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RECIFE
2014
RAYANE MINÉIA VENCESLAU FERREIRA
RECIFE
2014
TERMO DE APROVAÇÃO
Banca examinadora
ABSTRACT
The present study pursues to understand and identify the process of adaptation
of the myth of Orpheus and Eurydice, originally sung by the poet Ovid, to the
comic book The Sandman - The Song of Orpheus, by Neil Gaiman, by making
use of the theory of adaptation tabled by Linda Hutcheon. Furthermore, an
analysis of the narrative structure that gives foundation to the comic book will be
made. Finally, the role of adaptations of canonical literary works in the
classroom and their contribution to the formation of readers will be questioned.
1. Introdução .................................................................................................... 9
5. Conclusões ................................................................................................ 39
1. Introdução
simples de mostrar que a mitologia está “por trás da literatura e das artes” e
principalmente de mostrar que ela está intimamente ligada com a maioria das
expressões de que eles têm acesso e admiram afinal, quem nunca quis ser um
super-herói?
Cirne afirma que os quadrinhos “são uma narrativa gráfico visual, com
suas particularidades próprias, a partir do agenciamento de, no mínimo, duas
imagens desenhadas que se relacionam” (2000, p.14). Já Eisner (2001, p.8),
diz que os quadrinhos são uma “interação de palavra e imagem [...], uma
hibridação bem sucedida de ilustração e prosa”.
Como dito por Oliveira, foi nos Estados Unidos, no fim do século XIX
que foram encontradas as condições apropriadas para a disseminação das
histórias em quadrinhos como uma forma de comunicação em massa. Nesta
época as cadeias jornalísticas encontravam-se em pleno desenvolvimento e
possuíam ampla aceitação do público leitor. Portanto, convêm-se afirmar que
a primeira história em quadrinhos de alcance massivo é a famosa The Yellow
Kid, publicada pela primeira vez em 1896 (VERGUEIRO, 2001, p.10). As
histórias humorísticas do personagem “menino amarelo”, criado por Richard
Outcault, eram contadas de forma breve, e buscavam atingir o público migrante
nos Estados Unidos usando uma linguagem simples e de fácil compreensão.
Assim, The Yellow Kid propagou-se de forma global, juntamente com outras
histórias, com a ajuda syndicates, organizações responsáveis pela distribuição
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Galo acrescenta:
3. O projeto Sandman
deste personagem visando outro tipo de público. Surgia assim a graphic novel
The Sandman, publicado pela Vertigo, ramificação da DC Comics que tem a
proposta a publicar histórias em quadrinhos com temas e personagens mais
densos direcionados para um público diferenciado e mais maduro.
Esta nova versão tem início quando, pouco depois de escapar de um
mago que o aprisionou durante 70 anos, Sandman, ou Sonho, volta ao seu
reino, o Sonhar, lugar onde todos os seres vivos – sendo deuses ou homens,
musas ou demônios – têm seus sonhos e capacidades imaginativas
guardados. Lá ele descobre que depois de todo esse tempo, tanto ele próprio
quanto seu reino sofreram drásticas mudanças.
É a partir deste cenário que foram desenvolvidas todas as 75
publicações, organizadas em dez arcos, de The Sandman, publicados entre
1988 e 1996.
Neil Gaiman utilizou-se das mais variadas fontes para compor Sonho e
os outros personagens da série, construindo histórias extremamente
elaboradas, cheias de digressões e contos menores que se interligam tanto
com outros números da própria HQ, com personagens e narrativas de outras
HQs do universo da DC Comics e de outras fontes literárias.
Dentre essas fontes, a combinação de mitologias se sobressai. Há uma gama
de personagens que descendem dos mitos gregos e romanos (como no caso
de “A Canção de Orfeu”, analisada neste trabalho), nórdicos, judaico-cristãos,
egípcios, árabes, dentre outros.
O próprio protagonista da série é fruto de tais combinações: ele é uma
referência a personagens de mitologias presentes no mundo todo. O homem
de areia no conto do dinamarquês Hans Christian Andersen, Ole Lukoeje ou
“Olavo fecha-olhos” é a entidade responsável por transportar os homens ao
mundo dos sonhos. E.T.A. Hoffman escreveu um célebre conto homônimo
adaptando a famosa lenda do homem de areia (sandman, em inglês) que sopra
areia nos olhos das crianças para fazê-las dormir (MENESES, 2009, p. 146).
Na obra de Hesíodo, Oneiros é o sonho, filho de Nix, a noite. Já Ovídio dá o
nome de Morfeu à personificação dos sonhos (HACQUARD, 1990, p. 108).
Outra característica marcante é a intertextualidade das imagens de The
Sandman. Além de todas as referências literárias, há também muitos
elementos da cultura pop dos anos 80 e 90, como as músicas, as roupas, e até
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A fidelidade à obra fonte foi por muito tempo o critério utilizado para
decidir se uma adaptação é boa ou ruim. Entretanto Linda Hutcheon (2011, p.
28) afirma que tal fidelidade não deve ser tratada como elemento principal,
julgamento ou foco de análise de uma obra adaptada, pois essa avaliação
baseia-se na suposição implícita de que o adaptador busca apenas reproduzir
o texto a ser adaptado. Segundo a teoria de Hutcheon, uma adaptação é uma
“recodificação” e “tem sua própria aura” (2011, p.27; 40). Huctheon ainda
explica que adaptações são “traduções em forma de transposições
intersemiótica de um sistema de signos para o outro” (2011, p. 40).
Seguindo esta teoria, o fenômeno da adaptação pode ser definido a
partir de três perspectivas distintas: primeiramente, como “uma transposição
anunciada” de uma os mais obras; depois como um “processo de criação” que
envolve tanto uma “(re-)interpretação quanto uma “(re-)criação” e por último
como uma forma de intertextualidade, assim como proposta por Mikhail
Bakhtin.
mesmo que estes modos não sejam comuns ao impresso, uma vez que há a
estrutura narratológica pertencente à literatura de cunho narrativo e há também
o apelo da percepção visual.
Figura 3 – Os Perpétuos como a família de Orfeu. (da esquerda para a direita) Morte, Delírio,
Destino, Desejo, Desespero e Destruição. Nesta história todos os Perpétuos ganham nomes
gregos e se vestem à moda helênica.
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para que consiga chegar ao Mundo Inferior e resgatar Eurídice, mas este se
recusa a ajudá-lo.
Pressentindo a tristeza e os pensamentos suicidas de Orfeu, seu tio
Olethros o aconselha a procurar a ajuda de sua tia Tileute, abrindo para ele um
portal até o reino dela.
Chegando lá Orfeu pede a mesma coisa que pediu ao seu pai: uma
maneira de resgatar Eurídice do Mundo Inferior. Diante da insistência do
sobrinho, Tileute aceita a proposta de Orfeu, mas o explica que é impossível
descer até o Inferno de Hades sem que se morra primeiro. Orfeu, irredutível,
continua a insistir e então Tileute decide conceder-lhe o desejo e orienta-o a
viajar até Taenarium para encontrar o portal que enfim o levará ao encontro de
Hades e de Eurídice.
Na história original os papéis cumpridos por Sonho e Morte são na
verdade de Júpiter e Mercúrio (HAQQUARD, 1990, p. 23), mas a introdução
destes personagens nestes dois episódios da jornada de Orfeu também faz
parte da adequação dos personagens dos quadrinhos ao mito, e reforçam seus
papéis de reguladores da narrativa.
Após a longa viagem Orfeu finalmente encontra a entrada do Mundo
Inferior e consegue passar pelo barqueiro que transporta as almas entregando-
lhe um ramo de visco. Tocando sua lira Orfeu emociona o barqueiro e
consegue escapar do Cérbero, cão de três cabeças que guarda a porta do
Inferno.
Passando pela legião de almas condenadas e entoando uma belíssima
canção com ajuda da sua lira Orfeu consegue chegar até Hades e Perséfone.
Então coisas extraordinárias acontecem: a roda de Íxion para, os abutres
param de bicar o fígado de Cicyus, Tantalus para por um instante de tentar
saciar sua fome e sede. Orfeu fez, apenas com sua canção, “as fúrias
chorarem” (GAIMAN, 2012, p.83). Estes três personagens também são
mencionados em Metamorfoses, fazendo alusão a outros mitos. Íxion foi
castigado a girar amarrado em uma roda por Zeus por ter assassinado seu
próprio sogro e por tentar seduzir Hera. Cicyus, ou Prometeu, enganou a Zeus
roubando o fogo e dando-lhe aos humanos para seu benefício. Zeus o castigou
fazendo com que uma ave o bicasse o fígado que voltava a crescer
permanentemente. Também castigado por Zeus, Tântalo passa fome e sede,
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mas não consegue nunca saciar-se. Ele recebeu esta punição por ter servido
seu próprio filho Pélops, preparado em um guisado num banquete (GRIMAL,
1982, p. 29).
Por conta deste feito incrível, Hades e Perséfone permitem que Orfeu
leve Eurídice ao “mundo de cima” com a única condição de que no caminho de
volta à Trácia ele não fale, nem olhe para trás. Só assim Eurídice poderia voltar
a salvo para o mundo dos mortais. No entanto, durante o caminho, ao
desconfiar ter sido enganado por Hades, Orfeu quebra a regra preestabelecida
e vê Eurídice desvanecer e voltar ao Mundo Abissal.
Inconsolável, Orfeu exila-se em uma floresta onde toca
incessantemente. Algum tempo depois sua mãe, preocupada, vai ao seu
encontro e avisa-lhe que as Bacantes estão no curso da floresta onde ele se
encontra. Orfeu decide ficar e enfrentar as mulheres no frenesi do culto a
Dionísio.
Quando as Bacantes chegam, pedem para que Orfeu se junte ao culto.
Diante da resposta negativa elas o esquartejam violentamente e jogam sua
cabeça ao rio. Entretanto, Orfeu havia pedido um favor à Morte e, uma vez que
já havia descido ao mundo inferior, não poderia mais morrer, ou seja, Morte
não tinha mais poder sobre a vida do seu sobrinho.
A cabeça de Orfeu resiste e é encontrada por seu pai, Oneiros. Ele diz
que fará com que os moradores de uma ilha próxima o abriguem e o protejam
dali em diante. É deste modo que tem fim a publicação “A Canção de Orfeu”,
que coincide com o fim do mito de Orfeu narrado por Ovídio já que ele morre
ao ter sua cabeça arrancada é jogada no rio Hebro pelas bacantes e depois é
encontrada na ilha de Lesbos. Desde então, os habitantes desta ilha têm um
incomum talento para as artes, principalmente para a música.
Entretanto em The Sandman a história de Orfeu se prolonga por
milênios, pois ele permanece até a contemporaneidade na ilha. Ele aparecerá
mais duas vezes em publicações posteriores da HQ. A primeira na edição de
número 41, chamada Vidas Breves, na qual temos conhecimento que uma
família natural da ilha onde Sandman deixou Orfeu recebe o fardo assisti-lo
através dos tempos. Geração após geração todos os membros da família
vivem na ilha para servir a Orfeu, que canta todas as manhãs proporcionando
momentos de deleite e de alegria a seus anfitriões.
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não haja mais a possibilidade de alcance deste objetivo. De certa forma, uma
função exigirá a outra até que a história chegue ao seu fim.
Em “A Canção de Orfeu”, Aristaeus chama Eurídice em particular para
um conversa, mas ao invés disso, ele tenta violentá-la. Esta função acarretará
na morte de Eurídice, que por sua vez desencadeará na busca de Orfeu por
sua amada. É nesta busca, na qual será baseada a situação-problema, que
deverá ser resolvida no fim desta história, este é o objetivo do personagem
principal. Nota-se claramente que a primeira função foi decisiva para o
aparecimento de uma função sucessora, criando a cadeia de acontecimentos
narrados.
Desse modo as ações formarão um conjunto de acontecimentos que
irão compor o conteúdo da narrativa e se realizarão dentro de certo tempo e
espaço. Assim, as funções formam um conjunto de unidades que seguem uma
lógica causal e resultam ou causam algo dentro do contexto da narrativa. Neste
nível será formada uma organização interna que dará coerência aos sentidos
que virão a se formar.
As funções podem se dividir entre funções cardinais (ou núcleo), que
são as mais relevantes para a história por constituírem um momento decisivo,
que “iniciam ou concluem uma incerteza”; e as funções catálises que
constituem um adorno para história ou “preenchem” algum espaço.
Barthes (2011) ainda explica que existem mais duas classes nas quais
as funções podem encaixar-se: o grupo das funções distributivas (o que chamei
até então apenas de funções) e as funções integrativas (ou índices).
Enquanto as funções distributivas (cardinais e catálises) remetem “um
ato complementar e conseguinte” (NIEL, 1978, p. 55), as funções integrativas
ou (índices ou informações) ajudarão o leitor a caracterizar os personagens, os
cenários, as ideologias dando-lhe as informações necessárias ao sentido geral
da história.
Em “A Canção de Orfeu”, a passagem na qual Orfeu adentra nos
domínios de Tileute é um bom exemplo no qual é possível identificar com
clareza funções cardinais e catálises.
Inferno de Hades, porém não se sabe se Morte irá conceder o desejo de seu
sobrinho.
A função catálise acontece quando, devido à estranheza sentida por
Orfeu em relação à ambientação do espaço em que adentra nos domínios de
sua tia, a Morte utilizasse de seus poderes para mudar a aparência
contemporânea, incompatível ao mundo da Antiguidade vivido por Orfeu, para
uma estética mais condizente com a qual o personagem conhece e convive.
Esta mudança não é decisiva para a busca de Orfeu, por isso serve como uma
informação adicional para o enredo.
Já a função índice neste quadro é facilmente notada na organização
contemporânea que Orfeu encontra nos domínios de Morte. Há luzes elétricas,
móveis, bichinhos de pelúcia, fotografias, peças de vestuário, e outros objetos
que não pertencem à Era Clássica. Orfeu se sente confuso e não entende os
objetos e a decoração do lugar. Apesar dessas informações não interferirem no
pedido de Orfeu, e muito menos na decisão de Morte, elas informam ao leitor
que os Perpétuos são atemporais e visitam o passado ou o futuro podendo
situar-se no tempo e no espaço livremente.
Quando essas funções (distributivas e integrativas) se unem de forma
lógica e cronológica tem-se o que Barthes chama de sequência:
utilizado nas HQs e que pode ser considerada como “o narrador onisciente”
(VERGUEIRO, 2006, p. 62). Ela situará o leitor e indicará mudanças de tempo,
espaço, localização, e etc.
Figura 5 – A viagem de Orfeu até a entrada do Inferno de Hades é narrada através de legendas
que agirão como o narrador onisciente.
5. Conclusões
narração dizem respeito à atitude tomada pelo narrador para com o leitor. Nas
HQs essa relação pode ser estabelecida tanto através das legendas, que
atuarão como o narrador onisciente da “visão por trás”, quanto através da
passagem dos quadrinhos, que prossegue juntamente com a ação dos
personagens e serão parte da “visão com”. Apesar transição ser desenhada de
forma fragmentada o leitor fará a junção das unidades narrativas mentalmente
e assim construirá o sentido e o fluxo da narração.
Assim, a adaptação de “A Canção de Orfeu” dá uma nova roupagem
para o mito, tornando-o numa história imagética mais acessível e aproximando
a mitologia do grande público.
Aproveitar-se da popularidade da HQ é uma boa forma de fazer com
que os alunos adentrem no mundo da mitologia de forma leve, porém eficaz. A
presença de outros personagens míticos além de Orfeu e Eurídice dá vazão a
estudos que direcionem para outros mitos, como o de Perséfone, de Íxion, de
Tântalo e etc., expandindo o conhecimento em mitologia clássica.
Além disso, a rapidez e dinamicidade que a história ganha após de sua
adaptação possibilita um trabalho de leitura e interpretação com o texto integral
de “A Canção de Orfeu” na sala de aula, no lugar de optar por exercícios que
façam uso de excertos, sendo viável até mesmo em situações nas quais os
professores não tenham tempo de trabalhar com versões mais longas.
No entanto, para que as adaptações se tornem um bom recurso
didático de iniciação à literatura mítica é necessário criar um trabalho que
desperte o senso crítico e histórico nos alunos para fazê-los reconhecer as
especificidades tanto da obra fonte quanto da obra adaptada. Também é
importante que os alunos reconheçam as adaptações como adaptações e não
julguem a quadrinização a partir de sua fidelidade para com a obra fonte ou
ainda, como um recurso literário inferior ou de segunda categoria.
Levando em consideração o nível de leitura dos estudantes brasileiros,
principalmente aqueles que estudam em escolas públicas, usar quadrinizações
na sala de aula significa fazer com que os alunos entrem em contato com obras
literárias que eles dificilmente teriam acesso em outra de situação. Significa
aproximá-los dos cânones e fazê-los compreender que a mitologia está
presente na vida deles e que é possível abordar essas obras a partir de
diferentes perspectivas. Por fim, significa despertar o interesse pelas obras
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6. Referências Bibliográficas
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NIEL, André. A análise estrutural dos textos. São Paulo: Cultrix, 1978.