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Percurso a dois

Ana Gonçalves Magalhães


Não há quem duvide que arte - ou artes visuais, para usar uma expressão do meio especializado – é aquilo que se produz em
pintura, escultura, gravura e fotografia. Hoje, linguagens como as do vídeo e a da performance ou da instalação também são
próprias daquilo que comumente chamamos de arte, e foram legitimadas pelo seu ingresso no museu de arte. Essa instituição,
datada do período da Revolução Francesa, reflete uma das características da sociedade moderna e evoluiu na tentativa de dar
conta de novas práticas artísticas que surgiram e que, por sua vez, eram tomadas como paradigmas para novas reflexões
sobre a arte. Instaura-se, desse modo, uma dinâmica em que a arte tem um campo delineado. Fazem parte desse campo o
artista, a obra de arte, a instituição artística, o crítico de arte e o público (espectador das obras). É em torno desses cinco
elementos e dos debates gerados em seu interior que podemos chamar alguma coisa de “arte”.

Num primeiro momento (século 16), a pintura, a escultura e a arquitetura são conhecidas como as “artes do desenho”. Esse
foi o passo mais importante tomado pelos artistas de então para a constituição de um campo próprio da arte. As “artes do
desenho” começavam a se afirmar como mais do que simples conhecimento técnico, e davam ao artista o status de um
indivíduo cuja prática era produtora de saber e expressão da Idea [projeto, conceito].
Na segunda metade do século 18, vê-se o surgimento de duas disciplinas no interior da academia que se dedicariam ao estudo
da arte: a estética e a história da arte. No campo dos debates sobre a estética, vem se formar um novo conceito de arte, o das
Belas-Artes – ainda, a pintura, a escultura e a arquitetura -, que tinha por razão de existir a expressão do Belo (expressão da
Idea). A boa obra de arte, então, media-se por sua capacidade em manifestá-lo pelo bom uso da perspectiva, o arranjo
equilibrado da composição, a aplicação harmônica de cores, a dosagem justa de contrastes entre luzes e sombras, tudo isso
para melhor representar as grandes narrativas da história, de sentido moral.

O advento da arte moderna inaugura uma nova realidade para as práticas artísticas, uma vez que a obra de arte entra numa
instância maior de circulação, que perpassa o mercado, e na qual o museu de arte transforma-se para receber uma nova
produção. Esse momento coincide com o fenômeno da abstração na pintura, que vai ser regida por outros critérios: o artista,
agora, ocupa-se de seu métier como linguagem. A pintura, por exemplo, deixa de ser uma “janela” através da qual nosso
olhar se abre para a cena representada, e passa a ser o suporte bidimensional.
Em 1929, funda-se o primeiro museu de arte moderna do mundo, o MoMA em Nova York, que viria a servir de modelo para
os demais museus de arte moderna. Sua criação e interpretação de práticas artísticas modernistas estabelecem paradigmas
novos para aquilo que consideramos arte. Eles acirravam a ruptura que as vanguardas haviam provocado com a tradição
artística e colocavam a produção modernista num outro espaço: o museu de paredes brancas e, supostamente, neutras, que
pareciam reforçar a impressão de uma autonomia da obra de arte em relação às demais instâncias da vida - como se o artista e
seu trabalho não estivessem imersos num contexto preciso e que a abstração pudesse ser entendida como uma linguagem
universal. A designação daquilo que chamamos de arte, então, modifica-se mais uma vez: não estamos mais falando de
Belas-Artes, mas sim das Artes Plásticas.

Nos anos 1960, os artistas tomam consciência de que a arte constitui um sistema de circulação de objetos e idéias, por assim
dizer, que têm de ser validados pelas instituições, pela crítica e pelo público. Isso vai se desdobrar nas vertentes
conceitualistas da arte e gerar o que, a partir do final da década e início dos anos 1970, ficou conhecido entre os críticos
como o campo expandido da arte. Daí a origem de formas novas de manifestação artística, como a instalação, a performance
e o vídeo. É o momento também da incorporação da fotografia pelo museu de arte moderna, bem como de engajamento de
artistas e grupos de artistas em movimentos sociais emergentes. A necessidade de criar novas formas de fazer arte, e a
incorporação de linguagens que tradicionalmente estavam fora do campo da arte, está diretamente ligada a esse novo
contexto. No momento em que, especificamente no campo da arte, coloca-se em questão sua definição, e em que os artistas
passam a utilizar-se de outras linguagens (que não a da imagem), estamos falando em arte contemporânea. Não cabe mais
falar em “Artes Plásticas” e passamos a falar em “Artes Visuais”, porque as práticas artísticas não tomam mais por critério a
exploração formal, por via da abstração. O final do século 20 também nos colocou outro problema: a imagem não é mais um
suporte privilegiado da arte, uma vez que o mercado, os mecanismos de reprodução e mesmo a tecnologia e a ciência
também fazem uso dela e geram discursos a partir dela. Em meados dos anos 1990, especialistas da história da arte vão falar
em “Estudos da Imagem” ou “Estudos Visuais”, pois estávamos confrontados com outro tipo de produção de imagens,
também detentoras de um conhecimento/discurso, e que por vezes se apropriava do discurso artístico com outro fim.
Ademais, falamos agora em dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais globais. No caso da arte, há uma instância de
circulação de obras de arte e artistas, bem como discursos críticos de proporção global. Um aspecto que parece ser muito
próprio desse momento é justamente um boom de mostras de tipo bienal no mundo.

As práticas artísticas recentes parecem ter inaugurado outro modo de produção, que não resulta naquilo que entendemos por
“obra de arte”. Alguns críticos vão falar em “projeto de arte”, pois ele por vezes empresta a forma de uma proposição, que se
desdobra ao longo do tempo. Em seu desdobramento, pode adquirir novas formas, apropriar-se da linguagem escrita, do
formato biblioteca ou coleção (ou arquivo), ou de formas de oralidade, estabelecer colaborações entre músicos, bailarinos,
cantores, cientistas, filósofos, etc. Se parecemos sair do campo da estética (percepção “dos sentidos”), os “projetos de arte”
nos instigam a refletir sobre conteúdos e formas, cuja associação já é tão consolidada que nos esquecemos de que são
postulados ou noções construídas a partir de uma visão de mundo. Mais do que nunca, a arte hoje cumpre seu papel de
produtora de conhecimento, e o que talvez a defina como um campo específico não tem tanto a ver com as linguagens que
utiliza, ou com os suportes originados dentro das práticas de artistas. Ela advém do fato de suas proposições nos
apresentarem questionamentos em aberto. O importante é criar por hábito “freqüentar” a arte. Nessa “freqüentação” é
possível, aos poucos, construirmos uma reflexão sobre o mundo, sobre a humanidade. É também nela que somos capazes de
exercitar a sensibilidade, finalmente entendida como aquela parte da inteligência humana que guarda seu mistério, mas que
nos torna humanos por isso mesmo.
Ana Gonçalves Magalhães é historiadora da arte e professora da Divisão de Pesquisa: Teoria e Crítica do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP).

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