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ANTROPOCENO E CAPITALOCENO:
NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS COMBATES
1 INTRODUÇÃO
A proposição da pan-narrativa do Antropoceno em 2002 assinalou uma in-
flexão na forma de interpretar a crise civilizatória que paira sobre a humanidade.
Ela demarca o fim do Holoceno, era geológica de relativa estabilidade climática
iniciada cerca de 12 mil anos, e que foi alterada por uma série de descontinui-
dades espaço/temporais – mensuradas em termos da fixação de nitrogênio, da
acidificação dos oceanos, dos níveis atmosféricos de dióxido de carbono ou da
perda de biodiversidade. Mais importante, o Antropoceno atribui à humanidade
(antropos) status e magnitude de uma força geológica. Na era do Antropoceno3,4
é cada vez mais reconhecido que o modo como a vida humana se organiza é
ecologicamente prejudicial e põe em risco a existência da maioria dos seres vi-
vos5,6,7. O crescimento exponencial de nossa liberdade e poder, ou seja, de nossa
habilidade de transformar a natureza, é traduzido em uma limitação de nossa
liberdade, incluindo a desestabilização das próprias condições de vida biológica.
Especialmente desde a Revolução Industrial, ou mais precisamente da invenção
1 Doutor em Geografia; docente do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Estadual de Londri-
na; fzcoltro@gmail.com; ORCID https://orcid.org/0000-0002-6261-3182
2 Doutor em Ciências Sociais; docente do Departamento de Administração e do Programa de Pós-Graduação em
Administração da Universidade Estadual de Londrina; benilson@uel.br; ORCID http://orcid.org/0000-0002-7256-7618
3 CRUTZEN, P. J. Geology of mankind. Nature, v. 415, n. 6867, p. 23, 2002.
4 CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. Global change newsletter. The Anthropocene, v. 41, p. 17-18, 2000.
5 BARNOSKY, A. D.; MATZKE, N.; TOMIYA, S.; WOGAN, G. O. U.; SWARTZ, B.; QUENTAL, T. B.; MARSHALL, C.; MCGUIRE, J. L.;
LINDSEY, E. L.; MAGUIRE, K. C.; MERSEY, B.; FERRER, R. A. Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived? Nature, v.
471, p. 51-57, 2011.
6 IPPC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. AR5 Climate change 2014: impacts, adaptations
and vulnerability. Cambridge/New York: Cambridge University Press/IPCC, 2014.
7 ASSESSMENT MILLENNIUM ECOSYSTEM. Ecosystems and human wellbeing: the assessment series. Washington:
Island, 2005.
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2 ANTROPOCENO
A Terra seguiu uma evolução determinada pelas forças geológicas desde sua
origem, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Ao longo dessa jornada, passou por
transformações significativas em sua crosta e atmosfera. Nos últimos 3 bilhões
de anos, a vida floresceu em nosso planeta de modo lento, inicialmente. Uma
espécie peculiar apareceu há 200 mil anos e evoluiu a ponto de desenvolver a
civilização que temos hoje. A dominação da espécie humana está sendo de tal
modo importante que está influenciando alguns componentes críticos do fun-
cionamento básico do sistema terrestre. Entre elas, o clima e a composição da
atmosfera11. Apesar de sermos uma única espécie entre os estimados 10 a 14
milhões de espécies atuais, e de estarmos habitando a Terra muito recentemente,
nos últimos séculos estamos alterando profundamente a face de nosso planeta.
O desenvolvimento da agricultura e o início da Revolução Industrial levaram a
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12 Ibidem.
13 GUERRA, A. T. Dicionário geológico, geomorfológico. Secretaria de Planejamento e Coordenação da Presidência da
República. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1987.
14 Ibidem.
15 Ibidem.
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16 Ibidem.
17 CRUTZEN, op. cit.
18 Ibidem.
19 LEWIS, S. L.; MASLIN, M. A.; Anthropocene: Earth system, geological, philosophical and political paradigm shifts. The
Anthropocene Review, v. 2, n. 2, 2015.
20 LUZ, L. M.; MARCAL, M. dos S. A perspectiva geográfica do antropoceno. Revista de Geografia (Recife), v. 33, n. 2,
2016.
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3 CAPITALOCENO
Jason Moore é um dos principais autores a problematizar a premissa “pós-
-social” do Antropoceno – que o reconhece como agente universal, excluindo
entre as suas causas os indivíduos, classes, sistema de poder e de privilégios –,
inserindo-o na perspectiva das ciências sociais, mais especificamente da geo-
gráfica histórica e da economia política marxista. Ele contesta a lógica simplista
de o Antropoceno ver apenas fatores antropogênicos nesse impacto à escala
planetária, sem o localizar numa determinada formação social capitalista. No
Capitaloceno, essa grande transformação do mundo é articulada num quadro
imperialista e colonial em que uma parte da humanidade é vista pela perspec-
tiva do eurocentrismo e que continua a usufruir do estatuto de centro de uma
história assente em determinismo tecnológico e no uso de recursos29. Assim,
dois aspectos centrais da abordagem de Moore podem ser destacados para
demarcar a sua perspectiva e a crítica ao Antropoceno: a indicação do capitalis-
mo como padrão histórico de relações sociais que coproduziu a atual crise, e a
diferenciada visão da relação sociedade/natureza assinalada na ecologia mundo
organizada pelo capital.
28 FREMAUX, A. The return of nature in the Capitalocene: a critique of the ecomodernist version of the “good Anthropo-
cene”. In: ARIAS-MALDONADO, M.; TRACHTENBERG, Z. Rethinking the environment for the anthropocene: Political
theory and socionatural relations in the new geological epoch. London: Routledge, 2019.
29 MOORE, J. W. Capitalism in the web of life: Ecology and the accumulation of capital. Verso Books, 2015.
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30 Ibidem.
31 Ibidem.
32 MOORE, J. W. Ecology and the rise of capitalism. University of California, 2007.
33 BRAUDEL, F. Por uma economia histórica. Revista de História, v. 7, n. 16, p. 343-350, 1953.
34 MOORE, 2015, op. cit.
35 ALTVATER, E. Crítica da economia política na praia de plástico e o fetiche do capital no Antropoceno. Revista Margem
Esquerda, v. 31, p. 69-84, 2018.
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O Antropoceno se torna fetiche, ele é criação, mas também, pelo duplo ca-
ráter de toda ação, é destruição, é acumulação e extinção de modo sem prece-
dentes e em escala planetária36. Se a destruição no planeta não resulta da ação
da humanidade no geral, como ocorre há mais de 100 mil anos na Terra, mas
sim pelos seres humanos em suas relações sociais capitalistas, que submetem
o planeta à subsunção real e o arruínam, podemos concluir que os perigosos
problemas do Antropoceno só podem ser atacados se ocorrer uma substituição
do modo de produção capitalista, seus valores e relações de poder37.
Não seria a primeira revolução social da história, na medida em que, após a era
glacial no fim do Pleiostoceno (entre 2,588 milhões e 11,7 mil anos atrás), o aumento
da temperatura no Holoceno favoreceu o desenvolvimento de culturas humanas
no planeta. A revolução neolítica com o sedentarismo, a agricultura e a pecuária
começam aí38. Podem-se destacar, então, duas grandes revoluções prometêuticas: a
neolítica com o uso do fogo e a industrial com as máquinas de combustível fósseis.
Porém, esta última apresenta impactos na esfera planetária – ar, água e solo – levan-
do o planeta a múltiplas crises – social, econômica, ecológica, entre outras. Contra
essas crises – principalmente a ambiental – propõe-se a radiation management
(gestão de radiação) e a carbono capturing and storage (captura e armazenagem
de carbono), mas qualquer tentativa no campo da geoengenharia ou da engenha-
ria climática aponta para o vazio, pois as verdadeiras causas ficam fora do foco39.
O argumento do Capitaloceno de Moore não é culpa; trata-se de identifi-
car o sistema que vem devastando a vida neste planeta. Trata-se de esclarecer
a história do capitalismo. Assim, o Capitaloceno é uma maneira de começar a
perguntar como a acumulação de capital, a busca pelo poder e a coprodução
da natureza formam um todo orgânico e evolutivo. Esse todo é uma “ecologia
mundial”. Dizer capitalogênico é, portanto, invocar não apenas a economia – o
que quer que isso signifique –, mas também o poder e a violência que tornaram
possível a acumulação infinita40.
36 MCBRIAN, J. Accumulating extinction: planetary catastrophism in the necrocene. In: ALTVATER, E. et al. Anthropocene
or capitalocene?: Nature, history, and the crisis of capitalism. Pm Press, p. 116-37, 2016.
37 ALTVATER, op. cit.
38 Ibidem.
39 ALTVATER, op. cit.
40 MOORE, J. W. The Capitalocene, part I: on the nature and origins of our ecological crisis. The Journal of Peasant
Studies, v. 44, n. 3, p. 594-630, 2017.
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50 Ibidem.
51 Ibidem.
52 Ibidem, p.2-3.
53 Ibidem, p.3.
54 Ibidem, p.3.
55 ALTVATER, op. cit.
56 ALTVATER, op. cit.
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61 Ibidem..
62 Ibidem.
63 BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscamos fazer uma breve introdução ao debate do Antro-
poceno e uma das suas derivações, o Capitaloceno. Desnecessário dizer que
este texto é insuficiente para dar conta de um tema recente e que, dada a sua
grande fecundidade, amplitude e novidade, não para de se ramificar por di-
versas áreas de conhecimento e vieses políticos e epistemológicos. Buscamos
aqui antes fazer um convite ao envolvimento nesse processo, que amplia e
atualiza consideravelmente a leitura da crise atual e das suas possíveis impli-
cações e soluções.
Em especial para o Brasil, diversas frentes de pesquisa se abrem, a exemplo
e mais genericamente, a questão de como o país contribuiu para o Antropo-
ceno, principalmente na sua condição histórica de colônia extrativista, e no
último terço de século, como economia neoextrativista, sempre fornecedora
de trabalho, natureza e energias baratas. É importante considerar esse pro-
cesso em regiões específicas, como as mais “desenvolvidas” e as de fronteira
como as do norte e centro-oeste do país. Em outra frente, as respostas a esse
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REFERÊNCIAS
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