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Realismo, Racionalismo, Surrealismo A arte no entre-guerras Briony Fer David Batchelor Paul Wood CAPITULO 3 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE Briony Fer Introdugdo: 0 Surrealismo e a diferenga Em vez de iniciar com o que confere unidade ao Surrealismo, gostaria de comegar com asua diversidade e com a idéia de diferenga. Acredito que as idéias de diversidade e dife- renga sejam fundamentais para a sua caracterizacao, e certamente estdo entre os seus tracos mais interessantes. A produgdo surrealista pode ser considerada, desse ponto de vista, um campo de representacao em constante mudanea, que usa freqiientemente a dife- rena para gerar significados. Refiro-me aqui as diferengas que encontramos nos tra- balhos surrealistas entre si,! “assim como as diferencas produzidas em uma variedade de representacdes — por exemplo entre os trabalhos surrealistas e aqueles livremente cha- mados de “construtivos”, como os discutidos nos capitulos anteriores. Uma das maneiras como a diferenca se expressava no Surrealismo era pela metafora do “feminino”, ¢ eu iria ainda mais longe dizendo que o “feminino” constituia para o Sur- realismo a metéfora central promotora da diferenca. Em 1945 André Breton escreveu que: tempo vird em que as idéias das mutheres se afirmardo em detrimento das dos homens, cuja faléncia ¢ hoje tio tumultuosamente completa. [Essa tarefa] cabe particularmente aos artistas, ainda que seja somente em protesto contra esse escandaloso estado de coisas, para assegurar a suprema vitoria de tudo que vem do sistema feminino no mundo em oposigéo ao sistema masculino ... (Breton, citado em R. Parker e G. Pollock, Olid Mistresses, p. 138) Nés nos concentraremos em como 0 “feminino”, e o que isso significa, era representado ho Surrealismo — tanto nos trabalhos dos homens como nos das mulheres artistas, ¢ também como parte de uma fantasia do moderno que estava em desacordo com a visio racionalista abordada no capitulo anterior. O aspecto sexual da modernidade era crucial para os surrealistas, e gostaria de me deter nisso segundo ponto de vista de nossas preo- cupagdes, hoje, com a questo da diferenga sexual. Tentarei delimitar claramente, no decorrer do capitulo, as diferencas entre as preocupagdes surrealistas e as minhas pré- prias, mais contemporaneas — por exemplo, a distincao entre o Freud “deles” e o Freud da teoria psicanalitica mais recente. Desde 0 inicio, o Surrealismo era um movimento heterogéneo. Incluia escritores, pin- tores, poetas e fotégrafos; mais tarde, no final dos anos 20, diversificou-se na produgio de objetos ¢ filmes. Além disso, os surrealistas produziram uma grande quantidade de revistas, utilizando-as como plataforma para debate. Mesmo se nos restringirmos 4 pin- fura surrealista, concluiremos que nunca houve uma unidade de estilo. Por exemplo, os surrealistas jamais recomendaram que se atribuisse maior valor 4 arte abstrata, ou 4 figu- ‘Duas exposigSes na Hayward Gallery, em Londres, foram momentos decisivos paw a interpretagio do Sur- sealismo, Dadi e Surrealismo Revistos (1978) foi organizada em torno das revistas ¢ resenhas criticas, mostran= do um conjunt teaordindrie di tos (D. Ades, Dada ane Surrealism Reviewed}, L Amour fou $2936) examinow as fotografias surrealistas ¢ explorou sua preocupagio com a sexualidade o desejo (R. Keauss.e J. Livingston, L'Amour for). Devo muito aqui 90s trabathos de Ades e de Krauss 172 SURREALISMO, MITO F PSICANALI 15d. Salvador Dali, Les Accommindations des désirs (As acomoda sj0s), 1929, Sleo ¢ eolagem sobre madeira 22 x35 cm. Colegio Jacques and Natasha Gelman, Foto: Malcolm Varon, cortesia do Metropolitan Muscum Art, Nova York, © pEMART PRO ARIE mv /DACS, Londres, 1993, rativa, Pinturas que pareciam muito diferentes em termos formais - tais como Pintura, de Joan Miré [153], de 1927, ¢ As acomadapies de desejos, de Salvador Dali [154], de 1929 — podiam ser vistas como partes de um mesmo projeto. Em Pintura, de Mir6, uma linha sutil atravessa a superficie azul intensa do quadre deixando sugestdes de formas, tais como a do seio no lado direito da pintura, mas nunca permitindo a imagem tornar-se definida ou fixa: ela permanece sempre no nivel da suges- tao. Por outro lado, na pintura de Dali, uma paisagem onirica é retratada em detalhe, cor formas situadas num espaco ilusionista, ainda que ildgico. Imagens de ledes, formiga: rochas de formatos extravagantes, figuras sc abracando, podem ser reconhecidas, mas as relagdes entre elas sao delibcradamente enigmaticas, como num sonho. Esses trabalhos tinham em comum, portanto, o efeito de desorientar as expectativas habituais. O efeite desejado era o de revelar o inconsciente na representagdo e de desfazer as concep¢bes rei nantes de ordem ¢ realidade. Nao se tratava apenas de questionar a “realidade”, mas também de questionar a forma pela qual cla era normalmente representada. No primeiro manifesto surrealista de 1924, foi deixado em aberto 0 modo como o “psico-automatismo no seu estado puro” deveria ser expresso ~ se por meio da palavra “ou por outro meio qualquer” (Manifesto of Surrealism, 1924, p. 26). Breton, seu autor era ele proprio escritor e pocta, 0 que explica seu ponto de partida na literatura, cerca- do como estava por poetas, como Louis Aragon e Paul Eluard, os quais também haviam Patticipado do grupo de Littérature. Mas a recusa ao dogmatismo era também parte do compromisso surrealista com a invengao, com o inesperado e com 6 minimo de inter- veneao possivel permitida ao consciente. Pode parecer curioso que, quando Breton discutiu a relagao da pintura com o Surrealismo, em um ensaio publicado em mais de quatro ntimeros de La Revolution Surréaliste entre 1925 ¢ 1927, ele comecasse ndo com um pintor “surrealista”, mas com Pablo Picasso [155]. André Masson, um dos artistas envol- INTRODU! ‘AO: OSURREALISMO F A DIFERENGA 173 155. Pablo Picasso, Homme & la moustache (Homen: com bigode), 1913, dleo-e tecida colado sobre tela, 66 x 47 cm; reproduzido em La Réoolution Surrénliste, n° 4, p. 26, 1925, com o titulo de Etudiant (Estudante), Musée Picasso, Paris. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique ©pacs, Londres, 1993. vidos no grupo surrealista, opGs-se a isso, nao somente porque Picasso nao pertencia ae grupo, mas também porque, na época, seu trabalho estava associado ao tessurgimento do Classicismo. Aparentemente, o objetivo de Breton em seu ensaio “Surrealismo e pin- tura” era exigir que © Surrealismo passasse “por onde Picasso passou e passard nova- mente”. Ele deixava claro, no entanto, que “sempre se oporia a rétulos", erro que © Cubismo havia cometido no passado ~ “mesmo que”, acrescenta em nota de rodapé, “fosse um rétulo surrealista” (La Revolution Surréaliste, n° 4, p. 30). Masson, “alguém tao préxime de nés”, como Breton o definira no primeira mani- festo, produziu imimeros desenhos “automaticos” a partir da metade dos anos 20, mui- tos des quais foram reproduzidos em La Révolution Surréaliste. Os desenhos atuam em varios niveis de sugestividade, alguns se referindo muito explicitamente a fontes artis- ticas (como os trabalhos de Picasso) ¢ outras, como Quare de vulva eduxisti me [156], del neando obsessivamente 0 corpo de uma mulher... ou seriam duas mulheres, ou uma mulher e um homem? Essa situa de ambigitidade é a condigao imposta a nossa k tura da imagem. A imagem consiste em uma linha de tinta rabiscada sobre a pégina, reme- tendo freqiientemente aos pontos erdticos do corpo — por exemplo, as marcas arranha- das, que representam os pélos puibicos. As vezes a pena flui livremente, mais adiante é convulsiva e desajeitada. A analogia erdtica é quase imposta ao observador, mesmo que alinha de Masson apenas sugira as partes do corpo, que nunca so claramente definidas. Dois corpos — 0 do homem indicado por uma cabega masculina — esto entrelagados e sho praticamente insepardveis. A ambigiiidade é necessdria, pois a imagem se expressa em fragmentos, partes representando o corpo inteiro. Observar a imagem € mover-se de um fragmento a outro, e cada indicio é destituido pelo proximo. Essa situacao corresponde a idéia de Breton do Surrealismo como um “estado de completa perturbagao mental”. E o.uso de uma linha tragada a mao-livre, a conotacae de “rabisco” mesmo, definem uma 174 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE 156, André Masson, Quare de 2uloa eduxisti me (Por que mre tirastes do titero?), 1923, bico-de-pena sobre papel, 27x 20 cm Calegao privada. © pacs, Londres ¢ ApACH, Paris, 1993, abordagem totalmente contraria 4 precisao técnica e as linhas tracadas a régua que vimos no capitulo anterior. Para Breton, novamente, “nesta embriagante competicao, as imagens aparecem como 05 tinicos.guias da mente”, tornando os desejos explicitos. Para citar um exemplo bem posterior: Meret Oppenheim fez Objet: dejewner en fourrure [157] quando solicitada a colaborar em uma exibicdo de objetos surrealistas na Galerie Charles Ratton em Paris em 1936. Ela comprou a xicara, o pirese a colher na Uniprix, a loja de departamentos, ¢ cobriu esses objetos de uso didrio com pele de gazela chinesa. O trabalho foi exibido em um armario repleto de objetos, alguns achados, outros comprados prontos e alguns, como este, montados. Breton foi o autor do titulo, que significa “desjejum em pele” e parodia o tema do dgjewner na pintura modema —de Dejeuner sur herbe, de Edouard Manet, até Le Grand Déjewner [138], de Femand Léger, no qual a modernidade foi projetada na figura do nu feminino. Aqui, entretanto, o objeto de uso didrio, produzido em massa e que havia sido colebrado por Léger e pelos puristas nos anos 20 como emblematico da ordem racional, geométrica, da vida moderna, foi transformado cm algo bastante diferente — em uma espécic de fetiche modermo. E a onipresenca da louca que importa aqui, ndoa sua qua- lidade de objeto produzido em série; a familiaridade da forma da xicara e do pires é destrui- da pela utilizacao de um material inesperado, pela impressio de ter sido feito de pele de ani- mal, e pela conotacao sexual. A combinagio € deliberadamente absurda, ¢ hd uma recusa em reconhecer a utilidade ou a suposta racionalidade do objeto produzido em massa. Um motive aparentemente aleatério ¢ incongruente foi concebido pelos surrealistas para desa- fiar a Iégica da mente racional e expressar um tipo de Idgica profunda, a do inconsciente, INTRODUCAO: © SURREALISMO F A DIFERENCA, Aeret Oppenheim, Objet: déjeuncr en fourrure (Objeto: desjejum em pele), 1936, xicara, pires e colher cobertos nal; xicara, 11 cm de didmetro, pires, 24 cm, ¢ colher, 20 em de comprimento (altura total ). Acervo, The Museum of Modern Art, Nova York. © pacs, Londres, 1993. 8. Man Ray, Objet: djeuaer ada. Reproduzida por cortesia de Mme. Biirgi 176 SURREALISMO, MITO B'SICANALISE 159. Dora Maar, Objef: déjeuner i "nn en fourrutre (Objeto: desjejum i em pele), 1936, Foto. Colegio Privada, Reproduzida por cortesia de Mme, Biirgi, mi MM Si i Objeto: desjejurm ent pele tornou-se um icone do Surrealismo quase imedi ser langado. Man Ray e Dora Maar fotografaram a pega [158, 159], ¢ ambos sos fologrificos para ampliar oefeito de disjungio, Man Ray iluminou a xicara eo pires pela frente, para que surgisse uma sombra por tris, reproduzindo 0 efeito do arranjo “comum’” dos objetos 4 mesa, que se choca com o material extraordindrio de que sao feitos. Dora Maar vai mais além ao colocar o objeto, visto de cima, num guardanapo quadrado. O objeto foi programado para aparecer na foto como uma forma enlouquecida do familiar. Esse desejo de chocar, de confundir as expectativas convencionais, era certamente um aspecto impor- ante da prética surrealista. Mas era também parte de uma estratégia mais ampla — 0 esforgo do Surrealismo em trabalhar do ponto de vista do inconsciente, Ainda que 0s surrealistas cele brassem a “descoberta”, por Freud, do inconsciente — questi qual deverei retornar em seguida -, 0 proprio Freud estava menos entusiasmado com a interpretagao do seu trabalho por eles. Em uma breve correspondéncia com Breton, fica evidente que Freud rejeitou o Sur- realismo principalmente porque, para ele, qualquer tentativa deliberada de excogitar os efei- tos do inconsciente era uma conlradig&o em termos. Num sentido mais restrito, segundo Freud, era esse 0 caso. Mas, no contexto cultural em que os surrealistas atuavam, a estraté- gia mais efetiva disponivel a eles parecia ser falar a partir da posigdo do irracional, tentar falar da loucura “a partir do lugar da propria loucura”/? nao do ponto de vista da razao. tamente apds usaram recur- ’Mulher”, mulheres e desejo As mulheres, para 05 surrealistas, estavam mais préximas daquele “lugar da loucura", do inconsciente, do que os homens, ¢ é através de uma construgao particular da “mulher” que a preocupacio surrealista com a fantasia e © inconsciente foi definida Por exemplo, a propria Oppenheim tinha sido um dos temas de uma série de fotogra- fias de Man Ray publicada na revista surrealista Minofaure em 1934 [160]. Sua mao ¢ brag foram lambuzados com tinta de impressao, e seu corpo colocado nu contra uma roda de impressora. © erdtico € a maquina foram combinados aqui num modo que combatia a visao racionalista da modernidade. © Surrealismo valorizou e atraiu a atengao.para tudo 0 que o “chamado a ordem’, discutido no capitulo 1, havia repri- {oudinesco, citadoem J. Rose, Sexuality in the Field of V malise @ as instituigbes médicas, p. 144, sobee a relacSo do Surrealismo conta INTRODUCAO: © SURREALISMO E A DIFERENCA 77 160. Man Ray, Erotigace voilée (Meret Oppesheim a In presse) (Erotica dissimulada [Meret Oppenheim na griifica]), 1933, foto. ‘Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris: © apace, Pari e Dacs, Londres, 1993. mido ~ 0 subterraneo da modernidade, o erético, 0 bizarro, a substancia inconsciente da atividade mental. A “mulher” tornou-se o objeto de desejo e também permaneceu um simbelo do deseja Oppenheim cra uma das vérias artistas que trabalhavam com o grupe surrealista nos anos 30 ¢, nas fotografias de Man Ray, era também um modelo sobre o qual a vida fantasiosa do Surrealismo era projetada. Escreverei aqui sobre alguns aspectos dessa “vida fantasiosa”, como ela foi elaborada na representagio, ¢ também, mais adiante, sobre como algumas mulheres vieram a trabalhar no interior da estrutura do Surrealismo, Talvez haja uma ten So envolvida aqui que eselareca aspectos contraditsrios no interior do préprio Surrealismo. Simbolicamente, 0 Surrealismo colocava a “muther’ em seu centro, como 0 foco de seus sonhos. primeiro ¢ o ultimo nuimero da revista La Révolution Surréaliste ilustram esse cendrio simbdlico de forma bastante vivida. No primeiro numero, de 1924, aparece 2 ilustraedo 161, que retine fotos de surrealistas, junto com Freud ¢ outros mentores, em forno de uma imagem central da anarquista Germaine Berton. As palavras no fim da pagina dizem: “E a mulher que langa a maior sombra ou projeta a mais intensa luz em ossos sonhos”, uma citagao de Charles Baudelaire. Berton havia assassinado um poli- co de extrema-direita e, em uma pequena nota na mesma revista, Aragon a celebrava como “aquela mulher perfeitamenfe admiravel que representa o maior desafio contra a 178 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE 161. Germaine Berton, rodeada por retratos dos surrealistas ¢ daqueles que admiravam, incluindo Sigmund Freud (ao lado de Germaine Berton, abaixo, & sua direita), La Revolution Surninliste, n° 1, p. 12, 1924. Reimpresso por Aro Press, escravidao, o mais belo protesto ante a opinido publica contra a detestivel mentira da feli- cidade” (Aragon, “Germaine Berton”), Ela permaneceu um simbolo poderoso de trans- gressdo (observe como Aragon usa as palavras “desafio” ¢ “protest”, em ver. de fazer dela apenas um simbolo de liberdade). A ilustragao 162 € do tltimo ntimero da revista, publicado em 1929. A pagina apa- fecia num contexto de indagagao sobre.o amor. Mostra os surrealistas, fotografados com 0s olhos fechados, dispostos em torno do quadre Nao vejo a (mulher) escondida na flores- ta, de René Magritte. A fantasia em comum (que eles véem em seus sonhos) esta cen- INTRODUGAG: 0 SURREALISMO E A DIFEREN( POTS AIM, 162, Fotos do grupo surrealista ao redor de Je me avis pas a (femme) cache dans la forét No vejo fa mulhes] escondida na floresta), de Reneé Magritte, La Revotution Suerréaliste, n 12, p. 73, 1924, Reimpresso por Arno Press, © aac, Paris ¢ acs, Londres, 1993, trada no corpo da mulher que ¢ representado pela pintura, em que 0 nu ocupa o lugar da palavra ausente na sentenca. Ela é circunscrita pela linguagem, ainda que denote o que estd “escondido” numa “floresta” — 0 panorama obscuro e complexe do incons- Gente. A mulher como “musa” do poeta e a mulher como 0 “outro”sdo motivos reeor- rentes no pensamento surrealista, os quais encontraremos novamente neste capitulo. Mas o objeto de suas fantasias é também, como se vé aqui, uma pintura, uma repre sentacao, uma fabricacdo mesmo, em comparagao com seus préprios fotorretratos que a circundam. Os sonhos que emergem no Surrealismé talvez envolvam 03 sonhos € as fantasias do inconsciente masculino, mas o modo pelo qual sao revelados é sempre uma questo de representacao. O modo como as artistas lidavam com a estrutura simbélica 180 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE central do Surrealismo complica ainda mais a natureza do imaginério com o qual o Sur- realismo lidava. Ao contrario da tendéncia “construtiva”, discutida no capitulo anterior, o Surrealismo colocaya a sexuualidade e o desejo no centro de suas preocupacces. E esse aspecto do Sur- realismo que discutiremos aqui, segundo a Gptica das questoes de diferenca sexual. Meu foco é obviamente parcial, mas suponho que, longe de despir Surmalismo de seu aspec~ to politico, a insisténcia surrealista na relagdo entre a modernidade ¢ a sexualidade era bastante abrangente em suas implicagdes politicas. A preocupacdo surrealista com a sexua- lidade trazia & discussao aquilo que fora reprimido pela tendéncia “construtiva”. A asso- ciacao € a sugestao eram positivamente cortejadas no imagindrio surrealista, o que podia também questionar a aparente pureza da forma “funcional” ou material tao cara aos pu- ristas, por exemplo. Uma caracteristica da pratica surrealista nas suas mais diversas formas ~ poesia, pintura, objetos, fotografia — era uma preocupagao com o que Aragon chamou de “uma mitologia do moderno” (Paris Peasant, p. 130), a qual, devo afirmar, atraiu atencdo para o cardter mitico de outros tipos de representacio, especialmente aqueles qué reivin- dicavam um forte lago com a “realidade”. E a mitologia que o Surrealismo construiu si centrava-se na “mulher como o “outro”, como estando mais préxima do inconsciente que os homens, e tentava habitar o mundo da “alteridade”, do inconsciente, indo além de suas fronteiras, com o intuito de questionar o que via como um mundo moralmente falido* Isso significava enxergar além das simples aparéncias e entender que, sob estas, jaz uma série de foreas psiquicas ¢ sociais sobre as quais os individ os tém pouco ou nenhum controle. Isso ajuda a explicar 0 interesse dos surrealistas por Sigmund Freud ¢ Karl Marc, 05 quai, de modos diferentes, sustentaram que as relacoes entre pessoas ou entre grupos sociais estavam veladas escondidas pelo que era normalmente aceito como “realidade”, Os surrealistas viam as idéias de ambos como meios de criticar a ordem social existente e acultura dominante, vista por eles como repressiva. Esse estado de repress, acreditavam, possufa tanto uma dimensao psiquica quanto social. Atualmente. com freqiiéncia, o mar- xismo e a psicandilise so vistos como pdlos apastos, ttn relacionado aos determinante: econdmicos e sociais da vida em sociedade, ¢.a outra associada a um dominio associal, psi- quico do inconsciente. Contudo, em alguns momentos no passado, ambos foram consi- derados formas radicais de questionamento e relacionados entre si, ainda que de forma complexa. © Surrealismoé um desses momentos hist6ricos. Ainda que este capitulo se con- centre no Surrealismo relacionado & psicandlise, gostaria de no perder de vista essa Conjuncae critica do psiquico e do social que estava no centro do projeto surrealista. Freud e 0 inconsciente O mode mais literal como 03 surrealistas se basearam em Freud foi utilizando varies de seus temas. Por exemplo, Max Ernst elegeu 0 personagem de Edipo como tema na cola- gem reproduzida na revista Le Surréalisme iu service de In Revolution em 1933 [163]. © desejo de Edipo por sua mie ¢ o citime rancoroso por seu pai, na tragédia grega, tinham sido propostos por Freud como componentes do drama central da vida psiquica. Mas, Mesmo nessa imagem, em que encontramos motivos freudianos bastante Sbvios, o tra- balho de Ernst vai além da mera ilustracdo ¢ emprega a colagem para montar uma figu- ra andrdgina em forma de esfinge, criada a partir de partes compostas. Entretanto, nao foram apenas motivos que © Surrealismo retirou de Freud ¢ sim, mais fundamentalmente, um sentido poetico dos mecanismos envolvidos no process do sonho. Le Revolution Sueréaliste incluia regularmente relatos de sonhos experimentados por membros do grupo. Ea forca da idéia do sonho estava no fato de representar tudo 0 que havia sido reprimido no estado de vigilia, Era Freud quem havia dito que “o sonho, como um todo, € 0 substituto distorcido de alguma outra coisa, algo inconsciente, ¢ .. a tarefa de interpretar um sonho 6 descobrir esse material inconsciente” (Freud, Introductory Lectures on Psychoanalysis, p. 144). E 08 processos que Freud identifica como operande no Ver a discussio de Gill Perry da idia de “alteridade” no capitulo 1 de Harrison et aly Pri Absteacaa, Sie Paulo, Cosac & Naify, 1998 (no pre). INTRODUCAO: 0 SURREALISMO EA DIFERENCA 181 163. Max Ernst, CEdtipe (Edipo), colagem, Le Surréalisme au service de la Reoolution, n° 5, 1933. © apacr/srapem, Paris e bacs, Londres, 1993. “sonho” eram cruciais para a abordagem surrealista, Freud afirmara que no sonho ha um contetido “manifesto” e outro “latente”. © manifesto ¢ 0 que aparece, o latente éo incons- clente expressando o que a mente ndo quer mostrar. A “condensacio” é o processo pelo qual o contetido latente ¢ condensado ou comprimido dentro do contetido manifesto. Isso pode ocorrer, por exemplo, em tipos de estruturas compostas encontradas em sonhos nos quais diversas pessoas, coisas ou acontecimentos so substituidos por um tinico elemen- to, O“deslocamento” é 0 proceso pelo qual o foco do sonho ¢ transterido de um clemento importante para um aparentemente insignificante por meio da censura. Os sonhos liber- tayam o inconsciente de um modo impossivel no estado de vigilia — como o faziam fend- menos relacionados, tais como sonhar acordado, atos falhos ¢ lapsos de memoria, Os sur- realistas estavam interessados nessas areas, pois buscavam o que Breton chamou de “arbitrariedade no mais alto grau” (Breton, “Manifesto of Surrealism”, 1924, p. 38). Para Freud, o inconsciente era a primeira e a mais importante Grae oda ¢ — esses “processos mentais so inconscientes em si mesmos ¢, de toda a atividade men- tal, apenas alguns atos ¢ parcelas singulares sio conscientes", Cntroductory Lectures, p. 46). O inconsciente & considerado por Freud como tendo sua propria estrutura e modos de expresso, que sio diversos daqueles que atuam no nivel consciente, Ele tem seus proprios impulsos, que so revelados apenas em algumias ocasides ¢ de modo necessariamente indi- reto. Oinconsciente, para Freud, refere-se também a infancia — -0 que foi reprimido em tenra idade pela nossa parte consciente. Para compreender os mecanismos do inconsciente, os realistas exploraram a linguagem e os processos de funcionamento do sonho. Olharam para 182 ‘SURREALISMO, MITO E PSICANALISE. dentro desi mesmos em busca do que era infantil, mas também exploraram os lapses de meméria, as repressées de toda uma cultura; voltaram-se para © passado, ou para os mitos ancestrais, com o intuito de questionar o presente ¢ imaginar uma saida para as condigdes aluais—como um meio de transgredir as fronteiras estabelecidas da representacao, Ainda que Breton tivesse mostrado interesse pelo trabalho de Freud enquanto atuava como auxiliar médico durante a Primeira Guerra Mundial, e que as idéias de Freud fossem amplamente conhecidas, as tradugdes de suas obras mais importantes s6 comecaram a apa- recer na Franga no decorrer dos anos 20. A interpretagio dos sonlios, por exemplo, cuja edigdo original é de 1900, nao havia sido publicado na Franga até 1925; A psicopatologia da vida cotidiana, de 1901, apareceu em 1922; Totem ¢ tube, de 1912-13, em 1924; e Trés ensaios sobre « teoria da sexuatidade, de 1905, somente em 1927 Isso sugere que na Franca dos anos 20 houve um interesse renovado ¢ vivo pelos textos de Freud, jd que os leitores podiam encontré-los facilmente. E, posto que, como tem sido freqiientemente notado, o trabalho de Freud tivesse se desenvolvido com base na Viena da virada do sécule ¢.nas neuroses da burguesia vienense, ele ainda produziria trabalhos importantes no decorrer dos anos 20 ¢ 30; na verdade, foi sé em 1924 que Freud passou a considerar a personalidade ¢ os pro- blemas especificos da sexualidade da mulher. E também uma caracteristica do trabalho de Freud o fato de que lida nao somente com individuos, mas também com as organizacoes mais amplas da Sociedade (Mal-estar na giéa € talvez 0 exemplo mais claro). Dessa forma, seu trabalho tesrico diferia dos interesses clinicos dos psiquiatras franceses (tais como Jean-Martin Charcot ¢ Pierre Janet), que, especialmente no inicio, exerceram grande influéncia em Breton. E isso explica por que foi Freud, e somente Freud, a pessoa a quem Breton ofereceu o crédito no primeiro manifesto (p. 10) de responsivel por trazer de volta A luz “aquela parte do nosso universo mental 3 qual fingiamos nao estar mais conoctados". Esses breves comentarios mostram o sentido, assim espero, de por que Freud ¢ a psi- canélise representaram uma espécie de impulso histérico no sentimento de revolta dos surrealistas. Freud oferecia um modelo explicativo para revelar o que era reprimido, para explorar 0 conterido “latente” mais do que o “manifesto” de sua época (para usar os termos de Freud sobre sua andilise dos sonhos). Em parte, isso implicava olhar para 0 “sub- terréneo” da modemidade, focalizando a sexualidade, 0 desejo e as ambigiiidades da dife- renga sexual. £ isso conduz minha andlise ao ponto final desta introdugao. Como poderia- mos entender o modo como as questoes da sexualidade foram tratadas pelo Surrealismo sem a ajuda da teoria psicanalitica em si? O trabalho psicanalitico de Freud e de outros for- neceram uma teoria da sexualidade. Por se tratar de uma teoria que aponta as diferengas entre homens e mulheres, entre masculino ¢ feminino, a teoria psicanalitica tem sido usada e desenvolvida por escritoras e criticas feministas como uma forma de explorar as relagdes entre os sexos ¢ as desigualdades basicas que existem em uma sociedade na qual os homens tém poder sobre as mulheres. © trabalho de Freud é visto as vezes como extre- mamente contrério 4s mulheres, como “falocéntrico”, excluindo o feminino exceto enquanto subordinado ao masculino. Mas outras feministas viram em Freud uma forma radical de questionamento no Ambito da sexualidade, e interpretaram sua obra, bem como as descobertas psicanaliticas posteriores - como o trabalho de Jacques Lacan -, sob a 6ptica feminista. Assim @ fizeram por entender que as teorias sociolégicas da sexuiali- dade falharam em explicar como certos padrées de comportamento, certas normas ¢ ati- tudes, sio internatizados pelos seres humanos, Essas teorias nos contam como os papé ateibuidos aos géneros podem ser socialmente determinados, mas nao explicam como as jerengas sociais sao reproduzidas interna e inconscientemente na vida psiquica. Embora Freud seja visto ds vezes como incentivador da idéia de que existem di rengas essenciais entre homens ¢ mulheres, seu trabalho tem um aspecto mais radical: ele ofereceu uma teoria da sexualidade na qual as diferengas entre homens e mulheres foram consideradas como produzidas pela culfiira, e no pela natureza, determinadas biologicamente. E no desenvolvimento das relagdes simbdlicas dentro da familia que iv As datas dessas tradugdex foram obtida em Ades, Dada anal Surrealism rot, p. 224, A NADJA DE BRETON 183 essas identidades sexuais sao construfdas. As relagdes familiares tém sido consideradas um modelo para as relacdes de poder, na forma como existem em uma sociedade patriar- cal. Posto de forma simplista, enquanto Marx diagnosticou os males do capitalismo, Freud diagnosticou os males do patriarcalismo. Ao longo deste capitulo, usarei elemen- tos de um método psicanalitico, ¢ meu objetivo € mostrar alguns dos caminhos pelos quais a psicanalise pode lancar uma luz no terreno simbélico em que o Surrealisme tra balhava, tanto.em seu aspecto social como psiquico. Ainda que o proprio Freud pensasse a psicandlise como uma nova ciéncia, 0s surrealistas claramente nao estavam intere: dos nas suas idéias enquanto principios cientificos. Certamente nao desejo reivindicar aqui uma base cientifica para a psicandlise, ou discutir sua aplicacao clinica. Ao contré- rio, gostaria de enfatizar as forgas metaféricas de alguns dos dramas e motivos psiqui cos descritos por Freud que alimentaram a imaginacao surrealista. Na verdade, suponho que parte do interesse das idcias de Freud esta no fato de serem elas proprias um tipo de construgao mitolégica, mas que pretende possuir alguma forga explicativa. Antes de considerar a importancia crucial de Freud para o Surrealismo, gostaria de me deter em uma historia criada pelo Surrealismo que persegue o tema do desejo e que se coloca claramente em contraste com as representagSes correntes da modernidade, notadamente a da racionalizacao. A Nadja de Breton “O mais sonhado de seus objetos” Em um ensaio chamado “Surreal 10: 6 tiltimo instantaneo da intelligentsia européia”, escrito em 1929, Walter Benjamin discute o interesse dos surrealistas em objetos que esta- vam se tornando obsoletos, que “comecavam a se extinguir” (p. 229). No antiquado ¢ obsoleto escondiam-se as mais bizarras coincidéncias que assombravam, e portanto caracterizavam, as experiéncias da vida moderna. “No centro desse mundo de coisas", Benjamin prosseguia, “esté o mais sonhado de scus objetos, a propria cidade de Paris” (p, 230), © foce da discussao de Benjamin ¢ o livro de Breton Nadja, publicado no ano anterior, O texto de Breton ¢ 0 relato de um encontro casual com uma mulher, Nadja — cujo nome, como ela diz. a Breton, é a primeira parte da palavra russa para esperanca, Para Breton, Nadja representa a promessa de amor. Embora o romance nao tenha um. final feliz, Nadja personificava a possibilidade de amor, com o desejo no papel da forca motriz que impelia o texto adiante — nem sempre de mancira ldgica, no sentido de uma clara seqiiéneia narrativa, mas seguindo a estratura da fantasia de Breton. Breton encontra Nadja enquanto ele vaga sem rumo pela cidade. No francés coloquial, flaner significa passear ou perambular. O fidueur é alguém que esté vadiando ou matan- ‘do 0 tempo. Ainda que Breton nao use o terma, suas andangas sem destino em Nadir caracterizam a atividade tipica do ldneur, como Baudelaire a definira na metade do sécu- lo xix. O flineur havia sido para Baudelaire um observador compulsive da modernidade, sempre a margem, distraido ¢ fragmentado pela experiéncia da vida moderna. O flanenr era de origem burguesa, mas déclass¢ (‘nao pertencente a nenhuma classe”), no sentido de que nunca poderia participar totalmente da vida social burguesa ou da vida das massas ~ele poderia meselar-se & populagdo, mas nunca fazer parte dela, Com Nadia, Breton vaga de um lugar a outro, principalmente dentro da propria Paris, ¢ se refere a ruas particula- tes, bairros e marcos da cidade. O fotégrafo surrealista Jacques-André Boiffard foi con- tratado para fotografar alguns desses lugares, e suas fotos deliberadamente nao memoraveis, discretas, si espalhadas pelo texto [164, 165]. Nadja de quem Breton “mesmo quando estou perto dela, estou ainda mais proximo das coisas que estao perto dela” (p. 104) ~ tomarse um simbolo dessas trocas de lugares e de coisas. Para Breton, a intimidade é sempre mediada pelo deslocamento dos objetos de desejo — sejam eles as luvas de Nadja, suas roupas ou a propria cidade —, nos quais ele centra sua atengao [166] Aauséncia de objetivo do fldneur é usada como um recurso estratégico por Breton. parte do que os surrealistas celebravam como um abandono necessario de controle 184 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE 165. Jacques-André Boiftard, La Librairie de UHumanite (A lizvaria de V Humanité), foto em A. Breton, Nadja, Paris, Editions sallimard, 1928. © vacs, Londres, 1993. 164. Jacques-André Boiffard, Boute Magenta devant le Sphi.x-Hétel (Boule ‘Magenta, em frente do Hotel Esfinge), foto em A. Breton, Nadja, Paris, Editions Gallimard 1928. © pacs, Londres, 1993. 166. Andnimo, Gant de femme aussi. (Uma nwa de mulher também), foto em A. Breton, Nadja, Paris, Editions Gallimard, 1928. consciente e uma submissao ao que pudesse acontecer, ao risco. Essa era uma fantasia de submissao a Paris, a cidade, a uma mulher em particular, Nadja, ¢ a mulher em geral Nadjaé uma mulher particular e é também a musa de Breton, mas ela foge de uma defi- niga. Quando Breton a encontra pela primeira vez, ela esta vestida pobremente; em outra vez que eles se encontram, ela esté impecavel. Ela tem encontros dtibios com outros homens, mas seu status € deliberadamente ambiguo. Ela ¢ Paris sio separadas e vinculadas ao mesmo tempo. Breton diz de Nadja (como diria um flaneur referindo-se a Paris): “Parece-me que a observo em demasia, mas como poderia ser 0 contrdrio?” (p. 104). O desejo, que ¢ o principal tema do livro, esta vinculado ao olhar, a observacao. Envolve tambem a submissio — ao perigo ou As possibilidades infinitas. A NADIA DE BRETON 185 ( O desejo énecessariamente fugidio e distraido. O objeto a ser alcangado torna-se, para Breton, quase secundario em relagao a prdpria busca: “Busca do qué eu nao sei, mas busea no sentido de envolver cada artificio da sedugao mental” (pp. 127-8). Isso, obviamente, cor- responde aos caminhos percorridos em torno da cidade, a busca no de uma esserice, mas de diversio, A busca poderia trazer ao jogo “cada artificio” e, melhor ainda, poderia pro- porcionar a fuga de uma situagao comum para um “maravilhoso estado de embriague ‘os momentos fugazes que ele experimenta com Nadja. Esses momentos so extraordinarios e, ainda assim, envoltos em banalidade, tanto nas partes demasiadamente familiares da idade por onde passam como nos relatos de Nadja sobre seus antigos amantes. Breton relata tudo isso numa narrativa fragmentada, proxima de uma colagem, e inclui trechos de seu prdprio didrio, falas diretas de Nadja, opinides sobre seus colegas surtealistas e comentarios sobre lugares dos circuitos ao redor de Paris. E um relato da experiéncia do encontro com Nadja e com a propria cidade, “E possivel”, escreve Breton, “que a vida necessite ser decifrada como um criptograma” (p. 133), ¢ ¢ isso que o seu texto faz. Para o leitor, os acontecimentos sao colocados como que arbitrariamente, numa situacdo de encontro. Falar em “acontecimentos” é superinvestir de significado o que ocorre — que, na verdade, é muito pouco. Além disso, ha pouca ou quase nenhuma explicagao Sobre 0 que ocorre, exceto fisicamente, ¢ o leitor é abandonado a “fuiria do sim- bolismo, uma prece ao deménio da analogia” (p. 128), assim como Breton em relacao as experiéncias que esta vivendo. Portanto, num modo curioso, o leitor é também situado como uma espécie de flanenr. O modo pelo qual o leitor “encontra” as fotografias de Boiffard é um exemplo inte- ressante disso. Elas correspondem aos lugares que Breton cita em seu texto; sao aparen= temente fotografias nao-descritivas de lugares, nao atraindo a atengdo come fotogral propriamente ditas. De certo modo elas s0, como observou Benjamin sobre a eserita sur- realista, “demonstragdes, senhas, documentos, blefes, falsificagdes, se voce quiser” ("Sur- realism: the Last Snapshot of the European Intelligentsia“, p, 227). Benjamin também res salta que a fotografia intervém de um modo estranho em Nadja: utilizando a convencao das citagdes eo mimero das paginas como legendas sob as fotografias, “faz. que as Tuas, portdes ¢ pragas da cidade se tornem ilustracdes de um romance barato” (p. 231). Isto faz delas tipos de “blefes", As fotos também sao dificeis de conciliar com o aparente propo- sito de Breton de usi-las como substitutas aos textos descritivos que ele considera va esse tipo de texto inadequado a tentativa surrealista de subverter a narrativa realista téenicas descritivas, As fotografias, num ccrto nivel, ilustram o texto, jd que sao de lugares onde Breton se encontra — como a livraria dizigida pelo jornal comunista LHir- mutnité [165], por onde ele inicia e de onde se desvia imediatamente, “partindo, sem obje- tivo, na dirego do Opera” (p. 71). O letreiro sobre a livraria do L’Humanité, “on signe ici” (“assine aqui"), aponta para uma entrada sombria, indefinida; contudo, Breton muda completamente de direcdo, Apesar da sua banalidade, as fotografias criam uma atmosfera peculiar. Elas compartilham certos tragos, particularmente a auséncia de pessoas, ¢ atuam como registros de onde Breton ou Breton ¢ Nadja estiveram. Além das fotografias, Nadja ¢ ilustrado com os proprios desenhos da protagonista [167, 168]. Estes intervém de uma forma igualmente estranha no texto. J4 me referi a como Breton usa muitas das falas diretas de Nadja: o leitor depara com as palavras “reais” ditas por ela, a Nadja “real”. E cla, por fim, que nao s6 estimula as acées, mas que da voz aos desejos (de Breton), Ela descreve Breton como o sol, o que sem duivida alimenta algum Prazer narcisista, ¢ 0 reconhece como scu mestre, Ao contrario das fotografias de Boiftard, os desenhos de Nadja sao descritos por Breton. Em um deles, caracterizado como “um retrato simbélico dela e de mim", Nadja é vista como uma sereia, ¢ Breton como um monstro com cabeca de aguia [167]. No outro desenho, as palavras L’Attente (“a espera”), L’Envie (’o desejo"), L'Amour ("0 amor’), L’Argent (“o dinheiro”) sio acrescentadas [168]. Para Breton, esses eram desenhos “automaticos” que revelavam o funcionamen- to do inconsciente feminino. No final do livro, Nadja vai para um hospicio. A “mulher” estava ligada a loucura, a histeria, e portanto ao primitivo, como mais préxima do irra- 186 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE A 5 : ae Arr my & ab Gres aba q masa 5 pe pth a ts 1) 167, Un portrait symbolique d’elle et de moi (Lim retrato simbtico dela e de mim), desenho em A. Breton, Nadja, Paris, Editions Gallimard, 1928, Sei i, 5 a oe 168. A exception din masque rectangulaire dont elie n. petit rien dire (Com excegio da miscara retangutar, sob a qual ela néo pode dizer nada), desenho em A. Breton, Nadja, Paris, Editions Gallimard, 1928. cional e como o constante “outro”. Essa era uma condicao que os surrealistas nao somen- fe toleravam, mas a qual aspiravam e celebravam — como o lado “feminino” da perso- nalidade que havia sido reprimido. A fantasia, portanto, nao era somente sobre a femi nilidade, mas também sobre os desejos dos homens e a masculinidade. A representacao de Nadja é a chave estrutural da fantasia de Breton. A Nadja do texto de Broton nio é uma mulher real, mas uma representagio, apesar das semethaneas ¢ mesmo das palavras que parecem transcriges das falas de alguma mulher que ele conhecera. Ela € 0 objeto de seus desejos, mas ao mesmo tempo articula os mecanismos da sua fantasia. Ela atende as suas necessidades, como diz uma de suas frases, relem- brada por Breton mais adiante no livre: “Se voce quiser, posse ser nada para voce, ou ape- nas um vestigio” (p. 137). A fantasia requer que Nadja seja um “espirito livre”, a mus que estimula 0 poeta. Ela tem uma mobilidade que a faz parecer quase um flancur, livre para vagar pelas ruas de Paris, onde ela se sente em casa. Contudo, o fléneur baudela iano era um tipo masculino: uma mulher burguesa nao poderia vagar pelas ruas de Paris, em vista das restrigdes sobre sua classe e sexo. Por volta dos anos 20, a mulher possuia maior mobilidade, particularmente o tipo de mulher garconne, que se tornara moda na época. E, certamente, as restrigdes sobre as mulheres burguesas nunca foram tas as mulheres das classes trabalhadoras da mesma maneira, e uma mulher como adja nao era burguesa. No entanto, o flaneur precisava ter o controle do olhar, ja que o “olhar”, como Benjamin havia reconhecido, era uma de suas atividades caracteristicas. A NADJA DEBRETON 187 Isso significava estar de posse do olhar, em vez de ser seu objeto. E, no entanto, Nadja anda pelas ruas de Paris apreciando os olhares dos outros homens: “Ela responde a esses tipos de galanteios com prazer e gratidao. Eles jamais sdo escassos, e ela parece valorizs- los muito” (p. 115), Uma parte adicional na fantasia de Breton é que essa receptividade confere a cla poder sobre os homens, Breton escolheu uma mulher marginalizada, empo- brecida, mas que ainda podia adotar a aparéncia de uma burguesa, que se encontrava no limite da respeitabilidade. Era uma mulher que fantasiava ser uma botilangére (alguém que trabalha numa padaria) e que adotava suas proprias mascaras de feminilidade. Para Baudelaire, a prostituta seria 0 equivalente feminino mais préximo do fiineur, © a construgao de Nadja por Breton como uma figura ambigua (no sentido de como ela usa- tia sua sexualidade) parece aproximar-se de Baudelaire de um modo quase anacrénico. Breton reescreve o modelo de prostituta do século xx num contexto moderno. Nova- mente, ele busca o “ultrapassado”. Ainda que aparentemente o flacur estivesse negan- doo papel ative masculine no seu desejo de entregar-se ao que pudesse acontecer, iss0- € bem distinto da experiéncia da mulher. Nao ha divida de que se deve antes ter 0 con- trole, para que, em se tratando do fldnewr, se possa permitir ficar livre dele, Devemos lembrar aqui, como escreveu Benjamin, que esse era “o olhar do homem alic- nado” e portanto nao realmente livre (Charles Baudelaire, p. 170). O controle, tanto social como psiquico, era visto pelos surrealistas como uma forma de opressio — jd que em sua visdo os sintomas neuroticos de uma sociedade doentia podiam ser encontrados na cha- mada normalidade, Por outro lado, eles viram na loucura a possibilidade de libeztagio. Quando Breton imagina como seria para Nadja o hospicio, ele questiona se faria muita dife- renga para ela o fato de estar dentro ou fora da instituicao. Evidentemente, essa é uma linha de pensamento mais facil de ser seguida por quem nao esté, ele proprio, trancafiado, e Bre- tonadmite que certamente haveria uma diferenga quando.a chave girasse na porta. Como Benjamin escreveu sobre o fldnteur de Baudelaire, “a multidao no é somente o mais recen- te asilo de marginais, B também © tiltimo narcético para esses abandonados” (p- 55), Essa idéia, da vida moderna como um tipo de hospicio, remete ao ceticismo fundamental dos Surrealistas sobre o tipo de liberdade possivel nas condigées entio presenti Baudelaire, Benjamin, Breton A visio de Benjamin sobre Baudelaire era sem dtivida influenciada pelo seu interesse no Surrealismo, Sua anilise ecoa a releitura dos modelos de Baudelaire pelos surrealistas. ‘Tendo isso em mente, gostaria de dizer algo mais sobre a construgio baudelairiana do fi. eur como foi interpretada por Benjamin. Para Baudelaire, o flaveur era o heréi moder- no, um tipo inquestionavelmente masculino, vestido em cinza ¢ preto, com polainas ¢ Bravata, O fldntier era necessariamente um papel vivido por um homem ocioso, livre para Yagar ¢ debrucar seu olhar sobre a cidade (p. 170). A medida que se desenvolvia, a cida- de modema utilizava-se da flaverie para vender produtos nas lojas de departamentos, Em seu estudo sobre Baudelaire, Benjamin se concentra nas lojas de departamentos ¢ gale- tias, pois é nesses locais que se encontra a mais clara relago entre o flaneur e o fetichismo da mercadoria: é aqui que “a intoxicagao a qual o flancur se rende é a intoxicagdo dos bens em tomo dos quais afluem as vagas de consumidores” (p. 55), O poeta nao estava imune a essas relagdes. A verdadeira situagdo do homem de letras, escreveu, era que “cle vai ao mercado como um flaveur, supostamente para olhar, mas na tealidade para encontrar um comprador” (p. 34). De fato, Baudelaire chegou a ver o poeta como prostituido, no sen tido de que cle “recebia dinheiro pela sua confissio” (p.34). Alm disso, ele era um “bod mio”, em constante estado de revolta contra a sociedade burguesa. Para Baudelaire, a cidade era o lugar do erdtico. Um dos principais poemas discuti- dos por Benjamin foi A une passante (A uma passante”), de Baudelaire. E sobre 0 desejo de uma mulher, uma vitiva vestida de preto passando na multidao. A imagem da mulher © passageira, ela se perde assim que aparece. Como em Nadja, a multidao nao figura explicitamente no poema, mas esti ali presente de modo implicito. Benjamin enfatiza que a multidao no ofusca o desejo, mas ¢ uma condicao dele: 188 ‘SURREALISMO, MITO E PSICANALISE Longe de evitar ¢ erético na multidao, a aparigio que o fascina€ trazida até cle por essa mesma multidae. O deleite de individuo urbane nao ¢ tanto © amor 4 primeira vista, mas. o amor ao ultimo olhar, O nunca marca © ponte alto do encontro. (Benjamin, Chardes Baudelaire, p.45) No texto de Breton, a perda de Nadja é talvez uma parte necessdria da fantasia, ea ante- cipac&o dessa perda, um aspecto do seu desejo. Tal encontro casual ocorre na multidao, onde o objeto de desejo é escolhido entre uma infinidade de outros. O objeto de desejo é “encontrado por acaso” em Baudelaire, do mesmo modo que cm Breton mais tarde. ]4 mencionei que penso que 0 leitor de Nadja & colocado na mesma posicao, confrontado com fragmentos, vistas parciais, vislumbres do pasado, becos sem saida do presente. De modo similar, Benjamin comparau os escritos de Baudelaire a um mapa da cidade, “na qual é possivel se locomover anonimamente, protegido por blocos de casas, portées, jardins”. Ter de se localizar € um processo desconcertante. Para Benjamim, era como perambular pelas ruinas da burguesia. Ele cita Balzac como o primeiro a falar sobre esse tema, mas acrescenta que “foi 0 Surrealismo que primeiro permitiu ao seu olhar percorré-lo livremente” (p. 176). Benjamin discutiu o fianeur como uma figura hist6rica que estava desaparecendo ja na Ultima parte do século xix e cujo tiltimo posto eram as lojas de departamento. Ainda assim, foi esse 0 motivo implicito escolhido por Breton para estruturar Nadja. Talvez isso esti- vesse, em parte, ligado ao obsoleto, mas suponho que havia também. outro propésito estratégico, qual scja, o de contrapor-se as convicgdes predominantes. Segundo Benjamin, a extincao do flaneur estava ligada ao fato de que o lema de F. W. Taylor, “abaixo a vadia- gem", estava na ordem do dia (p. 54). Quando Nadja conta a Breton como fantasiava sobre © que as pessoas da segunda classe do metré faziam para viver, ele a repreende por sua preocupacao com ¢ trabalho (Nadja, p. 78). Esse nao era simplesmente o caso de privile- giar 0 écio em lugar do trabalho, mas relacionava-se a posicio de Breton no Ambito de uma cultura “maximizada” pela eficiéncia ¢ a racionalidade no sentido taylorista. A flanerie era uma resposta estratégica a cultura dominante da racionalizagio exem- plificada no Gerenciamento cientifico de Taylor. Como tal, fazia parte do senso de revolta sur- realista, voltando-se contra a nego do modemo como racional, ordenado e eficiente. Ao contrario, “a vertigem do moderno” — como Aragon a redefine em O camponés de Paris (p. 129) — encontrava-se nos cantos perdidos da cidade, o passé, aqueles lugares onde “a lenda da modernidade tinha suas intoxicac6es” (p. 131). Essa era uma visao da moder- nidade como um mito, mas nem por isso menos importante. Os lugares que Aragon descreve sio exatamente os mesmos que Benjamin identifica como os locais do fldneur, par- ticularmente as galerias de lojas — mais uma vez revelando como a sua visao do século xix era mediada por sua Ieitura surrealista. Aragon descreveu uma galeria especifica que esta- va para ser demolida. A disposigao dos objetos nas vitrines despertava, para Aragon, deva- neios que eram apenas semiconscientes. Ela desencadeava respostas inteiramente dife- rentes, digamos, da celebracao das vitrines por Léger como exemplos de um “chamado 4 ordem” racional e moderno [140]. Enquanto Léger viu os efeitos repetitivos da dispo- sigao dos objetos na vitrine exemplificando um gosto peculiarmente modemo pela ordem \dgica e formal, Aragon encontrou ali uma experiéncia quase alucinatoria. Quando Benjamin cita a palavra de ordem de Taylor “abaixo a vadiagemy’, cle nos indica como fonte um texto do socidlogo Georges Friedmann. Na década de 30, Fried- mann discutiu as mudangas na producio industrial que se seguiram a Primeira Guerra Mundial ea organizac3o de novas fabricas, baseadas em principios muito préximos daqueles de Taylor e Ford, que se adequaram 3 expansio de um tipo de religiao da producao organizada “cientificamente”, envolvendo um setor bastante amplo da burguesia. (Friedmann, L2 Crise du progres, p. 117) Friedmann enfatizou.a enorme influéncia que as teorias de Ford ¢ a teoria do gerencia- mento cientifico de Taylor exerceram nos anos do pés-guerra:”A obsessao de Taylor, de seus colaboradores ¢ sucessores € a guerre a Ia flinerie” (p. 76). Literalmente significa O-*fSTRANHO™ 189 “guerra & flinerie”, ao écio, que Taylor via como endémico no sistema que sua teoria buscava corrigir. A tradugio de lanerie como dawdling [vadiagem] na edicao inglesa do ensaio de Benjamin é de certa forma inapropriada ao contexto. © terme original de Tay lorera soldiering, que significa “fingir que trabalha”, “estar ocioso” ou ainda “desperdicar tempo" (Taylor, Scieutifie Management, p. 30) Principes d'organisation scientifique des usines, de Taylor, foi publicade na Franca em 1920 (0 original, em inglés, intitulava-se The Principles of Scientific Management, Harper, 1916). Taylor discute nesse livro as medidas necessarias para contrapor la flinerie nutturele ef la flanerie systématique (0 dcio natural ¢ 0 sistematico). De acordo com o sistema de Tay- lor, ao trabalhador individual é dada uma tarefa, e essa tarefa, repetida infinitamente, constitui a fincao do trabalhador. Cada componente ou tarefa era individualizado, e todas essas tarefas reunidas, coletivamente, compunham um processo de trabalho mais eficiente. Friedmann enfatiza que a separacao dos trabalhadores feita dessa maneira era uma condico necessaria do sistema de Taylor, no sentido de desenvolver a ambicao pes- soal € a competicao. O conceito de hata de classes nao tem utilidade para Taylor que na verdade via os sindicatos como intiteis para os trabalhadores porque restringiam o ren- dimento ao impor “o écio, esse flagelo de mundo industrial modemo” A flanerie, por- tanto, poderia ser vista como uma pedra no sapato de uma visdo taylorizada do mundo. Uma fantasia masculina de “mulher”, ¢ com ela uma fantasia de masculinidade, é também tratada no romance de Aragon O camponés de Paris, de 1926. Apds algum pream- bulo, Aragon chega ao bordel. Porque sua atitude em relagio ao amor tem sido vista por alguns como inteiramente corrompida pela sua celebragio da prostituicao, cle acha necessario explicar: Nao ser equivocar-se quanto & natureza de amor acreditar que ele seja incompativel com essa degradacio, essa negagao absoluta da aventura que 6 ainda uma ventura para o-meu proprio eu, o homem se atirando ao mar, a remincia de tedas as mdscaras: um proceso que é uma atragio irresistivel para 0 verdadeiro amante? (Aragon, Paris Pensart, p. 117) Essa parece ser a confissio de um homem que s6 consegue se ligar 4s mulheres enquan- to mercadorias que podem ser compradas como quaisquer outras. Contudo, a ilusao de que ele pudesse despir-se de “todas as mdscaras” ¢ apenas sintomatica da eseravidao a sua prépria fantasia (e, por extensao, da escravizacdo de todas as mulheres a ela também). O que Benjamin tem a dizer sobre essa questo da mascara ¢ bastante pertinente e con- trdrio a visdo de Aragon. Assim é a descricéo de Baudelaire por Benjamin: Pelo fato de nio ter nenhuma convicgao, ele assumia sempre novas formas de si préprio. Fld- neur, malfeitor, candi ¢ trapeiro eram portanto seus muitos papéis, Pois o hersi moderno nao €herGi, ele representa herdis, OQ modemisme herdico acaba por se tornar uma tragédia na qual © papel do heréi esté disponivel. (Benjamin, Charles Bauulelerc, p. 97) Essa idéia de representar um papel sugere que “masculinidade” seja em si também uma questo de simulagio, de adotar uma série de disfarces. A Nadja do texto de Breton talvez seja, nesses termos, uma projegao de sua propria identidade vacilante, com a qual ele falha repetidamente em focalizar a mulher c, em vez disso, desloca sua aten¢ao para os objetos em torno dela O “estranho” “Epoque des mannequins, époque des intérieures” Imagens de manequins e de outros autOmatos podem ser encontradas espalhadas pelas Paginas de varias revistas surrealistas. Na capa do quarto ntimero de La Revolution Surréaliste, a fotografia feita por Man Ray de urn manequim de loja foi colocada entre as duas palavras do slogan “et guerre ate travail” (“e guerra ao trabalho”), eo manequim age ” Essa foi uma observagio feita par Taylor sobre os rua, em Scientific Management, p. 81 190 SURREALISMO, MITO E PSICAN ALISE Nv 4 — Premiere année 15 Juillet 1925 LA REVOLUTION SURREALISTE eT AU GUERRE TRAVAIL, SOMMAIRE, lon de te BLS. CHRONIQUES Fragemonte une samtétence : Lous Acagor LLesuendatisme et fn poitare + Andeé Beton Noe Hu Ja bse OE 3 Deuls Argos Exposition Chieica: Mat Sto SURREALISTES Piitesophes, sam leant = Peal Blond Maree Noll. Georges Malin. Mtassieee Lat pamaaiten vopageat : Nerenia Bret {un bs Een a Robert Dees ILLUSTRATIONS Giossaire (ary Miche Le, orgie de Chircg, Mae Boma, Andi Mason Nomenclature: JucqusAndé Haan Jomn Miro, Poho Diesen, Man Ray, Pie we Royce ABONNEMENT Dépositaire général = Librairie GALLIMARD Le NuMitne 415, Boulevard Raspall, 15 Feupee | 4 frames Etranger As teases PARIS (VIF) Bitennger 1 teames 169, Capa de La Revolution Surréaliste, n° 4, 1925, com foto de um manequim executada porMan Ray. Reimpresso por Amo Press, © ADAG? Paris ¢ acs, Londres, 1993, como uma figura de desejas e sonhos [169]. A gravura 170 era uma das quatro foto- grafias executadas pelo fotégrafo veterano Eugene Atget ¢ reproduzidas em La Révolui- hon Surréaliste em 1926. Atget fotografou intimeras vitrines, tais come essa da loja de espartilhos no Boulevard de Strasbourg, tirada em 1912, foto nfo cra creditada ao seu autor (a pedido do préprio Atget, que, aparentemente, nao queria ser associado a0 grupo surrealista) e foi colocada na secdo de “sonhos” da revista. Pode-se deduzir entio que a fotografia de Atget atua como um fragmento de uma narrativa de sonho, cen- OvEST 191 170. Eugtne Atget, Boulevard de Strashou em albumina de prata, 24x 18 cm. Acervo, The Museum of Modern Art, Nova York. Impressio feita por Chicago Albumen Works, 1984, g, espartithos, 1912, impressio trando-se na repeti¢o compulsiva da seqiiéncia de manequins na vitrine, Foi o efeito de estranhamento de tais imagens que interessou og surrealistas, especialmente nas esqui- nas fora de moda e perdidas da cidade que tanto atrairam Breton, come vimos em Nadja. E, em O camponés de Paris, Aragon se refere A “geografia do prazer” na cidade, onde ele é irresistivelmente levado aos “simulacros em exibicao na ine”, como ele mesmo afitma. Q manequim era associado ao autémato, a quem um artigo inteiro foi dedicado na Minotaure [171], com fotografias extraidas de uma histéria dos autématos escrita por Alfred Chapuis e Edouard Gelis em 1928. A idéia de que a figura feminina em particular podia ser evocada desse modo, como uma mera ilusao do real, um simulacro, para ser infinitamente repetida em torno das ruas de Paris, era a mais recente expressiio da idéia da mulher como objeto ¢ também desencadeava os mais estranhos efeitos. No primeiro manifesto, Breton escreveu que “o maravilhoso nio é 0 mesmo em cada época da histéria: ele participa, de algum modo, de uma espécie de revelacio geral, da qual apenas fragmentos chegam até nés: s4io as ruinas romanticas, o manequim moderno’, simbolos que provocam um sorriso mas que também retratam “a incuravel inquietaco humana” (“Manifesto of Surrealisny’, p. 16). Em seu ensaio “Surrealismo e pintura”, de 1925, ele se refere novamente ao manequim em sua discussdo sobre Giorgio de Chirico [172]. Ele chamou a atencao para 0 efeito misterioso, entre outros, das carac- teristicas da epoque des mannequins, époque des intérieures como “a era dos manequins, aera dos interiores” (La Revolution Surréaliste, n° 7, p. 3). Foi principalmente sob a influéncia de de Chirico, e 8 luz da admiragao de Breton por seu trabalho, que esses elementos — © manequim, o interior, a rua — passaram a ocupar essa pasicao destacada dentro do 192 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE ‘olos em B, Peret, “Au paradis des fantémes", Minotaure, n° 3/4, p. 33, 1933. Reimpresso por Arno Press, ermissio de Editions d'Art Albert Skira, 193 172. Giorgio de Chirico, L’Enigme de fe fatalité (O enigma da fatalidade), 1914, leo sobre tela, 138 x 96 cm. Emanuel Hoffmann-Foundation, Kunstmuseum, Basel. ©pacs, Londres, 1993. Surrealismo. E, mais especificamente, foi a juncdio desses elementos dispares efetuada por de Chirico em diversas pinturas que disseminou esse efeito misterioso. A idéia de estranhamento, ou dépaysement, como foi chamada por Breton, constituiu uma fungao crucial do Surrealismo. Pelo menos em parte, cla estava associada a inde- terminagao de imagens, tanto no tipo de narrativa onfrica que Breton viu no trabalho de de Chirico como por meio das técnicas automatistas usadas por outros, como Masson e Miré, Em Visio prococada pelo aspecto noturno da Porte Saint-Denis, de 1927 [173], Ernst usa a combinacao de ambos. A Porte Saint-Denis, dedicada ao santo padroeiro de Paris e que certa vez demarcara os limites da cidade, era um dos lugares por onde passaria Breton em Nadja, em que o monument, “muito bonito e muito inutil” [174], serviria como um pretexto para uma seqiiéncia tangencial de pensamentos ~a lembranga de um filme ridi culo, O abrace do polvo, a que Breton assistira uma vez em um cinema local. Assim como Breton, Ernst tratava o monumento como um ponto de refracao. A Porte Saint-Denis € representada por Ernst como o local de uma visdio que, usando tanto a frotiage como a grattage (descritas no capitulo 1), permite que as impressdes na textura da madeira venham 4 superficie como o produto de um sonho. Essas técnicas foram conce- Didas para burlar as mediagSes do consciente, desencadeando devaneios inconscientes. Sem querer levar as comparagGes muito além, devemos lembrar que os termos franceses automatique @ automatisme, no uso Corrente, referem-se a Movimentos Mecanicos, como oO dos autématos, Ainda que 0 termo automatism seja usual ¢ corretamente considerado ori- 10, MITO E PSICANAL Max Emnst, Vision provoguce pa cturrne de la Porte EM, Paris ¢ gindrio das técni tia usadas nas praticas terape mais comuns ao “mecanico” acrescentant-Ihe uma dose a mais de ironia, ¢ substituem a maquina racional por uma boneca mecani Pelo inacabamento das que abriga 9 me 0 ano [46], essa sensagao de éainda ma : e uma tela preparada previamente sobre uma ru0SaS que freqiientam o mundo dos sonhos ‘feito se torna mais inesperado uma vi no est por tras, mas foi figuras par temporinea, insurgindo-se na pintura como uma rebeliao da mente — com c eriticas no amt mento surrealista, de revolucao social. Durante os Ernst produziu uma de pinturas nada A cidade a qual a ilustra é um exemplo, novamente carac indo a cidade como um tipe de labirinto, com estratos e subestratos, em lugar da So ideal de cide ndida por contempordneos como Le Corbusier. Mais do que um ideal de unidade e ordem, a cida- de 6 representada como um local primevo, dominado por lxuriantes mas ameagadoras formas de vegetagio, E uma visio desoladora da cidade em ruinas, assombrada pelo pas- Seton, Londres, 1993, tela, 60x 81 cm, Kunsthaus, Zurique, 196 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE sado — 0 tipo de ruina metaférica 4 qual também se referia Breton em sua critica da cul- tura burguesa contemporanea. A sensacaio do passado assombrande 0 presente foi também relacionada por Exnst &s mem6rias de infancia. Ele até mesme rastreou a origem de suas descobertas dos métodos automatistas, come a froffage, nos momentos iniciais de sua vida, Em La Revolution Surréa- liste, em 1927, publicou tres “Visions de demi-sommeil’ (“Vises de devaneios”). A pri- meira, que trata de uma “visdo” que ele experienciou quando menino, é manifestada em um painel de madeira texturizada: “Vejo diante de mim’, ele esereveu, “um painel pintado grosseiramente com largas pinccladas pretas sobre um fundo vermelho, imitando a tex- tura do mogno ¢ desencadeando associagdes de formas organicas (um olhe ameacador, um nariz longo, uma enorme cabeca de passaro com cabelos pretos e grossos ete.)’. A visio se transforma em uma terrivel imagem do pai do artista, segurando um lapis que se trans- forma em bengala ¢ por fim em um chicote. O devaneio ¢ expresso em termos do reperté- rio freudiano de imagens sexuais, numa narrativa em que as antigas fantasias do artista 0s medos da punigao de seu pai tornam-se publicos, Em casa, na cama, a crianga acha que © familiar — 0 painel de madeira de imitacao — toma as formas estranhas e assustadoras daquela fantasia. Ao usar técnicas automatistas em suas pinturas da cidade, Emst impri- miu um aspecto social aquelas fantasias e, ao mesmo tempo, representou a cidade como um local de fantasias infantis, A cidade é uma extensio do lar, uma vez que nela também se desenvolvem relagdes simbdlicas e psiquicas. E, como vimos, particularmente em Nadja, a cidade é tratada no Surrealismo como a morada do inconsciente moderno. A visio freudiana do “estranho” Os dois aspectos—o do manequim eo pavor em uma meméria reprimida ~ aparecem jun- tos na nogao de “estranhe” em Freud.' Essa nogio, ao contrario de outros conceitos em tex- tos cldssicos de Freud tal como A interpretagio dos sonhes, nao influenciou Emst. Vou, porém, discuti-ta aqui porque acredito que ela traga alguma luz sobre o conjunto de preo- cupagées no Surrealismo. O termo de Freud tsthetutlich, traduzido para o inglés como. uncanny [“estranho" | é 0 oposto de heimlich (“doméstico” ou “familiar” e, portanto, “ndo- estranho"), Ele cita a definigao de F. W. J. von Schelling de unheinlick: “o nome de tudo que deveria permanecer ... secreto e escondido, mas que veio a tona” (Freud, "The ‘Uncanny’, p- 345). O que interessa a Freud € esse sentido de estranho combinado com o de familiar: é um termo ambiguo, j4 que implica também o seu oposto. Ele discute o modo como 0. estranho é lembrado em © homem de areia, uma historia de E. T. A. Hoffmann em que se encontra a Olympia original, a boneca que aparece no primeiro ato da pera de Jacques Offenbach Contos de Hoffmann. Olympia é apenas uma boneca, um autémato, mas com a aparéncia de uma mulher real, de tal forma que o heréi se apaixona por ela, Mas, para Freud, Olympia nao ¢ a principal responsavel pelo efeito de estranhamento na histéria, mas. sim a figura do “Homem de Areia”, a imagem do pai que pune-as criangas arrancando seus olhos. Como um contraponto agradavel na histéria, a outra figura paterna, Coppola, que criou 0 autémato Olympia, € também um oculista, alguém que faz dculos. Isso atraiu Freud, que viu o mede de perder a visdo como um medo simbélico da castragao. Olympia talvez pareca ser a origem do efeito do estranho, mas por fim é apenas um tipo de alibi. O temor real est no medo do pai eda vinganca do pai sobre o filho, com a castracao. Foi depois de assistir aos Contos de Hoffmann que Hans Bellmer comecou a produzir a sua série de banecas desmembradas [176] que foram subseqiientemente interpretadas, em termos freudianos, como representando a angustia por temor a castrac3o (Krauss, L‘Amour fou, p. 86). Certamente, o tema sobre o olho é recorrente no imagindrio surrea- lista, notadamente na sequéncia de abertura de O edo andaluz, filme de Buiwwel e Dali em que um othe é cortado [177]. O mais interessante aqui, suponho, nao sao tanto as conexdes diretas a serem feitas, jd que a idéia principal ¢ que o estranho consiste em algo A iiddia de estranhamentoem Freud foi discutida por R, Krauss em seu importante trabalho sobre a fotogra- fia surtenlista, “Corpus Delicti”, p. 85, O“ESTRANHO 197 Coleco privada 1993, secretamente familiar. Trata-se de alguma coisa que foi reprimida, jé que, para Freud, 0 prefixo “un” em wnheimlich era a evidéncia de repressao. Nessa estrutura, as partes desmembradas podem evocar 0 estranho, mas também o pode um texto ou uma imagem “desmembrada’, em que pecas sao justapostas num mode nao familiar. O mesmo pode ocorrer—e aqui retornamos ao texto de Freud - com um “duplo”, como um espelho, ou um espirito guardiao, ou uma imagem repetitiva. Oestranho remete ao animismo ¢ 4 magia, como as fort monstruosas de Ernst er Abiorda, ou a floresta assombrada, ou a figura de Loplop (0 mitico espirito guardiao do pro: 176, Hans Bellmer, Poupée (Boneca), 1935, fotogralia. © apacr, Paris ¢ vacs, Londres, 177. Fotogramas do filme O eo andatuz, de Luis Buivuel, 1928, roteirizado por Salvador Dali, Fotos: cortesia do National Film Archive. Reproduzide com a permisssio da Contomparary Films. 198 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE ta (A floresta embalsaruada), 1933, Sleo sobre tela, 163 x 254 cm. Coleco de Adelaide de Menil, Nova York. Foto: Paul Hester. © apacr/sravem, Paris e pacs, Londres, 1998. 179. Max Emst, A nnulher 100 eabegas abre sua manga de agosto, de La Femme 100 tétes (A mulher 100 cabecas), Paris, Editions du Carrefour, 1929. © apaGr/Srapent, Paris ¢ bacs, Londres, 1993. 0° ESTRANHO" 199 juntas as minhas sete in ‘vinendo froqiietemente ADAG? /SPADEN, Paris epacs, Londres, 1993. prio Ernst), ow as formas indefinidas em A floresta embelsamada [178]. Aqui, a floresta se toma uma metafora, como a cidade, do inconsciente — onde a memGria espreita, onde os segredos so escondidos. Mas hd também um aspecto social do estranho, da idéia de “ndio-domésti- co”. Na novela-colagem de Ernst, A mulher 100 cabegas, imagens de interiores burgueses reti- radas de gravuras do século xix sio reunidas com o objetivo de inverter seus sentidos [179, 180}. © interior, ou lar, torna-se estranho ou unheinlich eé o local onde as fantasias sio engendradas. As gravuras recortadas de figuras femininas so os equivalentes bidimen- sionais dos manequins, que atuam como dlibis para 0. argumento principal da histéria. Bau- delaire definiu a cidade como 0 lar do homem moderno, que somente se sente “em casa” nas ruas ~ aqui, novamente, a cidade pode ser vista como um local de drama psi vimos em Nadja, de Breton). O sentido de estranho, nos termos de Freud, envolve 0 seu oposto ~ o familiar reprimido dentro dele. De modo similar, 0 titulo da colagem de Emst, A muther 100 cabegas, possui dois sentidos, no trocadilho “100” e “sem”; a mulher de cem cabecas (uma imagem do tipo da Medusa) torna-se uma mulher sem cabega (cuja cabega foi removida)— dois temas freudianos para a castraco usados muito explicitamente por Ernst. Nao estou interessada aqui numa “psicobiografia” de Ernst, ou no efeito que sua tenra infancia teve sobre sua arte. Mais signiticativo, penso, é que o préprio Est, assim como julros surrealistas, trouxeram essas memsrias de infancia a publico ~tais como vimos em “Visions de demi-sommeil”’. Est cscreveu mais tarde que ele era “um jovem que busca- va encontrar 05 mitos de seu tempo” (Ernst, “An Informal Life of M. E. [as told by himself toa young friend)", citado em M. Gee, Ernst, p. 9). Tornar publica a sua histéria pessoal, usando um repertdrio de simbolos freudianos para tanto, significava sugerir um tipo de fan- tasia coletiva ou estabelecer mitos que predominavam na vida social e psiquica de sua €poca. Emit tratou essas fantasias conto se fossem moeda corrente ou, como foi sugerido por Dawn Ades sobre Dalli, “como se [os psicanalistas] fossem um bem comum, do mesmo modo que a iconografia religiosa era um bem comum na Made Média” (Dali, p. 76). 180. Max Ernst, Aqui esto todas Jiguidos e parecendo perfeitas fotkas adormecidas. De La Femme 100 tétes (A mulher 100 cabecas), Paris, Editions du Carrefour, 1929. © 200 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE Le Jeu lugubre Dali juntou-se ao movimento surrealista em 1929. Pintou O jogo lufgubre [181] naquele mesmo ano, que foi a pega principal de sua primeira exposigdo na Camille Goeman Gal- lery em novembro. A tela As acomodagées de desejos [154] foi também mostrada ali e com- prada por Breton, que escreveu 0 prefacio do catilogo da exibicdo. Em O jogo luégubre, Dali usou a narrativa do sonho ¢ justapés elementos incongruentes ¢ formas monstruosas; empregou também diversos motivos (tais como o gafanhoto) como objetos de uma fobia obsessiva prépria. Em contraste com scu trabalho posterior — que coloca a narrativa onf- rica em um espaco ilusionista, tridimensional ~, Dali faz uso aqui de uma “paisagem” mais fragmentada. O tratamento desguarnecido dos degraus a dircita, da chao e do monumento lembram as ruas ¢ cidades despovoadas ¢ vazias de de Chirico [182]. Ea igura” central explode em fragmentos, o corpo se distende para cima, terminande em uma cabega dilacerada revelando pedras, conchas, cabecas e chapéus. Nao hé uma uni- dade coerente na figura: apenas a soma dessas partes fragmentadas. Mas nao é somen- te essa figura que esta “desmembrada”; além de alguns elementos realmente “colados” na tela, a pintura como um todo emprega uma técnica semelhante a colagem para agru- par fragmentos ¢ partes. (No capitulo 1, David Batchelor discute esse tipo de efeito de “colagem', comparando-o com as técnicas automatistas de Masson e Ernst.) Assim como Ernst, Dali usow um repertério de motivos freudianos e concentrou-se no imaginario sexual. Acima de tudo, é talvez 0 tema da masturbacde ¢ a culpa decor- rente que preocupa Dali, e isso é sugerido pela calga manchada da figura masculina em primeiro plano, a imensa mao da estdtua, a mao cobrindo os olhos da estatua e o sim~ bolismo sexual do qual a pintura esta repleta, Breton, em seu prefacio, escreveu que “a arte de Dali, a mais alucinatéria conhecida até agora, constitui uma ameaga real”. Ameaga, qual seja, 1 ordem estabelecida e 4 aparéncia das coisas, mas com uma forea eri- tica: “Com a vinda de Dali, € quicd a primeira ver que as janelas da mente se abrem com amplidao, de forma a se poder sentir planando em diregao a selvagem armadilha celes- te” Breton, “The First Dali Exhibition”, prefacio ao catalogo em What is Surrealisni?, p. 45). A concepgao de Breton do Surrealismo — como uma sondagem das profundezas do que ¢ escondido ¢ secreto - coincide-com essa idéia de revelagao. Ela pade estar relacio- nada ao carater de oculto ¢ nao-familiar ¢ revelador que observamos no estranho. De fato, ainda que lugibre seja freqientemente traduzido como “sombrio” ou “higubre”, é uma das palavras que Freud encontrou como o equivalente francés para wnheimlich ou “estranho”. (Traduzido para o franeés na década de 30, esse ensaio de Freud foi intitu- lado “LInquiétante étrangeté”.”) Na descrigao de Breton sobre 0 efeito do trabalho de Dali como tne joie sontbre (“tama sombria ou melancélica alegria’), ou mesmo quando ele fala do poder da “alucinagdo voluntdria”, podemos reconhecer algo do mesmo espirito de contradicao que sempre parece estar em jogo. A pintura de Dali foi surpreendida no fogo cruzado entre André Breton ¢ Georges Bataille. Por enquanto tenho me concentrado em Breton como a forca principal no inte- rior do Surrealismo, mas agora gostaria de introduzir a figura de Bataille. Embora jamais tivesse um envolvimento estreito com o grupo de surrealistas, Bataille os conheceu em 1925. Mais tarde, ele se referiu a sua posicdo ambivalente definindo-se como “um velho- inimigo interno” (citado por Ades, Dada and Surrealism Reviewed, p. 229), Ele ¢ Breton estavam sempre em desacordo sobre as concepgées e abordagens, e suas diferencas agucaram-se em 1929 quando um grupo de renegados aliou-se a Bataille, Como arqui- vista da Bibliothéque Nationale, Bataille tinha diversos interesses— de manuscritos anti- gos a pintura moderna, passando pela cultura popular, uma diversidade refletida na revista Docitnients. (Discuto a seguir o envalvimento de Bataille em Dacuments.) Sob a influéncia de Breton, Dali negou permissao a Bataille para reproduzir O jogo ligubre num ensaio sobre pintura em Documents. Ainda que o sentimento de Dali Sou jrata a David Lomas por tee-me apontad isso. AITO EPSICAN 182, Giorgio de C . omnia di wa strada (Mistério ¢ metanc obre tela, 87x 71 cm. Colecio privada. Fotografado por Luca Carra, cortesia de Index. ©: pacs, Londres, I O"ESTRANHO" 203 183. Georges Bataille, Schema psychanalylique des figurations corttradicloives du sujet dans “Le Jeu lugubre” de Satoador Dali (Esquema psicanalitico das representacies contraditérias em “O jogo ligubre”, de Salvador Dali), Documents, n° 7, 1929, diss ae dee fk ‘Slane bata eee ee cies penas o grau de consciéncia de nossas perversdes”~ corresponda ae tipo de interesse encontrado nos escritos de Bataille e que Dali fosse inegavelmente influencia- do pelo romance erdtico de Bataille L’Histoire de i'wil (“Histéria do oho”, escrito sab o pseudénimo de Lord Auch em 1928), Breton persuadiu-o a permanecer com 0 grupo sur- tealista. Bataille comecou seu ensaio sobre O jogo ltigubre afirmando que “o desespero inte- lectual nao leva nem a apatia nem ao sonho, mas & violéncia”. Para Bataille, Dali estava longe de abrir amplamente as janelas; ao contrario, Bataille viu “o abominavel espelho de Dali”. E, enquanto “as pinturas de Picasso sao detestaveis ... as de Dali tém uma feiui- ra medonha’; violencia, bestialidade, repugnancia, horror, excremento — tudo isso repre- sentava © ponto nevralgico, o inconseiente do “civilizado”. Bataille viu em O jogo liigu- bre aspectos e figuras diversos e contraditérios, observados esquematicamente na il tragao 183. Identificando a castracdéo como o tema da pintura, Bataille inicia pela figura central, cuja parte superior do corpo foi arrancada da inferior, simbolizando 0 momen- to de “emasculagao” (A); as formas fragmentadas, dispersas na parte superior da tel - entam desejos, mostrados no movimento para cima, ou a “ascensdo” de “objetos ” (usando o formato de uma assuncio religiosa ou apoteose), pela qual a punigao ¢ buscada voluntariamente (B); a figura do canto direito inferior, com calgas man: chadas, tenta escapar da emasculagio ao adotar “uma atitude degradante ¢ repulsiva (C); finalmente, na estdtua 4 esquerda, a figura contempla sua prépria emasculagao “com serenidade” (D). Bataille, detendo-se na fragmentagao dos membros, identifica a castragio e seu pavor como 0 tema psicanalitico da pintura. O desmembramento e a frag mentago da pintura esto, portanto, vinculados ao cendrio edipiano, e em ultima instin- as origens edipianas da pintura moderna. 204 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE Breton e Bataille Divisdes: 1929 Enquanto 0 Surrealismo de Breton explorava a “floresta de simbolos” que estava por tras das concepedes correntes de realidade, podemos ver o trabalho de Bataille percorrendo as sombras que constrangiam até mesmo Breton, Enquanto Breton buscava um “brilho de luz”, Bataille perseguia 0 obscure, Quando Bataille usa a metéifora da luz, esta é Gio estonteante que cega; a visdo da lugar A cegueira e o campo de visio é contaminado pela tache aveugle (“mancha cega"), Nao é de surpreender, portanto, que Breton visse Batail- Je como entrincheirado num pessimismo incurdvel. Ainda que o comentario seja apenas unilateral (Breton alude a Bataille, mas Bataille raramente responde), Bataille considera Breton ¢ os surrealistas simplesmente iludidas por um incuravel idealismo. Aseparacao entre Breton e Bataille ocorreu em 1929, quando em apenas um més sur- giram as publicagdes do “Segundo manifesto surrealista”, de Breton, em La Revolution Surréaliste, ¢ de “Le ‘Jeu lugubre’”, de Bataille, em Documents. A crise daquele ano envol- veu muitos surrealistas, alguns dos quais foram expulsos do grupo por Breton, enquan- fo outros — como Masson - distanciaram-se dele. Bataille era 0 oponente mais vociferante de Breton e, com Michel Leiris ¢ outros, tornou-se uma figura-chave na revista rival Doct- ments, que estreou em 1929. Apesar de nunea ter sido propenso a organizar grupos, Bataille acabou por representar, com companheiros dissidentes, um campo alternativo situado fora das fronteiras definidas por Breton. Breton criticava Bataille por seu “materialismo vulgar”, que ele contrastava com sua prépria visio do “materialismo dialético” do Surrealismo, derivado de Marx. Breton nao estava se referindo aqui ao materialismo vulgar que ganhou espaco sob Stalin, no qual a arte simplesmente “refletia” a sociedade e os interesses de classe (ainda que, no segundo manifesto, ele tenha certamente atacado os dogmas do Partido Comunista). Breton ade- riu ao Partido Comunista Francés em 1927, mas desligou-se mais tarde, desiludido pela falta de interesse do partido em aceilar a relativa autonomia da posicao surrealista e por sua Tecusa em admitir a necessidade de experimentagao por parte da vanguarda. O seu comprometimento ¢ de outros surrealistas com uma plataforma trotskista — a qual, entre outras coisas, permitia ao intelectual engajado estar adiante da cultura convencianal —era irreconcilidvel com a posigo stalinista adotada pelo Partido Comunista Francés. A posigao do partido poderia ser vista como um tipo de deturpacéio do materialismo como havia sido definido por Marx, mas, especificamente ne seu ataque a Bataille, Breton referia-se a outro tipo de distoredo ~a reducio do materialisme feita por Bataille, literalmente, a sua forma mais grosscira, vil e primal Para Breton, era crucial que o Surrealismo encontrasse uma estrutura tedrica que abrangesse tanto Marx como Freud, numa estratégia que se voltaria contra a opressao social e psiquica operante sob o capitalismo. No segundo manifesto, Breton insiste: OSunrealismo, que, como vimos, optou deliberadamente pela doutrina marxista no dmbito dos problemas sociais, nao tem intengio de minimizar a doutrina de Freud, wma vez que ela se aplica a avaliagio de idélas. (Breton, “Second Manifesto of Surrealism”, p. 159) A defesa de Freud ¢ tao explicita aqui porque o partido se recusou a considerar a “grande descoberta” do inconsciente que Breton sempre reconhecera como o seu maior débito a Freud. Mas devemos notar também como Breton insiste aqui na conjungio de Freud com Marx, do psiquico com o social. Para Breton, a abordagem de Bataille repre- sentava eliminar Marx da equagio. E a perda de Marx significa também a perda da revo- lugaa. Como Breton escreveu: ‘Anossa lealdade ao prinefpio do materialismo hist6rico .. nio ha maneira de brincar com essas palavras, Contanto que isso dependa unicamente de nds ~ quero dizer, considerando que o comunismo nao nos veja simplesmente como tantos animais estranhos, destinados set exi- BRETON E BATAILLE 205 bidos saltitando e langando de suas fileiras olhares desconfiados -, devemos provar que somos totalmente capazes de realizar nossas tarefas como revoluciondrios. tp. 142) A afirmacao parece defensiva, ¢ 0 era: na realidade, as criticas de Breton a Bataille, baseadas na ligagao do Surrealismo com o marxismo, foram feitas no contexto da mar- ginalizacao de Breton pelo Partido Comunista Francés. No segundo manifesto surrealista, a critica dcida de Breton contra Bataille é apenas uma das muitas dirigidas contra aqueles que ele considerava traidores e desertores dos prinefpios do Surrealismo-€ que ameagavam sua prépria lideranca e dominio do grupo. Muitos desses “traidores”, como j4 vimos, foram reagrupados em torno de Bataille. Bre- ton escreveu: “© que estamos testemunhando é um abomindvel retorno ao velho mate- Hialismo antidialético, que dessa vez esta tentando forear seu caminho gratuitamente por intermédio de Freud” (p. 183). O problema para Breton nao era Freud em si, mas 0 uso feito de suas idéias psicanaliticas. A esse respeito, Denis Hollier escreveu que “havia dois us0s para Freud, duas posigdes para a literatura em relagao a psicandlise, podendo cada uma delas ser representada por Bataille e Breton, respectivamente”, Em suas posicbes teo- ricas, Hollier identifica uma diferenga entre a tentativa de Breton de negar teoricamen- te “a-distingao entre a normalidade e a patologia” e “a pratica real do desequilibrio, um. isco real a satide mental” de Bataille (Hollier, Against Architecture, p. 108). Enquanto o interesse de Breton pela psicandlise era o diagnéstico, Bataille sucumbia as fantasias descritas por cla. Breton era critico em telacSo As preocupagdes de Bataille com o corrupto, o vile o grosseiro, em que “o horror nao conduz a nenhuma condescendéncia patoldgica, ¢ ape- nas exerce o papel do estrume no crescimento da planta da vida — cujo odor ¢ sufocan- te, mas sem dhivida salutar paraa planta” (Balaille, citado por Breton, p. 184), Q que € sur- i ae a beat bal 184. Mariage, Seine et Marne, vers 1905 (Casanrento, a drea do Sena e da Marne, c. 1905), fotografia “Figure Aumaine” (“Face humana”), Documents, n° 4, 1929. Fotografado por cortesia da Courtauld Institute Beok Library. 206 preendente aqui é que, ao vilipendiar Bataille, Breton usa termos similares aqueles que haviam sido associados ao préprio Surrealismo: Deve ser salientado que o senhor Bataille abusa de adjetives com intensa paixdo: infame, seni, grosseiro, s6rdido, obsceno, titubeante, e essas palavras, longe de servir a ele para depreciar um estade de coisas insuportivel, s30 aquelas pelas quais seus deleites sio mais liricamente expressos. (Breton, “Second Manifesto of Surrealism”, p. 184) Breton evoca também as tiltimas linhas do ensaio de Bataille em Documents, “Figure humaine”, nas quais o autor convidava seus leitores “a correr absurdamente com ele — seus olhos de repente tornam-se embaciados e cheios de légrimas inevitaveis — em diregao a algumas casas provincianas assombradas, mais desagradaveis do que moscas, mais depra- vadas, mais grosseiras que barbearias” (Breton, “Second Manifesto of Surrealism, p. 181). Uma das ilustragées que acompanhavam “Figure humaine” era a fotografia de um casa- mento burgués provinciano da virada do século [184], superficialmente res] vel mas, para Bataille, uma cena de perversao encoberta. De certo modo, a preocupacSo com gens anacrénicas, a idéia de significados latentes sob os explicitos, o terrivel que subjaz ao Aparentemente respeitdvel ¢ ordeiro —em suma, o ¢stranho — podem parecer bastante afi- nados com as preocupagées mais amplas do Surrealismo. E, contudo, a diferenca & que Bataille recusou-se a acatar as imagens disponiveis de liberacdo (fossem clas marxistas ou nao), preferindo participar do seu trauma, envolver-se na sua “baixeza” sem a pretensio de distanciamento objetivo. E um trago importante de sua escrita a tendéncia a atuar com base nas estratégias perversas descritas. Seu ensaio “Le ‘Jeu lugubre™, por exemplo, embora tendo retirado seu titulo de uma pintura de Dali, é também um lipo de “jogo htigu- bre” que nao mantém distancia de seu objeto, como Breton possivelmente teria desejado, mas se submete a suas préprias metaforas de “uma feitira horrivel” . Para Bataille, contra 0 idealismo existia apenas a bestialidade: “E impossivel”, escreveu, “comportar-se dife- rentemente do porco fossando a lavagem’. Para Breton, ao contrario, “o homem ... é ainda livre para acreditar em sua liberdade” (Breton, “Second Manifesto of Surrealism”, p. 187). Para Breton, resta sempre alguma esperanea (contida, lembre-se, no nome de Nadja), ao passo que, para Bataille, a iluminagio é necessariamente acompanhada do pecado. Breton apegou-se a uma concep¢io de beleza, a qual chamou de “beleza convulsiva”. Para Batail- Ie, existe também a beleza, mas somente no momento de obsolescéncia, que esta indele- velmente ligado 4 podridao c 4 decadéncia e, por fim, A morte (suas metaforas de pé, cuspe, até mesmo de abatedouro, sugerem formas diferentes de putrefagio). 1a A bassesse de Bataille Bataille estava interessado na hassesse, ou “baixeza”, como um mecanismo que desenca- deava a degeneraciio e a decadéncia — os processos caracteristicos do informe, out 0 proces- so pelo qual a forma é “desfeita”, Em seu “Diciondrie critico”, publicado em Documents em 1929, Bataille deliberadamente parodiou a idéia de diciondrio como uma série de definigdes. ‘Ao contrario, as palavras que ele seleciona, tais como wif (“olho”), iufornre (“informe”), abat= toir (“abatedouro"), la bouche (“boca”) e matérialisme (“materialismo”), so dispostas de um modo que as impede de ler seus significadas fixados. Flas seguem 0 formato de um dicionario, mas ao mesmo tempo desfazem esse formato. As fotografias que acompanham 06 textos ndo fornecem definigdes, mas acrescenlam uma categoria a mais de sugestivida- de [185, 186]. Isto é, as palavras sao desprovidas de qualquer definicao absoluta e, ainda, so. deslocadas pelas imagens (que foram produvidas por Boiffard ¢ Eli Lotar, entre outros). Sob- ‘© mesmo verbete de dicionario para ai, Bataille também reproduza pintura de Dali O san- gue é mais doce que o mel, de 1927, junto com uma velha histéria de detetive em quadrinhos, L’Qeil de ta Police [187]. Varios dos termos de Bataille no dicionario e em outras secdes da revista referem-se a partes do corpo como uma anatomia desmembrada do modemo. Bataille, come Breton, via Picasso como uma figura fundamental. Mas, enquanto Bre- ton considerava o trabalho de Picasso um “caminho preferencial” por onde o Surrealis- BRETON E BATAILLE 207 " eS, warel duas paginas de fotografias de Eli Lotar em G. Bataille, “Dictionnaire eritico”), Documents, n*7, 1929. Fotografado por cortesia da Courtauld Institute Book Library. © pacs, Londres, 186. “Bouche” ("Boca”), fotografia de Jacques- André Boiffard em G. Bataille, “Dictionnaire tique” (“Dicionario critico”), Documents, , 1929. Fotografado por cortesia da Courtauld Institute Book Libra: Londres, 1993. 208 SURREALISMO, MITO F PSICANALISE 187. Pagina de Documents, n° 4, 1929, com " uu L'Gvil de la police e Le ee: i ii | p i 1 Sang est plus dowx gue lf UTA Je aiel (O sangue ¢ , aniais doce qu a nicl), de Salvador Dali, 1927, pintura desaparecida. © DEMART FRO AKT by/pacs, Londres, 1993, Sabie Dal, Le ming lun dics que le ene (927) Call rien mo também deveria passar, Bataille enfatizava a sua sordidez, o que poderiamos chamar de um “caminho descendente”, no qual “o deslocamento das formas impulsiona o pen= samento para baixo” (Bataille, “Le ‘Jeu lugubre’”, p. 86). Da mesma forma, tanto o grupo surrealista quanto Bataille celebraram o trabalho do Marqués de Sade. Em La Revolution Surréaliste e, mais particularmente, em Le Surréalisme ae service de la Révolution, Sade & discutido-como um herdi do Surrealismo (por exemplo, a homenagem de Paul Eluard a Sade, “D.A.F, de Sade, o fantastico ¢ revolucionario escritor”), como um homem que pas- sua maior parte de sua vida na prisio pelas suas crencas ¢ que merecia ser celebrado como um ateu, um revoluciondrio e um escritor que havia liberado a sua imaginagio eré- tica. Nesse sentido, os surrealistas seguiram Apollinaite, que, na introducio & sua edigdo de 1909 da obra de Sade, proclamou “o Marqués de Sade o mais livre de todos os espi- OPAPEL DA DESORDEM PSIQUICA NA ESTETICA SURREALISTA 209 ritos até hoje”. Bataille compartilhava dessa conviccio da importancia de Sade, mas enfatizava o scu “tato para o terrivel”, a violéncia e a crueldade de scus escritos (um titu- lo provis6rio para seu ensaio “Le ‘Jeu lugubre” teria sido “Dali e Sade gritam juntos”). Bataille achava que, seguindo as descobertas de Freud, as diferencas entre a cruelda- de dos rituais de sacrificio dos povos antigos ¢ os apelos escandalosos de Sade eram ape- nas superficiais. Ele considerava Sade um precursor exemplar do inconsciente moderne que, como ¢ artista espanhol Goya, expés “as faces terriveis dos sonhos” subjacentes a aparéncia das coisas. Em sua concep¢ao de arte moderna, Bataille internalizou os principios de Sade. O trabalho de Miré, por exemplo —que decompés a imagem ¢ quebroua sua uni- dade —, seria, como 0 de Dali, indicativo do principio da destruicao operante na arte moderna, Em seu livro bastante posterior sobre Manet (1955), Bataille claborou essa idéia para argumentar que a arte moderna comesava com Manet porque ele havia sido 0 prix meiro a “destruir” 0 tema na pintura. Com Manet, comecou a obliteragao do “texto” — isto & do enredo que deveria ser 0 pretexto da pintura. No case de Olympia, 0 “texto” da pros- tituicdo é repudiado ou invalidado pela manipulacao de Manet, provocando um “corte de relagdes" entre o “texto” ¢ a pintura: “a pintura oblitera o texto”, escreveu Bataille, “eo sigui- ficado da pintusa ndo esti no texto escondido, mas sre supressio desse texto” (Bataille, Manel, p. 62) E muito facil, 0 fazermos comparagées entre Breton ¢ Bataille, perder de reno que eles compartilhavam. Eles, claramente, tinham mais afinidades entre si do que com as concepcées dominantes de realidade, ou com o tipo de estética da maquina, ou “construtiva’, discutida no capitulo anterior, Partiddrios de ambos tendem freqiiente- mente a exagerar suas diferencas, que sem dtivida existem, no sentide de difamar um a custas do outro — afirmando, por exemplo, que Breton representa “unidade” em relat ao sentido de “fragmentagao” ou “descentralizagao” que ha em Bataille, ou que Batai Je simplesmente representa o Surrealismo sem politica, em oposigao as credenciais revo- luciondrias de Breton, O Surrealismo, em si multifacetado, tornau-se um foco de consi- deragées conflitantes sobre 0 significado do moderno. Foi Breton que dominou a litera- tura sobre o Surrealismo, tanto como a voz mais poderosa de seus objetivos revolu- cionarios, quanto como 0 lider organizacional do movimento. O modelo de Surrealismo de Breton comprometeu-se diretamente com a politica revoluciondria e foi influente ao atacar a concepgao de que a arte podia ser independente das preocupacées sociais e poli- ticas. As iddias de Bataille nao sao mais afirmadoras da independéncia da arte ou da cul- tura do que as de Breton, nem idealizam a arte como livre da politica. Mas, certamente, aatitude de Bataille com relacdo 4 politica era diferente: o fervor ut6pico, toda a espe- ranca de “liberagio”, volta-se para dentro num estado terminal de trauma. Para Batail- Ie, se adesordem psiquica deve implesmente initada—mesmo como uma forma de critica — tudo estaria perdido, O papel da desordem psiquica na estética surrealista Ahisteria Dali publicou um artigo ilustrado em Minofaure em 1933 sobre o tema da “beleza horrivel ecomestivel”’ presente na art nouveau. A dualidade de “horrivel” e “comestivel” era uma conjungio tipicamente daliesca, aplicada aqui as formas de arte decorativa. O artigo apa- recia do lado oposto ao de Sculptures inoolontaires do fotégrafo Brassai. Eram fotografias de objetos encontrados e sueatas, tais como um bilhete de Gnibus dobrado ou um pedaco de papel amassado, isolados deslocados de seus contextos habituais [188]. Ao usar o close-up, Brassai capturou formas incomuns des da efemeridade urbana, que representavam, a sobra descartavel da cidade modema, Elas se relacionavam com outras de suas fotogra- fias, que mostravam facetas ¢ estratos inesperados de Paris ¢ apareciam em outras partes do mesmo numero de Minotre ~ por exemplo, os “desenhos pré-histéricos”, os Graffitis Parisiens [189], © artigo de Dali, por outro lado, era uma celebrago da arquitctura de Antonio Gaudi em Barcelona [190], ilustrada por fotografias de Man Ray. Ele ressaltava 0 210 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE P| / PA SCULPTURES INVOLONTAIRES 188, Brassai, Sculptures involontaires, fotografias, Mirotmerc, n¢3/4, 1933. Reimpresso por Arno Press com a permissao de Editions d’Art Albert Skira. @ pcs, Londres, 1993. 4, 1933, Reimpresso por A Londres, 212 SURREALISMO, MITO E PS (CANALISE 190. Man Ray, foto da arquitetura de Gaudi, em Dali, “Dela beautéterifiante ct comesib de architecture modern’ style”, Minotnure, né 3/4, 1933. Reimpresso por Amo Press com a permissio de Editions d‘Art Albert Skira. © pemakt pao RTE Bv ADAcs, Londres, 1993. modo pelo qual a “férmula do angulo reto” e a “segao dourada” haviam sido substituidas pela formula da “ondulacdo convulsiva”. Esse era o perfil da arquitetura de Gaudi que Dali comparava, por analogia visual, com uma fotografia feila por Brassai de uma entrada art nouveat do metré de Paris [191]. E havia um paralelo adicional encontrado na “escultura histérica” de Gaudi, cujas cabecas femininas mostravam o “éxtase erético”. A colagem de Dali O jendmeno do éxtase [192], que usava detalhes de esculturas dos edificios de Gaudi, e ao interesse consolidado dos surrealistas pela histeria, saudada como a maior descoberta pottica do século xx (La Révolution Surréiliste, n° 11, 1928, pp. 20-2) Notamos com freqiiéncia que os surrealistas, ao revelarem o mundo escondido dos desejos inconscientes, focalizam situagbes de faléncia psiquica e social em que as leis 40 enfraquecidas ou destrufdas. Um exemplo disso ¢ a celebragao da “loucura” de Nadja por Breton, que acaba por interné-la num hospicio; outro ¢ o interesse surrealista pela histe- ria. Em uma pagina dupla comemorativa do “O cingtientendrie da histeria”, em La Révo- lution Surséatiste em 1928, Breton e Aragon escreveram: “\ histeria nao é, de modo algum, um sintoma patoldgico, podendo, de todas as maneiras, ser considerada uma forma suprema de expresso” (n° 11, p, 20), Seus artigos foram ilustrados por fotografias de uma histérica estudada por Charcot em 1878. A jovem paciente, “Augustine”, havia sido foto- grafada numa série de estados involuntarios, denominados “attitudes passionnelles” (“atitudes passionais) [193]. Ao contrario de Charcot e de seu discipulo Freud, os sur- realistas tendiam a celebrar a histeria mais como uma condigio passional do que patolé- a. Para Breton e Aragon, a condicao da paciente histérica de Charcot exemplificava a ruptura de leis repressivas:'“A histeria é um estado mental mais ou menos irredutivel e que € caracterizado pela subversao das relaces entre o sujeito ¢ o mundo da moralida- de, ao qual ele se opée, fora de qualquer sistema de delirio” (La Revolution Surréaliste, n® IL, p. 22), Asubversio, nesse sentido, significa um protesto ineonsciente, o qual, em interpretagdcs feministas mais recentes da obra de Freud, tem sido caracterizado como um protesto contra a lei patriarcal: “No corpo do histérico, homem ou mulher, reside 0 pro- testa feminino contra a lei do pai” (J. Mitchell, Psychoanalysis and Feminism, p. 404). Cer- tamente, a preocupagao surrealista com a histeria feminina pode ser vista como reforga- OPAPEL DA DESORDEM PSIQUICA NA ESTETICA SURREALISTA 213 191. Brassai, fotografias das grades do metré de Paris, em Dali, “De la beauté terrifiante et comestible, de architecture modern’ style”, Minature, n#3/4, 1983, Reimpresso por Amo Press com a permissio-de Editions d’Art Albert Skira. © DEMART PRO ARTE BV/DACS, Londres, 1998. dora de uma visio estereotipada da mulher como “louca" e “devoradora”. Mas seu “pro- testo” é também importante, ¢ a énfase na faléncia psfquica langa uma luz bastante dife- rente sobre 0 uso do esteredtipo pelos surrealistas. Nao estou sugerindo, obviamente, que os surrealistas deliberadamente usaram Freud dessa maneira, mas apenas que a posi¢io ocupada pela histeria na estética sur- 214 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE 192, Salvador Dali, Le Phénomene de Vextnse (O fendmeno do éxtnse), colagom, Minotaxere, ee a Va fe n°3/4, 1933. Reimpresso por Amo Press a ree com a permissao de Editions d’ Art psa ce Albert Skira. © DEMART PRO ARTE BY/DACS, Landes, 1993, realista era complexa. As razées pelas quais eles se sentiram tio atraidos pelas fotogra- fias dos pacientes de Charcot envolviam suas prdprias visoes da sexualidade feminina © © papel que a desordem psiquica feminina representou na sua estética, Seu conheci- mento sobre a histeria era amplamente derivado de Charcot ¢ de outro psicdlogo expe- rimental, Pierre Janet. Mas a histeria era também, como eles reconheceram, fundamen: tal na obra de Freud (um de scus primeiros casos, “Dora”, tornou-se um exemplo famo- so de histeria), Para Freud, a histeria era caracterizada ao mesmo tempo por “tim desejo sexual exagerado e por uma excessiva aversdo A sexualidade” (Freud, “Three Essays on the Theory of Sexuality”, p. 79). A doenca era vista como uma forma de escapar desse ¢onflito “ao transformar ... impulsos libidinosos em sintomas" (p. 79). Embora a histeria seja vista freqiientemente como um fenémeno do século XIX —a grande descoberta do século, como wimos, para Breton e Aragon -, vale lembrar que 0 mais importante trabalho de Freud sobre a sexualidade feminina data dos anos 20 e 30, quando a histeria ainda exercia um papel importante na sua concepgao de patologia femi- nina. Em seu ensaio de 1931, “Sexualidade feminina”, Freud desenvolveu a idéia de que asexualidade da mulher era distinta da do homem ~ ¢ nao, como ele havia suposto ante- riormente, apenas o seu reverso. A histeria, sugere Freud, € particularmente comum entre as mulheres porque esta enraizada na fase pré-edipiana das meninas, de ligacdo com a mae, O problema especifico das meninas é que elas precisam fazer a transi¢ao da mae ‘enquanto objeto de amor para 0 pai (e; portanto, para todos os homens). A parandia, nas Survéaliste, “Le cinquantenaire de Vhys ni (OPAPELDA DESORDEM PSIQUICA NA ESTETICA SURREALISTA LES ATTITUDES PASSIONNELLES EN 1875 ie, 1878-1928" ("O "11, 1928. Reimpresso por Amo Press. N a jiientendirio da histeria”), La Rcvotution 216 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE mulheres, era outra condigao que derivava desse periodo da infincia de dependéncia da mae. Eram fundamentais aqui as maneiras diferentes pelas quais 0s meninos e as meni- has experienciavam o complexo de Edipo. Se inicialmente Freud nao fazia diferenca entre 05 Sexos cont relagao a essa fase vital, ele agora escrevia: ‘Uma coisa que permanece nos homens pela influéncia do complexo de Edipo é uma certa depreciagio em suas atitudes para com a mulher, as quais eles consideram castradas .. Muito diversos sio os efeitos do complexo de castracao na mulher. Ela reconhece o fato de sua castragao, ¢ com isso, também, a superioridade do homem ¢ a sua propria inferioridade; porém, rebela-se contra esse indesejado estado de coisas, (Freud, “Female sexuality”, p.37) Ele continua: Provavelmente nao estaremos errados ao dizer que é essa diferenga na relacSo reciproca entre 9 Edipo ¢ 0 complexo de castragao que confere uma marca peculiar ao cardter das mulheres come eres socials, (p. 377) Algumas psicanalistas ¢ tedricas feministas desenvolveram a idéia de que a teoria de Freud descreve as relacGes de poder como elas existem sob 0 patriarcalismo, mas nao as pres- creve.* Desse ponto de vista, a forca critica da teoria de Freud reside, parcialmente ao menos, em sua andlise de como a diferenga sexual ndo é determinada biologicamente, mas produzida culturalmente. O complexo de Edipo, por exemplo, mantém sua importancia capital porque desempenha simbolicamente o que o psicanalista Jacques Lacan iria cha- mar de “a lei do pai”, que tem sido considerada emblematica da estrutura de poder sob © patriarcada. E Freud fornece uma explicacio de como essas diferencas sao representa- das simbolicamente. E importante reconhecer aqui o valor simbélico, mais do que o valor literal, da teoria de Freud, em que “a lei do pai” representa metaforicamente a dominagao do homem sobre a mulher. Lacan mais tarde reconheceu que o cardter da “ati- tude sexual feminina” havia sido sintetizado com precisdo na palavra “simulacao”, que foi introduzida no debate sobre sexualidade feminina em 1929 com a publicacio do ensaio da psicanalista Joan Riviere, “A feminilidade como uma simulagao”. Aqui, Rivie- re questiona 0 que €a feminilidade, ao examinar o casode uma mulher bem-sucedida em sua carreira ¢ que, nos termos de Riviere, luta para ser “como um homem’ no trabalho e ainda compensa isso ao adotar uma mascara de feminilidade. Riviere condlui que a femi- nilidade ¢ ela propria uma representagao e, come tal, o mesmo que uma simulagdo. A encenagao de uma idgia dada de “feminilidade” novamente reforca a proposicao de que as diferengas sexuais significativas sio produzidas na cultura, nao na natureza. A histe- ria tem sido vista nesse contexto como uma simulagao falha.’ De ponto de vista psica- nalitico, portanto, a histeria ¢ uma condigao especifica que traz a tona os problemas gerais de relacionamento entre os sexos, ¢ entre a “masculinidade” ea “feminilidade”. O dominio simbélico com o qual lida o Surrealismo flutua entre a simula¢ao (a fan- tasia de feminilidade) ¢ os seus momentos de fracasso (a histeria, por exemplo), como dois lados de uma mesma moeda. Surrealismo, em vez de “desmascarar” a feminilidade, acha suas mascaras desejaveis e, a0 fazé-lo, privilegia o ponto de vista erético masculino. Em seu ensaio “La beaute sera convulsive” (“A beleza serd convulsiva”, a tiltima fala de Nadja), Breton deixa claro que, de seu ponto de vista, a resposta estética esta integralmente ligada & sua experiéncia de prazer erstico. Esse ensaio foi mais tarde incorporade em L’Antour fou e, nele, Breton discute o efeito erdtico da “floresta de signos”, tanto em formas animadas como inanimadas. Um dos trés elementos da “beleza convulsiva” era 0 erotique voilée (“erdtico disfargado") - 0 processo de representagio atuando na natureza por meio do qual, por exemplo, um animal pode imitar 0 outro ou o inanimado confundir-se com 0 animado, ou em que uma coisa assume a aparéncia de outra, como nas fotografias de cristais de rocha feitas por Brassai reproduzidas no ensaio [194]. Mas ele reproduz + J. Mitchell apreseentow originalmente usa vissio em Paycloanalysis and Fewrinien te os empregos feministas posteriores de Freud ¢ Lacan, em particular, S. Heath aponta isso ¢ 0 discute em “Joan Riviéne and the Masquerad influenciou amplamen- O PAPEL La beauté sera conv » por Amo Press com a permissio de ditions d’ Art Albert Skira. ondres, 218 SURREALISMO, MITO E PSICANIALISE, também, e com a legenda érotique voilée, as fotografias de Meret Oppenheim [160] reali- zadas por Man Ray, em que as formas do corpo feminino e da maquina séo mostradas num estado de transi¢ao, com aimagem da mulher mesclando-se a identidade da maqui- na. O objetivo nao é tanto desmascarar uma feminilidade escencial, mas elovar 0 efeito en6- lico por meio da inconclusao, por meio do proprio disfarce. Outro elemento na nogio bretoniana de beleza convulsiva era a explosante-fixe— por ‘exemplo, outra fotografia de Man Ray’ que congela o movimento selvagem da danga [195] om 0 intuito de éapturar “o momento exato de expiracio de movimento” ("Mad Love”, em What is Surrealisin?, p. 162). Esté na natureza da beleza convulsiva, de acordo com Bre- ton, que ela nao nos possa “aleancar pelos canais légicos normais”. Nesse sentido, o deli rio era um estado para ser almejado, pois cle questiona o que significa o “normal”. Por- tanto, mesmo quando Breton, num texto como esse, ndo se refere diretamente a histeria ‘ou a outras desordens psiquicas associadas particularmente as mulheres, clas estio sempre implicitas em sua estética. O termo “convulsive”, por exemplo, derivava des movimentos involuntarios do corpo engendrados por condigées fais como a histeria. ‘Como observou Whitney Chadwick, amour fou era o termo empregado por Pierre Janet para o estado de éxtase experimentado pelas mulheres histéricas (Women Artists and the Surrealist Movement, p. 35). Breton faz disso um principio da estética surrcalista A paranéia ‘Outra situagdo de falha psiquica que interessou aos surrealistas foi o caso das irmas Papin, discutido em Le Surréalisme au service de la Révolution, em que aparecem também duas fotografias das irmas, “antes” e “depois” [196]. As itmas tinham sido criadas num convento em Le Mans e entao colocadas pela mae no servico doméstico de uma casa bur- guesa. Durante seis anos, elas suportaram, com perfeita submissdo, pedidos irracionais 196. As irmas Papin, Le Surréafisnne au service de la Revolution, n 5, 1933, Reimpresso por Ammo Press OPAPELDA DESORDEM PSIQUICA NA ESTETICA SURREALISTA 219 € insullos; por fim, 0 medo, a exaustae-c a humilhagao provocaram 0 ddio a seus palroes, 98 quais acabaram sendo mortos por elas, que arrancaram scus olhos e esmagaram suas cabegas, Em seguida, lavaram-se cuidadosamente ¢ foram dormir. Paul Eluard e Benjamin Peret terminaram a histéria com as palavras (p. 28): “Elas sairam totalmente armadas de ‘tum canto de Maldoror’ —sugerindo, com a referéneia aos Cantos de Maldoror, do Conde de Lautréamont, que suas agdes eram pocticas em vez de criminais. Novamente, essa histéria horrenda oferece wma narrativa na qual os surrealistas podiam projetar suas prdprias preacupagées, tais como sua construgao da mulher como. “luca”, como a “outta”. (Breton, por exemplo, identifica Nadja, encarcerada num asilo, como de certa forma mais préxima do inconsciente do que os homens.) A acao das rms, © massacre de seus opressores, também significou para os surrealistas @ protesto maximo contra uma estrutura social na qual elas estavam aprisionadas e escravizadas Portanto, esses exemplos de loucura poderiam ser considerados um protesto contra a familia, contra 0 catolicismo e contra a opressio sexual e social. Indiretamente, isso & espelhado numa ilustragac no mesmo numero da revista, o Edipo de Ernst [163], pro- porcionando a situagao elassica de protesto contra a lei do pai. ‘O modo pelo qual essa pequena composicao sobre as inmas Papin aparece na revista também € revelador. Foi colocada ao lacio de um artigo (sem ligacio com 0 caso) do sur- realista belga Paul Nougé, chamado “Les Images défendues” (“Imagens proibidas"), que tratava do mecanismo da metéfora. Abaixo, estava disposto um desenho de Magrit- te que combinava as imagens da Virgem Maria ¢ de uma prostituta, num gesto blasfemo de anticlericalismo. A celebracao da desordem psiquica da mulher, 0 gesto blasfemo ea visdo de Nouge sobre o papel do escandalo na “recusa da ordem estabelecida” (P. Nougé, “Les Images défendues” , p. 28) sto reunidos como comentarios simultanees. E em autra imagem (no mesmo mtimero), que também pode ser lida em parte como um ataque a Igreja catdlica, Man Ray enquadra, com a forma delineada de uma cruz invertida, a foto- Brafia das nddegas de uma pessoa [197] ca dedica ao heréi surrealista, o Marqués de Sade. O psicanalista Lacan esteve envolvida com o grupo surrealista nos anos 30. Ele publicou dois artigos sobre a parandia na Minotaure, um deles (no mesmo ntimero que trazia 0 artigo de Dali sobre Gaudi) sobre as irmas Papin. Para Lacan, as irmas Papin 197, Man Ray, Momumentt & D.A.F: de Sade, 1933, fotografia, reproduzida em Le Surréalisme av service de Ia Revolution, n*5, 1933. Colegao de Arturo Schwarz, © apacr, Paris ¢ bacs, Londres, 1993. 220 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE haviam cometido o mais exemplar “crime parandico”; a parandia era um estado mérbi- do, caracterizado por delirio ¢ manias de perseguicdo, mas, como uma condicao expe- rimentada pela imaginacao criativa, podia ser reveladora. Em outro artigo sobre a ques- tio do estilo, Lacan defendeu: “Assim, algumas dessas formas de experiéncias vividas, conhecidas como mérbidas, parecem particularmente férteis em termos de expresso simb6lica” (Lacan, “Le Problem [sic] du style et la conception psychiatrique des formes paranoiaques de I'expérience”, pp. 68-9). Como a histeria anteriormente, a paranéia agora entrava na estética surrealista, por intermédio de Dali em particular. Apesar de niio ser de maneira alguma uma desordem exclusivamente feminina, a associagao da parandia com as irmas Papin ndo era acidental para os surrealistas, que elegeram a dupla como a mais recente de uma longa série de anti-heroinas desde Germaine Berton. Quando Dali comegou ase interessar pelo trabalho de Lacan, a paranéia jé fazia parte de seu vocabuldrio— ¢ a sua interpretacao “critico-parandica” da pintura Angelus, de Jean Frangois Millet, precedeu o ensaio de Lacan. Quando Dali leu a tese de doutorado de Lacan sobre a psicose parandica, julgou que ela reforcava seus préprios interesses. Em 1931, por exemplo, Dali havia produzido seu “rosto parandico” [198], em que a fotografia de uma aldeia africana, ao ser virada de lado, transformava-s¢ no perfil de um rosto. Isso mostra, novamente, o interesse do Surrealismo pela metafora, pela idéia de que uma coisa podia simultaneamente ser lida como outra sem nunea perder inteizamente sua identi- 198. Salvador Dali, fotografia interpretada de “Communication: visage paranoiaque” (’Comunicacao: rosto parandico”), Le Surréalisme an service de la Revolution, n® 3, 1931. Reimpresso por Amo Press. (© DEMART PRO ARTE BY/DACS, Londres, 1993. OBIETOS DO DESEO. 221 199, Salvador Dali, Banliewe de ia ville paranoiaque-critique; aprés-midi sur la lisitre de histoire européenne (Subsirbio da cidade critico-parandiea; tarde nos arredores da histéria européia}, 1936, dleo sobre painel, 46x 66 cm. Coleco privada, Foto: Christie‘s Colour Library. © pacs, Londres, 1993 dade original. Para Dali, “as imagens parandicas sio devidas ao delirio de interpretagio” (Ades, Dali, p. 124). Elas podiam também proliferar-se infinitamente: “O fenémeno paranéico”, escreveu Dali, sdo “imagens comuns tendo uma dupla figuragio; a figuragio pode ser tedrica e praticamente multiplicada” (Ades, p. 126). Dali desenvolveu seu préprio “método critico-parandico” em pintura. Seu quadro Subtirbio da cidade crttico-parandica [199] lembra as imagens de de Chirico.da menina solitaria correndo em ruas vazias [182]. A idéia da cidade como um sitio arqucoldgico de sonhos e memG6rias, assim como o inconsciente, constituia um interesse constante para 9s surrealistas, como jd vimes. Em vez de empregar imagens de Paris, Dali utilizava vistas panoramicas de cidades espanholas, os subtirbios no titulo francés referem-se a reas marginalizadas ¢ remotas da Europa. As ligagdes entre as formas sao sugeridas pela semelhanga entre og detalhes — as uvas, os cranios ¢ a estiitua eqiestre, por exemplo—ou nos padrdes das nuvens que ficam sobre o arco de pedra, Uma “colagem” de imagens dispares é utilizada, na qual a figura de uma mulher é simbolicamente sobreposta a uma paisagem suburbana — ou, melhor, a uma série de locais e vistas desconectadas = como a paisagem do inconsciente. Objetos do desejo A Exposicao de Objetos Surrealistas, 1936 Em 1936, ano em que pintou Subiirbio da cidade critico-parandica, Dali participou de uma Exposigao de Objetos Surrealistas promovida pela Galerie Charles Ratton em Paris. Com base na fotografia de uma instalagio da exposigao [200] é possivel obter uma idéia da variedade surrealista - assim como o tipo de aparato utilizado, cujos mostrudrios de vidro sugeriam um muscu etogrifico. Mascaras primitivas (no alto, a esquerda) eram justapostas a trabalhos de Picasso (relevo) ¢ a objetos surrealistas, tais como Bola susperisa de Alberto Giacometti (canto inferior esquerdo e figura 201); os ready-mades de Marcel 22 SURREALISMO, MITOE PSICANALISE 200, Instalagao na Exposigio de Objetos Surrealistas, Galerie Charles Ratton, 1936, Reproduzido por cortesia da Galerie Charles Ratton e Guy Ladritre, Paris. 201. Alberto Giacometti, Boule suspenduee (Bola suspensa), Le Surréalisme aw service de la Revolution, n¢3, 191, Reimpresso por Arno Press, ® apace, Paris e Dacs, Londres, 1993. OBJETOS DO DESEIO 3 2. Marcel Duchamp, Why 1 sneeze Rrose Sélavy? (Por que ito espirrar Rrose Sélavy?), ready- nuade, 1921, blocos de marmore em forma de cubos de acticar, termémetro, ossos de molusco e madeira contidos em uma pequena gaiola, 11 x 22 x 16 cm. Philadelphia Museum of Art; Colecao Louise e Walter Arensberg 50.13.75, © apacp, Paris e Dacs, Londres, 1993, Duchamp [202] eram expastos ao lado de objetos surrealistas tais como Objeto: desjejurm em pele [157] de Meret Oppenheim. Os “objetos matematicos” [203] do Instituto Poincaré de Paris foram também incluidos. Como itens de “légica’, esses objetos eram conceilualmente, digamos assim, invertidas, como se para reafirmar o argumento de Roger Caillois em seu artigo “Spécification de la poésie” de que o desejo surrealista de levar a realidade ao descrédito 86 podia ser entendido se visto como oposicao a visae dominante e conside- rando-se que o Surrealismo valorizou tudo o que o industrial e o racional tentaram supri- mir (p. 31). A questo era desestabilizar as divisdes e categorias estabelecidas, em vez de promover aquelas absolutas ¢ universais. A inclus3o de “objetos matematicos” vis sugerir que a oposicao racionalista entre objetos cientificos e posticos era dispensavel Os objetos que fazem parte da exposicao surrealista de maio de 1936", escreveu Bre- ton em “A crise do objeto”, “so de um tipo calculado principalmente para despertar 0 ra 203. Man Ray, estudo de um “objeto matematica”, c, 1936, fotografia. Colecio privada, Paris, © apacr, Paris e PACS, Londres, 1993. 224 SURREALISMO, MITO E PSICANALISE proibido, que resulta da estupidificante proliferagdo de objetos que violam nossos senti- dos a cada dia e tentam nos persuadir de que tudo o que possa extstir independentemente desses objetos mundanos deve ser ilusério” (p. 279), Isto ¢, as reagées habituais eram colocadas em crise ¢ as definigdes costumeiras eram questionadas com base na mudanga de papel que esses objetos haviam sofrido, Os objetos comprados prontos eram desvia- dos de suas fungGes habituais e recebiam uma assinatura; 05 objetos encontrados per- mitiam interpretagGes que eram diferentes de suas originais; os objetos surrealistas fre- qiientemente agrupavam objetos familiares dispostos de um modo nao familiar. Essas redescrigdes resultaram de um proceso de “perturbagao e deformacao” (p. 280). Elementos dispares sao reunidos em Objeto: desjejum em pele [157] de Meret Oppenheim, que trabalha com a disjuncao entre “xicara, pires ¢ colher” e “pele”. O mate- rial no combina com o objeto; € uma pele particularmente aspera, exatamente o oposto da superficie lisa e brilhante da louga ¢ talheres. © titulo estende essa incongruéncia visual e tatil A metéfora “desjejum em pele”. As conotagbes de “pele” ¢ “xicara, pires e colher” sio postas em conflito. Mas, ao mesmo tempo, sio levadas a relacionar-se, no sen- tido de que 0 objeto do dia-a-dia é visto em seu aspecto sexual, por meio da conotagao da pele, um dos simbolos sexuais discutidos por Freud. A conotacao sexual da pele, para Freud, era (como 0 veludo) “a fixagao da visio dos pélos pubicos, que deveria ser segui- da pela tio desejada visdo do sexo feminino” (Freud, “Fetichismo”, p. 354). Um material especifico pode assumir um significado sexual por associacéo em um determinado con- texto. Ainda que os surrealistas 4s vezes recorressem 4 teoria de Freud do simbolismo dos sonhos, uma parte importante de seu trabalho era o fato de terem esses simbolos a capa- cidade de ser ambiguos, de mudar ¢ de variar—para alterar seu significado de acordo com © contexto. Em outro momento, por exemplo, Freud enfatiza a natureza bissexual de sim- bolos que desafiavam as polaridades simples, que nao eram nem exelusivamente “mascu- linos” nem “femininos”. Em seu ensaio “Fetichismo”, ele enfatizou a idéia de “uma fixagdo da visa0” de um objeto. Um olhar, improvavel de ser lembrado conscientemente, poderd ser repetido e tornar-se uma fixacao. O objeto da fixagao é sempre em certa medi- da uma escolha aleatéria, ou ao menos no segue conscientemente padrées racionais. 0 fetichismo, nesse sentido, esté relacionado tanto com olhar para um objeto especifice como com olhar para o propria objeto do desejo. Alguns objetos permitem ser fetichizados mais facilmente do que outros, mas em geral qualquer coisa € passivel de ser fetichizada Fungées simbélicas A Bola susperisa de Giacometti [201], de 1930-31, foi reproduzida em Le Surréalisme au ser- vice de la Revolution et 1931 junto com o artigo de Dali, “Objetos surrealistas”: a versio em madeira dessa peca havia sido comprada por Breton, Dali descreve como a bola de madei- Ta suspensa por uma corda de violino é “marcada por uma cavidade feminina” que se move sobre a aresta da forma crescente ("“Objets surréalistes”, p. 17). Essa foi a primeira vez que Giacometti incluiu uma parte mével em suas esculturas, as quais denominou “obje- tos méveis e mudos” em um artigo que se seguia ao de Dali no mesmo nuimero da revis- ta (pp. 18-9). Dali incluiu a escultura de Giacometti em seus “objetos com uma fungao simbolica”. Novamente, a funcao simbdlica dos objetos era basicamente sexual, e derivava dos “fantasmas e representacdes” do inconsciente. Gutros objetos incluides por Dali cram de Breton, Gala Eluard [204], Valentine Hugo [205] e dele préprio [206]. Seu trabalho Objetos escatolégicos furtcionando simbolicamente, de 1931, era uma composicao de objetos deslocados de seu contexte habitual para funcionar de um modo incomum. Incluia um sapato, uma xicara de leite momo, pasta com cor de excremento, um torrao de acticar suspenso em uma roldana e pintado com a pequena imagem de um sapato, pélo puibico e uma pequena fotografia erdtica. Para Dali, 0 objeto surrealista era a encamacao do desejo: Aencarnagio desses desejos, seus meios de objetificacio pela substituigio e pela metafora suas expressées simbdlicas constituem o processo tipico de peruersidade sexwal, 0 que é de todas as formas similar a0 processo de criagio postica. (Dali, “Objets surralistes”, p. 16) OBJETOS DO DESEO Reimpresso por Arno Press. © pacs, Londres, 1993. Ja Revolution, né © DEMART PRO 226 ‘SURREALISMO, MITO E PSICANALISE 207, Joan Mir6, Objeto poctico, 1936, montagem: papagaio empalhado em um pol de madeira, meia de seda empalhada com liga de veludo e sapato de boneca de papel suspensos em uma estrutura de madeira cavada, chapéu-coco, bola de cortiga pendurada, peixe de celuldide © mapa impresso, 81x 30x26 cm, Acervo, The Museum of Modern Art, Nova York; doacio de Sr. era. Pierre Matisse. © apacr, Paris ¢ DACS, Londres, 1993, A substituigao cra um mecanismo caracteristico do fetichismo, ea metafora era vi como 0 seu equivalente lingitistico. O-objeto como um todo, portanto, ma nas os objetos individuais nele inclufdos, poderia ser visto como uma sé do que ape- tuigdes para o desejo e como parte de um objeto ritualistico que se tornava, quando deslo- cado, 0 foco obsessive daqueles desejos. Miré tamb 1 trabalhos a partir de uma variedade de objetos encontra- dos, como em seu Objeto poctico de 1936 [207], no qual um papagaio empalhado e uma meia de seda estio entre os objetos calocados sobre um chapéu-coco. Elementos incoetentes $40 combinados em um “encontro ao acaso”, para usar uma frase de Lau ixéamont. De modo mais indireto, a idéia do objeto de arte total como um objeto de feti- chizagde pode ser visto em Objelo com gretha [208], de Mird Aqui, os objetes “encon- OBJFTOS DO DESEO 227 208. Joan Mird, Objet avec grifle (Objeto com gretha), 1931, leo sobre madeira preso em uma malha de arame, 36 x 26 cm. Colecio de Henriette Gomes. © apact, Parise vacs, Londres, 1993. s” nao so coisas como sapatos ou torrdes de agicar, mas materiais ¢ sucatas que continham eles préprios associagses. Formas félicas ambiguas sdo pintadas em um pequeno pedaco de madeira, pendurado numa tela de arame que servia também como uma moldura altemativa. Em outras ocasides, Miré empregou amianto ¢ outros mate- tiais em objetos compostos, pretendendo que fossem olhados da mesma maneira obsessiva, como fetiches Para os surrealistas, a idéia do objeto come fetiche podia variar de exemplos de arte africana e da Oceania, que eles colecionavam ¢ exibiam, a objetos “encontrados", ineluin- do o objeto de arte em si ~ qualquer objeto, de fato, no qual seus olhares de desejo escolhessem se fixar, [sso nio quer dizer que © apelo do fetiche estava no fato de ser uma categoria universal, transcendente, mas que residia nos lipos de mecanismos ¢ processos que estavam combinados na idéia de fetiche, Na coneepeao de Freud, o fetiche & sempre © substituto de alguma outra coisa, ¢ em termos surrealistas ¢ um objeto obsessive. Mas devemos ter em mente a questio apentada anteriormente, ou seja, de que a visao do obje- to, o processo de fixacdo, é também responsavel por cleger um objeto ¢ ndo outro como feliche. Um objeto ou imagem pociem ser usados repetidamente para mostrar esse aspec~ to obsessivo ou, igualmente significativo, a énfase pode estar no Angulo do olhar. 210. Man Ray, Rosabianca Skira. © apacr, Paris e Dacs, Londres, 1993 ca Skira. © apace, Paris e DAcs, Londres, 228 SURREALISMO, MITO-E PSICANALISE Sem titulo, 1983, fotografia. Colegio 1 titulo, 1983, fotografia. Colecio Fotografia e fetichismo Aidéia do othar obliquo, que é a0 mesmo tempo obsessive ¢ isola a imagem de seu con- texto familiar, foi caracteristico na fotografia surrealista. As séries de fotografias de chapéus [209, 210] foram produzidas por Man Ray para acompanhar 0 artigo “Sobre um certo automatismo do gosto”, de Tristan Tzara, em um niimero da Minotaure em 1933. Esse artigo tratava da moda contemporanea de chapéus femininos de feltro do tipo “diplomat” e outros estilos, que copiavam a moda masculina mas cuja fenda no topo era vista como uma metéfora para os érgiios genitais femininos. De fato, para Freud 0 chapéu era um simbolo obscuro, capaz de ter tanto uma significagio masculina como feminina, ¢ essa ambigitidade foi explorada por Man Ray. As fotografias focalizam o chapéu mais em relagao a sua forma do que como um acessdrio ou um complemento da cabega, e 0 Angulo da cimera inclina a forma para produzir a metéfora, atribuindo assim uma conotac3o sexual a um objeto do vestudrio de uso diario. Enquanto Breton, em Nadja, foi atraido pelos recantos antiquados, quase obsoletos, de Paris, Man Ray acompanha o artigo de Tzara encontrando metaforas de diferencas sexuais presentes na moda do dia-a-dia e mesmo nos estilos mais elegantes. Tzara pare- ce ter adotado muitos dos pontos-chave do ensaio “Feminilidade” de Freud, publicado no comego de 1933, e os aplicou as consumidoras de moda. O ensaio principiava com uma citacdo do poeta Heinrich Heine: Cabegas em hieroglificos bonés Cabegas em turbantes e barretes negros, Cabegas em perucas e milhares de outras Miserdveis, suadas cabegas de humanos Para Freud (p. 577), Heine era um dos poetas que “quebravam a cabesa contra 0 enigma da feminilidade”. E, em seu ensaio para a Minotaure, Tzara parece ter aproveitado a evo- cao de Freud a respeito dessa conjuncio entre chapéus, cabegas € 0 inconsciente. Isso pode ser considerado uma cadeia metonimica, que se move por associagio ou parece Vera dise Jo de R. Krauss sobre essas fi ro neste capitulo d sua discuss sobre o fetichismo « jos em Krauss ¢ Living 2 fotogratia vor fou, p95, Tam

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