outro lado, contribui para desvelar
essa trajetória, suas mazelas e elaborar alternativas. O termo eleva a um novo pata-
mar a crítica da politização da economia e da ciência instalada, conforme Beck63, na
Sociedade de Risco. Embora insuficiente, tendenciosa e seletivamente atacada pelo
negacionismo, a ciência continua a ser uma peça imprescindível no tabuleiro políti-
co e das políticas. O Capitaloceno é um bom exemplo de como abordagens críticas
podem reelaborar achados “neutros” e se tornarem antídotos à captura reformista e
conformista que disputam o Antropoceno, como a do “bom Antropoceno”.

61 Ibidem..
62 Ibidem.
63 BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

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Alguns tentam imunizar o conceito do Antropoceno contra o “pantanoso


terreno da política”64 onde “sucumbiram”, por exemplo, temas como a susten-
tabilidade e as mudanças climáticas. Contudo, o impacto da nova era e tudo
que está em jogo torna inevitável a disputa pelo legado simbólico e material
do Antropoceno por diferentes narrativas e forças políticas. Como sugerimos
anteriormente, o “bom Antropoceno” representaria a versão da apropriação
hegemônica do termo, na tarefa estratégica e perene, mas cada vez mais desa-
fiadora na reprodução do status quo capitalista, de restaurar a sua legitimidade,
nem que seja apenas conquistando o bônus da dúvida65.
Embora se reconheça que não sem um custo e necessidade de reparos, o
“bom Antropoceno” é interpretado e festejado pelos denominados ecomoder-
nistas como a consagração da supremacia humana sobre a natureza. Aqui o
“bom Antropoceno”, confrontando a narrativa apocalíptica do “mau Antropoce-
no”, com suas desigualdades brutais e impactos maciços, enaltece o otimismo
e a capacidade humana de lidar com a desigualdade global e enfrentar gran-
des ameaças ecológicas. No seu tecno-otimismo, projetos de geoengenharia
em larga escala66, instrumentos econômicos, administrativos e tecnológicos,
ou seja, mais modernização capitalista, seriam suficientes para fazer frente às
grandes ameaças à humanidade. Mais ainda, possibilitariam “novas glórias” para
a humanidade67. Alinhado ao neoliberalismo, os ecomodernistas compartilham
da premissa da “pós-política”, ou seja, que com a superação de problemas eco-
nômicos, sociais e ideológicos estruturais, as questões centrais que restariam
seriam aquelas sobre as melhores formas de gestão, coordenação e integração
de esforços. Dessa maneira, num continuísmo repaginado, os ecomodernistas
almejam reforçar o gerencialismo tecnocrático e a centralização decisória nos
atores mais competentes (poderosos), suprimindo evidências de pluralidade e
de poder68. Superada a meta maior da modernidade, de controle e submissão
total da natureza, não haveria limites que não pudessem ser superados pela ca-

64 BARRY; MARLIN, op. cit.


65 BECK, op. cit.
66 CRUTZEN, op. cit.
67 FREMAUX, op. cit.
68 MEYER, J. M. Vocations of (environmental) political theory in the Anthropocene. In: ARIAS-MALDONADO, M.; TRACH-
TENBERG, Z. Rethinking the environment for the anthropocene: Political theory and socionatural relations in the
new geological epoch. London: Routledge, 2019.

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D E B AT E S I N T E R D I S C I P L I N A R E S X I

pacidade infinita do capitalismo de garantir o avanço da humanidade no siste-


ma-mundo capitalista arquitetado pelas economias dominantes.
Uma leitura crítica do Antropoceno aponta justamente para a fronteira final
de um capitalismo que se pretende infinito, invencível e parasita na sua com-
pulsão pela acumulação perpétua: “o grande segredo e a grande realização da
civilização capitalista foram não pagar suas contas. As fronteiras tornaram isso
possível. Seu fechamento é o fim da Natureza Barata – e com ele o fim da cor-
rida livre do capitalismo”69.
Enfim, a versão ecomodernista do “bom Antropoceno” vem sendo confron-
tada por diversos autores e vertentes que buscam forjar outras formas de leitu-
ras que possam superar, ou ao menos minimizar os efeitos, do Capitaloceno, a
exemplo da perspectiva decolonial70,71,72,73. A periferia do mundo moderno tem
muito por se preocupar, tanto num desfecho apocalíptico, quanto num inte-
grativo74, ou em qualquer combinação possível dos dois. Entretanto, o fracasso
da versão dominante de modernidade, colonizadora de inúmeras formas, e sua
ameaça à vida na terra constatada pelo Antropoceno, fortaleceram as demandas
por outras visões de mundo – e de natureza.
Para Escobar75, o que se observa como expressão da resistência nos terri-
tórios da América Latina ao “Um Mundo” da globalização capitalista de corte
neoliberal e sua “ontologia dualística” são as lutas ontológicas. Na defesa de
outros modelos de vida, ou de ontologias relacionais, e dos direitos aos ter-
ritórios históricos, os povos indígenas, camponeses e afrodescendentes têm
também no ambivalente Antropoceno um poderoso argumento contra o
projeto espoliador-extrativista neocolonizador. A nova era do “antropos” se-
ria mais um testemunho, talvez com credibilidade e escala jamais vistas, da
perversidade, destrutividade, arrogância, cinismo e racismo dos modelos de

69 MOORE, 2015, op. cit. p. 19.


70 DAVIS, H.; TODD, Z. On the importance of a date or decolonizing the anthropocene. ACME: An International E-Journal
for Critical Geographies, v. 16, n. 4, 2017.
71 HARAWAY, D. J. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Duke University Press, 2016.
72 CHAKRABARTY, D. The climate of history: four theses. Critical inquiry, v. 35, n. 2, p. 197-222, 2009.
73 LEWIS; MASLIN, op. cit.
74 TORRES, S. O antropoceno e a antropo-cena pós-Humana: narrativas de catástrofe e contaminação. Ilha do Desterro,
Florianópolis, v. 70, n. 2, p. 93-105, maio/ago. 2017.
75 ESCOBAR, A. Territórios da diferença: a ontologia política dos “direitos ao território”. Desenvolvimento e Meio Am-
biente, v. 35, 89-100, 2015.

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desenvolvimento impostos aos povos da periferia e que vêm exacerbando a


perda da biodiversidade, a mudança climática e o aumento do ritmo de de-
vastação ambiental pelas indústrias extrativistas76,77.
Até que ponto o debate Antropoceno/Capitaloceno poderá afetar e ser
afetado pelas ontologias relacionais é uma terra ainda desconhecida. De
qualquer forma, diante da abertura de um novo (último?) ciclo de violação
de direitos humanos e ambientais pelo neoliberalismo, na caça pelas coisas
baratas78 na América Latina79 e em outras partes periféricas do mundo, parece
que essa reflexão é inevitável e inadiável. Além do que, é muito provável que
o Antropoceno venha a se tornar uma das principais referências imaginárias
nos próximos anos para entender, criticar, defender e propor mundos, locais
e globais, existentes e possíveis.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscamos fazer uma breve introdução ao debate do Antro-
poceno e uma das suas derivações, o Capitaloceno. Desnecessário dizer que
este texto é insuficiente para dar conta de um tema recente e que, dada a sua
grande fecundidade, amplitude e novidade, não para de se ramificar por di-
versas áreas de conhecimento e vieses políticos e epistemológicos. Buscamos
aqui antes fazer um convite ao envolvimento nesse processo, que amplia e
atualiza consideravelmente a leitura da crise atual e das suas possíveis impli-
cações e soluções.
Em especial para o Brasil, diversas frentes de pesquisa se abrem, a exemplo
e mais genericamente, a questão de como o país contribuiu para o Antropo-
ceno, principalmente na sua condição histórica de colônia extrativista, e no
último terço de século, como economia neoextrativista, sempre fornecedora
de trabalho, natureza e energias baratas. É importante considerar esse pro-
cesso em regiões específicas, como as mais “desenvolvidas” e as de fronteira
como as do norte e centro-oeste do país. Em outra frente, as respostas a esse

76 SVAMPA, op. cit.


77 MOORE, 2015, op. cit.
78 Ibidem.
79 SVAMPA, op. cit.

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movimento, inclusive as diversas formas de resistência de movimentos sociais


e ambientais e as ações contraditórias do Estado, podem ser analisadas sob
uma nova perspectiva. Para nós, latino-americanos, outras questões emergem
desse grande discussão e controvérsias como a inclinação colonial e eurocên-
trica do Antropoceno e do Capitaloceno e as suas implicações em termos da
participação na produção de conhecimentos sobre esses fenômenos e nas
possíveis políticas resultantes deles.
A perspectiva humana no século XXI não é totalmente feliz e o Antropoceno
reforça o pessimismo construído em torno dos desanimadores resultados das
políticas ambientais e de narrativas como o desenvolvimento sustentável, a
modernização ecológica e a economia verde. Podemos estar experimentando
não apenas uma transição de uma fase do capitalismo para outra, mas tam-
bém algo mais épico: o colapso das estratégias e relações que sustentaram a
acumulação de capital nos últimos cinco séculos. No futuro, o Antropoceno/
Capitaloceno poderão ser apenas mais um triste relato de um dar-se conta,
muitas vezes revisitado, de como o capitalismo capturou a história natural e
humana e a conduziu para uma catástrofe global em escala jamais vista, a não
ser por grandes episódios naturais excepcionais como o bombardeamento de
grandes meteoritos.
O Antropoceno/Capitaloceno nos desafia a enfrentar questões caras à ciên-
cia como a “guerra das ciências” naturais e sociais e conciliar tensões históricas
entre episteme e política. Talvez a ameaça cada vez mais inconteste da extinção
da espécie humana seja uma razão suficiente e necessária para testar o que de
melhor podemos fazer para pactuar alguns entendimentos e ações essenciais
no intuito de pôr em movimento a inventividade humana na construção de
um mundo que valha a pena ser salvo. Nessa perspectiva, sem desconsiderar as
contribuições geológicas e de tantas outras leituras do Antropoceno, uma pers-
pectiva fundada no Capitaloceno parece-nos mais consistente com a necessária
politização, resistência e re-existência dos que lutam contra a catástrofe, a veloz
redução das possibilidades futuras e de sonhar com uma nova era para humanos
e não humanos no planeta Terra.

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