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AS MENINAS DE VELÁZQUEZ: A REPRESENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

Amanda Sangy Quiossa


Rita de Cássia Mesquita de Almeida*

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a obra barroca “As meninas”, de Diego
Velázquez, a partir da interpretação de Michel Foucault e de outras, contrárias ou a favor do filósofo.

ABSTRACT: this work aims to analyze the work baroque "As meninas”, by Diego Velázquez, from the
interpretation of Michel Foucault and others, or contrary to the philosopher.

PALAVRAS-CHAVE: Velázquez; Pintura barroca; Foucault.

KEYWORDS: Velázquez; Baroque painting; Foucault.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem a finalidade de ponderar as diversas interpretações que giram em


torno do quadro “As Meninas”, de Diego Velázquez. Extremamente analisado, o quadro é
motivo de polêmica e de infinitas indagações sobre qual foi a verdadeira intenção do pintor
ao executar a obra, não só de especialistas em História da Arte como entre vários outros
autores, de diversas áreas. Partiremos da análise mais famosa, publicada pelo filósofo
Michel Foucault1, comparando-a com novas concepções surgidas recentemente, como a do
artista plástico Ricardo Coelho, que expõe um contraponto muito nítido à obra de Foucault.
E para inserir a obra no tempo, faremos uma breve passagem pelo contexto artístico,
biografia e outras produções do pintor.

*
Graduandas do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
1
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 7ªed. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
1. VELÁZQUEZ, EXPRESSÃO DO BARROCO

Diego Rodríguez de Silva y Velázquez nasceu em Sevilha, em junho de 1599, e foi


o principal artista da corte do Rei Filipe IV de Espanha. Como quase nunca assinava seus
trabalhos, o artista teve atribuídas a ele muitas telas de outros pintores. Embora suas obras
chamem a atenção pela aparente naturalidade, não são frutos de simples observação, mas de
uma elaboração intelectual, na busca de uma representação do mundo em formas ideais.
Cercado de prestígio e honrarias, Velázquez morreu em Madri, em 6 de agosto de 1660. É
tido como uma grande expressão do Barroco. 2O Barroco é um estilo artístico que surgiu na
Europa ocidental nos séculos XVII e XVIII. Embora tenha assumido diversas
características ao longo de sua história, seu surgimento está intimamente ligado à Contra-
Reforma. A arte barroca procura comover intensamente o espectador. Nesse sentido, a
Igreja converte-se numa espécie de espaço cênico, num teatro sacro onde são encenados os
dramas.3
Contrariamente à arte do Renascimento, que pregava o predomínio da razão sobre
os sentimentos, no Barroco há uma exaltação dos sentimentos; a religiosidade é expressa de
forma dramática, intensa, procurando envolver emocionalmente as pessoas. Além da
temática religiosa, os temas mitológicos e a pintura que exaltava o direito divino dos reis -
teoria defendida pela Igreja e pelo Estado Nacional Absolutista que se consolidava -
também eram freqüentes. De certa maneira, assistimos a uma retomada do espírito religioso
e místico da Idade Média, numa espécie de ressurgimento da visão teocêntrica do mundo. E
não é por acaso que a arte barroca nasce em Roma, a capital do catolicismo.4 O Barroco é
marcado pela presença constante da dualidade. Antropocentrismo versus teocentrismo, céu
versus inferno, claro versus escuro, entre outras oposições.
Como influências presentes na obra de Velázquez, há o naturalismo de Caravaggio e
o emocionalismo dos Carracci, representando o declínio do alto nível cultural e do fim do
direcionamento da arte para a classe dominante. As massas passam a ser levadas em conta,

2
Disponível em http://www.pitoresco.com.br/universal/velazquez/velazquez.htm. Acessado em 27
jun. 2007.
3
SILVA, Henrique Vanderlei; SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 31.
4
Ibidem, p. 32.
o que não ocorria no Maneirismo. As obras de arte deveriam fazer propaganda, persuadir,
dominar, mas através de uma linguagem pura e apurada.5
Essa intensidade dramática do Barroco está bem exemplificada na pintura de
Rubens. Esse pintor flamengo, que viveu de 1577 a 1640, é considerado um dos maiores
expoentes de todo o Barroco e um dos maiores gênios da pintura de toda a História da Arte.
Este, através de suas visitas a Espanha, despertou em Velázquez o desejo de conhecer a
Itália, que por sua vez conseguiu ser enviado em missão oficial a todas as províncias
italianas, comprando obras de arte para a coroa espanhola e tomando conhecimento do
trabalho dos melhores artistas.
Sucederam-se as obras-primas A Rendição de Breda (1634), Vênus olhando-se ao
Espelho, Cavalo Branco, retratos de bobos da corte e as efígies de Esopo e de Menippe.
Executou em Roma o retrato do Papa Inocêncio X que irá, séculos mais tarde, tornar-se
uma obsessão na obra de Francis Bacon. Entre suas obras, podemos citar como pintura de
tema mitológico o quadro O Rapto das Filhas de Leucipo. De tema religioso, Sansão e
Dalila, da passagem bíblica do Velho Testamento. E, como exemplo de pintura que exalta a
nobreza, temos a série de quadros sobre a vida de Maria de Médici, feitos por encomenda
para a rainha-mãe e regente da França.6
A arte religiosa assume um caráter oficial e perde suas características espontâneas e
subjetivas, tornando-se mais condicionada pelo culto e menos pela fé imediata. Isso se deve
ao medo do subjetivismo da Reforma, ao medo de que haja interpretações arbitrárias das
representações católicas. A Igreja católica deseja que as obras expressem o significado real
de sua ortodoxia, de maneira a se firmar diante do Protestantismo.
Nos estados protestantes, a pintura barroca assumiu características diferentes. Como
nesses países havia condições favoráveis à liberdade de pensamento, a investigação
científica iniciada no Renascimento pôde prosseguir, permitindo assim a confecção de
quadros como A aula de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.7 A força da burguesia
nesses estados – e especificamente na Holanda – levou a pintura aos temas burgueses e de
cenas da vida comum, como A Ronda Noturna, também de Rembrandt.

5
Disponível em http://www.pitoresco.com.br/universal/velazquez/velazquez.htm. Acessado em 27
jun. 2007.
6
Loc. cit.
7
Disponível em http://www.historiadaarte.com.br/barroco.html. Acessado em 04 jul. 2007.
O Barroco durante os 150 anos que imperou, significou um modelo de vida. A
integração existente entre pintura, escultura e arquitetura, a música que confere às
cerimônias palacianas e principescas um grande esplendor, o mobiliário, o vestuário, a
literatura e inclusive os penteados e o modo de se expressar.8

2. FOUCAULT & “LAS MENINAS”

Michel Foucault faz em seu texto uma análise detalhada do quadro de Diego
Velázquez, buscando compreender a obra, em todas as relações que se pode fazer entre seus
componentes. Ele constrói sua narrativa basicamente a partir das incertezas e ambigüidades
presentes no quadro.
O autor começa seu texto analisando a presença de Velázquez dentro do quadro. Para
Foucault, o pintor está no ponto neutro da oscilação entre o momento de pausa e o ato de
pintar. Neste último ele se esconde atrás do cavalete e não pode ser visto pelo espectador,
enquanto no momento de pausa ele observa o modelo e podemos vê-lo por inteiro.
Velázquez então, está representado no momento entre a observação do modelo e o ato de
pintar, tendo em vista a impossibilidade de representá-lo nos dois momentos.9
Em relação ao olhar de Velázquez, Foucault o interpreta como direcionado ao
espectador, ou seja, seu olhar se projeta para fora do quadro. Isso, não nos permite perceber
qual o alvo da sua contemplação. O fato de sua visão se direcionar a nós estabelece uma
relação nossa com o quadro. O espectador torna-se alvo do olhar de Velázquez, na medida
em que está no lugar de seu modelo. Ao mesmo tempo, que este olhar pode estar nos
expulsando e dando atenção ao que estava lá desde o começo, isto é, o modelo, o
direcionamento do olhar do pintor para fora do quadro transmite uma sensação de vazio que
parece aceitar todos como modelos. 10
No olhar de Velázquez também é possível perceber uma ambigüidade. Ele pode ser
considerado não-estável, como se o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo, trocassem
de lugar infinitamente. Isso se dá, pois não sabemos o que ele está pintando, o que acaba
por confundir nossa função de espectador. Não sabemos se estamos sendo olhados, e com

8
KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. São Paulo: Marins Fontes, 2004. p. 50.
9
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 3.
10
Ibidem, p .4.
isso, nossa função de espectador se confunde com o papel de modelo. Por outro lado, pode-
se perceber um caráter imóvel no seu olhar, se considerarmos que este quadro foi pintado
uma vez e permanecerá sempre estático.11
O espectador se percebe retratado na tela virada que é invisível e ele próprio. É
utilizada uma estratégia para enfatizar isso. A luz que vem de uma janela na extremidade
direita, com uma perspectiva muito curta.12 Ela ilumina tanto a tela, o lugar em que o pintar
está sendo representado pintando e à sua frente, o lugar que o espectador ocupa. A luz
dourada que sai desta janela leva o espectador direto ao pintor e o modelo direto à tela. A
janela então, com seu papel parcial emite uma luz inteira e mista que serve de lugar-comum
à representação. Ela envolve tanto os personagens quanto os espectadores, que se sentem
olhados pelo pintor através desta luz, que é a mesma nos faz vê-lo. Esta luz é equilibrada
pela tela invisível, que está na outra extremidade.13
Foucault analisa os quadros presentes no fundo da pintura. Ele dá destaque para um
que, para ele, brilha com uma luz diferenciada, que lhe é interior. De acordo com o autor,
este quadro, entre os elementos destinados a oferecer representações, mas que não o fazem
de forma nítida, devido à sua posição, ou distância, é o mais nítido. Ele o interpreta como
um espelho, em que aparecem duas silhuetas e acima delas, mais atrás, uma cortina de
púrpura.14
Ele o coloca como elemento pouco observado, tanto pelos personagens do quadro,
quanto por nós, espectadores. Este espelho não reflete nada que está visível no quadro. Não
reflete o pintor, nem seus personagens. Ele capta aquilo que nos é duplamente invisível no
quadro, os modelos que o Velázquez representado pinta em sua tela e as figuras que
observam o pintor.15
A descrição da obra e de seus participantes para Foucault seria

Velázquez compôs um quadro; que neste quadro ele se representou a si mesmo em


seu ateliê, ou num salão do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta
Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e
de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição
reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano,

11
Ibidem, p. 6.
12
Idem.
13
Op. Cit. p.7.
14
Op. cit. p. 10.
15
Op. cit. p. 11.
Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens
que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos diretamente; mas que
podemos distingui-las num espelho; que se trata sem dúvida, do rei Felipe IV e de
sua esposa Mariana.

O espelho então, reflete o que está pintado na grande tela à esquerda. Opõe-se à
janela e a reforça, sendo ambos parte do quadro e representantes de algo exterior.16 O
espelho, de maneira discreta, busca à frente do quadro o que é olhado, mas que não é
visível, o tornando visível, mas não destacado. Já a janela, através da luz que projeta da
direita para a esquerda conecta as personagens ao pintor, ao quadro e à cena que observam.
O espelho ainda coloca em evidência uma porta que também recorta um retângulo claro, se
abre na parede ao fundo.17
Esta porta também não retém muita atenção e fixa o verso da cena. Um homem está
parado nela, de perfil. Não se sabe quem ele é e de onde veio, nem se está saindo ou
entrando na sala. Ele é real enquanto no espelho o que aparece são reflexos prováveis. É
como se sua presença, nítida e real, recusasse as pálidas e minúsculas silhuetas refletidas no
espelho.18
Foucault propõe uma análise que parte do olhar do pintor. Esta análise parte do lado
esquerdo da tela, passando pelos quadros o fundo com o espelho no centro, a porta aberta,
outros quadros e enfim, a janela à direita onde é emitida uma luz. Desta forma se torna
possível perceber todo o ciclo de representação: o olhar, a paleta, o pincel, a tela em que
não se sabe o que está representado, como instrumentos materiais da representação. Já os
quadros, os reflexos, o homem real, são a representação acabada, mas vazia de seus
conteúdos ilusórios e verdadeiros que lhe são justapostos. Seguindo da esquerda para a
direita nos quadros que seguem há uma diluição da representação, só são perceptíveis suas
molduras, de onde parece emanar a luz, que na verdade vem do exterior. A abertura lateral,
onde termina este ciclo representa a amplitude do quadro. Ela ilumina os personagens do
quadro. 19
No centro do quadro está a infanta Margarida que se posiciona com a cabeça virada
para a direita e o busto para a esquerda, dirige seu olhar aprumado aos espectadores. Uma

16
Op. cit. p. 12.
17
Op. cit. p. 13.
18
Op. cit. p. 14.
19
Op. cit. p.15.
linha mediana dividindo o quadro em duas partes iguais pode ser traçada entre os dois olhos
da menina. Seu rosto está a um terço da altura total do quadro. Ela é o tema principal da
pintura, o que é enfatizado pela presença da governanta ajoelhada na sua direção, da aia que
olha para a princesa, da outra dama de honor também voltada para ela, porém com os olhos
voltados para frente fitando a princesa e o pintor.20
Foucault classifica dois grupos de duas personagens, em que, por sua posição e
proporção, se correspondem e se emparelham. Atrás há os cortesãos e à frente os anões.
Conforme a atenção que se dê ao quadro e ao seu centro de referência, este conjunto de
personagens pode constituir duas figuras. Uma seria um grande X. Na sua ponta esquerda
superior estaria o olhar do pintor e à direita o do cortesão; nas pontas inferiores, à esquerda
está o pé do cavalete, e do lado direito o anão, que está com o pé apoiado no cachorro. No
centro deste X está o olhar da infanta. A outra figura seria uma grande curva. Suas pontas
seriam determinadas pelo pintor à esquerda e pelo cortesão à direita; o recôncavo seria o
rosto da princesa e o olhar que a aia a dirige. Esta delicada linha desenha uma concha que,
de maneira instantânea, que ao mesmo tempo encerra e libera, no centro do quadro, a
localização do espelho. A partir destas duas possibilidades de figuras a se formarem com
diferentes pontos no quadro, pode-se perceber dois centros em que se pode organizar o
quadro: o rosto da infanta e o espelho.21
Foucault conclui nos falando da reciprocidade do olhar dos personagens no quadro e
dos três grupos que o olham externamente. Os personagens olham para o modelo e para o
espectador, da mesma maneira que são olhados pelos modelos, pelos espectadores e pelo
pintor.22 Outro ponto colocado pelo autor é relativo à importância do espelho, que reflete os
modelos, o rei e a rainha. A intenção deste reflexo é atrair para dentro do quadro aquilo que
organiza o olhar de todos os personagens representados na tela.23 Mas devido aos objetos
de representação, e os soberanos não estarem representados de forma clara no quadro, a
obra pode ser considerada como uma visão de um mestre (que seria Velázquez) que

20
Loco citatum.
21
Op. Cit. p. 16.
22
Op. Cit. p. 18.
23
Op. Cit. p.19.
representa os soberanos sendo representados. Seria então o que Foucault chama de a
representação como pura representação.24

3. OUTRAS INTERPRETAÇÕES

Murillo Mendes25

Compartilhando da tese de Foucault, Mendes começa afirmando que a tela é a


representação de uma cena invertida, vista pelo seu reverso, e isto significa que não é
possível ver o conteúdo da tela no seu verso. Ele também acredita no discurso da
invisibilidade presente no quadro, que diz respeito ao posicionamento de Velázquez na tela.
“O pintor, dentro da motivação da pintura, marca um espaço imponderável, se situa num
deslocamento do visível e do invisível”. Ou seja, Velázquez se retrata num intervalo de
tempo entre o momento de pintar e aquele em que observa o modelo, e fica a insinuação de
um possível conteúdo invisível (aquilo que está sendo pintado). Assim, ele entende que o
pintor nos observa na medida em que nos encontramos no lugar de seu modelo, e o que era
para ser observado na realidade observa, através de uma linha do olhar de Velázquez. O
objeto passa, então, a posicionar o sujeito, e para que este último exista é preciso que seja
representado. Contudo, há a incerteza do sujeito em relação ao que está sendo pintado, por
conta da invisibilidade do conteúdo da tela, da qual só se pode ver o avesso.
Sobre a luz que incide no cenário da pintura, Mendes diz que “ela é um elo de
ligação entre o real e o espaço representado”, porque “faz visível o espaço dos modelos
reais e irreais”. Ele acredita, assim como Foucault, que a luz se estende para fora da tela,
iluminando também o espectador que, para ambos os autores, é um possível modelo de
Velázquez. O espelho, por sua vez, é analisado como sendo a representação da
representação, visto que seu reflexo é a reprodução do invisível (o tema da tela que só pode
ser vista pelo seu verso).

24
Op. Cit. p. 20.
25
Disponível em www.artecritica.arq.com.br/cultura.htm. Consultado em 26 abr. 2007. Devido à falta
de numeração nas páginas dos artigos consultados, resolvemos omitir as notas de referência a cada citação.
Entenda-se que foram retiradas aqui e ali, em todo o texto.
Mendes conclui destacando a realidade aparente do quadro. Para ele, a tela
constitui-se de diversos olhares e as únicas figuras irreais – os reis, refletidos no espelho –
são as menos observadas. Em suas palavras:

No conjunto, o quadro é uma cena olhando e sendo olhada. O puro espetáculo é


o exterior. É um espetáculo composto de olhares, tanto da assistência quanto
das figuras, olhando e sendo olhadas. O real é aparência da realidade. A
representação se coloca no frágil e na palidez da realidade. As figuras do
espelho, as únicas reais, são as mais frágeis e as que não são olhadas nem pelas
figuras representadas e nem pelo espectador. No entanto, são as únicas figuras
soberanas, os reis, superando o real e o irreal. E só a partir delas, que existe a
possibilidade da representação, o motivo da elaboração do quadro.

Ricardo Coelho26

Coelho parte da crítica à interpretação de Foucault sobre o quadro e de uma


detalhada análise estrutural para fundamentar a sua tese. “O quadro é reanimado à nossa
maneira numa tentativa de refazer a sua execução e assim entender o famoso enigma de
Velázquez”. Contudo, reconhece que

a confrontação das interpretações não permite uma conclusão definitiva a


respeito do quadro, porém, abre uma nova forma de olhar e analisar o enigma
de ‘Las Meninas’ como uma representação que se desdobra no tempo, ou
melhor, como uma fissura no tempo linear da representação, sendo impossível
que a cena como a conhecemos tenha ocorrido a um só tempo.

A primeira hipótese que aparece em seu trabalho é em relação a uma evidência


revelada pelo tempo. Duas linhas verticais surgem, mostrando as duas bases iniciais de
divisão do quadro. De acordo com Coelho, as linhas devem ter sido feitas de algum
material “diferente da tinta a óleo usada no esboço” e se tornou visível com o tempo. Isso
demonstra que o quadro foi previamente estruturado e estudado de maneira detalhada. “O
primeiro segmento passa pelo rosto da dama de honra que supostamente nos observa;
deste segmento até a extremidade esquerda encontramos a segunda linha mestra do
quadro que, coincidentemente, corta o rosto de Velázquez passando pela sua palheta”.
(Anexo 1, figura 2).

26
Disponível em www.artewebbrasil.com.br/espaco/ricardocoelho.htm. Consultado em 26 abr. 2007.
Devido à falta de numeração nas páginas dos artigos consultados, resolvemos omitir as notas de referência a
cada citação. Entenda-se que foram retiradas aqui e ali, em todo o texto.
O autor critica basicamente a teoria que perpassa toda a análise de Foucault: a
ambigüidade do quadro, o paradoxo existente nas relações espectador / objeto; interno /
externo; visível / invisível. Dentro disso, segue dois de seus principais argumentos para
iniciar sua análise: “a falsidade do espelho como ponto principal para especular outra
‘realidade possível’ e (...) a ‘impossibilidade essencial’ desta representação, o lugar do
pintor e do modelo, conseqüentemente o nosso”.

Coelho acredita que quem está sendo pintada no contexto da cena retratada é a
infanta Margarita, e utiliza um outro retrato da princesa, também feito por Velázquez, para
confirmar sua hipótese (Anexo 1, figura 6). Ele afirma que o olhar de concentração da
menina a algo externo só é possível porque ela estava num momento que exigia tal atitude,
e, portanto, não havia entrado na sala para simplesmente distrair seus pais, supostamente os
modelos da tela. Ao contrário, para Coelho os invasores, aqueles que estão “espionando” a
cena são justamente os reis.

Depois das primeiras observações a respeito da pose da princesa podemos


afirmar que ela se encontra posando para Velázquez, seu olhar não é de espanto
como supõe Foucault, e sim, como já afirmamos, de uma infantil concentração,
aquela que só as crianças possuem, quando são convencidas da importância de
seus atos. A disposição dos braços é a mesma da pintura de 1659, o que reforça
nossa tese. (Anexo 1: figuras 7 e 8).

Para tentar tornar sua análise mais clara, Coelho descreve o que ocorreu,
provavelmente, na cena retratada. O que aconteceu foi o seguinte, segundo o autor:
Velázquez dispôs as meninas para que pudesse pintá-las. Num determinado momento, um
cortesão que passa pára e fica observando o que acontece, a partir da visão das costas dos
modelos e de frente para o pintor. Ao contrário do que afirma Foucault, o cortesão é
percebido pelo pintor, a ponto de ter sido retratado no quadro. Ao mesmo tempo, o rei
Filipe IV e sua esposa Mariana entram no salão pelo outro lado, ou seja, ficam observando
a cena por trás do pintor, e este não os percebe, num primeiro instante. Ao ver os pais no
salão, a infanta desperta a atenção de Velázquez, e é aí que, segundo o autor, se instaura a
grande tensão do quadro: o pintor se vê de costas para os reis. Segundo Gombrich,

talvez a princesa tenha sido trazida à presença de seus régios pais a fim de
aliviar o tédio da longa pose para o quadro, e o rei ou a rainha comentasse com
Velázquez que ali estava um tema digno do seu pincel. As palavras proferidas
pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que
devamos essa obra prima a um desejo passageiro que somente Velázquez seria
capaz de converter em realidade.

Coelho concorda que pudesse ter havido essa sugestão dos reis, mas discorda, como já dito,
que o alvo da pintura fosse os monarcas. Dessa forma, Coelho acredita que

Velázquez no seu gênio pode ter-se imposto o desafio de reunir toda a cena da
qual fazia parte numa única superfície. O tempo e o espaço eram seus
obstáculos além da relação de respeito com os seus monarcas. Velázquez, para
nós, não fixa um momento real de tempo antes da invenção da máquina
fotográfica. Vai além, opera uma verdadeira montagem fotográfica que poderia
ser, num sentido ideal, o próprio antecedente do procedimento cinematográfico.
Velázquez subverte a estrutura linear da representação na profundidade do
tempo.

O ponto chave do pensamento de Coelho é justamente esse rompimento da estrutura


linear do tempo no quadro. Ao tentar não desrespeitar os soberanos ficam de costas para
eles, o pintor criou um espelho na tela, primeira parte de sua montagem cinematográfica.
Nesse nível, a pintura possui o cortesão ao fundo, as meninas (o tema principal) e o retrato
dos reis que acaba de ser inserido no falso espelho no fundo do salão. “O espelho na sua
profundidade fictícia insere na superfície da representação a profundidade da quarta
dimensão, (...) um testemunho do próprio Velázquez ao virar-se para reverenciar seus
soberanos”.

Por conseguinte, Velázquez faz seu auto-retrato com a utilização de um espelho,


talvez o único verdadeiro usado no quadro, assumindo uma postura de observador de seu
próprio trabalho. Coelho conclui, então, que o verso da tela que vemos retratado é o da
própria tela em si. Com suas palavras:

a grande tela da qual vemos o verso na representação é o que não vemos


quando vamos ao Museu do Prado em Madri, ou seja, a estrutura de
sustentação da própria tela (...). Neste momento da sua execução Velázquez se
observou a partir de um ponto de vista próximo de onde estiveram seus modelos,
com a arquitetura e os quadros nas suas costas visíveis no reflexo do espelho.

Tem-se, então, a visão do pintor em três momentos distintos: de frente para a


infanta; de frente para os reis (falso espelho) e de frente para o espelho (auto-retrato). Além
disso, o autor afirma que o olhar de Velázquez se dirige a ele mesmo, na medida que o
pintor se retrata olhando para seu reflexo no espelho, e não ao espectador ou aos reis, como
afirma Foucault.
Coelho termina ressaltando que “o enigma é causado por uma fissura no tempo
linear da representação. (...) Vemos o tema principal acrescido do passado e ainda que
não nos convencêssemos disso apenas com a imagem do espelho o auto-retrato seria mais
do que latente a esse respeito”. Concluímos, então, que Velázquez chega a tal ponto de
representação da representação que pinta o verso da própria tela que está sendo executada
naquele momento.

4. RELEITURAS

Velázquez obteve seu sucesso somente após a sua morte, mas precisamente no início
do XIX, quando se provou um modelo para os artistas realistas e impressionistas, em
especial para Edouard Manet. Até esse momento suas pinturas situadas nos palácios e no
museu de Madrid eram pouco conhecidas fora da Espanha.27 Sua influência estendeu-se
para artistas cubistas, como Pablo Picasso, e surrealistas, como Salvador Dali. Ambos
fizeram releituras de sua obra mais intrigante e tema deste trabalho. Picasso fez uma série
com nada mais de 58 telas28.

CONCLUSÃO

Velázquez pintou uma tela quando trabalhava, no século XVII, na corte de Filipe
IV, rei da Espanha. Aparentemente, mais um quadro retratando a família de um monarca.
Contudo, inseriu nele alguns elementos que o transformou em alvo de infinitas
interpretações. Foucault afirma que os reis são os modelos, os espectadores também, na
medida em que somos observados pelo Velázquez da tela, e que a princesa entra na cena
apenas para distrair os reis; confirma sua hipótese com a explicação do reflexo dos
soberanos no espelho no fundo da pintura.
Mas, porque então a infanta estava sendo servida, recebendo de sua dama de honor
uma xícara de chá? Qual o motivo de tanta concentração, de uma menina de apenas cinco
anos? Para Ricardo Coelho isso não era só uma postura de respeito perante os reis que,

27
Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Diego_Vel%C3%A1zquez. Acessado em 04 jul. 2007.
28
Ver mais: anexo 2.
afinal, eram seus pais. Sua tese vai mais além da interpretação de Foucault. Coelho acredita
que a infanta Margarita e sua pequena corte – portanto, As Meninas – eram o motivo do
quadro. O autor destaca, ainda, algo mais intrigante na pintura: o fato de toda a cena não ter
acontecido ao mesmo tempo e de Velázquez estar olhando a si mesmo, porque se auto-
retrata através da ajuda de um espelho. Embora não explicite, ele coloca o pintor como
precursor, mesmo que indiretamente, dos cubistas, no tocante à idéia de reunir, numa
mesma pintura, vários momentos diferentes29. Talvez isso explique a admiração de muitos
pintores modernos por Velázquez. Ou talvez o pintor barroco só quisesse mesmo
representar o ato de pintar. Certeza, nunca teremos. Mas por muito tempo interpretações
sobre a tela surgirão.

ANEXO 1 – ESQUEMAS DE RICARDO COELHO

Figura 1 – quadro original, 1656. Museu do Figura 2 – bases iniciais do quadro.


Prado, Madri, Espanha.

Figuras 3, 4 e 5 – outras linhas de base para a pintura.

29
Ver mais: anexo 3, com quadro de Picasso.
Figura 6 – a princesa por Velazquez em 1659. Figura 7 – detalhe da 1. Figura 8 – detalhe da 6.

ANEXO 2 – RELEITURAS

Fig. 1 – original de 1656. Fig. 2 – Tawfik, 1986. Fig. 3 – por Picasso. Fig. 4 – por Salvador Dali.

Fig. 5 – outra releitura de Picasso. 1957.

ANEXO 3 – OBRAS CITADAS AO LONGO DO TEXTO

“A Rendição de Breda”, Velázquez. “Ronda Noturna”, Rembrant. “A aula de anatomia do Dr.Tulp”,Rembrandt.


“Vênus olhando ao espelho”,Velázquez. “Papa Inocêncio X”, Velázquez. “Dora Maar”, Picasso.

BIBLIOGRAFIA:

Fontes virtuais:

www.artewebbrasil.com.br/espaco/ricardocoelho.htm.
www.artchive.com/artchive/V/velazquez.html
gallery.euroweb.hu/html/v/velazque/1620/index.html
masp.uol.com.br/servicoeducativo/assessoriaaoprofessor-set06.php
www.pitoresco.com.br/universal/velazquez/velazquez.htm
www.rainhadapaz.g12.br/projetos/artes/picasso/meninas_rel.htm
www.sergiosakall.com.br/artistas/personalidade_velasquez.html.
www.suapesquisa.com/arteseliteratura/barroco
www.vidaslusofonas.pt/caravaggio.htm

Fontes textuais:

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.


7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. LTC Editora, s/d.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes,
1998.

JANSON, H.W. História da arte: Renascimento e Barroco. São Paulo: Martins Fontes,
2001.

WOLF, Norbert. Velázquez. Madri: Taschen, 2005.

KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. São Paulo: Marins Fontes, 2004.

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