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“O JOVEM MENDIGO” DE BARTOLOMÉ


ESTEBAN MURILLO, SEVILHA, 1645-55
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Licenciatura em História da Arte - 2° Semestre / 2º Ano

Trabalho para a Unidade Curricular de História da Arte da Época Moderna II

Orientado pelo Professor Nuno Resende

Organizado por:

Inês Delgado

PORTO
2022

* O presente trabalho foi redigido segundo a norma APA — American Psychological Association.
RESUMO
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A figura de Murillo é talvez o pintor que melhor define o cenário artístico espanhol
de todo o nosso tempo. Ele foi um criador de temas que tendiam a usar a imagem de
crianças como protagonistas indiscutíveis das suas telas. Esses temas vão desde episódios
de figuras bíblicas conhecidas até pinturas de género que retratavam a pobreza do mundo -
uma grande novidade na época -, sendo “O Jovem Mendigo” uma testemunha dessa
situação mais obscura vivida em Espanha e que o próprio Murillo experienciou. Posto isto,
ao longo desta investigação, para além de fazer uma análise formal da obra referida, irei ter
em conta o contexto cultural e social do artista, que influenciou profundamente a sua
atividade criativa, bem como as representações dos séculos seguintes. Assim, poderei
compreender como o passado de Murillo alterou a sua interpretação da Arte.

Palavras-chave: Bartolomé Esteban Murillo; “O Jovem Mendigo”; Pinturas de


Género; Pobreza; Crianças; Séc. XVII; Barroco Hispânico; Sevilha.

ABSTRACT
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The figure of Murillo is perhaps the painter who best defines the Spanish artistic
scene of our time. He was a creator of themes that tended to use the image of children as
the undisputed protagonists of their canvases. These themes range from episodes of
well-known biblical figures to genre paintings depicting the poverty of the world - a great
novelty at the time -, with "The Young Beggar" being a witness to this darker situation
lived in Spain and that Murillo himself experienced. That said, throughout this
investigation, in addition to making a formal analysis of the aforementioned work, I will
take into account the cultural and social context of the artist, which profoundly influenced
his creative activity, as well as the representations of the following centuries. In this way, I
will be able to understand how Murillo's past changed his interpretation of Art.

1
Keywords: Bartolomé Esteban Murillo; “The Young Beggar”; Genre Painting;
Poverty; Children; XVII Century; Hispanic Baroque; Seville.

SUMÁRIO
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I. Introdução…………………………………………………………………...……..3

II. Micro-Biografia de Murillo…………………………………………...……...…….4

III. As Crianças e a Pobreza nas Pinturas de Género……………………...……………5

IV. Análise da obra “O Jovem Mendigo” e Contexto......................................................6

V. Considerações Finais………………………………………………………..………9

VI. Recursos Bibliográficos…………………………………………………………...10

VII. Apêndices: Ficha-Técnica do Objeto Artístico……………………………………11

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INTRODUÇÃO
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Murillo foi uma das figuras mais importantes da Idade de Ouro da Espanha na
pintura. Ao longo da sua carreira profissional produziu diversas obras, as quais são nos
dias atuais um forte recurso para a história da arte. Mas além de se destacar pelas pinturas
religiosas da Imaculada Conceição ou cenas de Santos, destacou-se por incorporar a
representação de crianças enquanto protagonistas, diferenciando-os das demais, na sua
coleção, fator que até então era incomum. Ele não só as incorpora em obras religiosas, mas
também em obras de natureza profana.
Escolhi este artista em particular por despertar acesas controvérsias entre os
estudiosos da arte. Muitos perguntam: na história da pintura barroca espanhola altamente
marcada por Velázquez, Goya, El Greco, Caravaggio e Ribera, que significado podem ter
as obras “piegas” e anónimas de um Murillo no meio destes grandes mestres? Pois bem,
respondem os seus admiradores, e passo a salientar: a história da arte não é feita somente
de cumes, nem se nutre apenas de temas grandiosos ou dramáticos; também compreende a
crónica do cotidiano, o intimismo dos cenários familiares - com base na sua própria
experiência -, a graça, a doçura, e a inocência das crianças do povo, e ninguém como
Murillo soube recriar esse mundo menor, porém tão autêntico. O grande objetivo deste
trabalho, é compreender este tema inserido no contexto em que viveu, mas, para tal, será
necessário conhecer o seu passado.
Entre tantas pinturas de género que retratam a pobreza, “O Jovem Mendigo” atraiu
particularmente a minha atenção ao nível estético, não só pela paleta de cores, mas,
também, pelos jogos de luz e sombra empregues e pelo facto da figura principal estar
desenquadrada do cenário, sem fazer contacto visual com o espectador. Neste sentido,
comecei a minha investigação por fazer uma breve pesquisa digital sobre o autor e o objeto
artístico em questão e só nesta fase já consegui reunir bastante informação e imagens, - que
constam na tabela em apêndice -, todavia decidi ir até à Biblioteca da Faculdade e
requisitar alguns livros que tratavam a pintura espanhola no século XVII, como o livro de
Bardi e o de Mallory, e outros somente dedicados a Murillo, embora já sejam bastante
antigos e, por isso, tive que ver se a informação estava atualizada. São exemplos destes a
obra de Angel Dotor, Bernardino de Pantorba e Palacio. Ademais, foi de máxima
relevância a investigação em museus, principalmente o Louvre e o Museo del Prado, bem
como a dissertação de graduação de Erica Mugnaini somente dedicada a Murillo.

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Relativamente à metodologia utilizada, baseei-me no Manual de Boas Práticas, redigido
pelo docente desta unidade curricular, Nuno Resende, cuja ajuda foi fulcral no processo de
investigação.

MICRO-BIOGRAFIA DE MURILLO
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Existem poucos documentos sobre os primeiros anos da vida de Murillo ou sobre as


suas origens como pintor, no entanto sabe-se que nasceu em Sevilha, onde viveu grande
parte do seu tempo. Terá iniciado o seu aprendizado artístico na oficina de Juan del
Castillo, seu tio e padrinho, além de um pintor habilidoso por direito próprio, caracterizado
pela secura dos seus esboços e pelas expressões amorosas nos assuntos que pintou, aspetos
que Murillo tomou como inspiração nos seus primeiros trabalhos (Bardi, 1968). Na década
de 1650 ocorreu uma notável transformação no seu estilo, geralmente atribuída a uma
visita a Madrid, onde sem dúvida se deparou com as obras-primas de Velázquez e estudou
as obras de Ticiano, Rubens, Ribera e Van Dyck nas coleções reais; tampouco conheceu os
tesouros pictóricos de Filipe IV (The Editors of Encyclopaedia Britannica, 2022). As
formas suavemente modeladas, as cores ricas e pinceladas amplas da sua Imaculada
Conceição (1652) refletem o contacto visual direto com a arte dos venezianos do século
XVI e os pintores barrocos flamengos. À medida que a sua pintura se desenvolveu, as suas
obras mais importantes evoluíram para uma estética que se adequava aos gostos burgueses
e aristocráticos da época, demonstrado especialmente nas suas obras religiosas católicas
romanas (Museo del Prado Corporation, 2022).
Em 1645, voltou a Sevilha e casou-se com Beatriz Cabrera y Villalobos, com quem
teve dez filhos. No ano do seu casamento, Murillo recebeu a primeira grande comissão da
sua carreira: a execução de onze telas para o Convento de São Francisco. Ele trabalharia
neste projeto de 1645-1648, no qual retratou várias histórias de santos franciscanos que não
eram contadas com frequência na época, variando entre o tenebrismo e um estilo
suavemente luminoso que se tornou típico da sua obra madura. Após mais um período em
Madrid, de 1658 a 1660, regressou a Sevilha, tornando-se um dos fundadores e o primeiro
presidente da Academia de Bellas Artes, a primeira academia oficial de Espanha que
ensinava tanto desenho, como pintura, escultura e, ainda, douramento. Este foi o seu
período de maior atividade, recebendo inúmeras encomendas importantes. Todavia, acabou
por falecer no dia 3 de Abril de 1682, poucos meses depois de sofrer uma grave queda

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(pelo menos seis metros) enquanto trabalhava num afresco na Igreja dos Capuchinhos em
Cádiz, rompendo a sua parede abdominal. Murillo teve muitos alunos e seguidores, tendo
sido o primeiro pintor espanhol a alcançar ampla fama europeia e, até o século XIX, foi o
único artista espanhol cujas obras eram amplamente conhecidas fora do mundo hispânico
(Bardi, 1968).

AS CRIANÇAS E A POBREZA NAS PINTURAS DE GÉNERO


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Murillo foi um criador de temas inovadores durante o seu tempo, embora nos
últimos anos da sua vida não tenha sido valorizado como deveria ser. A sua personalidade
amistosa refletiu-se no seu trabalho artístico, na suavidade pictórica, na variedade
cromática e na mestria narrativa. Isso permitiu-lhe criar cenas íntimas com grande
sensibilidade, com um caráter infantil, feliz e sonhador - em contraste com a sóbria
objetividade das suas primeiras pinturas -, que nenhum artista havia transmitido em obras
de natureza religiosa ou profana. Mas o mais notável nesse sentido é que ele inovou na sua
pintura, incluindo um género que começou a representar, e que não havia sido visto dessa
forma antes: as crianças, neste caso, mendigas, talvez porque este tema foi muito apreciado
na Flandres devido à longa tradição flamenga de cenas de género da classe baixa, incluindo
cenas de taverna1 (Mallory, 1991). Ele conseguiu capturar a essência da inocência em
alguns momentos, e travessuras em outros, no entanto, sempre sem índole maligna. Soube
ainda representar essas crianças em diferentes contextos e idades, e acima de tudo, em
temas variados, retratando a pobreza e o cotidiano, porém com um toque divertido e muito
espontâneo. Nas suas obras não há misticismo ou drama, como se viu em mestres
anteriores, ou em contemporâneos, como Ribera ou Zurbarán. Pelo contrário, o trabalho de
Murillo cativa o público pela doçura e nostalgia, mantendo-se sempre fiel ao seu ‘estilo’
mesmo que muitos o tenham criticado. Francisco Pacheco foi um dos poucos escritores que
o apoiou e fez menção às suas obras na época (Palacio, 1965).

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As pinturas de crianças pobres também foram influenciadas pela popularidade da literatura picaresca
espanhola no século XVII. Protótipo de toda a literatura socialmente empenhada, ela denuncia - embora
obliquamente - os profundos desequilíbrios da sociedade espanhola. As obras do romancista Miguel de
Cervantès, que era conhecido por retratar histórias satíricas de heróis malandros e cavaleiros ‘tolos’, foram
uma enorme inspiração para Murillo (PALACIO, 1965).

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Assim, Murillo transmite na arte a sua identidade, eliminando todo o conteúdo
imaginativo e da idealização e concentrando a sua atenção na observação perspicaz do real,
que por si considerava belo, tendo em atenção os mínimos detalhes. Deste modo, retrata
crianças a comer, brincar - possivelmente inspiradas nos rostos e expressões dos seus
numerosos irmãos nos tempos da juventude, ou nos seus filhos -, aproveitando esta
conjuntura, a maioria das vezes, para demonstrar o seu domínio sobre a natureza-morta
("bodegón"), e isso, somado à carga narrativa da cena, torna as obras únicas e cheias
vitalidade (Bartolomé Esteban Murillo, s.d.). Apesar das crianças serem retratadas com
farrapos e mal calçadas, os seus rostos são inquestionavelmente graciosos, e a
caracterização do psicológico dos personagens é tão nítida e precisa, que parece que os
personagens pedem ao espectador uma participação emocional na trama de sentimentos
que a cena contém. Como qualquer bom artista, Murillo era um contador de histórias e,
como qualquer bom contador de histórias, pintava para mostrar, não para contar. Notamos
ainda que nas suas pinturas de género não há nenhum estereótipo rígido nos retratos: cada
um deles reflete uma personalidade individual.

ANÁLISE DA OBRA “O JOVEM MENDIGO”


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Muitas pessoas gostam de ver em quadros o que também lhes agradaria ver na
realidade. Todos gostamos de beleza na natureza e somos gratos aos artistas que a
preservaram nas suas obras. De facto, não tardaremos em descobrir que a beleza de um
quadro não reside realmente na beleza do seu tema. Ignoro se os pequenos maltrapilhos
que Murillo gostava de pintar eram rigorosamente belos ou não, mas, como os pintou,
certamente possuem grande encanto. Ele rompe com algumas fronteiras que definiram a
arte até então para permitir que o mundo ‘mundano’ se tornasse parte dela. Por isso,
Murillo é elogiado pela sua capacidade de se comunicar por meio de imagens, de ler o seu
tempo, de ter empatia com a dor de uma Sevilha em declínio económico após severas
inundações na região, sem mencionar a praga que devastou a cidade. Atribui-se a Murillo o
saber conectar-se com essa dor, expressá-la em pinturas que, nas palavras de Enrique
Valdiviezo, eram mensagens de encorajamento (Roujon, 19--).
Aqui, como em quadros semelhantes, a maioria dos quais Murillo pintou na década
de 1670, o seu cenário escolhido foi um simples quarto, no qual colocou de forma
pungente um menino no primeiro plano, sentado sozinho numa esquina, abandonado e

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descentralizado da cena, cujos pés sujos praticamente apontam para o espectador, e
reservou o resto do espaço raso para incluir a dispersão de restos de camarões, uma jarra de
cerâmica que possivelmente contém água e um saco de palha com maçãs que se espalham
no pavimento de pedra, refletindo o lucro de um dia de mendicância nas ruas locais. Estes
pormenores minuciosos dão a ideia de desamparo que permeia a ação. É, notoriamente, um
exemplo maravilhoso de tenebrismo - tendência popular do barroco -, com um forte
contraste luz-sombra, no qual Murillo se destacou, talvez por influência de Caravaggio, o
grande mestre dessa técnica (The Young Beggar, s.d.). A luz quente de um amarelo
saturado do sol brilha através de uma abertura, como podemos ver através do peitoril da
janela rústica no canto superior esquerdo da pintura, lançando uma luminosidade austera e
que foca sobre o menino, que está no lado oposto, cujas roupas são somente uns trapos
rasgados e remendados e os pés encontram-se descalços; o fundo permanece sombrio e
indiferenciado (Mugnaini, 2002). Esta é das suas poucas obras que nos deixa com uma
sensação de tristeza, uma vez que a criança não esboça um sorriso, apenas agarra as suas
roupas, cabisbaixo, esperando por uma refeição, ou uma cama, ou qualquer coisa que
algum bom transeunte lhe possa oferecer. Todavia, esta representação também foi
interpretada como o menino estando absorto a procurar e matar os piolhos que caíram no
tecido das suas vestes, algo que pode não ser compreendido imediatamente pelo espectador
(Pantorba, 1947). Por um lado, isto pode estar relacionado à crença popular andaluza que
acreditava que as crianças com piolhos eram saudáveis ​e felizes, pois estes bichos não
podiam viver em crianças doentes. Por outro lado, o ato de se tirar piolhos pode ser visto
como uma forma de estar no controle da própria mente e do próprio corpo, sendo uma ação
higiênica muitas vezes feita pelas mães nas pinturas de género holandesas. Este pode ser
um assunto aparentemente banal ou mesmo desagradável para uma pintura, porém, na
verdade, imagens de despiolhamento abundaram nos séculos XVI e XVII, dado que era
visto como símbolo de pureza e purificação do pecado, bem como um testemunho das
responsabilidades maternais2 (The Young Beggar, s.d.).
O naturalismo sem adornos na apresentação do assunto, o drama, a protuberância e
a projeção dos objetos são de uma plasticidade digna de ser equiparada à alcançada por
Velázquez nas suas naturezas-mortas. Murillo consegue criar aqui uma ilusão de solidez e
substância das suas formas ao mesmo tempo pictórica e escultórica - aspeto ainda mais

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Enquanto uma criança a tratar dos seus piolhos era visto como um ato de inocência, nas representações de
um homem e uma mulher a fazerem o mesmo um ao outro tinha conotações eróticas (PANTORBA, 1947).

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evidenciado pela paleta escolhida de tons térreos e escuros3, porém fluídos. As pinceladas
pastosas, mas soltas, que também definem as qualidades da superfície são visíveis em toda
a tela, sem prejudicar a noção de volume (Bardi, 1968). Todavia, este nível de realismo não
teria agradado aos colecionadores locais. Parece que Murillo pintou especificamente para a
clientela europeia composta por mercadores genoveses, holandeses, flamengos e até
mesmo londrinos, que negociavam no porto de Sevilha no rio Guadalquivir e
colecionavam estas pinturas de género para as suas exibições privadas (Dotor, 1964).
Embora o quadro não tenha sido assinado nem datado, os estudiosos concordam
que Murillo concretizou-o por volta de 1645, quando ainda era influenciado por Zurbarán e
Velázquez (Bardi, 1968). O interesse de Murillo pelos pobres talvez estivesse relacionado à
doutrina da caridade dos franciscanos, para quem trabalhava com frequência, contudo,
acima de tudo, o autor quis retratar a situação económica de Sevilha na altura, como
resultado da má gestão de Espanha no século XVII. Não só havia conflito entre as pessoas
por causa de diferenças religiosas, mas também pragas que afetavam as crianças (Mallory,
1991). Foram essas dificuldades particulares que se tornaram os temas das pinturas de
Murillo e “O Jovem Mendigo” foi o primeiro trabalho de Murillo retratando sem-abrigos.
Estes eram muitos em Sevilha durante a Idade de Ouro (chamada assim porque a cidade
lucrava muito com o comércio com as Américas), onde a peste matou 50% da população e
deixou muitas crianças órfãs. Murillo, que viu o sofrimento do povo de Sevilha e suportou
a morte dos seus filhos e da sua esposa, sabia muito sobre os males sociais. Essa condição
afetou-o e influenciou a sua pintura secular, como pode ser visto no objeto artístico
analisado (Mugnaini, 2002).
Nos modelos do norte, estas situações precárias eram mais frequentemente
retratadas com personagens bufões, desajeitados, deformados, moralmente corruptos e, por
vezes, até mesmo com problemas mentais. “O Jovem Mendigo” de Murillo é diferente, no
entanto: é posado com uma graça e dignidade quase clássica, traço que aponta para a
doçura e o sentimentalismo que virão a impregnar as obras posteriores do pintor, o que
pode parecer inadequado face às suas infelizes circunstâncias e um pouco ‘idealizado’,
dado que Murillo convenientemente ignora os aspetos mais angustiantes da vida de uma
criança órfã (The Young Beggar, s.d.). Além disso, desde o início do século XIX que a
pintura encontra-se na coleção do Museu do Louvre, onde influenciou pintores realistas,

3
Este tipo de cromatismo sempre foi a escolha preferencial dos pintores que pretendiam representar cenas do
quotidiano, do povo, por serem cores ligadas à humildade, à simplicidade, à pobreza e ao trabalho na terra.

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incluindo François Bonvin, Gustave Courbet e Édouard Manet (que, na verdade, a copiou).
“O Jovem Mendigo'' estava entre as peças mais populares de Murillo e foi comprado por
um negociante chamado Lebrun, que foi então dado a Luís XVI para a sua coleção real.
Este foi um feito raro, pois Murillo foi apenas um dos três pintores espanhóis que tiveram
as suas obras colocadas na coleção, sendo os outros dois Diego Velázquez e Francisco
Collantes (Dotor, 1964).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Murillo revolucionou a arte de pintar crianças nas suas obras, transformando-as


enquanto protagonistas das cenas ao representá-las como nunca antes ninguém tinha feito,
optando por uma conceção mais delicada e menos abrupta da pobreza vivida nesta época
em Espanha. Graças ao seu engenho, criou novos temas artísticos, especialmente na
pintura de género. Isso tem a ver em grande parte com a sociedade que o rodeou e com as
diferenças que pudemos encontrar nas diversas obras que o artista corrobora. No entanto,
todas essas crianças têm algo em comum, que é a pura essência da infância; embora
estejam sujas, não são representadas doentes ou tristes, o que cria um equilíbrio perfeito.
Todos os trabalhos têm uma configuração alegre e doce, quase nostálgica e simbólica, o
que nos conecta profundamente com eles. Murillo consegue criar essa aproximação com o
espectador ao representar figuras humanizadas, de carne e osso, dotadas de emoções que
correspondem fielmente à realidade; não nos encaram com frieza e de forma neutra como
acontecia até aqui. Neste sentido. esta análise profunda, tanto da vida e obra de Murillo,
como do contexto sociocultural do século XVII em Sevilha complementou-se bem na
definição da sua linguagem artística, e para cada época da arte é essencial compreender a
história e o por quê das obras terem sido realizadas em determinado momento.
Concluindo, este tema é essencial, uma vez que as representações infantis do artista
têm vindo a influenciar a arte posterior. Bartolomé Esteban Murillo é considerado um dos
grandes artistas de todos os tempos e, sem querer, impõe um modelo de representação
infantil que vai ser imitado pelos seus sucessores. A atmosfera reproduzida por Murillo,
bem como as inocentes e felizes crianças, serão vistas em obras realistas de grandes artistas
do movimento impressionista, embora se torne mais recorrente em assuntos religiosos.

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RECURSOS BIBLIOGRÁFICOS
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Bardi, P. M. (1968). Gênios da Pintura (Vol. 44). São Paulo: Abril Cultural.
Bartolomé Esteban Murillo. (s.d.). Disponível via The Arte Story em:
<https://www.theartstory.org/artist/murillo-bartolome-esteban/>. Acesso: 14 de Abril de
2022.
Dotor, A. (1964). Murillo. Madrid: Publicaciones Españolas.
Louvre Corporation (2022). O Jovem Mendigo. Disponível em:
<https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010060879>. Acesso: 14 de Abril de 2022.
Mallory, N. A. (1991). Del Greco a Murillo: la pintura española del Siglo de Oro.
Madrid: Alianza Editorial.
Mugnaini, E. (2002). Bartolome Esteban Murillo: La exploración de las influencias
que formaron su representación de la gente (Vol. 14). In Undergraduate Review: Iss. 1,
Art. 6. Disponível em: <https://digitalcommons.iwu.edu/rev/vol14/iss1/6>.
Museo del Prado Corporation (2022). Murillo, Bartolomé Esteban. Sevilha, 1617 -
Sevilha, 1682. Disponível em:
<https://www.museodelprado.es/en/the-collection/artist/murillo-bartolome-esteban/314440
b0-386b-4b11-81f1-d84809e7704e>. Acesso: 14 de Abril de 2022.
Palacio, S. (1965). Murillo. Madrid: Editorial Offo.
Pantorba, B. (1947). Murillo: semblanza. Madrid: Antonio Carmona.
Redondo, G. (1956). Zurbarán, Velázquez y Murillo. Madrid: Publicaciones
Españolas.
Roujon, H. (19--). Murillo. Paris: Pierre Lafitte.
The Editors of Encyclopaedia Britannica (2022). Bartolomé Esteban Murillo.
Spanish Painter. Disponível em:
<https://www.britannica.com/biography/Bartolome-Esteban-Murillo>. Acesso: 14 de Abril
de 2022.
The Young Beggar. (s.d.). Disponível via Artble em:
<https://www.artble.com/artists/bartolome_esteban_murillo/paintings/the_young_beggar>)
. Acesso: 14 de Abril de 2022.

APÊNDICES: FICHA TÉCNICA DO OBJETO ARTÍSTICO

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Identificação: “O Jovem Mendigo”; “The Young Beggar”; “The Lice-Ridden Boy”; “El Joven
Mendigo”.

Categoria: Pintura Estilo Dominante: Barroco espanhol

Cronologia: 2º quarto do séc. XVII (1645-1655) Dimensões:


Altura - 1,34m;
Altura com moldura - 1,71m;
Largura - 1,1m;
Largura com moldura: 1,51m;
Espessura com moldura - 13cm.

Patrocinador / Titular Anterior: Lebrun, Autor: Murillo, Bartolomé Esteban (Sevilha,


Jean-Baptiste-Pierre; Gaignat, Louis-Jean. 1617 - Sevilha, 1682).

Autorretrato de Bartolomé Esteban Murillo, c. 1670, Óleo


sobre tela, 122 x 107 cm, in The National Gallery,
Londres, Reino Unido.
(Disponível em:
<https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/bartolome-e
steban-murillo-self-portrait>)

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Influências artísticas: Van Dyck, Ticiano, Peter Materiais e Técnica: Óleo sobre tela.
Paul Rubens, Velázquez, Francisco de Zurbarán,
Alonso Cano, Jorge Castillo e Caravaggio.

Estado de Conservação Atual: A obra Proprietário: Estado.


encontra-se em perfeitas condições, com as suas
cores ainda bastante pigmentadas e o desenho
claramente contornado, sem grandes danos e
"poluições" visuais aparentes, uma vez que é
constantemente mantido e protegido pelo Museu
do Louvre.

Iconografia: Retrato/Personagem/Nu; Cena de Museu: Louvre (Disponível em:


Género/Cotidiano/Trabalho/Pobreza; Criança. <https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010
060879>).

Coleção: Departamento de Pinturas. Número de Inventário: INV 933 (principal); MR


361 (outro).

Localização atual: Denon, [Pintado] Sala 718, Método de Aquisição: Entrada - Coleção de Luís
Nível 1. XVI.

Datas Importantes na Vida do Pintor: Observações: Murillo era aparentemente um


1618, 1.° de janeiro - Murillo nasce em Sevilha, homem de índole calma e doce, o que pode
de pais pobres; explicar alguns aspetos da sua expressão artística
1628 - Com o falecimento dos pais, fica aos pessoal. O seu pai chamava-se Gaspar Esteban e
cuidados de um tio, que o encaminha ao estúdio era barbeiro, e a sua mãe chamava-se Maria
do pintor Juan del Castillo; Pérez Murillo. Estes tiveram cerca de catorze
1638 - O seu professor muda-se para Cádiz; filhos, constituindo uma família muito numerosa,
1642 - Através de um amigo, Murillo descobre a no entanto morrem quando Murillo ainda não
pintura de Van Dyck; completara onze anos. Órfão, ficou ao cuidado da
1645 (?) - Possível viagem a Madrid; sua irmã Ana, que era casada com um barbeiro
1646 - Graças a onze telas pintadas para o de nome Juan Agustín de Lagares, com quem
Claustro dos Franciscanos de Sevilha, torna-se teve uma boa relação. Portanto ele sabe bem o
famoso; sentimento de se viver sem pais, o que pode

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1660 - Funda a Academia de Belas Artes da explicar as suas pinturas de género que retratam
cidade; crianças sozinhas nas ruas (Roujon, 19--).
1680 - Acidenta-se ao trabalhar na decoração da Atingiu o seu apogeu no século XIX, após a
Igreja dos Capuchinhos de Cádiz. invasão napoleónica da Espanha e a dispersão
1682, 3 de agosto - Falecimento. das suas obras pela Europa como resultado do
saque dos generais franceses e posterior venda do
riquíssimo butim obtido na Península Ibérica. A
estética de Murillo pertence a uma nova fase da
arte espanhola e a um sentimento generalizado de
alcance europeu, característico da segunda
metade do século XVII (Bardi, 1968). De facto, o
cansaço da grandiloquência trágica da primeira
arte barroca e o nascimento de uma nova
sensibilidade inclinada a valores mais afáveis e
gentis exigiam uma linguagem diferente, da qual
Murillo era o expoente mais ilustre. O mundo do
artista é o das tendências de renovação da
Contra-Reforma, que, naquele período,
pretendiam integrar a religião no ambiente
cotidiano, sublinhando os valores da vida
familiar e aprimorando, de maneira
compreensível, o sentido da mística (Mugnaini,
2002). Mas também executou excelentes retratos,
embora não muitos, e maravilhosas cenas de
género, muitas das quais sustentam a sua pintura
religiosa, que é apenas um pretexto para eles. Em
outros casos o tema escolhido é o próprio evento,
popular, isolado de qualquer outro contexto, e
aqui o charme e a espontaneidade de Murillo se
expressam de maneira marcante, absolutamente
distinta e de rara originalidade (Pantorba, 1947).
Afastando-se das superfícies lisas de Castillo, as
suas pinceladas tornaram-se cada vez mais soltas

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e carregadas de tinta, alcançando finalmente uma
maravilhosa leveza e facilidade. Foi nesse ponto
de maturidade que a sua técnica passou a ser
descrita como "vaporosa", pois as suas formas
tornaram-se borradas e a prioridade foi dada à
luz e à cor, esta em tons quentes, primorosamente
modulados, adequados à delicadeza e ternura que
o assunto pretendia expressar (Dotor, 1964).

Nota Histórica-Artística: No início da década de 1650, Sevilha, embora ainda vista como o centro
cosmopolita, intelectual e de produção artística da Espanha, não era mais a sua potência comercial. A
cidade havia perdido o seu monopólio para Cádiz, e uma praga havia dizimado quase metade da
população, uma catástrofe seguida de fome, recessão e rebelião. Em parte como reação a essa
desintegração, as ordens religiosas de Sevilha (franciscanos, dominicanos e capuchinhos) dedicaram
os seus recursos consideráveis ​à caridade e encomendaram obras de arte (Bartolomé Esteban
Murillo, s.d.).
Ao contrário da geração anterior de mestres pintores, incluindo Diego Velázquez, Francisco de
Zurbarán e Alonso Cano, Murillo não aspirava ao patrocínio real. As suas conexões com a
aristocracia e irmandades religiosas de Sevilha facilitaram um fluxo de comissões ao longo das
décadas de 1650 e 1660, e a sua carreira cresceu rapidamente. O seu ateliê em Sevilha alimentou
sucessivas gerações de pintores, e os mais bem sucedidos, como Francisco Meneses Osório, Juan
Simón Gutiérrez, Sebastián Gómez, Pedro Núñez de Villavicencio e Esteban Márquez, que
divulgaram o seu estilo, sensibilidade e iconografia com tanta devoção que Murillo continuou a
encarnar a Escola de Sevilha muito depois da sua morte (Bartolomé Esteban Murillo, s.d.).
As pinturas de género de Murillo não formulam explicitamente uma acusação de cunho social.
Pode-se até dizer que ele embeleza o tema da pobreza, ao focalizar apenas o seu aspeto estético,
utilizando, por exemplo, crianças esfarrapadas e famintas como motivo indiferente de inspiração
artística. Assim, pouco importa que Murillo, pessoalmente, se interesse mais em reproduzir com
fidelidade o encanto de uma atitude infantil ou em elaborar uma composição equilibrada e aprazível.
O facto é que, ao voltar-se para os temas populares, com este ou aquele intuito, ajudou a descortinar
o panorama da existência concreta dos seus contemporâneos (Mugnaini, 2002).
Após um breve período de prosperidade e esclarecimento, décadas de guerra, invasão, perdas
coloniais e, por último, mas não menos importante, problemas dentro da Igreja destruíram o mercado

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da iconografia católica. Os colecionadores voltaram-se para assuntos seculares e géneros mais de
acordo com a ascensão de uma classe média rica, como retratos e naturezas-mortas. Murillo, tendo
sido conhecido na Espanha como pintor religioso e no exterior como pintor de género, foi mal
servido de ambos os lados, porque a Igreja não mais financiava grandes encomendas e, após a
Revolução Industrial, muitos viam os meninos e mendigos de Murillo como paternalistas, ou pior,
como kitsch4 (Bartolomé Esteban Murillo, s.d.).

Imagens:

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Termo usado para designar objetos vulgares, baratos, sentimentais, bregas que copiam modelos da cultura
erudita sem critérios e sem conseguirem atingir tal nível de qualidade.

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Figs. 1, 2, 3, 4 e 5 – O Jovem Mendigo, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1645-55, Óleo sobre tela, 134 x 110 cm,
Musée du Louvre, Paris, França (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/the-young-beggar>).

Pinturas Relacionadas da sua Autoria:

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Fig. 6 – Meninos comendo uvas e melão, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1645–55, Óleo sobre tela, 155 x 148
cm, Antiga Pinacoteca, Munique, Alemanha. (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/two-children-eating-a-melon-and-grapes-1646>)

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Fig. 7 – Menino com um Cão, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1650, Óleo sobre tela, 78 x 62 cm, Hermitage
Museum, São Petersburgo, Rússia (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/boy-with-a-dog>).

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Fig. 8 – Mulher Camponesa e Um Menino, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1650-59, Óleo sobre tela, tamanho
desconhecido, Wallraf-Richartz Museum, Colónia, Alemanha (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/peasant-woman-and-a-boy>).

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Fig. 9 – Menina com Frutas, Bartolomé Esteban Murillo, 1655, Óleo sobre tela, 76 x 61 cm, Pushkin Museum,
Moscovo, Rússia (Disponível em: <https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/a-girl-with-fruits-1660>).

22
Fig. 10 – Três Meninos, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1660, Óleo sobre tela, 168.3 x 109.8 cm, Dulwich
Picture Gallery, Londres, Reino Unido (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/two-peasant-boys-and-a-negro-boy-1660>).

23
Fig. 11 – Dois Meninos Camponeses, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1668-70, Óleo sobre tela, 130 x 82 cm,
Dulwich Picture Gallery, Londres, Reino Unido (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/two-peasant-boys-1670>).

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Fig. 12 – Pequena Vendedora de Frutas, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1670-75, Óleo sobre tela, 149 x 113 cm,
Antiga Pinacoteca, Munique, Alemanha (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/the-little-fruit-seller-1675>).

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Fig. 13 – Comedor de Bolo, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1670-75, Óleo sobre tela, 123.5 x 102 cm, Antiga
Pinacoteca, Munique, Alemanha (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/children-eating-a-pie-1675>).

26
Fig. 14 – The Toilette, Bartolomé Esteban Murillo, c. 1670-75, Óleo sobre tela, 147 x 113 cm, Antiga
Pinacoteca, Munique, Alemanha (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/the-toilette-1675>).

27
Fig. 15 – Meninos jogando Dados, Bartolomé Esteban Murillo, 1675, Óleo sobre tela, 145 x 108 cm, Antiga
Pinacoteca, Munique, Alemanha (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/boys-playing-dice-1675>).

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Fig. 16 – Dois Meninos Jogando Dados, Bartolomé Esteban Murillo, 1675, Óleo sobre tela, 148 x 114 cm,
Academy of Fine Arts Vienna, Áustria (Disponível em:
<https://www.wikiart.org/en/bartolome-esteban-murillo/two-boys-playing-dice-1675>).

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Fig. 17 – Menino à Janela, Bartolomé Esteban Murillo, 1675, Óleo sobre tela, 52 x 30 cm, The National
Gallery, Londres, Reino Unido (Disponível em:
<https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/bartolome-esteban-murillo-a-peasant-boy-leaning-on-a-sill>).

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